Malditas e a vida sofrida Existem Existem dois dois tipos tipos de de reportagens. reportagens. Um, Um, que que procura procura retratar retratar os os interesses interesses de de determinados determinados grupos grupos econômicos econômicos ou ou políticos políticos ee sempre sempre ouve ouve as as fontes fontes oficiais oficiais –– muitas muitas vezes vezes as as que que financiam financiam os os meios meios de de comunicação comunicação que que as as veiculam. veiculam. São São reportagens reportagens que que caracterizam caracterizam oo pouco pouco respeitado respeitado “jornalismo “jornalismo chapa chapa branca”. branca”. OO outro outro tipo tipo de de reportagem reportagem tem tem compromisso compromisso com com os os fatos, fatos, ouve ouve todos todos os os lados lados envolvidos envolvidos ee faz faz de de tudo tudo para para oferecer oferecer ao ao leitor leitor aa mais mais profunda profunda apuração apuração de de uma uma determinada determinada pauta. pauta. São São reportagens reportagens que que caracterizam caracterizam oo chamado chamado jornalismo jornalismo independente independente ee crítico. crítico. OO Caderno de Reportagens Malditas que você está prestes Caderno de Reportagens Malditas que você está prestes aa degusdegustar tar tem tem como como desafio desafio retratar retratar aa vida vida real, real, desnudando desnudando os os aspectos aspectos mais mais sombrios sombrios que que insistem insistem em em ficar ficar escondido escondido do do olhar olhar do do cidadão cidadão comum. comum. São São reportagem reportagem que que trazem trazem aa inquietude inquietude de de jovens jovens –– ee futuros futuros –– jornalistas jornalistas com com uma uma realidade realidade da da vida vida que que poucos poucos querem querem mostrar. mostrar. Mas Mas que que muitos muitos querem querem ler ler aa respeito respeito ee conhecer conhecer melhor. melhor. No No fundo, fundo, oo que que éé maldita maldita não não éé aa reportagem, reportagem, mas mas aa vida vida sofrida sofrida de de muita muita gente gente que que não não tem tem direito direito àà liberdade liberdade de de expressão, expressão, àà liberliberdade dade de de comportamentos, comportamentos, àà inclusão inclusão em em suas suas mais mais diversas diversas facetas facetas –– social, econômica, sexual, política, religiosa, de raça e gênero social, econômica, sexual, política, religiosa, de raça e gênero etc. etc. Esse Esse éé oo nosso nosso desafio desafio aqui. aqui. Mostrar Mostrar ao ao mundo mundo oo lado lado maldito maldito dele dele mesmo. mesmo. ** ** ** Agradecemos Agradecemos àà coordenação coordenação do do Curso Curso de de Comunicação Comunicação Social Social da da unidade unidade São São Gabriel Gabriel da da PUC PUC Minas Minas pela pela oportunidade oportunidade de de relançamenrelançamento to dos dos Cadernos Cadernos de de Reportagens Reportagens Malditas Malditas –– 20 20 anos anos depois depois de de sua sua criação. criação. Boa Boa leitura leitura aa todos. todos. João João Carlos Carlos Firpe Firpe Penna Penna editor editor //// professor professor de de jornalismo jornalismo
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Contaminação do medo: os segredos do
HIV por Juliana Cristina
Histórias secretas de mulheres que são silenciadas por uma “nova ditadura” e pelo medo da discriminação por serem portadoras de um vírus que exige novas posturas culturais, políticas e sociais. Na prática, o sofrimentos é duplo: pela doença e pela necessidade de escondê-las dos entes mais queridos
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“Contaminação do medo/Eu guardo o seu segredo/ Sou o HIV que você não vê/ Mas eu vejo você”. Na música Gosto do Azedo, a roqueira Rita Lee dá voz ao vírus que silencia alguns soropositivos. Por terem medo da discriminação, às vezes não se abrem para amigos nem para familiares e buscam apoio em terapias de grupo para fortalecerem a auto-estima e a vontade de viver. Essa dura realidade, vivida por pessoas em inúmeros países do mundo, pode ser constatada também no Brasil, como acontece com um grupo de mulheres de uma organização não governamental (ONG) em Belo Horizonte. De acordo com a presidente da ONG, xxxx(falta nome)xxxxx, a entidade nasceu para atender o público feminino, pois tem aumentado o número de mulheres contaminadas pelo HIV. “É raro o dia em que não se chega uma ou duas mulheres com resultado positivo”, afirma. Segundo a responsável pela ONG, na maioria dos casos elas se contaminaram por parceiros estáveis como namorado, noivo e marido. “Ainda é muito difícil para as mulheres negociarem o uso de preservativos com seus parceiros,” salienta. Todas as quartas-feiras, as soropositivas se reúnem para fazer terapia em grupo e desenvolver trabalhos artesanais que são vendidos para elas se manterem. Agatha* conta que ter o apoio em um grupo é ter liberdade porque viver no anonimato é algo muito difícil “É como ser muda, você quer falar, mas não pode. Tem gente que só de conversar acha que o vírus já tá passando para ela, porque o preconceito é muito grande. Aqui se tem liberdade, lá fora é muito ruim.” Agatha tem 45 anos e descobriu ser portadora do HIV há 12 anos. Soube da sorologia quando se internou ao sentir falta de ar, teve uma infecção hospitalar, tuberculose, foi quando os médicos pediram o teste de HIV.
PARA MUITAS, DOENÇA VIROU SEGREDO DE FAMÍLIA Mas, o segredo de ser portadora não é mantido para todos, quando Agatha descobriu ser portadora do vírus HIV sua filha era uma criança de oito anos. Era a menina que acompanhava a mãe nas consultas e exames. Pai e filha fizeram exames e eles não são portadores do vírus. Na época Agatha não vivia com o pai de sua filha tinha um relacionamento estável com outro homem, mas os laços logo se desfizeram quando ela adoeceu: “Quando eu me internei e estava à beira da morte a pessoa que o apresentou a mim disse que ele era portador e falou mais, que ele era homossexual. Não senti vontade de procurá-lo, quando descobri fiquei muito revoltada. Pensei que se o encontrasse algo iria dar errado entre mim e ele,” desabafa. Um ano depois de se descobrir soropositiva, Agatha se casou com o pai de sua filha. Segundo ela, todos os familiares sabem que ela é portadora do vírus HIV. “Minha família e a do meu esposo sabem e me apóiam. Meu marido é muito compreensível; ele é meu braço direito, ele é tudo”, constata. Mas, ainda assim, por temer que a filha de 20 anos sofresse discriminação na escola e no bairro onde a família mora, ela mantém sua sorologia em anonimato para outras pessoas. Sofia conta que sempre teve hábitos de fazer exames e foi em 1999 que descobriu ser portadora do vírus HIV após ter sido contaminada pelo parceiro com quem viveu por sete anos. Ela não sabia que ele era portador e fala sobre a vulnerabilidade a que todos estão sujeitos. “Todos estão arriscados a ter esta doença. Infelizmente, se não nos prevenirmos, pega mesmo. As mulheres, sobretudo, confiam em seus maridos e não usam preservativos”, observa. O parceiro
de Sofia iniciou o acompanhamento tão logo ela comunicou-lhe que era soropositiva. Porém, ele abandonou as idas ao médico e faleceu há três anos de complicações em função da doença. MULHERES UNIDAS PELO SOFRIMENTO Mas não foi o resultado positivo de HIV que uniu Sofia às outras mulheres. Ela só veio a conhecer a ONG em 2005. Após a morte de seu pai Sofia descobriu que ela estava com câncer. “Quando descobri o câncer eu tive muito mais recaídas do que quando soube do HIV, até mesmo porque eu nunca adoeci por causa do HIV”, relembra. Sofia foi encaminhada à ONG pela assistente social do hospital de onde tratava o câncer. Na ONG, encontrou apoio das mulheres e de voluntários. “Quando abriram o primeiro sorriso para mim, eu me senti livre naquela hora, eu senti que era gente e que estava viva”, conta. O acolhimento caloroso em que foi recebida sensibilizou Sofia a tornar-se voluntária na ONG, onde trabalha todos os dias em horário comercial. Os filhos vão ao trabalho dela com frequência, porém ser soropositiva é algo que Sofia não revelou para seus familiares. “Eu preferi viver isto para mim sozinha, eu não quis falar para eles, não por medo de preconceito, mas para evitar que eles sofressem. Eles não perguntam por que eu faço parte deste grupo, simplesmente acham que é porque estou ajudando e pronto. Se eles vierem a descobrir eu não vou ficar com vergonha disso não,” revela. Hoje, aos 45 anos, relembra que ao receber o resultado positivo para HIV estava desempregada e dois de seus filhos eram adolescentes e os outros dois ainda eram crianças. Ela recorda:
“Sofri muito com isso, estava desempregada e fiquei totalmente perturbada, você pensa no preconceito das pessoas, na falta de ajuda”. A DOR TAMBÉM TRAZ SABEDORIA E FAZ CRESCER Sofia considera que enfrentar o sofrimento trouxe-lhe sabedoria e lhe fez crescer: “eu posso expressar que foi bom eu passar por estas coisas a partir destas doenças que eu pude descobrir coisas boas. A gente sofre muito no início. A vida da gente tem que ter sofrimento para a gente poder crescer”.
