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+soma . #14

“Entre o sim e o não existe um vão”, cantava Itamar Assumpção em “Chavão Abre a Porta Grande”. A vida do compositor nascido em Tietê, que encontrou seu destino em Londrina e elegeu a cidade de São Paulo como musa, foi um salto cego nesse vão. Ali, entre o sim e o não, ele disse suas verdades mais profundas, viveu seus grandes dilemas, plantou suas orquídeas e colheu tudo que a vida dá a quem vive sem medo da morte. A +Soma mergulhou nesse vão atrás do rastro do fenômeno cósmico chamado Itamar Assumpção, que completaria 60 anos neste ano. Apesar de sua aparição ainda ser ignorada pela maioria dos brasileiros, falamos com um punhado valente deles, que se dedica bravamente a manter viva a influência de um compositor cada vez mais essencial, em um mundo onde a música popular desafia cada vez menos os ouvintes. Igualmente desafiadora é a seleção de discos peneirados por Rob Mazurek, jazzista de Chicago que vive lá e cá, emprestando sua dose de excelência a projetos como o São Paulo Underground e vários outros. Aceitar o desafio de Mazurek, por sinal, foi uma das coisas que levaram Richard Ribeiro do punk ao instrumental sagaz do Porto, aparentado musical do gaúcho Marcelo Armani. Para Daniel Melim, o desafio é produzir transformação social real. Sua arte urbana engajada e contestadora encontra ecos no trabalho do polivalente rapper paulistano Criolo Doido, idealizador da Rinha dos MCs, principal celeiro do hip-hop na capital paulista, e do carioca Marechal, que se divide entre seu projeto musical e oficinas com crianças carentes. Também do Rio vem o impagável artista e comediante nas horas vagas Felipe Motta, que fez história no mundo do skate desde os anos 90 com seu traço inconfundível em shapes, camisetas e trabalhos comerciais, e que tem um trabalho autoral ainda não muito conhecido, mas tão significativo quanto. De quebra, ele fala ainda sobre seu mítico personagem Cara de Cavalo, sucesso há vários anos no YouTube. Longe de dualidades simplórias, os artistas Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade, ícones da Geração 80, exploram os limites da forma e da pintura figurativa como nos dizeres de Beckett: “Ser artista é falhar, como ninguém ousou falhar. Tentem de novo, falhem de novo, falhem melhor!” Apesar de perspectivas autorais e visões de mundo diferentes, esses artistas estão aqui por uma mesma razão. Como Itamar, fazem de sua arte um aviso: “Não adianta vir arreganhando os dentes para mim, porque sei que isso não é um sorriso.”

+SOMA


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Itamar Assumpção

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Agenda

Quadrinhos

Reviews

Mini

Seleta: Ronnie Von

Quem Soma: Lucas Pexão

Porto

Marcelo Armani: Encontro de Sons e Pessoas

MC Marechal: Mais Que Música, Uma Missão

Criolo Doido: Filósofo do Submundo

Bate-Panela: Curumin

Fernando Chamarelli

Entre (Outros)

Acertando as Contas: Felipe Motta

Editorial de Fotos: Patrícia Araujo

Daniel Melim

Buenos Aires Hardcore

Paulo Monteiro + Rodrigo Andrade

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sangue bom.. . sa, * ca $ é 99 1,

ais, leva u m om pr nh ui

agar um cê p po vo uq Se

Shuffle: Rob Mazurek

+conteúdo o nome do d isc o!

Lançamento do novo album $ 1,99 Faça o download gratuito do album na integra em www.cemporcentoskate.com.br/afilial

ezekielbrasil.com

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O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo. Para informações acesse: www.maissoma.com

Iniciativa .

ssssssssssssssssss

Kultur Studio Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP www.kulturstudio.com

REVISTA SOMA #14 Novembro 2009

Fundadores . Kultur Alexandre Charro, Fernanda Masini,

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Rodrigo Brasil e Tiago Moraes M

Editor . Mateus Potumati

Y

Assistente Editorial . Marina Mantovanini

CM

Fotografia . Fernando Martins

MY

Revisão . Alexandre Boide CY

Projeto gráfico . Fernanda Masini Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera

CMY

K

Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro e Fernando Stutz

Colunistas . Gustavo Mini, Tiago Nicolas, Ricardo “Mentalozzz” Braga & Daniel “Ouriço” Peixoto, Alex Vieira, Stêvz e Gabriel Renner

Gostaríamos de agradecer a Fotonauta, Agência Alavanca, Arthur Dantas, Kiko Dinucci, Luciano Valério, Pedro Potumati, Paulo Lepetit, Arrigo Barnabé, Suzana Salles, Luiz Tatit, Luiz Calanca e Baratos Afins, Anelis Assumpção, Rogério Velloso, Carol Dantas e Movie&Art, Lucas Carrasco, Jorge Rosenberg, Jairo Torres, a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.

Capa Itamar Assumpção nos anos 1980, em frente a uma das

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de

colunas do MASP. Foto de Jairo Torres.

seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. Periodicidade . Bimestral Publicidade . Cristiana Namur Moraes cris@kulturstudio.com

Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info

Para anunciar ou enviar material para review, entre em contato através do e-mail redacao@maissoma.com.

Impressão . Prol Gráfica Tiragem . 10.000 exemplares


+colaboradores

Pedro Pinhel

Arthur Dantas

Tiago Mesquita

Fotonauta

Paulo Borgia

Amauri Stamboroski

Pedro Pinhel é diretor de arte

31 anos. O capitalismo roubou minha

Tiago Mesquita é crítico de

O Coletivo Fotonauta é: Andrea

Jornalista, são-paulino e pai do

Jornalista, cover do Jack Black e

profissional, jornalista amador,

virgindade e atualmente sou contra

arte, professor e está fantasiado

Marques, Daryan Dornelles e

Pedro. De vez em quando faz

orgulho de Ijuí. Durante o verão caça

colecionador de discos obstinado

TUDO que tá aí. Ama Crass, 4 Walls

de pirata.

Eduardo Monteiro.

umas fotos e ainda prefere as

insetos para a sua filha, Ramona.

e blogueiro fanfarrão. Gosta muito

e Itamar Assumpção. A favor da

de basquetebol, suco de abacaxi

paz, do amor e da esperança.

câmeras analógicas.

com hortelã e de seu setter, Banza.

André Maleronka

Flávio Grão

Janaina Felix

Daniel Tamenpi

Débora Pill

Joshua Klein

É jornaleiro, editor da Vice, não sabe

Ilustrador, educador, pintor e

É professora de inglês e faz

Jornalista, pesquisador musical

É jornalista, produtora cultural

Jornalista, mora em Chicago e

cozinhar e gosta de comer stognoff

escritor de fanzines. Acredita

traduções de graça em troca de

e DJ especializado em soul, funk

e apresentadora do programa

escreve para o Pitchfork, Chicago

de carne frio às três da manhã.

no que é arcaico: em artistas

entradas para o Espaço +Soma. Já

e hip-hop. Escreve o blog Só

“Conexões Urbanas”, na rádio

Tribune e Time Out Chicago,

honestos, no trabalho pesado, no

voltou a beber e abriu uma Quilmes.

Pedrada Musical, onde apresenta

Eldorado FM.

entre outros. Faz um frango

amor ao próximo, na sutileza da

lançamentos e clássicos da

assado responsa e gasta seu

vida e na lei de causa e efeito.

música negra.

saleario comprando giz de cera para as duas filhas.

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com rob mazurek Por tiago nicolas

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Rob Mazurek segue à risca o sábio provérbio que diz que de americano carnavalesco e louco todo brasileiro tem um pouco, tanto que é americano e é um pouquinho de Brasil, aiá... Aqui, ali, acolá e além do acolá, Maza vem colecionando discos, sons, experiências, ideias, trabalhos e exalando boas vibrações por todos os poros, especialmente para nós brazucas, que temos a alegria de estar com esse folião boa parte do ano. Conheça nove discos da sua coleção e mais um que eu tive a difícil missão de escolher entre os seus projetos, discos solo, bandas etc. 1

Disco pra apreciar estrebuchando a boa e velha cachacinha mineira Bill Dixon – Intents and Purposes. Tem que ser o som mais de verdade possível. Bill Dixon é um mestre da orquestração, mesmo usando apenas a orquestra que vive dentro do seu trompete celestial. Levanto meu copo de cachaça (de preferência Coqueiro Velho, feita em Heliodora) ao mestre Bill Dixon.

Um disco pro tio Obama acabar de vez com o embargo contra Cuba Nuno Canavarro – Plux Quba. O disco desse português é um dos que mais mudaram minha cabeça. Um pouco disso na Casa Branca ia não só acabar com o embargo sem sentido contra Cuba como também poderia abrir mentes para uma visão de amor universal e acabar com o evangelismo de extrema direita.

Um disco de outros carnavais Sun Ra – Nothing Is. Não existe nenhum outro carnaval de som e visão como o grande Sun Ra. Lembro da primeira vez que o vi, num festival em Chicago nos anos 80. A banda entrou no palco usando roupões roxos ao som de percussão, pessoas cuspindo fogo, um grupo de dançarinos e sopros com Sun Ra tocando acordes mágicos pela noite.

O disco de Chi-Town Fred Anderson, Steve McCall – Vintage Duets. Fred Anderson acabou de fazer 80 anos e ainda toca seu saxofone tenor como um vulcão. Esse disco extraordinário, gravado com um dos meus bateristas preferidos (Steve McCall), é um ciclone de som, fúria e beleza, e encapsula a ideia da vanguarda de Chicago. Fred também é o proprietário do famoso Velvet Lounge, a casa quintessencial do avant garde da cidade.

Um disco da sua coleção que foge mais do seu estilo musical e autoral Conlon Nancarrow – Studies for Player Piano. Uma viagem de som mecânico, primal, meticuloso e que enche o coração. Os estudos para piano mecânico de Conlon Nancorrows compõem o disco que eu sempre escuto na minha mente, mas seria completamente incapaz de tocar.

Um disco da Zona Franca de Manaus Guilherme Vaz – Povos Dos Ares. Guilherme Vaz é o rei do avant garde brasileiro. Essa gravação, feita na Amazônia, usa o extraordinário vocabulário do grande compositor e seu diálogo com os elementos naturais da vida e morte. Um som assombroso de minimalismo intenso, levado aos extremos da ressonância natural.

Um disco seu que você gostaria que tivesse uma ou mais músicas tocando numa pista de dança esfumaçenta (no caso de São Paulo, ex-esfumaçenta) São Paulo Underground – Três Cabeças Loucuras. Acabamos de gravar esse disco, e “Just Lovin” tem uma das batidas mais neuróticas do século. Se você tocar esse som numa pista de dança em que estejam presentes o mestre do Chicago house Matthew Lux, os paulistanos Chico-Akin e Tiago Mesquita, provavelmente verá uma dissolução de todos os valores estabelecidos de certo e errado.

