Revista Gente - 06

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gente GESTÃO DE PESSOAS | revista da Progesp

volume 4 | edição 05



estética da edição As páginas desta edição de Gente estão ilustradas com obras do pintor afro-americano Norman Lewis (1909-1979). As obras foram gentilmente cedidas pela Michael Rosenfeld Gallery LLC.



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preconceito racial pode ser analisado a partir de vários ângulos: políticos, sociais, econômicos e culturais. Entendemos como uma questão histórica e complexa. A esse respeito, nesta edição da revista, optamos por trilhar prioritariamente por depoimentos de servidores de nossa universidade. Servidores que se reconhecem originários da cultura negra e que em suas trajetórias, de certa forma, sofreram na própria pele as subjetividades do preconceito. Não pretendemos resolver problemas ou pensar profundamente sobre o assunto. Entretanto, acreditamos que trilhar caminhos a partir das bordas, das brechas, dos lugares não comuns, é possível e, sendo brancos ou negros, voltarmos mais conscientes da urgência de ativar a memória coletiva para que a consciência planetária se instaure e construa humanos mais humanos. Mirian Dantas

Pró-Reitora de Gestão de Pessoas - UFRN


aos leitores


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racismo, herdado do colonialismo, manifesta-se até hoje a partir de diversos campos, muitos deles subjetivos. Entretanto, ressalta o viés das características físicas, como a cor da pele, a textura do cabelo, as feições do rosto etc. O colonizador europeu tentou, em seu discurso, colocar os povos africanos e indígenas como naturalmente atrasados e desprovidos de uma “alta cultura”. Os colonizados precisavam ser educados a partir de elementos exteriores a eles próprios, como o cristianismo, a ciência, a economia e até a arte. Só assim poderiam ser inseridos na História das Humanidades e da civilização.

plexo e histórico. Apesar disso, o fio do humano foi escolhido. Ouvimos alguns professores, funcionários e alunos que se identificam como originários da cultura negra e como eles enfrentaram e enfrentam o cotidiano de trabalho, a trajetória acadêmica e a vida. Agradecemos a eles pela coragem e pelo posicionamento de reconhecer os preconceitos para além dos lugares-comuns. Do ângulo institucional, esclarecemos, a partir do texto de Rodrigo Lima (PROGESP), como as normas de cotas funcionam hoje na UFRN.

Nessa direção, de qualquer lugar que estejamos Com base nessas normatizações impostas, ins- enxergando essas questões, faz-se necessário taurou-se e se alastra até hoje, de forma clara ou que intelectuais, políticos, poetas, enfim, todos não, racional ou subjetiva, as perversidades do se posicionem com atenção redobrada. Tomanpreconceito racial. Não sabemos se, em outros do as palavras de Zygmunt Bauman (1999, p. futuros, as normatizações colonizadoras mo- 11): “... o preço do silêncio é pago na dura moedernas vão tanger essas questões para os ventos da corrente do sofrimento humano. Fazer (penda prudência, da conciliação, da tolerância, do sar) as perguntas certas constitui, afinal, toda a reconhecimento das diferenças ou disseminar diferença entre sina e destino”¹. ódios generalizados numa geopolítica do caos. Enquanto isso, estamos visualizando fragmentos de conscientização, de maneira mais ampla,sobre os preconceitos e as formas de combater cada um deles, bem como enfrentar, desmascarar etc. Tentamos, nesta edição da revista, olhar essas questões a partir de “falas autorais”. Conside- 1.BAUMAN,Zygmunt. Globalização: as conseramos, é claro, que os depoimentos registrados quências humanas. Tradução de Marcus Pennão podem dar conta de um assunto tão com- chel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.


sumรกrio


Artigos LEI DE COTAS RACIAIS: seus reflexos nos concursos públicos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Rodrigo Otávio Souza Lima

Depoimento de Sanzia Gomes Máximo, Membro da Comissão das Cotas na UFRN História e memória da escravidão no Seridó: a perversão do silêncio e as vozes que não se deixam calar

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Muirakytan K. de Macêdo

Depoimentos produzidos a partir de entrevistas Produtor de um saber acadêmico Sandro Cordeiro da Silva

Quando o caminho da inteligência quebra fronteiras Gláucio Bezerra Brandão

A fala de um estudante negro Renato Lima Santos

Uma voz plural Joatã Soares

Quando se nasce determinada Vilma Vitor Cruz

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RESENHAS A COR PRETA, Baseada no livro “História de uma cor”, de Michel Pastoureau livro da EDUFRN Quando a pele incendeia a memória, DE Angela Almeida Ensaio Fotográfico Quando a PROEX vai à África Poesia POESIA DE Marize Castro

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LEI DE COTAS RACIAIS SEUS REFLEXOS NOS CONCURSOS PÚBLICOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Rodrigo Otávio Souza Lima 1

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om a publicação da Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte passou a reservar 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para a carreira do magistério e doscargos técnico-administrativos em educação aos candidatos autodeclarados negros, sendo aplicada sempre que o número de vagas oferecidas seja igual ou superior a 03 (três). A referida lei, como política afirmativa, possui vigência pelo prazo de 10 anos e visa equanimizar 1 Mestre em Gestão de Processos Institucionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (MPGPI/ CCHLA/UFRN). Especialista em Direito Administrativo (CCSA/UFRN). Advogado e Servidor técnico-administrativo em educação, UFRN. E-mail: rodrigolima@reitoria.ufrn.br

a composição dos servidores da administração pública federal com os percentuais verificados no conjunto da população brasileira. Dessa forma, caso em 2024 ainda se verifique uma grande distorção nesse quesito, o Poder Legislativo poderá prorrogar a validade dessa política ou adotar novas ações nesse sentido. Mas quem são os beneficiários de fato dessa política? Quem pode ser considerado negro em um país altamente miscigenado? O fato é que, desde o advento da lei de cotas, terminologias como colorismo, identificação racial, diversidade, entre tantas outras, tornaram-se frequentes nas mídias, acirrando-se os debates sobre o tema. Para fins


demográficos, caracteriza-se a raça negra pela A UFRN, por força da legislação federal acerca junção da população de cor preta e parda. da matéria, regulamentou internamente a veAté julho de 2016, a concorrência às vagas para rificação por Comissão Específica das autodecandidatos negros se dava apenas por meio de clarações dos candidatos às vagas reservadas às autodeclaração, disponível no próprio formu- pessoas negras (pretas e pardas) nos concursos lário de inscrição. Por meio dela, o candidato públicos para as carreiras do Magistério Federal e atestava ser negro (preto ou pardo), conforme dos cargos Técnico-Administrativos em Educao quesito cor ou raça utilizado pela Fundação ção, por meio da Resolução nº 197/2016-CON3 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – SEPE, de 18 de outubro de 2016 . IBGE. Registre-se que o sistema de classificação adotado pelo IBGE utiliza as categorias “branco, preto, pardo, amarelo e indígena”2, e também é coletado mediante autodeclaração do indivíduo, gerando críticas por determinados segmentos em razão da confiabilidade dessas informações, uma vez que traduz uma percepção de si mesmo no ato da entrevista e que, posteriormente, pode vir a ser alterado. No entanto, entre os instrumentos disponíveis com espectro nacional, há de se reconhecer a importância e a singularidade dos dados gerados pelo IBGE, servindo de parâmetro para diversas pesquisas.

Com a publicação da Orientação Normativa SEGRT/MPDG nº 3, de 1º de agosto de 2016, os candidatos passaram a não só se autodeclararem negros como também a se submeterem, ao final do concurso, a uma entrevista com uma Comissão para verificar a veracidade dessa informação, momento em que são aferidos os aspectos fenotípicos (características físicas). Essa medida foi implantada na tentativa de dimunir os casos de fraude no sistema de cotas. Dessa feita, caso o parecer da Comissão seja desfavorável, o candidato será excluído das vagas reservadas às cotas, garantindo-lhe antes a possibilidade de recorrer. 2 IBGE. Manual do Recenseador– CD-1.09. Censo 2010. Rio de Janeiro, 2010, p. 191-192. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/instrumentos_de_coleta/doc2601.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2018.

