inventário do
possível
Acostumei-me a admirar a memória como um rio dos que me habituara a ver no Nordeste, na alternância de correr alegre em tempo de inverno, ou virando poços, cacimbas, quando sobrevinha o estio.
Ta r c í s i o G u r g e l
inventário do
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Natal 2015
Este livro é para Dodora, Socorro e Dedé. Embora aqui apareçam apenas de passagem, eles continuam a dividir comigo as lembranças que possibilitaram sua escrita.
Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Miguel Torga A criação do mundo
Nada sabemos do começo. O que os outros mais tarde nos contaram, tentando retraçar aos nossos olhos a imagem da criança que já fomos, não diz nada às vozes da memória, nem de leve toca nas cordas da revelação. Augusto Meyer Segredos da Infância
Mas não tenho dúvida de que a versão não compromete o fundo de verdade (embora tenha, às vezes, um contexto de ficção) e é assim que narro como quem se apega ao absoluto para relatar o relativo. Francisco Fausto Paula de Medeiros Viva Getúlio – As areias brancas da memória
Por isso, se este livro for lido como uma crônica, será possível objetar que apresenta infinitas lacunas. Embora extraído da realidade, acho que deva ser lido como se fosse um romance (...) Natalia Ginzburg Léxico Familiar
Na realidade a história verdadeira da vida de uma pessoa jamais poderá ser escrita. Fica além do poder da literatura. A história plena de qualquer vida seria a um tempo absolutamente aborrecida e absolutamente inacreditável. Issac B. Singer Amor e Exílio – Memórias
Foi Dedé quem primeiro se dedicou à memória familiar. Na capa de seu livro, sou sujeito oculto na barriga de nossa mãe.
Tarcísio, meu irmão,
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ocê me pediu que falasse dessa fantástica viagem lítero-familiar por você empreendida. E eu não poderia deixar de embarcar num projeto tão belo e tocante, envolvendo os nossos pais Juvenal e Dalila e os nove irmãos que chegaram à idade adulta – sendo nós dois os últimos da série –, além de inúmeros parentes tanto do lado dos gurgéis (da nossa mãe), quanto do lado dos avelinos (do nosso pai). São viagens reais nas quais, ao longo da sua vida, você foi ganhando experiências, tirando lições. Lembro-me que, de algumas eu também participei. Uma, em especial, ficou na minha memória: a que fizemos de trem ao sertão potiguar para, junto com a nossa mãe, visitarmos a irmã Gelza que, depois de casada, foi morar no sítio “Gameleira”, em Patu. Para nós, garotos curiosos, um turismo fantástico: o balanço dos vagões, as estações, as paisagens campestres, os animais, as comidas da roça que a irmã aprendera a fazer, o leite fresco tirado da vaca... curiosas experiências que lá vivenciamos para, na volta, contarmos a parentes e amigos.
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Tempos depois, fizemos nossas “pequenas viagens” em busca do saber. Viagens diárias de bicicleta para o Colégio Diocesano Santa Luzia. O tradicional colégio construíra a sua nova sede distante do centro da cidade e, para chegarmos até lá, tínhamos que viajar através de ruas difíceis de circular devido a tanta areia. Foi numa dessas viagens que aconteceu com você o tal distúrbio que o levou a fazer tratamento no Rio de Janeiro, numa viagem mais longa e enfadonha, já que o seu tempo, naquela época, era de quatro dias. Nessa aventura com destino ao Rio de Janeiro, para que você restabelecesse a sua saúde, uma constatação: apesar do jeito bravo que às vezes nos assustava, como o velho nos amava, não é verdade?! Ele não hesitou em vender um dos armazéns, parte do “império” que construíra a custa de muito suor no fabrico do famoso “pão de Juvenal”, sucesso durante muitos anos na cidade. Mais tarde, você e Kiko, participantes do TEAM – Teatro Escola de Amadores de Mossoró enfrentariam outra viagem. Essa mais longa ainda: a Porto Alegre/RS, de onde voltariam consagrados como atores do melhor grupo participante do Festival de Teatro de Amadores de Porto Alegre, um festival promovido periodicamente pelo diplomata Pascoal Carlos Magno. Na ocasião eu e Ninha, orgulhosos dos feitos dos irmãos atores, além de nos desdobrarmos na ajuda a “Seu Juvenal” na padaria, nos empenhamos também em colecionar todos os recortes de jornais que deram notícias do grande feito. Depois, você voltou ao Rio de Janeiro, fez curso Clássico no MABE, e se relacionou com parentes especiais, como a amável Tia Inacinha e primos malucos que – tantas 14
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vezes comandados pelas loucuras do mano Alderi – “poriam fogo” no minúsculo apartamento da Rua do Russel, com suas aventuras e suas festas loucas. Anos mais tarde, em outra viagem ao Rio, em busca de cursos que completassem a sua formação pedagógica você, já casado, mandava para a família fotos exibindo a primogênita no colo, num momento de lazer ao lado da sua querida Ione. Em meio a todas essas viagens, você foi edificando a sua construção de respeitado professor universitário, de intelectual a serviço da cultura do Rio Grande do Norte, ao mesmo tempo em que, com a partida definitiva dos nossos pais e de alguns irmãos, a despeito de ser o mais novo, tomou para si a função de responsável pela família, dando apoio a qualquer um nas horas mais difíceis. Morando distante, indo periodicamente à terra potiguar, acompanhei de algum modo o apoio moral que você prestou às famílias de irmãos falecidos como Kiko, Alderi e Deífilo. Também merece consideração o seu cuidado com a nossa irmã mais velha, Ninha que “mãe de todos” durante muitos anos, recebe agora a sua particular atenção. Isso é muito bom – dar sem nada pedir em troca! – porque traz felicidade a quem pratica. O seu semblante é uma prova disso. Foi o que comprovamos em reuniões recentes em Mossoró. Que Deus o conserve entre nós por longos anos ainda! Campos dos Goitacazes, janeiro de 2015. Do mano José Gurgel dos Santos.
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Da invenção da memória
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amais estivera em minhas cogitações escrever algo como memória até que, num dos alegres veraneios da praia de Pirangi do Norte, anos 80, enquanto nosso grupo de bárbaros citadinos despencava ladeira abaixo no rumo da praia, eu, na uterina maciez de uma das redes que levávamos – armadas indefinidamente no alpendre da casa – descobria o mundo simples e fascinante de uma escritora chamada Natalia Ginzburg que me fora apresentada por Ignácio Magalhães de Sena. Não me lembro de haver feito nada de mais interessante naquela temporada, mais uma, aliás, de que haveria de retornar a Natal sob uma coletiva reclamação de que nada tinha aproveitado, só fazendo ler, ler, ler e, quando sobrava tempo, beber vinho ou cerveja com quem chegava. O comentário justificadamente ácido, nada tinha de maldoso e menos ainda de falso. Afinal, muito raramente ia ao banho salgado, pouco caminhava, não visitava conhecidos. Como tantos outros leitores apaixonados, o que eu fazia era consumir páginas e páginas em sequência de vários livros mal começava cada manhã. O fato é que a pilha de onde, naquele dia, retirei Léxico Familiar quase não se moveu enquanto não cheguei a sua última página.
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Claro, memória não era propriamente um assunto desconhecido ou desinteressante para mim. No plano informal, nas conversas típicas das reuniões familiares, nas visitas a ou de parentes, nas poucas viagens feitas na companhia dos pais e irmãos, certos acontecimentos iam ficando como marcas indeléveis o que, de resto não ocorre de modo diferente com qualquer ser humano em qualquer latitude terrena. Fascinava-me, por exemplo, ouvir na infância e adolescência o meu tio Alexis Gurgel. Contemporâneo de Nelson Cavaquinho na Polícia Militar carioca, em idade provecta e celibatário, ele nos visitava a cada mês, em Mossoró, aonde vinha receber seus proventos de aposentado, presenteando-nos por sua vez com generosas poções de cultura. Leitor compulsivo de jornais e notável conversador imantava a todos nos jantares e conversas na calçada. Admirava-me com seus relatos de mortes trágicas, a malfadada aventura de Lampião, a esperteza de Carlitos, a beleza de Zezé Leone. E me revoltavam os episódios que tratavam de injustiças sociais. Durante a juventude, residindo com o meu irmão poeta, Deífilo Gurgel, em Natal, pude acrescentar novos elementos descobrindo outras figuras interessantíssimas na parentela. O tempo passando e sem tempo de me fixar em nenhuma das cidades amadas – Rio de Janeiro, Fortaleza, Natal, Mossoró e novamente o Rio – acostumei-me a admirar a memória como um rio dos que me habituara a ver no nordeste, na alternância de correr alegre em tempo de inverno, ou virando poços, cacimbas, quando sobrevinha o estio. Ignorante ainda de Gilberto Amado, Simone de Beauvoir, Joaquim Nabuco, Maria Helena Cardoso, Pedro 18
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Nava, Magdalena Antunes Pereira, eu me senti, diante das mencionadas páginas da Ginzburg, como se diante de um imenso lago perenizado de emoção. E fui mergulhando com gosto na ideia de um dia também escrever algo que tivesse a força da permanência. Que não deixasse desaparecer tanta vivência interessante, nas estiagens do pensamento. Em outro momento deu-se a prazerosa descoberta do memorialista areia-branquense Francisco Fausto Paula de Medeiros. Lembro-me ainda do comovente entusiasmo do irmão há pouco citado ao me fazer a indicação de leitura do seu livro. E também eu caminhei com gosto pelas areias brancas de sua memória visitando cenários e aspectos como costumes políticos, administrativos, religiosos, jurídicos que acabara guardando no mealheiro da existência: suas alegrias, tristezas, paixões, momentos de lirismo e de tensão, como é lícito esperar de um bom livro de memória. Mas diferentemente da narrativa italiana, em que ressalta a figura do pai resmungão, desenhado simpaticamente no anedotário da família, o livro de Fausto, em que pese um ou outro momento de humor maravilhoso – vide a descrição dos últimos momentos do legendário padre Mota – opta por um tom quase sempre grave, da perspectiva de quem lutou tenazmente contra a mediocridade, culminando com notáveis responsabilidades no Direito do Trabalho, área jurídica em que também se destacou. A leitura de Viva Getúlio – as areias brancas da memória foi para mim um exercício de reiterada comoção. Porque – diversamente do que se dá com o outro livro – na memória de Fausto fui reencontrar personagens que cheguei a ver a curta distância, na minha cidade de Mossoró, pessoas que de 19
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fato existiram – de pegar – possibilidade que havia feito um maravilhado e triste Drummond indagar, na morte de Guimarães Rosa, sobre se era possível ele ter sido pessoa humana que nem nós. Deu-se finalmente que, noutra ocasião, durante uma conversa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, convidado pela jornalista Ana Maria Cocentino, que dirigia a Superintendência de Comunicação, aceitei retomar as gravações interrompidas do programa “Memória Viva” que, ancorado pelo jornalista e fotógrafo Carlos Lyra, tivera trajetória marcante nos anos oitenta na TV Universitária. E pude constatar que era o que me faltava para consolidar o interesse inicialmente assinalado. Apresentando o programa, logo percebi que estava a lidar e melhor: a exercitar diretamente com produtores de um tipo de discurso que, como disse ao iniciar esse texto, embora não cogitasse de utilizar literariamente, jamais deixara de me interessar. E mal comecei a escrever as primeiras páginas, pude com alegria perceber que, mais que relatar minha experiência humana, o livro de memórias pretendido ensejava, de fato, a possibilidade de resgatar pelo menos parte da existência de figuras especiais e tão queridas. O autor
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as figuras avoengas não me atrevo a falar. Afinal, só dou conta de ter avistado em pessoa Vovô Lôlinha: Lourencinho, o professor Lourenço Gurgel, pai de minha mãe Dalila, na presença de quem cheguei a estar, temeroso de lhe pedir a bênção e olhando-o com os tímidos olhos da infância, em Caraúbas. Dos outros não falo porque sua existência para mim é coisa de oitiva, vagas menções, retratos de álbum ou parede, como o do meu outro avô Neco, de Caicó – pai do meu pai Juvenal – semiesquecido, tristemente preso em sua redoma de vidro (como a Rosinha Palatnik do belo poema de Iracema Macedo, em sua tumba) numa das paredes da sala de visitas de nossa casa em Mossoró. Daquele Lourenço, aliás, é também muito pouco o que sei. Que era um gurgelzinho enjoado, cuja imagem construí para meu próprio memorial, envergando aquela túnica abotoada até os gorgomilos, colarinho escondendo o pescoço cheio de sulcos, um estilo Mao Tse Tung avant la lettre. Sei também que dedicou sua vida ao magistério, ainda nos tempos de Pedro Velho e que, formado em
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Natal, chegou a se relacionar – e até colaborar – com o grupo que produziu a revista Oasis. Assim, posso revê-lo, pelo prodígio da recuperação memorialística, na estação ferroviária de Caraúbas, aonde minha mãe nos levava, de ano em ano, a assistir a festa de São Sebastião, a nos esperar para breves temporadas na modesta casa na quadra da igreja. Eram viagens excitantes, das quais saíamos, Dedé e eu, os filhos mais moços, transportando um trem de emoção. Naquela experiência passageira, descobríamos imagens, sons, sabores e odores que viríamos reencontrar tempos depois num poema do meu irmão Deífilo. Minha memória também resgata (ou será que reinventa?) uma nervosa movimentação de guerreiros humildes no copiá de um casarão de infinito pé direito, a se enfeitar com seus apetrechos de cavalhada: chapéus, fitas, lanças, trajes coloridos, para uma disputa que não me lembro de ter visto, a que chamavam Corrida de Argolinhas. Era mais um dos acontecimentos que tornavam mágica a viagem em que, depois que a Maria Fumaça – tendo matado a sede no 101– nos deixava em Caraúbas, prosseguindo sua morosa viagem até bater em Souza, na Paraíba. Devo dizer, por oportuno, que invejo os genealogistas e certos memorialistas que incursionam pelo passado recompondo um povo que nada tem de abstrato, trazendo de volta pessoas das quais jamais desconfiáramos ter tido uma existência física. Não é o meu caso. Mesmo assim, não lamento essa falta de dados ancestrais. Apego-me a vivências aproximadas, algo de mais concreto – pai e mãe, irmãos, tios e primos – ternura de que ainda adivinho o suave calor, para relatar emoções compartilhadas pelo clã de que provenho. 24
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O ponto de partida é um cenário sem graça. A Padaria Santa Rita, espécie de catedral rústica do trabalho familiar, na rua Meira e Sá, nas proximidades do Mercado Público Municipal da cidade de Mossoró, ainda ostentando em uma das paredes uma foto do prefeito Dix-sept, com a discreta elegância de um jovem empresário cujas ambições políticas iriam despencar mais adiante sobre um rio ironicamente chamado do Sal, no Estado de Sergipe, em acidente aéreo. Havia sido eleito governador, mas ali permanecia como a cidade o conhecera: com seus óculos ray-ban, sua camisa ensacada, as mangas dobradas para além dos cotovelos, o relógio de pulso – ostensivo como o equipamento protetor do sol – as mãos nos bolsos das calças. É uma referência rigorosamente essencial, aquela da padaria, com sua arquitetura pobre e feia, edificação hoje desaparecida em sua forma original e que certamente não impressionaria ninguém nem deixaria supor tal importância. Com as suas seis portas – três para o salão de vendas, três para o imenso armazém que terminava com o grande forno, onde o pão era fabricado – a Padaria Santa Rita revelava-se o prédio mais importante de um conjunto de armazéns igualmente desgraciosos, a olhar para as paredes encardidas dos quintais das casas de Zé Rodrigues, cujas pobres fachadas davam para a Praça Souza Machado. Numa dessas casas nasci. Fora aqueles quintais olhando para a nervosa atividade da panificação, havia apenas a pequena casa de um velho e famoso professor de português, Manoel João, branco da cabeça aos pés, com seu bracinho esquerdo tímido de movimento. O resto era a monotonia das paredes, esporadicamente quebrada pelo abrir e fechar dos portões. 25
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O conjunto da padaria antes referido, juntamente com outros cinco armazéns, fora construído por meu pai graças a um empréstimo de quarenta contos de réis obtido de um amigo endinheirado, um dos Solons de Areia Branca. Era a culminância de sua rude vida empresarial que tendo se iniciado naquela cidade, sob a orientação do cunhado Gerôncio e da irmã Chiquinha, teve curso em Mossoró, após breve passagem pelos Paredões, bairro em que inicialmente morou, e onde arrendou uma padaria a certo Antonio Doze Anos. Pequena, parecia agigantar-se com a nervosa atividade, de quem estava decidido a entrar no comércio de panificação no centro de Mossoró, onde viveria a segunda fase da sua vida depois da juventude litorânea em que, de tanto que trabalhava, mal encontrava tempo para admirar o mar. Nascido na fazenda Rodeador, em Caicó, o menino Juvenal migrara na direção de Areia Branca, tendo ali se fixado sob a proteção da irmã mais velha, a legendária Chiquinha, uma Avelino de temperamento fortíssimo, qualidade que ficaria como marca em algumas das numerosas sobrinhas. Esposa do tranquilo e bem sucedido comerciante Gerôncio, era uma matriarca sem filhos de sangue que em tudo fazia valer sua autoridade. O marido descobrira um meio de fugir a suas regulares admoestações em carteados com os amigos, sem notar que não podia contabilizar na coluna de Haveres o que jogava. Mas, ao que se sabe, jamais reclamou da diminuição do patrimônio já bastante abalado quando se mudaram para Mossoró, depois para Natal, aonde veio a falecer em discreta pobreza. Que expectativas, sonhos, possíveis tristezas teria 26
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o jovem que mais adiante se tornaria meu pai? Que foi rapaz, comprova-o uma foto que nos divertia na infância: ele em trajes de almofadinha, óculos redondos e chapéu de palhinha tomado de empréstimo a Harold Lloyd, a exibir com estranha gravidade uma ampola de lança-perfume. É possível vê-lo quase a sair do lado direito de quem olha a foto em que aparece em meio à alegre formação do Democratas – ou Democráticos, como se chamava seu homônimo carioca – bloco carnavalesco legendário de Areia Branca, de que ele era entusiasmado admirador até nos confrontos com o Tenentes do Diabo, cujo modelo os embarcadiços encontrariam igualmente nas festas de Momo da Capital da República. Que tinha uma paixão esportiva – o futebol – a ponto de treinar um time que ele próprio criara, também é sabido. Mas que tempo lhe sobraria para o desfrute de outras possíveis diversões? A influência daquela sua irmã terá sido decisiva para o cultivo e consolidação do forte temperamento e uma inacreditável capacidade de trabalho, que o levou ao hábito de, desde rapazinho, despertar todos os dias nas primeiras horas da manhã para iniciar sua faina de mestre-padeiro: preparar artesanalmente a golda do fermento que viria a ser utilizada na mexida dos pães. Era a tarefa inicial. Como a padaria ficava nos fundos da casa não é demais supor que eu, o caçula, tenha resultado de alguma entrada fortuita na camarinha da senhora minha mãe, aproveitando os intervalos madrugadores do fabrico. Homem de parcas amizades e rudes admirações, meu pai viveria praticamente toda a sua vida trabalhando como um mouro, disposto a provar que aprendera bem 27
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aprendida sua arte com outros mestres padeiros, como o legendário João Baixinho, cuja estatura e modo de falar faziam jus ao carinhoso adjetivo. Mulato escuro, cabelos bem pretos e lisos, olhos miúdos no rosto redondo guarnecido por grandes bochechas, vestia-se com apuro, fugindo aos padrões da padeirada e emitia seus modestos comentários como um elegante professor, toda vez que o meu pai julgava necessário aconselhar-se. Embora a cor da pele indicasse o sofrimento de origem, exibia repetidos sorrisos na conversação. Nunca o vi como um operário da nossa padaria, mas como um graduado que por ali passava e que era reverenciado por seu proprietário. O discretíssimo tom de voz que empregava nas conversas com seus atentos ouvintes era suficiente para ver como o meu pai o tinha em grande conta. Com ele é que teria aprendido certos segredos da arte de fazer pães, sobretudo o Recife, de massa alvíssima e macia, enfeitada com lindas volutas de chocolate; o pão seda, que lhe dava muito prazer de fabricar, a bolacha regalia. E durante os momentos ociosos entre as várias etapas do fabrico, costumavam recordar com nostálgico entusiasmo a qualidade de certa farinha de trigo americana de nome Gold Medal, de qualidade jamais igualada. Sua utilização nas grandes mexidas resultava num rendimento excepcional, um pão francês crocante, de miolo alvíssimo e tenro, sempre evocado como o melhor que suas artes de padeiro produziram. Jamais saberei de onde chegava seu João Baixinho. Sei apenas que ele vinha. Como vinham outras personagens que compunham o elenco circulante em torno do meu pai em sua Padaria Santa Rita. 28
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Entre suas amizades duradouras, lembro também a figura magra, ossuda, de pele encaliçada do eterno mestre pedreiro Antônio Belarmino. Revejo-o com um halo de humilde santidade, finíssima poeira que desprendia do material de construção e que envolvia o seu corpo. Jamais largava sua notável colher de pedreiro que por vezes brandia para acentuar as palavras quando aceitava conversar. Porque diferentemente de seu João Baixinho, não era dado a diálogos demorados. Mas não havia, segundo o código de avaliações do meu pai, outro profissional capaz de erguer paredes tão linheiras e sólidas, e fazer rebocos tão suaves, pisos tão planos, conjunto que lhe dava a tranquila confiança de que a edificação encomendada a ele jamais desabaria. Casa que seu Antônio Belarmino construía estava para sempre isenta de rachaduras. Foi esse mestre, detentor de seguras engenharias, que construiu sua primeira casa própria – expressão que utilizava com frequência – que tanto o orgulhava. Era enorme e de inexpressiva fachada e estava encravada na Avenida Alberto Maranhão, cujas noites silenciosas e as poucas edificações na época enchiam de medo a minha mãe. Nem sempre disponível para atender o meu pai em Mossoró, seu Belarmino não estava livre, por isso, das regulares crises de mau humor que acometiam o contratante. Católico impraticante, embora temente a Deus, meu pai desenvolvera sua religiosidade tendo como ponto de partida o preceito de que devia cuidar da obrigação com irrestrita devoção. E tantas eram as obrigações, que lhe sobrava pouco tempo para a devoção resumida quase que exclusivamente aos momentos em que, quase dominado 29
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pelo sono, as pernas pendentes da rede em que costumava dormir, contrito fazia suas orações. Mas havia os santos de sua escolha, sendo Santa Rita a primeira. E como adjutório, jamais abriu mão de uma conversa reservada com a velha cigana Ana, cujo bando esporadicamente visitava Mossoró. O que lhe dizia aquela maravilhosa andarilha tinha grande influência na correção de rumos do seu existir, da sua atividade profissional e até do seu humor. O peso de suas predições devia ser grande pois mesmo a sua mulher jamais questionou a ligação que ele mantinha com a rude oraga, tida e havida como capaz de predizer com segurança o que se devia fazer para melhorar de vida e evitar caminhos com precipícios. O fato é que tinha para com a cigana do bando de Zé Garcia uma atitude bastante respeitosa e sempre a acolheu com prodigalidade. Os diálogos que mantinham aconteciam semelhando avisos de perigo à vista, frases curtas, olhares perscrutadores e semblantes finalmente convictos. Não sei se esse ou outros rituais de que eventualmente participava meu pai, incluíam leitura de mão, cartas ou jogo de búzios. Sei que ele sempre saía dos contatos com a cigana com a expressão de quem estava bastante seguro do que a vida lhe reservava. Também se incluía entre as poucas figuras que externas à família mereciam a discreta afeição de meu pai, um agregado que até onde sei migrara, como ele, da Areia Branca de sua mocidade: Zé Doidinho. Por algum motivo ele se tomara de zelo por essa curiosa personagem. E assumira a obrigação de ajudá-lo, chegando até a construir um abrigo para ele nos fundos do quintal de outra padaria que veio a possuir, já aposentado, em terreno próximo ao 30
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cinema Jandaia, num bairro distante do centro: o Bom Jardim. A chegada do Doidinho à padaria – quase sempre de surpresa – era uma atração para os rudes padeiros de quem logo se tornava uma figura familiar. E após provocá-lo com chistes e simulações de desrespeito, que o deixavam desesperado, Debinha, Bilé, Cição davam-lhe pão doce e canecas de café forte. O pobre homem tinha uma paralisia cuja origem é difícil precisar, levando-o a arrastar metade do pequeno corpo até a eternidade. Por isso, Zé Doidinho locomovia-se dando saltinhos que provocavam risos, a desafiar a lei da gravidade. Mas sua voz era forte, jamais correspondendo àquela criatura tão frágil. Protagonizava de vez em quando espetáculos que tinham um quê de épicos naquela miséria partilhada entre risos, deboches e manifestações de admiração. Era quando, instigado por meu pai, ou por outra pessoa pela qual também tivesse respeito dava um batido em alguém supostamente merecedor de corretivo. Sendo um óbvio desdobramento semântico de bater, repreender, punir, a palavra que fez reconhecida aquele sua rude catilinária traduzia a esfregadela verbal que o Doidinho dava na pessoa indicada, utilizando-se de expressões cheias de absurdo, imagens surreais e provocando em quem assistia à performance absurda risos incontroláveis. Com o paletozinho sujigado nos ombros franzinos – um dos quais, definitivamente amortecido pela paralisia – as calças frouxas balançando no ritmo do andar vacilante, recolhia-se, cumprida a punição verborrágica, para um dos cantos do armazém, sob o estrépito das gargalhadas. Não raro, encerrado aquele patético espetáculo, o seu frágil 31
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corpo acabava dominado por câimbras que o cobriam de dormências e dores lancinantes, fazendo-o substituir o riso vitorioso por um triste choro infantil traduzido em ganidos curtos e assustadores. Nessas ocasiões, meu pai saía dos seus cuidados de patriarca e patrão inapelável e aplicava, ele próprio, demoradas massagens no bracinho atrofiado de Zé Doidinho e este – como um animalzinho de estimação – exibia, com alívio, o seu melhor sorriso alvar. E só então, o proprietário da Padaria Santa Rita mudava-se para o armazém de vendas, por cujas portas, abertas de par em par após a retirada das pesadas traves de segurança, começavam a entrar os fregueses em busca do pão, cuja comercialização garantia o sustento da numerosa família.
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em tempo e carinho suficientes para os muitos filhos, sem poder demonstrar ternura em meio à canseira do cotidiano, meu pai acumulou a injusta fama de mal-humorado, enquanto mamãe alheia a opiniões administrava a casa modesta com alegre discrição. Naquele abrigo familiar, movimentava-se ela em meio a filhos, agregados e eventuais visitantes, e revelava boa disposição para o riso. Sensível, permitira-se até, em priscas eras, escrever uns versos. Dou notícia dos poucos que chegou a dedicar ao jovem que a descobrira em Caraúbas o que a deixava desconcertada toda vez que sobre isso falávamos. Dalila tinha, pois, seus momentos de contemplação e de sensibilidade artística. Juvenal, não. A isto não podia se permitir. Avelino, de raízes portuguesas, o humor intermitente o fazia, em fração de segundo, mudar da alegria do balcão em que atendia os fregueses, à explosão suarenta do forno na substituição do mestre que se excedera no álcool do fim de semana. Ou o levava às implacáveis punições, sempre precedidas de gritos estrepitosos, destinadas a corrigir algum mal feito dos filhos.
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Mas grande era a capacidade amorosa de Juvenal dos Santos Sobrinho, especialmente na demonstração de cuidados quando um dos seus contraía alguma doença. E até podia surpreender nos almoços de domingo, chegando ao exagero de abrir ele próprio uma garrafa de moscatel para acompanhar o almoço especial com a banda de um peru comprada de algum marchante conhecido no Mercado Público, em cujas cercanias morávamos. E também ao liderar umas poucas viagens com toda a família, em marinetes que chegou a alugar para ir pagar alguma promessa, como a que nos levou à Serra do Lima, em Patu, onde modestamente reinava a santa de que era devoto, e que homenageara dando seu nome à padaria. Enchendo-nos de informações sertanejas, possivelmente com a finalidade de agradecer à santa pelo provimento de fé e disposição para continuar trabalhando, proporcionou-nos uma inesquecível viagem. E teve mesmo aquela outra, sempre evocada nos serões familiares, quando, para recreio de nós todos, decidiu nos levar no rumo do litoral, àquela mesma Areia Branca, que o vira crescer. Na praia de Upanema ficava o sítio do primo Antonio De Almino – um imenso e sorridente sobrinho de tio Gerôncio que nos recebeu para um almoço também gordo de alegria – de que retornamos a Mossoró com a pele e o espírito ardendo de sol e sal ainda embalados pelos acordes do magnífico violão de Luiz de Vovô – filho do anfitrião e tempos depois prefeito da cidade – música que ficou perenizada no gravador de nossas emoções. Durante esse período de minha infância, como tantas crianças descobri o comportamento da cigarra e da formiga na engenhosa antropomorfização – com fins marcadamente pedagógicos a favor de obrigações laborais – mostrada numa 36
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adaptação da fábula de La Fontaine. As ilustrações coloridas do livro, provavelmente presenteado por nosso tio intelectual, Alexis, me enchiam de emoção. E pude, algum tempo depois, sem forçar a imagem em si desgastada, descobrir que minha casa era um verdadeiro formigueiro, o que naturalmente estimulou minha simpatia pelo comportamento daqueles simpáticos insetos, pois era lindo poder constatar a assumida preocupação do casal-formiga de prover a imensa família de segurança e alimentos para as invernadas. O que não impedia sua forte demonstração de solidariedade, ao acolher a cigarra e seus pobres filhos, fustigados em sua imprevidência por um inverno rigoroso. Era o que eu via em lições cotidianas de minha casa. Tínhamos também uma forte simpatia pelas alegres cigarras. Afinal, faziam parte obrigatória do nosso repertório de conversas no dia a dia, as histórias dos irmãos, tios e primos que fizeram do bom humor – muitos com uma militância assemelhada – um modo alegre de viver sem ter a responsabilidade do trabalho como uma obrigação. O certo é que, quanto ao meu pai, quase tudo se resumia ao trabalho, mal surgiam as luzes da manhã e ele, livrandose do sono, com a imponência de um dignitário, com seu andar solene, cumpria a primeira tarefa do dia, a conduzir o penico cheio de mijo para despejar na sentina que ficava nos fundos da casa. Falo da perspectiva daquela em que morávamos na rua Augusto Severo, onde podia presenciar admirado sua nervosa movimentação sequenciada com a ida ao mercado. Era bonito vê-lo em seguida já com a sua camisa larga, ensacada nas calças folgadas, que ele periodicamente sujigava, para recompor a discreta elegância. O omega, preso a uma corrente, cuidadosamente acondicionado no bolso da 37
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direita, e um chapéu de massa Prada ou Ramezzoni, sempre comprado na loja de seu Malaquias, para proteger a cabeça. Tinha uma dramática imponência aquela sua figura, sempre caminhando a passos largos e conduzindo num dos braços o balde onde colocava os produtos de que se desprendiam líquidos e eram adquiridos para o consumo diário. A carne verde – cujo adjetivo indicava não a cor, logo se via, mas a qualidade de fresca, própria daquela que era transportada da matança para as bancas pontilhadas de moscas voejantes do mercado – o toucinho pro feijão; o tomate, o coentro, a cebolinha e a cebola roxa para a paçoca de carne de sol; o creme de leite fresco para untar os pães; o leite, trazido num recipiente de alumínio bojudo a exibir um brilho espelhado pelas sucessivas esfregações com areia de Tibau; e os frutos da estação. No outro braço, acondicionados num largo cesto, trazia tudo o que era considerado seco: o alho, o sal, a pimenta do reino, para dar graça à comida; a rapadura para adoçá-la; o arroz e o feijão, o macarrão, a farinha de mandioca, o açúcar e o café, este fresquinho, odoroso, recém-moído que buscava para além do mercado na torrefação de seu Joaquim Apolinário. Tudo comprado a granel. E acondicionado em graciosos pacotes cujas margens de papel os dedos dos feirantes costuravam habilidosamente. Contrastando com sua sisudez matinal, a agitada e alegre a rotina da casa mostrava intensa movimentação desde o desjejum na sala de jantar dividida por um tosco balcão da cozinha de onde evolavam os primeiros odores no preparo das comidas. Enquanto meu pai tomava o seu café apressado, os demais, num ritmo e mastigação menos intensos, também preparavam silenciosos suas manhãs: meu 38
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irmão Dedé e eu, já envergando a roupa cáqui da farda escolar, logo seguíamos para o Colégio Santa Luzia na bicicleta que ganháramos, como um prêmio, feito o exame de admissão ao ginásio, após a iniciação no Grupo Escolar 30 de setembro. Ninha, a doce irmã mais velha que nessas e noutras horas se tornava uma mãe-coadjuvante de nós, ajudando minha mãe pela manhã e, à tarde, dividindo com o meu pai o impecável atendimento aos fregueses da padaria. Dodora, que adiante se tornaria esposa de um discreto funcionário do Banco do Brasil, homem bom, também de origem simples, embora com um pomposo nome – Epaminondas – e depois dela, Socorro, varriam cada cômodo da casa enorme. E depois a arrumavam. Nesse quesito, é certo que, a não ser pela extensão da casa, quase não havia o que fazer, já que o comportamento ascético do meu pai – e também da minha mãe, oriunda de uma família bastante pobre – refletia-se nos discretíssimos pertences da família. Para se ter uma ideia, próximo à década de setenta do século XX, a dona da casa fez questão de registrar orgulhosa a aquisição de facas serrilhadas, televisão, panela de pressão para a casa. Considerava sua chegada à casa acontecimento digno de ficar perenizado num velho caderno Borrador encontrado muitos anos depois pelo meu irmão Dedé entre seus pertences. Dificilmente me esqueceria de algo de grande importância ou valor material naquela casa da Avenida Augusto Severo onde vivi restos da infância, parte da juventude: havia um modesto conjunto de sofá na sala de visita, onde morava solitário o meu avô Neco em sua redoma de vidro abaulado, a moldura de madeira orlada com desenhos em alto relevo, por certo uma homenagem do 39
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filho que migrado para Areia Branca, não queria esquecer o patriarca seridoense de cuja polidez todos falavam. Num dos cantos, o velho rádio Phillips, em que ouvíamos programas de música, meu pai “A Hora do Brasil” e, todos reunidos, a Copa do Mundo de 1958. Na saleta, sofá e cadeiras de palhinha, que os esnobes não admitiriam considerar austríacas. No quarto do casal, a cama larga, já sem serventia, semelhando um troféu, silencioso e patético. Presas a armadores e suspensas, como no poema de Jorge Fernandes, penduravam-se à noite as redes em que dormiam os meus pais. Havia também uma discreta cômoda. E uma mala enorme: baú de madeira com cantoneiras de flandres, revestido de papel cor de jerimum, ornado de traços negros semelhantes aos que decoram carrocerias de caminhão, onde meu pai guardava documentos preciosos da família. Aí se incluía uma maçaroca de papel de que se destacava um eletroencefalograma que eu havia feito durante um rigoroso tratamento de saúde por que passara no Rio de Janeiro nos idos de 59. Também aí, podiam-se encontrar pequenas e odorosas raízes, complemento da personalíssima fitoterapia com que meu pai acreditava poder enfrentar os achaques anunciadores da velhice. O quarto do meio de nossa casa era destinado aos filhos menores – Dedé e eu mesmo – também dormindo em redes. Sob a minha, uma gigantesca bacia de zinco que tornava a noite irritantemente intervalada para os de sono mais leve, com o barulho produzido por caudalosas mijadas. Havia também o feioso guarda-roupa para os pobres trajes das minhas irmãs, móvel que se permitia ter – supremo luxo – uma lâmina de espelho na parte exterior de uma das portas, provável exigência de minha mãe para cultivo do discreto 40
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donaire das filhas. Era igualmente pobre o mobiliário do quarto em que elas, as meninas dormiam: uma pequena cômoda, camas de solteiras – cama patente faixa azul, diziase – e ainda redes. Na sala de jantar, de mesa comprida e rústica, ainda sem geladeira, outra rede eternamente pendurada a um dos cantos. E uma larga cômoda onde eram guardadas mais redes e lençóis. Era ali que dormia o meu irmão Kiko, demonstrando, como os demais membros da família, que o uso das tipoias tinha uma tripla qualificação de origem e finalidade: a tradição indígena, o ascetismo familiar a impedir luxos desnecessários, e a tentativa de combater a canícula dos fortes verões de Mossoró. Aquela casa, meu pai adquirira trocando pela outra que mestre Antônio Belarmino havia construído na avenida Alberto Maranhão. O deslocamento geográfico nos mantinha, por assim dizer, no âmbito da oligarquia da Belle Époque potiguar já que a em que passamos a residir situava-se, como ficou dito, na rua com nome de avenida que homenageava Augusto Severo o aeronauta tristemente famoso, irmão do governador Alberto. A permuta se dera no retorno de uma frustrada mudança para Natal. Ele aproveitou então para satisfazer um acalentado sonho da minha mãe: um dia morar no centro de Mossoró, se possível próximo à catedral. Deixaríamos para sempre aquele trecho da avenida parcamente iluminada e vazia, a olhar para uns armazéns enormes e assustadores quando caía a noite, dos quais destacava-se o da Sanbra – uma Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro. Duzentos passos adiante, a estação ferroviária. Tudo ensombrecido, mal chegava a noite a aumentar a sensação de solidão naquela rua ainda sem 41
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pavimento e parcamente iluminada. Um dia, assassinaram um homem sob um frondoso pé de oiticica que ficava próximo à casa de seu Bias Mendes e dona Valda, que como nós, haviam saído da casa em que tinham sido nossos vizinhos na Souza Machado, e que tinham construído a sua própria também, adiante, do outro lado da rua. E aumentaram os temores e inquietações de minha mãe. A da Augusto Severo – que havia pertencido à viúva Petronilo – estava com o telhado completamente comprometido, obrigando meu pai a mudá-lo antes de para lá nos mudarmos. Mas diferentemente da outra, essa estava encravada numa rua pavimentada com enormes pedras marruadas, ainda do tempo de Padre Mota, a tornar desagradável o trânsito em automóveis e mesmo nas caminhadas a pé. Mas logo seriam recobertas com cimento, tarefa a que assistiríamos alegres e excitados vendo movimentar-se o batalhão de calceteiros contratados pela Prefeitura. Diante da nova casa víamos a Praça da Independência, com um pequeno obelisco ao centro e duas imponentes castanheiras que chamávamos de castanholas, possivelmente pela semelhança do fruto sem graça com o pequeno instrumento percussivo das danças flamengas. Adiante, já se aproximando da igreja que abriga Santa Luzia, o feioso Edifício Rocha (feioso, Deus me perdoe, como o velho Thiers, seu proprietário). E os flancos da catedral, sua fachada de torres desgraciosas e a grande cúpula, produto de uma reforma radical que o comprido e irritadiço padre catarinense Huberto Bruening implementou e que tornaram a matriz – digamos à falta de comentário mais apropriado – menos solene.