Isaura* ainda mantém o seu segredo, pois nenhum familiar sabe que ela se contaminou pelo vírus HIV. Os amigos que compartilham sua realidade são apenas os que ela cativou na ONG. “Estava deprimida e a assistente social do hospital me indicou para o grupo de apoio. Senti-me bem melhor. Aqui se pode falar, aqui tenho amigos e se aprende melhor a conviver”, revela. O namorado de Isaura, segundo ela, faleceu de complicações de AIDS em 1994. Eles se mantiveram unidos por 12 anos e ela não sabia que ele era portador: “nunca pensei que
“Ela tem 58 anos e descobriu-se portadora em 2001. Desde então não conseguiu se relacionar com outro homem por ter que se manter em silêncio. “ ele pudesse ter vírus”. Ela tem 58 anos e descobriu-se portadora em 2001. Desde então não conseguiu se relacionar com outro homem por ter que se manter em silêncio. Ela acredita que as pessoas soropositivas devem ter relacionamentos afetivos, mas não devem se revelar tão facilmente. “A menos que o relacionamento fique muito forte, até mesmo porque temos exames e medicamentos não dá para esconder. Preocupa tanto que você não consegue se relacionar. Prefiro ficar sozinha”, justifica-se.
mão do preservativo. “Por que a gente não faz sem? Eu tenho medo de contar e acabar ficando sozinha”.
‘É MUITO DIFICIL LEVAR OS RELACIONAMENTOS ADIANTE’
Dinorah conta que enquanto estava internada os médicos convocaram o noivo dela para fazer o teste de HIV. “O médico sempre o chamava, e ele sempre evitava”, relembra. Duas semanas após ter alta do hospital, o noivo a procurou e terminou o relacionamento. Ela desabafa: “agora está aí contaminando as outras pessoas, mas eu não tenho raiva dele porque eu também tenho culpa. Se eu tivesse usado preservativo isto não teria acontecido. Só lamento pelas outras pessoas”. Todos da família apóiam Dinorah, mas ela ainda tem resistência em se abrir com os amigos.
Por temer revelar sua condição, a jovem Dinorah* de 27 anos também diz que não consegue levar seus relacionamentos afetivos adiante. “Quando vejo que estou gostando eu saio fora porque eu sei que não vou ter coragem de contar. Um dia eu vou ter esta coragem e vou contar,” declara. Segundo ela, outro motivo que a dificulta investir nas relações amorosas é que com o passar do tempo os homens querem abrir
Há quatro anos, Dinorah teve uma perda de visão, pois estava com toxoplasmose, doença infecciosa causada pelo protozoário Toxoplasma gondii. Inflamações oculares estão entre os sintomas que geralmente manifestam-se em pessoas com a imunidade debilitada. Dinorah ficou internada e os médicos pediram vários exames de sangue, entre eles, o teste para HIV. Foi quando soube que era soropositiva.
ALÉM DO HIV, HÁ OS PROBLEMAS FINANCEIROS Estas mulheres não trazem só a angústia de terem se contaminado com o vírus HIV. Elas enfrentam ainda a complexidade natural do ser humano e o enfrentamento das dificuldades financeiras. Segundo a presidente da ONG, algumas passam necessidades básicas em suas casas. Assim, a ONG além de acolhimento, presta serviços jurídicos, psicológicos com apoio de voluntários e assiste nas situações mais básicas como o oferecimento de alimentos a estas mulheres. A representante da ONG ressalta a importância de uma alimentação balanceada para facilitar
na absorção e metabolização dos medicamentos o que pode ser um problema para as mulheres mais pobres que nem sempre podem desfrutar de uma alimentação saudável. A presidente da ONG relembra o caso de uma senhora que apresentava dificuldades em tomar os medicamentos. A mulher foi encaminhada à organização por um médico infectologista. A responsável pela ONG acredita que a mulher sentiu-se mais à vontade em se abrir com ela sobre suas dificuldades em tomar os coquetéis devido a representante da ONG também ser mulher e mãe. “Esta senhora chegou com uma sacola com vários remédios na mão e com um só
dente na boca disse: ‘eu trouxe este papel que este médico mandou’. Ela não sabia ler”, recorda. A responsável pela ONG, acompanhada de voluntários, levou até a casa dessa mulher uma cesta básica e frutas. Ela relata: “quatro meses depois ela me ligou e disse que não iria mais à reunião porque conseguiu um trabalho. E ainda disse que não precisava mais mandar cesta básica”. ANGÚSTIA VEM ANTES MESMO DO RESULTADO DOS EXAMES Algumas pessoas tornam-se anônimas logo quando deci-
“a conscientização em relação ao uso do preservativo é um processo de formação que vai além do acesso às informações.” dem fazer o teste. De acordo com a gerente do Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), Raquel Álvares Silva Campos, em 2010 cerca de mil e seiscentos homens e mulheres passaram pelo CTA para fazer o teste anti- HIV. Localizado no bairro Sagrada Família, região leste de Belo Horizonte, o serviço faz parte do Sistema Único de Saúde (SUS) e realiza de segunda à quinta-feira em dois horários: às 8h da manhã e às 14h palestras seguidas de testes que podem ser feitos com a opção de anonimato para detectar HIV, sífilis e as Hepatites B e C. Os exames ficam prontos em 15 dias e o resultado é entregue individualmente pelo aconselhador. Jussara Vianna de Assis é psicóloga do CTA, há sete anos, dedica-se ao trabalho de aconselhadora, ela conta que percebe que as pessoas ainda fazem associações equivocadas em relação ao HIV e à AIDS. “A gente vê que a maioria das pessoas têm acesso às informações, mas não assimilam de maneira correta.A própria questão de não se colocar como um ser não vulnerável, ‘a gente sempre acha que as coisas acontecem com os outros não com a gente’”, diz Para Vianna, a conscientização em relação ao uso do preservativo é um processo de formação que vai além do acesso às informações. Ela explica: “por isso é que esta formação e transformação de ideias já há um tempo são investidas na escola, não é simplesmente com uma palestra, é no trabalho diário, refletido aqui e ali, para ser internalizado”.
