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OBRIGADO
A OLHAR PELA JANELA
JOSÉ SERRA CRÓNICAS 2014—2015
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OBRIGAD O A OLHAR P ELA JANELA
José Serra • Edição de autor 55 (cinquenta e cinco) exemplares 1ª Edição — Outubro de 2015 Design por Alexandre Fernandes Impresso em 2015
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Mais vinte e quatro horas De negrura, Que o sol nem há-de ver, na sua pressa. Em vez dum claro apelo, O pesadelo Dum sonho mau, que apenas recomeça.
— Miguel Torga
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ÍNDICE
Nota introdutória................................................... 1 A insustentável leveza de Abril............................... 5 A (des)integração europeia...................................... 9 O conflito e o que dele se retira............................... 13 Opiniões............................................................... 17 De Agosto............................................................. 21 Dança com Lobos.................................................. 23 Praxes, um neofascismo?....................................... 27 Um ensino à porta do inferno................................ 31 Novo ano............................................................. 35 Fundamentalismos?.............................................. 39 O Estado e as drogas — parte 1............................. 43 O Estado e as drogas — parte 2............................. 45 Aniversários de Abril............................................ 49 Considerações de uma poesia de Verão..................... 53
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NOTA INTRODUTÓRIA
Corria o ano de dois mil e quatorze quando um pequeno aviso surge na minha caixa de correio electrónico. Era um convite humilde no palavreado e sincero na ambição: havia a intenção de criar um jornal electrónico e requeria-se a ajuda dos que quisessem participar. Achei por bem responder. Lá me propus, entreguei currículo e rapidamente me foi dito que estavam a contar comigo. Estes textos devem-se à posição positiva dessa boa gente. Com altíssima probabilidade, eles não apareceriam sem o surgimento do prazo que me tem sido dado, tantas vezes com benevolência, para escrevinhar com total liberdade sobre qualquer assunto. A essa boa gente, talvez já tão cansada de aturar as minhas linhas, devo-lhes um abraço de gratidão. Mas esta colectânea dirige-se também aos que não tiveram oportunidade de me seguirem, ora por culpa da vergonha do autor, ora devido a esquecimentos enfim perdoados. O quotidiano deixa cair sobre os homens uma capa cansada. Retiremo-la então, com esta pequena publicação. Os textos aqui reunidos focam a minha preocupação para com o mundo actual, para com um país, para com uma multidão conhecida. Não quero duplicar a maçada, mas importa-me simplesmente referir que sempre tentei compreender os fenómenos contemporâneos recorrendo à literatura e à leitura de tantas coisas diferentes. Espero que compreendam essa minha necessidade: a de ver para além do visto, como a de quem está obrigado a olhar pela janela. Como o 1
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objectivo passava por oferecer o que já estava escrito na sua matriz original, decidi manter uma ordem cronológica. Poderão ver, de resto, as crónicas que mensalmente fui publicando e as poesias que em igual período de tempo fui derramando. Os poemas não estão por ordem de publicação. Dei-lhes somente um arranjo e decidi deixar-lhes a selvajaria própria do momento em que foram escritos. Irão em três partes, todas pertencentes a distintas fases da vida e da grafia. Preciso só de mais um momento para agradecer a todos os que me apoiaram para que não desanimasse ou desviasse. São muitos e teríamos que fazer uma outra obra — justíssima! — só para esses. Mas quero especialmente agradecer ao Alexandre Fernandes pela ajuda e pelos esclarecimentos, e ao meu irmão Miguel pelos desenhos e pelos incentivos. De resto, dedico isto e o que se lhe segue nas próximas páginas à minha família e aos meus amigos, estes e outros indecentemente espalhados pelo mundo.
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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE ABRIL
«Passou a diligência pela estrada, e foi-se; E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia. Assim é a acção humana pelo mundo fora. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; E o Sol é sempre pontual todos os dias.» — Alberto Caeiro
O vinte e cinco de Abril está prestes a entrar no clube dos quarenta, como já é sobejamente conhecido. Do que foi já muito se tem dito. É do que não é ou do que não tem vindo a conseguir ser que mais urge falar, no momento. Primeiro, a estatística e o alarme devido. Nos últimos anos temos sido abalroados com a certeza dos números. De que gastamos menos, de que a qualidade de vida decresceu, de que estamos a perder cidadãos, de que o futuro é envelhecido. E, claro, uma certeza inabalável mas que vem por arrasto: nada se sabe do que virá a seguir, pese o grafismo economicista e alguma retórica política tentarem definir a incerteza. Grosso modo, é assim que estamos. É por assim estarmos que mais repulsa tive ao ler O Eterno Retorno do Fascismo (Bizâncio, 2012), de Rob Riemen. Este autor 5
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expõe várias advertências de grandes pensadores do século vinte para justificar a atenção que devemos ter em relação a estes nossos tempos. De Nietzche a Camus, rapidamente se observa que as relações de comparação com as sociedades fascistas do período entre guerras têm grande possibilidade de corresponder a alguns tópicos que encaixam, hoje, na nossa contemporaneidade. O autor explicita grandes vectores de análise: a criação do homem-massa, o carácter niilista, a questão da educação e o abandono das pessoas. A criação do homem-massa deriva directamente da sociedade de massas que Ortega y Gasset imortalizou em 1930. Esta nova espécie humana recusa os valores intelectuais, “não reconhece a natureza trágica da existência”. O carácter niilista consiste na perda de valores espirituais e perda de valores absolutos, a vida desenfreada dos impulsos. Para Nietzche, “o perigo de todos os perigos: nada mais ter sentido”. Para a satisfação dos nossos desejos, tudo se resume à violência. Para agravar a conjura, Riemen expõe as críticas de Karl Kraus ao jornalismo de “banalidades, sensacionalismo e disparates”. A educação é, por isso, um factor primordial para combater a probabilidade da desgraça. Mas não têm os nossos tempos renunciado à educação liberal da arte e das humanidades? Não tem ela vindo a curvar-se perante os ditames do que é útil às empresas e ao Estado? E, assim, tendo por base a superficialidade a que o mundo chegou, se desemboca no abandono das pessoas. Este panorama é assustador. Riemen, holandês, tem evidentemente presente a preocupação com o crescimento do nacionalismo no seu país. Não é esse o meu receio. A minha preocupação baseia-se unicamente na leviandade com que Abril é vivido e pensado. Devemo-nos lembrar da nossa cidadania, da virtude dos direitos e do cumprimento dos deveres. Consta, de facto, da nossa constituição, alvo de algum debate conotado com a minimização do Estado e, a meu ver, com a neoliberalização da sociedade. Veja-se como o ódio tem crescido na 6
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população: os que têm emprego e os que são desempregados, os que são solidamente ricos e os que são instavelmente pobres, os que descontam porque se esforçaram e os que descansam porque roubaram, os que são pelas privatizações e os que acreditam no funcionalismo público, os que querem um Estado social e os que não se importam realmente com isso. Estas dicotomias têm desgastado a tal “coesão social” a que o discurso político tanto apela. Não tenho ouvido a palavra “cidadãos”; tenho assistido à valorização ingénua de outros conceitos que esquecem, no cerne da matéria, a questão da ausência de uma energia solidária. Devemos ter a consciência que a violência existe e não tão controlada como se possa pensar. Existe uma agressividade verbal que impele à irracionalidade da intervenção e do diálogo. De uma sala de aula à Assembleia da República. A violência física também não desapareceu: escolas problemáticas e casos de bullying, confrontos de claques associadas aos clubes de futebol. O abandono do civismo às mãos de uma educação generalista é cada vez mais uma realidade, sem orientação para horizontes mais largos do que o estudo e o correspondente ofício. Mecanizou-se a meritocracia. Há uma grande carência de coisas que pensávamos gratuitas, valores óbvios: instabilidade familiar, má nutrição dos nossos jovens, ausência de hábitos construtivos do espírito, como a leitura, a ida ao teatro, a museus. As atitudes censórias mantêm-se para quem quer ser diferente, para quem quer usufruir do seu livre espaço de acção. Perdemos muito tempo com coisas que são fúteis. A velocidade hipermodernista com que hoje se está em contacto é um dos feitos do século vinte. Mas encontramo-nos numa encruzilhada: como se liberta da virtualização da nossa maneira de estar, que nos impede de agir e pensar publicamente? Não temos sido remetidos ao anonimato dos comentários estupidificantes, à inconsciência da posição no debate, à incoerência e, em último caso, à ignorância? Daí decorre a ausência do tempo íntimo, da concentração plena; 7
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ao invés, ganhou-se a alienação. O treino das nossas capacidades intuitivas e cognitivas é trocado, recorrentemente, pelo exercício de repetição, pelo exame frio e cru das coisas. Estes problemas não foram herdados directamente de Abril. Mas são questões que temos que discutir abertamente, se quisermos uma nação mais luzidia e um mundo relativamente melhor. Para Riemen, o fascismo como fenómeno político não desapareceu com o final da Segunda Guerra Mundial. Poderá estar correcto. O que mais me interessou na sua abordagem foi ver que as condições que possibilitaram a sua instauração poderão estar perto de voltar a alimentar o medo e a escurecer a esperança. No fundo, a secar o cravo que nos soltou largamente as asas. Mudámos e melhorámos. É uma constatação inequívoca de alguém que nada desse tempo viveu, mas sente que Abril tem que pesar mais nos ombros dos que lhe querem dar melhor futuro, melhor memória. Sobretudo, terá que ser pontual todos os dias, como o sol de Caeiro.