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onstituída desde Areia Branca, ao mudar-se para Mossoró, no ano de 1943, a família residiu inicialmente num bairro afastado do centro. E iniciou o seu processo de autoadoção na cidade que se tornaria cenário dos nossos dramas, chão da nossas lágrimas, mas também generoso endereço de nossas modestas conquistas, começadas quando ele arrendou a padaria pertencente a Antônio Doze Anos, nos Paredões. Já com sete filhos, e às vésperas do oitavo, José, a família reencontrava brevemente o primogênito Deífilo (ainda interno no Ginásio Diocesano Santa Luzia, mas logo passando a residir em Natal, onde iria cursar o Clássico no Ateneu) e começava de fato sua história mossoroense. Embora não fosse tão grande, aquela padaria tornou-se um seguro ponto de partida. O meu pai sabia como conquistar uma freguesia. E não se passariam dois anos já ele levava a família e os negócios da panificação para o centro, aonde chegou na altura de 1945, alojando o clã numa daquelas casas alugadas a Zé Rodrigues que ficavam na Praça Souza Machado, facilitando o acesso à padaria, na Meira e Sá, bastando atravessar o quintal. O primo Deca um dia me informou que – o que não era de surpreender – já se havia instalado também em Mossoró, alugando casa no centro e tendo aberto um grande armazém na esquina
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da Bezerra Mendes com a Meira e Sá, o casal GerôncioChiquinha que havia acolhido meu pai e seus irmãos na época do fausto em Areia Branca. Ao evocar essa época, verifico que nela se encontram os fundamentos dramáticos – no sentido mesmo de espetáculo teatral – de minha existência, como a justificar minha afinidade com esse gênero artístico. Havia o cenário mossoroense de minha infância, pobre e sem graça, mas havia igualmente a presença de muitos atores talentosos num espetáculo que parecia não ter fim. Busco meu lugar em cena ainda na praça Souza Machado, onde nasci e vivi os primeiros anos ouvindo alusões a Raimundo Juvino, um senhor rico e influente na cidade, cafeísta e prócer do PSP, em cujo palacete, do outro lado da praça, hospedaram-se um dia Getúlio Vargas, o anjo negro Gregório, e Ademar de Barros. Não estou seguro se Café Filho, que constrangia o ex-ditador – agora candidato a ser Presidente, de quem ele seria o vice – estava naquela viagem. Seja como for, a movimentação em torno da praça era intensa. E a filha de Juvino, Dinorá, feiosa e comunicativa, fascinada pela política tornara-se uma espécie de instituto de pesquisa avant la lettre. E tanto consultava as pessoas a respeito das eleições que alguém inventou uma paródia utilizando a música da campanha em que Café se elegera deputado: “Na praça Souza Machado na praça Souza Machado Ninguém mais pode passar Com Dinorá perguntando Com Dinorá perguntando Com quem é que vai votar”. 46
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Admirador incondicional do político natalense meu pai costumava repetir, já aliviado dos sofrimentos por que passara nos anos 30: sou cafeísta, morro cafeísta. Tendo acompanhado com entusiasmo toda a movimentação, vibrou com a vitória dos dois rio-grandenses – o do sul e o do norte – sem perceber que naquela estranha aliança patrocinada pelo maquiavélico Ademar de Barros se confundiam euforia, tragédia e desfecho patético para o ídolo e, sobretudo, para o seu desafeto. Já nos meados dos cinquenta, após um problema cardíaco, Café seria impedido de voltar à presidência da República, que havia assumido em decorrência do suicídio do titular. Mas nada afastaria meu pai daquela admiração. E costumava manifestar sua convicção política – a mesma dos Solons, Raimundo Soares de Brito e tantos outros potiguares – com a convicção que revelava em sua lida de panificador. A rua de casas que Zé Rodrigues construíra num dos lados da praça acolheu moradores de variada origem, e praticamente sabíamos de todos os seus inquilinos. Ali nasci pouco antes de um acontecimento trágico que marcaria nossa passagem pelo novo endereço. Foi quando morreu de parto a filha de seu Malaquias, a bela Nazaré, nossa vizinha, casada com o tio João Fernandes um bem sucedido lojista da Meira e Sá naquele mesmo endereço inicialmente ocupado por tio Gerôncio. O ocorrido, claro, impressionou vivamente a minha mãe tão experimentada e bem sucedida na questão de parir. E a morta passou a fazer parte do nosso cotidiano. Durante muito tempo visitamos o álbum de retratos de nossa família onde ela, a finada, havia “caído”, adormecida e linda numa fotografia 47
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hoje desaparecida, tal como um dia se deu com a mãe de Murilo Mendes numa acontecência surreal que o seu poema “Pré-História” imortalizou. Mas não havia notícia de piano ou música na foto da morta mossoroense. Havia, veemente, a paz de Nazaré e seu bebê natimorto a dormirem para sempre um sono que nos deixava comovidos, sobretudo porque ao partir ela deixara órfão outro menino: Giovanni, que mais adiante reencontraríamos no Colégio Santa Luzia. A casa onde nasci era desprovida de qualquer beleza e conforto. Dela posso recordar a fachada feiosa e uniforme com as demais, paredes meias, ocupando todo um quarteirão. Tinha um longo corredor, onde um dia, jogando gol-a-gol com Dedé caí e acabei sofrendo uma luxação no braço. Fui levado, por isso, a conhecer o comunismo em pessoa: o médico Vulpiano Cavalcanti, que estando de passagem por Mossoró, providenciou sua imobilização. Lembro-me dos quartos de dormir daquela casa, cheio de redes armadas, e de um pequeno alpendre de telhas limosas, dando para o quintal. E dos potes com tampas de madeira, guardando a água de beber a que se chegava após desamarrar os panos colocados sobre as bocas, para impedir que neles caísse poeira ou insetos. De tempos em tempos, soldados da saúde pública ali colocavam um líquido leitoso para eliminar possíveis larvas tornando desagradável o sabor da água que aliviava a sede e o calor. Pareciam suspensos do chão, aqueles cântaros gigantescos que ficavam acomodados numa prancha sólida, com grandes buracos justamente chamada de cantareira, pareciam – e eram – uma bela e anônima permanência ibérica da casa em que nasci, exibindo uma altivez senhorial e até restando decorativos no pobre alpendre. 48
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À esquerda da nossa casa na Souza Machado moravam pessoas como a professora-pintora Marieta Lima, que parecia desde sempre disposta a estimular o gosto do mossoroense pelas artes plásticas e fez de sua vida longeva uma das mais demoradas demonstrações de carinho pela casa e pela praça; o português seu Lucena e dona Zezinha, ela sempre a exibir turbantes à Carmen Miranda; Seu João Rebouças; Seu Joaquim Florêncio, pai de Iracema a Flor do Mercado como maldosamente a chamavam quem os conhecia, permitindo-se estabelecer uma perversa analogia entre a filha feíssima, e o nome do sortido armarinho que o pai mantinha no Mercado Público. Em sua companhia morava Dedinho, uma criança aleijada, com seu corpinho atrofiado e triste mantido eternamente num caixote no centro da sala. Cheios de medo, procurávamos nos comunicar com ele toda vez que por ali passávamos. Do lado de nossa casa moravam seu Bias Mendes, dona Valda, e os filhos alegres e afetuosos. Extremamente comunicativos, exibiam um charme no falar com o sotaque cearense trazido de Sobral e Crateús que reforçavam em nós – com o nosso, potiguar, a que estávamos acostumados e que parecia corriqueiro e sem graça – certo orgulho de tê-los como amigos. Tintin, seu caçula, com os olhos estranhamente injetados de sangue, tinha temperamento irrequieto e revelava uma lealdade trazida do berço. Terá sido o nosso primeiro grande amigo. Sua irmã mais velha, a bela Olga casaria com uma das mais interessantes figuras do período: um admirado Zéleão, que reunia em sua personalidade talentos que não inibiram um alcoolismo do qual não logrou se livrar. Foi talvez 49
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o grande craque mossoroense desde o surgimento de Dequinha, o legendário jogador do Flamengo. Formarase médico em Recife, pagando a faculdade com o que ganhava como jogador no Clube Náutico Capibaribe. Mas fez questão de não enganar ninguém. Dizia e repetia que, formado, não iria continuar jogando futebol. E de fato parou, chegando a recusar convites para seguir o mesmo destino do conterrâneo, consagrado no futebol carioca. Retornando com o anel de doutor a Mossoró, viu crescer a admiração dos que o conheciam. Porque logo comprovou ser um grande cardiologista – médico do coração, como à época se dizia em minha cidade – ao emitir prognósticos e diagnósticos irrefutáveis, estivesse sóbrio ou sob efeito do álcool. Impossível evocá-lo sem associar o seu destino ao de Heleno de Freitas, esbanjando narcisismo e carência nos campos do Rio Grande do Norte e de Pernambuco. Com justificada admiração revejo-o, sempre muito educado, cumprimentando a todos, sorridente quando à noite chegava para namorar Olga e ficavam sentados nas cadeiras de balanço de espaldares guarnecidos por panos de linho branco bordado. Quando se retirava notávamos – pela mancha escurecida que resultava do repetido contato com o cabelo untado de brilhantina Royal Briar no pano do espaldar – em qual das duas estivera sentado. À direita, moravam pessoas que também ajudaram a colorir nossas vidas: Dona Araci Menescal e o irmão, o juiz Mozart, um fanático torcedor do Sport Clube do Recife. Essa afinidade que pareciam ter com a cultura pernambucana iniciara-se, no seu caso, com a forte ligação afetiva propiciada pelo curso que frequentara na antiga Faculdade de Direito e, 50
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claro, pela força da comunicação radiofônica, das Rádios Clube e Jornal do Comércio sintonizadas em toda a região. Sempre apressado, ministrando justiça e curiosas aulas de português para ginasianos, Mozart deve ter cruzado em várias ocasiões com o ex-craque do Náutico, ficando eu sem saber o que poderia ter resultado desses encontros. Do outro lado moravam Seu Ximenes e dona Alice, com uma filharada de que éramos parentes e eternos amigos: Antônio, Cícero, Marinês e Maria Alice, João Bosco além dos mais velhos, que olhávamos temerosos e admirados; seguia-se a casa da doce Iara, de seu Pompeu, cabelos longos e tez morena, provavelmente saída de alguma leitura alencarina para enfeitar as noites ofegantes de Mossoró na praça de nossas brincadeiras. E mais adiante, seu Quincas Gomes, pai do irreverente tabelião Joca Bruno. Casado em segundas núpcias com dona Tonha, ajudaria a povoar a praça e Mossoró com muitos outros filhos, com quem tínhamos especial afinidade, todos batizados com nomes que se iniciavam com a letra ene. Nicodemos, Nemésio, Nilza, Naíde, Neusa, Nazira, Nilde, Neide e Nilo. As moças, especialmente, nos tinham grande afeição. E recebendo a nossa, mantiveram-se próximas mesmo quando nos mudamos de endereços. De todas, a mais afetuosa e romântica, era Neusa, que enrubescia toda vez que a provocávamos dizendo que era apaixonada por nosso irmão Alderi. Docemente ingênua, gostava de imitar, para nosso deleite, a cantora Ângela Maria, segurando com classe o microfone-cabo-de-vassoura, a ensaiar com voz indecisa uma interpretação de “Lábios de Mel”. Havia também Nazira, que, dominada por uma perturbação 51
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mental, revelava uma engraçada hiperatividade, alegrandonos com sua capacidade de comunicar-se utilizando-se de imagens e situações fantásticas. Todos na cidade a conheciam e divertiam-se com suas tiradas estapafúrdias. Suas escapadas de casa deixavam apavorado o velho Quincas que, por isso, a mantinha tristemente presa a uma comprida corrente que, amarrada a um dos tornozelos, permitia que se embalasse o dia todo em uma rede. Em torno de Nazira criou-se um gostoso folclore, cuja culminância seria a sua tentativa de se confessar um dia com o irreverente padre Mota. Instada a, humildemente, dizer os pecados de que pudesse ser portadora, teria replicado: “diga logo os seus”, divertindo vivamente o rotundo sacerdote. Nilza, funcionária de destaque da companhia elétrica criada na cidade, a COMEMSA, tornou-se minha madrinha de São João e ajudou a consolidar em mim a paixão rubronegra, por haver criado a expectativa de um dia me levar a conhecer o jogador Dequinha, nosso conterrâneo, numa das suas visitas a Mossoró. O craque da cidade encantava então a torcida do Flamengo e até chegou a envergar a camisa da seleção nacional em vários jogos no Brasil e no exterior, nos meados dos cinquenta. Nunca tive a chance de vê-lo em criança, pela simples razão de ninguém – a começar da própria madrinha – se dispor a me levar ao campinho da Liga, que afinal que só vim a conhecer na adolescência. Sempre que visitava Mossoró Dequinha provocava grande agitação e recebia muitas homenagens. Como todo mito que se preza, qual um rude Sebastião da bola, ele continuaria para sempre esperado por mim. E como um ídolo capaz de comprovar 52
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sua força, a eterna ausência não impediu que em mim crescesse a paixão rubro-negra, que, na verdade, teria começado até antes: muito provavelmente em 1953, ano em que se iniciou o segundo tricampeonato do meu clube de coração. Fora Aldemir, filho de tio Antônio Calazans, um dos muitos sobrinhos do meu pai – ou de minha mãe – que chegaram a morar em nossa casa da Avenida Alberto Maranhão, que com sua irreverência estimulou o surgimento de um flamenguista em meio aos vascaínos lá de casa. Assumido torcedor obriguei-me a ouvir todos os jogos que pudesse sintonizar no radinho de pilha que anos depois, ironicamente, meu irmão Alderi já morando no Rio de Janeiro nos trouxe como extraordinária novidade, ao chegar para uma das ruidosas férias em Mossoró. Como Dedé, ele era também vascaíno, mas no seu caso verdadeiramente apaixonado. Sendo também um tremendo curtidor de minha caçulice, um dia me presenteou com um papagaio. Nem a alegria por aquele presente silencioso e colorido me faria mudar de clube. Tornei-me inapelavelmente rubronegro. Não posso lhe negar o reconhecimento pelo grande favor de tornar minha audiência esportiva infinitamente mais confortável – num tímido prenúncio do que viria a acontecer mais adiante no campo da tecnologia – ao trazer um dia para nossa casa aquele rádio portátil. O lindo aparelho revestido com uma capa de couro brilhante logo demonstrou a maravilha que era: falava sem necessidade de ligar na tomada, aguardar as válvulas aquecerem ou ainda ter de contar com a sorte de não encontrar ruidosas descargas atmosféricas ou interferências... 53
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O infinito amor daquele meu irmão pelo Vasco da Gama podia ser medido por sua iniciativa de mandar emoldurar uma foto do time pelo qual torcia envergando a faixa de campeão de 1950. Era o famoso “Expresso da Vitória”, base da seleção que disputou uma copa que sediamos e da qual saímos derrotados a imaginar que não poderia haver vergonha maior. Colocado em seu quarto de dormir, o retrato acabaria provocando um episódio curioso. Um dia, chega de passagem pela nossa casa a prima Laura, vinda de Fernando Pedrosa, onde morava, decidida a visitar outros Avelinos em Areia Branca. Não podendo arranchar-se num dos demais cômodos já cheios de filhos e sobrinhos, coube-lhe ser acomodada nos vascaínos aposentos, tendo o meu irmão, momentaneamente desalojado, ido acomodar-se numa rede na sala de jantar. No dia seguinte, com ar de grande decepção, a prima lamentou-se com a minha mãe de haver rezado, até ser vencida pelo sono, para aqueles santos do quadro, só percebendo o equívoco à luz do dia.
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o exercício de lembrar a praça Souza Machado, que recebeu este nome para homenagear o sargento-mor fundador da cidade, é curioso constatar que tal logradouro não fazia jus à classificação, coisa que até onde sei não mudou uma década e meia após iniciado o Século XXI. Na época de minha infância resumia-se a um grande retângulo, cercado por uma mureta que terminava, se olhamos à direita da casa onde morávamos, nos fundos da sede do antigo Clube Ypiranga. Do lado oposto, parava na velha Escola Normal de Mossoró, onde também funcionava uma escola primária em que estudei após haver frequentado – sem que até hoje entenda o porquê – um jardim de infância que havia no chamado colégio das irmãs. As lembranças que ficaram dessa remotíssima experiência resumem-se à discreta distinção de classe ensejada pela presença dos meninos Maia e Rosado e pela doce presença de uma garota de olhos grandes, que cheirava a café-com-leite. O grupo escolar a que antes me referi, chamava-se 30 de Setembro. E com essa denominação homenageava a data que os mossoroenses reverenciam com mais fervor que a da própria fundação da cidade: a da abolição da escravatura, ocorrida sob a direta influência do abolicionismo cearense, em 30 de setembro de 1883.
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Consolidava-se, a partir dessa data, sob a liderança de uma elite política que ficou na história pela tonitruância dos discursos e pela disponibilidade de promover ruidosas manifestações nas ruas, uma tendência própria da cidade: a curtição cívica. No Clube Ypiranga, ali perto, vivemos – Dedé e eu – a glória de ser apresentados a um baile de carnaval. Como toda festa digna desse nome, aquela representava uma excitante quebra na rotina quase sempre sensaborona de nossa pobre rua. Para mim, tão pequeno, foi um acontecimento especial. E até existe um breve registro nas imagens em que sou visto na companhia do meu irmão, sentado na mureta da praça, antes (ou teria sido depois?) de entrar no clube, exibindo um ar muito pouco carnavalesco, embora empunhando um lança-perfume de vidro – cloretil, como alguns chamavam em Mossoró – que alguém me dera para fazer a pose, a repetir grosseiramente a do meu pai com os Democráticos. No curioso registro fotográfico, não faltaria a pobre Nazira, vista aproximando-se em segundo plano. As demais lembranças são vagas e confusas. Mas é certo que era um baile de carnaval para a meninada das famílias que tinham alguma posse. E tenho a clara sensação de que aquele movimento de crianças e seus acompanhantes, vestidos espalhafatosamente, muitos mascarados e todos envoltos numa atmosfera de serpentinas e minúsculos confetes, acabou me deixando amedrontado. Porém, a memória sonora, mais que a visual ficou preservada no registro de uma marchinha que mexeu com o sentimento infantil, a ponto de eu recordála em momentos diversos da minha vida, sempre com o selo da emoção. Dizia em seus versos simples apoiados na melodia romântica, típica dos velhos carnavais: 58
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Parece um para-para-para-parafuso Gingando dentro do salão. Parece um para-para-para-parafuso, Quando ela brinca com um pandeiro na mão. Me empresta, Iaiá, teu instrumento, Ai, eu não aguento Também quero brincar. Se for questão de dinheiro Eu pago, pago, pago Pra brincar com o teu pandeiro. O que terá apelado ao meu registro mental? A melodia? O compasso daquelas marchinhas, que do andamento sisudo-militar mudara-se em alegre-carnavalesco? Ou terá sido o uso repetido do dissílabo aliterado, ga-gagaiatice que mudava a preposição em verbo justaposto ao substantivo? Certamente não seria a metáfora do folião rodando desvairado a revelar intenções concupiscentes em relação à moça com o instrumento árabe que trazido por naus portuguesas e depois levado para os salões e avenidas era alegremente brandido por lindas odaliscas. Claro, não tinha eu – e também não os demais colegas de baile – a malícia de enxergar um duplo sentido que só fui adivinhar muitos anos depois, nas evocações nostálgicas da marchinha teimosa. Isto porque o instrumento carnavalesco, com uma sacana ambivalência, voltaria a povoar minha imaginação já distanciada da infância, pela contribuição de seu André, um velho e mirrado colega, que atuava como mensageiro do escritório no meu primeiro emprego natalense, passadas quase duas décadas. À época morava em Natal e passei a 59
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trabalhar na antiga Companhia Força e Luz Nordeste do Brasil, a Cê Fê Lê Nê Bê, em sua unidade no Baldo. Dado a trovas, o tal colega quebrava a monotonia das tardes do escritório no galpão em que trabalhávamos, sob o pomposo nome de Departamento de Transportes, Garagem e Oficinas, que ficava a uns poucos passos do legendário casarão de Maria Boa, recitando versos ingênuos ou sacanas. Uma tarde, envelopado como sempre em sua roupa cáqui, a exibir a surrada gravata e com um ar moleque paradoxalmente acentuado pelo ar solene da declamação, seu André disse uma glosa que garantia ser da sua lavra, composta a partir de um mote dado por um amigo. Pois não tratava também de um pandeiro carnavalesco e sua relevância líteroerótica? Identicamente, o episódio inspirador também se passava num baile patrocinado por Momo. Mas, nesse caso, o pandeiro provocou uma disputa tão intensa que, arrebatado das mãos da foliã animada, acabaria destroçado em meio a enorme confusão. Era o que diziam os versos declamados por seu André: Ela diz que foi a sina. Mas não foi: não é possível! Deixaram em estado horrível o pandeiro da menina. A pele era muito fina e o baile acabou mal. Pois no frevo sem igual não pude ter alegria: aquilo que eu mais queria rasgaram no carnaval. 60
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Nos remotos anos da infância com um natural orgulho frequentei o Grupo Escolar 30 de setembro, docemente democrático, a poucos passos de casa, confrontando com o clube famoso. Desdobramento natural da ação pedagógica do grande Elizeu Viana, e sua notável esposa Celina Guimarães, que haviam instalado a Escola Normal, iam para ali os meninos que necessitavam ser desasnados e, tendo a chance de prosseguir, preparar-se para o ginasial. O casal de educadores que marcou época na cidade – ela irmã de outra notável figura: o cronista da velha Natal, João Amorim Guimarães – viera para Mossoró após uma breve passagem pelo Seridó, com a finalidade de implantar a escola de formação de professores primários no final dos anos 20. Ela acabaria se tornando mais famosa do que o marido, em razão de atitudes francamente antecipadoras do feminismo, tendo mesmo se tornado, ainda que simbolicamente, a primeira eleitora do Estado. E também por apitar partidas de futebol de rapazes. E até por haver iniciado em leituras marxistas os meninos Reginaldo, conforme testemunho dado por Lauro numa longa entrevista que a pesquisadora Brasília Carlos transformou em livro com o título Bangu - Memórias de um Militante, publicado pelo Centro de Ciências Humanas da UFRN. Penso nesse casal notável e agradeço mentalmente a Walter Wanderley, um rico macauense que, após visitar a política, botou na cabeça que haveria de ser um escritor (por que teria eu de negar minhas dúvidas quanto a isso?) resgatando do esquecimento a rica passagem do grande pedagogo paraibano por minha cidade. No livro Eliseu Viana – um educador, diligentemente publicado pelo historiador Vingt61
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Un Rosado na legendária Coleção Mossoroense, ele aparece sem qualquer ranço machista, estimulando a esposa em ações que deviam provocar rupturas, mesmo no atrevido cenário mossoroense. Aquela escola pioneira que frequentei menino emerge de minha memória como se retirada de alguma obra-prima constante dos numerosos romances de formação que tantos conhecem: um edifício com fachada semelhando a de um antigo casarão com muitas janelas, dois pátios ladeando as salas de aula, um dos quais, contando com a sombra de uma vetusta tamarineira. Lembro-me dos grupos ruidosos de meninos e meninas fardados monotonamente de azul-ebranco, a gravatinha com listras perpendiculares a indicar a série de cada um e do cheiro anualmente renovado dos livros, cadernos, lápis e borrachas comprados na Casa Octavio. E do seixo de pedra que era passe para ir à casinha, livrar-se de apertos momentâneos. Na algazarra dos recreios lembro-me também dos vendedores que se demoravam silenciosos à espera da fome dos meninos. Entre eles havia, magríssimo e comprido, seu Ciríaco, que também habitou um poema de Dedé no livro Em Família, cujo nome todos paroxitonávamos. Num modesto tabuleiro ele exibia seus pastéis oleosos, cocadas e sonhos, e alvíssimas tapiocas que afrontavam o calor mossoroense mantendo-se úmidas e frias. E ficava para sempre alheio ao corre-corre em torno da gigantesca tamarineira que havia num dos dois pátios. Na compenetração das quintas-feiras, diante das salas que davam para o pátio, enfileiradas por série, conduzidas por Dona Hilda, Dona Noeme, Dona Dalvanir, as crianças 62
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eram regidas em barulhentas audições do Hino Nacional, ou outras patrióticas canções cujos versos iniciais teimam em se manter civicamente em minha lembrança: “Salve pátria gentil/amado Brasil/Nossa terra querida...” ou ainda uma que cantei tantas vezes com duvidosa convicção: “Estudante do Brasil/tua missão é a maior missão/batalhar pela verdade/impor a tua geração/Marchar, marchar para frente...”. Compenetrados e outras vezes gaiatos pela repetição que a ia tornando risível, cantávamos com força fascistóide aqueles versos que – não sabíamos e nem poderíamos saber – haviam sido escritos (por ironia fui informado já velho, pelo professor Google) por ninguém menos que Raul Roulien, que chegou a atuar em filmes de Carmen Miranda. Devo boa parte de minha formação – se é certo que disso posso me assegurar – àquela escola querida. Ali, vivi emoções díspares e conflitantes, como a de me desentender com um colega, por haver renomeado a condição civil de sua mãe, já falecida, episódio de que saí esbofeteado e consciente de que havia feito uma besteira. Mas vivi também um momento de quase glória por conta da questão materna. Pelo fato de haver em pleno Dia das Mães atingido a minha com um escrito horroroso a que chamavam de poesia, e que foi lido – isso mesmo: lido! – numa emissora da cidade, a Rádio Tapuyo. A súbita fama tornou-me alvo de grande curiosidade e acabei convocado pela professora do 5º ano para a simples e fácil tarefa de escrever durante a aula, enquanto os demais aguardavam, versos em homenagem a uma menina branquinha e sem graça que havia sido escolhida Miss da nossa série. 63
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Valendo-se de um tema transversal, a mestra aproveitava a onda publicitária surgida com a participação da baiana Marta Rocha no concurso de Miss Universo. Foi, por certo, um momento de rara criatividade pedagógica. Cheguei a tentar. E até repeti a tentativa, a classe expectante e tensa ante a possibilidade de ver surgir uma pequena obra prima. Mas um bloqueio mental impediu que conseguisse a consagração pelo quase improviso. E acabei saindo daquela escola tão rica de possibilidades sem mais ser notado e com um aproveitamento apenas sofrível. Manifestou-se assim a necessidade de um reforço para enfrentar uma seleção denominada Exame de Admissão, cuja finalidade era abrir passagem para o ensino médio então chamado ginasial. Tínhamos que revelar bom domínio de português, matemática, história e geografia, buscados no livro Programa de Admissão de Aroldo de Azevedo, Domingos Paschoal Cegella, Joaquim Silva e Oswaldo Sangiorgi. E passei então ao cursinho particular das irmãs Cicia e Tamela, de nomes Maria Auxiliadora Freire e Maria do Carmo Freire, ambas filhas do velho Afonso, na casa que ficava mais ou menos na metade da Praça da Redenção, olhando à esquerda para o prédio da União Caixeiral. Hoje Biblioteca Pública municipal, esse último prédio que fora construído para abrigar alunos que, formados, deveriam atender a demanda de contadores numa cidade que revelava um crescente progresso, tem hoje, diante de si, imortalizado em bronze, o escritor Dorian Jorge Freire. Na companhia de um grupo pequeno colocado em torno de uma mesa na sala de jantar, íamos ouvindo o que 64
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as irmãs – alternando exercícios aritméticos, informações histórico-geográficas e regras gramaticais com as atividades domésticas – nos passavam, e com traquejo semelhante a um daqueles professores de cursinho do velho vestibular, nos davam importantes dicas para nos sairmos bem no tal exame. Aprovado, obtive o direito de estudar no Colégio Santa Luzia onde já se encontrava o meu irmão. O velho colégio dos padres havia saído dois ou três anos antes da Praça Vigário Antônio Joaquim, deixando para trás uma curiosa confusão de homenagens: no logradouro que tem o nome do padre responsável pela passagem da pequena vila à condição de cidade de Mossoró, puseram uma imponente estátua do governador Dix-sept, doada pela cidade de Ceará Mirim, em que a imagem do político, enorme e tendo numa das mãos o diploma comprovante do cargo que ocupara tão brevemente, se encontra de pé sob o olhar de adoração do povo minúsculo. Já na avenida – que recebeu o seu nome – e se projeta no sentido dos Paredões – uma discretíssima herma do vigário. Agora instalado no gigantesco edifício que a Diocese construíra aproveitando parte do terreno que fora a ela doado por um rico comerciante para construir o Palácio Episcopal, pude viver um período especialmente feliz. Era uma edificação recém-construída, composta de um extenso bloco frontal e alas que se projetavam para dentro do terreno, com salas grandes e arejadas, abrigando diretoria, secretaria, capela, auditório, biblioteca, refeitório, cozinha, quadra de esportes e banheiros. No enorme terreno ao fundo, onde quem sabia jogava futebol de campo via-se por vezes o padre Edson, que nos ensinou, além de português 65
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a cantar em grupo o “Canto do Pajé” de Villa-Lobos. Era um padre moderno, atento ao que ocorria no país e capaz de atuar como um sofrível peladeiro, com os alunos da 4ª. Série, após sujigar a batina e dobrar mil vezes os canos da calça para liberar os movimentos das pernas. No pacote-aprovação que indicava a realidade de uma escola bem distante do lugar em que morávamos, incluíase uma bicicleta que eu deveria utilizar em sociedade com o meu irmão, projeto que logo se revelou inviável, pois era uma tortura um dos dois conseguir pedalar até o colégio, tendo que enfrentar ruas ainda não pavimentadas – muitas não passando de um terrível areal – conduzindo o outro atravessado no varão do simpático transporte que fazia de Mossoró, plana como um prato, uma recordista entre as cidades do Interior do Brasil. Experiências assim, e outras nem tão aborrecidas vivemos nos excitantes anos do curso ginasial. Algumas mesmo bastante prazerosas como, por exemplo, haver pertencido à banda da escola, tocando tarol. Ou participar de um trio musical com os colegas de classe Gilvan Marcelino e Agamenon Lopes. Após um duro período de ensaios conseguimos definir um repertório. Estávamos prontos a cantar as músicas “El Matador” e “Três Palavras” que ouvíamos deslumbrados na interpretação do Trio Irakitan. Se fomos bem com a primeira – surpreendentemente bem, já que não era fácil de ser cantada aquela música curiosamente composta por americanos (Jane Bowers e Irving Burgess) com sua levada de paso doble, síncopes bruscas, marcada com palmas e gritos de olé – com a última, um bolerão convencional, (composto pelo consagrado 66
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Osvaldo Farres, um cubano autor de outras joias bolerísticas como “Quizas, quizas, quizas”, também cantada por aquele trio conterrâneo) música certamente bem mais simples de interpretar, naufragamos. Movidos talvez por um excesso de confiança provocada pelo surpreendente êxito com a interpretação da primeira, partimos para a outra já com o pé no estribo da glória e desafinamos. Atropelamos os compassos, eu próprio esqueci parte da letra, e acabamos humilhados com a justificada reação de deboche da plateia composta por colegas das outras classes e até de alguns professores. E tivemos de pôr fim a uma projetada carreira de grupo vocal. As apresentações do malogrado trio começaram e se findaram no contexto de um alegre esforço da turma da 4ª. Série, a trabalhar fortemente para uma excursão a Paulo Afonso, à qual, aliás, terminei não indo. Restou um sabor de emoção marcada pelo toque do bongô, da tumbadora do inevitável violão e até daqueles irritantes pauzinhos – cujo nome não guardei – que percutidos um contra o outro faziam pim: pim-pim; pim: pim-pim. Não posso dizer que tivesse algum talento para a carreira cantante, como diferente e gostosamente insinuava Garcia Marquez a respeito de si próprio. Mas, pelo menos, guardei comigo a convicção de que – tal como o samba no Brasil, a despertar um prevalecente sentimento de alegria negra – o bolero nos impõe uma nostalgia de que jamais nos livraremos, despaisados que somos, eternamente em busca de um amor que nem sabemos se de fato existe. Menos mal que experimentamos a suprema honra de ter, naquele mesmo auditório do Colégio Santa 67
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Luzia, a maravilhosa cantora paraibana Marinês, que acompanhada de sua gente, apresentou-se de graça num daqueles programas que realizamos o que comprovava nossa desinibição ginasiana, pois fomos em comissão ao hotel em que se hospedara pedir-lhe apoio para reforçar o caixa da excursão já mencionada. Não é demais lembrar que a afeição que a grande intérprete do sentimento sertanejo dedicava à cidade que a aplaudiu tantas vezes (e à qual vinha, aliás, anualmente lotando auditórios), levou-a a gravar uma música-exaltação, que nos enchia de orgulho. Em sua letra repetitiva e desgraciosa não deixava de mencionar – entre outros encantos mossoroenses– a Churrascaria “O Sujeito”, onde – aliás – descobríramos a possibilidade de exercitar nossa libido, no bate-coxa dos “Besame mucho” controlando até a margem do impossível nossas dramáticas pulsões. Quantas vezes não nos socorremos de uma mudança dos pensamentos que o bolero estimulava, evocando ufanos os versos do xote com sua irritante reiteração sonora percutindo fortemente nos tímpanos de quem o escutava: “Mossoró, Mossoró, Mossoró/Rio Grande do Norte/Terra boa meu xodó”...