OS PRECONCEITOS CONTRA O USO DA CAMISINHA A aconselhadora conta que culturalmente a camisinha não é bem assimilada porque a campanha pelo uso preservativo chegou à sociedade junto com a AIDS. “A AIDS já foi associada, infelizmente, desde seu início, a grupos de risco e começou-se a vincular o uso da camisinha a estas pessoas. Tem-se muito presente no imaginário das pessoa assertiva: ‘eu uso com quem eu não conheço, uso quando vou transar com a prostituta, mas com minha namorada ou com meu namorado eu não preciso’. É quase uma ofensa o uso da camisinha”, explica. Porém, Vianna ressalta que os mais jovens têm uma chance maior de internalizar o uso do preservativo desde que comecem a vida sexual com mais informações. Segundo ela, “os mais velhos têm dificuldades, porque já se acostumaram sem ele e acham que não vão ter prazer. Mas acho que ainda prevalece, neste processo cultural, a ideia de que a camisinha é associada com grupos de risco”. De acordo com a psicóloga, esta associação equivocada das pessoas em acreditar que não é preciso usar o preservativo com o parceiro tem aumentado o número de casos de HIV em heterossexuais casados e com relacionamentos fixos. Segundo a aconselhadora, o CTA trabalha para conscientizar as pessoas para usar o preservativo com o parceiro. “Usar camisinha é prova de amor, porque você está cuidando de você e de quem você ama,” conclui.
ratos & homens por Raul B. Mariano, Alan C. Ribeiro e Henrique Bossi
Moradores de rua de Belo Horizonte revelam detalhes obscuros de suas histórias de vida. São realidades malditas que se tornam a cada dia mais comuns para a sociedade, na medida em que não incomodam mais. Um dia a dia que se mistura à rotina que milhares de roedores que habitam o mesmo espaço. Todos – ratos e homens – em busca da sobrevivência
O cheiro forte de urina que exala das escadas que dão acesso à Praça Rio Branco parece ser uma espécie de aviso: esse território tem dono. Do alto de uma das árvores que circundam a praça, ratos com mais de 15 centímetros de comprimento descem velozes, atravessam a calçada e desaparecem na escuridão dos bueiros. Organizados em fila, com a mesma disciplina de um exército kamikaze, cumprem a busca interminável por restos de alimentos presentes na imensidão de lixo produzido diariamente no centro de Belo Horizonte. Num zigue-zague frenético esses animais, muitas vezes, atravessam a rua, atraídos pelo cheiro de tudo que é produzido na lanchonete que fica no outro lado e parece nunca fechar.
Os ratos que procriavam apenas no esgoto encontram, na praça aberta e cercada por movimento constante, o ambiente ideal para sobreviver. Detritos de tudo que é perecível e excrementos humanos largados a céu aberto fazem da praça uma espécie de aterro sanitário disfarçado. Um lugar que, apesar de público, se restringiu ao uso de seu verdadeiros proprietários – os homens, mulheres e animais que, no quesito prestígio social, estão no mesmo patamar. Os mais de 20 roedores marrons e audaciosos têm, no entanto, uma vantagem sobre seus vizinhos: a disposição e força física que os permitem driblar os passos dos transeuntes e os pneus dos carros para conseguir sua migalha, ao entardecer.
‘TENHO NOÇÃO DE TUDO QUE FIZ DE ERRADO’ “Esse bicho é tão velhaco que eles até espera o sinal abrir pra atravessar”, comenta, puxando assunto, a senhora sentada a beira da praça. “Olha só procê ver. Eles espera os carro pará pra passar pro lado de lá! Todo dia de noite é isso. Ô bichim!”, exclama a mulher. Seu nome é Sônia Silvério. 51 anos e faxineira de uma lanchonete, na rua Santos Dumont, centro da capital. Sônia estudou até a 4ª série do ensino fundamental e foi prostituta durante 14 anos. Após problemas com o hipotiroidismo e um ganho de massa corporal que, segunda ela, triplicou o seu peso e a deixou “muito feia”, foi obrigada a “largar a vida fácil e arrumar um serviço”. Enquanto espera pelo namorado Adriano, 17 anos mais novo, a mulher conta com o semblante arrependido que, hoje, tem noção de “tudo o que fez de errado” e dá graças a Deus por ter se tocado a tempo. Seu companheiro, que todas as noites lhe “traz um agrado”, foi quem a levou a primeira vez, há cerca de 8 anos atrás, a um culto na igreja Assembléia de Deus, onde Sônia afirma ter “conhecido o poder do Senhor e mudado de vida”.
‘SONINHA GRACINHA, QUANDO SERÁS MINHA?’ Durante o relato sobre sua vida, Sônia é interrompida pela voz de um homem sujo e barbado, que se equilibra no corrimão metálico que contorna toda a praça e canta uma melodia: “Soninha gracinha, quando serás minha?”. Sem graça, ela explica: “Lá vem o Reinaldo doido... num repara não tá?. Ele mora nessa praça aí há um tempão e num pode me ver que vem com essa antipatia”, conclui sorrindo. O homem bar-
bado é Reinaldo dos Santos, morador da rua a, no mínimo, uns cinco anos. Sempre bem humorado e sorrindo, conta mentiras continuamente, revelando alguns traços de personalidade forte e momentos de pouca lucidez. “Soninha, já estão colocando os móveis no meu apê! Hoje vou dar uma festa lá e, se você quiser, pode passar essa noite lá...”, diz Reinaldo com semblante sério. Soninha ri e o ignora até que passados uns 5 minutos, ele resolve ir embora cantando, novamente muito alto, “What a wonderful world”, clássico de Louis Armstrong. Apesar de aparentar ser muito mais velho, Reinaldo tem apenas 39 anos de idade. Segundo seu próprio relato, possui curso técnico de Torneiro Mecânico e veio da cidade de Carangola para BH em 1999, em busca de emprego e tratamento para o alcoolismo. Devido ao contato com o que ele chama de “más companhias”, acabou se entregando a bebida e foi despejado da casa onde morava de aluguel, no bairro Santa Tereza. Sem nenhum documento e envolvido com drogas, ele afirma ter perdido completamente o contato com seus parentes na sua cidade natal. “Depois que cê envolve com essa porcariada que eu me envolvi não tem mais jeito não. Maconha é de boa, mas pedra é cabuloso. Pra voltar ao normal agora nem com reza braba”, afirma Reinaldo, soltando gargalhadas seguidas por muita tosse e escarros.
PRAÇA VIROU CAMA E SALA DE MORADORES
DISTÚRBIOS JÁ SURGEM APÓS POUCOS MESES NA RUA
A praça situada em frente ao terminal rodoviário da capital marca o início da Avenida Afonso Pena e é popularmente conhecida como Praça da Rodoviária. Ali dormem, diariamente, cerca de dez, dos mais de 1,2 mil moradores de rua existentes na capital hoje, segundo dados da prefeitura de BH. Sob o monumento de concreto armado que decora a praça - feito no final dos anos 70 pela artista plástica Mary Vieira e batizado de “Liberdade em Equilíbrio” - a cama ou sala de visitas onde Reinaldo, Eduardow, Michele, Silvana e várias outras pessoas passam a maior parte do dia é repleta de objetos pessoais. São cobertores, garrafas, pentes, roupas, maços de cigarro, canivetes, facas e, até mesmo, uma Bíblia. Pistas que deixam claro o nível de intimidade dessas pessoas com aquele local.
A jovem afirma não ter envolvimento com drogas nem com prostituição. “Eu nunca gostei de cigarro. Eu só bebo cachaça e é por causa do frio, não porque eu gosto. Nunca tive nem passagem pela polícia”, conta Michele. “E moro na rua porque minha família é toda errada. Meu pai morreu por causa de tráfico e minha mãe caiu na vida aí...”, explica. Michele afirma que a mãe tem apenas 43 anos de idade, ou seja, teve a filha com apenas 16 anos. Sua fonte de renda é a venda de balas nos sinais e nos ônibus e sua renda diária varia entre 25 e 30 reais. Apesar de ter um barracão no bairro Ribeiro de Abreu, região nordeste de BH, a jovem acredita que morar na rua é mais seguro do que viver num local onde o tráfico de drogas é tão presente.
“Aqui eu deixo minhas coisas e ninguém mexe. O povo já sabe que nós tomamos conta da praça mesmo, então ninguém perturba a gente. Os polícia até que tenta revirar a gente e achar coisa proibida, mas como eles num acha a gente vai ficando aí”, relata Michele Amparo, de 27 anos, que há aproximadamente um ano, dorme de segunda a sexta no local.
A lucidez de Michele é uma característica rara nos moradores que estão há mais de um ano na rua. Grande parte dos que vivem nessa condição começam a apresentar sinais de distúrbios mentais com poucos meses de permanência na rua. De acordo com o 2º Censo da População de Rua, feito em BH em 2006, cerca de 12% da população de rua apresenta algum tipo de transtorno psíquico. A mesma pesquisa aponta que na capital, esse contingente é predominantemente masculino, sendo composto em 85% por homens e 14,4% por mulheres. Quanto à faixa etária, a maioria tem entre 25 a 45 anos, embora seja significativo o número de pessoas entre 45 e 60 anos (19,6%) e de idosos, 60 anos ou mais, (4,5%). Mas o que mais chama a atenção nesse levantamento é o salário com que vivem essas pessoas trabalhando como catadores de materiais recicláveis, flanelinhas ou lavadores de carros. Algo entre R$ 19,00 e R$ 75,00 por semana.