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A (DES)INTEGRAÇÃO EUROPEIA
A Europa começa com uma estória engraçada. Em tempos idos, distantíssimos, essa senhora de mais-que-prováveis belezas encantara Zeus, o pai de tudo. Pai dos deuses, se a eles se reconhecer qualquer paternidade, e pai dos homens, se da humanidade alguém se fizer dono. Zeus tinha que optar por uma solução que conviesse à sua satisfação e ao equilíbrio da ordem. Hera não podia desconfiar o quanto ele quereria continuar embebido na líbido pela jovem Europa. O deus decidiu então transformar-se em touro e fez-se pai: raptou e engravidou a nossa conhecida moça e levou-a para Creta, lá no meio do mar, para que à luz pudesse dar. Eis como uma bonita estória de traição e rapto pode dar para construir uma metáfora sobre os dias de hoje. No passado dia 25, os vários países da União Europeia foram a votos. Os portugueses, como a grande parte dos restantes povos europeus, sentiram-se traídos pelos governos e raptados nos impostos. Até podia dar para brincar com a líbido do deus grego, mas não: o pessoal absteve-se forte e feio. Só isto é que não é nada europeu nesta trama. Também não é nada europeu o facto de andarmos a fazer poucos filhos. Zeus fez três e, sem meias medidas, ainda deixou longe a prole. Mas o que é que me leva a falar disto? Em primeiro lugar, a realidade: a noite das eleições europeias. Os discursos revisionistas 9
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dos partidos do poder, a baixíssima qualidade do palavreado político, a total inexistência de um debate sério (numa altura absolutamente crucial para os nossos interesses) - já se previa que aquela noite não ia ser muito boa. E não estou a qualificar quanto à absurdidade que é um qualquer discurso de vitória partidária, como se o ambiente justificasse a justeza de um triunfo. Nenhum partido político, nenhum orador no dia 25 último, poderia clamar vitória face à tenebrosa abstenção. No entanto, quase todos o fizeram. Uns mais contidos, uns mais “históricos”, uns mais eufóricos. Mas não há razão para tal, a não ser um total autismo face aos dias de hoje. E isto leva-me ao segundo ponto, mais importante: as eleições europeias ficarão ligadas à nova discriminação racial do continente visto que uma grande parcela do eleitorado se absteve e porque se elegeram partidos extremistas. Há um pequeno livro, de François de Fontette, chamado de “O Racismo”. É um livro de iniciação à informação política, impresso em 1976. Tempos distantes, portanto. Mas o que é interessante é a sua preocupante actualidade, a sua vertiginosa pertinência. Na contra-capa, encontramos a seguinte definição: “o racismo é a valorização, generalizada e definitiva, de diferenças, reais ou imaginárias, em proveito do acusador e em detrimento da vítima, a fim de justificar os seus privilégios ou a sua agressão. Valorização essa que culmina, amiúde, com a recusa não só do direito de cidadania, como também do direito de viver.” Enquanto Fontette se propõe a aprofundar a temática do racismo, podemos ler uma pequena nota acerca de Alfred Rosenberg, um dos ideólogos do partido nazi e uma das personagens que mais influenciou Hitler. Diz Rosenberg que “regiões inteiras do Sul estão praticamente mortas e absorvem já os indígenas da África, como outrora Roma”. Estamos em 2014. O problema da imigração ilegal (e mesmo da legal) e da absorção multicultural, que as sucessivas instituições europeias vinham a propor, esbarraram no imobilismo moral de certos 10
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executores políticos e no grande descontentamento da sociedade europeia. Voltamos ao tempo em que a argumentação simplista em torno das sociedades menos desenvolvidas tem a capacidade de se tornar em dogma explicativo de uma decadência económica e política. O que é particularmente assustador é que isso ouve-se e percebe-se em qualquer conversa de café. “Eles” serão sempre menos desenvolvidos porque “eles” já tiveram tempo para se desenvolver como “nós”. E é nas entrelinhas destas falsidades aberrantes que vamos descrevendo o panorama moral e intelectual da nossa comunidade. A apologia da diferença, face a nações que têm séculos de uma firmada identidade, tem alguma lógica numa óptica daquilo que é o continente europeu. Mas nem é isso que se passa: é um desleixo, uma “recusa de aceitar o outro como diferente”. Esquecemos, comummente, que o homem soez vem de outras paragens para assistir “as tarefas e serviços incómodos, sujos, embrutecedores, trabalhos particularmente duros, que os nacionais, por mais baixo que se encontrem na escala social, não querem desempenhar”. E esta é uma verdade inconveniente, a de que “os imigrados não encontram emprego senão nos sectores marginais, que os trabalhadores metropolitanos tendem a abandonar”. A sistematização das generalizações abusivas é, por isso, um caso preocupante. Funciona como um trampolim para algo muito mais destrutivo. Estas eleições foram um prenúncio disso. A sociedade civil alheou-se. Permitam-me mesmo considerar que ela está perdida, como uma barqueta vinda do hemisfério sul sem saber se amanhã sobreviverá à intempérie. O sentimento de traição entre o discurso político e a expectativa dos votantes atingiu um nível impensável. Fomos raptados da nossa segurança, de algumas liberdades, do conforto material e do direito ao sonho. Assim, como no tempo pujante de Zeus, parece que revivemos os tempos da mãe Europa enganada. Para concluir, volto a citar Fontette, numa das suas últimas passagens: “a fria tecnocracia que trata o homem como formiga não testemunha 11
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em relação a ele muito mais consideração que lhe dispensava o racismo hitleriano”. Tentemos, então, fazer com que os melhores filhos europeus possam crescer com a possibilidade de oferecer outra dignidade moral e outra vertente humanista que a nós tem fugido. Os tempos que aí vêm não são bons. Não sei o que nos espera, mas Zeus não veria agora Europa com tanto encanto como naquela ida ocasião.