O disco mais elegante do Maza na minha opinião Sound Is.

2Tiago Nicolas é 1/6 da Chaka Hotnightz 17


Itamar Assumpção,

60 Anos: O Vão Que Persiste

Na vida sou passageiro Eu sou também motorista Fui trocador, motorneiro Antes de ascensorista Tenho dom pra costureiro Para datiloscopista Com queda pra macumbeiro Talento pra adventista Agora sou mensageiro Além de para-quedista Às vezes mezzo engenheiro Mezzo psicanalista Trejeito de batuqueiro A veia de repentista Já fui peão boiadeiro Fui até tropicalista Outrora fui bom goleiro Hoje sou equilibrista De dia sou cozinheiro À noite sou massagista Sou galo no meu terreiro Nos outros abaixo a crista Me calo feito mineiro No mais, vida de artista. “Vida de Artista”, Itamar Assumpção.

Por Mateus Potumati . Fotos de show por Jorge Rosenberg

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“Itamar era universal, a tradução do Brasil profundo.” Jorge Mautner

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o dia 13 de setembro deste ano, Itamar Assumpção completaria 60 anos de idade. A fase madura da carreira de um dos compositores mais singulares da música brasileira foi interrompida seis anos atrás, após uma longa luta contra o câncer. Os pouco mais de 20 anos que ele dedicou à sua produção musical deixaram dez discos, dezenas de parcerias e um legado tão poderoso quanto mal divulgado e digerido. Apesar da aceitação efusiva de parte pensante da crítica e da classe musical (entre fãs notórios e assumidos estão Hermeto Pascoal, Tom Zé, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Rita Lee e Z’África Brasil, para ficar em poucos nomes), em termos de público seu trânsito ficou restrito a um nicho formado principalmente por universitários e intelectuais, mais rarefeito à medida que se afasta da cidade de São Paulo. A capital paulista, onde ele se radicou nos anos 1970, foi figura central na sua composição. É difícil imaginar outro músico que traduza de forma tão profunda e abrangente a cidade. “São Paulo não é exatamente amor, é identificação absoluta... Sou eu”, ele canta na ainda inédita “Eu Persigo São Paulo”. Talvez essa relação simbiótica explique em parte seu isolamento do resto do país e do mundo (à exceção da Alemanha, onde tocou algumas vezes e teve parte da discografia lançada, Itamar é praticamente ignorado internacionalmente). Desde sua morte, obras importantes têm tentado reverter esse déficit, como o monumental songbook duplo Pretobrás, de 2006, de onde foram tiradas algumas aspas que ilustram esta matéria. O ano de 2010 promete dar um impulso significativo no processo, com o lançamento de um documentário e da longamente aguardada Caixa Preta, coleção idealizada pelo compositor ainda em vida, que conterá todos os seus discos de estúdio e mais dois inéditos. Contraditório, arredio, “maldito”, Itamar viveu intensamente uma série de dilemas e dicotomias: independência/sucesso, excitação/amargura, vida em família/boemia pesada, doçura/draconismo, modalismo do candomblé/vanguardismo europeu. Fez da independência completa sua grande obsessão, muito antes de o termo fazer algum sentido no Brasil. “Essa coisa de ficar de rabo preso não dá certo, nem com os amigos. Porque aí os amigos pisam no tomate e você tem que ficar quieto”, ele já disse ao parceiro Luiz Chagas. Não gostava nem que o defendessem e ironizava: “Minha música dá muito trabalho”. A poetisa Alice Ruiz, uma de suas melhores amigas e principais parceiras, dizia que tentar entender e explicar Itamar era “uma honra; mas, como é impossível, contento-me em contar nossa história”. Como ela, a +Soma não tem a pretensão de desvendar Itamar Assumpção, mas aproveita estas páginas para contar outras histórias de sua trajetória, costurar algumas relações e lançar uma pergunta: será que o Brasil triunfalista do século XXI tem condições de finalmente dar a um de seus gênios mais injustiçados um tratamento à altura de sua grandeza? 1 20

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4capa do disco bicho de 7 cabeças vol. 1 . reprodução

“Em todas as músicas está presente a diferença. O gênio com vocação para o sacrifício.”

Arrigo Barnabé

Tom Zé

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uando despontou, no começo dos anos 1980, em São Paulo, Itamar Assumpção foi rapidamente elevado à condição de ícone de uma nova e brilhante geração de compositores e intérpretes, a chamada Vanguarda Paulista. Reunida em torno do extinto teatro Lira Paulistana, que ficava em frente à Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros, a Vanguarda era formada, além de Itamar e sua banda Isca de Polícia, por nomes como Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Tetê Espíndola e Ná Ozetti (e, de forma indireta, grupos como Premeditando o Breque, Língua de Trapo e outros). Partindo de influências diversas como o dodecafonismo, o atonalismo, a canção popular, a poesia, o teatro, o rock, o funk, o reggae e elementos da cultura pop como os quadrinhos e a narrativa radiofônica, os integrantes da Vanguarda criaram uma linguagem fortemente conectada a uma época que ansiava pelo próximo passo pós-Tropicalismo. Não à toa, muitos a consideram o movimento mais significativo na música brasileira surgido depois do encontro entre Caetano, Gil, Duprat, os Mutantes e Cia. Parte fundamental desse fenômeno começou a ser gestada em Londrina, onde Itamar conheceu Arrigo e morou de 1969 a 73. Em entrevista à +Soma, Arrigo Barnabé descreve o espírito da época. Arrigo Barnabé. Lembro a primeira vez que eu vi o Itamar, no Festival de Música de Londrina, em 1971. Eu me apresentei com uma música do Robinson [Borba, compositor e produtor], com o Paulinho [Barnabé] na percussão e o Antônio Carlos Tonelli no violão. O Itamar se apresentou com o irmão dele, Narciso e a irmã, Denise. Os caras faziam umas coisas muito legais – tocavam atabaque, tumbadora, era um barato. Depois eu voltei pra São Paulo, tranquei matrícula na faculdade por meio ano e fiquei em Londrina. Aí, em 73, foi feito o Na BOCA do BODE (misto de show coletivo e happening que marcou época na cidade, organizado pelo escritor Domingos Pellegrini com artistas locais, incluindo Arrigo e Itamar). A única coisa que eu tinha era “Clara Crocodilo” (apresentada pela primeira vez naquele show), um negócio pequeno, na época não tinha narração ainda, não tinha nada, era só uma parte musical. O Itamar era o star do Na BOCA do BODE, junto com o Edwaldo Viecili, o Robinson Borba. Ficamos mais próximos e continuamos conversando, até que falamos “Itamar, se você quiser ir pra São Paulo a gente arruma um lugar pra você ficar”. Ele já veio tocar baixo com você ou não? AB . Ainda não. O Itamar estava compondo as coisas dele, e a gente montou um grupinho pra tocar os projetos. Isso já era 74. Ele cantava, o Sérgio

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“Se Jorge Ben era o Sol, Itamar era a ausência da Lua.”

Pamps tocava baixo, o Tonelli flauta, o Paulinho bateria, eu tocava piano e o guitarrista era o Ricardo Guará, médico e compadre do Itamar, que viria a ser seu parceiro. A gente se apresentou na Faculdade de Medicina de Pinheiros com “Sabor de Veneno”, umas músicas do Itamar – “Prezadíssimos Ouvintes” e tal – e aí eu lembro que nessa época o Itamar fez “Luzia” (cantarola, “chega de conversa mole, Luzia”) e colocou no Festival Abertura, da Globo. Eu coloquei “Clara Crocodilo”, e não fomos classificados. Já tinha “Luzia” em 74, então? (A música só foi lançada em 81, no disco Beleléu, Leléu, Eu.) AB . Ah, sim, essas coisas estavam sendo gestadas. E aí nós fomos morar juntos, o Itamar na casa do Guará, uma república no Bixiga, e depois eu fui pra lá também. Foi nessa fase que apareceu o Duprat, não? AB . Isso, o Rogério Duprat se interessou pelo meu trabalho, eu levei uma fita pra ele e ele falou “monta um grupo e ensaia que a gente grava”. Aí, pô, nossa! Eu, o Itamar, o Tonelli e o Paulinho fomos morar em Eldorado (bairro na divisa de São Paulo com Diadema, perto da represa Billings), numa chácara em frente à represa. Um lugar sem carro, sem telefone... Isolados, né. Estilo “Novos Londrinenses”. AB . Pois é. Ficamos ensaiando, ensaiando, ensaiando, só músicas minhas nessa época. Mas não deu certo, a coisa era muito difícil. A Zena (viúva de Itamar) ficou grávida e o Itamar falou “agora eu tenho que me virar”. A gente desmontou a casa e cada um foi tocar sua vida, o Itamar foi tocar percussão com o Jorge Mautner um tempo, mas ficamos sempre em contato. Aí, quando veio o festival da TV Cultura (1º Festival Universitário de MPB, em 1979), eu classifiquei duas músicas e chamei ele e o Paulinho pra escrever uns arranjos de base. Eles fizeram coisas muito legais mesmo, deram a cara pra “Diversões Eletrônicas” e “Infortúnio”, sabe? Ganhamos e fomos pro estúdio, nossa primeira experiência de gravação (nota: o prêmio era a gravação de um disco, que foi recusado pela gravadora; Arrigo foi em frente e bancou o que seria Clara Crocodilo do próprio bolso). Depois veio o festival da Tupi, onde fomos um relativo sucesso, ganhei como melhor arranjo, Neuza Pinheiro (então vocalista de Arrigo) melhor intérprete. Aí, em 80, o Itamar apareceu com “Nego Dito”. Puta, era um barato, a música era super legal. E aí ele colocou no festival da Vila Madalena, tirou 2º lugar e com isso ficou muito conhecido. A carreira dele começou ali. 23