PARA ASMARE, É MUITO DIFICIL VOLTAR À ‘VIDA NORMAL’ Histórias como a de Michele, Sônia e Reinaldo são enredos repetidos no cotidiano das grandes cidades brasileiras. Apesar da existência de abrigos, é comum que as pessoas ajudadas voltem para a rua. Alfredo de Souza Matos, vice-presidente da ASMARE (Associação dos Catadores do Papel Papelão e Material Reaproveitável) explica que muitas pessoas simplesmente não conseguem se adaptar à vida dita normal. “Muitos catadores já estão em condição mental tão prejudicada que não se acostumam com a idéia de dormir num local confortável e aquecido. Eles apenas matam a fome e já querem sair novamente para rua sem sabem, sequer, o que estão fazendo a si mesmos. Faz muita falta um acompanhamento psiquiátrico para essas pessoas”, conta Alfredo. Somente a ASMARE beneficia, indiretamente, mais de 1500 pessoas. Em parceria com a Pastoral de Rua trabalha desde 1987 na luta para oferecer aos mais necessitados alguma possibilidade de viver dignamente. Os abrigos em Belo Horizonte já somam mais de 50, mas não reduzem significativamente o população carente de rua. O maior perigo do acúmulo de absurdos sociais representados por casos como esses é se tornar um fato que não esteja presente apenas nas páginas dos jornais, mas também nos livros de história, a cada nova geração. Na Praça da Rodoviária um pedaço da história do Brasil acontece e não passa despercebida. Pior do que isso: é compreendida como uma das facetas da nossa sociedade “naturalmente desigual”, onde ratos e homens não disputam, mas compartilham, harmoniosamente, o mesmo espaço e a mesma refeição.
Aluguel
Garotas de
por Felipe Araújo
Garotas de programa relatam como é alugar o próprio corpo em scotch bar e outras casas de prostituição. Algumas delas admitem que só estão nesse ramo para criar os filhos. Há um constante medo da violência, mas há aquela que admite: dependendo do cara, atividade até dá prazer.
A fachada é como de qualquer casa antiga do Barro Preto em Belo Horizonte. Nada de muros e grades e nem câmera de vídeo ou qualquer segurança na porta. No nível da rua funciona um estabelecimento comercial, mas é a parte superior da casa que “abriga” algumas garotas de programa que atuam na região Centro Sul da capital mineira. O acesso para o segundo andar é discreto, por uma escada lateral, sem a necessidade de se passar pela loja. A escada dá acesso a sala de estar, um espaço de aproximadamente quatro por quatro, com cadeiras e mesas pequenas de bar e dois sofás para três lugares. Para ir além desse espaço, é
preciso desembolsar no mínimo R$ 150 para ter acesso a uma das garotas disponíveis. O próximo passo é escolher um dos seis quartos da casa. “Tenho vários tipo de clientes, mas eu prefiro os empresários e advogados, pois são os mais educados,” conta Anita*, 21 anos, que já “acumula” dois anos e meio de prostituição em Belo Horizonte. Ela largou o trabalho com a mãe numa lanchonete para se prostituir. Diz ter feito a troca pelo dinheiro fácil. A motivação veio de amigas que estavam, segundo ela, “faturando alto”. Mantendo em média três relações sexuais por noite, Anita afirma ganhar até R$ 150 em cada uma delas. “Há um pouco de aventura nessa vida também”, desconversa. A casa apresenta uma estranha tranqüilidade para uma sexta à noite, pois naquele momento não havia cliente algum presente, além da reportagem. Anita explica: 20 horas ainda é cedo para a casa, mas a falta de cliente se deve ao calendário – no final do mês, a procura é menos, pois nesse período muitos estão com menos dinheiro no bolso.
MESMO SEM PRAZER, É PRECISO MANTER A DIGNIDADE Naquele pequeno espaço uma outra garota de programa afirma não ter prazer no trabalho e procura, ainda assim, manter a dignidade. Ela tem 24 anos, é natural de Sete Lagoas e há sete anos mora em BH. Afirma ter optado pela prostituição para poder criar o filho de um ano. Magra, cabelos vermelhos e encaracolados, rosto de adolescente, olhos escuros sem brilho, ela conta que sofre com o risco da violência e das doenças. “Minha única força para agüentar essa vida é meu filho”, confessa ela, que também já fez ponto numa rua do centro de Belo Horizonte. Bruna*, por sua vez, lançou-se à prostituição no ano passado, quando estava grávida de três meses. Casada, ela conta que o desemprego do marido e as dívidas que se acumulavam a levaram para as ruas. “Era melhor do que roubar ou vender drogas para sobreviver”, justifica. Segundo ela, a prostituição lhe rende até R$ 1.500 por mês. Ela tem o mesmo nome de guerra da famosa garota de programa, cuja história vir-
ou hit no cinema nacional. Na prática, a vida real de uma garota de programa passa longe do clima do filme - e recorde de bilheteria - “Bruna Surfistinha”, que já foi visto por mais de dois milhões de pessoas. O película é inspirada no livro “O Doce Veneno do Escorpião”, que relata as experiências de Bruna, codinome de Raquel Pacheco, 26, que viveu como garota de programa dos 17 aos 21 anos. O filme pode ser o primeiro passo para um universo por onde transitam jovens - incluindo muitos adolescentes - que vendem o corpo para qualquer um que pague. SOBREVIVÊNCIA É PALAVRA CHAVE NA EXPLORAÇÃO Sobrevivência é palavra chave no mundo da exploração sexual. De uma forma ou de outra, todas estão tentando sobreviver. Escolheram o sexo por inúmeras razões, as quais não cabe julgamento. Mas o fazem em uma mistura contraditória de prazer e sofrimento. “Não há dia em que não penso em deixar essa
vida”, diz Jullia*, 27 anos que está na casa há 4 meses. Natural de Brumadinho, ela começou a se prostituir há seis anos também para criar o filho, hoje com 3 anos. Sem emprego, o caminho mais curto foi alugar o corpo. Ela conta que começou aos 21 anos, numa casa de encontros sexuais protegida por muros e grades e vigiada por câmera de vídeo - um dos clubes privês de prostituição da cidade, cujo nome ela prefere não revelar. COM PESSOAS LEGAIS, DÁ ATÉ PARA TER PRAZER Mesmo atendendo a clientes ditos “vips”, ela vivia sob o que chama de “cárcere privado”. Ela relata, em conversa franca com a reportagem: “eu entrava às 21 horas e era obrigada a ficar até às quatro da manhã. Só podia sair antes se pagasse multa de R$ 100,00, mesmo assim se estivesse
passando mal. Quando encontro pessoas legais, a atividade até que dá algum prazer. Mas há pessoas desagradáveis e agressivas que tenho que aceitar só pelo dinheiro”. Fazendo de dois a quatro programas por noite, ela diz que consegue ganhar até R$ 2.000 por mês. O dinheiro é usado para manter a casa e o filho, além da mãe - que não sabe das atividades da filha. Ela ainda diz que o pior de tudo nem é o fato de vender o corpo, mas a solidão e a violência. “Não tenho mais vida pessoal, namorado ou amigos. Uma noite, saí com três rapazes que me levaram para uma rua deserta. Se não fosse um vigia noturno, acho que tinha morrido”, recorda. (*) Nomes são fictícios
“A pegação pode ocorrer em qualquer lugar. Basta que existam dois indivíduos que conhecem o código de interesse” - Alexandre Teixeira, mestre em Ciências Sociais
Os homens da rua
TR3S
por Anderson Rocha Lorena Otero
“Ir àquela rua não te faz mal-caráter, bandido, ou qualquer outra coisa” - Eduardo Camargo*, 27, jornalista
Nem era tão tarde assim: no relógio, os ponteiros sinalizavam que ainda faltariam duas horas e catorze minutos para a meia noite. Mas algo parecia convidá-lo a deixar aquela comemoração, num bar na região sul da capital, e seguir de volta para casa, em Contagem. Na cabeça, a memória de um lugar hesitava em aparecer. Ele havia estado ali por algumas vezes; um possível retorno era motivado pelas lembranças da última visita. No carro, o acelerador reagia à vontade de chegar: os minutos passavam e, à cada música que tocava no rádio, mais próxima estava a conclusão de um conflito. Seguir para casa ou voltar lá? No peito, pulsava uma sensação que o perturbava. A decisão era agora.