A verificação fenotípica sofre severas críticas por parte das ciências humanas, principalmente da Antropologia e da Sociologia, que se filiam à ideia de identidade racial, ou seja, “o sentimento 3 Disponível em: <https://sigrh.ufrn.br/sigrh/public/colegiados/filtro_busca.jsf>. Acesso em: 15 mar. 2017.


de pertencimento a um grupo racial ou étnico, decorrente de construção social, cultural e política” (OLIVEIRA, 2004). Há aqueles que afirmam que a Orientação Normativa nº 03/2016 instituiu oficialmente um Tribunal Racial. Já os que a defendem justificam que a Comissão é necessária para garantir a ocupação das vagas por pessoas a quem à norma realmente se dirige, ou seja, negras, desqualificando a noção de tribunal ou de corte racial, uma vez que não há propriamente um julgamento, considerando, ainda, que o parecer emitido pela comissão não terá efeitos aplicáveis para concursos públicos futuros, sendo válido apenas para aquela seleção específica.

A grande dificuldade relatada pelos membros dessas Comissões se dá com a identificação e distinção dos pardos, em especial dos pardos -brancos, em contraponto com os efetivamente brancos. Segundo definição de pardo no dicionário Aurélio4 tem-se: “Mulato; De cor intermédia entre o preto e o branco, quase escuro”. Discute-se se os candidatos pardos que não apresentam de forma marcante traços de sua ancestralidade negra poderiam se beneficiar das 4 Disponível em: <https://dicionariodoaurelio. com/pardo>. Acesso em: 15 mar. 2017.


cotas em concursos públicos. Isso porque o preconceito em nosso país é caracterizado como de marca, que segundo Oracy Nogueira5“se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque”. A falta de consenso e o alto grau de subjetividade, aliada à percepção própria de cada membro podem ocasionar questionamentos pelos candidatos eliminados, levando muitas vezes à judicialização da questão. Como alternativa para mitigar um pouco essa discricionariedade, foi estabelecida na norma interna da UFRN (Res. nº 197/2016-CONSEPE) que a eliminação do candidato na condição de cotas raciais somente se efetivará por decisão unânime entre os membros da comissão de verificação. Assim, prevalecerá o senso comum de um grupo de pessoas, refletindo o pensamento de uma parcela da sociedade, e não apenas uma opinião individualizada.É importante deixar claro que o conceito de pardo albergado na

Lei de Cotas (Lei nº 12.990/2014) restringe-se ao pardo com afrodescendência, estando assim excluídos os pardos filhos de brancos com indígenas ou de cor amarela. Em junho de 2017, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, reconheceuporunanimidade a legitimidade da Lei 12.990/2014, motivada pelo dever de reparação histórica decorrente da escravidão e de um racismo estrutural existente na sociedade brasileira.

Do ingresso de negros nos concursos públicos da UFRN

Para verificar o reflexo da política de cotas raciais no âmbito da UFRN, analisaram-se os resultados obtidos nos concursos públicos realizados desde o advento da Lei nº 12.990/2014, cujos dados, extraídos do sistema SIGRH (www.sigrh.ufrn. br) e também fornecidos pela Coordenadoria de Planejamento e Gestão de Pessoas(CPGP/DDP) e do Núcleo Permanente de Concursos (Com5 NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca perve), seguem no quadro ao lado, separados nas e preconceito racial de origem – sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre rela- carreiras do magistério federal e dos cargos técções raciais no Brasil. In: NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto nico-administrativos em educação. quanto branco; estudos de ralações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz. 1998.NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo, Edusp, 2000.


SERVIDORES DOCENTES E TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS COM ENTRADA VIA COTAS

Exercício

Qtd. Editais Publicados

Candidatos Negros Inscritos (Deferidas)

Candidatos Negros Aprovados(*)

Candidatos Negros nomeados nas vagas de cotas

Candidatos Negros classificados nas vagas de ampla concorrência

MAGISTÉRIO FEDERAL (Magistério Superior e EBTT)

2014

08

48

01

0

01

2015

06

67

06

0

06

2016

09

147

07

0

07

2017*

07

128

01**

0

01

TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS EM EDUCAÇÃO – NÍVEL E

2014

01

292

11

2015

02

285

24

2016

03

203

10

2017

01

501

41

TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS EM EDUCAÇÃO – NÍVEL D

2014

01

304

11

2015

02

2.415

81

2016

02

2.427

58

2017

02

2.235

63

TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS EM EDUCAÇÃO – NÍVEL C 2014

01

541

01

2015

02

883

40

2016

0

0

0

2017

02

504

10

0

0

(*) Considerando o limite máximo de aprovados imposto pelo Anexo II do Decreto nº 6.944/2009 (**) Quantitativo poderá sofrer alterações em razão da existência de dois editais com provas ainda em andamento. Fonte: Sigrh



A distorção marcante no quantitativo de candidatos negros nomeados nas vagas de cotas do magistério e dos cargos TAE pode ser explicada pelas peculiaridades de cada carreira, em especial, o número de vagas ofertadas nos editais e o surgimento de novas vagas durante a validade do concurso. Vale considerar na variável aqueles candidatos negros que não se declaram nessa condição na ficha de inscrição por motivo de foro íntimo ou em razão da inexistência de vaga imediata para a cota racial. É sabido que nos certames para professor dificilmente se ultrapassa o quantitativo de uma vaga por área de conhecimento, fazendo com que não haja reserva imediata para as cotas raciais. Ademais, a probabilidade de surgirem novas vagas durante a validade do concurso é bastante reduzida. Constata-se, pelos dados acima, que apesar de haver o ingresso de candidatos negros na carreira do magistério, tal admissão não se dá pela política de cotas mas sim por meritocracia. Todos os 15 (quinze) candidatos autodeclarados negros, analisados no período de 2014 a 2017, lograram êxito nas primeiras colocações ao final do concurso (1º e 2º lugar). Já a carreira dos cargos TAE possui grande rotatividade se comparada com o magistério, fazendo com que sejam convocados mais candidatos durante o seu prazo de validade, possibilitando a aplicação efetiva da política de cotas. Um fator que impede a obtenção de um maior número de candidatos e, consequentemente, de se aumentar o número de cotistas raciais classificados se dá pela limitação no número de aprovados imposta pelo Anexo II do Decreto nº 6.944/2009. Por tal dispositivo legal, os candidatos não classificados no número máximo de aprovados, ainda que tenham atingido nota mínima exigida,ficam automaticamente reprovados no concurso público.


Em que pese a obrigatoriedade de reserva de cotas para negros nos concursos públicos realizados pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, vislumbra-se pelos resultados obtidos, que na carreira docente, a política, por si só, não surte os efeitos desejados para equacionar o ingresso de profissionais afrodescendentes no quadro de servidores, demonstrando que ainda é preciso repensar em outras ações ou novas políticas de modo a garantir a inserção dessa população no serviço público, trazendo, assim, ganhos com o multiculturalismo, bem como inclusão social e o respeito à diversidade.

Referências BRASIL. Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Publicado no DOU de 16/06/2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/ l12990.htm>. Acesso em: 11 abr. 2017. BRASIL. MPOG. Orientação Normativa SEGRT/MPOG nº 3, de 1 de agosto de 2016. Dispõe sobre regras de aferição da veracidade da autodeclaração prestada por candidatos negros para fins do disposto na Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Publicada no DOU de 02/08/2016. Disponível em: <https://conlegis.planejamento.gov. br/conlegis/pesquisaTextual/atoNormativoDetalhesPub.htm?id=12669>. Acesso em: 11 abr. 2017. IBGE. Manual do Recenseador – CD-1.09. Censo 2010. Rio de Janeiro, 2010, p. 191-192. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/ visualizacao/instrumentos_de_coleta/doc2601. pdf>. Acesso em: 11 abr. 2017.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem – sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil.In: NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco; estudos de ralações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz. 1998. NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo, Edusp, 2000. OLIVEIRA, Fátima. Ser negro no Brasil: alcance e limites. Estud. av., v.18, n.50, p. 57-60,abr. 2004. Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100006>. Acesso em: 12 ago. 2017. UFRN. Resolução nº 197/2016-CONSEPE, de 18 de outubro de 2016.Emite parecer favorável e regulamenta a verificação das autodeclarações dos candidatos às vagas reservadas às pessoas negras, pretas e pardas, nos Concursos Públicos para as carreiras do Magistério Federal e dos cargos Técnico-Administrativos em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Disponível em: <http://www.sigrh.ufrn.br/sigrh/public/colegiados/resolucoes. jsf>. Acesso em: 12 ago. 2017.


as cotas raciais na ufrn Sanzia Gomes Máximo é técnica em Secretariado, trabalha na PROGESP e faz parte da Comissão de Cotas. Ela nos relatou um pouco do seu trabalho na Comissão. As Cotas Raciais na UFRN Com o objetivo de diminuir as disparidades entre pessoas de diferentes etnias raciais e de democratizar o processo de acesso dessas pessoas no quadro de servidores da nossa Universidade, a UFRN regulamentou internamente, no ano de 2017, conforme lei, o Sistema de Cotas que reserva um percentual das vagas para os candidatos negros; viabilizando a possibilidade de proporcionar aos candidatos que se autodeclaram negros (pretos ou pardos) a condição de igualdade e de concorrência para ingresso na Instituição.