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enso na descrição que o neto-narrador de Coivara da Memória, (do escritor sergipano Francisco Dantas), faz ao narrar a faina cotidiana de sua avó na casa-grande da fazenda, para lembrar o compromisso transcendente do meu pai para com o trabalho. Na dura rotina de industriário, também ele padeiro em sua própria panificadora, ele empenhou a vida. E chego a desconfiar que ninguém – nem mesmo a avó antes evocada – o tenha excedido em sua luta. Acompanhemos Juvenal dos Santos Sobrinho na jornada matinal iniciada ao sair de sua casa, paredes meias com a de Caboclo Lúcio, diante da Praça da Independência. Já quase a atingir a idade provecta ele atravessará a rua Bezerra Mendes, que margeia o Mercado Público de Mossoró, com seus passos largos e uma provisão de bons dias aos muitos conhecidos. Os movimentos firmes, as muitas chaves tilintando no chaveiro fabricado com um arame grosso, semelhando o símbolo do infinito – para separar, de um lado as chaves da casa; do outro, as da Padaria Santa Rita – dobra a esquina de João Fernandes e pisa o chão amado da rua Meira e Sá. Logo abrirá a porta
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do seu estabelecimento, aonde aos poucos, respeitosos e sorridentes, chegam os demais padeiros. A camisa larga é retirada do corpo e pendurada em um torno. Veste, então, o avental grosso, que minha mãe diligentemente costurou utilizando os sacos vazios que ele reservava para esse fim. E com aquela estranha armadura sem braços, a rescender um cheiro azedo de massa ressequida e suores repetidos apresta-se à luta. Um ar tênue na vasta solidão acentua a rudeza dos parcos móveis e utensílios: a masseira, a imensa tendedeira, o armário largo onde se colocam as folhas de pão seda ou doce, ou as bolachas regalia, as muitas tábuas em que são empilhados como se em beliches dormissem, depois de prontos, os milhares de pães franceses arrumados entre dobras de um tecido encardido cujo cheiro também denuncia o tempo de uso. E o velho cilindro com seus ares de modernidade junto à caixa de força. A golda do fermento, já tendo atingido o ponto ótimo, e emanando um cheiro enjoativo é entornada na concavidade previamente feita no centro da pirâmide de duas ou três sacas de farinha alvíssima, a que se acrescentam uma, duas latas d’água, sempre ao lado esquerdo da gigantesca masseira, de lastro e paredes grossas de pau-ferro. A testeira removível, colocada à direita, impede que a mistura ultrapasse o espaço delimitado. Uma fina nuvem de poeira, um quase fog, magicamente se produz então na canícula mossoroense. Mas acalmada a dispersão das partículas com a água, Juvenal inicia a mexida. E executa repetidos movimentos com os dedos das mãos, buscando com a mistura dar liga à massa. Acrescentam-se ainda o sal e a banha de porco nas proporções adequadas. Aqui e ali sua movimentação 72
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é pontilhada pelos rudes diálogos com os padeiros que, não participando diretamente desta etapa do fabrico, assistem-na tomando café com pedaços de pão dormido. Debruçado sobre a masseira, dobrado o tronco a completar um vê invertido, ofega a cada movimento. E com os braços enfeitados de pequenas flores de massa fresca, meu pai luta para amalgamar aquela mistura ainda imprecisa de água, fermento, sal e banha de porco. E prossegue misturando, e até a eternidade repetiria os movimentos obstinados se necessário fosse. O suor escorre do seu rosto, das axilas de todo o tronco e se torna condimento jamais imaginado pelos fregueses que impacientes e felizes encherão logo mais o salão de vendas à espera do pão fresquinho e crocante. Numa luta ancestral, quase completamente desprovido de auxílio tecnológico, um homem prepara o alimento dos semelhantes. Aos poucos a massa adquire consistência e das pequenas poções iniciais, dos frangalhos indecisos à espera de mais água, sal, banha e suor, vai adquirindo consistência a liga de que mais tarde resultarão os pães. Como um agitado alquimista que busca algo precioso, com a textura tenra e uniforme, branca e odorosa, ele agora a divide em pequenos empelos, erguendo-os alternadamente sobre a cabeça, atirando-os depois vigorosamente no chão da masseira. E vai socando, socando, socando, até o momento em que reúne tudo num conjunto maior, bolão gigantesco, ainda ressentido de tanta sova, necessitando descansar – e descansar é exatamente o verbo utilizado – para a segunda etapa do fabrico. É então que, sobre as muitas traves que são colocadas de uma parede a outra da masseira, estende as velhas toalhas de cor e cheiro encardidos. 73
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Concluída essa parte, meu pai lava demoradamente antebraços e braços, esfregando-os alternada e circularmente, com as mãos ensaboadas. E retira o que sobra das massas nos vãos dos dedos fazendo cruzamentos rápidos, depois descruzando-os e ainda esfregando, como um cirurgião que acabasse de executar sua demorada tarefa. Após enxugar brevemente braços, mãos e as insistentes gotas de suor, que afloram do peito e da fronte, arruma o cabelo, veste a camisa. Bebe um pouco d’água no copo de alumínio bordado por Livina, de São Bento do Bofete. E, finalmente, abre uma a uma as três portas do salão de vendas, onde qual um rei de sóbria postura passa a receber os poucos clientes da manhã. Nessa parte do dia, apenas para vender a boia da tarde anterior, o pão dormido, pela metade do preço. E também o biscoito enganador das fomes infantis das famílias humildes, que fabrica em modestas quantidades, apenas para variar o estoque oferecido à clientela. Às onze horas fecha o armazém e retorna a casa onde comerá apressado, apressado fará a sesta e sempre apressado retornará para continuar aquela sua batalha particular. Revivescida pela força da fermentação, a massa mudou-se num ventre branco, gigantesco, atingindo o ápice, quando meu pai e o seu pequeno batalhão, agora reforçado por meu irmão Dedé e por mim, chegam para a parte final do fabrico. Lavadas as mãos na imitação daquele seu ritual podemos – os filhos mais novos – agora participar do espetáculo. É chegada a hora de matar a massa, matar significando o momento do preparo em que a fermentação é abortada. E nós enfiamos alegremente os braços naquela bolha gigantesca, montanha branca, que humilhada se desfaz, 74
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produzindo pequenas explosões e um forte cheiro de levedura à medida que executamos a tarefa. Passado algum tempo, nos posicionamos em torno da grande tendedeira. Enquanto meu pai e os outros padeiros tendo levado para ela a massa em vários pedaços a encordoam e a deitam sobre a mesa como uma serpente gigantesca com suas mil voltas, nos vemos novamente em meio a nuvens de poeira branca surgida da farinha espalhada pela mesa. Chega o momento em que ele, com uma prodigiosa rapidez, vai cortando pedaços do tamanho de uma mão, atirando-as sobre o leito da tendedeira. Por nós recolhidas – quase sempre com atraso, tal a rapidez que imprime ao movimento de cortá-la – transformamse agora em pequenas pelotas que fazemos utilizando-nos de ambas as mãos. Cumprido novo descanso, passamos à parte final do fabrico: com as mãos juntas, e os dedos unidos, realizando movimentos repetidos e uniformes, enrolamos cada pedaço da massa e lhes damos finalmente o formato que todos conhecem. Chamava-se a isso tender o pão. Um novo repouso nas tábuas em que são enfileirados entre as dobras das toalhas e, aí sim, está pronto para ser levado ao forno. Não pertencendo ao rol das suas tarefas rotineiras, cheguei a ver meu pai por várias vezes na faina de preparar o grande forno, abobadado como um iglu fervente, que havia queimado lenha durante toda a manhã sendo preparado para assar os pães. Ouço ainda o barulho da ferragem da porta e vejo a grande boca crepitando, dragão imóvel que tem de ser enfrentado igualmente por Juvenal, que o encara cauteloso, porém firmemente decidido. 75
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Concluída a queima da lenha ele utiliza uma grande vara, espécie de enxada com que puxa vigorosamente para fora as brasas sobradas da fogueira. Suando muito e com o corpo agora pontilhado de fuligem, repete o movimento de retirá-las junto com os tições e uns restos de cinza que despencam em um carro de mão sob a boca do forno. Um dos ajudantes de padeiro despeja tudo no quintal atrás do armazém, jogando um pouco d’água que referve e logo silencia, fazendo surgir o carvão, depois utilizado em nossa própria casa, ainda sem fogão a gás. E empunhando outra vara, agora de espanar, com grandes vassouras numa das pontas, faz uma limpeza no que havia restado de detritos da queima. Utilizando-se finalmente do lambaio, cuja função – imagino – era, além de eliminar os resquícios das cinzas, contribuir para que a temperatura se distribuísse uniformemente ali. Artefato idêntico aos dois outros, mas com a diferença de ter estopas presas numa das pontas. Molhado repetidamente num tanque existente ao lado do forno, o lambaio exala um odor extremamente desagradável, pelo uso repetido daquela água mensal. Era o arremate da preparação para assar os pães. Mas aquele gigantesco cotonete tinha até mesmo outra função: por sua humilhante utilização era uma das metáforas utilizadas por Zé Doidinho em seus famosos batidos. Chamar alguém de lambaio era ofensa suprema. Na hora de levar o pão ao forno, olhando-se por uma pequenina janela, com o concurso da lâmpada elétrica de forte luminosidade que era posta num bocal fixado em um encaixe no exterior da porta de ferro, era possível visualizar aquela gigantesca arquitetura de céu da boca em tijolo 76
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e argamassa aquecida a milhares de graus centígrados. Trazidas e postas sobre dois cavaletes ao lado da boca fervente, as diversas tábuas com os pães enfileirados nas dobras de um lençol encardido, começava o trabalho final. Era então que ocorria uma operação de surpreendente leveza executada pelo forneiro. Os pãezinhos recolhidos quase com ternura numa tabuinha de tamanho correspondente à fileira eram, em gesto de improvável suavidade, arrumados na palheta já apoiada na boca do forno e noutro cavalete. Com rápidas, delicadas incisões feitas verticalmente em cada um com rude bisturi – pedaço de lâmina preso a um pequeno talo de carnaúba – faziamse as pestanas, que era como chamavam os pequenos talhos, executado com a segurança de um cirurgião na barriga do pãozinho. E eram, enfim, introduzidos naquela tumba fervente sempre com movimentos suaves, por mais rápidos que fossem executados. À medida que assavam, a pestana ia se abrindo, até se consolidar numa linda borda de um dourado mais forte em contraste com o claro que o talho fizera surgir. Nem toda farinha, segundo advertia meu pai, dava uma boa pestana (“poucas, pouquíssimas como a Gold Medal”) porque, ao final de tudo ela devia se mostrar como o coroamento daquelas magias, um abrir de olho bem definido, como criativo enfeite que o pão francês consagrou. Passado algum tempo, dourados e com a crosta esmaltada em discreto brilho, o miolo branco como neve, a pestana bem definida, os pães recolhidos pela palheta em movimentos executados com a mesma insuspeitada suavidade, eram, finalmente, arrumados nos grandes cestos e levados ao salão de vendas. 77
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Ainda não era chegada a terceira hora da tarde quando o cheiro morno que provinha do outro armazém invadia a área onde logo se iniciava alegre batalha. E buscando desdobrar-se para atender os que entravam apressados para comprar o pão para o café da tarde – juntamente com Ninha, Dedé e eu, já de banhos tomados – meu pai, agora livre do avental suado e da canseira do fabrico, revigoravase no atendimento cheio de animação que incluía breves motejos quando queimávamos levemente as mãos na pressa de retirar, uns após os outros, os pães fumegantes dos balaios para embrulhar e entregar aos clientes.
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ntre os muitos fregueses que iam chegando para a agitação das vendas, vinha sempre um comunista histórico de Mossoró: seu Jonas – um dos meninos Reginaldo, aqueles mesmos presenteados pela legendária professora Celina Guimarães com livros marxistas. Tudo nele era infinitivo: o olhar, o andar, o falar a traduzir sua militante ideologia. Parece que estou a vê-lo em seu terno cáqui, sobre uma camisa marrom, o chapéu de massa a proteger a cabeça e o bigode vasto e negro guarnecendo o lábio superior, ornamento senão estalinista, próximo ao menos do de Anastas Mikoyan, o armênio que exerceu cargos de vital importância na cúpula do poder na então União Soviética. Era um daqueles fregueses, tantos, tão interessantes, tão variados e ricos em sua humanidade a alegrar modestamente aquele panificador cioso da qualidade do produto que trazia ao balcão. Conferente da prefeitura na pesagem das carnes que provindas da Matança seriam entregues no começo de cada tarde nos açougues do mercado, seu Jonas se apresentava como um alegre provocador com o seu inesgotável estoque de ironia revolucionária. Não creio que tenha havido um
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freguês mais fiel do pão fabricado na padaria do meu pai. Baixinho, com seu andar discreto a conduzir a franzina compleição, nunca o vi envergando outra roupa. Como jamais cheguei a vê-lo descoberto, sem aquele chapéu de massa idêntico ao do meu pai. Na similaridade do chapéu e no regular encontro, aliás, cessava a aproximação. Porque a sua entrada vespertina no salão da padaria já era prenunciadora de acaloradas discussões políticas. A semente da discórdia – como diria meu xará narrador de Doutora Isa, de Juarez Barroso, narrando imaginária peleja entre a protagonista Margô e uns gringos compradores de madeira no sertão do Matias, que se dirigindo a ela em inglês, pareciam provocá-la – era quase sempre lançada por ele, o companheiro Jonas. Ouvinte assíduo da Rádio Central de Moscou, traquejado pelas incontáveis reuniões do Partido Comunista, de que aquele irmão Lauro – o Bangu, amigo de Prestes, chegara a ser membro do Comitê Central – desenvolvia com rara competência a análise crítica das mazelas políticas brasileiras. Já o meu pai, irregular ouvinte de “A Hora do Brasil”, investia duro sobre os desmandos que começavam a corroer o sonho de Lênin de, tendo unido pela revolução outras culturas numa única república – a soviética – oferecê-la ao mundo como exemplo da capacidade humana de ser solidária, justa e incorruptível. O conflito verbal cotidianamente travado era – na prática – a comprovação de que a busca da verdade democrática nem sempre se dá de modo cordial ou pouco ruidoso. Introduzidas como preliminares bem humoradas ou irônicas, as ideias começavam a pegar calor e logo 82
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crepitavam os ataques e revides exaltados que os faziam elevar o tom da voz, divertindo os demais fregueses que se obrigavam a assistir ao extemporâneo bate-boca, enquanto aguardavam ser atendidos. E quando se esgotavam os argumentos de ordem econômica, política ou ideológica, o meu pai cheio de rude ironia dava a estocada inapelável, sugerindo uma mudança que ele sabia muito pouco provável para aquele velho comunista: - Pois vá pra Rússia – ele, por algum motivo especial nunca chamava União Soviética – vá pra lá..., você não diz que é tão bom? Por que não se muda pra lá? Sem aparentemente acusar o golpe, o companheiro Reginaldo ainda tentava, valendo-se também ele do recurso da ironia, que dominava tão bem, apontar nosso atraso endêmico, o descompromisso das elites, e como se tivesse tudo decorado, expunha com precisão didática algumas das lições aprendidas remotamente, desde aquelas descobertas juvenis. Ilustrava com ar superior nosso modesto desempenho fabril comparando-o com o salto industrial ocorrido na fase estalinista. E punha um ponto final à discussão, recorrendo à realidade prosaica e concreta vivida pelos dois na tarde calorenta de Mossoró: a confirmação de que há muito o aguardava o pacote de pães já feito e já pago, pronto para ser levado para a sopa do começo da noite. Nunca se colocava naquelas discussões, ao menos que eu me lembre – e, quem sabe fosse um dos seus motivos não declarados – a opção política do meu pai: cafeísta, como tantos brasileiros do seu tempo, impressionados com o destemor legislativo do ex-advogado sindicalista 83
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das Rocas, bairro da capital. Nunca se chegou também a cogitar – minha memória igualmente não o registra – da perseguição operária na região das salinas, a ação do Sindicato do Garrancho, ou da enorme confusão decorrente da insurreição de 35, com a implacável repressão ocorrida. Não poucos adeptos do líder natalense sofreram então tanto ou mais que os comunistas que deflagraram o levante. Lembro-me da estranha figura de Gastão, um doidinho que vendia jornais demonstrando sua simpatia por Café Filho, o qual no final dos anos 80, já alquebrado pela velhice miserável, tentei entrevistar para a Tribuna do Norte de Natal. Por mais que me demorasse indagando sobre sua participação, nada consegui talvez em razão do seu tumulto mental ou da mera ingenuidade política que o levara à prisão. Era o mesmo Gastão que ainda hoje é possível encontrar admiravelmente descrito em poucas linhas por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere como exemplo de tal injustiça. Recolhido em Natal, por insistir em gritar vivas a Café Filho, também ele foi mandado para a Ilha Grande e teve de participar daquele mesmo festival de horror que o velho Graça testemunhou. O meu pai, evitava conversar, mesmo em família, sobre o transtorno que também sofrera em Areia Branca. Quando morreu assassinado um odiado feitor de salinas Chico Bianor, não foi difícil se chegar a uma autoria com motivação política. E instalou-se o terror em Areia Branca. O sufixo ista, que os correligionários de Café faziam questão de utilizar, tornavam-nos alvos da desconfiança dos conservadores. Denúncias e perseguições. Logo seria preso um destacado cafeísta, José Solon. E o meu pai foi 84
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se deixando dominar por uma incontrolável paranoia. Incutiu na cabeça que sua hora não tardaria: e apavorou-se ante a perspectiva de não poder criar os filhos, todos ainda pequenos. O pavor atingiria o seu ápice com o assassinato do sindicalista Manoel Torquato. O medo se instalara nos corações e nas mentes por todo o Estado e mais ainda na cidade litorânea vizinha a Mossoró. A tensão o dominara de tal forma e com tanta força que ele se viu obrigado a, cumprindo orientação de um médico local, mudar-se de Areia Branca, com minha mãe e a meninada de então para os sertões de Vovô Neco, no Seridó, em busca de recobrar a tranquilidade. Santa recomendação. O medo não demoraria a desaparecer na revigoração trazido pelos ares do sertão, o leite cru dos currais, a boa carne de sol com arroz de leite, a paçoca, o queijo de manteiga derretendo no tacho, a umbuzada e nas boas conversas conduzidas pela serenidade paterna do alpendre e do copiá. Ao retornar para Areia Branca, já estava pronto a novamente lidar com as massas. E, embora continuasse – como eterno cafeísta – a aceitar, já agora na cena mossoroense, as provocações do companheiro Reginaldo, ficaria circunscrito, como soía acontecer no seu caso, apenas aos pães, roscas, bolachas e biscoitos que resultavam dos ensinamentos empíricos do líder João Baixinho. Junto aos que admirados assistiam àqueles pegas monumentais entre o meu pai e o companheiro Jonas, estava, quase sempre a negra Clotilde, vendedora de pastéis, outra figura que povoa de ternura meus guardados memorialísticos. Rosto redondo e brilhante, cabelos esticados na croa da cabeça para disfarçar o pixaim, tinha 85
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o seu horário certo de passar e o fazia sempre depositando sobre o balcão o cesto com alça em que conduzia, ainda quentes, arrumados e cheirosos, os pastéis e o molho de pimenta malagueta. Os quadris largos e as pernas arqueadas proporcionavam um balanço especial ao andar. Se bem me lembro – juntamente com uma pequenina e alegre serviçal que, penso, trabalhava na casa da pintora Marieta, (a qual, pobre descendente de pigmeus, de tão feiinha chamávamos Maria Marta Rocha) era Clotilde a única descendente direta de africanos que frequentava regularmente o balcão da padaria, tornando-se pela visita cotidiana e alegre uma figura familiar e querida por todos nós. Tranquila, tendo sua índole alegre, moldada por uma ancestralidade cuja disposição para a revolta contra a injustiça social, em muitos casos fora atenuada por um malicioso compadrio e o sensual convívio de cozinhas e alcovas, negra, gorda e sorridente, Clotilde morava com o único filho, Zezinho, em casa do português Lucena e Zezé Frota vizinhos de rua na praça Souza Machado. Deles, o menino receberia o provimento da educação, tornando-se um vitorioso na cidade ao ser aprovado para o Banco do Brasil. Esse emprego era tudo o que alguém desejaria para um filho, por essa época em minha cidade. Porém, se alguém imaginou que tendo um filho bancário, Clotilde ia deixar de vender os seus deliciosos pastéis na praça da catedral, enganou-se. Aquela rotina, mais até que a ascensão social do filho, era a sua própria manifestação de afirmação, seu modo de dar sabor à vida, compartilhando com os outros a sua simples alegria. E os conduzia higienicamente acondicionados num cesto gracioso, que levava no braço 86
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com aquele seu andar balouçante, até sentar-se – atenuada a canícula da tarde mossoroense – no banco da praça localizado diante da Catedral. Com o passar do tempo, acrescentara àquela sua empresa itinerante uma pequena panela com carne moída fortemente temperada, com que recheava metades de pão francês que comprava na padaria do meu pai, e que justificava sua passagem rotineira. Orgulhosa, vendia-os como “cachorro quente”, num modo criativo de acrescentar mais algum lucro ao obtido com a venda dos seus pastéis. Os diálogos que Clotilde costumava travar com o meu pai, alegres e rápidos, tornaram-se uma divertida herança para o meu irmão Kiko, quando este, assumindo o comando da Padaria Santa Rita, mudou-lhe o nome para Panificadora Kátia – singela homenagem que decidira prestar à primogênita do irmão Deífilo. Sem a presença respeitosa de seu Juvenal, os diálogos tiveram acentuados o tom chistoso, o colorido, a maliciosa alegria que ela costumeiramente empregava. Lembro especialmente de um comentário seu naquela tarde em que eu me esforçava para atender rapidamente os muitos fregueses que impacientes nos chamavam, ela – querendo eufemisticamente ressaltar diferenças visíveis entre a minha aparência sem graça, de menino sobrancelhudo e a do meu irmão, belo e espirituoso – comentou como quem não queria nada. - E Tarcísio, hein Kiko? Ele é assim... tão diferente de você, né? Docemente sacana, o meu irmão logo arrancaria o riso da plateia informal – e em mim mais até do que nos demais presentes, acostumado que já estava a admirar 87
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sua verve indiscutível. Aproveitando-se do fato que eu houvera sido concebido já na maturidade dos nossos pais, respondeu sem muita hesitação à curiosidade da boa Clotilde, evocando a informação já de todos sabida, numa perfeita associação do fino humor dos Gurgel ao comentário debochado, típico dos Avelino. E deu uma explicação originalíssima: - Tarcísio? Ora, Clotilde: Tarcísio é desse jeito porque já foi feito com a borra...
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movimento no salão de vendas da Padaria Santa Rita revelava um comportamento do meu pai, capaz de confirmar o que disse quanto ao seu humor, confundindo os que o tinham na condição de uma pessoa eternamente sisuda, pois enquanto durasse o atendimento aos seus fregueses, ele se mostrava alegre e comunicativo. Nos momentos de pico, corríamos sem descanso no atendimento: ele próprio, Ninha, que já tendo dedicado parte do dia a minha mãe, na administração da casa, completava o auxílio filial no alegre atendimento do balcão, meu irmão José e eu, todos formiguinhas incansáveis. Kiko, ainda exercitando sua condição plena de maravilhosa cigarra, a encantar palcos, dancings, praças e cabarés mossoroenses com sua admirada beleza, iria adiante assumir aquele papel no comando da padaria. Mas, até então, no confronto diário estávamos nós. E Juvenal nessas ocasiões se mostrava espirituoso, tendo sempre um comentário brincalhão, um agrado para os fregueses que não paravam de chegar. Era de ver a habilidade que demonstrava a embrulhar os pães (não exageraria chamando costurar ou mesmo entrançar a curiosa operação) com movimentos repetitivos e rápidos, fechando as abas do papel utilizado, produzindo belos pacotes. Cortado em tiras de tamanhos variados, esse papel
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era mantido em pilhas arrumadas no balcão sob pequenos blocos de madeira para evitar que voassem. Embalávamos, nós também, buscando imitar o que ele fazia, quantidades diferentes de pães e numa idêntica operação fechávamos as bocas dos sacos de papel nos quais despejávamos bolachas e biscoitos, entregando-os prontinhos aos clientes. Essa rude tecnologia que canhestramente assimilamos, era realizada utilizando-se o polegar, o indicador e o médio, enquanto o anular e o mindinho davam apoio à rápida movimentação. Nós bem que tentávamos acompanhá-lo em seu ritmo frenético. E é claro, não conseguíamos. No final da tarde, fazia breves observações dando a medida do seu conhecimento da freguesia (“Fulano hoje não veio” ou: “não vi ainda dona Sicrana”, ou mesmo: “Beltrano voltou. Parece que não gostou do pão de padaria tal”). Como um rei cansado, concedia finalmente sentar-se no pobre trono que não passava de um tamborete com assento de couro que permanecia diante da mesa ao lado do velho cofre. E com a gaveta apoiada no colo, contava as cédulas e moedas que remuneravam o seu duro trabalho. Havia apenas uma ocasião – uma apenas – em que aquele espetáculo das vendas acabava se tornando desagradável para ele e, é claro, para nós. Era quando, resultando da má qualidade da farinha “ah!, quem dera pudesse continuar usando uma farinha como a Gold Medal!” a mexida do pão desandava. E sua competência era posta em dúvida, porque os pães trazidos ao salão, borrachudos e encolhidos, com ares de humilhação, enchiam-nos de insegurança, pois pareciam grosseiras caricaturas daqueles que tradicionalmente eram oferecidos aos clientes. Acontecia, então, algo rigorosamente 92
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improvável: o meu pai desaparecia. E não era um sumiço do tipo vou ali e volto já, com eventuais, raros atrasos. Ele desaparecia total e demoradamente. Sem que nenhum de nós notasse em que momento isso ocorria, cadê Juvenal que estava aqui?, conduzindo sua enorme vergonha, se escafedia para só reaparecer na boquinha da noite, às vezes até, já de banho tomado, para contabilizar a féria. Ainda amuado e sem dar qualquer explicação. Nosso espanto com a sua extemporânea ausência talvez nem se justificasse. Afinal, permanecer no salão de vendas o obrigaria a utilizar um tipo de argumentação que não se coadunava com o seu comportamento profissional. Para ele, não havia fornada que não se completasse com o reconhecimento entusiasmado dos fregueses. Mesmo que não existisse mais a Gold Medal. Assim, não creio – e me valho dos exemplos que pude presenciar – que possa ter havido pessoa mais ciosa dos compromissos assumidos, sendo que um parecia ser único e irrevogável: prover sua grande freguesia do pão que era considerado o melhor de Mossoró: o pão de Juvenal. Um dia, na afobação de substituir um padeiro incumbido de passar no cilindro a massa de uma mexida de pão crioulo, e não chegara a tempo, teve de assumir a tarefa para que não houvesse prejuízo nem – o que era mais importante – viesse a faltar o produto para a venda da tarde. Possivelmente pelo fato de ser um padeiro ainda na velha tradição da artesania não demonstrava a habilidade de outros que me acostumara a ver na execução das tarefas no cilindro. Sem a leveza daqueles que movimentavam a máquina com braços bailarinos, arfando ele atirava os pedaços de massa, como se preferisse deles se livrar. Vejo-o diante da bandeja de 93
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madeira, ajustando sem convicção os tambores que deviam afinar a massa. Ainda ouço o barulho da máquina e o giro doido da polia movimentando a grande roda lateral levando a energia para o contínuo girar dos tambores. Pequenos empelos de massa são atirados a intervalos na tábua inclinada, escorregando com facilidade sobre o fino tapete de farinha, e vão adquirindo uma especial consistência após serem espremidos entre os dois tambores horizontais completando a liga e a textura menos úmida que a das outras massas. Dentro do grande armazém, entretido com alguma coisa que não consigo lembrar, adivinho um movimento imprevisto e pavoroso. Ao invés do barulho do motor e da massa, que arremessava a intervalos para justificar o movimento das polias, eram os pés do meu pai que percutiam o chão num ritmo desesperado. Gritos assustadores, apelos de socorro, cheguem aqui, depressa!, alguém desligue esse motor! Os dedos de sua mão direita estavam presos entre os tambores e ele, olhos arregalados e a ofegar, segurava o braço com a outra, evitando que o apetite do cilindro a consumisse por inteiro no esmagamento que apenas começara. Seus gritos paralisaram o adolescente que dominado pelo susto não se mostrou capaz de socorrê-lo. Sequer tentou. Por quê?, ainda hoje me pergunto. Porque acostumado a sua aparentemente infalível atuação jamais imaginasse algum momento – sem contar aquelas retiradas estratégicas do balcão – em que ele fraquejasse, revelando uma impensável insegurança? Ou simplesmente porque coubesse ao filho paralisado – aquele fim-de-rama leso, sem iniciativa e não a outro dos irmãos, ou até mesmo um parente qualquer, vindo do sertão ou do litoral numa 94
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daquelas visitas periódicas – assistir àquele momento dramático a prenunciar o fim de um ciclo? Um dos padeiros, dos que eram esporadicamente contratados por ele, um tipo alegre chamado Batista, tendo entrado naquela hora foi também despertado pelo terrível barulho e acudiu desligando a chave do motor de força, ajudando-o em seguida – ao levantar ao máximo a afinação dos tambores – a se livrar do maldito esmagamento. E o meu pai, com os mesmos passos decididos de sempre, dirigiu-se à calçada, em busca de um carro que o levasse ao hospital, segurando o pulso da mão direita com as falanginhas dos dedos esmagadas, como uma rosa ensanguentada. Em nossa casa era possível notar um crescente movimento para que ele deixasse aquela luta e se aposentasse. Aproximando-se dos sessenta anos, a constatação do envelhecimento se fazia cada vez mais forte. Sob a ostensiva liderança de minha mãe, Alderi já residindo no Rio, passara a defender a ideia de que ele devia entregar o comando da padaria a Kiko – que vinha de uma frustrante inadaptação à vida carioca. A conspiração o colocava no meio do bulcão familiar, todos querendo obrigá-lo a largar as atividades de padeiro. Outros episódios, a começar da paranoia cafeísta, eram agora lembrados como a reforçar fragilidades e passos em falso difíceis de acreditar. A intempestiva mudança que o fizera enfrentar com a família estradas que desapareciam em meio a uma grande invernada até chegar a Natal, por exemplo. Com sua ajuda, Alderi havia aberto uma pequena padaria no bairro do Areal. O meu pai encasquetou na cabeça que aquele filho não ia conseguir dar conta das enormes 95
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responsabilidades de administrar uma empresa de panificação por humilde que fosse. Contrariando o que o outro pensava em Natal, num abrir e fechar de olhos arrendou a Padaria Santa Rita, alugou a casa que havia construído na Alberto Maranhão e pôs num caminhão-misto, minha mãe, os demais filhos, o papagaio e outros modestos pertences, saindo em socorro de Alderi, como uma cavalaria partiria para salvar a patrulha sitiada por índios num western americano. Sua heroica iniciativa revelouse um total desacerto. Seis meses depois, retornávamos a Mossoró e ele, não podendo voltar de imediato à sua padaria ainda sob contrato de arrendamento, meteu-se a vender peixes, comprando-os de pescadores pras bandas da Gangorra, Tibau, sei lá eu aonde. Numa daquelas viagens, o caminhão acidentouse e ele machucou seriamente uma perna resultando num prejuízo que determinou o encerramento dessa atividade, contribuindo para aumentar ainda mais os pavores de Dalila. Não há como esquecer também que ele tinha ainda um problema neurológico, classificado como reumatismo, que o incomodava sobretudo quando os primeiros relâmpagos, cortando a noite, prenunciavam a chegada das chuvas. Manifestando-se através de dores nas pernas, causava-lhe uma forte insegurança pelo permanente temor de cair. Curioso observar que se tal acontecia, ele, bem humorado, repelia sorrindo toda e qualquer ajuda, alegando que se o acudissem, recolocando-o em pé, não se sustentaria: voltaria a cair, como um boneco desarticulado. Por isso tornou-se mais doloroso vê-lo na luta cada vez mais recorrente e difícil de reerguer-se. 96
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osta em xeque desde o acidente que quase aleijou sua mão, a capacidade de trabalho de Juvenal dos Santos Sobrinho era agora olhada com reserva, fazendo crescer as manifestações de desconfiança quanto a sua antiga vitalidade, seus reflexos, sua incomparável disposição. Nem adiantariam as toneladas de sebo de carneiro capado que esfregou nas juntas dos dedos enrijecidos após as suturas. E ele jamais recobraria sua condição de trabalhador infatigável, porque dependera sempre e essencialmente das mãos. Por isso, aposentouse e concordou em passar a padaria ao controle do filho Kiko, agora projetando casar-se. Porém, uma última tentativa de renascer ao menos para o simples comércio da venda de pães ainda seria feita. Abriu um negócio – a que também chamou de padaria – lá longe, nas proximidades de um cinema popular, o Cine Jandaia, que havia pros lados do bairro Bom Jardim. Sem mexida de pão ou fabrico de bolachas, acabaria se tornando uma tímida sucursal da outra, de que recebia os pães para revenda. E levou consigo Zé Doidinho, acomodando-o tristemente num quartinho que mandara construir no fundo do grande quintal.
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Ainda que soubesse ser difícil uma aproximação mais forte com meu pai, (já que pela incômoda diferença de idade entre nós não ousaria classificar como espontânea nossa relação), as questões de doença acabaram nos levando a uma inevitável aproximação. De mais a mais, diante da sua tristeza de exilado, percebi que me cabia tentar, pelo menos, ser solidário naquela sua resistência silenciosa que parecia ser uma questão de honra. O seu empenho de provar que não estava inválido. Cabia-me certamente acompanhá-lo naquelas lonjuras. E auxiliá-lo no que fosse possível, sobretudo mantendo-me próximo, torcendo para que não voltasse a cair. O certo é que Juvenal dos Santos Sobrinho não conseguia mais esconder a tristeza inapelável. Talvez a dolorosa intuição de que o que projetava não daria mais certo. E apenas eu o vi melancolicamente sentado na solidão da tarde suburbana, com o seu chapéu de massa, um velho jornal nas mãos, diante de uma padaria sem fregueses, o tempo a passar tristemente ao som de um rádio que, ligado na casa defronte, enchia a tarde com a voz do jovem cantor: “Quem não acreditar/venha ver a multidão/que com ela quer dançar”. O que tinha a ver uma música assim, tão juvenil, com o seu drama? Rigorosamente nada. Mas essa constatação não evitaria que se tornasse tema sem graça para aquela tristeza que até hoje não cessa. Tolhido em sua voluntariosa capacidade de decidir sobre o que decidir, e ainda – se necessário fosse – decidir sobre essa decisão, viu-se preso, algum tempo depois, a um leito de enfermaria na Casa de Saúde São Lucas, numa Natal que ele – do mesmo modo que sua companheira – sequer chegou a amar. Os achaques da digestão haviam 100
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se acentuado e chegara até a abrir mão da fitoterapia para consultar a medicina alopática ao perceber que o quadro se agravava. No hospital natalense, enquanto de uma forma assustadora foi se acentuando a perda de carnes, como minha mãe registraria adiante, passou a mostrar uma profunda e definitiva tristeza no olhar sob a testa vincada pelas mil rugas horizontais. Nem a formatura temporã do filho primogênito, bacharelando-se em Direito, e indo até o hospital – já vestido com as vestes talares, apenas para ver se lhe despertava um último sopro de alegria – serviu para um desanuvio de semblante. O medo crescente de não poder curar a doença implacável jamais o abandonou. E só fez aumentar na proporção em que o seu físico se deteriorava, tornando a sua vida um sofrimento permanente quando a internação revelou-se inevitável. Mesmo assim, houve um dia em que sua triste imagem pareceu iluminar-se. Mané Garrincha, o gênio das pernas tortas viria participar de um jogo em Natal vestindo a camisa do Alecrim Futebol Clube, temporariamente protagonista no campeonato local. O clown maravilhoso que um dia envergou o uniforme da seleção brasileira e fez a alegria do povo em todo o mundo, ao jogar de forma inesquecível duas copas (em 1958, na Suécia e 1962 no Chile), tornara-se uma das poucas e, certamente, a mais genuína admiração do meu pai. A sua picardia e o jeito maroto de encarar as coisas, a doce irresponsabilidade nos campos e na vida, inversamente ao grave modo de vida que ele, Juvenal, se impusera, tornara-o um insuspeitado admirador do ingênuo herói popular. Aquela admiração tão forte devia ter raízes em seu remoto envolvimento com o futebol na 101
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juventude areia-branquense. Sem jamais demonstrar talento para qualquer tipo de esporte, mas gostando de uma boa disputa, chegou a ser por um breve espaço de tempo, um híbrido de proprietário e treinador de um time. Ocorre que, além de infernizar a vida da jovem esposa, que enxergava naquilo um sorvedouro do dinheiro por ele ganho com tanta dificuldade, a equipe não chegou a registrar nenhuma glória em sua curta existência, o que contradiz um curioso comentário que cheguei a ouvir de Ninha, já octogenária e eterna admiradora dos nossos empreendimentos. Meu pai – disse-me um dia com a gravidade que a informação recomendava – foi um Telê Santana de Areia Branca. Pois o seu interesse pelo futebol voltava com força em tempos de copa do mundo. Especialmente naquela que o Brasil veio a conquistar em 1958 na Suécia, na qual ele ouvira pela primeira vez pronunciarem o nome de Garrincha. O mesmo jogador que – quem diria! – dali a poucos dias estaria em Natal. Em carne e osso. Mal sabia meu pai – e nesse caso forçoso era admitir que era melhor que assim fosse – também seu ídolo começava a ruir, nem de longe lembrando aquela figura que alegrava torcedores de todos os matizes infernizando a vida de um batalhão de Jordans, Coronéis, Altaires, Pedros, Antônios, Franciscos e Joões. O motivo da vinda de Mané Garrincha a Natal era, pois, participar de mais um jogo-exibição dos que agora lhe arranjavam, e que rendiam algum dinheiro quando, se acentuando o problema do joelho da perna deformada – comprometida definitivamente a firmeza dos movimentos eletrizantes que executava em campo, rodopiando sobre a bola, fingindo driblar para a direita e driblando, inventando 102
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um louco movimento de disparar e súbito parar, não raro derrubando humilhantemente o adversário – desapareceram os contratos com os clubes. Mas a legenda do herói de duas copas ainda mobilizava multidões. E o Alecrim Futebol Clube foi o time escolhido para que ele fazer um jogoexibição em Natal. No dia dessa partida, a irmã diretora do hospital, que já ouvira falar daquela admiração do meu pai, visitou-o pela manhã cumprindo uma rotina consoladora. Ao chegar à enfermaria perguntou-lhe: - Seu Juvenal já está sabendo que Garrincha vai jogar hoje em Natal? - Ouvi falar, madre... - E não quis ir ao jogo? A brincadeira carinhosa, parecendo embutir uma doce maldade, levou-o a lamentar-se: - Quem sou eu, irmã! Quem me dera! A santa freira, cujo nome desgraçadamente não guardei, nos advertira – e até havia orientado serventes e enfermeiras para manterem corredores e enfermarias em absoluta ordem – porque Garrincha viria até hospital. E ia à enfermaria onde se encontrava meu pai. A imaginação daquele pobre homem deveria estar viajando pelos campos da Suécia, quem sabe pensando naquela partida final, sorrindo intimamente com a descrição que o narrador fazia tentando acompanhar a picardia de Garrincha. Embora preocupado com um aguerrido viking de estranho nome – Gunnar Gren – a quem se referia com a nascente surdez que a precária transmissão radiofônica agravava, como o magrim: esse magrim é danado – dizia 103
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– é preciso ter cuidado com o magrim!, nada o fazia desacreditar que lançando mão de um dos seus movimentos previsíveis, porém inesperados e surpreendentes, Garrincha não desmontasse a defesa eslava. O fato é que meia hora após haver terminado a triste pugna no estádio, que tinha o nome de Juvenal Lamartine, xará e conterrâneo seridoense de meu pai – já boquinha da noite, reinando a mais absoluta calma no hospital – Mané Garrincha entrou com seu andar gingado e sorriso infantil na enfermaria em que ele se encontrava, puxando a fila das muitas pessoas que acabaram se aglomerando no corredor. Ali estava, diante do seu leito de enfermo, o ídolo cujas façanhas acompanhara um dia com tanto prazer. Era ele em pessoa. Gordo e cansado, é verdade. Mas com aquele mesmo sorriso que lhe iluminava o rosto ao driblar dois, três, quatro suecos e quem mais tentasse impedir sua investida rumo ao gol adversário. Assustado e sem conseguir disfarçar a emoção com aquela surpresa, o meu pai desatou a chorar. Garrincha, ainda vestido com o uniforme suado que usara na peleja de há pouco, tentava consolá-lo. Punha a mão no seu ombro magro, pegava em sua mão, dizendo palavras doces e exortações de um desajeitado otimismo. Na enfermaria agora cheia de admiradores, ninguém sabia o que falar e diante da cena todos acompanharam comovidos o choro do meu pai. - Chore não, seu Juvenal – dizia aquele menino tão levado que ele ainda podia imaginar disputando a final na Suécia – o senhor vai ficar bom, seu Juvenal... Não chore não... Passados os poucos minutos em que aqueles dois 104
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dramas se misturaram numa doce confusão de trajetórias humanas rigorosamente distintas e tão próximas, Garrincha foi singrar os mares do chope noturno. E meu pai com sua face amargurada viajou em uma foto para as páginas do Diário de Natal que no dia seguinte, emocionaria milhares de desportistas, ajudando a minimizar o amargo fiasco da apresentação de Mané. Se a ele – Juvenal – pudesse ser dada a chance de comentar aquele episódio, livre para sempre do câncer, e daquele choro que não conseguia controlar, estou certo de que, em que pese sua costumeira discrição, concordaria em explicar como tudo acontecera, quem sabe num daqueles despertares da brevíssima sesta da espreguiçadeira próxima à sala de jantar de nossa casa. Afinal, tratava-se de dizer que estivera com Garrincha. Chegara até a conversar com Garrincha. Mas o relato não revelaria qualquer vaidade pessoal. Meio sem jeito, embora com firmeza, haveria de começar com uma frase que costumava usar quando tentava colocar na conversação um argumento muito forte que adiante iria defender: uma curiosa construção em que misturava restos de português castiço e rude onomatopeia que, lhe possibilitaria revelar um nadinha de orgulho por descobrir-se importante a ponto de merecer aquela visita de um bicampeão mundial de futebol. - O sujeito diz: ai, tal que vereis, pê-pê-pê, tá-tá-tá... E tocaria a conversa, porém cuidando em abreviá-la, ao consultar o ômega e notar que já se aproximava a hora de sair no rumo da padaria a fim de matar a massa.