Este local, motivo da apreensão descrita, é a Rua Três, na região da Cidade Industrial, em Contagem. Ali, como em diversas outras partes da cidade, funcionam muitas empresas e indústrias. Mas é no período noturno que, a até então pouco movimentada via, assume outra faceta. A Rua Três se torna “a rua da pegação da Praça da CEMIG”, como é conhecida pelos homossexuais que frequentam o lugar. Homens, de variadas idades, classes sociais e profissões, circulam pela região em busca de conversas, companhia e prazer. A dinâmica da rua, segundo os entrevistados, é de ponto de encontro underground e não um local de prostituição. Esta reportagem esteve na região durante duas noites e acompanhou a rotina de quem, por necessidade, trabalha por ali, e de outros homens que, por escolha, passam pelo local e se expõem a riscos de assaltos, agressões e contaminação por doenças sexualmente transmissíveis. Praça Antônio Mourão Guimarães. Ou, como é mais conhecida: Praça da CEMIG, na Cidade Industrial, em Contagem. O local é ponto de interseção de vias que dão acesso a Belo Horizonte, pela Avenida Amazonas, ao estado de São Paulo, pela BR 381, além das regiões do Barreiro e do Eldorado. É ali, na esquina com a Avenida Cardeal Eugênio Pacelli, que está localizada a Rua Três. Para quem freqüenta o local, entretanto, o nome é outro: “rua da pegação da Praça da CEMIG”. Na região, a maior parte do espaço é ocupada por indústrias e empresas, como a V & M do Brasil e o Shopping Itaú. A área industrial utiliza quarteirões inteiros e possibilita que algumas ruas fiquem vazias. À noite, a situação se intensifica. Algumas das vias, como a Três, ficam sem circulação de pessoas. Não fosse um porém.
DE NOITE NA RUA Gustavo Alves, 23, açougueiro. Renato Mariano*, 24, coordenador administrativo de uma rede de supermercados. Alexandre da Silva, 30, professor. William Passos*, 49, metalúrgico. Alex Martins, 18, estudante. Ewstes são só alguns dos homens que ajudam a tornar a Rua Três um local movimentado durante a noite. As idades, as profissões e as classes sociais variam tanto quanto as motivações para freqüentar a “rua da pegação”. Todos já foram mais de uma vez e, até o momento, pretendem voltar. Os homens que fomentam a vida noturna na rua vão desde o carreteiro evangélico Wesley Silva, 40, até o advogado Joaquim Siqueira*, 36. Apesar de apenas quatro anos de diferença na idade, um abismo cultural e de experiências de vida separam estes dois homens. Wesley é casado, tem filhos, estaciona o caminhão na Rua Três para carregá-lo na Transportadora São Geraldo e se preparar para mais uma viagem. Para ele, o comportamento homossexual é o que atrapalha o ser humano. “Todos os gays que freqüentam esta rua deveriam aceitar Jesus e parar com esta sem-vergonhice”, acredita. Joaquim vai até a “rua da pegação” há cinco anos. Ali, ele já se interessou por outras pessoas, já fez sexo, e já fez até amigos. Como militante da causa LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), ele acredita que ao freqüentar estes locais, onde práticas homossexuais explícitas compartilham o mesmo espaço que atividades operacionais, como a dos carreteiros, é possível traçar um panorama da incidência da homofobia, e classificar até que ponto vai a tolerância das pessoas. “É nítida a reprovação no olhar dos caminhoneiros com a presença da gente aqui”, opina. Ele afirma
que continua visitando o local por curiosidade e interesse. ”Você está sempre com vontade de vir”, comenta. Parece vício. E talvez seja mesmo. “O dia que não tem aula na faculdade, o dia que não tem nada para fazer, você acaba vindo pra encontrar alguém para trocar idéia, para conversar. E muitas vezes, encontrar alguém para gozar e ir embora”, conta o advogado. “É um prazer fácil, acessível. A pessoa vicia. Tem indivíduos que vão quase todos os dias”, é a opinão do mestre em ciências sociais, Alexandre Teixeira, da PUC Minas. Em 2003, ele escreveu uma dissertação sobre os locais de encontro homoeróticos na região metropolitana, como a “rua da pegação”.
A PRIMEIRA VEZ, A GENTE NUNCA ESQUECE Para o jornalista Eduardo Camargo*, 27, a ida à rua é esporádica. “Na maioria das vezes vou por curiosidade”, diz. A sensação de ir pela primeira vez ele não esquece. “Homens passeando de carro, além de motoqueiros e outros caminhando entre os caminhões. Saí rápido. Senti medo e um pouco de repulsa”, relembra. Já o coordenador de supermercados Renato Mariano, 24, assume que vai à rua por necessidade. “Aqui é o meu único contato com o mundo gay. Trabalho numa empresa conhecida, ocupo um cargo de chefia e, se expor minha sexualidade frequentando lugares assumidamente gays, poderia prejudicar minha imagem lá dentro”, afirma. O sexo fácil é a motivação do vendedor Saulo Sampaio*, 22. “Você sente uma excitação e resolve por aqui mesmo. Venho por
causa do local, que é público e tem um sexo explícito. Aqui é mais intenso, é muito fácil e vistoso”, conta. Ele se diz descrente das relações e não vê diferença entre conhecer alguém na rua, em uma boate ou bar. “Hoje em dia o meio (ambiente homossexual) está muito complicado. Não importa aonde você vá: você não tem segurança em ninguém”, opina. Ele conta que casais gays vão à rua juntos para encontrar outros homens. “Um fica na rua de cima e o outro na rua de baixo”, diz. Para ele, homossexual ou heterossexual, todos os homens pensam em sexo primeiro. Depois, em carinho. O professor de química Alexandre da Silva, 30, frequenta a rua há um ano. Comprometido há dois, ele assume visitar o local por um motivo específico. Ele saiu do bairro Castelo, em Belo Horizonte, e andou aproximadamente 25 quilômetros para conferir se o namorado, que mora em um bairro próximo da rua Três, estava lá. “Você começa a conhecer a pessoa em outros aspectos e passa a desconfiar mais ainda”, desabafa. Alguns souberam da existência da rua por recomendações de amigos, outros pela internet, mas nem todos assumem fazer sexo em público, fator que mais incomoda os carreteiros e aqueles que, por algum outro motivo, passam por ali.
TRABALHADORES DA RUA TRÊS Naquela rua não há casas. A transportadora São Geraldo é uma das empresas que funcionam ali. No galpão, ficam armazenadas cargas de arame da empresa Belgo, que são transportadas para vários estados brasileiros. Durante toda a noite, enquanto aguardam a hora do carregamento, os motoristas deixam os caminhões estacionados. A rua, que já tem iluminação pública insuficiente, fica mais escura ainda. Isto porque as carretas, enfileiradas, criam uma barreira visual, que facilita a movimentação de homossexuais e, por consequência, o sexo. Porteiro da empresa há 5 anos, Vicente Marques conta que os colegas o prepararam para o que ele veria quando começou a trabalhar no lugar. Liberal, ele diz que não se incomoda com o que acontece. “Hoje as coisas mudaram muito”. No entanto, ele condena a prática sexual em público e afirma que, em determinados momentos, ela pode ser constrangedora para quem se desloca pela região. “De vez em quando, o trânsito está ruim (na Amazonas) e o pessoal desvia (do congestionamento) e passa por aqui, com ônibus, automóveis. Se for à noite, podem ver coisas que não gostariam”, conta. A movimentação noturna na região se expande por duas outras vias, como a Rua Dois.