Trabalho na Comissão Ter participado da Comissão de Cotas foi uma experiência positiva, com uma equipe bastante envolvida, de modo que o consenso, a convicção e o engajamento contribuem e favorecem positivamente para o bom resultado dos trabalhos realizados. Por ter sido a primeira Comissão, um trabalho novo, tivemos algumas dificuldades comuns a outras instituições,no que tange aos conhecimentos específicos para a identificação, de forma mais clara,dos traços que caracterizamos que se declaram pardos, em sua diversidade,além de que a análise do fenótipo de uma pessoa é, na minha opinião, algo bem delicado,principalmente quando ela já se autodeclara negra ou parda.



História e memória da escravidão no Seridó: a perversão do silêncio e as vozes que não se deixam calar A seguir fragmentos do artigo do Prof. Muirakytan Macedo.


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seridoense é um povo branco, alto, cabelos e olhos claros, herança fenotípica de sua ascendência portuguesa. Algum tempo atrás, esse era o estereótipo regional alardeado pela memória e pelos discursos regionalistas. Fiando-se nesse credo, o Seridó, antiga ribeira pecuarista das capitanias do Norte, parecia ter passado incólume à mestiçagem multissecular e, mais espetacularmente, parecia ter experimentado a escravidão de maneira que esta, a despeito de sua violência física e simbólica e das ações de homens e mulheres escravizados, não teria deixado marcas em sua história.

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ssa imagem enganosa foi modelada com a intenção de “branquear” os sujeitos que construíram essa região ao longo do tempo, de forma a conceder protagonismo histórico somente às elites que se queriam brancas. No entanto, as evidências de nossa diversidade étnica saltam aos olhos em um pequeno passeio pelas ruas de nossas cidades e a um exame de nossa documentação setecentista e oitocentista.


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rimeiro discutamos os territórios e os agenciamentos econômicos coloniais da escravidão em meio à pecuária em regiões afastadas do agreste e do litoral, mais precisamente no sertão onde impera o clima ste texto se propõe a realçar a denúncia da semiárido. Consideremos, a princípio, que a perversão identitária que, invisibilizando América portuguesa que se articulou à dinâmium conjunto de sujeitos sociais, tenta ce- ca mercantil colonial extrapolou nas capitanias gar a visão histórica, seja no Seridó, seja em ou- do Norte a matriz da produção açucareira. Entros sertões. Nesse sentido, em um caráter muito tão, necessário se faz uma mirada que entenda ilustrativo, mas com base em pesquisas acadêmi- as costuras interiores da economia e da sociecas, destacamos aspectos que julgamos relevantes dade, da maneira como aquele universo articupara essa discussão. Alguns deles versam sobre a lava e atava diversas atividades, para além das história da escravidão nos sertões seridoenses; demandas do mercado europeu. É nessa direoutros, advindos daquele meio espaço-temporal, ção que o complexo do engenho de açúcar foi a ainda guardam suas formas no patrimônio mate- pedra angular da organização socioeconômica e cultural do litoral nordeste, porém, não era aurial e imaterial da história presente. tossuficiente, necessitava do suporte alimentício das fazendas de gado do semiárido.

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pesar de os sertões, na direção da fronteira oeste, serem campos que serviam à interiorização da colônia, é interessante que levemos em conta que o “projeto” para exploração colonial respeitava a lógica geopolítica da administração metropolitana, desde os últimos anos do reinado de D. João V, atingindo seu ápice com o ministro Sebastião José de Carvalho, posteriormente Marquês de Pombal. Tratava-se de clara política colonial que considerava o incremento populacional como um dos catalizadores imprescindíveis à equação da riqueza das nações (SOUZA, 1999, p. 114). Assim, a expansão da fronteira pastoril para os sertões, além de ser necessária à produção do açúcar, fazia-se urgente para conquistar mais territórios para a colonizapós as Guerras dos Bárbaros (PUNTOção. Ademais, os sertões poderiam contar com as NI, 2002; MACEDO, 2007) a ocupação sobras populacionais que não se ajustavam à vida colonial dos sertões fluiu com maior dos engenhos e das vilas litorâneas, sem contar as oportunidades que esse espaço interiorano pode- velocidade, especialmente motivada por terras ria oferecer para aqueles que almejavam ter ca- para o criatório, mas também se aproveitando bedal próprio aventurando-se nas lides pastoris. da pressão populacional na zona açucareira, que agia como “válvula de escape” para os colonos empobrecidos que não encontravam colocação nas vilas e nas lavouras sob a égide da produção do açúcar (SILVA, 2004, p. 216). Os sertões tornavam-se assim um horizonte de possibilidades e de liberalidades inserido da hierarquia social, tanto para os desclassificados do açúcar quanto para os escravos fugidos e os indígenas já sob o controle da administração régia.

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a colonização da ribeira do Seridó, Capitania do Rio Grande do Norte, apesar de os homens brancos terem sido predominantemente os sesmeiros e donos de fazendas de criar, a mãodeobra de escravizados negros foi indispensável. Se na sociedade e na economia os vaqueiros apareciam com destaque nos primeiros tempos coloniais, não significa que todos eram brancos, visto que figuravam em meio à população significativa de escravizados negros e indígenas (MACÊDO, 2007). A rigor, na ribeira do Seridó, não existiam grandes escravarias que justificassem nas fazendas a existência de senzalas. Isso em razão de que a maior parte dos criadores possuía um conjunto de cativos inferior a cinco e, muitas vezes, ou não os possuíam ou possuíam somente um escravo.

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om um número expressivo de escravos, nos inventários post mortem que pesquisamos, só os encontramos nas duas pontas do período colonial: muito antes da Grande Seca, quando, em 1774, José Carneiro Machado dispunha de 10 escravos; e no ano em que começou a longa estiagem, quando o afortunado João Marques de Souza possuía ainda 20 cativos1 (MACÊDO, 2007).


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s dados históricos e as conclusões a que chegamos evidenciam a trama africana e afrodescendente na urdidura social seridoense. Dessa maneira, o “branqueamento” da história seridoense consolida-se como um ardil revelador de táticas sociais autoritárias. Tal procedimento surge quando determinados grupos querem se afirmar no poder a qualquer custo, inclusive invisibilizando a diversidade social, seja na memória, seja na história. Essa prática era moeda corrente na algibeira historiográfica e memorialística e não escapava ao discurso médio sobre a região, proferido pelos próprios seridoenses ou estudiosos renomados (MACÊDO, 2012).

âmara Cascudo, por exemplo, em viagem pelo Seridó, a despeito de seu treinado olho etnográfico, não realçou traços significativos da presença negra entre os seridoenses (CASCUDO, 1984). No entanto, ele mesmo escreveu sobre a Irmandade dos Negros do Rosário de Caicó (CASCUDO, 1962). Não havia como encolher a participação dos afro -brasileiros na história do sertão pecuarista. As irmandades católicas negras, considerando sua persistência e estatura histórica, eram e continuam a ser monumentos dessa memória, que, para além da coreografia folclorizada, varam com seus espontões por quase três séculos de resistência identitária (GOULART, 2014). Tais confrarias são uma prova de extensa envergadura que, somente quem não quer ver, não a toma como realidade autoevidente da onipresença negra na formação étnica do Seridó no passado e no presente. A primeira confraria nesses moldes, no Seridó, nasceu próxima à época territorialização da região.