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e nenhum dos outros filhos tivesse escrito a respeito de Dalila – a pequenina caraubense que os trouxe ao mundo – bastaria a homenagem que lhe fez em versos o primogênito Deífilo para louvá-la, justificando nossa eterna admiração. Transcrevo-os adiante, também como homenagem ao grande lírico que ele foi, mostrando-se capaz de produzir versos tão visceralmente amorosos, de uma simplicidade tão grande que passa ao largo da pieguice, explorando motivo tão desafiador como esse, de tentar reproduzir na justa medida o amor filial. Se, como queria Pessoa, cartas de amor são sempre ridículas, o que dizer de versos que escrevem filhos amorosos, às vezes sem o necessário talento, (como ficou patente na minha desastrosa tentativa infantil) ou por uma excessiva literatice, supondo-se capazes de agradecer na justa medida pelo fato de terem sido trazidos e mantidos durante a fase crucial da existência neste velho mundo de meu Deus? Não me constrange, pois, fazer o elogio desse irmão e de sua homenagem filial. Ele, enfim, escreveu um soneto perfeito. De tal simplicidade no seu tom confessional, que só poderia resultar numa justa homenagem à mulher cuja
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proximidade perdeu para a escola interna em Mossoró e a quem não esqueceria mesmo tendo constituído sua própria família e sido feliz, como poucos terão conseguido ser na aventura terrestre. Publicados na imprensa como um “Soneto Filial”, só apareceu em livro quando ele organizou o que considerava o melhor de sua produção poética, publicando-a em Os Bens Aventurados. Com pequenos ajustes, ganhou o belo e definitivo título “Madona”: Os passos que perdi, nos descaminhos, E as lágrimas ardentes que chorei; Os risos, os abraços, os carinhos, Tudo que fui, que sou e que serei; A glória de ser bom entre os espinhos E de fazer do amor a minha lei; Os versos que espalhei pelos caminhos E os que cantando, um dia espalharei, É tudo seu, Senhora, e se o teu filho Não alcançou aquele intenso brilho Que lhe almejaste, um dia, entre esperanças, Ainda é o mesmo que na infância amaste E com teus gestos brandos ensinaste A amar o céu, as flores e as crianças. Por ser incondicionalmente avessa a loas ou distinções, a filha do professor Lourenço, esposa de Juvenal e nossa mãe, nunca assumiu a pose de homenageada. Nem 108
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saiu se lamentando também, até onde sei, de não haver o filho mais velho alcançado “aquele intenso brilho” que teria almejado. Excesso de humildade dele, que logrou admiração pública como poeta e folclorista; postura de pragmatismo dela, que tinha mais oito filhos com quem distribuir seu estoque de esperanças. Esse traço da personalidade de minha mãe, notável sob todos os aspectos, revelaria tanta eficácia no equilíbrio de uma prole de nove temperamentos – a que se acrescentavam os rompantes do marido – que me faz, à distância no tempo e no espaço, amá-la e admirá-la cada vez mais num renovar constante de saudade. Ainda em sua bela juventude, seguindo o manual de futuros cônjuges da época, coubera-lhe aceitar sua doação em casamento àquele rapaz vindo de Areia Branca para tratar-se de um problema de pele nas águas quentes do Olho d’Água do Milho. E de então em diante decidiu que faria do seu viver um exercício permanente de sábias adequações. Não se imagine, contudo, que isso pudesse indicar qualquer traço de passividade naquela pequena caraubense. Ao contrário. Como bem sabem os que a conheceram de perto, o temperamento daquela gurgelzinha corada – cujo rosto de jovem admiramos na foto que o filho poeta reproduziu numa das páginas do livro em que se encontra o poema – era forte, mantendo-a decidida e firme nas mais desafiadoras situações. Por exemplo: ao constatar a ascendência de tia Chiquinha sobre o jovem marido a quem – é bom que se diga – ela, a sisuda senhora, praticamente acabara de criar, minha mãe logo decidiu que seria mais prudente manter-se 109
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à distância, com isso buscando atenuar a ação dominadora daquela matriarca sem filhos, cuja personalidade ainda hoje se projeta sobre a família. Porém, jamais aconteceria um rompimento formal entre as duas. Tanto que, Deífilo, tendo sido transplantado para Natal, viria a morar em sua casa, na companhia dos primos Deca e Delau, filhos de tio Júlio, de certo modo repetindo o já ocorrido em Mossoró, ao chegar para o internato do Ginásio Diocesano Santa Luzia. Minha mãe, portanto, jamais deixou de reconhecer a importância de Titia para a família. Só não queria muita aproximação. E embora continuasse pelo resto da vida sem manter afinidades explícitas, também não deixou de visitála em Natal acompanhando meu pai. Preservava com isso as civilizadas formalidades familiares. Comportamento também discreto ela adotaria em relação à irmã mais velha, Jandira, casada com tio Zé Minan e mãe das eternas “meninas” Helena, Heliete e Heliane e também de Hélio, o filho varão sempre distante. De temperamento igualmente forte, e um porte para sempre altivo, sua irmã mais velha revelava certa postura intelectual e era respeitada por minha mãe, mas se tratavam com alguma formalidade. Lembro-me das visitas em que a acompanhávamos, a tia a trazer para as conversas assuntos retirados das crônicas de Rachel de Queiroz lidas semanalmente na última página da revista O Cruzeiro. Confirmando um pendor intelectual que o casamento inibiria, aquele repertório de leituras de tia Jandira revelava uma diferença entre ambas. Tendo as duas morado no bairro dos Paredões, próximo à várzea do rio Mossoró, minha mãe continuou a visitar a irmã em sua casa com ares de fazenda, após mudar-se para 110
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outros endereços. Dodora e Socorro, minhas irmãs, dividiam brincadeiras com Heliane, a filha caçula de tia Jandira, com suas maravilhosas tranças de Rapunzel. Uma estudante aplicadíssima, após haver se tornado destacada educadora e cumprir algumas missões determinadas pela Secretaria de Educação, essa minha prima passaria a morar em Natal e acabou trazendo depois a mãe, a romântica Heliete, com sua voz doce e fácil sorriso, e Helena, calada e respeitosa, sobre cujos ombros mirrados pareciam pesar as dores do mundo. Tio Zé Minan – com quem não chegamos a ter aproximação – já havia partido em seu próprio caixão de carpinteiro. Mas permaneceriam em nossa memória aquela casa, aquele quintal de inesquecíveis cheiros e sons vespertinos de várzea, onde passamos momentos inesquecíveis. Na confluência daquele amor de velha tradição nupcial entre Juvenal e Dalila acabaram reunidas a postura mais ascética, enxuta de ostentações e de arroubos da oestana, e a força da tradição seridoense do meu pai, superlativa como a paisagem azulejante de serras e surpresas. E nessa interseção de sertanidades diversas revelava-se o traço comum na disponibilidade de ambos para receber em casa sobrinhos e sobrinhas, irmãos e afins. Havia sempre um quarto momentaneamente desocupado por um dos filhos, um canto de sala disponível para quem chegasse querendo espichar nas largas redes os corpos fatigados das travessias. Boa anfitriã, ela administrava com discreta competência a cozinha de onde o alimento se multiplicava magicamente para garantir a hospitalidade aos chegados de última hora. Nesse quesito, é sempre interessante lembrar que 111
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ela esforçava-se em disciplinar os arroubos de meu pai, no ritual animado do alpendre onde havia a grande mesa em torno da qual nos sentávamos todos para as refeições. Nessas ocasiões o descendente de português movido a rudes tradições campesinas, como algumas retratadas tão bem por Miguel Torga, tomava a iniciativa de derramar comida – o sentido do verbo bem se aplica à operação – no prato de quem tivesse a pouca sorte de se sentar ao seu lado: - Já botou farofa, compadre fulano? E uma carninha de porco? Ainda não vi carne de porco no seu prato... Prevenida, ela o repreendia, atenta ao constrangimento do comensal: - Tenha modos Juvenal. Você nem sabe se o compadre come carne de porco... Ele pode preferir um bodinho... Com ascética competência, Dalila administrava os modestos bens duráveis da casa que eram parcos e discretos. Não me lembro de qualquer exigência sua por algum objeto ou novidade tecnológica que se apresentasse no mercado. A exceção era o velho rádio Phllips, presença de quase duas décadas, companheiro fiel em quatro casas e duas cidades, com sua caixa de madeira a esconder imponentes válvulas. Tornara-se familiar, a berrar notícias, novelas, boleros e maravilhas curativas. Só muitos anos depois – já nos sessenta – seríamos apresentados ao rádio portátil, funcionando a pilha, trazido pelo meu irmão Alderi, agora funcionário estável do Serviço de Alimentação da Previdência Social, o SAPS no Rio de Janeiro. A primeira geladeira de casa foi adquirida de segunda mão e não parecia ser propriamente um eletrodoméstico, mas um velho armário. Meu pai a 112
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comprou de um bar que um conhecido fechara. Só depois, após cobranças da mulher, adquiriu outra, nova, alegando para justificar a demora que só a compraria quando sobrasse dinheiro para pagar à vista. O primeiro aparelho de tv, eu mesmo fui comprar em Fortaleza na aproximação da Copa do Mundo de 1970. Aproveitei uma grande promoção numa loja de departamentos que fazia um enorme sucesso na então capital de Mossoró e trouxe-o no bagageiro de um ônibus. Foi paga em prestações que perdi de vista. A justificar tal aquisição, aquele campeonato seria o primeiro transmitido via satélite. Mesmo sem querer dar gosto à ditadura, decidimos não deixar de torcer para que o Brasil saísse campeão. De mais a mais, havia a promessa – rigorosamente cumprida – de uma velha militante, a adorável professora belenense Ítala, de comemorarmos comendo pizza e tomando vinho em sua casa, se o Brasil viesse a ganhar da Itália na partida final. Esse privilégio só nós tivemos, numa época em que a popular comida italiana sequer entrava nas cogitações das poucas lanchonetes de Mossoró. O que comíamos no café de Fransquinho, ali na rua Coronel Saboia, em meio a ruidosas conversas, era um cachorro quente chilro, feito com carne moída recoberta de cheiro verde, num pão encharcado de caldo. E servido em pratos de sobremesa que chegavam à mesa com talheres. Já tendo enviuvado, minha mãe acompanhou com interesse cada um daqueles jogos que acabavam transformados em espetáculos cívicos – que se danasse a ditadura que não era proprietária do time. Dalila, aliás, nunca escondeu o seu amor aos espetáculos. Fossem de natureza esportiva, como os que assistira na copa, ou as 113
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encenações nos circos, os filmes, as produções de teatro amador que realizávamos então na cidade. Acompanhou com interesse cada um dos projetos e sempre acompanhada de algum filho viu todos os espetáculos da época, a começar da desastrosa estreia de Kiko na Paixão de Cristo, dirigida pela amiga Valda. Por várias vezes, mesmo com o irônico desinteresse do meu pai, que, quando muito, aceitava ir a algum circo, cheguei a levá-la ao cinema para assistir a filmes, especialmente superproduções hollywoodianas tratando de episódios bíblicos. E ainda a revejo, com um ar de grande satisfação, retomando um adormecido donaire, envergando seu melhor vestido, dando-me o braço e me acompanhando naquele passinho miúdo em busca de um tipo de lazer que para ela, afinal, significava grande acontecimento. Se não demonstrava interesse especial por assuntos de moda, apreciava bordar – orgulhando-se da máquina Singer que meu pai lhe dera. E revelava uma forte atração pelas joias, iniciada muito provavelmente com o brilhante que a muito ganhara do marido. Com orgulho exibia as que adquiria após demoradas poupanças. Ourives ambulantes visitavam nossa casa de vez em quando e era também um espetáculo vê-los abrindo aquelas maletas/mostruárias revestidas de veludo, cujas divisórias faziam ressaltar cintilantes as pequenas obras de arte. A aquisição de algumas parecia dar-lhe status, compensando-a de alguma carência especial, pois só raramente tinha a chance de exibir aquele brilhante. Ou o terço de ouro, com o qual certamente nunca rezou em público ou mesmo em casa, para não afrontar a Deus, como certas personagens do velho Eça. Também era proprietária de um trancelim com um imponente crucifixo. E até uma 114
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pulseira, igualmente de ouro, larga, axadrezada, que nada tinha a ver com sua personalidade e que não me lembro de tê-la visto usando. Mas a peça mais curiosa da sua pequena coleção era um broche, que só esporadicamente era exibido a pessoas muito especiais: uma cimitarra, cujo cabo preso a uma corrente que se ligava à bainha, toda lavrada, de ouro maciço, capaz de impressionar árabes de nascença. Não seria difícil enxergar naquele hábito aquisitivo – como já disse – uma espécie de compensação pela pobreza caraubense. Afinal, no cenário propriamente familiar eram visíveis sua discrição e o assinalado pragmatismo. Não sendo especialmente carinhosa, dedicava bastante atenção para com os filhos e filhas, mantendo-se alerta e vigilante para acudir quando a ocasião reclamava. Quanto a mim, acabei sendo alvo de seguidos afagos, manifestação tardia de um afeto de quem encerrava suas atividades parideiras, a que acrescentou-se mais tarde uma hipertrofiada preocupação quando fiquei doente. Porém, jamais faltou a nenhum dos que compunham sua prole a palavra amiga e sensata, um gesto de compreensão, uma reclamação pela demora de cartas, uma ajuda, o ombro amigo para acolher e aliviar tristezas. O seu senso prático manifestava-se também por meio de atitudes que chamavam à razão a impetuosidade do marido. Especialmente em relação aos filhos machos. Sobretudo nas noturnas discussões com o meu pai, tonto pela irritante obrigação de ter de se levantar da rede e abrir a porta para cada um dos seus notívagos. Aquele arrastar de chinelos, sempre acompanhado de frases resmungonas, lhe causavam grande irritação. A noite alta pedindo sono pesado e Juvenal tentando consertar o mundo... 115
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Voltando à casa, era Dedé o primeiro a bater à porta. Abrindo-a, meu pai fazia o pequeno sermão cujo fecho era a cobrança: – Isso são horas de chegar? Etc., etc. Do fundo de sua rede ouvia-se aquela vozinha a sugerir conveniente providência – já está mais do que no tempo de você mandar fazer uma chave para cada um dos meninos e acabar com essa obrigação de ter que se levantar cada vez que um deles chega. Tibes! Bato eu, à porta, em seguida. Sermão para mim: - O senhor sabe que horas são? Etc., etc. E minha mãe: – Quero só saber quando é que isso vai acabar. Porque esses meninos não vão deixar de sair. Estão no tempo de se divertir. Já pela madrugada, recendendo amores de altos louvores, chegava Kiko. Sermão demorado: - Será que o senhor não sabe que tenho de levantar cedinho? Quando é que nessa casa vai-se entender... Etc., etc. Sem esconder a impaciência de ter o sono entrecortado como leito de rio que começa a secar ela reclama veemente – Juvenal: desse jeito você vai acordar a casa toda! Ave Maria! Já disse e vou repetir: bastava você mandar fazer essas benditas chaves e a gente dormia a noite sossegada. Oh teimosia! Se cada um tivesse a sua chave não havia necessidade desse espetáculo toda noite... O fato de o primogênito, e um pouco adiante Alderi, terem saído tão cedo de casa, talvez tenha forjado em seu tranquilo modo de se conduzir, a certeza de que nada poderia fazer para impedir a fatalidade biológica de quem cria asas, investiga o mundo em torno, desloca-se para 116
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o horizonte, às vezes até some. Cumpridora de preceitos dominicais, tornou-se adiante rezadeira doméstica de pequenos livrinhos de novenas sebentas, que um dia o neto Akio num exercício de pirotecnia infantil queimou. E foi também uma por vezes angustiada promitente de obrigações, exercitando uma cumplicidade de crente que lhe dava a simples certeza de que, estivessem onde estivessem, a segurança dos bichos homens que pusera no mundo estava garantida. Concluía, com sábio realismo que nada podia fazer ante situações que tanto preocupavam o meu pai, em sua cotidiana tensão. E repetia com espantosa naturalidade: - Eu entrego a Deus. E Deus que tome de conta... Até nas lições de prudência que nos dava, era possível notar essa preocupação de ser prática. Uma, particularmente, me deixava confuso. De imediato não cheguei a entender o seu real sentido, tendo ela usado a expressão certamente para sugerir que o mais prudente era não nos deixarmos entusiasmar pelas eventuais confusões nas festas dos clubes ou – mais ainda veladamente – nas nascentes agitações do meio estudantil: - Enquanto corro, mamãe tem filho. Então era eu correr e a mãe parideira ia botando mais filhos no mundo?, pensava eu. Foi apenas muito tempo depois que entendi o real significado. Que sendo demais os perigos dessa vida, como advertia uma canção da época, a prudência recomendava bater em retirada. Porque em determinadas situações, mais que um procedimento covarde, poderia indicar a boa aplicação da regra básica de preservação recomendada pelo seu manual de sobrevivência. 117
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Mas aquele traço antes mencionado, da mãe que vê os filhos saírem de casa, espécie de fatalismo contra o qual não há meio de se insurgir – como se fosse uma danação grega que vai fazendo a casa esvaziar-se de vozes masculinas e aceitar mesmo que o coração se parta junto – dava-lhe a sofrida certeza de que o outro abria mão de sua presença protetora, porque assim devia ser, maktub, que a vida seguisse. Era sem dúvida o seu traço mais grandioso e um dos mais nobres. Um a um, todos os filhos homens saíram de casa. E mesmo seguindo-se a Deífilo e Alderi, saíram Gelza e Dodora para casar-se. E até depois, Socorro – a caçula das mulheres – que também se foi para o Rio em busca de Toninho, um amor mineiro-carioca, deixando-a em monótona tristeza revelada em cartas queixosas pela demora de os filhos lhe darem notícias, o que provocava pequenas e esporádicas sangrias de lágrimas. Inevitável relembrar, também por isso, o “Poema das Mães”, de Giuseppe Ghiaroni que ouvíramos declamado por Wilson Maux um diretor teatral que trabalharia conosco em Mossoró. Os versos, longe da simplicidade daqueles que o filho mais velho lhe dedicou, haviam sido compostos sob uma melodramática comoção e nos obrigava a fazer periodicamente nossas malas e bolsas com a inevitável poção de remorso, de quem um dia tendo saído voltava, vitorioso ou não. O fato é que – tirante Ninha, a filha mais velha – um a um todos saímos em momentos diferentes do seu convívio. E ela ficou. E ao retornarmos, a mesma alegria e o mesmo modo de ser, que misturava discreta irreverência à gastura de envelhecer manifestada nos cabelos brancos que jamais concordou em pintar. 118
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Lembro-me de um dia, numa das visitas que eu, já residindo em Natal, lhe fiz, ela tentando chamar Cibele, a neta querida. Atrapalhada e já com um princípio de confusão mental, pronunciou um a um os nomes de cada filha, todos indelevelmente impressos no coração e na mente cansada. Notando a confusão, recorreu a um resto de humor de sua antiga provisão e arrematou, sem mais se importar com o que pretendia. - Arre lá: eu nem sei mais quem quero chamar... Septuagenária, na fantasia de uma nascente esclerose que a levava a contar lindas histórias, reencontro-a um dia na casa da minha irmã Dodora, em Natal, para onde a contragosto viera em busca de tratamento. Vendo-me entrar, ela sorriu e com o ar mais inocente, apressou-se em me dizer: - Quero lhe informar que tenho uma grande novidade. Preparando-me para a surpresa, estimulei-a a revelar o que era. - Fui ao médico hoje e olhe o que ele disse: E fez um lindo gesto com três dos dedinhos rechonchudos: Pragmático, também eu, entendendo aquele seu lindo devaneio de mulher parideira, busquei confirmar: - Como é essa história, mãe? Três meses? E a senhora? Está feliz? E ela, lançando mão das consabidas adequações: - E o que é que eu posso fazer? Não é a vontade de Deus?... Também recordo minha mãe como uma mulher sofrendo silenciosa a permanente tensão de saber-se 119
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parte da engrenagem patriarcal, convocada a obrigações nupciais e a elas submissa. Porém, capaz também de confrontar-se com seu marido em duelos improváveis. Mas igualmente sensível guardadora de uma existência que ela própria registrou num caderno Borrador, que eu havia comprado e não utilizara na escola de contabilidade que inexplicavelmente frequentei em Mossoró. Descoberto por Dedé, me foi presenteado como uma humilde relíquia que guardo com grande carinho. Um a um, lá estão registrados quinze partos, dos quais dois abortos. Sem contar a alegria de ver nascerem de si os nove que vingaram: Deífilo, Terezinha, Alderi, Gelza, Dodora, Kiko, Socorro, José e eu. Também cuidou de deixar gravada ali a sua sensibilidade para as artes, para o belo, que lhe trazia grande alegria. Com uma grande demonstração de carinho registrou no mesmo caderno uns poucos momentos marcantes: as idas ao teatro para ver “peça dos meninos” e a aquisição de algumas daquelas joias, que eram verdadeiras obras de arte da ourivesaria regional. Mas naquele caderno há, igualmente, anotações a respeito de débitos divinos e relatos sobre momentos de tensa dramaticidade familiar, como aquele em que meu pai teve de sair comigo de Mossoró, levando-me para o Rio de Janeiro a fim de que eu passasse por um tratamento de saúde. O que teria motivado o irrealizado diário? Provavelmente o agigantamento da solidão, a casa cada vez mais vazia das vozes dos filhos e a dor de haver perdido Juvenal em março de 1968, já que os registros, conforme é possível ler na capa do Borrador iniciam-se em setembro desse ano. Não havendo preocupação literária, 120
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nota-se, contudo, o grande sentimento que ela imprimiu a coisas que pretendia perenizar, aí incluídos registros de autoadvertência como se pode ler na parte intitulada “Promessas que devo” – mesmo uma que esperava resgate há décadas – denotando o sofrimento que resultara de uma questão política: - Uma missa em ação de graças às almas do purgatório pela liberdade de meus irmãos. Esta lembrança certamente a enchia de pavor, por imaginar talvez que, como Aluízio e Altamiro em 35, também eu, enfronhado na resistência à ditadura como tantos jovens brasileiros, pudesse cair em suas garras no renovado tempo de horror de 1968. Mas o registro mais tocante que há ali é, sem dúvida, o da morte do meu pai, que ela fez questão de colocar como Nota de Falecimento, como se fora um texto produzido para dar conta à sociedade do sofrimento que destruíra o marido: - Juvenal faleceu no dia 17 de março de 1968, depois de um sofrimento de 9 meses. Seu incômodo era um tumor localizado no pâncreas. Foram baldados todos os esforços, tendo perdido a última grama de carne.
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Juvenal, Dalila (também na foto abaixo já envelhecidos), e sua prole. Em destaque, Deífilo que não compõe a escadinha, por já se encontrar em Natal. Os demais, a partir da esquerda: eu, Dedé, Socorro, Kiko, Ninha, Dodora, Gelza e Alderi.
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Ta r c í s i o G u r g e l No animado carnaval de sua juventude areia-branquense, Juvenal dos Santos Sobrinho exibindo lança-perfume fantasiou-se de almofadinha para acompanhar o famoso bloco Democráticos.
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Um pequeno álbum, zelosamente guardado pelo tio Alexis, dá a ideia da Mossoró dos anos quarenta. Na última foto, abaixo, a Escola Normal, que abrigava o valoroso Grupo Escolar 30 de Setembro.
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i n v e n t á r i o do p o s s í v e l Sequência da infância até a condição de Tarzan. Abaixo, Socorro abraçando a mim e Dedé. Por último, a humilde alegria da Praça Souza Machado. No animado grupo, Kiko, Socorro, Dedé, eu e, atrás, Dodora e a prima Heliane.
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No reino da primeira casa própria de meu pai, com Bezinho de tio Josa (abaixo). Na foto acima, com exemplares do nosso zoo particular. Na última, Deífilo fotografou a musa Zoraide entre nós.
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Ta r c í s i o G u r g e l Aqui estamos – Kiko, eu, Dedé, Socorro e Dodora – segurando um impaciente Sabugo. Solto, no quintal de casa, não demonstrava irritação ao participar como leão na fantasia estimulada por Deífilo.
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Dalila mais ou menos na época em que fez as tocantes anotações do Borrador. E o núcleo familiar da Augusto Severo sem a presença do meu pai: à frente, Socorro, Dalila e Ninha. Atrás, Dedé e eu.
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Nos medalhões, Socorro e Dodora. Na foto logo abaixo, Dalila com Badu, o gato de dona Senhorinha, nossa vizinha, que resolveu mudar-se para a casa ao lado. E à direita, Gelza, a normalista linda, cuja vida feita de tantas provações não impediu de realizar o sonho pedagógico. 138
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Ta r c í s i o G u r g e l Dalila na companhia das filhas Ninha e Gelza. Esta última, a exibir o sorriso que fascinou o patuense Chico Pereira. Nos medalhões, minha mãe em visita a Caraúbas e na casa da Souza Machado. Na reprodução manuscrita que precede a informação do falecimento de meu pai, um pequeno cochilo: o ano é 1945.
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Os “meninos” de seu Juvenal. Deífilo apresentando Alderi à Praça Pedro Velho, em Natal; Dedé exibindo sua juventude no sorriso e vasta cabeleira e a dupla Tarcísio e Kiko: o fero e o belo. 142
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i n v e n t á r i o do p o s s í v e l Meu pai parece ler a notícia de que Garrincha o visitaria um dia, o que de fato veio a ocorrer ao ser internado na Casa de Saúde São Lucas. O registro jornalístico foi feito pelo Diário de Natal.
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Adolescente e recuperado de uma cirurgia medieval em que me retiraram as amígdalas, fui premiado com passeios pelo Rio, a começar da inevitável visita ao Cristo Redentor na companhia de Alderi e Júlia.
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primogênito de Juvenal – o Dedê da minha mãe e da eterna musa, Zoraide – cultivou seu espírito sensível no contato admirado com familiares, tipos populares e geografias cuja importância se tornaria indelével em seu manso modo de existir. Terá sido também, juntamente com os primos Delau e Deca, filhos de tio Silvino, um dos primeiros na família a perceber que não éramos apenas primos, irmãos, tios, parentes, enfim, mas um elenco de artistas por vezes rudes, outros de grande talento, para os espetáculos do cotidiano. Essa era uma das suas formas de amar a realidade: inundando-a com o seu lirismo. Por isso, qualquer breve comentário que viesse a fazer em torno de algum dos nossos muitos parentes, logo ganhava o status de literatura a que não faltava sequer um sabor de teatro. Sua vida se tornaria, por assim dizer, um exercício constante de admirar a performance alheia, nisso disfarçando uma vontade de atuação que a timidez e a natural discrição inibiram durante muito tempo. Conheceu e admirou os avós, conviveu e amou Juvenal e Dalila, embora mantivesse para com nosso pai uma respeitosa – porém ressentida – distância porque
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um dia ele o magoara com um castigo físico diante dos padeiros, aumentando o teor da humilhação. Não estou seguro de que isso fosse determinante para seu ostensivo desinteresse pelas coisas da padaria, atividade que, mesmo assim, chegou a tentar numa baldada experiência de que eu mesmo participei brevemente muitos anos depois já em Natal. A verdade é que sendo outra a natureza dos seus sentimentos, jamais se sentiria à vontade entre sacas de farinha e fermento, cifras e cifrões. Sua pouca afinidade com estes últimos, iria se revelar de modo veemente, aliás, quando se viu obrigado a cumprir sentença de mais de vinte anos nas funções de caixa do então Banco do Estado de São Paulo, na Ribeira. Em seu espírito, ao invés das coisas práticas pulsava uma sensibilidade profunda capaz de fazer o menino chorar de emoção ante as perpétuas que, graciosas, exibiam-se nos humildes vasos existentes diante do casebre de Rufina, a primeira lavadeira da casa dos nossos pais em Areia Branca. Àquela visível sensibilidade aliava-se uma especial capacidade de concentração e de raciocínio, que o fizeram destacar-se nas escolas areiabranquense de então: a de dona Adelina e a do professor Albertino, além dos anos do primário no Grupo Conselheiro Brito Guerra mesmo itinerário de aprendizado do jurista e memorialista conterrâneo Francisco Fausto. Depois, foi transplantado para o Ginásio Diocesano Santa Luzia em Mossoró, onde, interno, cursou o ginasial. Se a mim – caçula distanciado – não foi concedida a chance de conviver com os mais antigos, como já ficou dito, levado por minha mãe nas viagens a Caraúbas, ele, que mais tarde também conheceria o avô Neco Avelino, 150
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pôde aferir a modesta fama de um Lourencinho que tendo vivido numa Natal onde pontificava Pedro Velho (de quem era um irrestrito admirador), compôs a primeira turma de professores formada no Estado tendo tido a chance de circular entre redatores e diretores da revista Oásis. Na cidade oestana encontraria o seu modesto nicho de atuação profissional, tendo aí constituído família. Foi justamente esse avô quem o conduziu no périplo inicial pelos campos da poesia. E mesmo proprietário de um nome incomum (para significar “amigo” – do grego filo, a que se antepôs o latino Dei – de Deus), jamais se livraria da bendita maldição de Orfeu. Tímido, cabelos sempre muito penteados, colados no crâneo, o corpo magro apoiando-se nas pernas cujas panturrilhas davam a impressão de conter o que faltava nos glúteos mostrou-se uma pessoa especial desde a infância. Sempre curioso no aprendizado escolar e fruindo com avidez os nomes, as cores, os cheiros e sabores de sua terra natal e, sobretudo, da Caraúbas avoenga que amanhecia ouvindo o mugir longínquo de rezes alvoradeiras, e os vapores emanados das plantas odorosas no sítio de um certo Joaquim Amâncio. O ritmo excitante e o atrito das rodas do trem com os trilhos, os adultos em nervosa movimentação nos vagões ou na estação – na ida e na vinda – aumentavam-lhe o sentimento e a admiração. E o aperto no coração a crescer, inexplicável e assustador, até que um primeiro verso se revelou, como numa catarse. Aquela sensação de partida, aliás, se revelaria já no título do livro de estreia – Cais da Ausência – e no sentimento de inevitáveis migrações, vendo a movimentação do trapiche em Porto Franco; admirando emocionado a saída das 151
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baiteiras para mares desconhecidos; da lancha que um dia o trouxe até o trem na viagem para o internato do Ginásio Diocesano Santa Luzia. Daí, já rapaz feito, para Angicos, comendo poeira, até que outra vez embarcado num trem, viesse a encontrar seu porto seguro, no surpreendente eldorado natalense. Sem queimar propriamente as naus, Deífilo Gurgel iria se fixar amorosa e definitivamente na capital. Tornou-se um natalense de Cidade Nova, encantado com o bairro do Tirol, embora mantendo uma saudade telúrica da Areia Branca da infância e daquela remota Pasárgada caraubense de poucos haveres e fabulosa imaginação para a criança. A Natal da juventude invadiu o trem que o trazia, com o impacto da beleza desconhecida e de um fato triste, que comoveu a cidade e se sobrepôs até à desagradável sensação de passar pela Ponte de Igapó ouvindo o barulho infernal das ferragens com a sensação de que o trem a qualquer momento poderia despencar no Potengi: a notícia do falecimento do padre Monte. Havia, além disso, a guerra. Mas, embora seja de supor que não teria como alhear-se dos assuntos a ela relativos, (afinal, como se dizia antigamente, corria o ano de 1944 quando ele chegou à capital) não seria esse um tema capaz de entusiasmálo ou mesmo prender sua atenção. Logo iria, isso sim, concentrar-se no estudo do Ateneu, onde cursou o Clássico e nos diálogos sobre temas líricos com tio Chico Avelino, ainda vivendo com tia Naná e a filha Aparecida, na casa de quem morou durante algum tempo. Impressionou-o de modo positivo o interesse que aquele funcionário público revelava pela poesia. E timidamente buscou dar 152
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algum sistema à sua própria inspiração, fazendo grande esforço para, mais adiante, mostrar-lhe o que começava a produzir. Já recebendo seu estímulo, um dia, criou coragem e procurou o consagrado poeta Othoniel Menezes de quem recebeu também palavras de incentivo. E encontrou depois, no jornalista Veríssimo de Melo, um olhar de compreensão e entusiasmo de que resultaria a publicação de poemas seus em suplementos literários que então existiam na imprensa natalense. Não demoraria a ter outros versos publicados em suplementos do Recife, onde também recebeu o fraterno incentivo do poeta Mauro Mota, surpreendido com sua artesania poética. E essas notícias chegavam a Mossoró, onde minha mãe, ouvinte, e depois colecionadora dos livrinhos da novela radiofônica “O Direito de Nascer”, acompanhava com discreto orgulho as notícia sobre o filho poeta. Um dia, já casado e ocupando a diretoria de uma autarquia federal, ei-lo de volta a Mossoró, onde estudara interno no Ginásio Diocesano Santa Luzia. Vinha com o fim deliberado de apresentar Zoraide, a esposa, à família. E promovia com isso uma alegre reaproximação, já que com o claro receio de não se sentirem à vontade em meio a uma gente que não conheciam e que acreditavam pertencer a outro extrato social, meus pais não haviam viajado à capital para o casamento. A moça, fina e discreta, que falava baixo e parecia deslizar enquanto caminhava, havia se tornado sua verdadeira musa e permaneceria ao seu lado em todas as situações, absolutamente todas, como uma companheira amorosa, preenchendo suas carências afetivas. Curiosamente, quem mais aproveitou o seu reencontro com Mossoró e a família fui eu mesmo porque nasceria 153
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aí uma afinidade entre primogênito e caçula que só iria crescer com o passar dos anos. Aquela ocasião me propiciaria a chance de conhecer um rapaz que parecia alto, magro e bem humorado, que eu já sabia ser importante, mas do qual apenas ouvira falar. Para minha surpresa ele me dedicava especial atenção, estimulando-me a fantasia em sessões matinais de uma brincadeira que inventara e conduzia. Terminado o café da manhã, aproveitando a imensidão do quintal e já ensaiando as primeiras risadas, recorria à notória falta de modos do vira-lata Sabugo, e ao meu visível interesse pelos quadrinhos de Tarzan, (que admirado via meu irmão Kiko tentando reproduzir sem o talento de desenhista de tio Alexis), passava a dirigir breves e alegres encenações em que se engendravam simulacros de lutas em plena selva. - Tarzan: homem macaco – ele me desafiava – Tarzan não ter medo de leão. O leão, com o seu olhar cheio de ternura, à espera do comando para atacar o homem-macaco, traduzia o seu interesse em participar da brincadeira pelo frenético balançar de rabo. Tarzan, à mera insinuação sobre a coragem de que não sabia ser possuidor, logo se atracava com o vira-lata que manso e brincalhão simulava os ataques recuando, saltando, aplicando mordidas que não machucavam. Para espanto da jovem esposa, ainda pouco afeita às loucuras avelinas, meu irmão dobrava a risada, ante a alegre ficcionalização que ajudava a tornar mais colorido o cotidiano da casa na Alberto Maranhão. Desse período, aliás, restou uma das melhores fotos que pudemos ter da infância: Dedé, segura Mimoso, seu gato; Socorro, 154
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Sabugo – o leão; eu tenho nos braços um manso Peri, ainda longe de se revelar o rancoroso sentinela do quintal; Kiko, gaiato, exibe um dos seus periquitos. Dodora, também irreverente, à falta de algum bicho, ostenta seu belo sorriso. Novamente nos reencontraríamos – ele trazendo outra vez consigo a amada Zoraide, e parte da família – Kátia, Carlos e Sérgio, os três da primeira ninhada, logo acrescentada de Gardênia e Fernando – em novas férias, quando já havíamos nos fixado na casa da Augusto Severo. Dessa visita, ficou muito vivo em minha lembrança, o seu interesse pela boa mesa, no que, aliás, encontraria na musa e parceira natalense alguém de especial talento. Todos os dias, invariavelmente, mal começava a tarde partia resoluto para o mercado público, ali em frente, para comprar numa das bancas de carne, fígado de boi que chegava fresquinho da Matança e que minha mãe e Ninha transformavam em bifes suculentos, servidos no jantar em travessas orladas de folhas de alface e rodelas de tomate e cebola. Ainda outra vez pude reencontrá-lo com vantajosa alegria para mim. Foi no retorno do Rio de Janeiro, aonde fora levado para tratar da saúde em 1959. Pude então revêlo, como de resto aconteceria daí por diante residindo numa das ruas do Tirol que tanto amava. Era uma casa simpática da Ezequias Pegado, de que se tornaria proprietário por algum tempo, aonde já se encontrava a minha mãe à minha espera. Estávamos diferentes: a vida me mostrara que eu de Tarzan não tinha nada e ele, claro, passava a me dedicar uma atenção um pouco diferente daquela brincalhona de Mossoró, introduzindo, agora, uma discreta formalidade em nossas conversas. 155
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Mas o reencontro definitivo e a convergência de interesses, que me levaria a alguns anos depois desfrutar da fraterna hospitalidade dele e de Zoraide, foi quando, tendo conseguido entrar para o TEAM, o grupo de teatro de Mossoró, tornei-me ator. E ainda outra vez retornei a Natal. Ali faríamos a estreia de um espetáculo denominado “Eles não usam black-tie”, peça de Gianfrancesco Guarnieri, com que chegaríamos mais adiante a Porto Alegre, a fim de participar de um festival nacional de teatro amador, já em sua quarta edição e coordenado por Paschoal Carlos Magno. Comemorava-se em Natal o primeiro aniversário do governo Aluízio Alves. E fomos convidados a participar. Entre outras coisas programadas para a festa, havia um festival de escritores na Lagoa Manoel Felipe e a estreia, no Teatro Alberto Maranhão, da peça que havíamos ensaiado em Mossoró. É o momento em que, pela primeira vez ouço falar objetivamente de literatura potiguar, testemunhando o entusiasmo com que ele discorria sobre a nossa produção. E vejo o seu nome impresso num pequeno volume de poemas. Ele devia estar orgulhoso por aquilo que sua timidez não permitiria demonstrar. Afinal, naquele mesmo contexto artístico era lançada a Coleção Jorge Fernandes, de que fazia parte o seu livro Cais da Ausência e, no espetáculo de Mossoró, estávamos Kiko e eu. Muito embora feliz com aquilo que considerou uma façanha, tempos depois iria me confessar que, sentado na plateia do Teatro Alberto Maranhão, sala de espetáculos que deslumbrava nossos olhos mossoroenses, tinha as mãos suadas. E tremia. Literalmente. Diante da perspectiva de um vexame 156
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daqueles irmãos malucos. Felizmente a estreia ocorreu sem sobressaltos e o drama de morro carioca – ou paulista, ou de alguma nascente favela em qualquer cidade do país – de onde Guarnieri retirara suas personagens, revelou-se pronto a ser mostrado em outros palcos. Quem esteve naquela noite no Teatro Alberto Maranhão certamente não pôde se dar conta de que espetáculo maior era o que nós, oestanos, estávamos a assistir: seguido por uma entourage que parecia rir ensaiadamente de tudo o que ele falava, chapéu de massa à mão, a circular pelos jardins do teatro ninguém menos que Câmara Cascudo; o burgomestre Djalma Maranhão enorme e afetuoso, igualmente a chamar a atenção por onde passava; o homem de teatro Sandoval Wanderley, feíssimo e elegantíssimo a exibir modesta lordeza no seu terno branco; Meira Pires já diretor do Teatro e padrinho assumido e ostensivo do grupo, com sua voz eternamente impostada; o jornalista e ator Celso da Silveira, suando e sorrindo, a divulgar ruidosamente um curso de teatro que estaria sendo ministrado – se não estou enganado na Liga Operária ao qual concedemos, embora com todo o ar blasé mossoroense, assistir a uma das aulas; o Secretário Grimaldi Ribeiro, com ar discretamente esnobe e muitas outras personalidades sob as luzes ofuscantes e o cheiro de tinta recente do belo teatro ao qual não compareceria o governador, por certo com receio de cobranças imprevistas de Meira Pires. Num dos dias que precederam esse clima feérico, acabamos travando contato com um astro do rádio brasileiro: o cantor Cauby Peixoto, que tinha ido até o 157
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teatro em que estrearíamos, com a finalidade de passar o som para o show que faria no dia seguinte. Fomos aguardar a liberação do palco no Tabuleiro da Baiana (um grande pavilhão então existente no centro da Praça Augusto Severo onde eram servidas refeições, lanches e bebidas). Ali, nos distraímos traçando épicas cartolas, com a animação da descoberta de um doce que não era familiar aos mossoroenses: banana frita com queijo. canela e açúcar granulado. Qual não foi nossa surpresa quando tivemos aquele alegre e demorado lanche interrompido pelo esguio intérprete. Sabedor da apresentação que tínhamos programada para dali a uns poucos dias fez questão de ir nos cumprimentar e desejar uma boa estreia. E acabou nos surpreendendo ainda mais ao atender com bom humor um pedido da menina Délia Mendes, nossa colega de elenco, que lhe pedira para cantar – um tiquinho que fosse – a emocionante a música “Conceição”, seu grande sucesso de então. Aliás, contrariando o que apregoava a letra (“se sumiu, ninguém sabe, ninguém viu”) a nós mossoroenses parecia fácil encontrá-la todas as tardes nos programas de mensagens musicais que através das rádios Difusora e Tapuyo que chegavam em nossas casas. Cauby não se fez de rogado: gorjeou à capela as primeiras frases da música, deixando eletrizados políticos, papudinhos, amadores ou simples notívagos na quase madrugada da Ribeira natalense. Na década seguinte – já casado e também morando em Natal – minha admiração pelo irmão especial que era Deífilo Gurgel tornou-se ainda maior. Sucederam-se os contatos nos âmbitos familiar e literário, que, aliás, em 158
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se tratando dele jamais se excluíam. Generoso, e sempre disposto a narrar causos familiares, insistia para que fôssemos almoçar ou jantar em sua casa – sempre cheia – e nessas ocasiões misturavam-se magicamente ressuscitados pelas conversas sempre barulhentas, poetas, artistas plásticos, gente de teatro e os loucos da nossa família. Eu simplesmente adorava ouvi-lo contar histórias e declamar alguns dos mais de cinquenta sonetos que sabia de cor, porque vendo-o e ouvindo-o dizer versos, concluía com admiração e prazer que ele o fazia muito melhor do que eu com toda a minha previsível arrogância do ator rodado em palcos amadores por esses brasis. Sua voz nasalizada e límpida, de timbre particularmente agradável, a misturar sonoridades avelinas e gurgéis, os versos que fazia ressaltar no ritmo perfeito e as palavras por vezes escandidas para valorizar a emoção contida na construção frasal, eram uma elegante homenagem à obra de arte. Valendo-se apenas da memória e deixando aflorar de modo autêntico a sua enorme sensibilidade, sem ensaio ou tentativa de exibir-se, ele nos brindava com maravilhosas “performances”. Era a poesia em pessoa.