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O CONFLITO E O QUE DELE SE RETIRA
Já todos conhecemos a barbaridade da Primeira Guerra Mundial, muitas vezes posta em plano secundário pelas atrocidades dos campos de concentração nazis e pela sua ideologia demoníaca que se torna evidente na Segunda Guerra. A imagem é-nos claramente mais próxima pela existência dos grandes monstros totalitários, como Hitler e Estaline. Ainda assim, não deixa de ser interessante o facto de ter sido a Primeira aquela em que o nosso país interveio activamente. A comemoração do centenário do início do conflito dá-se numa época difícil para o continente europeu: nem tanto pela diplomacia interna, mas mais pela sua aparente ausência no exterior. O caso da Crimeia é a mais recente prova de que qualquer pequena cirurgia geográfica tomará proporções de abalos sísmicos. O que indignou grande parte da opinião pública foi a ineficácia do discurso e o desrespeito pelas instituições. Os organismos políticos têm que rever rapidamente isto. A data de 1914 marca o início do fim da velha ordem imperial europeia. A imagem de uma Europa sentada à mesa, trilhando o continente africano (como nos tempos da Conferência de Berlim, de 1885), será substituída, rapidamente, por uma imagem de indigência e de insegurança social. A Europa de 1918 é, portanto, uma tentativa 13
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de manutenção da ordem a partir de cacos espalhados. Primeiro, com a acção enérgica mas ao mesmo tempo estranhamente desinteressada do Presidente americano, Woodrow Wilson; depois, com a ‘miniaturização dos ódios nacionais’, como resumiu Furet. Ambas as medidas falharam, em toda a linha. Wilson não teve a força necessária para suster os interesses interinos das potências europeias: a Itália insatisfeita queria redesenhar a Áustria, a França vingativa queria hipotecar a Alemanha. A Assinatura do Tratado de Paz, a 28 de Junho de 1919, foi o preâmbulo para os problemas seguintes. Wilson, Lloyd George, Clemenceau e Vittorio Orlando, os quatro grandes assinantes, estarão fora da vida política a partir de 1922. A Sociedade das Nações (SDN) prometia um novo mundo, mas renovou o velho. Basta ver a célebre ‘Carta dos Quatorze Pontos’ para se perceber que Wilson era um homem de ideias nobres, mas afastadas da realidade do tabuleiro. O primeiro dos pontos era a abolição da diplomacia secreta, algo em que as potências europeias se vinham a especializar desde Bismarck. O último era a criação da SDN, em que apenas uma direcção forte permitiria uma conjugação de interesses para dirigir a paz. Com as alíneas mal resolvidas em 1918, a Sociedade não podia respirar saúde. A 19 de Março de 1920, o Congresso Americano não ratifica o Tratado de Versalhes. A autoridade é inexistente. O que ela resolve são problemas menores da diplomacia europeia — entre Suécia e Finlândia (1920 e 1921), entre Grécia e Bulgária (1925). As agressões entre Estados multiplicaram-se e só a antecipação de alguns líderes é que permitiu a assinatura de pactos efémeros para a não-agressão. O Japão, a Itália e a Alemanha abusarão recorrentemente desta utopia “federalista”. Se a década de 20 é a assunção da incerteza, a década de 30, com a ascensão dos fascismos, é a constatação da ineficácia. Uma rápida observação a uma cronologia das acções da SDN mostra que os desastres diplomáticos foram uma constante. 14
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Com a Segunda Guerra Mundial, tudo é congelado. Só com a Conferência de Ialta, em 1945, é que a paz poderá outra vez ser discutida a um nível organizacional. As pedras das Nações Unidas lançar-se-ão. Anos mais tardes, o projecto europeu dará, igualmente, os primeiros passos. Podemos ver, então, como a construção da paz não é um fenómeno gratuito de boa-vontade. Mais: a sua manutenção implica, por vezes, decisões maquiavélicas em função do bem comum. Mas não é isso que pretendo trazer à discussão. É uma questão mais simples: ao olhar para o final da Primeira Guerra Mundial e para a SDN, percebemos o quão premente se tornou a criação de um organismo que regulasse a incerteza das relações internacionais. Precisamos de cuidar melhor das nossas instituições europeias — a construção europeia é um projecto de paz, pese o aparato económico que tanto se tem comentado. Precisamos de fortalecer a nossa vontade em fazer a paz. Todos podíamos ter um pouco de Wilson — sermos utópicos, pela paz.
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OPINIÕES
A opinião pública tem sofrido um envenenamento estigmatizante. A imprensa tem parte da culpa — basta ver como a silly season se repete como se os tempos em que vivemos não tenham sofrido qualquer alteração nos últimos anos. As universidades não têm sabido aproveitar o elã da discussão intelectual, à excepção do eixo PortoLisboa, e com maior incidência nas mais poderosas instituições da capital. A população, confusa e descrente, ressente-se cada vez mais de toda a inutilidade de uma ideia participativa na democracia. Preocupam-me as frases feitas e a agenda política que está por detrás delas. Secundam-na as hábeis manobras goebbelianas da comunicação governativa e as práticas do empreendedorismo nacional, votado à adoração de quem acha que emigrar não é problema e sim solução. Nem tudo é mau no empreendedorismo, mas há nele matéria falaciosa. E, disseminando-se do corredor do poder ao pivot do noticiário, a falácia entra nos ouvidos como verdade absoluta, incorrigível (para “corrigir os males de outrora”), inabalável. Uma das falácias mais veiculadas é a do sector público. Há um livro que li recentemente e que me espevitou para esta questão. Falo do “Caminho para a Servidão”, de Friedrich Hayek. Austríaco erradicado sucessivas vezes, cidadão frustrado com o nascimento do fascismo europeu, Hayek tornar-se-á um dos pais da corrente a que chamamos 17
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de neoliberalismo. O neoliberalismo ficou muito tempo congelado — demasiado tempo, do ponto de vista do ritmo histórico do século XX. Quando as portas se lhe abriram, em meados dos anos 70, a Europa abriria igualmente um precedente que só o keynesianismo mantivera tanto tempo afastado. O “Caminho para a Servidão” é um livro de ciência política — é, aliás, um manifesto político. Em primeiro lugar, é dedicado aos socialistas de todos os partidos socialistas — Hayek adquirira o medo supremo de ter visto que na Inglaterra que o acolheu, o socialismo reinante se tornara cada vez mais totalitário, cada vez mais próximo da abjecção fascista que ele vira crescer nos países germanófilos. Em segundo lugar, o livro aplica uma sentença de morte a todo o sector público, com uma demonstração difícil de não ser aceite: Hayek advoga a ideia de que a Europa que cedo desconfiou do grande poder dos Estados seria a Europa de um certo capitalismo de mercado, onde a alta burguesia e a média teriam poder para discernir os seus negócios e onde a pequena burguesia poderia lutar pelas virtudes da mobilidade social. Em terceiro lugar, a obra centra-se na naturalidade do triunfo dos mais aptos na sociedade capitalista e que ao Estado competiria olhar e não mexer. É uma obra útil para percebemos a doutrinação que o discurso político tem sofrido. Acorrentadas a esta ideia, vêm muitas outras: a crise do poder central, a desigualdade tributária. Não é importante que todos saibam tudo, mas seria importante que muitos duvidassem de muito. O sector público pode sofrer de má gestão, como sofrerão empresas privadas. Mas eu entendo que há bens que são inalienáveis da coisa pública — a saúde e a educação são os casos mais óbvios. Não creio que os processos de privatização resolvam muita coisa — basta atentar nos sucessivos casos em que a Inglaterra e os EUA tentaram resolver o peso da segurança social a partir da década de 80 para ver que a privatização, em largos casos, é a outorga de dívidas por parte dos privados ao Estado. Mais: que o caminho para a diminuição do 18
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seu custo é o despedimento. Os tempos em que vivemos revelam isso facilmente: fecho de urgências, fecho de escolas. O discurso político é a água que torna essa farinha em pão: o mau comportamento público dos professores — como se a avaliação de um trabalhador a meio da sua carreira fosse algo normal ou recorrente, e sabendo, ainda para mais, que isso será uma arma formal de mais despedimentos colectivos —, o desvario da necessidade das populações em deslocarem-se a hospitais — como se o direito de ajuizamento em relação à necessidade da saúde de outro cidadão fosse sequer algo tolerável. O juízo das necessidades dos nossos concidadãos é das coisas mais aberrantes que desequilibrou por completo a balança da coesão social. Palavras como produtividade, empreendedorismo e outros vocábulos anglo-saxónicos entraram com facilidade neste discurso. Vieram para ficar, bem como a complexa mudança social a que fomos sujeitados. As conclusões ficarão para o futuro próximo. O medo de Hayek era que o Estado se tornasse num Beamtenstaat — um Estado de funcionários. O meu medo é que o Estado se torne num Estado sem funcionários.
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DE AGOSTO
Hoje não escreverei nada de real. Permiti-me dactilografar a metafísica de Agosto. A minha vida é um tédio que não dá qualquer trabalho. O cigarro refugia-me, ainda que me sobre um telhado inexistente. Não existo em Agosto, pululo em existências. Faço por detestar as prosas, agradeço às poesias o sentido de tudo e muito mais. Eis as considerações: 1. Amantes vêm e perturbam-me o espaço, enquanto a música lhes oferece solenidade temporal. Carícias soltam-se na mão que se desloca do homem para a mulher, os olhos sintonizam algo que provavelmente é amor, as pernas cruzam-se indecentemente — e eu assisto a tudo isto sem sequer olhar para eles, nem querendo. 2. As jogas da praia fazem bem ao poeta: tornam-lhe desconcertantes e incertos os passos enquanto ele procura sagazmente qual a pedra mais bonita, seja para não ficar com ela, seja para a guardar indefinidamente. 3. Muito se tem dito, ou escrito, do que faz bem ao poeta. É o que faz mal que merece ser escrutinado: o que faz mal assombra e é justamente a sombra do homem, isto é, o poeta, aquele que sempre escreve. 21
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4. Fumo o tabaco quase de uma só vez / como se nesse acto ágil / encontrasse uma solução rápida / para todos os ásperos sentimentos / a vida é mais fácil do que cri / e mais fácil do que isso / é acreditar na leveza extasiante e inoperante / de um cigarro. 5. Quando uma mulher dança, dança para quem? 6. Fui ao café do costume / escrever coisas inúteis / tomei o que sempre costumo tomar / num hábito repetido / continuamente / a minha vida, no epitáfio / deverá dizer que fui um homem bom / acostumado a coisas inúteis / a muitas outras coisas / mas sobretudo a coisas inúteis. 7. Diz Álvaro de Campos: “Talvez tenhas existido apenas como um lagarto a quem cortam o rabo e que é rabo para aquém do lagarto, remexidamente.”