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os séculos XIX e XX, outros grupos ligados à devoção do Rosário foram criados na região. Documentos de arquivos seridoenses e celebrações até hoje existentes dão conta dessas irmandades em Jardim do Seridó, Currais Novos, Acari, Serra Negra do Norte e Jardim de Piranhas. Atualmente, continuam Freguesia da Gloriosa Senhora Sant´A- atuantes somente as confrarias de Caicó, Jardim na foi criada em 1735, e já em 1771 foi do Seridó e Serra Negra do Norte. (MACÊDO, criada, por iniciativa de um grupo de 2014; GOIS, 2014; GOULART, 2014; MORAIS, negros cativos e livres, a Irmandade do Rosário 2014). dos Homens Pretos. No início, a irmandade se congregava na igreja de Sant´Ana, orago da sede da freguesia, enquanto seus membros acumulavam recursos financeiros para a construção de um templo próprio, que foi erigidona segunda metade do século XVIII. Data de 16 de junho de 1771 o documento intitulado Termo de Aceitação que Fazem os Irmãos das Constituições deste Compromisso. Nele, constam as constituições do compromisso da irmandade, que deviam ser seguidas e respeitadas por todos os seus membros (MACÊDO, 2014).

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uanto aos sinais, estes não cessam e não se deixam calar. A Praça da Liberdade em Caicó é outro testemunho potente. A história dessa praça começou quando foi construído o mercado público naquele local, inaugurado em janeiro de 1870. Na época, o lugar em cujo pátio se realizavam as feiras, passou a ser conhecido como Praça do Mercado, centro comercial da cidade (ARAÚJO, 2003). Esse local também foi palco da Revolta do Quebraquilos, cujos revoltosos invadiram os estabelecimentos comerciais de então destruindo pesos e medidas do sistema de mensuração imposto pela monarquia (MEDEIROS, 2003).

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s feiras perduraram naquele espaço até ser construído o atual mercado público, inaugurado no dia 23 de fevereiro de 1918. À nova praça foi dado o nome de Praça da Liberdade. Mas que liberdade? A liberdade dos escravizados. A antiga Praça do Mercado tinha sido também palco do movimento abolicionista em Caicó em fins do período monárquico. Ali seus integrantes se reuniam e discutiam alforrias e outras formas de libertação dos cativos pelas vias legais. Mas a alforria não foi realizada somente por obra e graça dos senhores de escravos. Muitos dos cativos, a duras penas,conseguiam produzir uma suada poupança que poderia comprar sua liberdade, de seus filhos e das mulheres. Muitos negros lutaram arduamente até para assegurar a dos “nascidos livres”, pois o fato de ser negro poderia colocar em dúvida seu estado de liberdade, ou aquela conseguida com alforria. Em muitas ocasiões, a legitimidade de seu estatuto de livre ou de liberto foi questionado, provando que a liberdade dos negros e mestiços era, em qualquer caso, precária, pois poderiam juridicamente voltar a ser escravizados (CHALHOUB, 2012; PEREIRA, 2014).


A

o discutir esses processos de invisibilização, por vezes, temos a sensação de que estamos provando a existência do que é óbvio, especialmente nos dias de hoje, quando a cidadania da memória e da história afrodescendentes se encontram em evidência. De qualquer forma, julgamos que pelo menos tentamos fornecer, com dados de pesquisa, elementos que possam alimentar o debate. Com isso, lembramos que para muitos parece “chover no molhado”, entretanto, devemos nos posicionar para que não se perca de vista a agência afro-brasileira na história seridoense.


Muirakytan Macêdo responde... Qual a origem do seu nome? Muirakytan é nome de amuleto paraense. É a pedra que Macunaíma, no livro de Mário de Andrade, busca heroicamente. Na narrativa mítica, na qual Mário se inspira, a pedra era pagamento saldado pelas “amazonas” pelos esforços sexuais dos homens raptados pelas mulheres daquela tribo, com fins de procriação. Geralmente, um muiraquitã de cerâmica ou de jade em formato de rã verde, é entregue aos nativos quando devolvidos à selva. Nasci em Caicó, portanto, muito longe das terras paraenses. Ocorre que meu pai, leitor esmerado de Almanaques,

leu a lenda e gostou do complicado e inusitado nome. Já escutei todas as possibilidades fonéticas de meu nome proferidas em consultórios, telemarketings, guichês e chamadas na escola e nas universidades. É um nome facilmente associado ao glorioso Trio Irakitan, tendo sempre alguém perspicaz para me lembrar dessa associação como se eu escutasse isso a primeira vez. Cansado de explicar que não tenho parentesco com o grupo ou fui componente dele, devolvo com uma expressão generosa de completa surpresa. Fica mais fácil não estragar a descoberta intuitiva dos outros.


Muirakytan Macêdo é professor de História, lotado no Departamento de História do CERES, campus de Caicó. Graduado em História. Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais pela UFRN.


Sou professor do Departamento de História do CERES, campus de Caicó.

Um pouco do seu percurso de estudos e vida... Em Caicó, filho de bodegueiro (Seu Macêdo), e da mais generosa mãe e cozinheira da Terra (D. Baiá), passei toda a infância e a adolescência no circuito:Praça do Rosário – onde joguei muita bola, mais em quantidade que em qualidade; Escolas: Kennedy, CEJA, Monsenhor e novamente CEJA – sempre escolas públicas;Rio Seridó – onde aprendi a pescar e a nadar;Biblioteca Olegário Vale – onde descobri a maior parte dos mundos que até hoje habito;Bar das festas de Santana e Rosário – não bebia, mas era garçom. Com a primeira comissão, comprei na Cigarreira de Bezerra um livro: a biografia de D. Pedro II; que de tão chato, nunca cheguei a ler. Caicoense militante. Faltam-me 146 anos para ser bicentenário. Historiador formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestre e Doutor em Ciências Sociais na mesma universidade, onde também concluí o estágio pós-doutoral em Educação. Defendi a Tese “Rústicos Cabedais: cotidiano e patrimônio familiar nos sertões do Seridó (Século XVIII)”, que foi publicada em livro da editora Flor de Sal.

Publiquei também “A Penúltima Versão do Seridó – espaço e história no regionalismo seridoense”; e organizei outros livros: “Caicó – uma viagem pela memória seridoense”; “Acari: berço da cultura e religiosidade na saga de um povo hospitaleiro”; “Mestres do Seridó – Memórias” e “Câmara Municipal de Caicó – história e memória”. Pesquisei sobre a escravidão e a história do cotidiano familiar no Seridó entre os séculos XVIII e XIX. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre a história do corpo no Seridó, também no mesmo período.


Quando nasceu o “historiador” em você? Meu primeiro vestibular foi para Matemática, pois gostava dessa abordagem formal da ciência. Mas comecei a fugir das aulas para assistir às aulas de História da Filosofia. Daí para a História foi um pulo. Fiz outro vestibular e terminei História Bacharelado em Natal. Creio que, quem nasce e mora muito tempo no Seridó, carrega uma bagagem imaginária muito rica. Como historiador/professor e pesquisando em Caicó, julguei que tinha a obrigação de estudar o meu entorno, afinal, foi ele que me moldou corpórea e espiritualmente. Existiam muitos trabalhos já escritos sobre a história do Seridó, mas poucas com uma abordagem acadêmica sistemática. Então, parti das veredas já trilhadas e fui abrindo outras. A razão de estudar o sertão do semiárido também foi um ato crítico. Afinal, grande parte da história do Rio Grande do Norte ainda parece ser narrada a partir do litoral. Queria escrever a contrapelo, fazendo jus ao tesouro mítico e histórico dos sertões profundos.