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al como o filho mais velho, transplantado ainda menino de Areia Branca para o casarão do Ginásio na praça da Catedral, em Mossoró, os demais foram gradativamente se lançando ao mundo. Apenas um preferiu ficar-se, com sua presença perene, e a irrevogável decisão de servir a todos: Terezinha, a irmã que a ele se seguiu: nossa Ninha querida. Como se lhe coubesse no script o papel de zelosa guardiã de tudo e de todos, ela preferiu não se afastar e pôs-se a trabalhar, incessantemente, repetindo o exemplo paterno. Como hábito inextirpável do seu cotidiano familiar. E é assim que a revejo na cozinha da nossa casa da Alberto Maranhão, a preparar nosso desjejum de criança. Com uma caneca em cada mão, despeja de uma para a outra o leite ainda quente, tentando com o gesto repetido esfriá-lo para nos alimentar antes de seguirmos – Dedé e eu – para o Jardim da Infância. O movimento é quase circense, embora docemente pedagógico, na tentativa de convencer os meninos quanto à necessidade de despertar o organismo ainda nauseado pelo estômago vazio com a demora do sono noturno. Como num passe de mágica a espuma cremosa vai aos poucos se formando.
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No último movimento, o leite agora morno e despejado na caneca que nos era oferecida, vinha acompanhado de uma palavra que continua a soar como doce música aos meus ouvidos: - Agora tome: é o capucho. Levando a caneca à boca, acabávamos ficando com bigodes branquinhos o que a fazia rir gostosamente. A simples alegria tornava-se um grande prêmio, a consagrar aquele momento de ternura, onde era possível localizar também uma linda manifestação de nossa raiz sertaneja. Afinal, aquela palavra, estranha e bela, nesse caso, revelava-se variante igualmente bonita: corruptela de capulho: cápsula de que explodia a brancura florida do algodoal que ajudou a fixar nossos antepassados nos ermos seridoenses e oestanos. Era ainda essa irmã – direta auxiliar da mãe nas tarefas da cozinha – quem cuidava de repor nossas forças, quando mais tarde, meninos taludos, voltávamos da Educação Física, após enfrentar uma sucessão de exercícios aeróbicos ministrados pelo professor Evilázio Leão, irmão mais novo daquele que fora jogador famoso: o médico Zeleão. Falante, a exibir no caminhar um gingado de boleiro, ele vinha de uma numerosa família que, se não rendia graças a Apolo, dava vivas frequentes a Dioniso, porém, sem descuidar do privilégio de haver sido presenteada por uma inteligência provavelmente advinda de outra entidade mítica: Palas Atenas. Porque esse predicado sempre pareceu genético naquela família em que se destacava igualmente o professor de matemática Solon Moura, a aterrorizar a vida de muitos meninos como eu, que diferentemente do homem de Malba 162
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Tahan, por alguma desgraçada limitação do raciocínio lógico não haviam desenvolvido a capacidade de calcular. Sem grandes pendores também para a atividade atlética, ao menos nos esforçávamos: um-dois, um-dois, e retornávamos a casa, suados e famintos, o sangue quase a explodir nas bochechas. Novamente chegava Ninha com o seu alimento de ternura e a sua inesgotável faculdade de servir. E buscando aliviar nossa canseira e nossa fome nos preparava suco de cajarana e sanduíches com bife acebolado, cujos sabores ficaram para sempre em minha memória gustativa. E foi assim a vida toda: acudia um aqui, ajudava outro acolá, numa rotina que, já na velhice ela me confessou, havia sido desenhada por uma reprovação – ah, essa estúpida coincidência! – exatamente na disciplina Educação Física. E o que é pior: noutra estranha aproximação com a minha própria pessoa. Pois eu mal havia aberto os olhos para este mundo, o resguardo da minha mãe a exigir cuidados especiais, ela naturalmente obrigou-se a permanecer em casa, e não podendo cumprir as tarefas matinais da disciplina, acabou reprovada por faltas. Aquele pretexto estimulou o descostume. Não mais voltou à escola, nem tal lhe seria mais exigido, acentuando-se um lado perverso do patriarcado com o pouco caso dirigido à educação feminina nesse tempo. Que a menina deixasse a escola e pronto, mulher não precisava mesmo de estudar. Restou-lhe formar-se, nas artes de servir. Tornar-se mestra nas ciências do amor e do trabalho, formação obtida em cursos cotidianos da própria casa e da padaria do nosso pai. Sempre soubemos que sua vida amorosa estivera restrita ao amor sem limites que dedicou a Olavo, com 163
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quem acabaria se casando depois de demorado namoro. Qual não foi minha surpresa ao ser informado – ela já navegando serena nos oitenta anos – que fora namoradeira na juventude, registrando no álbum das suas recordações juvenis duas rigorosamente surpreendentes: o animado flerte mantido com o filho de um proprietário rural, durante umas férias na fazenda de tia Lourdes, a Boa Vista em Janduís. Nesse breve e agitado namoro não faltaria, sequer, uma temerária carreira num cavalo arisco, que, disparando, a derrubou machucando-a com alguma gravidade, por haver ficado o pé preso ao estribo. Outro namoro que a marcou, aconteceria em plena Festa da Mocidade em Natal, na alegre agitação da Praça Pio X, onde hoje se vê a feiosa catedral nova. Passeando durante a retreta com Nazaré, outra agitada prima Avelina, veio a conhecer e brevemente namorar um jovem rapaz que adiante se tornaria um dos mais bem sucedidos capitalistas potiguares, com suas muitas empresas atingindo uma expressão poucas vezes alcançada entre os endinheirados do Estado. Com um ou com o outro poderia ter se tornado uma senhora de muitas posses. Mas certamente não teria sido feliz na mesma proporção. Porque em sua existência de romântica e trabalhadora, tal só viria a acontecer, com aquele que foi o grande amor da sua vida: Olavo. Olavo Barreto de Freitas, Olavo de seu Almino e dona Francisquinha. Uola. Acompanhei boa parte daquele namoro que se arrastou por vinte e cinco anos contados desde que se conheceram até o casamento, na nossa casa da Augusto Severo. Mas a memória mais remota que tenho dos dois 164
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juntos não restou propriamente agradável. Na altura dos meus onze anos, zanzando pela Praça da Independência, noto a discretíssima presença da dupla num dos bancos próximos ao obelisco, de costas para o Edifício Rocha. É namoro sóbrio, ambos mantendo uma prudente distância, numa conversação alegre que se demorará, no máximo, até as nove horas da noite. Eu catava no chão piúbas de cigarro (as guimbas no dialeto mossoroense) e ensaiava fumá-las. Terno e ríspido ao mesmo tempo, ao notar minha presença Olavo repreendeu-me com uma ordem curta que ainda ouço na sua voz nasalizada e rascante: - Vá pra lá, menino veio besta. A admoestação, mais que preocupação com o mau hábito e a boa saúde significava, obviamente, que ali não era lugar de menino ficar, que menino não podia ouvir conversa de gente grande. Com uma alegria quase juvenil, Ninha me confessou um dia como começara aquela paixão interminável: vendo do balcão da padaria Santa Rita a movimentação do menino buliçoso, frequentador irregular e rebelde da escola particular do professor Manoel João, que ficava defronte. Sentira-se desde então inapelavelmente atraída. E após um flerte iniciou-se o namoro. E os anos foram passando. Todos comentavam divertidos sobre aquele investimento amoroso tão demorado. Eu mesmo acostumei-me, desde a infância e parte da juventude, a ouvir notícias de que o seu amado encontrava-se em Recife, trabalhando numa firma estrangeira. Que se mudara para Fortaleza, onde parte da família passou a morar. Ou que voltara a Mossoró. Que era um pouco errado, pois bebia e fumava. Mas o namoro 165
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resistia a tudo. Sofreu turbulências, acabou, recomeçou. Lembro-me que, em meados dos sessenta, Olavo mudou-se para o Ceará passando uma temporada naquela Fortaleza que também se tornaria minha frustrada meca teatral. Ninha fora ao seu encontro, talvez para lhe estimular uma decisão. Hospedou-se na casa de Giovani e Elisa. Filho de tio Josa, era esse primo um funcionário público de carreira e homem de invulgar educação. Acolheram-na com areia-branquense alegria, estimulando-lhe os sonhos irrevogáveis. E com a hábitual disponibilidade viramna em sua alegria adolescente retornar a Mossoró sem uma definição quanto ao casório, mas sem demonstrar qualquer frustração por mais um adiamento. Quando, morto o meu pai, Kiko assumiu definitivamente a padaria, não abriu mão da presença de Ninha no balcão. Era por certo uma maneira de assegurar-se de que, com ela atendendo a clientela, a empresa não podia dar errado. E aproveitando que o namorado encontrava-se outra vez na cidade e até construíra uma pequenina casa numa fração de terra herdada do pai, arredores de Mossoró, resolveram que era tempo de casar. A decisão, que a muitos surpreendeu, teve o apoio irrestrito e irreverente daquele irmão, que aparece nas fotos do casamento, magro, recémsaído de uma icterícia, mas nem por isso menos sorridente. A modesta lua de mel aconteceu no sítio de tantos sonhos irrealizados. Breve senhora de um micro latifúndio, ela fazia planos: quando a gente tiver um jipe, vamos buscar todos para passar o fim de semana na Picada; ou: quando Socorro e Dedé (já residentes no Rio de Janeiro) chegarem, já sabe: vamos todos pra Picada, tomar banho 166
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de rio, comer feijão verde... Ou ainda: Olavo vai plantar. E quando começar a colheita... Acontece que, sem terem vocação agrária, sem recurso e sem emprego que pudesse ao menos remunerar parte daquele sorvedouro, tiveram de retornar a Mossoró. Kiko os acolheu de volta à padaria e acompanhando minha irmã, Olavo também entrou na agitação do atendimento aos fregueses. Porém, se o romântico soneto do casamento se revelava muito bom, a emenda realista da padaria revelou-se infeliz. Temperamentos difíceis entrechocando-se, não demorou muito e o marido da minha irmã retirou-se. E ela acabaria saindo também, encerrando o seu ciclo de trabalho na Meira e Sá. Como já estavam morando na casa que meu pai havia construído nos fundos daquela outra nossa – o que também garantia manter-se próxima de minha mãe, já envelhecida e tendo de cuidar da neta Cibele que viera para facilitar a recuperação de Gelza, recém-operada – passou a vender lanches aos comerciários do centro da cidade. Nessa nova atividade revelou-se uma empresária bastante original, solicitando alegre, no fragor do movimento da tarde, que o freguês, já devidamente servido e alimentado, fizesse o obséquio de anotar o débito numa caderneta obediente em cima da cristaleira. Já Olavo, tendo arrumado um emprego na Prefeitura, tornara-se um compenetrado funcionário público, pela solidária interferência do primo Chico Monte, à época ocupando uma das Secretarias. Aqui se inicia uma fase especialmente feliz para ela. O marido que decidira arquivar os ímpetos boêmios concentrou-se na atividade de almoxarife. E com tanto 167
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zelo dedicou-se àquele emprego, que adquiriu fama de caxias, desestimulando a ação de espertalhões ou daqueles inevitáveis usuários do uso concomitante do público e do privado. E revelou-se capaz de dar conta de uma agulha naquele palheiro assustador. E voltava a visitar aquele pedaço de terra na beira do rio, pelo qual parecia nutrir um grande amor apenas nos fins de semana. Sonho e frustração estiveram sempre juntos na passagem de ambos por ali. O retorno definitivo a Mossoró, aliás, também tivera entre as motivações um acidente ocorrido quando ele, manejando uma foice, descuidou-se e ao errar o golpe acertou a própria perna, o que apavorou a mulher e quase o deixou com um dano irreparável para se movimentar. Longe daquele sítio, dedicou-se por completo à vocação tardiamente descoberta. Passados alguns anos, tendo reunido todos os tempos de serviço dispersos nos muitos empregos por que brevemente passara, Olavo aposentouse. Logo cuidou de aplicar os conhecimentos de almoxarife em casa, reservando um quarto no quintal para, a seu próprio modo, arrumar tudo que lá existia. A experiência da atividade que lhe dera status estimulou-o a criar aquele simulacro de almoxarifado pessoal em que mantinha arrumadas, criteriosamente, as tralhas domésticas. Algum tempo depois, minha mãe arrendou a sala de visitas da sua casa para um armarinho de miudezas, transferindo vovô Neco para a parede da memória e reforçando a modesta receita mensal. Depois que ela faleceu, a lanchonete tendo cerrado as portas e casada a sobrinha-neta Cibele – que também ajudara a criar – Ninha pôde agora, residindo na casa que fora dos seus pais, dedicar-se a amar e a servir 168
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completa e definitivamente a Olavo. Ola. Uola, como graciosamente passou a chamá-lo na velhice. Se filhos não chegaram a ter, ninguém poderá dizer que minha irmã não exerceu à plenitude sua condição de mãe. E foi assim que utilizou as aptidões jamais adormecidas para dar especial atenção a Olavo, quando este (tocado pela obrigação de arrumar os objetos domésticos como se fora um Quixote, disposto a ordenar o mundo pelo respeito à honra com a nervosa organização de tudo aquilo num mesmo espaço) concentrava-se cada vez mais numa obsessão, hipertrofiada pela esclerose. Decidiu então trocar o dia pela noite, talvez para que não o atrapalhassem na faina de cuidar de um mundo para sempre desordenado. Enquanto ela dormia, ele circulava por cada cômodo da casa, a conferir roupas, móveis, chaves, talheres, bolsas, álbuns de foto da família, copos e mantimentos. No meio da madrugada, sem resmungo ou lamento, Ninha acordava, lhe um fazia café, perguntava se precisava de mais alguma coisa e voltava a dormir. Esgotado pela cansativa vigília, era comum vê-lo derreado sobre a cama ou com parte do corpo para fora da rede no sono matinal. Desperto, não cessava a atenção de minha irmã. Preparava-lhe o alimento capaz de agradá-lo e, ao longo da manhã acompanhava-lhe discreta os movimentos. Às tardes, sentavam-se na calçada, a ver os muitos amigos passarem – boa tarde, dona Terezinha! Diga aí Olavo! Diga gente: alguma novidade?, mantendo comunicação elíptica com a amiga Toinha e às vezes, a vizinha e amiga de tantas décadas, Renê, filha de dona Senhorinha e de seu Caboclo Lúcio. 169
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Mas aconteceu de Olavo redescobrir num dos escaninhos da memória, agora intermitente, como a de Dom Alfonso, a figura da mãe Francisquinha já morta. Tentando talvez resgatar o não cumprimento de alguma recomendação esquecida nas travessuras infantis ou em meio à boêmia, acrescentou algum remorso despertado àquela mania de organizar coisas, desenvolvendo a preocupação de ir à casa de sua mãe. E começou a desaparecer da sua. Tomada de pavor (para aumentar sua angústia o marido havia perdido um irmão que, fugindo de casa, não atinara retornar e fora encontrado já sem vida num terreno ermo nas cercanias de Mossoró) minha irmã passou a segui-lo toda vez que se afastava. E se não encontrava dificuldade alguma para trazê-lo de volta à realidade da casa-almoxerifado, chegou a passar momentos mais difíceis, quando ele se confundia no trajeto para a casa da mãe e tomava rumo desconhecido. Mas aquele amor inexcedível tinha sempre reservas para utilizar, e logo retornava a precária harmonia daquela casa da Augusto Severo, em cuja calçada os vimos tantas vezes – um ao lado o outro – ele, numa pose moderna dos anos 50, montado ao contrário, na cadeira, os braços apoiados do espaldar, ela sentadinha, a balançar as pernas, atenta à sua menor vontade. Estranha modalidade de amor agora os unia, pois se haviam tido um renitente namoro; se se tonaram um dia marido e mulher; se o encanecimento da relação reveloulhes a condição de companheiros, quase irmãos, eles agora mais pareciam mãe e filho, Ninha pressurosa, sempre pronta a protegê-lo, livrá-lo de todo perigo, esforçando-se por lhe arrancar um sorriso do rosto vincado. 170
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- Uola? – era no lanche da tarde – vai tomar agora seu cafezinho? Quer um pedacinho de bolo? Olhe: esse queijinho de manteiga está bem fresquinho. Quer que eu corte um pedacinho pra você? Quer comer uma tapioquinha? Já quando as coisas pareciam diminuir de importância e ele passou a desenvolver outras esquisitices, como tomar água quente adoçada como se fosse café, repetir pela milésima vez exemplos sobre a pedagogia punitiva de seu Almino ou algum causo já contado de padre Mota, ela mantinha o bom humor sempre em busca do que parecia agradar a seu amado. Porém, deixar crescer as unhas dos pés, e os fios de uma barba que lhe dava ares de profeta e não querer trocar a roupa, claro, aumentava a preocupação de Ninha que não podia aceitar como razoável sua indisposição de manterse limpo e cheiroso. Era então que mais forte se mostrava aquela sua eterna vocação de mãe, chegando nesse caso a ralhar fortemente com aquela birra: - Ola, homem de Deus: vá tomar um banho pra trocar essa bermuda, Uola! Se você quiser eu ajudo, boto água quebrada-a-frieza. Toalhinha limpa, sabonete phebo... Boto até shampoo pra lavar a cabeça e essa barba. Não era bom cortar as unhas desses pés não? Do jeito que cresceram você vai acabar tropeçando. Quer cortar? Quem já viu, Ola, umas unhas dos pés grandes assim? E essa barba de Frei Damião? Não quer ao menos aparar? Pelo amor de Deus, Uola! Quer um cafezinho, um cigarro? Vou acender um cigarrinho pra você, viu? Tá como fome, Ola? Posso botar seu almoço?
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o dia em que o atirador Antônio Alderi dos Santos – a farda amarrotada e suja das manobras preparatórias de uma guerra agora imaginária – acordou-me colocando sobre o meu braço de menino um papagaio em pessoa, encenou uma das suas mais ruidosas performances de humor. Mas, para além da risadaria provocada, inaugurou mais uma personagem da nossa família já tão numerosa. Servindo o Tiro de Guerra 188, como quem participava de uma enorme pândega (numa altura da vida em que já se transformara em figurinha carimbada dos lupanares mossoroenses com os seus belos olhos azuis e uma alegria esfuziantes) ele tivera sua atenção despertada para o alvoroço provocado por um grupo de atiradores que descansavam de uma manobra sob uma árvore copada. E percebeu que um deles havia capturado o desajeitado louro. Ou porque se sentisse incomodado com a presença dos soldados brasileiros, ou porque queria fazer valer uma inexplicável birra, limitavase aquele papagaio a produzir uma pequena algaravia, coisa de desanimar qualquer possível proprietário. Meu irmão não titubeou, nem encontrou dificuldade em adquiri-lo.
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E foi com aquela justificada alegria que introduziu em nossa casa o novo morador que, embora silente durante um longo período, mostrou-se à vontade naquela pequena fauna composta de dois vira-latas, um gato, dois ou três pequenos cágados – que residiam no tanque feito para armazenar água durante a construção – um corrupião, alguns canários, uns estridentes verdelinhos, galo e galinhas, um peru celibatário e esnobe. E conosco morou durante uns bons quinze anos, tempo de protagonizar episódios que ajudaram a reforçar algumas das mais originais loucuras avelinas como saberíamos depois. Porém, nesse início dos anos cinquenta no século XX, nem tudo foi alegria para aquele nosso irmão porque dois episódios iriam contribuir para turbar sua aparentemente inesgotável disponibilidade para o riso. O primeiro ocorreu durante a campanha política para prefeito. Já admirando os notáveis vocalises de orador que o jovem advogado Raimundo Soares de Souza espalhava por tribunais, bares, clubes e cabarés de Mossoró e sabedor que ele aceitara o desafio de concorrer à Prefeitura contra os Rosados, Alderi logo se engajou na campanha. E o fez numa improvável função: a de locutor volante. Com ingenuidade proporcional à sua vocação para a alegria, o meu irmão não podia perceber que, por melhor orador que fosse o seu candidato não iria propriamente disputar a prefeitura, mas enfrentar uma comoção coletiva, um sentimento de dor provocado pela morte de Dix-sept Rosado, que ocupara o cargo agora pretendido pelo herdeiro do espólio político: o irmão Vingt, de quem dizia o hino da campanha que surgia como um guia, um condutor do eleitor também 174
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presumidamente órfão. Tornando-se governador numa campanha que empolgara o Estado, o décimo sétimo filho do farmacêutico Jerônimo Rosado não lograra completar seis meses no cargo, tendo falecido num acidente aéreo. O memorialista Francisco Fausto de Paula Medeiros escreveu no seu Viva Getúlio – as areias brancas da memória, belas páginas sobre essa campanha. E é comovente lembrar a empolgação que não segurava aquele entusiasmo a misturar idealismo e boêmia levando jovens, entre os quais se alinhavam Alderi e também o memorialista citado, a acreditar na possível mudança. A crença no bom êxito da campanha traduzia-se num “slogan” simplório, mil vezes repetido pelo meu irmão no velho jipe que cruzava a pequena Mossoró até tarde da noite a apregoar como numa advertência: “QUANDO O POVO QUER, DEUS ABENÇOA!” e seguia enumerando as incontáveis qualidades do jovem advogado. Derrotados na campanha, Alderi e os companheiros ainda tiveram de aturar uma comemoração que substituiu a cançoneta de tradição francesa que fazia ecoar soluços dos eleitores apaixonados, (“Dix-sept Rosado foi bravo/Alma pura e varonil/Tombou no campo de honra/lutando pelo Brasil/Choram rios, choram montes,/Choram o céu e o mar;/Cobriu-se de dor e pranto/Todo povo potiguar”) pelos ruídos de uma festa na praia de Tibau em que os vitoriosos, movidos a álcool e paçoca de carne de sol, soltavam a voz numa paródia do “Sassarico”, (“Sa-sa-saricando/a viúva o brotinho e a madame/Sa-sa-sa-ricando/ todo mundo leva a vida no arame.../)modinha do carnaval de 1951, sucesso sem precedentes da vedete Virgínia Lane, 175
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que também tinha lá seus envolvimentos com a política, pois dela se dizia ser amante do presidente Getúlio Vargas. Não chegava a ser mais novidade para nossa família o fato de meu irmão retornar a casa tarde da noite. Nenhuma preocupação especial a esse respeito, já que vigia aquela segura disposição de nossa mãe de entregar a Deus a única guarda confiável dos filhos, a despeito das reclamações do meu pai, resmungão, tendo de se levantar para abrir a porta, sempre preocupado com as conhecidas incursões prostibulares que faziam Alderi chegar a desoras. Era ao menos possível saber-se quando tal acontecia através do alarido causado pelos dois cachorros quebrando o silêncio da noite. Além de Sabugo, havia também Peri, igualmente vira-lata, embora o corpo esguio e a coloração do pelo pudessem sugerir algum tipo de cruzamento ancestral. Se aquele Sabugo era reconhecidamente dócil a ponto de se tornar o desajeitado leão de minhas aventuras, Peri, pelo confinamento humilhante em que vivia – sempre preso durante os dias a uma corrente no fundo do quintal – era um rancoroso. Pois numa das noites daquela campanha memorável, retornando a casa após cruzar Mossoró propagandeando as qualidades de Raimundo Soares, mal alcançara o meu irmão a pequena área que havia entre o portão e a porta de entrada da casa, por alguma razão desconhecida Peri o agrediu furiosamente e tentou morder o pescoço de Alderi num salto espetacular, por pouco não acontecendo uma tragédia porque faltou um nadinha para lhe alcançar a carótida. Incapaz de guardar mágoas, meu irmão – que viu o sonho eleitoral esboroar-se – não se tornou inimigo de Peri que afinal continuaria garantindo a 176
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segurança da casa, já esquecido de algum odor estranho que o locutor havia trazido da rua e lhe despertara tanto ódio. O outro acontecimento ainda me revelaria sua vulnerabilidade humana. Foi quando ele e todo o país sofreram o impacto da morte do seu cantor mais famoso, Francisco Alves, que viajando de automóvel entre o Rio e São Paulo sofrera um pavoroso desastre. Com ele morria aquele que – num tempo em que Gardel parecia absoluto – os fãs brasileiros consideravam o Rei da Voz. Era a época de ouro do Rádio, idos de 1952. A Rádio Nacional que então liderava a audiência numa proporção tão grande quanto a da Globo ao final da década de sessenta, transmitiu velório e enterro numa das maiores homenagens coletivas já registradas no país. Uma gigantesca onda hertziana levava a amarga notícia aos quatro cantos do Brasil. Como naturalmente ocorre em tais situações, num exercício de reverente sadismo a transmissão reproduzia em bg alguns dos muitos e grandes sucessos de Chico Alves, enquanto locutores com suas vozes dramáticas abusavam da retórica, esmerando-se na difusão das loas. E tome soluços ao som de “Boa Noite Amor”, “Canta Brasil”, “Canção da criança”, “Cinco letras que choram”. Para mim, mal atingindo os sete anos, aquela era uma manhã tão feliz como outra qualquer. E, tal como ocorria na sequência dos dias, cabia-me com os outros irmãos pequenos correr pelo quintal, colher e chupar as doces cajaranas que amareleciam o chão, açular Peri a uma prudente distância, mexer com os cágados no tanque cheio d’água, aproveitar o quanto fosse possível o tempo do estio. E foi com esse estado de espírito que entrei em desabalada carreira na sala onde se encontravam o alarido fúnebre. E 177
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o que vejo? Antonio Alderi dos Santos encolhido numa cadeira – o rádio soturno, ligado a grande altura. Meu irmão parecia inundado pela tristeza que as vozes graves e as músicas saídas do rádio alimentavam. Já adulto, concluí que, pelas conversas anteriores a respeito da morte do governador e por esse velório radiofônico, tinha de me familiarizar com os assuntos de luto. Porque aquela imagem da finada Nazaré adormecida, no álbum de retratos, era fluida, não vogava: não provocava choro. Devo admitir: havia uma grave nobreza em toda a cena que espantado pude ver. Apenas uma coisa destoava: um complemento plebeu que se não comprometia o sentimento do meu irmão, contribuiu para mais adiante eu entender quão verdadeira foi a escolha feita para simbolizar o teatro com as máscaras do trágico e do cômico, uma ao lado da outra: o fã de Chico Viola enxugava as lágrimas com um pano de prato que lhe trouxera a sempre providencial Ninha. Pouco tempo depois da morte do ídolo, Alderi deixaria Mossoró seguindo no rumo de Natal, aonde se tornou um aguerrido empresário de panificação no Areal. A pequena padaria iniciada com a ajuda do meu pai – e da qual adiante iria se desfazer, por excesso de zelo do mesmo – provocaria um episódio marcante para a família, de uma hora para outra transplantada para a terra dos Reis Magos, numa aventura inesquecível. Revejo-me menino nos fundos dessa padaria, olhando deslumbrado o mar da Praia do Meio. Tudo aconteceu de forma rápida e intensa, para justificar o componente passional dos Avelino. E o sonho do galego meu irmão frustrou-se. Mesmo assim, quero dizer que às situações de tristeza, logo Alderi contrapunha 178
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alguma atitude bem humorada. Até em assunto de morte ele colocava irreverência. Em algumas das nossas farras familiares, fazia sucesso a sua performance de ator de comédia pastelão imitando grosseiramente a dor infinita da santa tia Cota, que, tendo perdido o esposo, nosso tio Dedé, de tanto chorar acabaria com os olhos esbugalhados de tristeza, eternamente escondidos atrás de um biombo de lentes negras. A incontrolável profusão de lágrimas se manifestava toda vez que alguém fazia menção ao nome do tio morto, o companheiro amantíssimo de quem enviuvara ficando com uma escadinha de filhos. Ao reproduzir o choro da pobre tia meu irmão exagerava tanto – máscara e soluços, estertores e breves pausas seguidas de repetições – que não havia como segurar o riso. Longe dele a intenção de imitar algo tão trágico de forma maldosa. Era apenas a sua disposição de provar que para ele não existia assunto catalogado de forma preconceituosa para as conversações. E quando se tratava de uma boa libação, tudo o fazia rir. E a sua disposição era de que todos o acompanhassem na alegria, não deixando ninguém sossegado. Não poucas vezes, no alpendre de uma casinha que eu ousadamente construíra na praia de Pirangi do Norte – tijoloa-tijolo, financiamento após financiamento em demoradas operações bancárias conduzidas pela generosidade dos amigos Zé Antônio, Edgar e Jurandir – tivemos sua companhia em farras memoráveis. Momentaneamente interrompidas minhas inconvenientes leituras varávamos noites e madrugadas rindo e brindando à vida. Sempre bebendo e a emitir comentários chistosos, Alderi mexia com um e com outro dos nossos veranistas, até quando o corpo 179
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resistisse. Após meia hora de sono recomeçava. Inventei então que ele inaugurara naqueles nossos encontros praianos uma modalidade de farrear: o porre a prestações. Pois mantendo sob a rede um copo e o garrafão de vinho Sangue de Boi, cuja doçura ajudou a produzir muitas das ressacas decorrentes, ele simplesmente não deixava ninguém quieto. Após um breve intervalo, despertava e tornava a beber. Passado algum tempo readormecia. Mais adiante tornava a acordar e voltava a beber, e sempre fazendo convocações ruidosas e bem humoradas a quem dormia para não deixar a farra acabar. Dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, mostrava-se apto a recomeçar, ou a enfrentar algum problema cuja dimensão – sóbrio – costumava exagerar. Sua capacidade de recuperação fazia-o parecer um alegre Prometeu, resistindo, resistindo, não importando o quanto seu fígado fosse solicitado a trabalhar. Impossível, por isso, não recordar também o que ocorria na rua do Russel, numa segunda temporada carioca, em 1963, época em que convivi com os habitantes daquele minúsculo apartamento do bairro da Glória, núcleo humano agora acrescido – como se houvesse espaço para tanto – de mim mesmo e dos primos Chico Novo e Altenir, sobrinhos de Zé Maria e netos de tia Cota e tio Dedé. Já devidamente adaptado ao ritmo de vida carioca, trabalhando no SAPS, as farras se sucediam sob a liderança do feliz vascaíno. Em dias indistintos, e sem necessidade de prévia programação ou aviso, ele irrompia no meio da noite, liderando grupos de meninas deleitosas, preocupado em garantir o direito de todos à festa. E madrugada adentro, com frequência idêntica às reclamações dos moradores de apartamentos 180
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mais próximos sucediam-se os furdunços, para desespero do nosso vizinho de baixo, emitindo mensagens desesperadas através de um grosseiro morse – cutucadas com cabo de vassoura no seu teto/nosso piso – a advertir que necessitava repousar, era madrugada, havia trabalho no dia seguinte. Despachadas as mulheres, tudo serenava. E também dormíamos o sono dos justos, naquele injusto aperto de cama, soumier, cama de lona, ou, pura e simplesmente, chão forrado. Mal amanhecia era possível perceber que ele, já de pé, iniciava sua alegre ablução. Começando, como era natural, pela barba. Meticuloso nesse quesito como meu tio Alexis, demorava-se escanhonando o queixo, as bochechas largas e rosadas, o pescoço, até que não restasse um pelo sequer. De tempos em tempo até que deixava um bigodezinho raso. Depois se cansava, raspava tudo, ficando com um ar levemente libidinoso, um jeito maroto de sorrir, reforçado pelo azul dos olhos destacando-se do róseo rosto Gurgel. A atividade que precedia aquele banho tinha como contraponto o nervoso ressonar do pequeno grupo de retirantes escornados fedendo a sexo e cerveja. Mas essa calma começava a desaparecer quando, aberta a torneira, espalhada a branca espuma pelo rosto, iniciada, enfim, a tarefa de eliminar os pelos da face e conferida a eficácia de cada raspada, o meu irmão passava a chamar, de modo compassado e repetido um dos primos por quem tinha particular afeição: Altenir, filho de Chiquinha, uma falecida irmã de Zé Maria. Peito estufado, topete e sotaque cearenses e um vocabulário de conquistador da Praia de Iracema que fazia a alegria do meu irmão, tornava-se alvo fácil das suas brincadeiras. Já raspando o rosto, Alderi começava: 181
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- Altenir? Mal despertando em meio aos vapores nauseantes, a cabeça a latejar e assustado pelo chamamento, o pobre do primo indagava, sem entender: - O que é, Alderi? E o meu irmão, surdo à resposta-pergunta, fazendo do creme mentolado uma barba de papai noel para novas escanhoadas: - Ô Altenir! Tentando entender a extemporânea convocação, o primo ainda apelava ao bom senso do pândego tentando esclarecer o que estava a acontecer: - Arre égua, Alderi! O que é que tu quer, macho? E meu irmão, uma raspada e um chamado: - Tenhir! Ô Tenhir! O jeito cearense de pronunciar o ene, sucedido de um gracioso agá, fazia a festa zoadora do meu irmão. E Altenir, já começando a se impacientar: - Homem, diga logo o que é... Riso. Espuma. Escanho. Nova chamada, em tom mais alto, a que se seguia o riso desabrido: - Tenhir! Acorde Altenhir! Cumpre explicar duas coisas: a primeira é que apertados naquela quitinete, acordávamos todos e não apenas o primo Altenir. Até mesmo o discreto Alírio, filho de tio Antônio Calazans, com sua vasta e luzidia cabeleira, nem sempre bem humorado, mas sem propriamente reclamar porque também pegava cedo no trabalho, como o meu irmão. Eu, que não fazia nada mesmo, naquele 1963, apenas me divertia. Já os primos Chico Novo e Altenir, 182
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revisores do jornal Diário de Notícias, diário impresso e ainda circulante, contavam sempre dormir um pouco mais, devendo chegar à redação da rua Riachuelo apenas por volta das onze horas. Sem mais direito a dormir, conformavam-se em assistir à retirada triunfal do meu irmão. Banhado, perfumado e engravatado como um lorde, dentro de um dos elegantes ternos da Ducal que costumava adquirir, para garantir a boa aparência, Alderi finalmente saía no rumo de mais um dia de trabalho, para garantir o financiamento de outras loucas alegrias. Mas o episódio mais curioso da atividade boêmia desse meu irmão, (“meu padim”, como ele e os companheiros de esbórnia mossoroense costumavam tratar-se), aconteceu numa área de lazer – a que não poderia, é claro, faltar uma piscina – existente por trás do escritório de um bem sucedido representante comercial de Mossoró: Djalma D. Oliveira, que vinha a ser também cunhado de Olavo, o marido de Ninha. O cenário era a provecta rua Coronel Gurgel. E em pleno horário de expediente. Agora ocupando boa posição nos quadros da autarquia em que trabalhava e dispondo de um crescente reconhecimento no campo da esbórnia, toda vez que Alderi vinha de férias a Mossoró era naturalmente convidado a frequentar rodas de figurões locais que ali se reuniam, movidas a uísque doze anos, honestamente contrabandeado. Eram encontros – como o de que ora tratamos – naturalmente enfeitados por alegres moças (o dialeto mossoroense do meu tempo classificaria grosseiramente como “puaras”) vindas de todas as latitudes. Muitos respeitáveis chefes de família, empresários ou amigos diletantes – que nunca os faltaram no burgo oestano – 183
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banharam-se naquelas águas. Certamente não exagero ao dizer que Petrônio não teria do que reclamar, se lhe faltassem bons motivos para uma nova versão do Satyricon. Entra em cena meu pai. Sabedor de que Alderi não dormira em casa – e que, de passagem comprada para viajar a Natal na marinete de Antonio Cirilo, não havia comparecido ao embarque – saiu desesperado a sua procura. Sempre tolerante consigo mesmo nas paradas imprevistas que fazia para refrescar-se tomando uma cervejinha, enquanto os passageiros esperavam reclamando, o famoso motorista/ proprietário da marinete ameaçava partir. Após certificarse que o filho não se encontrava em nenhum dos quartos do Alto Louvor, Juvenal foi Informado que era possível encontrá-lo no endereço do furdunço já famoso, que Mossoró não deixa informação represada. Sem imaginar o que costumava acontecer naquele serralho, não contou conversa. Partiu decidido a pôr o filho no transporte, Cirilo que tivesse paciência. Nem considerou o pedido de aguardar um pouco, feito pela respeitosa secretária, logo ultrapassou os limites da atividade empresarial e flagrou todos e todas completamente nus. As meninas como alegres nenúfares a flutuar sobre as águas, numa libação que também poderia servir de cenário e cena para uma versão pornográfica de um filme como “A Favorita de Júpiter” de Esther Williams então em cartaz no Cine Caiçara. - Alderi? – Gritou admirado o meu pai com o que não contava ver – Rapaz! A marinete só está esperando você... Você vai perder a viagem? - Homem! Esqueça a marinete... Deixe isso pra lá. Decidi mudar de horário... 184
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Um dos “padim” logo interferiu, demonstrando que generosidade – embora nesse caso rima pobre – podia se sobrepor à irresponsabilidade. - Não quer esfriar o corpo não, seu Juvenal? Menina: vê aí um calção pra seu Juvenal... Ante a risadaria geral meu pai não encontrou alternativa que não fosse dar meia-volta, constrangido por haver atrapalhado – momentaneamente que fosse – aquela fuzarca. E embora resmungão contumaz, não tornaria a reclamar do prejuízo da passagem perdida. Um dia toda a esfuziante alegria de Antônio Alderi dos Santos cessou. E de tudo restou a incômoda lembrança em todos os que presenciaram o susto do meu irmão, aquele ar incrédulo e olhar que de um azul exuberante tornou-se subitamente embaçado. Sem jamais externar reclamação, foi destilando umas tristezas inexplicáveis, uns silêncios inquietantes a denunciar que algo de muito estranho e certamente perigoso estava a acontecer nas rotinas do seu corpo, na sua face tão alegre. Após uma tomografia, consultado o amigo-médico Hamilton – com quem se acostumara a dividir o melhor da música brasileira e a cerveja mais gelada – dele recebeu o diagnóstico inapelável: tinha um tumor no cérebro. Puta-que-pariu! Era como se um corvo, substituindo aquele colorido papagaio que ele me dera, tivesse decidido cravar suas garras não num dos meus braços, mas no meu coração. Puta que pariu. Também vivi a suma tristeza de assistir a sua partida. O seu físico lenta e inapelavelmente destroçado pelas temporadas de cirurgias, internações hospitalares, tratamentos ambulatoriais e infindáveis sessões rádio 185
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e quimioterápicas – de que ele, dócil e obediente jamais reclamou. A repetir noutra perspectiva o que acontecera ao seu velho pai, a morte, laboriosa, cobrava do seu organismo o que pudesse indicar saúde. Nem de longe lembrava sua presença tão bonita. A maquininha que lhe media o ritmo cardíaco manifestava uma tímida regularidade pulsando preguiçosa sua luzinha assustadora. Era uma manhã sem graça e eu havia decidido visitá-lo logo cedo. Pouco depois que entrei no apartamento do hospital onde o que dele restava mantinha-se preso à vida tecnológica, a pulsação tornou-se ssustadoramente débil, manifestandose numa intermitência irregular. E trouxe a nossa presença a realidade previsível em que não queríamos acreditar. Até que, após uns riscos luminosos que se mostravam em intervalos que pareciam não ter fim, não mais se ouviu qualquer ruído da vida que parecia sair da pequenina tela. E tudo cessou. E foi então que se ouviram os soluços da mulher Alzira e da filha querida que batizara com o nome de Dalila em homenagem a nossa mãe. E choramos abraçados, como num aplauso às avessas dirigido àquele espetáculo pleno de tristeza.