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DANÇA COM LOBOS
Inúmeras dúvidas foram levantas acerca do antigamente seguro Banco Espírito Santo. Não venho fazer uma análise política da situação, já apressadamente debatida. Importa-me mais um certo desígnio histórico das instituições às mãos de um capitalismo dançante — tão dançante que explica a confusão e, em último caso, o desprezo votado pelo público. O exemplo que irei recordar vai no sentido contrário, aparentemente — em vez de um banco levar à ruína um país ou uma grande parte da população, pode ele elevar uma nação, ou, pelo menos, emprestar a confiança? A História diz-nos vagamente que sim. A grande banca e o poder político precisam um do outro. Daí se percebe a necessidade, quase sempre urgente, como o Estado tenta resolver os problemas — de uma magnitude preocupante — decorrentes de uma possível saúde débil dos organismos financeiros. Mas o contrário é igualmente verídico: a banca tornou-se, ao longo dos séculos, a cirurgiã do Leviatão. E não nos devemos surpreender ao ver que a mão que pegava no bisturi era uma mão ramificada, pertencente a uma família ou a um clã que, a partir da operação, controlaria os destinos dos poderes centrais, com maior ou menor amplitude, com maior ou menor desafogo. Foram assim com os casos dos Médici, dos Fuggers, e de tantos outros que, a partir da Idade Moderna, foram consolidando um status cada 23
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vez mais difícil de superar. É na Idade Contemporânea que estas operações se complexificam, quer por fraqueza do paciente, quer por força do operante. Em Portugal, a situação política do período pós-Pombal esteve conectada a um agravamento das finanças do Reino. Em primeiro lugar, os focos de tensão entre os partidários de Pombal e os que desconfiavam da sua política reduziram a celeridade com que certas medidas deveriam ser tomadas. Em segundo lugar, o establishment estrangeiro era já demasiadamente forte para ser evitado, a saber: a situação de permanente choque com Espanha, a vigorosa acção da França Napoleónica, o aproveitamento comercial e financeiro da Inglaterra. Estavam criadas as condições para a entrada em cena do banco inglês Barings & Co, posteriormente agremiado à poderosa holandesa Hope — promovendo então uma expansão colossal — e sempre concorrente, amigavelmente concorrente, dos Rothschild. O que a história nos conta é que a salvação de Portugal nos inícios do século XIX — 1802 é a data do primeiro grande empréstimo do Barings — foi feita à revelia dos interesses futuros do país. A solução instintiva dos governantes foi uma hipoteca face aos desafios do grande capitalismo industrial que vinha a crescer nos países mais a norte — e porque não recomendar o Discurso sobre as causas da decadência dos povos pensinsulares, de Antero de Quental, que resume as razões do atraso português? As gerações seguintes às desses fatídicos anos foram absolutamente impedidas de ter peso negocial. Basta reparar na amargura das críticas de Rodrigo de Sousa Coutinho, ou mesmo na simples constatação que faz Almeida Garrett no seu Portugal na Balança da Europa. O Barings foi um autêntico polvo até à crise suscitada numa filial, na América do Sul, em 1890. Controlando os negócios das madeiras, dos diamantes e do tabaco, frutos colhidos facilmente pela independência do Brasil em 1822, a ajuda, de empréstimo em empréstimo, 24
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estagnou a possibilidade de regeneração económica credível. O período da Regeneração, a partir da segunda metade do século XIX, foi um esforço tremendo para endireitar uma economia. Dificilmente se voltaria a pôr o país na senda das potências coloniais. O que interessa sublinhar aqui é a procura insaciável e promíscua entre a política e a finança. Na altura, porém, a procura era feita nessa base salvífica — e irracional em muitos casos — como o poder político via a banca. Via e vê: sejam novos ou velhos, bons ou maus.
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PRAXES, UM NEOFASCISMO?*
Detesto as praxes. Vou tentar expor alguns argumentos para demonstrar o rotundo vazio dos dogmas que estão por detrás destas práticas absurdas. A praxe é uma realidade dos nossos dias a esconder os mais diversos ataques à razão humana. E recuperando a minha frase inicial, não só detesto a praxe como a condeno ao campo do neofascismo dos tempos pós-modernos. O termo praxis significa maneira de actuar, prática. O termo praxe assume essa mesma conotação, a de um acto que visa integrar os novos alunos nas respectivas universidades espalhadas pelo país. É o vigor da acção - uma quase virilidade mussoliniana -, a psicologia de grupo e o stablishment hierárquico que retiram a propriedade aparentemente inócua de integração a esta actividade. O dogma social divide-se em duas questões. A questão da integração é a mais recuperada para justificar toda a actividade praxista. Mas ela é um falhanço. Porque se integrar significa incluir, a praxe falha em dois momentos. Num primeiro, onde tenta criar um grupo de fiéis e outro que não de fiéis; num segundo, onde a rede se mantém activa para si mesma, não procurando estabelecer com a mesma força uma ponte para o grupo de não fiéis. Apesar de toda a retórica integracionista, ela torna-se invariável e exclusivamente numa actividade que cria um grupo de pessoas disciplinadas para responderem 27
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a uma série de estímulos — os mesmíssimos estímulos que depois reproduzirão no ano seguinte and so on. Ainda há a questão do livre-arbítrio, o célebre ‘cada um sabe de si’. Esta argumentação outorga já não sobre a actividade mas sobre o actor o ónus da tradição. Dir-se-ia que individualiza a escolha, condenando-a, para sempre, ao falhanço da inclusão dos estudantes na esfera universitária. Disto se retira, então, que há uma impossibilidade estrutural entre a integração e a liberdade de escolha, tornando-se a praxe um fetiche de ocupação de tempo — um Dopolavoro — e nunca uma verdadeira aspiração ao abraço comunitário. O dogma cultural faz-me recuperar Henri Michel: “o fascismo não crê que os homens sejam iguais, nem que o homem seja naturalmente bom”. Isto sintetiza muito do carácter cultural com que a praxe abraça a comunidade. A primeira criará um homem diferente, um homem novo, visto que a segunda está túmida de adolescentes defeituosos, sem respeito, sem ordem. Este aperfeiçoamento do caloiro está longe de ser levado cirurgicamente: é feito massivamente, em fileira, com ‘todos a olhar para o chão’, impondo-se esta brincadeira abjecta como um superior desígnio do ariano estudante. O que interessa é um olhar quadrado sobre as coisas, uma vertente acrítica de tudo e um embrutecimento estúpido das causas. Gosto desta passagem de Bertold Brecht: O HOMEM DAS SA: As convicções estão bem. Você tem uma opinião diferente?/ O TRABALHADOR : Não. Só acho é que ninguém diz o que pensa./ O HOMEM DAS SA: Ninguém diz? Como assim? A mim dizem-me. /O TRABALHADOR: A sério?/ O HOMEM DAS SA: É claro que não vêm ter connosco para nos dizerem o que é que pensam, assim, sem mais nem menos (...). Michel diz-nos ainda que no fascismo “o grupo tem o direito de punir aqueles que recusam agregar-se-lhe; a justiça não tem como objecto defender o indivíduo, mas sim velar pela integridade do grupo, aplicando sanções àqueles que a prejudicam”. 28
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Mais dogmas existirão e mais alíneas continuarão dispersas no discurso estupidificante de um ambiente académico vazio de ideais. Penso ser tanto condenável a lógica de liderança e obediência como a lógica de submissão e de ‘servidão voluntária’ da envolvência praxista. O que quero dizer, portanto, é que todos são cúmplices neste jogo. A voluntarização para o espectáculo, a assunção de outro ser — desde as capas negras às caras riscadas —, constituem igualmente a vertente mais burlesca de um caso que pode ser mais sério do que alguns pensam: é que nada nos garante que o que leva um a submeter-se a outro sem razão não possa ser transportado para outras esferas da vida pública. Se isto acontecer, condenemos de uma vez por todas a praxe ao que ela parece realmente ser: não só uma simples manifestação de um hedonismo estranho mas também uma pseudo-planificação de integração ditatorial, proto-militarizada, um caudilhismo vago e imberbe e, acima de tudo, este conjunto de inutilidades que reclamam pelo ‘espaço vital’ — um Lebensraum — da autodeterminação da juventude treinada mas perdida na razão. O que parece estar a conectar esta relação social intrigante é o medo patológico da possível desilusão pavloviana — jogo de estímulos e recompensas - de acesso a patamares de reconhecimento societário, de inserção hierárquica e de crédito do indivíduo num sistema colectivo; tudo isto, é claro, integrado numa grande vivência de fascínio pobre e sem lucidez, e entrelaçado num discurso baixo e sujo segundo a normativa de choque. A argumentação sobre esta actividade apelará sempre ao conjunto das emoções. Não se fará nunca um juízo sóbrio em relação a esta questão. Somente a condeno ao campo de um jogo nocivo para a consciência das normas sócio-cívicas e não a defenderei nunca como método válido de integração.