O lugar do negro no campo da construção do conhecimento científico... A questão da história dos afrodescendentes, por limites de minha inteligência e pela ampulheta veloz de minha vida, restringiu-se, em minhas pesquisas, somente aos séculos XVIII e XIX. Não saberia opinar com autoridade sobre a temática no contexto contemporâneo, sei que, dadaa emergência das questões étnico-raciais, já existem muitos estudos realizados e em andamento para os tempos de hoje.


depoiment


Os depoimentos a seguir foram construĂ­dos a partir de entrevistas, priorizando o lugar da fala autoral, com interferĂŞncia editorial apenas na forma do texto.

ntos



produtor de um saber acadêmico Sandro da Silva Cordeiro

“A população negra tem menor acesso à educação: apenas 6% dos homens negros e 9% das mulheres negras possuem ensino superior no país”. Dados de pesquisa do IBGE- 2017.

em Pedagogia, em 2004, pela UFRN. Logo em seguida, entrou no Programa de Pós-graduação do Centro de Educação, onde obteve as titulações de mestrado e doutorado, com uma pesquisa na área de Educação e Mídia, enfatizando práticas educativas e formação do professor. Em 2010, passou no concurso para professor da UFRN. Hoje, é Coordenador Pedagógico no NEI.

Uma carreira de conhecimento de sucesso, porém, nem sempre fácil, consciente de que a cor le é Professor da UFRN, lotado no NEI – Núcleo de Educação Infantil. Registro: de sua pele, muitas vezes, interferiu no camiSandro da Silva Cordeiro. Nasceu em Na- nho. Por exemplo, no início, quando terminou a graduação, submeteu seu currículo para leciotal, no ano de 1980. Identifica-se como negro, nar em escolas particulares, entretanto, nunca porém, no seu registro, está escrito “moreno”. conseguiu vaga após as entrevistas. Passou no Sandro Cordeiro, filho de pai marceneiro e mãe concurso para professor do Município, onde “dona de casa”, sempre estudou em escola públi- havia apenas uma prova escrita e, assim, foi deica. Concluiu sua graduação no ensino superior xando os percalços para trás.

E


po, os pais dos alunos, que olhavam meio atravessado, foram diluindo o preconceito. Como o NEI é uma escola de estrutura pública, a interferência de pais sobre quem são os professores é estabelecida em outros parâmetros. Ele ressalta que, em escolas particulares, é muito mais raro encontrar professores do sexo masculino no ensino infantil, como também negros. Ele enfatiza: “Se você é negro e tem uma ‘fala’ consciente de sua posição intelectual e social, você é mais bem aceito em determinados grupos sociais, mesmo sabendo dos mecanismos que existem por trás dessa aceitação ou não”. Continua: “Vejo que uma das soluções para o racismo é a educação, o respeito ao outro, tendo a pele de que cor que seja. Aqui, vejo muito como algumas crianças se colocam naturalmente nas questões das diferenças. Por exemplo, um menino que chega com as unhas pintadas, outra menina pergunta porque ele pintou as unhas. Ele responde que pintou porque gosta. Então, para aquela criança, essa resposta basta, porque há nela naturalmente o Pergunto sobre como ele analisa hoje a posição respeito pelo que o outro pensa ou faz. O que do negro na universidade: “Atualmente, aqui a gente precisa, acima de tudo, é ser respeitado, na UFRN, mesmo que o número de vagas tecom a pele negra ou não”. nha crescido bastante e os programas de cotas implantados, se percebem poucos “negros” no campus. Há cursos que nem sequer têm alunos negros e se têm, são casos isolados, isto é, cursos mais elitizados, que também não são escolhidos pelos próprios negros. Acredito que o mercado também contribui para essas escolhas. Sou a favor das cotas, apesar de não ter entrado na UFRN através delas”. Para ele, na infância, tudo parecia mais simples, na escola pública que frequentou, havia outras crianças negras e as diferenças eram tratadas com mais naturalidade. Na adolescência, a partir de leituras, no convívio familiar e na escola, foi descobrindo as nuances do preconceito racial. Seu pai sempre enfatizou a necessidade do cuidado com a aparência. Era fundamental se vestir bem, o máximo possível: “camisa ensacada, cabelinho bem cortado e penteado de lado, muito asseado”. Sandro enfatiza: “Para o meu pai, a vestimenta podia nos destacar para uma posição social melhor, dentro da própria classe”. Continua: “Não havia em casa uma discussão sobre como enfrentar os preconceitos. Essas questões foram colocadas de forma mais sutil. Lembro que meu pai, na década de 1980, comprava livros e estimulava a mim e a meus irmãos a lê-los. Muitos dos livros eram até inapropriados para a nossa idade, mas, para ele, era o que ele achava que se deveria ler naquele momento”.

Sandro fala também de outros preconceitos não muito explícitos, mas existentes, que vão se compondo na sua trajetória de vida, como é o caso específico da entrada de homens no ensino infantil. É uma espécie de preconceito velado, nunca realmente dito. No caso dele, com o tem-

Sobre o professor: Graduação em Pedagogia pela UFRN. Mestrado e Doutorado em Educação –PPGEd/UFRN. Lotado no NEI – Núcleo de Educação Infantil.




quando o caminho da inteligência quebra fronteiras Gláucio Bezerra Brandão

E

u nasci em Caruaru-PE. Morei desde os quatro anos em Recife. Meu pai é negro e minha mãe é branca, assim, sou mulato.

É a primeira vez que dou uma entrevista a partir desse ângulo social/racial.

o casamento e os filhos, ela se dedicou a cuidar

Fiz escola Técnica em Eletrônica, graduação em Engenharia Eletrônica na Universidade Federal de Pernambuco e também Mestrado na área de Engenharia Biomédica/Biofísica. Depois, fui aceito no doutorado em Campina Grande-PB, em Eletrônica Pura.

Meu pai me dizia: “Você, para ser respeitado, Moreno, para mim, é ofensa. Sou o segundo fi- tem que ser o melhor”. Então eu sempre corri lho de quatro irmãos. Minha mãe veio da agri- atrás, fui aluno exemplar, com melhores notas cultura, estudou, chegou a ser professora. Com e avaliação. da família. Meu pai foi professor do SENAI e de escola pública. Manteve todos os filhos em escola particular, no Recife. Assim, convivi quase nada com crianças negras.


Passei quatro anos em uma universidade particular na Bahia. Em 2006, passei no concurso para professor aqui, na UFRN. Entrei no Departamento de Engenharia da Computação.

compartilhados, o carro elétrico, o sistema de acesso à cultura etc. A interatividade, em que as emoções poderão ser compartilhadas, o acesso a sinais da emoção do outro até antes que ele se Nos dois primeiros anos, ocorreu tudo bem, só expresse verbalmente, uma espécie de socializaque no terceiro, comecei a me sentir meio de es- ção da emoção. Vamos caminhar para sermos canteio. O Departamento tinha 18 professores e humanos melhores? Espero. só eu não tinha bolsa da Petrobrás. Fui à luta e Voltando e fechando o assunto sobre ser negro: nada. Porém, através do REUNI, fui convidado fui aluno atleta por mais de quinze anos, recebia a desenvolver o Curso de Engenharia Biomédi- bolsa de Iniciação Científica. Não que eu nunca ca da UFRN. Fui a fundo nessa nova empreita- tenha sofrido preconceito. Porém, como sempre da. Nessa época, tentei implantar a área de estu- fui muito alto, isso já tornava a situação para o dos de Empreendedorismo e fui me dedicando outro temerária e, em algumas situações, naà pesquisa nessa área. No Departamento, não quela época, como sempre fui afoito, eu resolvia consegui a implantação, porém, com a minha na “porrada” (risos) e abri melhores caminhos transferência para a Escola de Ciências e Tecno- para os meus irmãos que vieram em seguida na logia foi possível. escola... Implantamos, no ECT, o Núcleo de Aplicação de Tecnologia Avançadas NATA (2008) e as incubadoras: INOVA (2013), BIOINOVA, TECNATUS e I9 AGROTEC (2015). Incubação é uma extensão sustentável. Vejo a formação do aluno dentro da concepção e do contexto do “empreendedorismo científico”. Ele (esse aluno) vai para a Pós e o seu trabalho final de mestrado, além da parte teórica, é gerar uma nota fiscal. Estamos vivendo numa sociedade sem empregos e continuamos criando processos de conhecimento para formar um empregado. Então, precisamos inverter e, sim, começar em maior escala a formar “empregadores”. Além do mais, estamos caminhando para o desaparecimento da “Posse” para entrar na era do Acesso, da não necessidade de ser dono de uma casa (propriedade de moradia), um carro etc. Esses itens não deixarão de existir, a forma de usá-los é que mudará, teremos acesso e não posse. Estarão aí os carros comunitários, de usos