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e todos os filhos de Juvenal e Dalila terá sido Gelza quem revelou o temperamento mais forte. Avelina autêntica, bonita, espirituosa, era cheinha de carnes e tinha um notável talento para a pedagogia, embora sendo adepta de métodos corretivos que se aproximavam dos empregados por meu pai. Mas dos gurgéis herdou certamente a fala macia e a vocação para o ensino. Foi uma destacada normalista, enquanto pôde frequentar a escola criada por Elizeu Viana e Celina, sendo reconhecida pelos que com ela conviveram, como possuidora de um grande pendor para as artes manuais. Era uma animadora pedagógica nata. E também despertaria os corações de rapazes do seu tempo, até que entrou em sua vida o patuense, Francisco Pereira da Silva. Pouco sei de como se deu o início desse relacionamento embora esteja seguro de que começou na época em que morávamos na casa construída por meu pai na Alberto Maranhão. O certo é que foi uma paixão arrebatadora. E marcada – desde o início – por uma complicada repercussão familiar. Ainda sem entender o estado de tensão que passou a reinar em nosso ambiente doméstico por conta do
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namoro, lembro-me que um dia, ela tomou-me pela mão, arrastando-me afobada pelas poeirentas ruas de Mossoró até o Hotel Santa Luzia no meio da Coronel Gurgel – a um ou dois quarteirões do cinema Pax e daquele espaço em que ocorreria a esbórnia de Alderi. Era ali que costumava hospedar-se o fazendeiro romântico quando vinha a Mossoró. E foi lá que o encontramos naquele início de tarde, sentado a uma mesa e parecendo dialogar com uma pequena multidão de garrafas de cerveja que tinha diante de si. Logo revelou-se penosa a comunicação tentada pela minha irmã com aquele homem de quase dois metros, que, por sua vez, esforçava-se para se fazer entender com sua voz embargada de álcool e emoção. Não lembro, é claro, o teor da conversa impossível. Apenas recordo que ele falava, falava e mais falava numa voz pastosa, defendendo argumentos que pareciam movidos a angústia, sendo incompreensíveis. Aqui e ali Gelza utilizava sua também angustiada possibilidade de expor o que pensava, enquanto ele, amoroso e sob a inapelável excitação do álcool, contraargumentava sem se fazer entender. Houve um momento – lembro-me bem – em que tendo Chico se erguido da mesa para cambaleante ir ao banheiro, com extrema rapidez ela pôs-se a esvaziar o conteúdo de três, quatro garrafas que ali estavam ainda pela metade. Havia, na grande sala de jantar em que nos encontrávamos uma pia em que os hóspedes costumavam lavar as mãos. E foi para ali que se dirigiu várias vezes fazendo desaparecer o líquido dourado. Em casa, quando o romance tornou-se assunto corriqueiro ficou-se sabendo, através de comentários inicialmente discretos, que o meu pai desaprovava 190
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completamente um possível casamento. Da parte da minha mãe, ao contrário, era visível a simpatia pelo namoro. Não é demais pensar que agia deste modo, talvez pela incômoda lembrança daquela sua relação tão intensa e em alguns momentos tão difícil com o jovem panificador areiabranquense que, por carta, conduzida por tio Gerôncio um dia pedira a sua mão ao professor Lourenço. E ela fora dada, sem que ele lhe houvesse dirigido um cumprimento, bom-dia, senhorita; boa-tarde, boa-noite, olá como vai você? É filha de quem? Posso me sentar? Vamos à novena? Nada. O que lhe restou, naquela pequena e pobre casa em que o pai a mantinha com as outras quatro irmãs, debaixo de rigoroso controle na quente Caraúbas, foi aceitar, as bodas por conveniência marcadas para o mesmo dia em que a irmã Lourdes casaria com Tião da Boa Vista. E ela recebeu o belo Juvenal, com quem logo partiu para Areia Branca, desacostumando os olhos da paisagem de juremas, juazeiros, dos cardos e da festa de São Sebastião. Um dia, Gelza anoiteceu e não amanheceu. E contando com a ajuda de uma prima já casada, em casa de quem ficou, aguardou o seu cavaleiro que veio acudi-la de chapéu na mão, elegante como caberia a um nobre rural. E estava sóbrio. Logo deu conta de não pretender sair de Mossoró sem antes consagrar a união sob as bênçãos da igreja católica. Fez correr os banhos e respeitou o tempo determinado pela igreja. Não faria daquela linda professorinha, filha de um homem de tanto respeito, uma amásia. Podia ter todos os defeitos, porém, jamais o de deixar o tempo passar, cevando vil concubinato, sem livrar a alma do peso da união ilegal, sem a libertação da desobriga. 191
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Queria-a esposa legítima, futura senhora das suas terras e mãe dos filhos que haveriam de ter. Intermediários ainda chegaram até o meu pai, com o pedido de bênção. Com uma ponta de maldade houve mesmo quem dissesse que a tez amulatada do futuro genro, mais até que a tendência ao alcoolismo havia despertado velhos preconceitos em meu pai. Fosse isso verdade ou não, o fato é que meu pai não atendeu aos pedidos. Ficassem com a bênção da igreja e que fossem muito felizes longe de Mossoró. Se se buscasse classificar o comportamento daquele angustiado rapaz sertanejo, único filho varão de um bem situado senhor de terras patuense, não se poderia, sem cometer injustiça, considerá-lo um irresponsável. É que por algum motivo, ele parecia arcar com o peso de haver desenvolvido uma dupla personalidade: médico e monstro de si mesmo, alternando-se na proporção em que se mantinha sóbrio ou passava a beber. Pelo menos era o que todo mundo falava: Chico Pereira, bom, é um cavalheiro; quando bebe se transforma: vira outra pessoa. Recebendo raras notícias do que ocorria na vida conjugal da filha, agora residindo em fazenda, minha mãe decidiu ir ver pessoalmente como passava Gelza, casada, naquelas lonjuras, no sertão de Patu. E lá fomos nós, Dedé e eu, acompanhando-a. E assim pudemos vê-los num cenário de bom inverno. Era lindo acompanhar a minha irmã cuidando da casa, de mobiliário escasso, agitando-se no cumprimento da dura rotina do campo, desdobrandose para fazer – ela mesma – a saborosa comida com que regalava os visitantes... Era de ver a competência que revelava no abate e preparo de alguma das galinhas mantidas 192
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em cativeiro, cuja captura era efetuada por algum agregado da fazenda, em perseguições barulhentas e divertidas. Uma vez alcançada, cumpria erguer-lhe a asa e assoprar a tênue penugem do sovaco tentando ver o risco azulado da veia, concluindo ante o sumiço ou amostragem se estava gorda ou não. E logo saía para outra tarefa, num afã interminável de manter em ordem a casa em que moravam e o terreiro em volta. Sua voz, forte e cálida, ecoava açulando o cachorro e continuava por todo o dia distribuindo ordens ou pedindo auxílio para completar alguma tarefa. O marido, sóbrio em cada um dos dias de nossa curta passagem, dava a minha mãe a certeza de que agira certo ao defender a felicidade da filha em mais um confronto com Juvenal. Educado, prestativo, generoso, Chico Pereira fazia de um tudo para que saíssemos dali com a tranquila sensação de que a vida seguiria em paz. E voltamos a Mossoró, providos de generosas quantidades de feijão macassar, doce de leite, arroz da terra, linguiça, queijo de coalho, o doce chouriço feito com sangue do porco, batata doce, rapaduras e manteiga da terra, em farnel por ele pessoalmente arrumado de belos e variados pacotes. Seria injusto considerar que o meu pai jactou-se ao ver algum tempo depois as suas teses vitoriosas. Porque retomado o consumo frequente de bebida, o genro produzia notícias desagradáveis que passaram a chegar com dramática regularidade, levando também minha mãe a refazer alguns dos seus pontos de vista. Revelando especial sobranceria, Juvenal não tripudiou sobre as dificuldades que a filha estava a enfrentar. Ao contrário: não conseguia esconder a tristeza escrita em vigorosas linhas horizontais sobre a 193
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testa larga. Por isso nem chegou a causar surpresa quando, as tensões amiudando, ele aceitou que Gelza retornasse a casa para uma temporada de consultas médicas. E mais adiante, até permitiu também que o próprio Chico viesse, em visitas passageiras. Mas não cessaram os momentos de sobressalto. A dramática algaravia, as falas entrecortadas, as desconexas e as ingênuas bravatas que manifestava ao beber, misturando assuntos de riqueza à coragem pessoal que alardeava possuir, nos levavam à certeza de que mais e mais nossa pobre irmã tinha o seu destino inapelavelmente marcado por aquela relação de tanto amor e tanta angústia, qual um tango de Gardel. Partos mal sucedidos na solidão sertaneja, provocando naturais complicações, trouxeram-na de volta numa passagem agora mais demorada por nossa casa. E com o agravamento da saúde, teve finalmente de deixar de lado até a escola que, como professora leiga, criara no sítio. Igualzinha à da sofrida personagem de São Bernardo ficaria órfã daquela que, a despeito de todo sofrimento, jamais abriu mão de ser uma educadora. Tendo se agravado o quadro de sua saúde, foi levada a Recife, pela interveniência de Agnaldo, um sobrinho do marido, então acadêmico de medicina, que diligenciou para que ali fosse operada. E ela voltou um dia, esquálida e triste, decidida a não mais retornar ao sertão. Novamente a minha mãe manteve-se como sua aliada incondicional, e Gelza recobrando forças pôde ainda viver momentos de grande alegria em Mossoró, concluindo o seu curso, formando-se em Pedagogia e, depois, inaugurando uma escola no conjunto habitacional em que passou a residir, 194
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com o nome de “Educandário Dalila Gurgel”, numa singela homenagem à corajosa baixinha que estivera sempre ao seu lado. Durante alguns anos ainda, minha irmã teve de conviver com o angustiado alcoolismo do marido, que embora relutando deixar o sertão, estava sempre em Mossoró, provocando espetáculos patéticos, discussões intermináveis e barulhentas que animavam tragicamente o conjunto habitacional da Cohab que havia sido construído para além do Alto de São Manoel, onde moravam em Mossoró. E a despeito da sua capacidade de lutar, já se mostrava descrente de que um dia as coisas pudessem tomar o rumo da tranquilidade de uma vida organizada que pedira a Deus. Uma noite, como a justificar tantas cogitações trágicas, cessou o conturbado modo de existir do seu marido. Ao tentar com passos trôpegos atravessar a avenida que margeava o conjunto em que moravam, Chico Pereira, que havia saído de uma churrascaria do outro lado da rua, foi colhido por um veículo, e teve seu corpo fraturado em várias partes falecendo na hora. Ao filho mais velho, Júnior, caberia a dolorosa missão de recolher seus despojos que encharcavam de sangue o leito da avenida. Gelza ainda lhe sobreviveria por vários anos. Com a têmpera que a caracterizava, expandiu o educandário, ajudando pessoalmente a subir suas paredes com argamassa que ela mesma preparou em não poucas ocasiões, e os tijolos que tantas vezes transportou e empilhou. Mas nem ela própria se livraria dos maus fados, abatida por um agravamento da saúde já precária alguns anos depois, completando195
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se o seu triste destino. A longa doença que a matou, com inexcedível crueza destruiu lentamente seu corpo, enfraquecendo-lhe a voz, turvando seu olhar, travando inapelavelmente aquela sua fácil comunicabilidade. Quis o destino que Nazareno, o terceiro filho, que no auge de seu padecimento também se tornava médico em Natal, a acompanhasse pessoalmente em sua última internação. Um débil sorriso ainda esboçou-se em sua face moribunda quando finalmente pôde vê-lo formado, na carreira tão admirada. Mas nada pôde ser feito para salvá-la. De tudo, restou a sensação de que o seu temperamento forte também orgulhava Juvenal e não apenas Dalila. Ela era, afinal, uma Avelino típica, da estirpe de outras guerreiras da família: Ninha, Dodora e Socorro, também suas filhas; Julieta, Jória e Jurineide, filhas de tio Antônio Calazans; Tereza Aranha, Leda e Salete, de tia Isaura; Lourdes, Landinha e Zezé, de tio Josa; Inael, de tia Inacinha; Geraldinha e Maria Antônia, de Chico Lino; Chiquinha e Vicência, de tia Cota; Nazaré e Maria Fausta, de tio Júlio; Aparecida de tio Chico Avelino. Essas e mais outras primas queridas, que por algum capricho genético – logo indicado como herança de Tia Chiquinha – revelaram-se identicamente mulheres corajosas, com disposição para ousar. Cada uma a seu modo, construíu belas histórias pessoais. Destemidas, encarando com bom humor as complicações do cotidiano sem economizar provisões de amor, que, benza-Deus, muitas continuam a distribuir com os familiares, puderam justificar plenamente a forte personalidade daquela matriarca maninha, espécie de matriz virtual do mesmo barro de que todas foram feitas. 196
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eu primeiro exercício de criação literária está ligado ao sono e à oralidade. E ocorreu em meio à doce tradição familiar. Empreendi-o ao presenciar alguma conversa de adulto, quando se comentavam as noites mal dormidas por conta do calor pegajoso e das chusmas de pernilongos que infernizavam a Mossoró do meu tempo. Certamente ainda envergando o chambre que rescendia às sucessivas mijadas durante o sono, descrevi um dia uma improvável serenata que surpreendeu a todos. E que acabaria se tornando tema ilustrativo para muitas das conversas familiares que se sucederam em nosso idioma familiar, tão próximo do daquele povo de Natália Ginzburg. Era episódio sempre lembrado por alguém com a intenção de divertir ou me irritar: - Mamãe: a muriçoca roda-roda e faz: currupiu!, currupiu!, currupiu! Fico a imaginar que o maldito inseto – de cuja família um parente com atuação bem mais danosa à saúde, o aedes aegipt, ri-se ainda neste início de século de nossa incapacidade de combatê-lo – acabou se tornando muito mais simpático nos comentários, além de estimular aquela minha absurda, porque certamente onírica criação. Tosca e monótona melodia a repetir um desagradável tema,
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misturando espécies de cadeias biológicas diversas, embora ambas voadoras e cantantes num Bolero de Ravel às avessas, fazendo também contraponto a minhas intermináveis dores de ouvido. Também manifestaria por essa época minha primeira atitude no sentido de defender meus direitos, porém de modo extremamente grosseiro. E resultou desastrosa tal defesa, como uma punição ao comportamento caviloso, típico de quem supunha ser detentor de prerrogativas pela inalienável condição de caçula. Qual seria a minha idade então? Possivelmente cinco, seis anos, a julgar minha capacidade argumentativa. Dodora, linda nos seus onze ou doze, brincava com outras crianças filhas dos vizinhos enquanto minha mãe, sentada com a amiga Valda Mendes e outras pessoas na calçada diante da Souza Machado, deixavam a noite passar. Não alcanço lembrar o que não me fazia adormecer. Três ou quatro possibilidades se colocam, porém, como razoáveis: o já mencionado currupiu da muriçoca, o calor do verão mossoroense, mijo recém-vertido, ou, quem sabe?, algum sonho inquietante que, mesmo sem se oferecer como pesadelo – sonho ruim de gente grande – me cortasse subitamente aquele sono, ensejando o surgimento do medo que se reforçava com a visão soturna das paredes de barro altíssimas de reboco irregular e feridento, o telhado já se aproximando do céu escuro. As vozes das crianças, estridentes e coloridas, embora longínquas, faziam o contraponto que estimulava a vigília incômoda. E a solicitação era feita já em tom de ordem: - Mamãe: mande Dodora me balançaaaaar! Minha pobre mãe, zelando por sua breve reunião noturna 200
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com os vizinhos – uma das poucas coisas a que tinha direito naquele seu mundo tão pobre de lazer – encaminhava com naturalidade a menina mais velha para executar a tarefa indecente. E Dodora, tinha de interromper o seu lazer – dela, Dodora – o que lhe parecia e era obviamente injusto. Silencioso, com os olhos prudentemente fechados, não me era difícil imaginar sua presença, ofegante e afobada, projetando-se nos solavancos dados no punho da rede, que em nada me ajudavam a relaxar. Penso hoje naquele embalo pouco ortodoxo, com a nítida sensação de haver estado numa câmara destinada a antecipar experiências como a de estudar a ausência da gravidade nas viagens dos futuros astronautas – porque eu sacolejava pra lá, pra cá, sem nada que me sustentasse, um cinto de segurança a que pudesse recorrer. Não dormia, é claro. E a minha pobre irmã, ansiosa para retornar ao que lhe era de direito, supondo-me sossegado, afastava-se sem fazer o menor ruído. Constatada sua ausência, dando um breve tempo para o mundo se esquecer de mim eu voltava à carga: - Mamãe: mande Dodora me balançaaaar! O apelo reiterado acabaria confirmando a disposição da minha irmã de partir para um confronto. Outra vez interrompida a brincadeira com as amiguinhas, a bela infanta logo se mudava em monstra. E eu me tornava vítima das sacudidelas ainda mais fortes que ela dava num dos punhos da tipoia, quase me arremessando para fora. Apavorado eu via a parede distanciando-se e se aproximando perigosamente em movimentos cada vez mais rápidos, enquanto ouvia as advertências ameaçadoras. - Vá dormir menino nojento. Seu chato: vá dormir! 201
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Mais do que ouvir tais palavras, eu podia senti-las no antebraço, em forma de muxicões que me atordoam o juízo. E nem adiantava reagir, porque os meus gritos simplesmente não ecoavam. As vozes da calçada parecendo mais fortes e completamente alheias ao que estava a ocorrer. Ninguém virá em meu socorro. O balanço continua forte, fazendo contraponto ao fungado raivoso de minha irmã. Tonto, acovardado, eu acabava adormecendo um sono justo que haveria de durar até a próxima mijada. Passado tanto tempo, minha irmã e eu rimos francamente de tudo e ela chega a se espantar com a minha lembrança. Não seria resultado das conversas mantidas em casa, quiçá o seu próprio depoimento um dia, já adultos, para ilustrar alguma consideração sobre pretensos direitos de caçula confrontados com a pedagogia do tempo, o uso de métodos infalíveis para curar chatice? Os acontecimentos em torno do filho benjamim também registram situações às quais caberia certamente aplicar o adjetivo dantesco. Ouvi da minha mãe, não poucas vezes, o relato sobre um pavoroso surto de varíola dos ocorridos em Mossoró. Facilitando a ação epidêmica, a filharada toda ficava confinada à noite em suas redes nos quartos de dormir com pouca ventilação. E a exposição aumentava com o uso do banheiro comum, onde não havia vaso sanitário com descarga, enquanto a água do banho era recolhida de um tanque lodoso com uma pequena lata de óleo comestível reaproveitada para o chuá-chuá. Quando ocorreu a epidemia chagosa, a família toda acabou acometida. E os filhos de Juvenal e Dalila tornaram-se zumbis purulentos buscando o mínimo de conforto para seus corpos febris. Até 202
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as duas empregadas mandadas vir de Areia Branca, por tia Chiquinha, para ajudar no enfrentamento do surto, arriaram inúteis, segundo a mesma Dodora me disse anos depois. Todos acabaram contaminados naquela experiência infernal. Menos eu. E é neste ponto que se dá um episódio que confunde desespero com o senso prático da minha mãe e do povo do seu tempo, tornando irrelevantes as ponderações científicas. Bebê, eu ficava passeando de colo em colo de quantos estavam acometidos da doença, o tempo que ela durou. A justificativa era, se pensarmos bem, razoável: não adiar um futuro acometimento. Uma vez que todos estavam doentes, o mais sensato era induzir o até então imune a exibir logo sua cota bexigosa, pois cessado o surto, estariam todos livres, que bexiga não dá duas vezes. Em vão. Passei incólume. Naquele quadro de horror avultava o drama de minha irmã Gelza. Buscando alento para o calor e a ardência das chagas, era deitada sobre folhas de bananeira, o corpo todo a verter pus numa dolorosa lembrança tornada viva pelos relatos familiares. Mas, se por algum capricho da natureza não contraí a temerosa varíola, acabei inapelavelmente abatido pelas pílulas de vida do Dr. Ross. Para registrar tão insólito acontecimento tenho de me reportar a minhas primeiras viagens em torno dos quartos da casa – ainda vestido naquele chambre fedorento – num das quais descobri, imponente em meio ao pobre mobiliário da casa, uma penteadeira, de madeira escura e brilhante, com seu tríptico de espelhos. Ali, impressionava-me ver minha imagem multiplicada e não raro ficávamos os três, acrescidos de mais outros três, por muitos mais, numa ilusão de ótica que exercitava um 203
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nascente tarcisismo. Porém, o fascínio daquele móvel não se resumia a triplas imagens. Estimulava-me a abrir cada uma das suas gavetas de onde se desprendiam cheiros agradáveis e fortes despertando-me o olfato e a imaginação. E foi numa delas, lá onde pôde alcançar o meu braço de criança, que descobri um desafiante vidro contendo pequeninas pílulas de cor rosa. O fato de serem coloridas não esgotava, claro, a minha curiosidade. E por isto decidi prová-las, enchendome de prazer a sua doçura suspeitosa, o que me estimulou a repetir por várias vezes o temerário teste. Sempre associei o nome de tais pílulas a um previsível efeito laxativo. Mas os seus benefícios curativos eram vários, e, curiosamente, só descobri muito depois – através de Carlos Heitor Cony num dos seus deliciosos registros jornalísticos – que elas pertenciam à cadeia dos específicos, aquelas minúsculas pílulas que se tomavam combinadas: uma de tal cor, com outra de cor diferente, (ou a de número tal com o número qual) serviam para tal doença e assim seguia a vida. Aquela impressão que eu tinha acabou predominando pelo efeito que me causou. E foi certamente reforçada pela massiva propaganda veiculada várias vezes ao dia pelos rádios que se ouviam na cidade. Uma musiquinha exaustivamente repetida, cujos compassos ingênuos eram marcadas pela recomendação de um sujeito a quem o coro de vozes femininas respondia, apregoando a maravilha: “Pilulas de Vida do Dr. Ross/saúde e alegria para todos nós”... A sua pretensa eficácia me faz lembrar, por outro lado, o grotesco espetáculo que muitas vezes assisti nas feiras livres dessa época em Mossoró: variados espécimes, resultantes da força purgativa – senão das pílulas que me derrubaram, 204
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de remédios eficazes – da medicina popular sendo exibidos por um camelô falastrão que oferecia sua opção vermicida aos que se aproximavam. Eram nojentas exposições em vidros de tamanhos diferentes e transportadas de cidade em cidade, que longe de causar repulsa aos possíveis interessados na maravilha curativa, parecia diverti-los. A crônica familiar não registra se aquele meu temerário consumo valeu a pena nesse sentido. Mas a grande verdade é que quase desapareci em meio à merdalhada que se seguiu à mencionada ingestão das pílulas famosas. Durante algum tempo, aliás, discutiu-se em casa se eu teria me tornado um gordo depois daquela experiência. Desprovidas de fundamento científico, as ponderações que defendiam ou eram contra a tese, serviam apenas para constatar uma nova e perturbadora realidade, porque feita aquela limpeza compulsória, pus-me a comer tudo o que me ofereciam com apetite de Zé Palito um rapaz migrado, creio, do sertão de tia Lourdes, que ajudava nas tarefas consideradas pesadas na casa da Alberto Maranhão. Sua impetuosidade alimentar era tamanha que poderíamos certamente reconhecê-la pela quantidade de pessoas que se reuniam em torno dele quando se preparava para almoçar. Parecendo um indiano, com sua pele tostada encobrindo o corpo magro, os cabelos muito negros e as sobrancelhas espessas sobre os olhos grandes, enfeitando um rosto em que se destacavam ainda os pômulos salientes e o bigodinho fino e aparado, Zé Palito divertia a todos em casa a disposição com que dava conta de pratos monumentais (pratos de coculo, como se dizia naquela época repetindo um possível arcaísmo – cogulo – demasia, excesso) mandados servir 205
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por minha mãe. E se é certo que alegrava a magreza que o apelido ilustrava e o apetite voraz de Zé Palito, não era menor o entusiasmo manifestado por minha mãe com o adiposo desempenho do caçula o que aos olhos de todos parecia uma prova de muita saúde. Na contracapa do meu livro Pai, Filhos, Espírito da Coisa, resultado de uma dissertação em que estudei o lado risível e o lado sisudo da História do Brasil reproduzi a foto em que apareço com um ridículo cocar de papel, segurando um pacote de arrozina – uma farinha de amido de arroz, como o nome indicava, para ser utilizada em mingaus ou misturada ao alimento de menino vasqueiro nas artes de se alimentar – ao participar de um concurso denominado “Tarzan Mirim” – hélas! – na Rádio Difusora de Mossoró. Minha pronunciada adiposidade não evitaria uma humilhante derrota que acabou provocando desdobramentos. Talvez por não aceitar aquele injusto resultado, talvez para poder exibir aos amigos quem era o verdadeiro Tarzan Mirim de minha cidade, a minha mãe decidiu fazer uma foto de estúdio, capaz de justificar aquele seu orgulho. Revoltada com a outra, mandada fazer pela emissora para registrar o final do concurso, e possivelmente consolar os perdedores, recortou-a. E após jogar fora o vencedor, me levou ao estúdio de João Fotógrafo, no centro da cidade, ordenando-lhe que fizesse a foto que acreditava ser mais convincente. E lá fiquei eu no quadrado contorno, numa pose do que já fui sem retorno, como diz em poema famoso do tempo cristalizado e morto dos retratos o poeta Miguel Cirilo. Ali morri com cara de idiota, dorso nu, vestido num horroroso calção que imitava pele de onça. 206
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or aquele tempo era comum dizer-se que toda família tinha de ter um timote. Essa palavra, cujo real significado não consegui encontrar em nenhum dos dicionários que andei consultando, tanto podia significar deselegância, falta de prumo, ou, como frequentemente ocorria em nossos domínios linguísticos, alguém com um aporte pessoal de presepadas capaz de produzir eventos inesperados e com elevada dose de humor. Servia assim para caracterizar no seio de famílias pretensamente organizadas e felizes, algum outsider, um irreverente displaced, cuja crônica se construía com os repetidos episódios sempre lembrados nos serões costumeiros em que ocorriam as animadas conversas de calçada. Com certeza muitos dos parentes e mesmo alguns dos nossos em casa, classificavam deste modo o comportamento do meu irmão Kiko. E, de fato, nele revelava-se uma síntese da impetuosa irreverência Avelina com a sutileza do humor Gurgel, resultando – aqui recorro a Antônio Cândido – numa dialética própria de um malandro sorridente, contestador da ordem desde a infância areia-branquense, alguém que adorava, entre outras coisas, mexer com as pessoas que costumavam dar cavaco.