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s shows da Isca de Polícia e dos outros grupos no Lira Paulistana e em outros espaços de São Paulo atraíam plateias grandes e empolgadas, entre universitários, fãs de MPB, figuras das artes e da comunicação e punks da periferia. Porém, sem conseguir despertar interesse de grandes gravadoras, a cena erguida por Itamar e seus pares se viu ilhada. Como efeito disso, no entanto, eles praticamente inventaram o conceito de música independente no Brasil (Clara Crocodilo, de Arrigo Barnabé, é considerado o primeiro disco independente do país). Quando conversei com o linguista e líder do extinto Grupo Rumo Luiz Tatit para a feitura desta matéria, perguntei a ele se se arriscava a dizer por que, ao contrário de outros músicos de vida conturbada e propostas arrojadas (citei Miles Davis, um dos ídolos de Itamar), o brasileiro não gozou de consideração parecida pela tríade indústria-imprensa-público. Isso, claro, excluídas as razões mais óbvias e conhecidas: o espaço que a música ocupa nos EUA e aqui e a explosão do pop-rock nacional oitentista, alternativa mais fácil e segura para satisfazer os anseios por rebeldia e diversão de uma juventude cada vez mais americanizada. Mas, ao contrário de companheiros de Vanguarda como Arrigo Barnabé e o próprio Rumo, as músicas de Itamar, por menos lineares que fossem, tinham forte vínculo com o rock, o reggae, o balanço e a canção popular. O próprio Tatit, em seu texto para o songbook Pretobrás, aponta que Itamar é “um dos raros exemplos de artista que se imbuiu de alguns procedimentos vanguardistas da música erudita sem nunca perder a dicção pop enraizada desde a infância”. Mesmo assim, quando comenta a música “Milágrimas”, parceria do compositor com Alice Ruiz lançada no disco Bicho de 7 Cabeças Vol. 2 (Baratos Afins, 1993), ele observa, sem esconder certa decepção, que “poucas vezes os criadores de nosso universo cancional (...) chegaram a obras-primas desse calibre sem que a maioria esmagadora da população tomasse conhecimento de sua existência”. Pelo telefone, o músico completou o raciocínio: “Ele tinha uma expressão extraordinária, chegou a fazer shows que pareciam de grandes nomes pop como Gilberto Gil e outros. Quem chegou a ver shows assim não consegue entender como ele não teve sucesso em atividade, pelo menos nos anos 90, quando o trabalho estava bem maduro.” Para Arrigo Barnabé, as razões passam também pelo temperamento de Itamar, muito resistente a mergulhar nas águas turvas do mercado. “O Itamar era um cara complicado, ele não tinha a diplomacia necessária pra entrar no mercado. Ele falava ‘eu não sou bonzinho, Arrigo, o bonzinho é você’ (risos), porque eu conversava com as pessoas, sabe? Acabei ficando sozinho.” Na sua avaliação, as coisas poderiam ter sido diferentes se Itamar tivesse tido “um pouco mais de jogo de cintura”.

“Antes do Itamar, a imagem do negro na música brasileira era a representação do malandro. Ele foi o primeiro a colocar agressividade abertamente, muito antes do rap.” Ricardo Guará

Voltando à comparação com Miles Davis, Tatit defende que um fato crucial diferencia os dois: a intervenção de Itamar na música foi mais audaciosa que a do norte-americano. “Apesar de toda a genialidade do Miles Davis e de outros jazzistas, eles estavam falando a linguagem do jazz e produzindo algo integrado com outros músicos menos problemáticos. O Itamar apostou numa coisa muito difícil. Sua proposta de arranjos, de shows, de 24

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cantar simultaneamente várias vozes é difícil de assimilar até hoje.” Quem tem familiaridade com a discografia do compositor e o viu no palco – em especial na primeira metade dos anos 80, quando ainda se apresentava com a Isca de Polícia –, sabe que nenhum show era igual ao outro. E não se trata de figura de linguagem: além de serem exaustivamente arranjadas nos discos, as músicas eram constantemente alteradas ao vivo, ou por novos andamentos, novas articulações nos diálogos com os vocais de apoio, ou mesmo seções instrumentais completamente novas. Os ensaios, diários, começavam às 8h da manhã e chegavam a durar 6 horas.

“Montanha russa de sentimentos que raros artistas proporcionam. Eu o tenho como um dos mestres.” B. Negão

Essa prática foi muito intensa durante a primeira fase da carreira de Itamar Assumpção, que vai de 1981 a 85 e compreende o já citado Beleléu, Leléu, Eu e também os discos Às Próprias Custas S/A (1982) e Sampa Midnight – Isso Não Vai Ficar Assim (1985), obras-primas cuja experiência de audição só se completava no palco. “É um formato de obra criado por ele”, diz Tatit, que chama de “rock de breque” as músicas dessa época, entrecortadas por baixos desnorteantes e guitarras que se descabelam junto com falas de forte teatralidade. A banda Isca de Polícia, ele diz, é a antítese da Banda do Sargento Pimenta do quarteto mais famoso de Liverpool: música negra, de cabelo ruim, que “não transa parente” e passa longe de tudo que use uma farda. “Os breques e as frases instrumentais dialógicas sugeriam e ao mesmo tempo abortavam as respostas corporais da juventude dançante. Era rock até certo ponto... Jamais completamente. Pouca coisa em Itamar mostrava-se regular a ponto de justificar seus anseios de popularidade.” Ao contrário do que parece, no entanto, as músicas eram baseadas em acordes simples de violão e harmonias pouco complexas. “Ele tocava um violãozinho muito simples”, segue Tatit, “brincava que não gostava de pegar músicas muito difíceis pra cantar, com ‘esses acordes que parecem aranha’(risos). O Itamar é um grande exemplo do fato de que a formação musical não distingue o cancionista.” Paulo Lepetit, que foi baixista da Isca e trabalhou em quase todos os discos de Itamar, reforça a ideia: “Dificilmente uma música dele tem mais de quatro acordes. Com os arranjos, parecem que são composições complicadas, mas você vai tocar no violão e vê que são canções, mesmo. Ele tinha uma maneira muito própria de desenvolver a música, com essa característica dos arranjos”. Ele, o músico que trabalhou mais tempo com Itamar, lembra bem quão “próprio” era esse procedimento: “Quando alguém falava ‘vamos fazer aquela música?’ a gente brincava: ‘vamos, qual arranjo?’ ‘Ah, o 632 (risos)’”. Apesar de Itamar dizer, faceiro e com todas as letras, que queria “cantar na televisão” (“Prezadíssimos Ouvintes”, 1985), facilitar as coisas para o público certamente não era um de seus objetivos. “As pessoas ouviam uma coisa no disco e queriam aquilo, né? Um cara que faz sucesso no rádio dificilmente muda o arranjo de forma substancial, porque o público quer cantar junto, quer entender.” Às vezes, segue Lepetit, a coisa era explícita: “Chegava no show e alguém pedia uma música, que seria o nosso hit. Ele falava, ‘Ah, agora só porque você pediu nós não vamos tocar. Se você quiser, compra o disco e vai ouvir’ (risos). Quer dizer, era tudo pra dificultar o andamento da coisa.” A obsessão por fugir às expectativas era tanta que mais de uma vez, depois de shows catárticos, a banda exultante nos camarins recebia um balde de água fria de Itamar. “Ele entrava berrando ‘Minha música não é nada disso, vocês não entenderam nada!’”, lembra Suzana Salles, uma das vocalistas da Isca de Polícia. “Ele não queria soar parecido nem com ele mesmo”, completa Lepetit, sem segurar o riso. “E essa era só uma entre várias outras incoerências na vida dele. Mas em uma coisa ele foi sempre coerente: permanecer fiel a uma maneira de fazer música e não facilitar as coisas. Nisso ele foi até o final.” 26

Inicialmente, Rogério Velloso foi chamado pelo Itaú Cultural para fazer um especial de meia hora sobre Itamar Assumpção. Quase 150 horas de material depois, o trabalho de cinco dias se transformou no projeto de um ano. São 4 Terabytes de espaço em disco – 20 Gigas só de fotos – e quase 30 entrevistas. Com direção de Velloso, roteiro seu e de George Queiroz e produção de Carol Dantas, da Movie&Art, o documentário ainda sem nome sobre Itamar deve ficar pronto em janeiro de 2010. Entre as imagens a que tive acesso estão dezenas de shows nunca vistos, como um especial para a Globo que não foi ao ar, imagens de acervo da TV Cultura e a última apresentação do compositor, da qual ele saiu direto para uma maca. Como trilha sonora, além de músicas conhecidas figuram faixas já finalizadas da Caixa Preta. Uma das mais fortes, sem dúvida, é a belíssima “Devia Ser Proibido”, parceria com Alice Ruiz que Itamar gravou pouco antes de morrer e que, até o fechamento desta edição, a poetisa ainda não tinha ouvido. Mesmo com uma voz às vezes vacilante, que sai com extremo esforço, está ali uma versão ainda melhor do Itamar maduro dos últimos dez anos de carreira, eternizado na trilogia Bicho de 7 Cabeças (Baratos Afins, 1993) e nos álbuns Preto Brás (Atração Fonográfica, 1998) e Isso Vai Dar Repercussão (Elo Music, 2004, parceria com Naná Vasconcelos). Rogério Velloso explica que, quando recebeu o convite para dirigir o documentário, havia uma expectativa de fazer algo mais experimental, ligado à sua experiência em vídeo-arte. “Passei vários meses brigando com a forma, até que eu percebi que não tinha como fazer algo à altura dele, a não ser entrar na história mesmo.” A partir daí, o filme passou a ter um caráter investigativo. “Queríamos conhecer um Itamar mais íntimo possível, não o que ficou na história.

No fim, acho que a gente foi bem no íntimo mesmo, nas lembranças, na dor das pessoas. Circulamos muito pelas cozinhas, pelos quintais, e era como o Itamar chegava na casa dos outros. Se a cozinha estava desarrumada, ele arrumava a cozinha. Depois ia olhar as plantas. Isso na casa de quem fosse. Foi esse cara que fez essa obra tão revolucionária, tão particular.” Especialmente após a audição de suas músicas inéditas, é inevitável ceder à tentação de fazer um questionamento comum, ainda que tolo, diante da morte precoce de artistas tão talentosos: o que Itamar Assumpção estaria fazendo se estivesse vivo? Ouvir “Devia Ser Proibido” ou vê-lo puxando o erre suave e palatar característico em vídeos nunca lançados nos dá, ainda que por um momento, a sensação de poder espiar esse futuro condicional. Ainda que Tonho Penhasco, um dos guitarristas de Sampa Midnight, defenda que a obra de Itamar provavelmente não seria tão forte se ele fosse o tipo de artista que morre de velhice, uma frase de Arrigo Barnabé ainda ecoa na cabeça: “Ele mudava sempre os arranjos e as coisas ficavam melhores, melhores, melhores. Era incrível, poucas pessoas conseguem isso”. Em um texto de Pretobrás o mesmo Arrigo, autor de Missa In Memoriam Itamar Assumpção, define, em tom litúrgico: “Ele não recuou em nenhum momento. Vociferando como um louco, grinfando como uma cotovia, fera ou anjo, poeta ou profano, arrancou a coragem necessária para o (seu) sacrifício como um animal que rói a própria pata para se livrar da armadilha, pois ele sabia que esperar seria a escravidão e a morte.” O sentimento, estranho e contraditório, é de um saudosismo do futuro. Pensando bem, nada mais Itamar. 3