“A rua é o escape daquela homofobia que às vezes está dentro dos próprios homossexuais” – Joaquim Siqueira*, 36, advogado paralela à Rua Três, ela é mais iluminada e, portanto, tem movimentação menor. Durante o dia, na Rua Dois, funciona uma agência do banco HSBC. Bem em frente ao banco, do outro lado da rua, há um trailer de lanches do senhor Guilhermino Leite*, 46. No local há seis meses, a experiência o mostrou que o movimento causado pelos carros e pessoas afasta os ladrões que poderiam prejudicar o seu negócio. “O único problema é a sujeira. Quando chego de manhã, preciso recolher as camisinhas usadas ao redor do trailer. Senão, ninguém vai querer fazer um lanche comigo”, diz. Este também é o ponto de vista do carreteiro carioca Leandro Queiroz, 33. Para ele, a única vantagem é a sensação de segurança. “Por um lado é até bom que não tem ladrão. Aí é tranqüilo que você deixa o caminhão aqui e ninguém rouba. Quando o pessoal está aqui assim, não tem assalto”, afirma. Por passar muito tempo longe de casa, alguns caminhoneiros trazem a família
em determinadas viagens, para acompanhá-los. Leandro é um deles. Casado e pai de dois filhos, ele se sente constrangido com a presença dos homossexuais. “Quando a gente traz a família, a gente nem fica aqui”, conta. “É assim: para um cara bem arrumado, bem vestido. Dali a pouco, para um do lado do outro e começam a se beijar igual mulher. Isso não existe”, descreve. Para o também caminhoneiro Marcos de Oliveira, 22, a presença dos homossexuais é totalmente negativa. “Acho uma sem vergonhice. Nenhum carreteiro que eu conheço apóia ou faz uso desse tipo de serviço. Por mim, todos eles deveriam ser expulsos daqui”, opina.
NA MUVUCA, TODOS PARTICIPAM O metalúrgico William Passos, 49, freqüenta há cinco anos e conhece outra realidade. “Os caminhoneiros se envolvem muito com os caras daqui. Lógico que eles vão negar, mas muitos deles saem (com os homens da rua Três) sim”, conta. Para ele, a rua não é local para fazer sexo. “Não fico à vontade. Conheço aqui e convido para um barzinho, um motel da vida”, diz. Mas ele reconhece que muitos homens fazem uso distinto. “A maioria do pessoal que vem aqui gosta daquela muvuca: tudo escuro, junta aquele monte de gente e todo mundo participando”, explica.
Em situações como estas – de orgia sexual – o risco de contrair uma doença sexualmente transmissível, e até a AIDS, são grandes. Todos os entrevistados parecem ficar com medo quando questionados e afirmam se proteger. “As poucas vezes que fiquei com alguém e mantive alguma relação aqui foi com preservativo. Portanto, com doença, eu não me preocupo”, opina o jornalista Eduardo Camargo, 27. Foi para tentar evitar que doenças se disseminassem no local, que o advogado Joaquim, membro do extinto Centro de Referência Vida, de Betim, começou a trazer e distribuir camisinhas para os homossexuais. Segundo ele, a proposta era sempre de tentar conscientizá-los para os riscos do sexo inseguro. Além disso, dava orientações aos amigos e colegas sobre posturas mais adequadas. O advogado afirma que teve que parar com a distribuição depois que foi impedido pela polícia. “Disseram que a grande quantidade de camisinhas que eu carregava configurava prostituição”, explica.
HOMENS DA LEI: O PERMITIDO E O PROIBIDO Para a Polícia Militar, pontos
públicos de encontro sexual, como a Rua Três, não são tão comuns, mas existem. “Há locais na cidade que são utilizados por pessoas que procuram este tipo de relação”, afirma o Capitão Gedir Rocha, assessor da PM. Em Belo Horizonte, por exemplo, existem mais dois locais semelhantes à “rua da pegação”. Durante à noite, as ruas da parte de trás do Fórum Lafayette, na região do Barro Preto, se transformam em ponto de prostituição masculina. Já nas ruas próximas ao Pampulha Iate Clube, no bairro Jardim Atlântico, homossexuais também tem atitudes parecidas como as descritas em Contagem. A Rua Três, porém, guarda características peculiares, como o fato de não ter residências ao redor e nem garotos de programa - pelo menos na opinião dos freqüentadores. Segundo a Secretaria de Estado de Defesa Social, não há dados específicos sobre a região da Cidade Industrial, em Contagem. De acordo com o mais recente Boletim de Informações Criminais de Minas Gerais, de 2010, o número de crimes violentos no munícipio de Contagem, como homicídios tentados, estupros, roubos e roubos à mão armada, cresceu 30% em comparação com o mesmo período do ano anterior. No mês de setembro, dado mais recente, foram registradas
510 ocorrências de crimes violentos em toda a cidade. Já os homicídios consumados, que são aqueles que levaram efetivamente à morte da vítima, registraram 12 mortes.
pessoa está em um local com registro de crimes ou que a sociedade reclame com frequência, ela irá ser abordada”, conta. “Se uma pessoa está parada, numa rua escura, não tem problema nenhum. Se tiver beiA região é perigosa e, segun- jando, também não. Beijo não do a Polícia Militar, são fei- é crime”, complementa. Ele tas rondas regulares em todas finaliza explicando que o sexo as áreas com grande histórico ao ar livre ou dentro de um carde reclamações da sociedade. ro configura uma contravenção Para o Capitão Gedir Rocha, penal, sujeitos às providências o problema na “rua da pega- criminais cabíveis. ção” excede à questão policial. Segundo ele, a Polícia desenSegundo alguns freqüentavolve, em parceria com a Se- dores, esta abordagem, porém, cretaria de Saúde e outras en- nem sempre é feita da melhor tidades, trabalhos para atenuar maneira. O advogado Joaquim as conseqüências deste tipo de Siqueira conta que já denunatitude. “Sabemos que nestas ciou a postura da polícia. Em relações promíscuas, as pes- uma ocasião, estavam ele e soas podem ser contaminadas. mais três amigos conversanEntão, enxergamos isto como do, encostados na mureta do uma questão não só de Polícia, passeio. Próximo a eles, estava mas como uma questão de saú- um trio de homens praticando de pública”, afirma. sexo oral. “De repente, a polícia chegou e começou a espancar todos, falando que aquilo PM: PRESENÇA não era lícito”, conta. Para o OSTENSIVA, MAS advogado, a polícia tem o deDISCRETA ver de chegar, orientar e, se neDe toda forma, o trabalho cessário, coibir ações das pespolicial ostensivo está pre- soas, mas não pode proceder sente. O capitão explica que com agressão física. Na época, a orientação dada aos oficiais ele anotou a placa da viatura e é abordar pessoas em situação denunciou os policiais à corresuspeita. Esta abordagem, se- gedoria da PM e aos Direitos gundo ele, não discrimina apa- Humanos. Segundo Joaquim, rência e orientação sexual. “A os policiais zombaram e ameaquestão é que, independente se çaram os homossexuais. “Eles é homossexual ou não, se uma comentaram que se os encontrassem por ali novamente,
iriam agredi-los”, diz. O porteiro Vicente explica que, freqüentemente, a polícia faz rondas na região para espantar os freqüentadores. “Eles vem e dão uma geral. Muitos passam com mochila nas costas, então são revistados”. Mesmo com a presença da polícia, situações perigosas parecem não ser totalmente evitadas.
SEQUESTRO QUE NÃO ASSUSTA O vendedor Saulo Sampaio, 22, estava encostado no carro na noite de 22 de novembro de 2009, quando dois
começo fiquei com medo de voltar, mas como a necessidade de sexo fala mais alto, não resisti.”, afirma. Para o jornalista Eduardo Camargo a “rua da pegação” é só mais um ponto de encontro homossexual. “São homens querendo conhecer homens. Acontece esse tipo de interesse em todo lugar: na praia, no trânsito. Aqui é, apenas, mais evidente. Algumas pessoas acabam ultrapassando o limite do aceitável. Mas isso também tem em todo lugar”, opina. “Já conheci pessoas formidáveis naquela rua. Pessoas de caráter, bem sucedidas”, conta. Ele também diz que não gosta de ir
São homens querendo conhecer homens. Acontece este tipo de interesse em todo lugar: na praia, no trânsito. Aqui é, apenas, mais evidente” – Eduardo Camargo*, 27, jornalista homens se aproximaram dele e começaram a conversar. “Aqui você não sabe quem é gay, quem é ladrão, quem é casado, quem é solteiro. Você vai conversando com as pessoas”, conta. Em determinado momento, pediram a chave do veículo para o vendedor, que se negou a entregá-la. “Eles tiraram uma arma, me levaram até a região da CEASA (Contagem), onde me deixaram e foram embora com o carro”, conta. Saulo registrou boletim de ocorrência na Polícia Militar e contou (quase tudo) para os pais. “Não contei onde tinha sido o sequestro”, diz. A ação que comprometeu a integridade física do jovem, porém, não o impediu de voltar outras vezes à rua. “No
ao local. “Todas as vezes que fui, estava carente”, afirma. Já o advogado Joaquim vê outra motivação. Segundo ele, Belo Horizonte é uma cidade com muitas opções para o público homossexual, como bares, restaurantes e boates. “Tem até igreja evangélica voltada para gays”, diz. Porém, ele afirma que muitos homossexuais não tem coragem de freqüentá-los. A “rua da pegação” se torna a saída para muitos. “Aqui o pessoal vem porque é à noite, escuro, não é freqüentado pelo grande público. Para quem não quer assumir para ninguém, nem pra família, então aqui é o lugar em que eles encontram como espaço para expressar sua sexualidade”, afirma.