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Não poucas vezes tornei-me, eu mesmo, alvo das suas brincadeiras ou manifestações de mau humor, após ver aumentada minha área construída, fruto presumido da ingestão daquelas malditas pílulas. Por essa época tive, aliás, uma coleção de apelidos humilhantes: Roliço, Balofo, Maria Gorda, Bolo Fofo, Rolô (numa incômoda associação com o imenso marchante pai do goleiro do Potiguar, Romildo Nunes). E ainda, numa aproximação perversa com a figura soturna e adiposa de Teotônio, um padeiro lento no falar, de curto raciocínio, que usava um chapéu sebento, de abas caídas, os calções largos que nunca lavava, a arrastar pesadamente uns enormes tamancos, chamavam-me às vezes de Bucho de Lama – que era como os colegas de trabalho costumavam a ele referir-se. Menino chato, implicante, revoltado com os numerosos bullyings de então, ainda acabei me transformado em alvo de alguns ajustes de conduta que podiam se traduzir na forma de portentosos cocorotes. Lembro-me de alguns que Gelza me aplicava percutindo no casco da cabeça como ferro batendo contra ferro. E não eram diferentes em intensidade e potência os que me destinava aquele ídolo fraterno. Por isso, devo admitir que não eram gratuitos. Por exemplo: a minha implicância para que me deixasse brincar com uma espingarda que ele engenhosamente fabricara. Aquilo era um belo artefato feito com um pedaço de madeira de andaime, um cabo de vassoura e um pedaço de aspa de ferro retirado de algum barril ou caixa de madeira, compondo a alça do imaginário gatilho. Kiko nem acabara sua obra de arte, e já eu que me candidatava a dar alguns tiros, pretensão de pronto rechaçada, por ele, 210
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o que levou minha mãe a obrigá-lo a me deixar brincar nem que fosse um bocadinho. Recebi a arma e ganhei um cocorote. Talvez sentindo uma inconsciente atração pelo perigo, me habituara sempre que possível a estar por perto daquele irmão, um rebelde com muitas causas – hilárias ou não – tentando acompanhar cada novo movimento seu com um interesse que lhe causava visíveis aborrecimentos. Um dia, vi-o reproduzindo com grande paciência uns desenhos de uma revista de quadrinhos e logo quis imitá-lo. Era a figura de Tarzan (novamente o maldito Tarzan!). Kiko, que desenvolvera uma admiração pelo fisiculturista Angelo Siciliano, um bem sucedido Charles Atlas nos Estados Unidos e tentava desenvolver bíceps e a musculatura lateral sob as axilas, que chamava de “asas”, e que gostava de exibir, demorava-se olhando com máxima concentração as imagens da personagem criada por Edgar Rice Burroughs na literatura, reproduzindo-as calmamente em qualquer papel que pudesse utilizar numa atitude de artista plástico que remetia ao nosso tio Alexis, que tinha especial talento para o desenho. De nada adiantou minha insistência. Novamente fui contrariado em meu desejo de um contato mais direto com outro fruto de sua criação artística. Queria ao menos ter o direito de tentar reproduzir os desenhos, tal como ele fazia. A recusa veio naturalmente. Dois cocorotes. Mas, sem qualquer mágoa ou ressentimento, logo esquecia aqueles procedimentos corretivos, ajudado pela divertida crônica familiar que não cessava de registrar novos eventos do nosso adorável timote. Um dia, ouvi os maiores comentando sobre o susto que causara na família 211
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ao cair de um andaime durante a construção daquela mesma casa na Alberto Maranhão. Curado à base de cerveja preta e sermão paterno, logo arrostou uma possível conspiração das alturas: foi a gente se mudando para a casa recém-construída e ele fugindo para se banhar com outros moleques numa enorme caixa d’água da Sanbra, a então Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro, logo transformada em piscina nos altos de uma torre do grande e estranho armazém do outro lado da rua. A grande afinidade que passei a ter com esse irmão se consolidaria finalmente quando começamos a fazer teatro amador em minha cidade. Foi, de fato, essa atividade que juntos vivenciamos num conjunto denominado Teatro Escola de Amadores de Mossoró, o TEAM, que serviu para nos aproximar de forma mais direta e respeitosa e com ganhos de humor que me divertiam. Kiko passaria a me dedicar atenção e, quanto a mim, parei de lhe encher o saco, envolvidos, ambos, no final de 1959 no movimento artístico que marcaria época no final da década em Mossoró. Mas o seu envolvimento com a arte dramática começara antes. Posso dizer, com segurança, que ocorreu ainda durante minha infância quando o vi atuando num palco pela primeira vez. Ele e outro timote familiar, o primo Vavá, Valdecir, filho de nosso tio Josa, que, baixinho, magrinho, cabelos muito negros, bigodinho fino orlando o lábio superior tinha especial talento para as artes da comunicação e da vida. Atuaram ambos numa encenação da Paixão de Cristo. Já traçando uma cachacinha e distribuindo irreverência com as piadas e causos que sabia contar como poucos, Vavá chegou a se apresentar como 212
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humorista um programa que a Rádio Difusora transmitia na hora do almoço, “O boteco do Pituca”. Reunia, com o seu talento, todos os requisitos para ser um bom Jesus Cristo no espetáculo encenado por dona Valda Mendes, nossa querida vizinha dos tempos da Praça Souza Machado. Já o meu irmão, fora escolhido para interpretar Barrabás. E o Gólgota nunca mais seria o mesmo se consideramos aquela encenação no palco do Cine Pax. Na noite em que o grande salão do cinema de Jorge Pinto encheu-se de gente para ver o espetáculo, CristoVavá é trazido à presença de Pilatos-Ribamar (um rapaz bastante educado que trabalhava, se não estou enganado, no Banco do Nordeste) travando-se aquele diálogo cheio de inquietantes ponderações, doses de ironia, embaraçosas questões sobre o que de fato é a verdade. Visivelmente constrangido e preocupado em livrar a própria cara, o cônsul romano decide testar a vontade popular. E ordena que lhe tragam depois Barrabás-Kiko. Meu irmão chega então ao palco, o dorso desnudo, uma tanga vermelha, cor de sangue e uma peruca horrorosa parecendo uma marquise em que reverberavam suas gargalhadas atrozes. A bizarra presença é parte do frustrado projeto de evitar o sacrifício de CristoVavá. Transferindo o veredito ao populacho, após indagar a quem devia mandar crucificar daqueles dois, Pilatos decide lavar as mãos. Pois se querem que seja assim, assim seja. Morra Cristo e viva Barrabás. Nova gargalhada aterradora de Barrabás-Kiko, agora livre. É então que se ouve do lado de cá do palco, partido de algum colega de escola ou de safadezas comunitárias, o apelido carinhoso com que o provocavam durante a adolescência em Mossoró: 213
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- Kiko Doido! Sem esconder a revolta, nem tanto pela estreia desastrosa, mas pelo desrespeito ao seu rebento, minha mãe emite o juízo inapelável precedido de um muxoxo de puro desdém: - Oh gente mal-educada! É por isso que Mossoró não vai pra frente. Terminada a função, Barrabás e Jesus confraternizaram numa justa comemoração, não economizando o sempre renovado estoque de gozações e dos chistes que colhiam da cena mossoroense. A noite, afinal, fora pródiga nesse sentido. Pois além da grosseria cometida contra o filho de Dalila, houve a saída desastrada de Vavá da cruz em que brevemente pagara, nas noites daquela apresentação, os pecados da humanidade. É que se aproveitando do fechamento da cortina para a mudança dos elementos cênicos destinados ao sepultamento e gloriosa ressurreição, livre finalmente da cruz, o meu primo dá uma chegadinha na coxia para beber uma lapada. Um imprevisto qualquer – quem sabe a emoção tempestuosa causada pelos aplausos – fez com que o moço encarregado pela cortina voltasse a abri-la, mal a havia fechado, deixando ver no palco a cruz sem o crucificado. Pois Vavá não contou conversa: como um raio, atirou-se de volta ao lenho do sacrifício sob as estrepitosas gargalhadas dos que há pouco choravam, numa antevisão mossoroense da perversa relação palco-plateia que veríamos muito tempo depois em “Roma de Fellini”. Mas muito tempo se passaria – e muitas outras incursões teatrais bem sucedidas ou não ocorreriam – até que eu viesse saber de outras presepadas de Kiko que me divertiam, especialmente se o relato o tivesse como protagonista. Numa 214
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das minhas idas a Mossoró, depois de haver me fixado em Natal, ele me falou de um insuspeitado talento voyeurista que chegara a desenvolver na adolescência, como parte das brincadeiras eróticas que o fascinavam e que acabariam enriquecendo o rol dos seus causos. O cenário dos trópicos e as personagens – neste caso – o ajudaram bastante, pois o fato transcorreu em uma luminosa manhã de estio mossoroense, envolvendo um maduro casal. Zanzando por muros e quintais da vizinhança – provavelmente a conduzir alçapões que ele mesmo fabricava, para capturar algum golinha, canário ou galo de campina ainda possíveis de encontrar nas árvores existentes, escalou o muro da casa onde moravam um alfaiate da cidade e sua mulher sensual. Protegido por uma árvore frondosa, Kiko pôde assistir deliciado a todo o desenrolar de um embate amoroso à luz do dia, os dois envoltos naquele clima de Éden semiárido à sombra de precários mamoeiros. Alderi – outro assumido timote como já ficou demonstrado – nunca escondeu uma forte admiração pelas presepadas daquele nosso irmão. Com ele, aliás, acabei compondo uma espécie de fã clube informal. Entre aquelas de que ficamos sabendo – não raras vezes tendo como cenário o salão da Padaria Kátia – uma particularmente provocou grande admiração por haver misturado non sense a quase-tragédia. Foi Alderi, ele próprio, quem me contou entre boas gargalhadas o episódio da consulta. Seu temerário protagonista foi um velho que costumava frequentar a padaria, e até fazia parte da claque que cercava o proprietário. Desalentado com uma progressiva perda de desempenho sexual, caiu na besteira de perguntar um 215
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dia a Kiko se ele, um homem tão vivido, conhecedor das artes teatrais e das safadezas da vida, não poderia ajudá-lo. Desesperado, chegara a manifestar um patético desalento insinuando atitudes trágicas: então era isso que a vida lhe reservava, querer e não poder? Choramingava e diante do riso da claque que acompanhava meu irmão, advertia: tinha medo de não se suportar aquela tragédia. Ninguém quisesse passar pelo que estava passando. O que mais temia finalmente se confirmava. E o que de modo crescente alimentava o seu desespero era que por mais tentativa que fizesse nada. Nada, nada, nada. Kiko, com ares de médico volante, logo tratou de tranquilizá-lo. - Besteira. Isso é a coisa mais simples. Conhece corredor não conhece? [Corredor é como as pessoas do povo sertanejo chamavam o osso da perna do boi, onde mora um tutano monumental – pai de todas as calorias]. Pois bem – continuou o médico prático, dispensando inúteis chernovizes, e sem referir a possível existência de colegas urologistas em Mossoró – você vai ao mercado e compra um corredor de boi. Manda a mulher cozinhar, com bastante alho, pimenta do reino, pimentão, e umas batatinhas de purga pra ajudar na limpeza. Até uma malagueta, pode botar que serve de reforço. Quando estiver bem cozido, diga pra ela bater o osso que é pro tutano sair todinho. E mistura bem naquele caldo. Fica uma beleza. Parecendo um pirê – coisa de gente chique. Seja a comida que você vai comer. Não precisa nem janta. Basta ficar comendo o creme. É um santo remédio pra limpar o organismo e revigorar o bilau. Não dou dois dias a manjuba vira de novo um ferrão. 216
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Se é lícito alguém se surpreender com a receita fantástica, mais surpreendente ainda foi a ingenuidade do pobre homem que a seguiu, obedecendo fielmente a prescrição daquele médico de Molière que passara a atender momentaneamente na Meira e Sá. O resultado, dizia-me Alderi, as bochechas rosadas quase a explodir de tanto que ria: foi aquele previsível e naturalmente catastrófico. O velho sem conseguir segurar a merda que desceu por dois dias perna abaixo. A poder de muito chá de capim santo foi se recuperando. E tão logo sentiu firmeza nas pernas correu para a Meira e Sá, pretendendo invadir o salão de vendas da padaria, a brandir uma peixeira, com a qual pretendia visitar os couros de doutor Kiko. Mas não conseguiu seu intento. Devidamente advertido por um comparsa da commedia dell’arte diária daquela rua – que os havia em grande quantidade – o meu irmão há muito já havia se escafedido do balcão. Brincadeiras rudes como aquela eram cotidianamente produzidas pela mente inquieta e criativa do mesmo menino que aos seis anos se fizera navegador nas verdes águas do rio defronte a Areia Branca, só não saindo barra afora, a maré refluindo no rumo do mar oceano, porque um pescador conhecido do meu pai resgatou-o da pequena canoa que desamarrara e que se encontrava à deriva. À deriva também pareceu ter ficado sua vida, quando, aposentado precocemente, decidiu deixar a padaria, o balcão, tudo que significasse compromisso. E o fígado – já duramente comprometido por uma icterícia, contraida antes do casamento – começou a dar mostras de que iniciava um processo de deterioração inapelável. 217
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Ao mau humor das funções hepáticas, respondia de modo alegremente irresponsável. Um dia, me contou a seguinte piada: - Dois caras se encontraram e um foi logo dizendo: lembra de Fulano? Morreu, rapaz! De cirrose. Pense numa morte horrorosa: botando fragmentos de sangue coalhado pela boca. E o amigo, olhos arregalados: - Vige! Vou já tomar uma pra passar a gastura... Ríamos sempre. Sem querer acreditar que, desprovida de qualquer senso de humor a morte rondava o meu irmão tirando-lhe, bem antes do que imaginávamos, o direito a continuar fazendo suas doces estripulias, agora cada vez mais restritas às micro plateias com quem – já se aproximando do fim – dividia cervejas e demonstrações dos seus dotes de artista por toda Mossoró. Por toda Mossoró não exagero. Porque era possível comprovar quando para ali eu viajava a rever minha mãe, e o procurava na padaria. Eu encontrava o balcão vazio de sua presença. Pois mesmo tendo se tornado um bem sucedido proprietário da antiga padaria Santa Rita, mesmo constituindo uma bela família e um patrimônio interessante, ele parecia enfarado com tudo que significasse rotina. Sua inquietação fazia com que se ausentasse a cada momento em que o negócio parecesse funcionar sem a necessidade da sua presença. E dava mesmo a impressão de estar em todo canto, mesmo não tendo o dom da ubiquidade. Tornara-se prodigiosamente rápido em seus deslocamentos, como se tivesse ânsia de aproveitar cada momento que vivia. Se o procurávamos nos lugares que nos indicavam como prováveis de encontrá-lo, invariavelmente ouvíamos: 218
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- Estava aqui indagorinha mesmo. Se você andar depressa ainda encontra ele. É só dobrar a esquina. Certo carnaval, para minha surpresa, pois ele detestava a artificialidade dos veraneios, nos reunimos – Alderi também presente – em Tibau, a praia dos veranistas de Mossoró. Era uma manhã radiosa num prenúncio da mais absoluta alegria. Sem justificativa razoável naquele clima de carnaval, talvez para que pudesse mostrar a Alderi que aprendera bem suas boas lições de admirador de grandes sambas-canções – eu insistia em comentar sobre compositores da MPB e acabei falando sobre uma música que me causara admiração e estava fazendo um surpreendente sucesso. Era “De mais ninguém”, que Arnaldo Antunes compusera e havia sido gravada de forma impecável por Marisa Monte. Música falando de dor, amor, sofrimento uma releitura dos grandes sucessos que consagraram intérpretes da dor de cotovelo. Pegando o mote da tristeza, Kiko decidiu fazer uma demonstração de como era chorar durante uma encenação. Choro técnico, chorado na hora. E sem querer acabou provocando uma situação surpreendente que nos constrangeu a todos. Porque com os sentimentos exacerbados pela evocação da música e da cerveja que tomávamos, também eu chorei. Alderi não chorou, que não era disso, mas ficou meio sem jeito. Lembro que ainda busquei temperar intelectualmente nosso vexame, trazendo para aquela conversa sem propósito notícia sobre o costume indígena da poranduba. E até busquei forçadas analogias. Ora, aquele choro, que nada tinha de 219
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alegria e menos ainda de alívio pela superação das duras penas que alguém tivesse de enfrentar ao sair para caçar a vida, parecia revelar um quê de premonitório – vislumbre de futuras dores – assunto que não podia nem devia compor o repertório das conversas num dia de carnaval... Após muito resistir aos apelos da esposa Mazé e dos filhos, já bastante debilitado, ele concordou em se deslocar a Natal para consultas. Num dos intervalos dos muitos exames, eu tentando me consolar com o tom irreverente que sempre marcou nossas conversas, perguntei-lhe se ele, que havia protagonizado tantas travessuras, não vivera a experiência de um dia fugir de casa para acompanhar algum circo dos que periodicamente faziam temporada em Mossoró. Deixando de lado a conversa sem graça sobre a saúde precária, preço de remédio, atendimento médico, exames laboratoriais, ele sorrindo com aquele ar de menino levado que jamais o abandonou, admitiu que sim, até essa constava do seu repertório. Apaixonado loucamente por uma jovem rumbeira que o deixara deslumbrado numa das apresentações do Circo Garcia, chegou a pedalar sua bicicleta Phillips, (meu pai a havia comprado do goleirocantor do Potiguar, Romildo Nunes e ele tinha se tornado um exímio ciclista) até a cidade de Assu, para onde a trupe circense supostamente se deslocara. Mas assustado com o tamanho da aventura, sem localizar o circo e sem conhecer a terra nem ninguém, logo conseguiu que lhe dessem uma carona de volta. E retornara a Mossoró – ele e sua bicicleta na carroceria de um caminhão – como se nada tivesse acontecido. Por seu excesso de energia e descompromisso com o balcão, nos tempos da Padaria Santa Rita, Kiko acabaria 220
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sendo, de todos os irmãos, aquele que mais apanhou. Era um tempo em que quase todos os pais realizavam pequenas sessões de tortura para corrigir a conduta dos filhos rebeldes, possivelmente sem acumular remorsos. Alguns chegavam mesmo a tecer loas às soluções corretivas dos execráveis métodos que haviam levado João Cândido a rebelar-se em alto mar, sendo comum ouvir-se então dizer que tal rapaz, de família tal, havia sido mandado para a Marinha para ser consertado. Fora assim, por exemplo, com nosso tio Armagilo, irmão da minha mãe, que o pulso do avô Lolinha não lograra domar. O rigor marinheiro não lhe consertaria a irreverência. Mas a verdade é que amor e ódio, tão próximos, manifestavam-se em atitudes que olhadas da perspectiva de hoje, nos deixam perturbados, mesmo que saibamos que a natureza humana e os costumes da sociedade de lá para cá pouco melhoraram. Meu pai, como já foi dito, não tinha o costume de demonstrar carinho pelos filhos, e, além disso, revelava forte preocupação pelo agitado comportamento daquele menino cheio de picardia, que produzia riso em quase todos os episódios de que participava. Uma ocasião, preocupado em colocá-lo nos eixos – como gostava de justificar as ações punitivas – lhe aplicou um corretivo tão monumental, que acabou deixando a todos traumatizados e ele, certamente, mais do que ninguém. Tanto, que dali em diante baniu definitivamente o método de suas práticas pedagógicas. Naquele exercício insano de surrar Kiko para que ele se curasse das presepadas chegara mesmo a envolver outros dois filhos – Alderi e Gelza – tornando-os cúmplices compulsórios e assustadas testemunhas da tortura, obrigados que foram a 221
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segurar o capetinha pelos braços, para facilitar as bordoadas de virola, o temível pedaço da polia utilizada para fazer girar o motor do cilindro da padaria. Usada para bater, deixava vergões dolorosíssimos no corpo, por conter em sua textura uma fina teia de arame. E durante dias Kiko teve de ser tratado com renovadas compressas de arnica. A extinção do vigoroso método como prática educativa sugere, ironicamente, uma vitória de meu irmão, pois era comum ele dizer para que meu pai ficasse sabendo: só deixo de fazer [suas presepadas, claro] no dia em que parar de apanhar. E nem assim cessaram as preocupações de Juvenal. Sem aceitar o descompromisso do adolescente que escorregava do balcão justo na hora de atender os clientes, mal se iniciava o turno da tarde, meu pai costumava sair afobado para a calçada da Padaria Santa Rita e, supondo-se a uma distância em que sua potente voz lograria alcançálo, passava a gritar de modo repetido o seu verdadeiro nome – pois ele não o chamou pelo apelido jamais – ô Francisco!, ô Francisco! – o nome tornando-se eco e o meu irmão, é claro, sem responder. Os muitos transeuntes que usavam a calçada da Meira e Sá, caminhando no sentido da Estação ou, inversamente, na direção do Mercado, reagiam entre assustados e divertidos. Ainda hoje consigo ouvir aqueles inúteis rugidos de leão. E até me comove supor que, assustadores que fossem, acabavam levados pelo vento Nordeste, perdendo por inteiro sua finalidade.
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fato de ser o caçula da família, aquele que encerrou a atividade parideira de minha mãe, me colocava na vexatória condição de ser exibido com orgulho, como um troféu, e com isso desfrutar perversamente de um status que haveria de ser prejudicial ao meu irmão José, inapelavelmente colocado “no canto” depois que nasci. Para compensar o interesse materno momentaneamente deslocado, acudiu-o a ternura dos outros irmãos em especial Ninha e, sobretudo, Dodora, por quem Dedé sempre nutriu um especial carinho. Com isso minimizavase tal questão. Mas, ironicamente, um acontecimento do qual contra a vontade me tornei protagonista, acabaria consolidando aquela injusta condição preferencial. Os registros de doença na família, até onde sei, eram pouco expressivos então. Houvera aquela remota paranoia que quase abateu o meu pai nos agitados anos 30, fazendo-o acreditar que a qualquer momento viriam matá-lo por ser cafeísta; houve o dramático surto de varíola, ainda na praça Souza Machado; a luxação de um dos meus braços tratada por doutor Vulpiano Cavalcanti numa das suas passagens por Mossoró; e eventos periódicos e previsíveis: caganeiras,
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gripes, empachamentos, dores de dente ou de ouvido (dessa última, aliás, tendo sido eu um recordista entre os irmãos). Teve ainda a doença de Gelza – já casada – mais adiante, e um curioso episódio do breve desmaio que Dodora achou de dar um dia, apavorando a nós todos. Esfrega álcool daqui, molha os pés da menina com água quente dali, não demoraria e ela, linda e alegre, recobrou os sentidos. E – Deus seja louvado – para felicidade geral dos Gurgel dos Santos, a menina nunca mais voltaria a sair do ar. Tudo caminhava no maior sossego naquele final dos anos cinquenta com todos nós vibrando intensamente em torno do rádio pela vitória da seleção brasileira de futebol na Suécia, quando, por algum capricho biológico, também eu tive direito ao meu próprio desmaio. Na verdade, desmaios, porque seguindo-se àquele, houve uma sequência que deixou apavorada a família. A preocupação atingiu tal nível que levou meu pai a contratar viagem ao Rio de Janeiro para que eu pudesse me tratar no início de 1959, causando uma despesa imprevista e imensa no seu orçamento sempre tão controlado. Porque para viabilizar deslocamento e consultas particulares na então capital da República, ele chegaria a se desfazer de um daqueles armazéns construídos com tanto esforço quando começou a progredir em seu comércio de panificação em Mossoró. Mantendo-os alugados, tinha importante reforço para as despesas com o seu batalhão doméstico. Na cidade em que residíamos, tudo havia sido tentado. Diagnósticos imprecisos, quando não conflitantes, opiniões as mais diversas e sugestões por vezes esdrúxulas, não contribuíam em nada para se encontrar a cura. Cheguei a ser levado 226
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para a cidade de Açu, onde havia uma espécie de médico alternativo, Bezerrinha, que segundo se dizia em Mossoró, andava praticando curas prodigiosas no Vale, com isso granjeando uma fama súbita, que o fazia atender muitas pessoas que diariamente o procuravam. Fui, me consultei, e nada de resultado. Os desmaios se sucedendo. Lembro que, já adulto e curado, provocava minha mãe, fazendo-a cortar bruscamente a conversa pedindo-lhe que me descrevesse tais acontecimentos. Acirrando suas negativas, eu me referia a eles com a designação que o povo de Mossoró costumava utilizar para descrever uma convulsão. Perguntava-lhe se tais desmaios não tinham sido ataques batedores, numa forma perversa de aproximar aqueles eventos assustadores a manifestações de epilepsia. Por estranho que possa parecer, sou capaz de detalhar o primeiro apagão que sofri. Ocorreu num lugar e situação bem singulares: a passagem de nível da linha do trem, localizada entre o que restou da antiga estação de passageiros e o imponente teatro hoje existente em minha cidade. Era dia de pedalar a bicicleta que meu pai comprara para nosso deslocamento até o colégio aonde estudávamos. A bolsa com os livros cuidadosamente amarrada no bagageiro, ainda sentindo o gosto do cafécom-leite tomado às pressas, notei algo de diferente ao tentar cruzar os trilhos por onde passava o trem que seguia para Souza, na Paraíba, e me vi forçado a parar. Sem propriamente saber o que fazer, mas procurando pôr os pés no chão – entre os dormentes que sustentavam os trilhos – mal consegui me escanchar na bicicleta, enquanto tentava entender aquela sensação bastante desagradável, porque se 227
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ia embora o raciocínio, a vista escureceu subitamente, o mundo rodando em slow motion e eu mais que o mundo rodando, rodando, até que apaguei. Durante anos pensei em descrever essa experiência, de haver sido um menino doente, talvez porque nela fosse descobrindo – sem disso me aperceber e por paradoxal que pareça – a segurança de que viria a necessitar para outras surpresas desagradáveis que a vida pudesse me trazer. E tal sentimento eu comecei a ter, por certo, naquele zonzo e aparentemente inexplicável despertar no Hospital de Caridade de Mossoró, tido até então para mim apenas como um casarão lá longe, comandado por um médico que tinha paixão por política: dr. Chico Duarte. Suplantando o apagar inesperado e os surpreendentes cheiros fortes que confundiam o recém-desperto – éter, linimento, formol, álcool, iodo – notei que havia retornado ao mundo, embora ainda sonolento, mas sem qualquer dificuldade para respirar. Pude então perceber, abrindo os olhos, que estava protegido de todos os perigos: num dos lados da cama, a minha mãe e no outro, o meu pai, parecendo torres protetoras, dando-me a garantia de que cuidariam incondicionalmente do filho numa batalha que, mal sabíamos, apenas começara. Minha cabeça, naturalmente dolorida, não apresentava dano visível, senão por uma pequena protuberância surgida na testa como resultado do impacto com o trilho. Tudo parecia voltar ao normal. E a completar a bênção que a presença dos meus pais representava, a informação de que fora trazido ao hospital por ninguém menos que o padre José Freire, o meu professor de português no segundo ano ginasial do Colégio 228
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Santa Luzia, um religioso sisudo e altivo que mais adiante se tornaria bispo em minha cidade. No mesmo carro de praça em que se dirigia ao colégio para a aula a que eu, afinal, faltaria sem remorsos, havia providenciado o socorro. Passado algum tempo, o evento perturbador voltou a ocorrer. E ainda outras vezes, como já ficou dito. E foi essa repetição dramática que acabou convencendo a família da necessidade de tentar outro centro médico. A cidade escolhida – então Capital da República – dá a medida de uma preocupação que dominava a família, especialmente os meus pais. Ali, trabalhando no Serviço de Alimentação da Previdência Social, que administrava restaurantes populares criados durante o governo de Getúlio Vargas – encontrava-se Alderi, residindo numa pequena quitinete com os primos Alírio e José Maria. Este último, cursando medicina, haveria de ser rigorosamente providencial no encaminhamento das consultas. E quanto à viagem, seria feita num daqueles enormes carros Ford, de propriedade de Chico Costa. E isto era também providencial já que se tratava de um areia-branquense, que havia retornado a sua cidade após formar-se médico na mesma cidade do Rio de Janeiro. E melhor: amigo da família. Casado com uma linda moça de nome Adelaide que havia viajado antes para a mesma cidade, levando os filhos pequenos, a visitar os pais, seguiria por terra, disposto a vender o tal carro quando terminasse a viagem. Combinou-se um rateio das despesas e como motorista, foi contratado o folclórico Mané Gogó – Manuel Duarte – baixinho, careca e famoso em minha cidade por seus comentários tão gaiatos quanto ingênuos. Tal não o impedia de ser um condutor 229
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extremamente competente – chofer indo-e-voltando – com quem ultrapassaríamos, sem qualquer dificuldade ou sobressalto, toda a Rio - Bahia, à época uma interminável estrada, ainda completamente careca de asfalto, como nosso motorista de cabelos, em todo o trecho que nos levava daqui às terras de Jorge Amado. Não consigo recuperar detalhes da nossa partida e, por isso, não me arriscaria a descrevê-la como fez Rocha Pombo ao narrar a saída dos navegadores portugueses do Tejo, rumo ao mar-oceano e a um ainda indescoberto Brasil, com toda aquela dramaticidade própria dos livrinhos de História de antigamente. E é, sem dúvida, estranho que não consiga me lembrar daquele início de 1959, momento marcado pela tristeza e apreensão, que certamente terá levado minha boa mãe e um ou outro irmão às lágrimas. Quanto a mim, diferentemente dos bravos aventureiros da esquadra de Cabral, não podia ter qualquer dúvida de que haveria de retornar ao meu país de Mossoró. Mas, sem um historiador pomposo, disposto a narrar aquela partida, ao menos pude recuperar, no caderno Borrador salvo por um providencial Dedé, breves registros feitos por nossa mãe. E a imaginar que o meu velho e querido professor de História pe. Sátiro Dantas parecia certo ao repetir com tanta ênfase “pas de document, pas d’histoire”, comovido releio o registro na linda caligrafia de Dalila que ali havia escrito: “Saiu Juvenal para o Rio com Tarcísio no dia 6 de janeiro para tratamento de saúde do mesmo”. A viagem aconteceria sem qualquer dificuldade. E eu não parava de pensar, é claro, na possibilidade que se tornava cada vez mais plausível, de conhecer o Rio e, 230
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sobretudo, o Maracanã aonde certamente me aguardavam Dequinha e todo o time do Flamengo, que eu jamais vira jogar. O certo é que, com os intervalos destinados ao sono para recuperar do enfado, viajamos durante quatro dias pelo Brasil, descobrindo paisagens, sabores, climas e sotaques, numa experiência que jamais haveria de esquecer. A cada anúncio, ou nova informação, estava a vivenciar algo de muito especial: um rito de passagem de que não me dava conta então e cujo início se dera com o primeiro desmaio: “acabamos de entrar na Paraíba”; “aqui começa Pernambuco”; “até que enfim: chegamos à Bahia”; “olhai a paisagem: tenho certeza de que já entramos em Minas Gerais”; “pronto, seu Juvenal. Agora não falta muito pra chegar ao Rio”. Sendo-me impossível recompor em detalhes aquele roteiro, o que posso dizer é que atravessamos terras do Rio Grande e da Paraíba, possivelmente pegando a Rio - Bahia na altura do município de Salgueiro, em Pernambuco. Daí em diante, tudo se revelava excitante novidade, a começar do contato com cidades baianas, como Jequié, Feira de Santana e Vitória da Conquista. E, excitação maior, quando – certamente por sugestão de Chico Costa – desviamos da rota originalmente traçada para pernoitar em Jorro, ainda na Bahia. Era uma pequenina cidade termal, que tinha as casas e o hotel em que pernoitamos, abastecidos de água quente, numa antecipação de uma experiência que haveríamos de vivenciar na própria Mossoró alguns 231
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anos depois. A canseira, naquela altura, já começava a prejudicar a animação do grupo nas conversas, informações, comentários, sem falar que havíamos acumulado poeira até na alma. As estradas começavam a sugerir trajetos demorados e monótonos e ainda havia outro tanto a viajar. Impossível não lembrar o banho quente que parecia arrancar-nos a pele e que nos deixou de alma leve, propiciando-nos um sono tão profundo, que se ao acordar nos dissessem que a próxima parada seria a lua, não hesitaríamos em prosseguir. As paisagens mineiras, que vieram na sequência, revelaram para o menino a singular beleza, das serras com gradações de verde e azul, que nem sabia existir acostumado que estava com a alternância ocre das grandes estiagens/verde excitante das temporadas chuvosas. O friozinho incomodando num incômodo gostoso e as cidades dando a impressão de uma boa organização urbana. Teófilo Otoni, Pedra Azul, Governador Valadares... “Olhaí seu Juvenal: acabamos de entrar no Rio de Janeiro”. A doença, Mossoró lá longe, mãe e irmãos distantes, a vaga lembrança do colégio em férias, nada parecia pesar no meu campo de interesse uma vez que me via agora trafegando em meio a quarteirões de enormes edifícios, cruzando com carros, bondes e pessoas – muitas e muitas mais – que não paravam de surgir lotando calçadas ou atravessando as ruas como procissões sem padroeiro, toda vez que a luz dos sinais acendia para os pedestres. Nunca vira nada parecido, mesmo nas feiras do interior. Mesmo nas festas religiosas ou no carnaval de minha cidade. O vidro da janela, abaixado, deixava-me sentir também o forte cheiro de gasolina e o barulho infernal dos transportes trafegando sem parar. 232
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Avenida Brasil, Presidente Vargas, a Candelária. Rodando por aquela cidade gigantesca chegávamos agora a uma avenida denominada Rio Branco. Só muitos anos adiante o menino saberia que o carro nordestino trafegava sobre a memória de fantasmas despencados de um gigantesco morro que se tornou poeira no tempo. Restos de Belle Époque em prédios que, muitos anos depois, ao trabalhar como conferente de revisor no Jornal do Brasil, identificaria como remanescença daquela mudança. O Teatro Municipal, o Museu de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, o Palácio Monroe lindo e ainda erguido, em meio a uma encruzilhada de motores, buzinas, guinchos das rodas de ferro atritandose aos trilhos dos bondes ainda circulantes. O obelisco, onde me disseram que o povo de Getúlio amarrou os cavalos, no movimento de 1930. A Cinelândia, que em minha cidade chegava em formato de revistas que falavam dos ídolos da tela e que ali representava um recanto em que as pessoas iam ver filmes nos muitos cinemas. Nosso destino era o bairro da Glória, aonde, já residia, sem que pudesse imaginar, além do irmão e dos primos, uma notável personalidade: Pedro Nava. Mas, se ignorávamos sua importante presença, logo pudemos avistar com alegria, inconfundível como um enfeite celestial colocado no bolo do outeiro, a capela de Nossa Senhora que se tornaria a referência primeira e mais segura da minha demorada relação com o Rio de Janeiro. Contornando a grande praça, chegamos à rua do Russel, onde numa quitinete do prédio de número 462 – 5º andar, ap. 502 – deveríamos encontrar Alderi. Deixados com nossas malas e pacotes na portaria do edifício feioso, 233
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fomos orientados a pegar o elevador e subir. Meu pai logo bateu na porta com os nós dos dedos, repetindo um modo mossoroense de fazer-se anunciar: ô de casa! Toctoc. E novamente Toc-toc e ô de casa, Alderi você está aí?. Descobrimos depois a campainha que ele passou a acionar repetidamente. Nada. E voltamos a tocar na porta de modo alternado, ele e eu. E nada ainda. E toca ainda uma vez sem que ninguém responda. O meu pai passa a variar as batidas na porta com chamadas dos nomes do meu irmão, Zé Maria, Alírio. Nada. Absolutamente nada. Apreensivos e cansados, decidimos retornar à portaria, sem poder evitar a perturbadora lembrança de que além dos primos, e daquele endereço não conhecíamos nada nem ninguém mais na capital da República. Tampouco sabíamos nos movimentar pela cidade o que de resto de nada adiantaria, já que não dispúnhamos de outro destino para onde seguir naquele Rio de Janeiro pronto a alimentar uma crescente desconfiança do meu pai. O fato de não haver uma comunicação segura quanto à hora de nossa chegada, que acabou sendo antecipada, devido à velocidade imprimida à última etapa da viagem, causara o desencontro. E nem adiantava desesperar. Aguardar a chegada de algum dos três moradores do apartamento era o que nos restava fazer. O porteiro, que aceitara guardar nossa bagagem nordestina, nos indicou um botequim para o qual caminhamos cautelosamente pela calçada do edifício, onde poderíamos gastar um pouco mais de tempo tomando um lanche. Já o desânimo imprimia em nós o temor de estarmos definitivamente perdidos na assustadora cidade de São Sebastião do Rio 234
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de Janeiro, e eis que surge um sorridente Zé Maria, camisa de linho folgada, mocassins sem meias, recém-banhado, a cabeleira negra impecavelmente penteada e um cheiro de lavanda que chegava a afrontar nosso bodum viajor. Muito tempo se passaria até que ficasse esclarecido o real motivo de aquela porta não haver sido aberta. Foi novamente um irreverente Alderi quem me explicou um dia, sorrindo, entre um copo e outro de cerveja na praia de Pirangi: o primo Zé Maria, costumava aliviar as tensões da Faculdade e dos plantões de Residência, utilizando o tempo ocioso para encontros amorosos. Naquela ocasião achava-se devidamente acompanhado no interior do micro lupanar. Seguro de que só chegaríamos no final da tarde, teve o coito interrompido por aquela barulheira assustadora e, após hesitar entre o pavor e a prudência, decidiu que não deveria abrir a porta. Ainda mais que o teor clandestino do encontro, recomendava cautela para com a integridade da moça que o acompanhava. Meu pobre pai jamais ficou sabendo que aquela quitinete funcionava também como uma espécie de sucursal dos melhores estabelecimentos do Alto Louvor – o reduto dos livres amores lá em Mossoró – pois se metamorfoseava com extrema facilidade no cabaré de Neusa, Luzia Queiroz, Bar Brama, Arpége, Copacabana, tanto que se revezavam os três primos na única cama de casal devidamente acompanhados de louras, morenas, mulatas e negras numa festa móvel, de que – quatro anos adiante, retornado ao Rio – eu mesmo e outros primos, como já foi dito, viríamos a participar. Nossa passagem atribulada pela Capital da República, tendo com ponto de apoio inicial e decisivo tal apartamento haveria de inibir – ao menos durante alguns dias naquele início de 235
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ano – o desempenho bodejante dos rapazes potiguares que tinham se mudado para a cidade em busca de ganhar a vida e haviam incorporado novas variedades de esbórnia. Faltou dizer que ali, pertinho – onde findava a Glória e começava o bairro do Catete – havia um edifício bem mais respeitável, encravado no centro de um parque, guarnecido por árvores de grande porte e um gradil a impedir o acesso das pessoas, que tivera como inquilino por um breve período o grande ídolo do meu pai: Café Filho. Era o palácio presidencial, aonde chegara o ex-sindicalista e deputado potiguar, depois que o Presidente Getúlio Vargas – de quem fora um incômodo vice – não suportando as pressões do momento político, decidira pôr fim à própria vida. E isso havia acontecido há apenas cinco anos. O seu mais recente e derradeiro morador – contrato ainda vigente – já fazia as chamadas tratativas visando a mudança para um novo endereço, em primeira locação e numa cidade projetada com a arrojada beleza da arquitetura moderna. Ainda podia ser visto em breves aparições e se chamava Juscelino Kubitsheck. No ano anterior, sua presença havia causado alvoroço em Natal, onde, além de receber um grupo de bispos preocupados com a seca e a miséria do povo, fora abordado por professores que, liderados por Onofre Lopes, lhe falaram sobre a dramática necessidade de federalizar uma universidade que mal acabara de nascer, à qual nem de longe eu imaginara vir a pertencer um dia.