4banda isca de polÍcia em 1983 . por oscar bastos

2 Saiba mais Pretobrás, Ediouro, 2006 (2 Vol.) Na BOCA do BODE, AtritoArt, 2005. last.fm/music/Itamar+Assumpção baratosafins.com.br/itamar

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Paulo Monteiro & rodrigo andrade por tiago mesquita

o linear e o pictorico

rodrigo andrade

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4caragu谩, 贸leo sobre tela, 80x100cm, 2008 29


No ano passado, volumes dedicados às obras de Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade chegaram às livrarias. O livro sobre Monteiro acompanhou a primeira retrospectiva do artista, que aconteceu na Estação Pinacoteca, em São Paulo. Lá ele mostrou obras conhecidas e inéditas, tanto na idade como na linguagem. Andrade também aproveitou o lançamento para exibir seu filme Uma Noite no Escritório. Para quem começou em um período em que diziam não haver nada de novo sob o sol, é um baita feito. Os dois artistas vivem um período particularmente produtivo. Trabalham como nunca, desenvolvem novas formas de lidar com linguagens e se aventuram por novas manifestações da arte. Assim, além de recontar a história de sua obra, os livros indicam caminhos que eles estão trilhando agora. Hoje, a obra de um compartilha apenas algumas questões com a do outro. Apesar da origem comum, cada um tomou seu rumo, mas ambos lidam com uma forte presença da matéria, trabalham sobre um material viscoso e pesado. Além disso, o modo como tratam os elementos nos transmite a impressão de uma obra que, por mais abstrata, mantém características da figuração. Se em Monteiro isso parece guardar alguma relação com o desenho e a caricatura, em Andrade vem da definição espacial que suas formas, ao se relacionarem umas com as outras, realizam. 1

Geração 80

paulo monteiro

4sem título. óleo sobre tela, 50x40cm, 2008

Tudo que foi dito até agora ainda é pouco. O que os aproxima de fato é a origem e o sentido que deram a um tipo de arte que parecia condenar a renovação da linguagem: a pintura figurativa dos anos 80. Acredito que o modo peculiar como um e outro entenderam, encararam e responderam aos impasses de alguns artistas daquela época ajudou a definir os caminhos que seguiriam depois. Foi por se interessar em aspectos diferentes da pintura que seu trabalho se afastou de uma matriz neo-expressionista.

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Embora se dediquem a questões diversas, os dois se tornaram artistas na mesma época, no mesmo estúdio, trabalhando dentro da mesma linguagem. Isso sem contar que expuseram juntos mais de uma vez e, no início de carreira, era comum que o trabalho de um fosse associado ao do outro. Amigos de longa data, começaram desenhando quadrinhos. Na época de escola, publicavam seus desenhos na revista Papagaio (1977). O interesse pelo desenho os aproximou da arte contemporânea. Enquanto estudavam com o pintor Sérgio Fingermann, observavam obras clássicas e do século XX até a retina doer. À medida que olhavam, pensavam e articulavam suas próprias imagens, sua própria linguagem. Começaram a produzir seriamente no mesmo ateliê, a Casa Sete, onde dividiam o espaço com outros ótimos artistas: Fábio Miguez, Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos. Sobre papel craft, todos pintavam imagens um pouco cômicas e trágicas, partindo do esmalte sintético e passando a outras tintas.

A pintura neo-expressionista da época os influenciou, mas a influência maior era, como reforça Alberto Tassinari, a pintura refinada do canadense Philip Guston. O gosto pelo trabalho de Guston não é gratuito. Um dos artistas da passagem da arte moderna para a arte contemporânea, ele vinha do expressionismo abstrato da década de 50. Mais velho, se interessou pelos quadrinhos, por temas vulgares e rotineiros. Começou a figurá-los com traço caricatural e cor pesada, que muitas vezes dava aos corpos a aparência de carne esfolada, de matéria bruta e massuda. O modo de lidar com a matéria pegou os dois artistas paulistanos em cheio. Com esse tratamento da tinta em mente, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade abordavam temas da pintura alemã e americana dos anos 80. Ao contrário de teutos como Markus Lüpertz e Anselm Kiefer, no entanto, esvaziavam o conteúdo simbólico das imagens e transformavam as figuras em objetos pesados, feitos com pinceladas carregadas de tinta e pouca uniformidade. A pintura de Kiefer lidava com um aspecto oculto nos símbolos pictóricos e históricos de um país recém-saído do nazismo. Sua obra traz à tona sentidos que aquelas imagens cívicas e míticas queriam carregar para o túmulo. Responde com gestos violentos e intensos a uma violência cultural silenciosa. Do mesmo modo, a arte dos norte-americanos tem muito de resposta histórica. Julian Schnabel, David Salle e Jean Michel Basquiat eram associados a uma estética descompromissada, preocupada com certa espontaneidade e leveza, supostamente deixadas de lado pelos artistas do minimalismo e da

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Trabalhando no grau zero da teologia, nenhum dos artistas revela mistérios escamoteados. Preferem aproveitar a densidade de cor e de matéria para desfazer a imagem e estabelecer outras relações entre os materiais. Incrível como um e outro desenvolveram maneiras tão distintas de lidar com a imagem e nos contar coisas a partir de uma relação tão pouco discursiva.

4pintura para peixes, óleo sobre aquário de vidro, água e peixes, 2008

A questão do tema, bem como a concepção da arte como experiência de revelação, passa longe dos dois artistas. Na verdade, ao longo de sua trajetória, de maneiras diferentes, a figura (em Paulo Monteiro) e o gênero (em Rodrigo Andrade) parecem se diluir a cada passo. Paulo Monteiro se concentra no gesto como tentativa de conformar uma massa de chumbo, uma mancha difusa de cor ou mesmo um espaço em branco do papel. Se existe um tema, é a possibilidade de o gesto artístico conformar uma massa. Já a trajetória de Rodrigo Andrade é mais cheia de idas e vindas. Como Monteiro, ele também trabalha em uma zona cinzenta entre a figuração e a abstração. Porém, ao contrário dele, que procura mostrar o caráter resistente da matéria, Andrade retira a definição linear dos espaços. O desenho desaparece, e o espaço da tela torna-se lugar para manifestação de formas regulares de luminosidade.

“Ser artista é falhar, como ninguém ousou falhar. O fracasso é o seu mundo e recuar diante dele é deserção [...] incapaz de agir, obrigado a agir, ele gera um ato expressivo, mesmo que apenas de si mesmo, de sua impossibilidade e de sua obrigatoriedade.” Samuel Beckett

rodrigo andrade

arte conceitual. Os trabalhos de Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade não se preocupam nem com o lado oculto dos símbolos e nem pretendem ser uma resposta histórica ao minimalismo. Embora ambos tenham sofrido a influência de Kiefer, Schnabel e Lüpertz, sua pintura não busca ser um veículo para a revelação. O que os interessava naqueles pintores era o acabamento, o modo de usar as cores, que lembra um uso de adjetivos exagerados e uma certa figuração caricata e deformada. Além disso, eles também se interessavam pelo tratamento tátil da tinta, a camada espessa de cor que vinha sobre a tela.

Paulo Monteiro: Errante

Aquelas formas molengas, em vez de se desfazerem ou desabarem com o gesto, agora estabelecem relações de equilíbrio. É como se o artista cortasse a peça de argila e a torcesse no limite. Acredito que esses gestos e manchas desencontradas revelam muito de uma reflexão do ofício de quem figura, de quem tenta encontrar uma forma idealizada em um material que nem sempre é simpático. Por isso o trabalho tem algo de cômico, de uma forma que não consegue se completar, se desfaz e se torna algo diferente do que o artista havia planejado. O procedimento de Paulo Monteiro tem algo de errante, nos dois sentidos que a palavra pode ter. Por um lado, tenta procurar uma forma desenhada, apesar de não saber perfeitamente onde ela está. Mas é errante também no aspecto do erro. O artista parece não acertar a mão, finge que seu gesto não dá conta da configuração que ele quer dar ao material. Pura cascata, pois é aí que ele acerta. Não sei se alguém me sugeriu isso, mas quando vi a exposição retrospectiva de Paulo Monteiro lembrei da descrição que Samuel Beckett fez da pintura de Bram Van Velde: “Ser artista é falhar, como ninguém ousou falhar. O fracasso é o seu mundo e recuar diante dele é deserção [...] incapaz de agir, obrigado a agir, ele gera um ato expressivo, mesmo que apenas de si mesmo, de sua impossibilidade e de sua obrigatoriedade.” 32

4paulo monteiro e rodrigo andrade

O artista desenha sempre a partir das margens. Mas o branco, corrosivo, aparece com uma força gigantesca, que empurra os traços para a borda. O curioso é que, muitas vezes, o traçado insinua formas reconhecíveis: fragmentos do corpo humano, um homem a desenhar. Eles nunca aparecem inteiros, mas como uma tentativa de insinuar forma em uma natureza que não quer ser reconhecível. Os desenhos parecem buscar a síntese do traçado de Matisse, com a diferença de que o que eles contornam não é algo plano e estável, mas um branco luminoso, que nas curvas dos traços nos ilude e sugere um volume que quebra a linha. Dessa forma, sua poética fala de uma tentativa que sempre tem algo de falha, da forma que nunca se encontra na matéria. Diante de tal consciência, o artista começou a sugerir relações de equilíbrio nessas massas fugidias. Nas esculturas feitas a partir de 2000, a poética deixou de falar só do gesto, mas tratou de relações mais compositivas que o artista estabeleceu com seus volumes.

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paulo monteiro

4sem título. óleo sobre tela, 160x179,5cm, 1999 e Sem título. chumbo, 44x44x27cm, 2000 Acredito que essa dificuldade de moldar algo seja fundamental na explicação de seu trabalho, tal como um personagem de Beckett fala em Worstward Ho (1983): “Tentem de novo, falhem de novo, falhem melhor”. Diante de uma vida que se mostra tão arisca, Monteiro encontra um jeito de fazer com que a linha dê sentido ao que nos escapa.