RISCO E FANTASIAS SE ATRAEM A psicóloga Emanuelle Pinheiro Pessoa destaca algumas das motivações que levam uma pessoa a frequentar lugares que, talvez, não considerem adequados. De acordo com Emanuelle, as pessoas podem ir porque não tem acesso a lugares privados, por carência, falta de esclarecimento, por repressão, por influência de uma turma e por curiosidade. O cientista social Alexandre Teixeira ressalta um fator de grande relevância: o risco. “A pessoa poderia ir à uma sauna gay, por exemplo. Não é caro, não é proibido e é seguro. Por que, então, ela escolhe a rua ao invés da sauna? Por causa do risco, da fantasia”, observa. No entanto, quem vai lá para evitar ser visto, talvez esteja equivocado. “Não há um anonimato, propriamente dito. A cidade não tem tantos espaços gays disponíveis, de forma que as pessoas mais freqüentes da rua vão sempre esbarrar com outras. Elas podem não criar vínculos ou se assumir. Mas vão se ver”, explica o cientista. Para ele, o mais curioso é que os próprios homossexuais não vêem com bons olhos a ida aos “territórios de pegação”. Nas entrevistas que fez para a pesquisa de mestrado, o cientista notou que eram comuns histórias de pessoas que se despediam uma das outras (em uma boate, por exemplo), dizendo que estavam indo para casa e depois acabavam se encontrando na nestes pontos estratégicos. O motivo, segundo ele, é que a boate tem um fim de sociabilidade específico, como beber, dançar e ser visto. Já na rua o objetivo é o sexo. Não há discriminação. “Os caminhoneiros fazem pegação, os moradores de rua e ainda pessoas que são muito ricas. Todos no mesmo local”, explica. Apesar de todo pré-julgamento do mundo exterior, nestes locais, não há condenação.
FILHOS DO PRECONCEITO Para a psicóloga Emanuelle Pinheiro Pessoa, a existência da “rua da pegação” é resultado de uma herença cultural preconceituosa. “A nossa sociedade, ainda com fortes resquícios de uma tradição cristã, em que o sexo é voltado para procriação, discrimina algumas vezes a prática homossexual, o que faz com que o indivíduo que deseja exercer livremente sua escolha, precise criar ambientes para que esta prática seja concretizada sem discriminação”, explica.
Apesar da característica de submundo, o cientista social Alexandre Teixeira reconhece aspectos positivos na existência destes pontos de encontro públicos. Ele explica que “as ruas” existem nas cidades grandes de diversos países do mundo. O aspecto positivo estaria no fato de que as pessoas não vão nestes lugares somente à procura de sexo. “Há sim prática de sexo, mas há intereções sociais, que nascem dos encontros destes
“Quando você se assume ‘eu sou assim’, é um ato político” – Walkiria La Roche, diretora do Centro de Referência LGBT de Belo Horizonte lugares”, conta. Ele explica que relações como amizade e namoros também podem surgir na rua. Para a diretora do Centro de Referência LGBT de Belo Horizonte, Walkiria La Roche, transexual com mais de 25 anos de militância e lutas pró-diversidade, a “rua da pegação” é negativa. “Este tipo de comportamento contribui, e muito, para a imagem degradada, feia, e promíscua que se tem do homossexual. Pensa bem: o hétero conservador vai pensar ‘se esse homem se sujeita a pegar uma doença, a apanhar, a essa exposição degradante, porque eu deveria aceitá-lo e tratá-lo com dignidade? Se ele não se dá o respeito, porque eu devo dar?’”, questiona. Ela explica que o sexo em lugares públicos pode ser uma fantasia comum
a casais heteros e homossexuais. Entretanto, traça uma diferença clara entre a fantasia e o que acontece no local: “Uma coisa é o fetiche de transar em público. Outra coisa é fazer disso um ponto promíscuo, um lugar sujo”.
O MITO DA PROSMICUIDADE A psicóloga explica que a promiscuidade não tem ligação direta com a orientação sexual. “O que existe é sim uma repressão que é exercida em relação à opção homossexual, o que gera o mito da promiscuidade atribuída à homossexualidade”, esclarece. Ela afirma ainda que a pessoa que tem interesse em parar de ir ao local deve, primeiramente, ter crítica e clareza de que aquela atitude não lhe faz bem. “O caminho é o autoconheci-
mento. Só se conhecendo o indivíduo pode encarar melhor a própria sexualidade e, então, escolher lugares onde ele possa continuar satisfazendo seus desejos com mais segurança”, explica. Walkiria indica locais em que os homossexuais podem encontrar aceitação e adquirir maior consciência sobre sua atuação e importância na sociedade. “Os centros de referência existem exatamente para isto”, afirma. Ela explica a necessidade de acabar com o preconceito, que considera infundado. “A OMS (Organização Mundial de Saúde) e o Conselho Nacional de Psicologia e Psiquiatria comprovam que o desejo sexual é natural ao ser humano e que a homossexualidade não é uma doença e sim uma condição na qual o objeto de desejo do
indivíduo é alguém do mesmo sexo”, explica. “Quem somos nós para julgar? A orientação não é algo controlável. Se fosse opção, ninguém escolheria pelo sofrimento, que é seguir por este caminho de condenação e pré-julgamento que trilham os homossexuais”, finaliza. Violência, preconceito, doenças. Apesar de todos estes fatores, a rua, em plena quinta-feira à noite, estava repleta de homens. Fileiras de carros estacionados, pessoas andando devagar nos passeios atentas a qualquer movimentação, olhares carregados vindos de todas as direções. Num país onde o casamento gay foi recentemente legalizado, e o de-
putado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) prega a homofobia, a filosofia de La Roche, o comportamento dos freqüentadores da Rua Três, e a reação da sociedade, se confundem num
“Você se masturba e vai embora” – Saulo Sampaio*, 22, vendedor mar de contradições, hipocrisia e intolerância. E ele se decidiu. Ele buscava novas experiências, diversão. Em poucos minutos,
estacionava em um canto escuro na rua. Enquanto tomava coragem para descer do carro, olhava o movimento. Alguns homens passavam a pé e o encaravam. Os faróis dos carros o cegavam momentaneamente. Ele abaixava a cabeça, receoso de que a luz o identificasse. Ele não queria ser reconhecido. Ainda girava a chave do carro nas mãos, preparado para ir embora a qualquer instante. Conseguia ouvir as batidas de seu próprio coração, que pulsava fora do ritmo. Despertando-lhe de seus devaneios, um desconhecido bateu no vidro, do lado do passageiro. Sorrindo. Foi então que soube: ele ficaria. * Nome fictícios. A pedido dos entrevistados, os nomes verdadeiros foram preservados.