*O autor só conhece algumas praxes relacionadas com a Universidade do Minho.
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UM ENSINO À PORTA DO INFERNO 1
Qualquer esperança que eu tinha quanto à resistência do ensino público foi quebrada nesta última semana com a divulgação dos rankings das escolas. As vinte primeiras avaliadas são privadas e o fenómeno não obteve uma palavra justa sobre o caso. Estamos, aparentemente, a assistir a uma degradação indirecta do sistema público de ensino. Resta-me a suspeita de que esta degradação é intencional, com efeitos claros e cujas respostas têm sido obscuras. Verificando se esta degradação é intencional, podemos prever que não se discuta mais entre um sistema privado e um sistema público, visto que o primeiro se alimentará facilmente das deficiências do segundo. Não é uma citocinese do nosso ensino, é sim uma autofagia celular em que se fará prevalecer a oferta privada. Pensemos, então, qual o peso intrínseco destas gerações, que vão perder — ou, pelo menos, não beneficiar — das mesmas condições das gerações anteriores? Se queremos abrir um mercado competitivo na área do ensino, deveríamos estar a observar a esta dissolução, a esta desintegração do meio público? Os nossos jovens estão já a sofrer as consequências, cada vez mais encobridas pelas receitas fáceis da culpabilização dos professores quando o problema me parece estar na 1. Alusão à imagem, uma das grandes esculturas do artista Auguste Rodin (1840-1917), denominada Porta do Inferno. A obra foi concluída no ano da morte do escultor.
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organização que o Estado faz da sua oferta educativa. Isto daria para outra conversa, portanto, vou apenas recomendar a visão histórica e cultural que Ken Robinson fez sobre as escolas — cada vez mais aproximadas de um método fabril e mais deslocadas da realidade das coisas.2 Estaríamos, então, a discutir um outro universo — bem mais interessante — de perguntas: a desactualização do nosso sistema, demasiado embebido, ainda, na cultura intelectual do Iluminismo e nas ideias construídas a partir da Revolução Industrial. A ideia de Ken Robinson consiste na transformação voltada para o caos, pela alienação de milhões de alunos espalhados pelo planeta que são postos à prova pela estandardização e não pela criatividade subjacente ao ser humano. Podemos ver que a modernização é garantida, em parte, pelos programas de apoio às novas tecnologias. Mas mesmo assim, não se está a proceder a uma revolução desejável dos métodos de ensino, uma experimentação inevitável de novos modos nos nossos tempos. Uma outra vertente que seria interessante discutir é a da possibilidade ou impossibilidade de reforço familiar dos valores educacionais. Será que a família é vista para combater as deficiências intrínsecas do sistema, ou, simplesmente, é vista como uma outra célula de aprendizagem mas submissa ao status do funcionamento público? Poder-se-ia observar também a desigualdade comparativa no acesso ao ensino superior. Como comentar as desiguais condições sócio-económicas do binómio aluno-agregado familiar? Não é difícil imaginar que só os mais ricos possam frequentar as melhores escolas. E também não é difícil imaginar que as famílias mais seguras economicamente sugerem um melhor habitat de estímulo cultural e intelectual. Serão, portanto, as mais ricas as que poderão oferecer um maior capital humano ao indivíduo, neste caso, ao aluno. Ora, se a escolha será para os privados, e não para o caos público como 2. Robinson tem aqui resumida a sua ideia: https://www.youtube.com/watch?v=zDZFcDGpL4U
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estamos a observar, estaremos perante a lenta destituição do binómio capitalismo-liberdade? Creio que vamos a tempo de mudar. Num livro de memórias intitulado O Chalet da Memória, Tony Judt aborda esta temática, num capítulo denominado “Joe”. Joe tinha sido seu professor no típico colégio público britânico dos anos 50, que remetem para um Reino Unido exaurido pela guerra e eminentemente proteccionista. Joe é uma figura típica do nosso imaginário estudantil: professor austero, furioso, adepto da disciplina. Ora, o que Judt escreve ao lembrá-lo não é um simples saudosismo recorrente de quem já não espera que os novos alunos tenham ao seu dispor o mesmo rigor e método de outrora. O objectivo de Judt é revelar que a estética do método de nada interessa se o resultado não for o pretendido. Mas este é, igualmente, o mote governativo. A diferença está na última frase de Judt: “ser bem ensinado é a única coisa de que vale a pena lembrarmo-nos da escola”. Resta-nos lutar por uma melhor escola pública e por uma maior crédito nos professores. Fazendo isso, estamos a actuar pela democracia e por uma igualdade básica na oportunidade de escolarização dos nossos filhos.
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NOVO ANO
Na estreia de mais um novo ano, nada como fazer o exercício de puxar pela seguinte memória: o que é que eu sei que vou fazer amanhã? Ou, dito de outra maneira, o que é que eu tenho como essencial, como meu e que não consigo apagar, mesmo que quisesse, numa nova resolução? Da minha parte a resposta é simples: escrever. O que me parece interessante de ser explorado não é tanto a escrita em si, mas algo mais invisível: porque é que escreves? O que há em ti que faz com que se torne essencial o acto de escrever? Esta perseguição pela sombra da tinta começou a ser criada durante a minha formação em História. Sempre me fascinou não o conteúdo em si, mas os contornos da forma, aquilo que nós não vemos à primeira vista, aquilo que potencialmente é um exercício de sodomia para quem lê: eu vejo as tuas palavras, entendo o que escreveste, mas poderás estar a mentir-me? O carácter dominante desta dúvida é uma desconfiança de base para se tentar escrever “verdades”, apareçam elas em formas de factos, dados, números, enfim, elementos gerais de veridicção de um discurso. Há um texto de George Orwell que aborda justamente a questão do impulso do escritor. Orwell chamou-lhe de “Why I write” (“porque é que eu escrevo”). Para ele existem quatro motivos essenciais para escrever. O primeiro é um óbvio egoísmo que está presente 35
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nos que partilham um certo topo do tecido profissional. Ele diz-nos que até aos trinta vivemos para nós, e que é a partir dessa idade que fazemos a escolha de continuar vivendo para nós ou de começar a viver para os outros. Os escritores terão que continuar a viver para eles mesmos. Um segundo motivo é o entusiasmo estético. O escritor sente-se atraído pela mecânica correcta das palavras e por uma percepção da beleza no mundo exterior. Mas esta beleza também é algo que se pode conseguir numa folha em branco, o que verdadeiramente interessa é o arranjo que se dá ao nosso produto final, muitas vezes, considera ele, até por razões não-utilitaristas. Um terceiro motivo é o impulso histórico, o nosso desejo de ver o que as coisas são e de descobrir factos verídicos, armazenando-os para uso posterior. Segue-se o quarto motivo, o propósito político, onde a “política” ascende ao seu sentido mais universal para tentar significar um vontade em mostrar um caminho na nossa definição do mundo, na utopia que nos pareça mais franca e mais exequível. O autor acrescenta muito pouco ao seu terceiro motivo, restando para o tal “propósito político” a explanação da sua vida: explica-nos como o trabalho na Polícia Imperial da Índia e as suas interferências na Guerra Civil Espanhola moldaram uma certa maneira de ver o mundo. Orwell escreve que desde 1936 tomara a deliberada e consciente opção de escrever contra o totalitarismo e pelo socialismo democrático. A parte mais interessante desta reflexão está, no entanto, mais à frente, quando declara que tentara tornar a sua escrita política em arte. E como é que isso se faz? A partir de um sentimento de injustiça. A injustiça guia o criador. Quando se vira para ele mesmo e se pergunta qual o motivo mais forte, Orwell diz simplesmente que não sabe: mas que o motivo político é o que merece ser seguido. E de entre alguns problemas que possam advir para o criador, há um que o perseguirá sempre, como a sombra da tinta: a veracidade, a truthfulness. Voltamos, então, ao início, como se um ciclo se tratasse. 36
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George Orwell escreveu este texto em 1946. Não é um texto de subjugação do escritor a um tipo de pensamento ou a uma única via de ser e de existir. Não é isso que Orwell nos quer dizer: o que ele nos quer transmitir é que nós, enquanto seres criadores — neste caso escritores —, não estamos imunes nem ao tempo nem ao espaço. Esta é a minha forma de pensar o que aí vem, com esta maldição antiga que me persegue. Mas, afinal, porque é que escrevo?