Rodrigo Andrade: Ilusão e Alucinação Em mais de uma oportunidade, ouvi de Rodrigo Andrade ou de Paulo Monteiro que ambos tinham temperamentos artísticos muito diferentes de quando começaram a desenhar. Monteiro desenhava caricaturas, com um traço influenciado pelos grandes nomes do humor. Rodrigo Andrade sempre teve mais facilidade para o traço realista. Isso aconteceu faz muito tempo, mas parece um bom esteio para diferenciar a obra dos dois. Enquanto Monteiro tenta descrever o material e lhe atribuir característica, além de preferir um formato satírico, Andrade parece fazer um esforço da busca da verossimilhança. Mas como falar de verossimilhança quando se trata de um artista que pinta pastilhas de cor tão naturais como a bala Chita? Existe um conflito doutrinário na história da arte que tem mais de mil anos de idade. Ele coloca de um lado artistas que unificam sua cena pela linha e de outro artistas que unificam sua obra pela cor. Os artistas do desenho são vistos como racionalistas e os da mancha, ligados à percepção dos sentidos. Os primeiros são chamados de lineares, os segundos, de pictóricos. A conversa veio de longe e animou boa parte da produção moderna. Em grande medida, a oposição mais simplória entre artistas concretos e neoconcretos passa por esse embate. No caso do trabalho de Rodrigo Andrade, tanto a linha como a mancha são da maior importância. Mas, se Paulo Monteiro tratou do gesto de conformar a matéria como um assunto, falando mais de linha, ou da possibilidade de a linha conformar a matéria, o trabalho de Andrade parece tirar as determinações da linha do espaço e fazer com que o percebamos a partir da junção de formas regulares de cor. Nos últimos dez anos, ele simplificou os elementos de sua pintura, diminuiu o número de cores e passou a trabalhar com formas bastante simples. Mas, pela relação que ele estabelece com as outras formas, logo entendemos o que Andrade quer dizer. Em uma linda pintura de 1998, você não vê o cômodo pela sua arquitetura, mas pela relação que manchas regulares estabelecem entre si. Trata-se de uma mesa preta diante de dois retângulos, que parecem se abrir para fora de uma sala que não é lugar nenhum. Mas não há luz e nem algo que marque uma particularidade do lugar, só a relação entre formas mais superficiais e outras que sugerem a tridimensionalidade. De 1995 a 1998, os lugares onde acontecem a figuração tornaram-se cada vez mais indefinidos. Nessa época, ele fez pinturas quase monocromáticas inspiradas nas gravuras de Oswaldo Goeldi. A escuridão, típica da obra goeldiana, se revelava como um breu, onde não percebíamos os limites visuais dos lugares. Apreendíamos a singularidade dos corpos do modo como um cego faz, pela tatilidade das formas, moldadas cuidadosamente pelo pincel. A pintura raleou um pouco, mas os lugares se tornaram ainda mais indeterminados. No fim da década de 90, aqueles interiores se tornaram espaços vazios. Alguns pareciam cômodos que acabaram de receber a mudança. Um lugar onde moram caixas fechadas e móveis que não sabem onde vão ficar. É importante lembrar que esse tema sempre foi um dos preferidos de Andrade. Em 1985, ele fez quartos vazios, bagunçados com uma paleta gustoniana. Certamente alguns dos melhores trabalhos que a chamada Geração 80 realizou. Mas os espaços não perdiam apenas a ordem. Pouco a pouco, as paredes deixam de ter cantos, o chão e o teto desaparecem. O que antes sugeria um espaço arquitetônico agora é apenas o intervalo entre formas volumosas que sugerem alguma relação de anterioridade e posterioridade diante da cor. rodrigo andrade

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4frame do filme uma noite no escritório, 2007 e sem título, óleo sobre tela, 190x240cm, 1992.

Eis que, em 1999, o procedimento se torna anônimo. O artista tem a ideia de eliminar o fundo colorido e aplicar formas previamente determinadas na tela branca. Agora, as formas são sobrepostas, justapostas com distâncias diferentes. Alguns retângulos coloridos são mais espessos que os outros. Quem olha essas pinturas inevitavelmente estabelece relações entre as formas, dadas pelas cores, pelo tamanho e formato de cada catoto de tinta. Andrade por vezes, através de formas tão artificiais, sugere um intervalo na tela – abstrato, mas que faz com que percebamos profundidade. Como bem descreveu Taísa Palhares: “O procedimento, que segue uma regra comum básica, torna-se infinitamente diversificado, na medida em que nunca sabemos como cores, por vezes tão alheias entre si, reagirão lado a lado”. Em 2000, o artista resolveu ampliar essas relações e inserir os seus retângulos direto no espaço comum. A primeira intervenção foi no corredor do MAM/SP. No ano seguinte, foi a vez do contaminadíssimo Lanches Alvorada, bar perto da estação Santa Cecília do metrô. Em vez de estabelecermos relações entre as cores em um espaço neutro, como o da tela, aqui a tinta se relacionava com tudo ao redor. Mais que isso, conseguia, assim como o artista fez quando geometrizou suas formas em interiores, diluir algo do significado da televisão, dos azulejos e da tabela de preço e fazer com que tudo o que estava na parede se relacionasse com os quatro quadriláteros de tinta. Um movimento duplo se instalava: os objetos ganhavam o mesmo valor da “pintura”, e a arte se tornava mais um freguês a circular pelo recinto popular do centro da cidade. Quando decidíamos comparar um objeto ao outro, suspendíamos o sentido funcional dos cacarecos do bar, ou o aspecto meio autista das grossas camadas de tinta. Andrade retirava o sentido utilitário das coisas. Tudo passou a ser relativo. Embora o espaço do bar não fosse redefinido, as relações entre os seus objetos já não era tão óbvia. Como em um botequim qualquer, tudo se relacionava com tudo e criava relações entre quem passava. Esse tipo de relação tinha algo de ilusório. Os objetos não se tornavam parte de uma obra de arte, mas acredito que é dessa diluição entre os elementos que o trabalho de Andrade fala. Curiosamente, no filme Uma Noite no Escritório (2007), essas relações de uma cor com outra e delas com as coisas não-artísticas é apresentada como uma alucinação, ou melhor, como o resultado de “moléstias nervosas”. Cansado, o artista, na pele de Sr. Wilson, enxerga manchas por todos os lados, que perturbam sua relação com as coisas. No filme, tive a impressão de que o personagem central vive aquele sonho da razão de Goya, que “produz monstros”. Porém as formas não são parte desse sonho, mas um momento em que essa racionalidade instrumental, de cumprir tarefas, de viver por demanda, relaxa e nós podemos estabelecer as relações que quisermos com as coisas que quisermos. 3

2saiba mais cosacnaify.com.br 35


História Oral do Hardcore de Buenos Aires Por Arthur Dantas . Imagens arquivo Julian Vadala

4 Julian Vadala, autor de Historia Del Bs As Hardcore

Botinada! A Origem do Punk no Brasil e Guidable – A Verdadeira História do Ratos de Porão têm em comum, além de resgatar a história do punk no país, o fato de serem dirigidos por pessoas exteriores ao movimento. No caso de documentos escritos, a impressão transmitida por pessoas envolvidas com o assunto, ainda mais no caso de uma subcultura tão específica, tem uma característica distinta: um certo vigor e tenacidade próprios de quem participou. Esse é o maior mérito do livro Historias Del Buenos Aires Hardcore, de Julian Vadala, 33, ex-editor do ótimo zine Tiempo de Cambio e um dos líderes da cena straight edge portenha dos anos 90. Vadala, que foi vocalista do seminal XautocontrolX – grupo influenciado por bandas como Snapcase, Worlds Collide, Turning Point e Quicksand –, hoje é um raggaman fumeta que, apesar disso, crê na importância do hardcore como instrumento de transformação. 1

Lançado em 2009 na Argentina, Historias Del Buenos Aires Hardcore é um trabalho um tanto amador no rigor histórico e no poder de análise, mas um exemplo emblemático do próprio assunto retratado. Emulando a sonoridade do hardcore nova-iorquino dos anos 90, bandas como Diferentes Actitudes Juveniles (DAJ) e No Demuestra Interes (NDI) alcançaram algo que a cena brasileira do mesmo período não conseguiu: cativar plateias que já não cabiam em inferninhos para 200 pessoas. Através da voz dos protagonistas, podemos tomar contato com seu cotidiano adolescente, suas frustrações, as motivações pessoais para entrar no hardcore, as dificuldades e as conquistas de uma cena unida e atuante. O livro é um verdadeiro antídoto para a juventude que identifica no consumo de roupas descoladas um termômetro para medir atitude. Confira um bate-papo com o autor.

4 Público no show do Buscando Otra Diversion, em 1992. Por que você resolveu escrever o livro? Quando meu zine acabou, em 2000, eu queria reunir o melhor de 16 edições em um número especial. A ideia inicial foi amadurecendo até se transformar no livro. Ninguém havia feito isso, e eu tinha muito material de arquivo do zine e todos os contatos também – só faltava dinheiro para imprimir. Comecei a procurar patrocinadores e ajuda de pessoas para que o projeto se tornasse realidade. Quatro anos depois, temos o primeiro livro sobre HC em espanhol e o primeiro sobre a cena de Buenos Aires. A cena hardcore argentina tem alguma característica que a torne diferente das outras? Acredito que tenha uma personalidade especial, que se deve principalmente ao fato de muito pouca gente entender inglês na época e de a cena ter crescido em torno de bandas que cito no início do livro (DAJ, BOD, EDO, NDI). Foram elas que influenciaram a cena, e não importava muito o que acontecia nos EUA ou na Europa. Falávamos de temas próprios, sobre atualidades nacionais, e tínhamos um som próprio. Em geral, hardcore/punk é uma música politicamente esquerdista. É impressão minha ou na Argentina havia bandas abertamente de direita? Sim, é verdade, ainda que não se assumissem como tal, seja porque não tinham ideias muito claras ou porque não eram politizadas. Mas no geral havia muita gente com valores tradicionalistas, e no início havia muita confusão, influência dos skinheads de direita. Quais eram os temas dessas primeiras bandas do hardcore argentino? A questão principal era que o país passava por

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uma transição, vivíamos em uma democracia havia menos de 10 anos, tínhamos o nefasto governo Menem, quando entraram as políticas neoliberais, as privatizações, a destruição de todos os valores da sociedade argentina, e nos queriam fazer acreditar que éramos “primeiro mundo”. O custo para isso era vender o Estado, negociar nossos recursos naturais, enfim, destruir o país em certa medida. Até 96, o hardcore foi muito grande em Buenos Aires. Com exceção do Fun People (a maior banda punk/hardcore do continente no período), que continuou grande até 99, a cena encolheu. O que aconteceu? Não sei dizer. Houve uma mudança de geração, o pessoal que começou no início dos anos 90 aos 15 anos começou a formar família e a emigrar no fim da década, por questões econômicas. Isso fez com que bandas desaparecessem. As novas gerações não tinham a mesma vontade da anterior, tudo estava desvirtuado. A banda argentina dos anos 90 mais conhecida no Brasil foi o Fun People, que também foi muito grande na Argentina, no Uruguai e no Chile. Por que não há referência ao grupo no seu livro? Houve gente que quis colaborar com o livro e gente que não. Os que não apareceram é porque não tiveram interesse no projeto. Da minha parte, fiquei anos buscando informação e convocando gente para que participasse. Cada um dos que não apareceram tem seus motivos e, ainda que eu não os entenda, respeito essa decisão. No geral, a maioria das bandas e pessoas que procurei tiveram muito boa vontade e se mostraram contentes em participar. No caso específico do Nekro (ex-vocalista/letrista do Fun People, atual 37


4 XautocontrolX, com Vadala à frente, em show de retorno em 2008.

hardcore. Não posso ter a arrogância de acreditar que o meu ponto de vista sobre o hardcore seja o único que vale, mas os comentários que venho recebendo me dão motivo para acreditar que a cena BAHC tinha uma forte influência do straight edge das antigas, e com os anos foi deixando de lado a parte militante para ser algo menos estrito.

transcendeu o passar dos anos é porque houve gente com uma “atitude mental positiva” (referência à música “PMA”, dos Bad Brains).