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izer que fui premiado com aquela viagem é usar de uma ironia descabida diante da angústia que sem querer provoquei nos meus pais e irmãos. Mas sem aqueles ataques, convenhamos, eu não teria conhecido a velha Capital da República, numa descoberta que a cada instante me garantia uma sucessão de agradáveis surpresas. Mas não podia esquecer – e foi o que de fato ocorreu – que este primeiro contato tinha como finalidade o tratamento que ali realizei valendo-me de possibilidades terapêuticas ainda inexistentes em minha cidade. Por exemplo, um exame neurológico de nome complicado, eletroencefalograma, do qual resultou uma montanha de papel cheio de riscos, parecendo gráfico estatístico de ministério econômico. Conversas médicas embaraçosas em presença do meu pai. Uma cirurgia moderna com ares de Idade Média. E até uma tonelada de remédios de que fui portador no retorno a Mossoró, aonde acabaria me tornando uma figura familiar, presença obrigatória no ambulatório de Mílton Silveira, o irreverente enfermeiro que durante um bom tempo manteve uma espécie de pronto socorro no centro de Mossoró. Ali convivi com
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acidentados e também blenorrágicos, sarnentos, cardíacos ou simples hipocondríacos cotidianos, que o visitavam mal começavam as manhãs. A todos causei forte impressão portando minha coleção de injeções de último tipo. Recordo a tarde carioca em que fomos à consulta com um médico chamado Lázaro Contini com quem iniciei aquela minha luta para recobrar a saúde. Iniciava-se ali a realidade dos consultórios com as paredes revestidas de lambris, lustres pendendo dos forros do teto, poltronas fofas e secretárias infarentas. O clínico a que fui levado tinha sólida reputação e sua competência era avalizada pelo primo Zé Maria, então acadêmico e possivelmente seu aluno. Grande admirador do trabalho do doutor Contini, o filho de tio Dedé havia montado a estratégia para o meu tratamento carioca a partir daquela consulta. Com ares da velha nobreza pernambucana, bigode e cabeleira grisalhos, dentadura perfeita, e bastante comunicativo, o médico buscou logo facilitar as coisas naquela visita inusitada, em que pai cinquentão e adolescente com ar basbaque, ambos nordestinos e inexperientes nos diálogos da modernidade, mostravam-se inseguros. Não demorou estávamos descontraídos, parecendo velhos amigos, à medida que ele exercitava sua competente etiologia em demorada entrevista. Até que veio a indagação embaraçosa: - E masturbação? - Hum? - Masturbação, bronha, você certamente... De vez em quando? Sim, professor Onan já me havia passado os primeiros exercícios que eu repetia sem me cansar, como um aluno 240
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aplicado. Além disso, pela generosa e libérrima convivência dos padeiros que trabalhavam com meu pai, assimilara um bom estoque de malícia e sem-vergonheza, o que garantia me manter longe de qualquer sentimento de culpa. Não havia sido, difícil, pois, descobrir aquela maravilha da humanidade, experiência que me parecia tão boa ou melhor que respirar. Melhor até que a paçoca de carne de sol com arroz de leite e banana que semanalmente comíamos em casa. Francisquinho, um dos padeiros do meu pai, filho da velha Gilda – ela própria imoral e sempre cheia de conversas – chegara a me fazer um dia idêntica indagação, expressando com seu autodidatismo sem enfeites, as vantagens daquele direito inalienável, que passei a exercitar tão logo me vi só, sentando numa das linhas de madeira que sustentavam o telhado da cisterna que o meu pai construíra no quintal da padaria para aliviar canícula e garantir água de boa qualidade para o fabrico do pão. - Já sabe tocar punheta?, – perguntara Francisquinho um dia, na frente dos outros colegas que riam safados e aprovadores. A licenciosidade, aliás, parecia condição genética, porque Gilda, aquela sua mãe imoral, remotamente já estimulava – a mim e a meu irmão José – chamando nossas pirocas de cravo e fazendo menção de tocá-las, fingindo em seguida cheirar as pontas dos dedos, o que nos enchia de vergonha. Vergonha logo transmudada em malícia, com o adjutório do filho sacana. O tempo havia parado. E o médico ali, aguardando uma resposta. E enquanto eu hesitava, o meu pai não conseguia esconder o constrangimento. 241
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- Ora, o senhor e o garoto não precisam se preocupar. Se perguntei foi apenas para verificar como anda o seu desenvolvimento biológico. Na idade dele, todo menino faz. Depois, sorrindo maroto: - Só não convém exagerar... Não tivemos tempo para mais constrangimentos, pois dando sequência a nossa programação saímos do consultório já com a encomenda dos mil exames, incluindo aquele neurológico. Além da recomendação expressa de uma cirurgia que à época fazia enorme sucesso: a retirada das amígdalas. É que, comprometidas, certamente estariam contribuindo para minar a minha saúde. Para comprovar o risco que eu corria e numa antecipação do que estava por vir, antes de encerrar a consulta, doutor Contini mandoume abrir a boca. Após incurcionar as paredes de minha garganta com uma espátula de metal, convidou meu pai a cheirar o pouco material removido, levando-o a uma previsível reação de nojo. E o convenceu definitivamente quanto à necessidade de retirar, por meio de uma cirurgia, o que parecia estar apodrecendo no meu organismo. Mais de quarenta anos depois, eu descobriria que o menino Nava também sofrera a ameaça daquela cirurgia. Menos mal para ele, que a onda dominante então – uso uma imagem aproximada à que ele próprio usaria em Baú de Ossos, referindo-se a períodos em que a indicação cirúrgica aumentava ou não – enfim: a onda que predominava então apontava para um tratamento mais conservador, comprovando a desnecessidade da excisão. E ele enfrentou um procedimento similar a uma cauterização, que também não lhe deixou recordações agradáveis. 242
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No meu caso, não havia solução que não a cirúrgica. Novamente acionado, o primo Zé Maria conseguiu que eu fosse operado sem que o meu pai tivesse de pagar outro médico particular – o que já havia feito na consulta com o clínico a que eu fora levado e nos muitos exames laboratoriais. E alguns dias depois fui conduzido ao Hospital de Nossa Senhora da Saúde, na Gamboa, bairro do Rio Antigo. Próximo às docas, nas cercanias do Morro da Providência, onde nascera Machado de Assis, o que só vim descobrir um século depois, lendo um pequeno e ótimo livro que Alexei Bueno escreveu a respeito do bairro famoso. Ali havia também uma capela para os fiéis pedirem ajuda à mãe de Cristo e também uma tradição que falava do bairro como local que abrigara no começo do século um dos mais importantes redutos do samba carioca. Lembro-me bem que minha admiração pelo intenso movimento na recepção do hospital foi interrompida para ser levado a uma sala onde me aguardava uma cadeira semelhante à que os americanos haviam reservado para o casal Rosemberg, que tinha sido condenado à morte no auge da guerra fria sob a acusação de haverem passado segredos da bomba atômica dos Estados Unidos para os russos. A associação incômoda resultava do que eu vira muitas vezes em reportagens da revista O Cruzeiro. Mandaram-me sentar. E logo me vi ladeado por dois enfermeiros mulatos, trajando roupa, casquetes e dentes impecavelmente brancos. Trataram de segurar os meus braços e, sempre sorridentes, conseguiam também utilizar outras mãos para manter fixa a minha cabeça. Como alegres descendentes cariocas da deusa Shiva, ainda 243
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arranjaram outras mais para me segurar a mandíbula dolorosamente aberta. Não consigo lembrar se me haviam prendido ao assento. Mas estou certo de que se eu fizesse menção de me levantar, eles ainda inventariam outras mãos para impedi-lo. E foi demonstrando uma reverente alegria que receberam o cirurgião o qual, segundo penso, era também um acadêmico, como o filho de tia Cota. A agulha da seringa que conduzia era certamente menor que o meu medo, porém aproximando-se da minha boca escancarada, dava-me a pavorosa impressão de que iria atravessar minha garganta, saindo pescoço afora. Diziamme para me manter calmo. Era a anestesia. Certamente que era, mas não apenas não me adormecia a garganta, como me provocava engulhos aumentando o pavor. Após a primeira aplicação, insistindo em assegurar que eu não iria sentir qualquer dor, aquele intimorato aprendiz de esculápio repetiu a aplicação do outro lado, parecendo agora que o líquido introduzido descrevia uma trajetória ascendente, saindo pelos meus olhos, para se misturar ao sangue que logo encharcaria a face e a bata que me haviam feito vestir. E veio vindo lentamente depois um artefato aparentado de uma colher com um furo. Invadindo-me a boca indefesa com suas bordas escondendo lâminas que atuavam como tesouras, enforcou e logo eliminou a amígdala do lado direito, entusiasmando a todos pela remoção considerada perfeita. Eu grunhia, grunhia, e o destemido protagonista alheio a tudo que não fosse aquele maldito ato cirúrgico, iniciou a mesma operação do lado esquerdo. Aqui, talvez pelo excesso de entusiasmo com o êxito inicial, deu-se um problema que pareceu irritá-lo, deixando apreensiva a 244
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dupla shívica. E a mim mesmo, naturalmente, desesperado. É que a outra amígdala recusava-se a sair inteirinha e a colher teve de extraí-la aos pedaços. Completamente vencido, lágrimas e sangue a tornar visível no peito o resultado daquela batalha, sou levado, já não para o lupanar da Glória, onde residiam os primos e Alderi, mas para a doce residência da minha tia Inacinha, irmã do meu pai, na rua São Francisco Xavier, imediações do Maracanã. Era uma pequena casa, recém-construída, numa vila muito simpática. Naquele ambiente de decoração discreta e espaços agradáveis e tranquilos, eu haveria de convalescer. Meu pai, coitado, confiante de que a programação de cura prosseguiria sem sobressaltos, já havia retornado de ônibus para Mossoró, numa viagem provavelmente menos cansativa que a que nos trouxera ao Rio. O acerto para que eu ficasse na companhia da tia, irmã mais nova do meu pai, já viúva e lembrando uma velha matrona portuguesa – irrequieta e falante. a modos de uma autêntica Avelino, das que honravam a linhagem de tia Chiquinha – fora feito com ele próprio, contando com a interveniência de Alderi e, possivelmente, do próprio Zé Maria. Mas, até onde eu podia perceber, acumulando a canseira da repartição em que trabalhara até se aposentar, e enfrentando a solidão de viver longe da única filha, então residindo em Minas, mesmo não se afastando da antiga tradição nordestina de acolher visitantes, parentes ou não, agregados ou adventícios, saudáveis ou não, a tia não conseguia esconder sua impaciência. O que era perfeitamente compreensível: afinal, além da canseira acumulada de tantos anos nos Correios, além de fazer 245
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ela própria de um tudo naquela casa, movimentando-se agitada nos seus sólidos cinquenta anos, ainda tinha de administrar os sumiços de Alderi, para quem telefonava frequentemente, e a quem interpelava em altos brados carregando no sotaque carioca duramente assimilado: - Alderi, me diz: você é louco? Eu, hein? Larga o Tarcísio aqui e me desaparece? O menino não come nada, Alderi! Mal consegue engolir líquido, eu, hein Alderi? Você é louco? O meu irmão, claro, divertia-se com a avelina admoestação da tia, prometendo-lhe que viria no dia seguinte, levando toneladas de sorvete para mim, com isso ajudando na dolorosa recuperação. E se rápido chegava, mas depressa retornava ao usufruto do beréu nordestino da rua do Russel, agora funcionando sem restrições, uma vez que meu pai já devia estar perto de Mossoró. Quanto a mim, exibia uma palidez assustadora e emagrecia sem parar. Mas se havia algo que me aliviava aquele sofrimento, era, soe isto paradoxal ou não, justamente a constatação desse fato: estava a caminho de me tornar um ex-gordo. E as fotos que cheguei a tirar na época e não postei para os parentes constatarem a veracidade disso em tempo real, não me deixam mentir: a camisa folgada, com as mangas curtas dobradas na bainha – que era o rigor da moda em Mossoró. As calças compridas que eu mal começara a usar ajudavam a encobrir um corpo magro na festa de uma nova aparência que terminava na trunfinha arrogante dos cabelos, enfeite conhecido entre os cariocas com o antipático nome de topete. Mas até chegar ali, tive de aturar a inabalável disposição de tia Inacinha. Estava decidida a 246
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me fazer recuperar ao menos algumas poucas gramas das muitas perdidas no jejum polar de mais de uma semana. Um dia ela armou a batalha decisiva. E me advertiu pela milésima vez, com sua retórica sargenta: - Isto não pode continuar assim. Vê lá, hein? Sem comer você não resiste. E tendo me obrigado a deixar de lado as muitas revistas O Cruzeiro, Manchete e Sport Ilustrado, que eu não largava e que me ajudavam a passar mais uma tarde aparentemente interminável, me fez sentar à mesa. Ali, devidamente anunciada por um cheiro inesquecível, nos aguardava a tijela fumegante de feijão preto, temperado com alho, louro e o indispensável complemento de paio e toucinho defumado; uma travessa de arroz branco; a salada de tomate com medalhões de ovo cozido, bastante azeite, as rodelas repousadas num lindo tapete de alface e, supremo desafio para meus olhos, olfato e adormecido paladar: numa bandeja de metal, desprendendo um cheiro excitante, um lagarto. Sem muita animação eu reconhecia o lombo paulista, como os cariocas inventaram de chamar aquela carne que em casa conhecíamos simplesmente como lombo. Ali estava: o molho de ferrugem e a crosta marrom cercada de ouro derretido, aqui e ali manchado por tons mais escuros. Era a versão carioca da que a minha mãe preparava em nossa casa mossoroense, enriquecendo o seu sabor ao introduzir nele pequenos cubos de toucinho. Aquilo havia sido feito especialmente para mim e eu ali, hesitante. Colocando agora o tempero da ternura na recomendação, tia Inacinha continuou insistindo: - Tente, meu filho. Ao menos tente. Quê-que-é-isso? 247
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Põe um pouco do feijão, um pedaço de carne assada, vai mastigando devagarinho... Ao menos tente... E o louco Alderi, que não aparece! Cúmplice sereno e solícito diante de mim, o prato de louça branca foi aos poucos se colorindo com as poções de comida que eu timidamente colocava. E culminou com o generoso pedaço de carne cortado e servido pela própria tia, repetindo o hábito do irmão distante quando hospedava alguém. Acovardado pelas dores remanescentes, eu titubeava. Imaginárias ou não, elas ainda pareciam reclamar a ausência daquelas amígdalas, com quem eu havia tido treze anos de proveitosa convivência. Temeroso, levei à boca o primeiro bocado, iniciando medrosamente a mastigação. E despertada pelos sabores incomparáveis, a língua auxiliava a temerária condução da pasta que a mastigação produzia e que, deglutida, haveria de me trazer definitivamente de volta à normalidade da vida. Os incômodos arranhões produzidos pela primeira tentativa logo seriam esquecidos pelo sabor do tempero com que a minha tia condimentava a sua comida simples e de sabor inigualável. Superados todos os temores, servime à vontade. E até repeti, sentindo-me curado de todos os males. Nem a ausência momentânea do louco fraterno me incomodava.
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espertado daquele pesadelo, o Rio e eu pudemos finalmente ser apresentados, daí nascendo uma paixão que me faria retornar tantas vezes e até morar na cidade em outras ocasiões. Antes do horror cirúrgico havia feito apenas um ou outro passeio, sempre dependendo da disponibilidade de algum sobrinho do meu pai, dos que mesmo residindo há algum tempo na Capital Federal custamos a encontrar. Foi o caso de Manoel Egídio, irmão das queridíssimas Geraldinha e Mariantônia, todos filhos de compadre Chico Lino, cunhado do meu pai e proprietário de um grande armazém na Rua da Frente, tantas vezes visitado por nós durante as idas para as festas de Nossa Senhora dos Navegantes, em Areia Branca. Foi Egídio quem nos levou até o Alto da Tijuca, para conhecer a Cascatinha, que havia sido cenário, em 1916, de um espetáculo sui-generis de que participaram João do Rio e Gilberto Amado, após jantarem na companhia da bailarina Isadora Duncan. Ao chegar ali, dominada pela grandiosidade da natureza – a serra verdejante e a água despencando num jorro espetacular – aquela legendária bailarina não resistiu e os deixou fascinados ao dançar
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uma coreografia exclusiva sob a lua, conforme se pode ler na bela descrição do memorialista sergipano, amigo do cronista, no segundo volume reunindo sua evocações, com o título de Mocidade no Rio. A linda queda d’água do alto daquela montanha de fato impressionava, e causou viva admiração em meu pai e em mim, sobretudo pela pureza, sabor e temperatura friíssima da água em pleno verão. Iniciando a breve rotina carioca a que fiz jus, agora magro e saudável, pude também conhecer uma personagem especial: uma funcionária graduada do SAPS, na agência da Praça da Bandeira, aonde dava expediente juntamente com meu irmão Alderi. Ela que residia pouco adiante do nosso valhacouto, numa pequena quitinete no vizinho bairro do Catete em companhia da mãe viúva, era, para todos os efeitos, namorada daquele meu irmão. E logo se tornaria uma espécie de professora para mim naquele modesto aprendizado turístico. Chamava-se Júlia. Se a beleza não a privilegiara, diferentemente do que havia feito com a amiga bailarina de João do Rio, tinha a compensar esta falha da natureza uma reserva de ternura com que cumulou de repetidas atenções o migrante nordestino e curioso. E sem qualquer dificuldade fui me ambientando com o cotidiano carioca, ao visitar em sua companhia outros pontos da cidade. A bondade inexcedível de Júlia era capaz de fazê-la aturar as loucuras do meu irmão e, ao mesmo tempo, as esquisitices da mãe megera com quem residia, a qual, talvez supondo que aquela relação não traria ganhos à filha – e não posso esconder que não estivesse certa – parecia ser, com o seu xale preto e rendado sempre colocado sobre os ombros magros, o rosto vincado e pálido 252
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e o olhar para sempre desconfiado, uma velha desgarrada de um algum conto de Andersen. Recebia-nos sempre de mau humor no apartamento em que ambas moravam onde, e reclamando, reclamando, reagia às alegres provocações de Alderi, enquanto acompanhava a filha no preparo da macarronada dominical. Valendo-me da companhia de Júlia pude então curtir a Praia do Flamengo, ainda fazendo jus ao nome e também Copacabana, com seu areal aparentemente interminável, suas ondas mal humoradas e frias. A despeito disso, lembro-me da comoção de haver visto essa praia pela primeira vez. Saindo da breve obscuridade do Túnel Novo para chegar à Avenida Atlântica, avistei a sua curvatura magnífica e o festival de cores – acentuado por uma alegre movimentação de pessoas com trajes de banho – numa manhã inesquecível, das que provavelmente ajudaram Braguinha a considerá-la um dia a Princesinha do Mar. Era a mesma Copacabana que, após ganhar notoriedade e até emprestando seu nome a uma comédia com Grouxo Marx e Carmen Miranda, havia se tornado o paraíso das boates e inferninhos, consagrando um bem humorado conceito de cafajeste, autoatribuído por um grupo de rapazes bem nascidos e curtidores das madrugadas, que a hipertrofia da violência urbana acabaria fazendo esquecer talvez como exageradamente ingênuo. Fui também levado por Júlia a conhecer o cinema Azteca (de grandioso gosto duvidoso, próximo ao Palácio do Catete), e o moderno Cine São Luiz, no Largo do Machado que oferecia uma espetacular novidade aos seus frequentadores: o recém-implantado sistema 253
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de ar condicionado que estimulava as pessoas a nele permanecerem indefinidamente, aproveitando-se de outro charme: a exibição da película em sessões contínuas. Foi lá que assisti ao filme “Testemunha de Acusação”, na adaptação de um livro de Agatha Christie, com Marlente Dietrich e Charles Laughton, este numa interpretação que só posso classificar como espetacular e por isso inesquecível. Nesse cinema, aliás, também assistiria ao retornar à agora Capital do Estado da Guanabara, em 1963 – dominado pelo sonho de ser um ator famoso – “O milagre de Anna Sullivan” que premiaria com o Oscar uma interpretação rigorosamente espetacular de Anne Bancroft, como uma desesperada e, por vezes, truculenta professora de uma menina que, pela complacência dos pais ante as limitações de surda-muda, havia se transformado em uma pequena monstrinha. A inevitável visita ao Corcovado ocorreu num dia providencialmente luminoso, e com Alderi e Júlia acabei fazendo as fotos em que apareço magro e feliz. Há uns restos de infância no cabelo claro e no des-jeito do adolescente já esquecido da tortura amigdalar. O desenho da cidade lá em baixo como contraponto à grandiosidade da estátua do Cristo Redentor, nos olhando do alto, a alegre movimentação dos turistas compensaram a não ida ao Pão de Açúcar, no temerário passeio da caixa de vidro presa a um cabo e dependurada entre gigantescas pedras de granito. Dois outros acontecimentos ainda marcariam essa passagem carioca. O primeiro foi a ida – sem qualquer sobre (a) ssalto – ao morro do Salgueiro, num grupo conduzido por um colega de Alderi, cujo nome não lembro. Era um negro longilíneo, simpático e esperto, que sendo contínuo 254
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da autarquia onde trabalhavam, cativava a todos com um sorriso que lhe iluminava o rosto. Com ele subimos e ali pudemos assistir e participar de um ensaio da escola que se tornaria outra das paixões cariocas do meu irmão, embalados por um samba cuja melodia e alguns dos versos jamais me abandonaram. Não estou seguro de que o enredo daquele ano foi criado por Fernando Pamplona. Se não foi, tinha tudo para ser: pois era uma inovação para o carnaval carioca, ao traduzir numa homenagem ao artista francês Jean-Baptiste Debret. Chamava-se “Viagem pituresca e histórica ao Brasil”. E traduzindo os magníficos desenhos que fizera das cenas da colônia, tornaria Salgueiro a vicecampeã do carnaval daquele ano: o “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”. Passados mais de cinquenta anos, pude conferir os versos daquele samba, que ajudei a cantar, com os senões regulamentares ou possíveis, recorrendo a informações recolhidas na quadra da Acadêmicos do professor Google: Obras de vulto e encantos mil Legou Debret Às nossas belas-artes do Brasil. Pintou Com genial saber Para sua época reviver! Foi na verdade um grande artista Primaz documentarista do Brasil colonial Tendo alcançado a galeria imortal. O outro acontecimento que a memória preservou foi, claro, ser apresentado ao estádio do Maracanã. E 255
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não poderia ter havido ocasião melhor, porque ali se travava um renhido torneio a que os cartolas e a imprensa batizaram de “Super-Super Campeonato Carioca” que, aliás, dizia respeito ao recém-findo ano de 1958. Essa designação fora adotada justamente para intitular a decisão de um campeonato que não tendo terminado, pela curiosa circunstância de chegarem, ao final, empatados com a mesma quantidade de pontos, Vasco, Flamengo e Botafogo, não havia tido um campeão. Um torneio triangular logo intitulado “Supercampeonato” não foi suficiente para apontar o vencedor pela simples razão de novamente haverem terminado com igual desempenho, forçando a realização de um novo torneio, com o qual se esperava – como de fato aconteceria – ter um legítimo campeão. Desse último, o Super-Super, eu assistiria a dois jogos. O estádio ainda não tinha o nome de Mário Filho, e nem – é claro – as reformas determinadas pela FIFA. Por isso podia receber, em grandes jogos, (como os da Copa do Mundo de 1950) lotações de 100, 120 mil pessoas. E havia, a apimentar ainda mais o torneio decisivo – não é demais lembrar – o fato de que o Brasil, aliviando a tristeza com o que ocorrera no início da década, conquistara pela primeira vez a Copa do Mundo, na Suécia em 58. O campeonato carioca exibia um batalhão de jogadores que havia participado da disputa memorável, todos recrutados nas três equipes que estavam em disputa: Bellini, Orlando e Vavá, no Vasco da Gama e no Botafogo, Nilton Santos, Didi, Garrincha e Zagalo. E quanto ao Flamengo, além de Joel, Moacir e Dida, (que não chegaram a se firmar como titulares) tinha ainda Babá, que não fora à copa e era um 256
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endiabrado cearense de metro e meio, que substituíra Zagalo quando este foi vendido ao time de Didi. Nos confrontos realizados ele infernizara a vida de ninguém menos que o apolíneo Bellini, o legendário capitão daquela conquista. Porém, mais importante que tudo, ao menos para mim era saber que naquela formação rubronegra também se encontrava o conterrâneo Dequinha. Em carne e osso. O mesmo que se tornara mito para mim em razão da impossibilidade de conhecê-lo pessoalmente num dos muitos retornos seus a Mossoró. Devo admitir que talvez por ser tão grande a distância da arquibancada para o campo de jogo, a emoção a que me refiro acabou, digamos, um pouco atenuada. Mas não deixou de existir. Tanto, que nem a presença de outro conterrâneo – Miguel, o goleiro que tendo a desafiadora missão de substituir o malsinado Barbosa, goleiro do que defendera o Brasil em 1950, e vinha cumprindo no Vasco apresentações dignas de todos os elogios – me comoveu. Não farei qualquer suspense a respeito do resultado final do disputado torneio: ganhou o Vasco da Gama. O Flamengo empatou as duas partidas que fez e o time de Alderi venceu o Botafogo, tornando-se o legítimo campeão carioca de 58 naquele janeiro de 59. É possível acreditar que no fim de tudo acabei feliz? Insondáveis são os mistérios do futebol. E é certamente por isso que os cronistas o classificam como caixinha de surpresas. Além de tudo, in illo tempore, ainda havia um mínimo de civilidade no ato de torcer por algum time nos estádios. Sem contar que eu tinha a obrigação de reconhecer olimpicamente a vitória do time do meu irmão. Menos mal que duas décadas adiante 257
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eu haveria de viver experiência bem mais compensadora: residindo outra vez no Rio – onde fazia pós graduação, no início dos anos oitenta e já um assumido arquibaldo, pude, na companhia de outro primo, o falecido Franklin Gurgel, acompanhar quase toda a trajetória luminosa de uma outra equipe rubro-negra que era liderada pelo notável Zico, que acabaria ganhando todos os campeonatos que vi disputar, além do mundial de clubes no Japão. O maior ídolo do Flamengo era filho... (vá alguém entender as paixões futebolísticas) de seu Antunes, um português que surpreendia a colônia lusitana, torcendo apaixonadamente pelo time que afinal consagrou o seu filho e foi por ele consagrado em campanhas espetaculares. Cumprida aquela temporada carioca retornei a Mossoró. E o fiz com ares de um aprendizado cosmopolita. Ancho e parecendo realizado nos meus parcos treze anos, inaugurei a experiência de viajar pelos ares, com destino a Natal num valoroso DC 3 da companhia de aviação Cruzeiro do Sul. Acompanhei naquela viagem a senhora Adelaide, que – como já disse – havia se deslocado para o Rio antes mesmo que o fizéssemos, parecendo movê-la a intenção de mostrar os filhos pequenos aos seus genitores. Feliz, retornava a Areia Branca, onde a aguardava o marido, doutor Chico Costa, o mesmo em cuja companhia viajara eu para a Capital da República dois meses antes. Fui doente, por terra, no carro do marido e voltei magro e saudável, num avião, acompanhando a esposa do médico. Além de bonita, dona Adelaide era pessoa extremamente educada e agradável. Mas devo admitir que aquele torna-viagem teve 258
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para mim um custo suplementar, pois enquanto ela trazia o filho de meses, coube-me conduzir o filho mais velho dos dois, que, cheio de energia, não sossegou durante boa parte do voo. Nem ele, nem os meus ouvidos, nostálgicos das dolorosas sessões de antigamente. Revoltados com a quase absoluta ausência de pressurização e a incrível disponibilidade da aeronave para realizar pousos e decolagens Brasil afora, não pararam de doer nem quando pisamos terra firme. Aquele retorno, com os componentes que o tornaram singular, deu-me a impressão de demorar mais que a viagem por terra que me levara ao Rio, ouvindo as lérias de Manoel Gogó. E ainda demoraria ainda outro tanto, na noite escura, em que nos embrenhamos ao sair do acanhado aeroporto de Parnamirim para Natal, em busca da velha pista dos americanos que parecia não ter mais fim. Mas completando a outra viagem, tinha a força de um símbolo que só muito depois eu notaria. Era como se eu que saíra um quase menino, retornasse rapaz, tendo acumulado fortes experiências que, a despeito de me haverem causado algum sofrimento, ganhavam aos poucos a condição de registros memorialísticos para dividir em confraternizações de cálida ternura com o povo lá de casa. Cumpria-se uma etapa decisiva do meu existir. Nada pesava e a vida haveria de ser retomada com a doce rotina das tarefas escolares, as idas à padaria, os filmes que costumávamos ver às quartas e domingos no Cine Caiçara. E nem importaria que tivesse, mais adiante, de abrir mão de um blusão mandado fazer por dona Branca para que eu ficasse parecendo com 259
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James Dean em “Juventude Transviada”. Não pude exibi-lo no dia em que fui ver o filme, porque o meu braço direito, quase à altura do ombro, avolumara-se tanto com um dos dois abcessos que tive por conta das injeções salvadoras, que não me deixou vesti-lo. Mas logo estaria incorporando flertes e tristezas, me preparando para realizar o sonho de me iniciar na pátria dos amores. Já cansado, tentando visualizar a estrada que garantia a aproximação cada vez maior do aguardado reencontro, a nervosa expectativa pisca-piscando na intermitência das luzes tresmalhadas de um ou outro veículo que chegou a cruzar com o que nos conduzia a Natal, pude finalmente sossegar o espírito. Foi quando, ao entrar na silenciosa rua Ezequias Pegado, já começo da madrugada, o motorista finalmente parou à direita, na metade do quarteirão, onde ficava a casa toda branca e acolhedora de Deífilo. Pude então ver à frente dos outros parentes, minha mãe, baixinha, os cabelos precocemente encanecidos, mas corada e cheia de entusiasmo e lágrimas, a me estender os braços, pronta a novamente me acolher em seu colo.
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Obras publicadas pela editora Sarau das Letras 1 – SAUDADES, de Francisco Rodrigues da Costa. 2 – DUARTE FILHO: EXEMPLO DE DIGNIDADE NA VIDA E NA POLÍTICA, de David de Medeiros Leite e Lupercio Luiz de Azevedo. 3 – LICÂNIA, de Clauder Arcanjo. 4 – QUARTEIRÃO DA FOME, de Raimundo Nonato da Silva. 5 – MESSIAS TARGINO-RN: ORIGENS, de Edimar Teixeira Diniz. 6 – CASA DO ESTUDANTE DE MOSSORÓ: PEDAÇOS DA SUA HISTÓRIA, de Sebastião Almeida de Medeiros. 7 – PERDOA-ME POR ME PRENDERES!, de Edilson Pinto Junior. 8 – FOLHAS DE OUTONO, de Francisco Rodrigues da Costa. 9 – JUSTIÇA VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA E OUTROS FRAGMENTOS, de Francisco Honório de Medeiros Filho. 10 – PELAS RUAS DE HAVANA, de Rubens Coelho. 11 – SERES, de Pedro Du Bois. 12 – O ALFABETO: A BRINCADEIRA DAS LETRINHAS, de Ana Carla de Azevedo, Joriana Pontes, Jeska K. Medeiros – Org.: Márcia Tavares Silva. 13 – LÁPIS NAS VEIAS, de Clauder Arcanjo. 14 – INCERTO CAMINHAR, de David de Medeiros Leite. 15 – JOÃO BATISTA CASCUDO RODRIGUES: LIÇÕES DE UM PROFESSOR, de Milton Marques de Medeiros. 16 – A DANÇA DOS CROMOSSOMOS, de Marcos Antônio de Andrade Medeiros. 17 – COMEÇO DE CAMINHO: O ÁSPERO AMOR, de Renard Perez. 18 – SÓ RINDO II: A POLÍTICA DO BOM HUMOR DO PALANQUE AOS BASTIDORES, de Carlos Santos. 19 – MASSILON: NAS VEREDAS DO CANGAÇO, de Francisco Honório de Medeiros Filho. 20 – DÊ CARONA PARA A SAÚDE, de Líria Nogueira Alvino e Raimunda Medeiros Germano. 21 – O LAGARTO DO FOLHIÇO, de Marcos Antônio de Andrade Medeiros. 22 – SABOR DE AMAR, de Paulo de Tarso Correia de Melo.
23 – CAMINHOS DE RECORDAÇÕES, de Francisco Rodrigues da Costa. 24 – O SONHO DE UM DROGADO, de Francisco Françuí de Almeida. 25 – DONA HILDA, simples em todos os aspectos, de Maria de Fátima Medeiros Leite, Maria Helena de Medeiros Leite e Valdete Medeiros Leite. 26 – MINHA VIDA, MEUS SONHOS, de Manoel Leite de Souza (Neuzo). 27 – NOVENÁRIO DE ESPINHOS, de Clauder Arcanjo. 28 – A MÚSICA E O SERTÃO ABSOLUTO: A EXPERIÊNCIA NO CANCIONEIRO DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO, de Julio F. D. Rezende (coedição com a editora Epifania). 29 – LIVRO DE LINHAGENS, de Paulo de Tarso Correia de Melo (coedição com a editora Corpos, de Porto-Portugal). 30 – TRABALHAR E VIVER O QUE PUDER: Biografia de Francisco Ferreira Souto filho, de Edith Souto e Jacques Cassiano Fernandes Vidal. 31 – CARTAS DE SALAMANCA, de David de Medeiros Leite. 32 – UPANEMA, DE POVOADO A VILA, de Josafá Inácio da Costa. 33 – GESTÃO PARTICIPATIVA E POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA AVALIAÇÃO DO PRONAF, de Everkley Magno Freire Tavares. 34 – Contrapontos: REFLEXÕES A PARTIR DA VIDA EM REBANHO, de Antônio Alvino da Silva Filho. 35 – RELENDO GUILHERME DE ALMEIDA, de Sânzio de Azevedo. 36 – SOB O CÉU DE NATAL, de Demétrio Vieira Diniz. 37 – UNS POTIGUARES, de Nelson Patriota. 38 – MEIO HUMANO, MEIO URBANO, de CA Ribeiro Neto. 39 – PORTÃO DE EMBARQUE 2: PORTUGAL (2ª edição), de Manoel Onofre Jr. 40 – BICICLETAS DE PAPEL, de Dulce Cavalcante. 41 – O ZELADOR DO CÉU E SEUS COMPARSAS, de Fábio Lucas. 42 – MISTO CÓDICE (CÓDICE MESTIZO) – edição bilíngue, de Paulo de Tarso Correia de Melo (coedição com a editora Trilce, de Salamanca-Espanha).
43 – INCERTO CAMINHAR (INCIERTO CAMINAR) – 2ª edição (bilíngue), de David de Medeiros Leite. 44 – LUÍS GOMES: UM RESGATE HISTÓRICO, de Caio César Muniz (org.), coedição com a Coleção Mossoroense. 45 – MESSIAS TARGINO-RN: ORIGENS (2ª edição), de Edimar Teixeira Diniz. 46 – BECOS, RUAS E ESQUINAS, de Francisco Rodrigues da Costa. 47 – COMO SE ÍCARO FALASSE, de Patricia Tenório. 48 – COTIDIANAS, de Rizolete Fernandes. 49 – ALGODÃO E SAL, de Maria Maria Gomes e Antonio Francisco. 50 – EXÍLIO SEM CANÇÃO, de Alexandre Abrantes. 51 – GÊNESE, de Leonam Cunha. 52 – RASTROS NAS AREIAS BRANCAS, de José Nicodemos, coedição com a Coleção Mossoroense. 53 – VOCÊ VAI CONTINUAR VIVENDO DA MÚSICA? O MERCADO INDIE E SUAS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS, de Tobias Queiroz (e-book). 54 – HERÁCLITO NA FILOSOFIA DO JOVEM NIETZSCHE, de Myrna Barreto (e-book). 55 – FUTEBOL DE MOSSORÓ: PEQUENAS GRANDES HISTÓRIAS, de Lupercio Luiz de Azevedo. 56 – CASA DAS LÂMPADAS, de David de Medeiros Leite. 57 – QUANDO MENOS SE ESPERA..., de Cícera Bruna. 58 – DIÁRIO DE NATAL, de Paulo de Tarso Correia de Melo. 59 – LUTO DOCE, de Tatiana Morais. 60 – ROCK’N ROLL: UMA BREVE HISTÓRIA DA MÚSICA QUE MUDOU A MANEIRA DE VER O MUNDO, de Ugo Monte. 61 – CANTO NOVO, de João Pessoa Cavalcante. 62 – CURVAS DOS TEMPOS, de Artur Paula Fausto de Medeiros. 63 – CONTAGEM REGRESSIVA, de Anchieta Rolim. 64 – UM SERTANEJO, CURRAIS NOVOS E O TEMPO, de Maria Maria Gomes. 65 – VIRANDO CACHORRO A GRITO, de Jair Farias Oliveira. 66 – VENTO DA TARDE (VIENTO DE LA TARDE) – edição bilíngue, de Rizolete Fernandes (coedição com a Trilce Ediciones, de
Salamanca-Espanha). 67 – INFOGRAFIA INTERATIVA NA REDAÇÃO: O EXEMPLO DO DIÁRIO DO NORDESTE, de William Robson Cordeiro, coedição com a Santos Editora. 68 – O SONHO DE UM DROGADO (2ª edição), de Francisco Françuí de Almeida. 69 – À FLOR DA PELE, de Fátima Feitosa. 70 – A OUTRA OBSCURIDADE (LA OTRA OSCURIDAD) – edição bilíngue, de Luis Raúl Calvo. 71 – CRUVIANA, org. José de Paiva Rebouças. 72 – UM GRITO DE ALERTA, de Francisco Françuí de Almeida. 73 – CAPELA DE SÃO VICENTE, FÉ E BRAVURA: DE VICENTE AO PADRE SÁTIRO (2ª edição), de Eriberto Monteiro. 74 – HISTÓRIA DE UMA VIDA SIMPLES, de Sebastião Almeida de Medeiros. 75 – LAMENTO PELAS BATATAS, de Marco Juno Costa Flores. 76 – REFLEXÕES POÉTICAS, de Socorro Fernandes. 77 – PASSO DA PÁTRIA: UM LUGAR DE MEMÓRIAS, de Carlos Magno de Souza. 78 – VIDA, de João Pessoa Cavalcante. 79 – AS CRÔNICAS DE AIA, de José Augusto Nobre de Medeiros. 80 – GOZANDO, RIMANDO E RINDO, de José Acaci. 81 – DISSONANTE, de Leonam Cunha. 82 – CULINÁRIA SERTANEJA, de Benedito Vasconcelos Mendes, em parceria com o Museu do Sertão (e-book). 83 – AS ARTES NA CIVILIZAÇÃO DA SECA, de Benedito Vasconcelos Mendes, em parceria com o Museu do Sertão (e-book). 84 – PERDÃO, de Francisco Rodrigues da Costa. 85 – SUSSURROS DO CORAÇÃO, de Luiz Soares. 86 – DOIS AMIGOS, de Antônia Francisca de Moura. 87 – ESCOTILHA D’ALMA, de Henrique Maia. 88 – CHÃO DOS SIMPLES (3ª edição), de Manoel Onofre Jr. 89 – MOSSORÓ E TIBAU EM VERSOS: ANTOLOGIA POÉTICA, org. David de Medeiros Leite e José Edilson de A. G. Segundo.
90 – O DIREITO NA ARTE: DIÁLOGOS ENTRE O CINEMA E A CONSTITUIÇÃO, coordenação: Morton Luiz Faria de Medeiros. 91 – O VERSO DA TRAMA, de Ana de Sales. 92 – O REINO DOS BICHOS, de José Acaci. 93 – CONTOS REUNIDOS, de Margarete Solange Moraes. 94 – PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PÍLDORAS PARA EL SILENCIO) – edição bilíngue, de Clauder Arcanjo (coedição com a Trilce Ediciones, de Salamanca-Espanha). 95 – CANCIONEIRO DA TERRA, de Antonio Fabiano. 96 – UMA CHANCE A MAIS, de Cícera Bruna. 97 – RADIOLA: CONVERSA DE MÚSICA, de Damião Nobre. 98 – PÉTALAS, de Florina Escóssia. 99 – TRANSEUNTE NO TEMPO, de Francisco Leopoldo da Silveira. 100 – ESCOLA DOMINICAL, de Ciro Pedroza. 101 – SANTA FÉ, de Margarete Solange Moraes. 102 – UM EQUÍVOCO DE GÊNERO E OUTROS CONTOS, de Nelson Patriota. 103 – CULINÁRIA SERTANEJA, de Benedito Vasconcelos Mendes. 104 – AS ARTES NA CIVILIZAÇÃO DA SECA, de Benedito Vasconcelos Mendes. 105 – RELICÁRIO, de Kalliane Amorim. 106 – SÍSIFO APAIXONADO, de Edilson Pinto Junior. 107 – OLHARES CANHESTROS, de Lilia Souza. 108 – COTIDIANAS (2ª edição), de Rizolete Fernandes. 109 – DIÁLOGOS EM RETALHOS DE CETIM, de Raimundo Antonio de Souza Lopes. 110 – AS CIDADES DA ALMA, de Goreth Serra. 111 – É PRECISO REFLETIR, de João Pessoa Cavalcante. 112 – NAS TRILHAS DE MEU AVÔ, de José Edilson de A. G. Segundo. 113 – MAMÃE, POR QUÊ?, de Ana Luiza Maia Bezerra. 114 – NAS PONTAS DOS PÉS, de Antonio Fabiano. 115 – FAZENDA SOLIDÃO, de Margarete Solange Moraes.
2015 - Tarcísio Gurgel
Capa e projeto gráfico | Rafael Sordi Campos Fotografia | Cecilia Baker Editores | Clauder Arcanjo, David Leite e Helton Rubiano de Macedo Pré-impressão, impressão e acabamento | Gráfica Santa Marta
Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede Gurgel, Tarcísio. Inventário do Possível / Tarcísio Gurgel. – Natal, RN: Sarau das Letras / EDUFRN,2015. 268 p. ISBN 978-85-425-0463-7 1. Gurgel, Tarcísio – Memórias. 2. Rio Grande do Norte – História. I. Inventário do Possível. RN/UF/BCZM
2015/38
CDD B869.87 CDU 821.134.3(81)-94
Este livro foi composto nas tipologias Minion Pro e Adobe Caslon Pro, e produzido com papel Pรณlen Soft 90g/m2. Impresso na Grรกfica Santa Marta em maio de 2015.