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FUNDAMENTALISMOS?
Os eventos do início do mês de Janeiro causaram uma grande celeuma no espírito europeu. Um par de homens irrompe por uma redacção jornalística numa grande capital da Europa, assassina meia empresa e escapa durante dois dias a um sistema gigantesco de policiamento interno. Confirmar-se-á a sua ligação aos extremismos do Médio Oriente porque a sua identidade é completamente revelada por um outro agressor, num outro ataque terrorista. Eis como o sucesso das operações em Paris ficou dependente de algo que pareceu sempre poder fugir aos franceses. Eis como durante os vários dias de escrutínio mediático as cadeias de televisão não se coibiram de exercer o seu papel de liderança no tratamento do caso do terrorismo. Vou tentar resumir as suas falhas na análise do problema. a) a questão por resolver não é o fundamentalismo religioso. Este grassa, grosso modo, nas regiões onde a guerra se tornou um modo de estar, de viver e de pensar. A questão por resolver é de geografia política e nós, cidadãos europeus, temos muito pouco que decidir quanto a ela. Vão ser preciso décadas para devolver um estado de ânimo que impeça verdadeiramente o terrorismo de poder nascer no Crescente Fértil; b) os dispositivos de segurança continuam bem acesos, bem alertas, bem atentos. E sempre estiveram. Mas a sociedade civil 39
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vai ceder ao Polizeistaat do século XXI. E vamos ceder pelo medo e ameaça vindas do Estado com um pretexto anti-terrorista, por aquilo que Foucault designou como dispositivo liberógeno, isto é, consumidor de liberdades. Como garantir que mais segurança não controlará somente mais pessoas perigosas mas mais pessoas no geral?; c) a maior parte da semântica usada pela romaria da Realpolitik europeia é construída para alimentar uma ideia de força, de valores, de códigos éticos e morais. Mas essa é uma ideia fraca — os seus intervenientes são fracos e os últimos vinte anos têm enfraquecido esta abstracção. Quanto à liberdade de expressão, é evidente que o ataque ao Charlie Hebdo é simbólico e que experimenta a nossa capacidade de resiliência, mas forçando a comparação, aquando o 11 de Setembro, alguém disse que a agressão era contra a liberdade financeira? Quanto à integração, só se pode sublinhar que é um tabu — até em França, onde os “banlieues” escondem um “melting pot” pronto a detonar. A integração étnica na europa já deu melhor imagem, talvez durante os anos 60 e 70, em que a mão-de-obra estrangeira era o óleo da máquina; d) poucos foram os analistas que comentaram a questão do terrorismo na sua vertente histórica: enquanto molécula-base, organismo indestrutível de um sistema capitalista dantesco. É assim que eu vejo o problema: um sem o outro não vive. Quem quer condenar o terrorismo tem que condenar igualmente e com a mesma veemência o controlo dos acordos de paz liderados pelos países ocidentais. Os Acordos de Oslo — como todos os acordos desde os anos 90 — foram um desastre e perpetuam as asneiras da divisão do Médio Oriente desde o início do imperialismo europeu, nos finais do século XIX; e) lembremo-nos como alguma comunicação social foi superiormente subsidiária deste imperialismo, conivente com ele (do Daily 40
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Mail ao Le Matin) e meio de expressão de um inequívoco apoio popular. Um apoio sedimentado numa fé inabalável no “fardo do homem branco”, como escreveu Kipling. Partilhámos, aparentemente, com essa época histórica, a mesma convicção do dever civilizador, a mesma histeria racial. No entanto, como a própria mediatização da informação adultera o conteúdo, confunde-se tudo e esquece-se demasiado se realmente se quer falar do problema do terrorismo objectivamente: confundiu-se um muçulmano com um talibã e esqueceram-se do Boko Haram; f ) Robert Fisk publicou recentemente um livro chamado “A Grande Guerra pela Civilização”. Nele resume todas as suas aventuras como repórter de guerra no Médio Oriente e como grande entrevistador das suas figuras de proa. Fisk conhece como ninguém “a fúria dos povos circunscritos nas fronteiras” e a dualidade moral do Ocidente (“terrorismo ou tragédia terrível?”). Ler essa obra prepara-nos para o pior e faz-nos perceber as condições da transformação de sentimentos de injustiça em alienação pró-barbárie; g) e, no meio da amálgama, o medo de um possível próximo Holocausto consegue vir ao de cima — só isto prova a força de um lobby. Fisk alerta-nos também para esta realidade, através de uma minuciosa investigação das relações entre israelitas, americanos e os impacientes palestinianos. Ter visto Benjamin Netanyahu na fila da frente da marcha parisiense faz-me voltar a citar Fisk, quando nos revela que Madeleine Albright, todo-poderosa da Administração Clinton, soltara a seguinte expressão quando se debatia o esforço dos EUA nestes assuntos de externa política: “pertence às partes [avaliar] se estamos a servir bem os legumes”. A faca, essa, já sabemos a quem pertence.
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O ESTADO E AS DROGAS — PARTE 1
Proposta recente do governo português, produto antiliberal do higienismo (cada vez mais constitucionalizado), a expectável proibição do consumo de bebidas alcoólicas a partir de certas horas da madrugada é — ou será — mais um passo conquistado pela tecnologia governamental em direcção àquilo que Antonio Escohotado designou como Estado Terapêutico3, onde a matéria da saúde do indivíduo é assunto cuja decisão recai sempre nas mãos dos especialistas, orientados pela atitude preventiva e formação técnica benfazeja. Pode o Estado retirar-se a si mesmo do papel paternal de um sistema nacional de saúde, principal reduto da solidariedade nacional, mas renega abdicar da supervisão dos deveres do cidadão, exercendo um controlo predatório, vigilante e policial sobre as regras do vício. Importará, então, definir o que é isto de vício e o mundo que ele encerra. A droga, com Hipócrates e Galeno, é vista como uma substância que, em vez de ser vencida pelo corpo, é capaz de vencê-lo, provocando-lhe evidentes alterações. Os gregos escreviam-na phármakon, não muito longe de uma outra, pharmakós, que significa bode expiatório. A droga como signo do ébrio e da expiação: este cenário mantém-se nos séculos posteriores, variando em maior ou 3. Recomendo-vos a leitura de duas obras deste pensador espanhol: O Espírito da Comédia e História Elementar das Drogas, ambos editados pela Antígona.