Boom Boom Kid), ele me pediu para que não o mencionasse, nem à sua banda, que retirasse as fotos. Você imagina o porquê dessa recusa tão forte? Ele me disse que não se sentia parte do movimento BAHC. Tenho boa relação com o Nekro há muitos anos, ele me ajudou no começo do XautocontrolX. Se decidiu não participar, preferi não pressionar. Outros não se recusaram de forma tão firme, mas enrolaram tanto que senti falta de interesse no projeto. Você conheceu a cena hardcore de São Paulo daquele período, sobretudo straight edge. A cena a de Buenos Aires foi muito mais expressiva que a de São Paulo. Quais as principais diferenças entre as duas para você? Como disse antes, a cena portenha tinha muita personalidade. Todas as bandas cantavam em espanhol, sobre temas atuais. São Paulo estava mais ligada a cenas estrangeiras: os nomes das bandas eram em inglês, as letras também, tudo dependia muito do que acontecia nos Estados Unidos e na Europa. Claro, aqui havia uma grande influência do HC NY, mas muito pouca gente queria ser exatamente como as pessoas de lá, a maioria estava preocupada em ser BAHC. Em poucas palavras, o que seria o espírito BAHC? É difícil resumir, mas o principal era esse sentimento de amizade e unidade entre as diversas tribos. Ainda que a cena não fosse muito politizada, havia aspectos políticos de fundo, protesto, inconformidade, um sentimento de estar fora da sociedade. O tempo passou e posso estar idealizando um pouco, porque também havia competição, inveja e brigas, mas, em geral, se aquilo tudo

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“...a cena portenha tinha muita personalidade. Todas as bandas cantavam em espanhol, sobre temas atuais. Sao Paulo estava mais ligada a cenas estrangeiras: os nomes das bandas eram em inglês, as letras também, tudo dependia muito do que acontecia nos Estados Unidos e na Europa”

Atualmente você está ligado mais ao reggae/ dub portenho. O que de melhor e pior você aprendeu com o hardcore? Na verdade tenho um projeto reggae/ragga desde 2004, Kaya Dub Sistema, mas não me sinto parte da cena reggae. Sigo me movimentando de forma independente e underground. Aqui o reggae é um estilo 100% comercial e mainstream. Me considero um “HC raggamuffin”, já que continuo fazendo as mesmas coisas da época em que cantava HC, só que agora meu estilo musical é mais influenciado pela música jamaicana. O livro é uma espécie de relato autobiográfico de um período da sua vida e tem um ponto de vista estritamente straight edge, não? Sim, pode-se dizer que é uma história da cena contada em primeira pessoa. Também dei espaço para que amigos contassem suas histórias. É como um grande papo entre amigos, de como nos envolvemos com o

2Saiba Mais www.myspace.com/concienciaydisciplina www.myspace.com/buenosaireshardcore

Seis discos fundamentais para entender o BAHC 4 Diferentes Actitudes Juveniles em show de retorno, em 2004.

4 No Demuestra Interes, em 1992.

As ultimas edições do Tiempo de Cambio eram muito amargas, desiludidas. O que contribuiu para que o XautocontrolX acabasse? Você ganhou ou perdeu mais em dedicar tanto tempo ao hardcore? Sim, é verdade, nos últimos anos eu estava desiludido com a cena hardcore, me sentia um Dom Quixote brigando com moinhos de vento. XautocontrolX terminou porque não encontrávamos músicos com quem tivéssemos empatia e eu estava cansado de fazer tudo, já que o resto da banda não fazia nada. Acredito que minha experiência no straight edge foi boa, mas não por ser um straight edge, e sim porque na raiz disso tudo estavam a força e a convicção que me fizeram realizar muitas coisas positivas, que deixaram sua marca no tempo. 3

“Sim, é verdade, nos últimos anos eu estava desiludido com a cena hardcore, me sentia um Dom Quixote brigando com moinhos de vento.”

por Julian Vadala

Coletânea Mentes Abiertas (1992) Realidade Virtual, do Diferente Actitudes Juveniles (1993) Extremo Sur, do No Demuestras Interes (1992) Pura Adrenalina, do BOD (1992) Coletânea HC Asunto Nuestro (1994) Coletânea Nuevas Generaciones (1995) 39


Por Flávio Grão imagens de obras divulgação

Como você iniciou sua história com o desenho? Fale sobre sua formação, a passagem para os muros e depois para o estêncil. Como toda criança, eu desenhava. Minha mãe era professora e tinha muitos livros infantis com ilustrações. Essa com certeza foi minha primeira referência. Mas só fui me preocupar de verdade no início da década de 90, quando frequentava a pista de São Bernardo. Ela era toda pintada, graffiti, estêncil, pichação. Eu pirava nisso tudo! Tinha dias que colava lá só pra ficar observando os desenhos, tentando entender um pouco daquilo, pra chegar em casa e tentar descarregar no papel. Mas os quadrinhos eram mais fáceis de consultar, sempre podia abrir uma página, observar um desenho e aprender. Nesse período, o que eu mais curtia eram os quadrinhos alternativos, tipo Chiclete com Banana – eram mais baratos e reuniam vários artistas: desenhos do Luiz Gustavo, Marcatti, xilos do Rubem Grilo, além das histórias do Angeli. Mais ou menos em

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lim é apatia. Sobre a com a arte de Daniel Me bin com não e qu a avr Se há uma pal lodem, questionadoras, ortes, suas imagens exp sup ou itura ros mu s do as tur as tex trabalho de resgate e rele tais e marcantes em um de a list pau se des e art sustentadas por cores bru A il. da arte urbana: o estênc ia para de uma técnica esquecida de dos muros da perifer lida ura nat com ta nsi tra o mp um Ca e do olv env rdo rna des Be lim São so, Me geiras e museus. Além dis natal. ade cid sua de galerias nacionais, estran ia ifer ial no Jardim Limpão, per cias interessante projeto soc ideais, técnicas e influên fala sobre suas origens, do ista tas art o alis , dic ista sin rev os ent ent sta vim Ne rock nacional aos mo nk pu do vão e qu es, surpreendent pelo skate. 1 ABC paulista, passando

95, comecei a pichar, talvez para ter contato com spray ou simplesmente me comunicar. Foi minha primeira forma ativa de expressão. Comecei a fazer parte de gangue, e com isso veio tudo de bom e ruim envolvido: amizades, rolês, brigas, confusão. Por uma série de acontecimentos, e por começar a dominar mais a técnica com spray, me afastei da pichação e comecei a me aproximar do graffiti. O primeiro trabalho foi na pista de skate: o nome da gangue. Isso representou a passagem de uma fase. Depois, comecei a trabalhar em metalúrgica e já não tinha tanto tempo pro desenho. Esse período era trabalho, bar e casa. No máximo um desenho zoando alguém no guardanapo ou no papel que forrava as mesas (risos). Um dia, colou um cara que fazia uns rabiscos aqui na vila (Ferrazópolis), o Maionese (Rodrigo Souto). Ele literalmente me

Gosto do tirou do bar pra mostrar trampos de graffiti e aspecto uns revistas como a Fiz (editada irônico do pelOSGEMEOS). Na mesma hora eu pirei! Aí comecei a estêncil, de ter acesso a varias formas de street art e pintar na rua poder retir ar de verdade. O Maionese me ajudou muito nisso, ele já imagens de manjava de fazer um traço comerciais mais fino. Na época não existia material igual a hoje, e dar outr pinos de spray com várias o espessuras, importados etc. sentido a Pra fazer traço fino tinha que entupir bico ou inventar outro elas. jeito. Os primeiros graffitis eram todos à mão livre, com poucos detalhes em estêncil. Mas eu não achava uma identidade legal no trabalho, até que resolvi resgatar a técnica do estêncil. Não se viam mais tantos trabalhos com estêncil naquela época. Comecei a fazer as máscaras de forma precária mesmo, experimentando. Tentativa, acerto e erro. Foi meio assim que parti pro estêncil. Quais são suas influências em termos de ilustração? Curto muita coisa: ilustração comercial da década de 50, quadrinhos, capas de LPs, clichês. Na adolescência lia muito quadrinhos alternativos, curto o aspecto sujo desses gibis. Seu trabalho carrega uma carga política forte. Essa postura surgiu como? Quando moleque, fui com minha mãe a uma greve dos professores, vi toda aquela movimentação. Adolescente, trampei em metalúrgica e peguei resquícios de toda articulação trabalhista que existia, chegando a fazer desenhos pra panfletos e informativos de greve. Isso é uma coisa meio impregnada no ABC Paulista, a cidade meio que estampa toda essa desigualdade. Depois fui ministrar oficinas em projetos sociais (em Heliópolis e Mauá). Acredito que tudo isso serviu pra minha formação social. Isso naturalmente passou para os trabalhos e também é minha forma de gritar. 41