Reféns do descaso familiar por Sara Lira Fernando Rocha Adriane Buzelin
Instituições sociais tentam amenizar a dor de crianças em vulnerabilidade social, vítimas dos mais diversos tipos de violência familiar. Conheça alguns desses casos, que colocam esses jovens cidadãos em condição de vulnerabilidade social e pessoal já no começo da vida; mas há esperança, por meio da acolhida de muitos que se preocupam com o destino dessas almas inocentes
A casa é grande. O quintal também. As crianças estão na sala, assistindo a um filme de desenho. A chegada de uma pessoa diferente daquelas que trabalham no local desperta a atenção. Algumas vão para a biblioteca do abrigo e começam a fazer desenhos, escrever cartinhas... e enquanto isso contam suas histórias. L., 7 anos já começa: “Ihh, a minha é uma longa e muito importante”. Ela e seus irmãos - todos crianças - ficavam na casa que moravam em condições precárias enquanto a mãe saía para se divertir nos finais de semana. As crianças foram resgatadas pela Polícia Militar em função de uma denúncia anônima. “A polícia pegou nós, aí a gente foi pra delegacia, comeu biscoito, danoninho e depois mandaram a gente pra cá”, diz, se referindo ao dia em que a polícia os encontrou e o Conselho Tutelar os enviou para a “Casa Esperança”, unidade de passagem para crianças em estado de vulnerabilidade social que foram retiradas de suas famílias por ordem da justiça. Histórias semelhantes a essa são comuns nessas unidades de passagem ou abrigos. Em Betim, a Organização Não Governamental (Ong) Ponto de Contacto Nova Canaã acolhe crianças e adolescentes de 0 a 17 anos e realiza o chamado serviço de Acolhimento Institucional. Esse serviço é uma ação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que oferece acolhimento provisório para crianças e adolescentes afastados do convívio familiar. Elas são beneficiadas por meio de medida protetiva de abrigo (conforme o artigo 101, do Estatuto da Criança e do Adolescente), em função de abandono ou cujas famílias ou responsáveis encontram-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção, até que seja viabilizado o retorno ao convívio com a família de origem. Na impossibilidade de voltar à família biológica, a criança ou o adolescente poderá ser encaminhado para adoção.
UM TRABALHO MARCADO POR DESAFIOS E SATISFAÇÃO O Ponto de Contacto possui cinco unidades de Acolhimento Institucional: a Casa Alegria (para meninos de 9 a 12 anos); a Casa Viver (para meninas de 9 a 17 anos); a Casa Esperança (para irmãos, de ambos os sexos, de 0 a 9 anos); o Sítio Azul (para meninos de 12 a 17 anos) e uma Casa de Passagem para crianças e adolescentes de ambos os sexos. Na casa de passagem estão as crianças encaminhadas pelo Conselho Tutelar. Nela é feita uma triagem para saber se a criança poderá ou não voltar para a família biológica ou extensiva (tios, avós). Se não puder, ela será levada para uma das casas, de acordo com sua idade e sexo. “É um trabalho que traz muita satisfação, mas ao mesmo tempo muitos desafios, o que exige responsabilidade e comprometimento. Trabalhamos com uma equipe capacitada pra resolver qualquer problema”, diz Antônio Lira, funcionário do Ponto de Contacto há dois anos e coordenador da Casa Alegria há dois meses. Antônio afirma que não é possível dizer com exatidão o número de crianças que moram nas unidades de acolhimento, uma vez que elas não ficam lá permanentemente, pois, muitas vezes elas voltam para suas famílias de origem ou são adotadas. Além de estudar, as crianças e adolescentes que ficam nos abrigos participam de atividades que incentivem a socialização como cursos e passeios. “São cursos de informática, artesanato, música e esportes. Para os adolescentes maiores, cursos na área profissional. São oferecidos pelo Contacto, por outras Ong’s e pela rede social do município”, diz Lira. ‘EU QUERIA VOLTAR A MORAR COM MINHA MÃE’ Ainda na biblioteca as crianças continuam
desenhando corações, estrelas, flores, casinhas. Certamente, são parte de cenas que passam pela cabeça delas. Talvez, um mundo perfeito e de fantasia, com aquilo que elas sonham, mas ainda não puderam ter. Como é o caso de L., sete anos. Embora o passado na casa da mãe fosse de abandono, ele ainda consegue ter boas lembranças. “Era legal lá em casa. A gente subia no telhado e soltava papagaio”, diz. Mas a frase termina de um jeito meio assustado. “A gente pulava a janela e ia pra rua”. W. 6 anos disse: “Prefiro morar lá com minha mãe porque tenho saudades”. A garota não quis contar sua história. “A polícia que me buscou”, foi tudo o que quis falar. Afirmações assim mostram que, embora os abrigos desenvolvam um grande trabalho de proteção e socialização com essas crianças, aquelas que tiveram contato com suas mães ainda sentem falta. F., 12 anos, sofria abuso sexual do avô e era agredida pelos pais e irmãos mais velhos. A garota conta com detalhes e sem medir palavras as situações pelas quais passou. Por uma questão ética e de respeito, não vem ao caso dessa reportagem expor a história sofrida da menina, mas sim mostrar que a realidade de agressões domésticas contra crianças no Brasil é mais recorrente do que se imagina. 12% DAS CRIANÇAS DO PAÍS SÃO VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA Segundo dados de 2009, da Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância (Sipani), 12% dos 55,6 milhões de crianças brasileiras menores de 14 anos são vítimas, anualmente, de alguma forma de violência. As violências e os acidentes, juntos, constituem a segunda
causa de óbitos no quadro geral da mortalidade brasileira. Na faixa etária entre 1 e 9 anos, 25% das mortes são decorrentes da violência. Entre 5 e 19 anos, a violência é a primeira causa entre todas as mortes ocorridas nessa faixa etária, segundo dados do Ministério da Saúde. wwE mesmo nas situações não fatais, as lesões e traumas físicos, sexuais e emocionais deixam sequelas para toda a vida. Ainda de acordo com a Sipani, 18 mil crianças são agredidas por dia no País, 750 crianças vitimizadas por hora e 12 crianças agredidas por minuto. ONDE HÁ CARINHO E CUIDADO, HÁ ESPERANÇA A infância marcada pela dor, angústia e pelo sofrimento entra em contraste com o carinho e cuidado que esses ado-
lescentes e crianças recebem nos abrigos. Lá há a tentativa de acrescentar gostas de esperança em meio à lágrimas de tristeza. “Eu tenho uma boneca branquinha e coloco roupinha nela. Finjo que é minha filha. Eu quero ter neném um dia”, diz L., 7 anos. Quando questionada sobre o que quer ser quando crescer ela afirma taxativamente: “quero ser médica”. S., 10 anos, quer ser dentista. Algumas dessas crianças se refugiam em suas fantasias para amenizar a dor. “Eu quero ser o Ben 10!”, grita N., de apenas 3 anos, se referindo a um personagem de desenho animado... ONG BENEFICIA 90 CRIANÇAS Fundada em 14 de Novembro de 1992, em Betim, a Ponto de Contacto Nova Canaã tem por finalidade a promoção da pessoa humana por meio de serviços, programas,
projetos e benefícios de proteção básica e/ou especial para famílias, indivíduos e grupos que deles necessitarem. Administrada pela Igreja Batista Nova Canaã, a ONG conta com a ajuda da prefeitura e de outros parceiros. Ao longo dos anos, a Ponto de Contacto Nova Canaã vem desenvolvendo programas e projetos em parceria com 1º, 2º e 3º setores da sociedade, implementando uma política se assistência social em consonância com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), destinado ao ser humano em condições de vulnerabilidade socioeconômica. Além dos serviços de Acolhimento Institucional, a Ponto de contato Nova Canaã oferece uma creche e pré-escola gratuita, o Centro de Educação Infantil Nova Canaã (Ceinc), que atende crianças de 3 a 5 anos. Tem sede própria e funciona em dois turnos com capacidade para 90 crianças. Existe ainda o serviço de proteção básica, que tem como objetivo prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se a população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, ausência de renda, acesso precário ou nulo aos serviços públicos, e/ou fragilização de vínculos afetivos (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras). Para esse público são oferecidos cursos de panificação, cabeleireiro, pintura em tecido, informática básica e biscuit. A ONG desenvolve ainda um trabalho social no povoado carente de Pacuí, no município de Pai Pedro (Norte de Minas). Lá foi construído um galpão para realização de atividades diversas, além da construção e reforma de casas de alguns moradores. Frequentemente representantes do Ponto de Contacto vão a Pacuí levar doações como roupas e alimentos e reforçar o apoio dado.