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menor grau consoante a presença de maior ou menor intervenção policial. A variável mais importante é, na realidade, o justificativo para a intervenção, que vai variando: da caça às bruxas à caça à improdutividade. Na Antiguidade, o Mundo Romano abastece-se de pão, circo e bom vinho. Marco Aurélio é um consumidor assíduo de ópio: teremos que esperar dois mil anos para criar a figura do opiómano, o junkie contemporâneo. O álcool, notam os Antigos, é o único produto a causar alguma celeuma, com a chamada peste dionisíaca. Cedo se revelará um caso político, tendo servido para prender muitos infiéis do Império Romano. A mesma fidelidade é testada com o aparecimento de uma seita, a cristã. Um édito do imperador Valentiniano castiga com pena de morte a celebração de “cerimónias nocturnas”. Santo Agostinho dirá que a ânsia científica — neste caso, o saber pagão relativo à terapêutica — é uma “curiosidade insana”. O elo perfeito de ligação a tudo isto é o aparecimento da bruxa medieval. Conhecemo-la melhor com a bula de Gregório IX, em que o aparato punitivo sobre essa figura demoníaca retém propriedades e pertences. A abominação de que padeciam as bruxas era uma espécie de alquimia em desconformidade com a moral e a ética medieval: alcançavam o erotismo através de substâncias psicoactivas, dançando a aliança com Satanás. Está estabelecido um preconceito terrível, um princípio tenebroso: o de que nenhum acusado poderia ser inocente de todo. Di-lo efectivamente um manual alemão para inquisidores, datado de 1486: os acusados têm de ser submetidos a tortura, a fim de confessarem. A histeria colectiva abrandará a partir do século XVIII, mas as forças satânicas adquirem um novo parasita: já não a bruxa mas sim o estado de reivindicação política. Analisemo-lo melhor na próxima edição.
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O ESTADO E AS DROGAS — PARTE 2
Estranho mundo o da racionalidade europeia, apostado em generalizar a aventura do lucro pelas viagens ao globo e permitindo o sabor do livre-arbítrio à medida que o despotismo se vai reduzindo a uma encenação distante e ausente. Estranho mundo, dizíamos, porque tanto condena como tolera, tanto distrai como concentra. Ainda hoje se discute a morte como pertencente ao indivíduo e já Thomas Jefferson, nos finais do século XVIII, clamava pela eutanásia como direito, que, remetendo mais uma vez para os gregos, que deles parece provir toda a sagacidade transparente das palavras, significa uma morte sã (de euthanatos). Os homens das Luzes recorrem a vários tipos de ajudas contra as dores, das quais os opiáceos se mantêm como preferidos mantimentos. A vida, relembre-se, pertence a cada um, e ninguém melhor do que nós mesmos para decidir o que tomar ou ingerir, seja para abater a dor, seja para abater uma vaga existência. Retomemos a questão das drogas. Os portugueses devem uma certa culpa ao mundo. São suas as primeiras incursões de espírito capitalista no universo das especiarias. Também os italianos promoveram semelhantes incursões. As manufacturas europeias, sem procura na Ásia, não fazem correr rios de ouro e de prata como prometera a descoberta do Novo Mundo. Sendo o vil metal o único modo de pagamento admissível na China, e não querendo 45
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os ocidentais dispensar tanto numerário, rapidamente se criou um problema comercial sem fim à vista. Tomaz Pires de Leiria, Garcia da Orta ou Cristovão da Costa são alguns nomes dos nacionais que se fizeram embaixadores e boticários ao mesmo tempo. Introduzem no Oriente as primeiras vagas de suco da dormideira até que o imperador da China proíbe a importação de ópio em 1729, primeiro, e, depois, o seu cultivo. O motivo baseava-se no abatimento das reservas monetárias dos chineses. Entre portugueses, holandeses e ingleses se disputa o monopólio, sendo que a East India Company o adquire com vigor e audácia. Os lucros obtidos com a proibição de um produto aumentam a expectativa em torno da introdução dos opiáceos em solo oriental. Vários serão os tratados assinados em meados do século XIX, com fim à permanência do estrangeiro, tratados assinados com base na força da invasão. Conhecerá qualquer um tal feito como Guerras do Ópio. O que se assistirá posteriormente é a um processo de dupla moral: quando o comércio se torna legal, visto que sobe ao poder na China uma reconhecida opiómana, os lucros baixaram consideravelmente, levando o Parlamento inglês, em 1890, a considerar o negócio do ópio como uma empresa moralmente injustificável. Em 1838 o mesmo Parlamento recomendava a manutenção de uma fonte de receitas tão importantes. Nos finais do século, a Royal Comission on Opium declarava haver um uso habitual sem consequências para a saúde e para o bem-estar. O progresso novecentista também na química deixava a sua marca. A morfina, a codeína, a atropina, a cafeína, a cocaína, a heroína, a mescalina e os barbitúricos são invenções dessa época do laboratório. Data dessa altura o nascimento de posteriores gigantes da farmacêutica, como F. Bayer, produtor da aspirina. Continuavam os relatórios. A Indian Hemp Drugs Comission, de 1894, declarava que o uso moderado de haxixe não produzia efeitos nocivos. No século XX, 46
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as drogas passam a estar disponíveis nas farmácias e nas drogarias. Mas provém dos Estados Unidos a reacção mais díspar, uma reacção puritana adjacente à progressiva liquidação do Estado mínimo, que mais não fez do que acentuar o monopólio de médicos e farmacêuticos sobre as drogas. Em 1869, cria-se o Prohibition Party, em 1873, a New York Society for the Supression of Vice e, em 1895, a Anti-Saloon League. O objectivo será o de manter os Estados Unidos limpos de ebriedade, jogo e fornicação. A aliança entre este puritanismo estatal e o terapeutismo tornar-se-á mais óbvia nas décadas seguintes. Tão óbvia ligação ficará patente na conhecidíssima Lei Seca, de 1920. Segundo o seu criador, o senador Volstead, tinha que se “fechar para sempre as portas do inferno”, prescrevendo multa e prisão para a venda e fabrico de bebidas alcoólicas e encerrando locais onde se detectasse o consumo. Somente médicos registados poderiam prescrever álcoois. As estatísticas dizem-nos que em 1932 já tinham sido criados quinhentos mil delinquentes, consumando-se a sua revogação em 1933; tinham sido originados os gangsters, figuras sem escrúpulos que se aproveitavam do sistema legislativo para regular a escassez de certos bens. Associações religiosas puritanas, a generalização do pensamento de Ford e da produtividade a todo o tecido social, um Estado federalizado pronto a punir, uma polícia imbatível na perseguição ao criminoso — a essa figura que a ilegalidade do natural criou e fez perdurar até aos dias de hoje —, um ambicioso projecto daquilo a que Thomas Szasz denominou como farmacracia, um “poder assente no monopólio sobre as drogas desejadas por outro”: tudo se interligava em ambientes de guerrilha (América do Sul), ambientes de conveniência (CIA e FBI) e ambientes de consenso (do Convénio de Genebra, em 1936, ao Convénio sobre substâncias psicotrópicas, 1971), com vista à criação do viciado, que, diga-se, se no mundo existira, dele não há referências antes dos jogos de poder do século XIX. 47
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Quem criou, afinal, a plêiade de drogas sintéticas criadas em laboratórios mundialmente certificados e reconhecidos, elaboradas para combater um vício anterior mas executoras de devassidão ulteriores? As mesmas personagens, mostra-nos a história, que condenaram o consumo a segundo as regras de cada um. Legislar sobre o que cada um deve ou não tomar, a que horas o quer fazer e onde o deseja, é um ataque ébrio de politiquice, sempre devidamente amparado pelo que diz o médico de ali e o farmacêutico de acolá.