Além das artes gráficas, que outros meios influenciam seu trabalho (esporte, música, etc.)? Andei de skate e BMX um bom período e foi uma influência forte também, não só como esporte, mas como estilo de vida. A cultura do skate envolve uma diversidade de expressões: música, moda, pensamento etc. Mesmo não andando mais, sempre procuro me informar sobre o que está rolando. Música também é uma coisa que carrego comigo. Ouço bastante coisa, mas o que vira e mexe tô ouvindo é o punk rock nacional. É o que mais curto ouvir quando vou pintar. É interessante observar que seu trabalho está presente em meios diferentes e até antagônicos – nos muros da periferia, em galerias e museus. O que você pensa sobre a atuação de sua arte em cada um desses lugares? Legal essa observação. Acredito que, quanto mais eu puder pulverizar minha ideia e expressão, melhor. Penso em ocupar os lugares. Lógico que cada um tem sua especificidade, e isso influencia na leitura e construção do trabalho. Mas acho que devemos e temos o direito de usar esses diferentes lugares como instrumentos para expressão, ou vamos continuar vendo as mesmas pessoas usarem eles. Não falo só de ocupar galerias e museus, mas espaços públicos – não esperar representantes, políticos (não acredito em representação, principalmente política). Gosto de estar nos lugares, fazendo e tentando apresentar meu ponto de vista, minha opinião expressada através da pintura. Normalmente o tema é o mesmo na rua ou na tela. A rua pede uma forma de postura e ação, tem toda uma pressão psicológica na cabeça quando estou pintando – muitas vezes o local não é autorizado, nem todos compreendem o que estou fazendo ou a mensagem. Isso influencia de alguma forma o resultado do trabalho. A busca pelo local é outro ponto: procuro lugares destruídos, que forneçam algum tipo de textura ou informação que posso agregar ao estêncil. Como você escolhe os motivos dos seus trabalhos? Como é seu processo de criação? Gosto do aspecto irônico do estêncil, de poder retirar imagens de comerciais e dar outro sentido a elas. Uso várias ferramentas para construir os motivos, desde apropriação de imagens até a criação autoral do desenho, montagem na mesa de luz, colagem. Vou unindo diversas técnicas para chegar ao desenho que eu quero. Além do estêncil, você aprecia e utiliza outras técnicas e suportes? Curto impressão (xilo, silk, monotipia etc). Nem sempre as utilizo no meu trabalho, mas são fontes constantes de pesquisa, principalmente na textura – a ideia da impressão falhada, desgastada ou fora de registro. Com essa pesquisa de textura, também uso suportes que já forneçam alguma informação do tipo, como chapas de aço, madeira, placas, coisas que sempre vejo jogadas nas ruas. Fale um pouco sobre o projeto do Jardim Limpão. Ele surgiu de uma ideia simples: trabalhar com intervenção urbana junto às comunidades (Jd. Limpão e Jd. Regina, em São Bernardo). Tentamos levar outras referências, sensibilizando os moradores através do graffiti. Quisemos fugir da ideia hipócrita de deixar a favela “mais bonita”, mas procurando talvez humanizar seus becos e vielas espremidos. O Jd. Limpão ficou conhecido porque era onde morava o assassino do fotógrafo Luiz Antônio da Costa. Ele cobria uma invasão do MST no terreno da Volkswagen, em 2003, e registrou um assalto no posto em frente. Os assaltantes perceberam e o executaram. Esse projeto é realizado de forma independente, contando apenas com o apoio da própria comunidade, em especial o Fabio Mendonça e o Vanderlei Viana (Capoeira Angoleiros Sim Sinhô). Ambos vêm desenvolvendo treinos de capoeira angola pra comunidade. Na primeira vez em que eu pintei, colou muita gente pra ver, principalmente molecada. Aí percebi que poderia trabalhar com as crianças, meio no esquema de workshop, fazendo o trabalho e eles me ajudando. Passo esquemas de como usar o spray, a tinta, pergunto sobre o que fazermos e assim vai. 42

Além da produção dos trabalhos junto com a comunidade, venho registrando o cotidiano local e capturando momentos da vida dos moradores em geral. Assim como diversas favelas espalhadas pelo Brasil, o Jardim Limpão e Jardim Regina são marcados pelo tráfico intenso e atos de violência. Mas a ideia do

registro ou do projeto não é mostrar as vidas na comunidade de forma sensacionalista ou estereotipada, mas apresentar o cidadão comum, que se esforça pra sobreviver nesses quilombos modernos com pouco mais de R$ 300 por mês, tendo pouco acesso a qualquer instrumento público (saúde, escola, lazer, transporte etc). A experiência do projeto e a troca de ideias com moradores possibilitaram a reflexão sobre a organização da comunidade, sem ajuda de políticos ou algo do gênero, via ação direta dos moradores para melhoria do convívio local. Acredito ser esse o principal resultado do projeto até agora. Mas penso que podemos oferecer mais. 3

2saiba mais flickr.com/photos/melim_abc choquecultural.com.br/blogs/danielmelim

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saia

A cidade de ponta-cabeça e a mulher de pernas pro ar. O corpo, estático e invertido, tranfigura-se num ser novo, estranho ao espaço. Ao se relacionar com a cidade por outra perspectiva, cria paisagens temporárias. Árvores humanas, plantando ilusões no concreto.

Projeto Patrícia Araujo e Clarice Lima fotos por Patrícia Araujo . performer . clarice lima

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Acertando as Contas Entrevista com Felipe Motta aka Mottilaa Por Tiago Moraes

4Felipe MOTTA iNCORPORANDO CARA DE CAVALO 52

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“Até hoje tento sempre fazer um shape tão inspirado quanto o primeiro que fiz. Por mais que pareça clichê, essa primeira série me mostrou que aquele sonho de moleque meio improvável poderia rolar. “

H

Motta, conta pra mim, quando foi que você pegou num pincel pela primeira vez? (Risos) Na primeira vez que fui fazer xixi sozinho! Agora, sério, eu tenho um quadrinho na casa dos meus pais que fiz em 84, com 6 anos. Entre um monte de profissões, meu pai se formou em arquitetura e, apesar de não ter seguido profissionalmente a carreira de artista, pintava uns quadros quando tinha a idade que eu tenho agora. E ele sempre me incentivou muito a desenhar, esse primeiro quadrinho que eu fiz ele tava do meu lado, me ensinando como mexer com aquarela. E [quando se é] criança, além de pegar as coisas rápido, esses acontecimentos marcam muito. Lembro desse momento como se fosse hoje, é muito louco!

á mais ou menos dez anos, época em que dedicava cem por cento do meu tempo ao skate – seja dando meus grinds por aí ou tocando a Agacê, marca que criei em 1997 junto com três amigos de infância –, resolvi criar e divulgar o projeto Portfolio, com o intuito de revelar jovens talentos do universo do skate e posteriormente desenvolver projetos colaborativos.

Mesmo que no mercado de skate seu traço seja facilmente reconhecido em shapes, camisetas, anúncios e outros trabalhos comerciais, muitos ainda não tiveram o prazer de conhecer seu trabalho autoral, que Mottilaa compulsivamente põe para fora em seus caderninhos para depois transportar para telas, muros, banheiros e qualquer outro suporte que tiver coragem suficiente de aparecer na sua frente. Como amigo e fã de carteirinha, sempre incentivei o seu lado autoral, e talvez seja por isso que, mesmo com vontade de entrevistá-lo desde a primeira edição, tenha esperado o momento ideal para bater esse papo com o figura. E foi no meio da reta final de produção para a sua primeira individual – que acontecerá no fim de outubro no Espaço +Soma – que decidi ser a hora de finalmente acertar minhas contas com ele. 1 54

Você era um daqueles moleques que ficava na sala de aula fazendo caricaturas de todo mundo, dos amigos, do professor? Era uma desgraça, cara! Tomei bomba duas vezes na escola e sinceramente nem sei como não repeti mais, me passavam de ano! E eu não era um aluno burro, até porque quando sentava pra estudar tirava até uns 10, mas tava mais preocupado em desenhar como se não houvesse amanhã! Mais tarde, no terceiro ano, antes de entrar pra faculdade, na sala de aula tinha dois murais, o da esquerda e o da direita. E o da esquerda era meu! (Risos) No fim do ano, tinha umas setenta caricaturas e charges de coisas que rolavam na sala de aula! Eu chegava do recreio e tinha gente de outras turmas vendo, às vezes até visitante de fora do colégio!

4Maximo de Cusco . acrílica sobre madeira MDF recortada . 2009

Se Billy Argel criou praticamente sozinho toda a estética do skate nos anos 80, Motta é sem sombra de dúvida o maior nome que surgiu no universo de arte de skate desde o final da década de 90 até os dias de hoje, em um mercado em que, salvo raras exceções, ainda prevalece a falta de identidade, de originalidade e de cultura de investimento em arte e conceitos originais.

4La hojita de coca no és droguita . acrílica sobre madeira MDF recortada . 2009

E foi entre quase uma centena de cartas e telefonemas recebidos durante o período da promoção que o traço de um garoto carioca impregnado de humor e sarcasmo acabou me chamando a atenção. Foi dessa forma que conheci Felipe Motta e a partir daí, de 1999 a 2004, fizemos dezenas de trabalhos juntos e viramos grandes amigos.

Fala um pouco das tuas influências (e más influências). Eu geralmente não curto focar em fulano, cicrano, mas tem algumas pessoas que me influenciaram e influenciam muito. Meu pai sempre esteve lá, me deu apoio, até hoje quando vou pra casa dos meus pais pintar no terraço do sobrado ele não reclama quando eu cago tudo! (Risos) O Bruno Shulyba, amigo de infância, desenhava comigo desde criança e, apesar de não ter seguido carreira, desenhava demais, tinha um traço animal. O [Don] Torelly é um grande amigo e uma inspiração até hoje, passo mal com ele. Já o Billy Argel me mostrou que shape brasileiro podia ser lindo também. Tem o Evan Hecox, que é foda também, sei lá… tem vários! Como (e quando) você se envolveu com o skate, e que estrago isso fez na sua vida daí em diante? (Risos) Ganhei o meu primeiro skate com uns 10 anos. Essa história acabou 55


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Agenor, o rei da bocha . Acrílica e Spray sobre madeira . 2007

4Los dos hermanos . Acrílica sobre fotografia . 2007 4OZZY JR . Acrílica e Spray sobre madeira . 2007

Você também tem um trabalho forte com o rap carioca e já emprestou seu traço a vários artistas da cena, como De Leve, A Filial, BNegão e Marcelo D2, não necessariamente nessa ordem. Como rolaram essas parcerias? Tudo amigo! O lance da música sempre foi muito presente na cultura do skate e sem querer a gente acaba conhecendo e ficando amigo de muita gente do meio musical, meio que uma coisa puxa a outra. O Edu [Lopes, do grupo A Filial] eu conheço desde moleque, do skate mesmo, o De Leve foi o Serginho que me apresentou, sempre me dizia que eu tinha que conhecer ele de quaquer jeito e acabou virando um amigão também. O Bê [BNegão] morava no mesmo lugar que o Edu, em Santa Teresa, daí acabou rolando o convite pra fazer o logo, o site dele. O Marcelo [D2] eu conhecia de vista, mas só fui conhecer mesmo quando ele quis samplear uns diálogos de filme da Pepa Filmes, de que eu participava na época. Daí o tempo passou, a gente acabou ficando amigo e rolaram vários trabalhos juntos, fiz a coleção da Manisfesto pra ele, e tem uns projetos aí pra rolar.

4El Cuco .