Sobre o autor: Formação Estrutural: Engenheiro Eletrônico(1992) e Mestre em Biofísica e Radiobiologia(1996) – UFPE. Doutor em Engenharia Elétrica(2002) – UFCG. Desenvolvedor de tecnologias na TMED, Tecnologia Médica S.A (2001-2002).



a fala de um estudante que se reconhece negro Renato Lima Santos

C

omprovamos que existe hoje uma mudança, após a implantação das cotas na UFRN. Porém, mesmo assim, acredito que o processo de democratização ainda caminha a passos lentos. Iniciamos um trabalho na direção de combate ao racismo por meio do DCE (Diretório Central dos Estudantes) e o primeiro grande desafio foi realizar o “I Encontro dos Negros, Negras e Cotistas na UFRN”, que aconteceu nos dias 08, 09 e 10 de novembro de 2017. Realizamos três encontros que antecederam o principal para di-

vulgar nossas ideias. Assim, fomos aos campi de Macaíba, CurraisNovos e Caicó. Avaliamos, no final, como encontros de vitórias, mesmo sendo apenas um começo. Conseguimos dialogar sobre a condição da juventude negra que está na academia e outras questões de racismo, além de uma outra universidade que queremos e sonhamos. Sentimos que a universidade ainda não está preparada para o negro, até porque ela não foi construída para o negro. Ela comumente ignora nosso conhecimento, a nossa trajetória de vida, tudo que o nosso povo construiu em troca do eurocentrismo.




Hoje, discutimos a nossa realidade fora e dentro da UFRN. Outra grande questão é a nossa permanência na universidade. Porque não queremos só entrar mas também permanecer. O processo ainda é incipiente, ainda precisamos de outras vitórias nesse sentido. No encontro, produzimos uma Carta (anexa) com toda a descrição do contexto que entendemos e desejamos de melhorias ou de mudanças. Por exemplo, estamos reivindicando a ampliação de vagas para nós, estudantes negros, na creche da UFRN. Sabemos que muitas estudantes negras, ao engravidar, abandonam o curso porque não têm condições de estudar e deixar o filho na creche. Discutimos a questão da segurança no campus. Sabemos que o extermínio da juventude negra tem a contribuição da militarização. Nesse contexto, a gente percebe a ideia de que tudo que é negro é ruim, até a inveja, dizem, que quando é boa, é branca.

estudantes. Nós, os mais pobres, precisamos contribuir com a renda familiar além de garantir o nosso próprio sustento e o nosso estudo. As exigências de tempo da bolsa não são compatíveis com o nosso contexto de vida. Termina a bolsa indo para aquele aluno que não precisa e tem mais tempo disponível. Isso é tão cruel quanto as normas que impedem de nós entrarmos na universidade. De toda forma, estou confiante…

Adentrar na universidade é também conviver com questões de conflitos. Aqui também é difícil para nós. Eu nasci e fui criado na periferia da cidade. Sou o único dos amigos do meu bairro que entrou na universidade. Já me torno, assim, uma exceção, aqui e lá. Muitas vezes, sinto que não sou pertencente a este mundo e preciso reagir, sobreviver a ele. Os meus professores não vêm de onde eu vim, muitos não têm ideia do que é ser negro na periferia. Ainda não temos autores negros como referência científica para citação nos nossos trabalhos acadêmicos. Quem conta a história do negro ainda não é a voz negra. Sobre o autor: Outra questão é que, quando entramos na uni- Renato Lima Santos – Coordenador de Comversidade, algumas políticas fortalecem a de- bate ao Racismo – DCE. Aluno do curso Gessigualdade, como, por exemplo, as bolsas para tão de Políticas Públicas – UFRN.



uma voz plural Joatã Soares

S

ocialmente existe o que chamamos de colorismo (O conceito é usado para chamar a atenção para os diferentes níveis de preconceito e marginalização sofridos pela população negra, dependendo de quão mais afrodescendente é sua aparência. Isso inclui não só a tonalidade da cor mas também outras características, como largura do nariz, grossura dos lábios e textura dos cabelos). Assim, a gente estabelece, muitas vezes inconscientemente, o negro apenas como aquela pessoa que tem a pele bem escura. Isso vem, na verdade, de um pensamento bem anterior, um pensamento histórico. Junto vem a própria palavra negro, que é posta como pejorativa.

Minha mãe é negra e meu pai é branco. Eu fui uma das únicas crianças negras na minha escola quando criança. Sofri preconceito sim. Lembro de um episódio, no momento quando alguns colegas me cercaram e gritavam “negro do gera samba”. Aquilo me marcou muito. Na mesma época, eu ainda muito criança, um pintor estava passando cal nas paredes da minha casa, eu então me lambuzei todo com a tinta branca e fui mostrar a minha mãe que agora eu era branco. Minha mãe chorou e eu pouco entendi o peso daquela situação na época. Minha mãe sempre trabalhou para que eu me orgulhasse de quem eu sou. Hoje, eu sei que além de negro, sou homossexual e tenho consciência do lugar da minha fala.


Porém, sofri quando jovem. De forma incons- Precisamos encarar essa situação, refletir sobre ciente, eu tentava apagar as características de ser ela, produzir mais ações afirmativas. negro que eu carregava. De toda forma, tenho esperança de que essa Eu já estava cursando aqui, na UFRN, o curso nova geração caminhe para um tempo melhor, de Psicologia quando isso se tornou muito claro construa uma sociedade mais igualitária. para mim. Eu passei a aceitar minhas características de negro: não alisei mais os cabelos nem corri com medo do sol (risos). Fui, assim, me apoderando da minha identidade, das minhas raízes e das características da raça negra. Essa consciência, me deu autonomia, liberdade para eu ser o que sou hoje. Sei o que conquistei e conquisto a cada dia, não de forma fácil, mais verdadeira. Concluí meu curso de Psicologia, fiz Mestrado e prestei concurso para psicólogo aqui, na UFRN. Passei. Sou anterior às cotas. Assim, embora eu não tenha sido contemplado por elas, eu avalio o Sistema como um exercício de reparação histórica. As cotas chegaram a partir de ações afirmativas. O racismo é concreto. Ele existe. E ele continua operando e muitas vezes de forma sutil, como já coloquei. Vem para o indivíduo negro, às vezes, pela não aceitação de uma vaga para determinado emprego etc. O ideal seria vivermos numa sociedade onde o racismo não fosse sistêmico. Porém, ele é. E precisamos enxergar isso. Por exemplo, nossa cidade ser a mais perigosa no país para uma mulher/ jovem negra viver é alarmante. O extermínio da população negra jovem é um fato sério.

Sobre o autor:

Doutorando em Psicologia do Trabalho pela UFRN. Psicólogo Organizacional na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, exercendo as funções de coordenador da Coordenadoria de Acompanhamento e Avaliação e de diretor Nesse sentido, muito ainda tem de ser feito. A adjunto da Diretoria de Desenvolvimento de gente ainda precisa de mais políticas públicas Pessoas, ambas na PROGESP/UFRN. Membro afirmativas. As instituições públicas de educação titular do Comitê UFRN com Diversidade e da também precisam de mais ações nesse sentido. Comissão de Direitos Humanos da UFRN.