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ANIVERSÁRIOS DE ABRIL
Os aniversários são datas irónicas, avisos de velhice e aplausos para a idade em movimento. Escrevi, há exactamente um ano, sobre os diferentes condicionalismos em que o 25 de Abril se via envolvido, clamando uma “insustentável leveza” para o mês da Liberdade e oferecendo, de resto, algumas culpas à minha geração pelo abastardamento do seu significado. As acções inconscientes que vão moldando o perfil do país necessitam, não raramente, de olhares finos e atentos por parte de uma classe rara de homens que perde o tempo a observar. Essa capacidade está presente em todos os escalões societários e não depende exclusivamente da formação escolar ou académica, creio. É uma convulsão do ser que emerge doente de uma sociedade crente da sua própria saúde. Assim, o escritor vem espevitar uma certa escatologia e é por isso que rapidamente lhe tiram a pena: torna-se desinteressante, pouco espectacular, um mal-humorado. Giorgio Agamben, filósofo italiano, explora essa vicissitude do que é ser-se contemporâneo. O que define o ser contemporâneo, atalhando o pensamento de Agamben, é a noção do século, a ideia constante de fractura e sutura, a relação traumática com o tempo. A atitude do coevo é de “fixar a sombra” e partir à “descoberta do escuro especial”. É aparentemente paradoxal como é que o melhor olhar do 49
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tempo necessite desse distanciamento ocular, como se o franzir do sobrolho melhorasse a leitura visual do objecto. Em alturas de Abril, sucedem-se os discursos tautológicos e as consonâncias ideológicas. Os aniversários tornam-se, por isso, alturas especiais para jogar com esses limites. Recuperarei dois autores que gosto muito. O primeiro é Fialho d’Almeida (1857-1911). A 20 de Setembro de 1890, escrevia Fialho algo que merece ser revisto em tempos de vaga exaltação democrática: “Do que se trata é de encher o número, custe o que custar”. Fialho está a referir-se ao panfletarismo nacional como não sendo condizente com o olhar que, neste caso, o repórter deveria ter. “Em tal dia, por exemplo, as partes de polícia vêm magríssimas: apenas sete prisões por bebedeira, e três facadas! O bombeiro encarregado de fornecer incêndios não aparece. As ruas não têm drama. Não saiu ainda a Ordem do Exército. (…) Nestas alturas é o repórter quem salva a situação”. Esta dimensão salvífica, como facilmente se deduz, não é de nobre estirpe. O problema está também na redacção que acaba por “ver pela rama, sacrificar a verdade à nota pitoresca, inventar sendo preciso, caluniar, mentir, sem remorso pelos prejuízos causados, nem maior medo aos desforços exigidos pelas vítimas”. As comparações com os dias de hoje não são excessivas, culpa de um jornalismo acomodado, violentado pelo ópio do futebol, acorrentado por uma massa indigente de comentadores políticos — massificados sem estrato ideológico ou doutrinal. O jornalista torna-se “o repórter em diplomata, o homem encarregado de sujeitar a um questionário os heróis do dia, e de inferir das respostas obtidas um certo número de quesitos fulgurantes”. O seu trabalho torna-se vago. Desvia-se. Passar a cumprir “certas curiosidades mórbidas do público” não é condizente com o “modus vivendi dum verdadeiro jornalista”4. E o segundo autor de que farei uso é Almeida Garrett (17991854). Em 1826, num semanário por ele construído, escrevia que 4. Excertos da obra Os Gatos, Vol. III (Lisboa: Clássica Editora, 1969).
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ao estabelecer-se a democracia estaríamos a “fomentar os partidos políticos, que são úteis nas repúblicas e na época dos bons costumes, enquanto num século de corrupção, ou em um Estado mui extenso conduzem a guerra civil”. Um ano depois, afirmava que “as revoluções são sempre desgraça mui grande, e não menor crime”. Para ele, o duplo carácter revolucionário tem também uma dupla causalidade: governantes e governados. Garrett chama-lhe mesmo de “desarmonia”5. À luz destes trechos, parece-me claro que a missão do jornalista não é lutar pela harmonia entre uns e outros, mas sim de tornar as desarmonias evidentes, realçando a sombra do contemporâneo para um suficiente esclarecimento da sociedade civil. Cônscios, os cidadãos deverão então fazer-se sentir no protocolo da votação democrática. A essa prole inacabável de filhos dos partidos, que entram pelo ecrã da televisão da casa de dez milhões de portugueses, ora sem pedir licença, ora esgrimindo falácias, ora contaminando opinantes, aponte-se-lhes o dedo pelo nível insano da sua estéril discussão, bem como ao sistema mediático pervertido pela mecanização das audiências. Recordem-se os artigos nº 37 e 38 da Constituição da República Portuguesa e contrarie-se esta anarquia informativa e o lamaçal noticioso. Não está em causa o direito à informação, mas o dever de quem informa. Um brinde ao Neiva e viva o 25 de Abril!
5. Excertos da obra Doutrinação Liberal (Lisboa: Publicações Alfa, 1990), compilação levada a cabo por António Reis.
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CONSIDERAÇÕES DE UMA POESIA DE VERÃO
1. O poeta veste sempre mal. Não vai pelas estações. Aprendeu, ainda muito pequenino, que de estações só as folhas, caídas ou energicamente suspensas, percebem. Mas o poeta tem sempre ambição de vestir bem, de condizer um certo afastamento do mundo a uma aproximação ténue ao espaço público. Tem sempre vontade de ouvir um elogio, ainda que não dependa muito dele. Quando o ouve, pensa que quem o disse tem pouca metafísica. 2. O poeta tem que estar só. Para estar poeta, precisa da solidão. A solidão está sempre aberta, como uma porta por fechar. Às vezes isso nem é muito claro. Mas o poeta persegue-a sempre. Precisa de se esconder no universo cheio de nada, precisa que este o absorva em boa verdade, precisa que o absolva. Todos os crimes são absolvidos, quando se está só. Claro que o cadastro nunca se apaga. Não; escreve-se. O cadastro escreve-se. O poeta escreve o seu cadastro nas folhas imaginadas, nas páginas brancas. A solidão não é a prisão dele. É a única liberdade que o poeta deixa que se outorgue a um estado de espírito. Todos os estados de espírito corroem a alma do poeta. A solidão amacia-a, acalma-a. O poeta tem mesmo que estar só. Não exageremos, poetas: nem sempre é preciso estar só. Mas é preciso treinar a solidão. A solidão treina-se vagamente, sem grande 53
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plano. Basta sair à rua e não falar muito, cumprimentar um ou outro doido que pensa ser nosso amigo - e que na maior parte das vezes é, mas naquele momento o poeta desconhece esse poder imenso que é a amizade. É preciso afinar a solidão, não deixar que ela se torne hábito. O poeta é o mecânico da sua própria solidão. Nunca tem uma mesa só para ele. Procura vários espaços para ter poiso. Nunca está devidamente confortável - talvez isso nem sequer exista. Vaguear entre mesas: processo pelo qual se verifica a necessidade da solidão por parte do poeta. 3. O que é que o poeta bebe? Água às refeições, por vezes um ou outro refrigerante provavelmente nocivo à saúde. O álcool é o seu compagnon de route — cerveja em ocasiões muitas e diversas; gin’s quando sente uma necessidade ingénua de socializar com o copo cheio de adereços como paus desfeitos de canela, pimenta rosa por esmagar, cascas de limão cuidadosamente retorcidas, e no final um nome em inglês; whisky quando pressente a podridão do ser e do estar e então engole a podridão do malte, sempre mais novo - há-os de 12 e 18 anos -, quase como uma pedofilia alcoólica do instinto de matar a alma. O álcool nunca renova. Mas a bebida que torna o poeta intimamente ligado consigo mesmo é a água tónica. Quantos louvores devem ser encomendados a Jakob Schweppes por ter acedido a fazer o que fez: uma água que é tónica. Nesse ano de 1787 Jakob resolveu patentear um líquido amargo e sem sabor, transparente e duro de se beber. A água tónica não tem álcool. Deve beber-se fria e com duas a três pedras de gelo, acompanhadas com uma bruta rodela de limão. Em situações de charme, o poeta adiciona-lhe o interior suculento de um maracujá, para efeitos visuais, mas diz “não” às preparações morosas do barman. É tudo feito com brutalidade de quem precisa mesmo de dar um 54
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primeiro gole. Claro, recomenda-se que se acompanhe com um café. O primeiro gole, aliás, sabe sempre melhor depois do café. O poeta é rijo nos olhares e rigoroso nos beberes. O primeiro gole na tónica perdurará a visão robusta e céptica. Depois disso, já se sabe: Bom dia, é um café e uma água tónica. 4. Importa que o poeta saiba estar próximo da realidade, para devidamente fugir dela, isto é, que não seja o produto final do seu próprio alheamento. 5. O poeta não acredita em viver bem. Acha que a vida saudável é um engano. Mais: acha que viver saudavelmente seria trágico para quem desacredita, irredutivelmente, na estabilidade das coisas e dos seres. 6. O poeta desconfia dos dias de sol. Alegra-se com a cor azul do céu, a luz reflectida nas árvores sacudidas ao vento. Alegra-se igualmente com a nudez propositada das meninas bonitas. Mas desconfia sempre da possibilidade de incêndio, do refúgio das pessoas às calorosas horas do dia e do amolecimento generalizado. 7. Não se transtornem pelas frases inacabadas, a ciência da poesia é não ter ciência alguma, por isso o inacabado pode ser animado: “Ai / se não houvesse vento / (não consigo olhar para outra coisa que não o nada / o prazo criou a pressa / e meu corpo urge em se balançar para o nada) / o sol já lá vem em forma de azul / e eu não tenho rumo nem trouxe remos / e há nisto em mim um erguer lento de um troféu despejado na rua / e estou segurando nestes versos a poeira que ele levantou / então bufa / diz-me o vento ao ouvido.”
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OBRIGADO
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