QUANDO SE NASCE DETERMIN Vilma Vitor Cruz


E NADA

V

amos começar pelo gênero: nascer mulher, negra e pobre numa cidade do porte de Natal é por si só um grande desafio. De toda forma, eu sempre digo que a sobrevivência não está garantida para absolutamente ninguém. A não ser que você nasça em berço de ouro. Mas realmente nascer nessas condições que citei, sobreviver, já é um desafio. Eu tive a sorte de nascer numa família de quatro filhos com uma mãe determinada. O fato mais marcante dessa determinação de minha mãe é que ela se separou de meu pai quando eu tinha sete anos, no final dos anos 1950, quando não era comum as mulheres se separarem de seus maridos, por razões óbvias. Minha mãe teve essa coragem e criou sozinha os quatros filhos. Eu fui dos quatros irmãos a mais beneficiada, no sentido de ter feito uma trajetória intelectual. Todos os outros estudaram, porém, tiveram de trabalhar muito cedo e acabaram não seguindo seus estudos, fui assim a única da família a seguir esse caminho. Fiz toda uma trajetória de estudos: duas graduações, dois mestrados, um doutorado fora do país e uma especialização em cinema. Para os níveis do país, eu diria, da origem que eu vim, é uma carreira por demais privilegiada. Na mesma medida que essa carreira acadêmica é extremamente privilegiada, ela me leva ao campo do preconceito, pelo simples fato de ser uma intelectual num país de maioria de analfabetos. Então, tudo isso é muito pesado, lembrando ainda que o nome de família é um dado ainda muito significativo na sociedade natalense. Minha trajetória se confronta com as tradições familiares peculiares à pequenez da cidade. Nesse caso, eu tenho de fazer um esforço sistemático para ocupar um lugar. Aquilo que me é de direito por qualificação acaba virando uma guerra por condições sociais.


Depois de certo tempo, eu fui entendo essas subjetividades que o preconceito toma como rostos. Porém, eu fui aprendendo a caminhar por esses espaços quando eu entrei na UFRN, por concurso, em plena ditadura militar de 1982. Para a cadeira a que me submeti, eu passei em primeiro lugar. E foi uma guerra declarada contra a minha pessoa para eu assumir aquilo que eu tinha de direito, através de um concurso público. Quase não assumo por questões subjetivas, de preconceitos de toda ordem. Até porque, na época, eu fazia militância política associativa. Vamos fazer uma diferença nisso: eu nunca fui ligada a partido político nenhum, nunca tive filiação partidária nenhuma, mas sempre estive no embate contra as injustiças sociais, até porque eu fazia parte desse contexto a favor dos direitos classistas, porque eu já era professora. Eu comecei minha trajetória como professora e defendia os direitos de minha categoria. Eu quase perco o concurso da universidade por questões meramente políticas, porque eu fui considerada subversiva, coisa que eu nunca fui. Porém, isso era visto como rebeldia: “aquela negrinha”, “quem é aquela negrinha?”, “cuidado com aquela negrinha”, “ela se expressa muito bem, é um perigo”( risos). Até hoje eu sou uma pessoa extremamente pacífica, aliás, aguentei tudo isso calada. Até hoje eu me mantenho, por isso, eu faço yoga há muitos anos, eu rebato essas questões com respostas inteligentes, me colocando no lugar preciso. Essa foi uma situação extremamente complicada para mim. Entrar na universidade, naquela época, foi um confronto decisivo na minha vida. Eu venci essa batalha. Algumas pessoas me ajudaram, como a professora Janice Azevedo, que foi muito importante nesse processo. Ela foi de uma honestidade sem tamanho. Inclusive foi


chamada para ocupar o meu lugar, no campus de Nova Cruz e disse que só assumiria se eu renunciasse. Assim, nós combinamos uma forma estratégica de, juntas, enfrentarmos o poder e fomos contratadas, as duas, no mesmo tempo para o campus de Nova Cruz. Hoje eu digo que eu não assumi a universidade, a princípio, por causa de provas e títulos, e sim, pelo comportamento honesto de uma pessoa, que foi a professora Janice Azevedo. Na minha trajetória, eu fui sendo “podada”. A violência está exatamente aí. A igreja teve um papel fundamental na minha formação, minha família era toda religiosa, a chave da igreja da avenida quatro era guardada na minha casa. A religião me permitiu uma formação sólida, do ponto de vista ético e moral e também acadêmica. Hoje, eu não participo de religião nenhuma, porém, a Igreja, como falei, foi fundamental na minha formação. O que aconteceu depois disso? Eu entrei na UFRN e passei a ser rechaçada pelos meus próprios colegas. Não era apenas a Instituição, agora eram meus colegas professores também. A maioria deles entrou na UFRN sem concurso, participava das famílias tradicionais da cidade e entrou a partir desse esquema familiar e eu passei a ser rechaçada do processo. Foi muito difícil, para mim, estruturar um trabalho acadêmico e com parcialidade. As pessoas já me olhavam e ficava claro:“ela não faz parte de nosso círculo”. Assim, eu tive de criar uma via própria, do dia que entrei na universidade ao dia que saí. Foram 30 anos de magistério fechado e cinquenta anos de idade exigidos pela lei. Cumpri tudo aquilo que me foi pedido. Eu estabeleci um ritmo de trabalho sistemático. Eu observava que alguns colegas que se aposentavam recebiam homenagens, flores, eu não recebi flor nenhuma e, para



não ser desonesta, recebi do coordenador um escrito: “muito obrigado”. A única atividade administrativa foi quando eu fui coordenadora de curso, no campus de Nova Cruz. Nesse período, no ano específico, os alunos não quiseram colação de grau, portanto, não existequalquer placa com o meu nome como coordenadora dentro da universidade.

belo era macio”. Muitas vezes, a gente não se dá conta do preconceito. Penso: porque meu cabelo tem de ser macio? Eu devolvo na hora, não estou agredindo ninguém. Por trás dessa pergunta está um preconceito. A saída: luva de pelica.

A arte, para mim, sempre foi uma atividade que corresponde àterapia. Eu fiz teatro quando era adolescente. Tocava violão. Nesse caso, foi às artes visuais que eu me dediquei mais, por exemplo, à fotografia. Ela é o carro chefe da minha produção junto à criação de vídeos. Faço isso hoje, sem nenhuma necessidade de me exibir, até porque não pretendo fazer carreira no campo da arte. Adoro, sim, produzir. Tenho um acervo enorme. Acredito que essa veia artística venha de minha família. Por exemplo, minha mãe, Romaria da Cruz, era modista, costurava e criava modelos. Na família, tenho uma tia artista plástica, tinha outra que restaurava santos. Depois de aposentada, eu fui estudar cinema. Eu sempre digo o seguinte, hoje, sobre o preconceito racial: Se você agredir, a arma volta contra você. Porque as pessoas lhe agridem simbolicamente e se você responder com agressão, o outro vai dizer: “você está me agredindo”. Então, a arma volta para você. É luva de pelica. Não é você ficar quieto e se acomodar, é você aprender a dar as respostas certas, na hora certa, a quem praticou a ação contra você. Hoje existem mil formas: você pode denunciar, coisa que não havia na minha época. O problema é ter a prova, porque as questões são muito subjetivas, a pessoa pode olhar para mim e dizer: “eu pensei que seu ca-

Sobre a autora: Graduada na UFRN/Licenciatura plena em Pedagogia e Licenciatura em Filosofia. Especialização em cinema, 2016UFRN/DEART.MestradoUFRN/Programa de Pós-Graduação em Educação.Mestrado Acadêmico Área de concentração: Metafísica. DoutoradoUniversité de CAEN/França.Área de concentração: Ciências da Educação. Título: Rationalité Technologique et Modernisation de l’Éducation: Le cas duBrésil (1964/1984), tese defendida em 20/02/1998, aprovada com a mensão “très honorable”.


ensaio fotogrรกfi


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cor preta Resenha baseada no livro “História de uma cor”, de Michel Pastoureau, 2008

mente verbais que amam explicar coisas, formas, opiniões, discutir etc. Assim, não deixamos de explicar o preto, por exemplo, numa simples cor usada sobre o papel branco nos primórdios da imprensa. Para o autor Michel Pastoureau, falar do preto significa falar do branco, do vermelho, O filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) do marrom, do violeta e até mesmo do azul. escreveu: “O que significam as palavras vermelho, azul, preto, branco? Podemos mostrar de Por muito tempo, o preto e o branco foram viimediato, evidentemente, coisas que são dessas venciados como “não cores”, que haveria um universo em preto e branco e outro em cores, cores. Mas nossa capacidade para explicar o sigque a fotografia levou a sério até hoje. nificado dessas palavras não vai além disso”. De toda forma, como também escreveu Julian Bar- Entretanto, vamos nos concentrar aqui na cor nes, continuamos a ser criaturas incorrigivel- preta:


1. “No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra sem forma e vazia: havia trevas na superfície do abismo, e o espírito de Deus planava acima das águas. Deus disse: ‘Que exista a luz’, e a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa; Ele a separou das trevas”. Se acreditarmos nos primeiros versículos do Gênesis, as trevas precederam a luz e envolviam a terra quando esta ainda se encontrava privada de qualquer ser vivo; o aparecimento da luz era uma condição obrigatória para que a vida pudesse aparecer sobre a terra. Para a Bíblia, ou pelo menos para o primeiro relato da Criação, o preto, portanto, precedeu todas as outras cores. Ela é a cor primordial, mas também a cor que, desde a origem, possui o status negativo: no negro, não existe possibilidade de vida; a luz é boa, as trevas não. Para a simbólica das cores, o negro já aparece, após cinco versículos bíblicos, como vazio e mortífero. 2. A mitologia grega, por exemplo, considera Nix, a deusa da noite, a filha de Caos, o símbolo do vazio primordial, e também a mãe de Urano (personificação do céu) e de Gaia (a terra), o símbolo do céu e da terra. Nix deu à luz numerosas entidades, cuja lista varia, segundo as fontes – mas todas estão associadas, simbolicamente, de perto ou de longe, com a cor preta: o sono, os sonhos, a angústia, o segredo, a discórdia, o infortúnio, a velhice, a desgraça e a morte. 3. Na Idade Média, é possível encontrar

nas crônicas e nos textos literários que o branco era para aqueles que rezam (oratores); o vermelho, para aqueles que combatem (bellatores); o preto, para aqueles que trabalham (laboratores). 4. Os pigmentos pretos são os mais abundantes nas pinturas parietais do período Paleolítico. Os mais antigos resultam de matérias vegetais (carvões de madeiras) ou animais (ossos, chifres) calcinados. Exemplo: grande touro negro na gruta em Lascaux, cerca de 15 mil anos antes de Cristo. 5. No Egito Faraônico, a cor preta era relacionada com a dimensão fecundante da terra. Por ocasião dos funerais, servia para assegurar a passagem do morto para o além; é um preto benéfico, sinal ou promessa de renascimento. As divindades ligadas à morte eram, quase sempre, pintadas de preto. 6. Mouros jogando xadrez. Nascido no norte da Índia, o jogo de xadrez foi introduzido na Europa pelos muçulmanos da Espanha e da Sicília, por volta do ano 1000. No tabuleiro, as peças eram pretas e vermelhas. Na gravura, os jogadores tinham a pele escura. 7. Os diabos medievais são polimorfos e policromáticos. 8. A época romana não detém o monopólio dos diabos pretos. Essa cor permanece como a mais frequente para representar Satã na época gótica. 9. Até o final do século XIV, o gato é visto com frequência como um animal falso


e inquietador, especialmente o gato preto, que tem seu lugar no bestiário do Diabo. 10. O manto preto da Virgem. Maria nem sempre esteve vestida de azul. Nas imagens do século XII, a paleta de suas vestes se mostra relativamente variada, mas quase sempre escura, porque ela se veste de luto pelo seu filho: preto, cinza, marrom, violeta, azul-escuro. 11. Os monges beneditinos. O preto é a cor específica da ordem beneditina, ao passo que, como reação, as novas ordens escolhem o branco ou o marrom. Essas cores têm um valor simbólico (austeridade, pureza, modéstia, moderação) que se torna pouco a pouco emblemático. 12. Ana da Bretanha, esposa de Carlos VII e, depois, de Luís XII, introduz na corte francesa o uso da cor preta para as rainhas viúvas. 13. A rainha de Sabá. Para a cultura medieval, a lendária rainha de Sabá que, segundo a Bíblia, fez uma visita ao rei Salomão levando-lhe presentes magníficos, reina sob um país próspero situado além da longínqua Etiópia. Ela e seus súditos são cristãos e têm pele escura. 14. Baltazar, o rei mago preto. Ele revela um novo olhar sobre a África e sobre a cor preta. 15. São Maurício. Os santos negros não são numerosos nas tradições medievais. São Maurício, patrono dos cavaleiros, é o de maior prestígio. A cor de sua pele

se deve a suas origens africanas. 16. Felipe, o bom, é o duque de Borgonha de 1419 a 1467. Ele lança a cor preta oficial para a sua corte e desenvolve

toda uma etiqueta sobre seu uso. Atitude que se espalha para o resto da Europa, perdurando até metade do século XVII.

17. O aparecimento e a difusão do livro impresso desempenharam um papel considerável no nascimento de um imaginário “em preto e branco”. 18. O quadro “Aula de anatomia”, de Rembrandt, foi uma encomenda dos cirurgiões de Amsterdã. Com suas vestes pretas emblemáticas, realizam uma dissecação pública, com o corpo de um criminoso executado naquela data (16 de janeiro de 1632). 19. Savonarola. Pregador e profeta, o padre dominicano Girolamo Savonarola (14521498) institui a república de Florença e exerce durante quatro anos (1494-1498) uma ditatura de fato. Ele prega com paixão a reforma dos costumes, incluindo a condenação do luxo, das festas e dos jogos, as fogueiras de


livros e de obras de arte, a prescrição do uso de vestimentas escuras e severas para todos. 20. Martinho Lutero. Os grandes reformadores protestantes demonstraram aversão profunda pelas cores vivas ou muito variadas, que consideram indignas para um bom cristão e um cidadão virtuoso. 21. Isaac Newton (16421727), um dos maiores sábios de todos os tempos, ao descobrir o espectro, entrega à ciência e à sociedade uma nova ordem das cores, na qual não há lugar nem para o preto nem para o branco. Mesmo sem efeito imediato sobre a vida cotidiana das pessoas comuns, as descobertas de Newton representam uma reviravolta essencial na história dos conhecimentos e dos usos da cor. 22. A peste no século XVIII. A expressão “Peste Negra” designa comumente a grande epidemia que atingiu a Europa entre 1346 e 1350 e matou um terço de seus habitantes. 23.

O tráfico dos negros.

Na metade do século XVIII, o comércio de negros, praticado havia uma dezena de gerações, atinge seu apogeu. Os europeus levam para a África tecidos, armas e bebida alcoólica; de lá, rumam para a América com escravos. Os que sobrevivem à horrível travessia são trocados por algodão, açúcar e café. 24. No século XIX, dois atributos acompanham quase sempre a representação do artista ou do poeta romântico: uma veste preta e uma postura “melancólica”. 25. A modernidade do preto. Logo após a Primeira Guerra Mundial, pintores, artistas gráficos, estilistas elevam o preto à1 categoria de símbolo moderno. 26. A partir dos anos 1950, a fotografia intuiu que a imagem em preto e branco era precisa, exata, fiel à realidade dos seres e das coisas, enquanto que a imagem colorida era pouco confiável, frívola e enganadora. 27. O encontro do cinema como o mundo da imprensa faz do Cidadão Kane não somente um filme inovador, em


todos os aspectos, mas também um verdadeiro hino ao preto e branco. 28. Em 1913, Marcel Proust vestiu de preto Odette de Crécy (personagem de Em busca do tempo perdido), mulher moderna e elegante, apesar de semimundana. Ele a descreve: “trajada de preto como sempre, porque ela acredita que de preto sempre se está bem vestido e que essa cor é o que há de mais distinto”. 29. Hoje, nas artes plásticas contemporâneas, a cor preta da pele dos representados está em evidência. Basta acessar a foto da pintura do artista Kehinde Wiley (1977 – (final da revista) Los Angeles) convidado para pintar um retrato do ex-presidente Barack Obama, para compor na Galeria Nacional Poesia de Washington ao lado dos outros 43 presidentes brancos dos Estados Unidos.

tentaram afastar de mim o homem negro disseram-me que ele era sujo, pobre, feio


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