E a sua história com os shapes, só esse assunto renderia mais uma entrevista… fala um pouco disso. A minha história com os shapes é de longa data. Desde que ganhei meu primeiro skate, eu era vidrado nos desenhos. Colocava grabber nos shapes só pra não arranhar os desenhos e falava que era pra ‘grebar’! (Risos) Quando a primeira série de shapes que desenhei saiu pela Agacê, eu desacreditei! Foi um marco na minha vida, de verdade! Depois, desenvolvi em conjunto contigo na Agacê muitas outras séries, foi uma época muito divertida. Desde moleque sempre tive em mente que o meu maior desejo era de um dia andar com um shape que eu tinha desenhado, e ver gente andando na rua então, nem se fala! Até hoje tento sempre fazer um shape tão inspirado quanto o primeiro que fiz. Por mais que pareça clichê, essa primeira série me mostrou que aquele sonho de moleque meio improvável poderia rolar. Por isso é sempre bom olhar pra trás e não esquecer dessa sensação que senti quando abri o pacote e vi os shapes finalmente prontos ali na minha frente!

acrílica sobre madeira MDF recortada . 2009

ficando famosa por causa da minha parte no RE:BOARD (documentário recém-lançado sobre arte de skate no Brasil em que Motta foi um dos destaques). Pedi pra minha avó um skate com um desenho de dragão no meu aniversário e ela viajou pro Paraguai e me trouxe um que tinha uma lagartixa rosa bebê de óculos escuros em cima de um skate! De lá pra cá, eu simplesmente não sei como seria minha vida sem o skate junto. Tudo o que o skate me trouxe de brinde, no pacote, mudou minha vida. Arte, amigos, experiências de vida, roupa, gosto musical, tudo, cara... Minha carreira profissional é calçada na cultura de rua, mais especificamente do skate. E não tem como negar isso, nem quero!

“... fui a uma reunião de um trabalho em que me contrataram como ilustrador mostrar o layout dos personagens e o diretor de arte falou: ‘O Motta fez as mãos aqui no layout sem dedos para agilizar, né?’, e eu: ‘Não, não, é assim mesmo!’.”

Já que você citou a Pepa Filmes, fale um pouco dessa época. Foi uma época engraçada da minha vida. Eu estudava e namorava, já trabalhava, mas não tinha muitas obrigações na vida! Morava a uns quinze minutos a pé da casa do Pepa e do Renatim, e chegava lá, nego de bobeira e a gente: “Porra, vamo fazer um filme?” Não tinha roteiro e, na minha opinião, a parada era essa, o descompromisso. Depois o Pepa fez faculdade de cinema e, normal, quis deixar as coisas mais organizadas, marcava reuniões etc. E a onda dele eram mesmo os efeitos especiais, as sátiras com ficção cientifica, e a minha pegada era outra, do humor. Fora que depois já não tinha mais o tempo livre que a coisa demandava, daí acabei desencanando. Mas, sem resentimentos, foi uma época animal, de chorar de tanto rir, a gente não ganhava porra nenhuma, mas se divertia! Mas o Cara de Cavalo tá na ativa até hoje, né? O Cara de Cavalo é um personagem que saiu do Coronel Cabelinho vs Grajaú Soldiaz, o longa metragem da Pepa Filmes, que era pra ter trinta minutos e acabou com quase uma hora e meia! Tenho uma relação meio maluca com ele, tá na ativa, mas aparece quando dá na telha, não manda e-mail nem liga antes (risos)! É tipo um espírito que baixa em você de vez em quando? É, tem uma parada engraçada que minha mãe e minha vó me contam. Meu avô materno morreu antes de eu nascer, e elas falam que ele também tinha essa coisa, do nada dava uma ziquizira e ele aparecia na sala, incorporando um personagem. E desde moleque eu sou assim, tem até filmagem minha pequenininho todo montado, incorporando personagem… E com o Cara de Cavalo rola isso também, ele acabou ganhando vida própria, ainda mais depois da vinhetinha que gravei pro disco do Quinto Andar. Você tem um pequeno arsenal de personagens que criou, e alguns deles já te acompanham por um bom tempo, como o Negolindo, o Abarreta, o Theo22. Como nascem esses personagens? São inspirados em pessoas que você conhece ou são ficção? Conta um pouco a história de cada um deles. Muita coisa eu tiro da vida real mesmo. O Negolindo é meio que uma tiração de sarro com os personagens bonitinhos que pipocaram no graffiti nos ultimos tempos. Ele é a síntese do que as pessoas mal resolvidas na vida acham de ruim: é um pivete preto, zarolho, desdentado, descalço e sem camisa. Mas tem cara de feliz. O Abarreta é uma tiração com os famosos wannabes, como são chamados na gringa. Ele não faz nada de bom, não sabe cantar, é um mimado, mas se fantasia de rapper e vive uma vida de glamour que não existe. O Theo22 é um cara que existe na ZN, num condomínio na Vila Isabel. É um cara sinistrão! Já fiz uns graffitis dele na frente da sua 57


casa, ele já virou até shape pra uma marca alemã (Subvert). Fiz o cara saindo duma tumba no cemitério. E tenho alguns outros personagens que criei e ainda não fiz nada com eles, pretendo um dia, mas por enquanto estão na minha cabeça, bem guardados. Seu trabalho parece ter sempre uma dose de humor impregnado. Você não consegue levar nada na vida a sério? Por incrível que pareça, eu levo essa sacanagem muito a sério (risos)! Tenho um prazer muito grande em provocar o riso, mesmo que interno, nas pessoas. Pintei um banheiro químico no Circo Voador um tempo atrás, que era um boneco do lado de fora e dentro só bilhete sacana! E tá lá até hoje. As pessoas entram e saem rindo. Isso pra mim não tem preço. Você é do tipo que perde o amigo, mas não perde a piada? Cara, pior que não! Eu não curto o humor que parte pro plano da humilhação. Dei apelido pra um monte de gente já, apelidos que ficaram até hoje, mas não lembro de nada humilhante. Tenho esse sarcasmo que não larga de mim, gosto de dar umas alfinetadas, mas acho que dá pra ser sacana sem ter que humilhar.

4Muvuca . Nanquim e cor no photoshop . 2008

(Risos) Ok, vamos esquecer esse assunto. Me explica então por que quase todos os teus personagens têm mãos de pinguim, sem dedos? Faltou na aula no dia que ensinaram a desenhar dedos ou é pura preguiça mesmo? (Risos) Na real os meus personagens têm dedos, sim, é que de longe eles não aparecem! E se precisar eu boto dedos neles, sim, quando eles têm que mandar um fuck ou um joinha… Outro dia rolou um lance engraçado, fui a uma reunião de um trabalho em que me contrataram como ilustrador mostrar o layout dos personagens e o diretor de arte falou: “O Motta fez as mãos aqui no layout sem dedos para agilizar, né?”, e eu: “Não, não, é assim mesmo!”

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(Risos) Vai, chegou a hora de vender o seu peixe! Fala um pouco do Petit Pois Studio. Opa! Essa a Mari responde! (Risos) O Petit Pois Studio nem era um projeto, mas acabou rolando. Como a Mari também é designer, a gente começou a pegar uns trabalhos juntos e, quando a gente viu, precisamos alugar um lugar pra trabalhar. O nome do estúdio é o nome do nosso cachorro, e o logo é a cara dele. A gente fala que criou o conceito de “Live Logo”: ele fica aqui junto com a gente, então é o logo andando pelo estúdio o dia inteiro! (Risos) Na real, o Pois é o nosso chefe, a gente só obedece! E o graffiti, você considera mais como uma técnica ou leva a parada a sério, toda a questão da ideologia, da tradição e das regras, de ter que fazer bomb, letras etc? Eu tenho uma relação engraçada com o graffiti. Comecei com os caras do FleshBeck aqui no Rio, me pilhando pra colocar meus desenhos no muro, daí fui me interessando, ficando vidrado nessa coisa da escala, do tamanho das coisas. É muito louco ver um personagem teu com quatro metros de altura na entrada de um viaduto por onde passam milhares de pessoas por dia. Você fica pensando “o que todas essas pessoas devem

4Lhama e 1 sole! . Naquim, nanquim aguado e Ecoline sobre papel Canson Montval . 2009

Falando em apelidos, você um tempo atrás andou mudando a grafia do seu nome, primeiro de “Felipe” para “Fellipe”, e depois começou a assinar seus trabalhos como Mottilaa, com dois “a” no final… Qual foi o motivo dessas mudanças? Numerologia, esoterismo ou porque já tinha Felipe Motta demais por aí, de campeão de snowboard a dono de loja de vinhos online? [A Mari, mulher de Felipe responde por ele] Todas as respostas acima! (Risos) Todas e mais um pouco! É um assunto delicado, que mexe com forças ocultas, prefiro não comentar mais sobre isso! (Risos)

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“Pedi pra minha avó um skate com um desenho de dragão no meu aniversário e ela viajou pro Paraguai e me trouxe um que tinha uma lagartixa rosa bebê de óculos escuros em cima de um skate! “

pensar quando passam por aqui?” Acho legal essa coisa do graffiti, de deixar lugares horrorosos mais bonitos. Fiquei um tempo sem pintar, pintando uma coisinha aqui e outra ali, mas da metade do ano pra cá acho que me deu um estalo e voltei com pique! Essa coisa de as pessoas se reunirem pra pintar também é meio que uma terapia… Você já é bem conhecido no cenário do skate e da música, mas pouca gente conhece o seu trabalho autoral. Agora que está se preparando para a sua primeira individual, no fim de outubro, onde vai poder mostrar esse seu outro lado que nem todos conhecem, fala um pouco sobre a temática da exposição e o que pretende mostrar por lá. Então, eu viajei em abril com a Mari pro Peru. Passamos só 10 dias lá, mas a quantidade de coisas que vimos foi absurda! Rodamos meio sem destino, mal sabíamos pra onde a gente ia no dia seguinte. E é um país com muita diversidade, a fauna, a flora, as pessoas, cores pra tudo quanto é lado. E a gente, que trabalha com isso, não tem como não voltar com a cabeça pipocando de ideias! Então essa exposição será a minha leitura, a minha interpretação do que vi por lá. Sempre com essa pegada bemhumorada, nem que seja apenas no traço. E é uma puta oportunidade pra eu dar um gás nesse meu lado autoral, que sempre esteve latente. Sempre pintei e ilustrei autoralmente, mas ainda tem todo um trabalho que tem que ser feito... Estou na maior expectativa, tá chegando, mas eu funciono bem na pressão... pelo menos nos últimos 31 anos! (Risos) E no geral, como você cria? Parte de uma ideia ou de um conceito pré-definido, se inspira em fatos ao seu redor ou simplesmente sai desenhando? Geralmente tenho a ideia e quando boto no papel, mesmo que seja só pra rascunhar, ela já está bem definida na cabeça. Mas às vezes não, é um processo que nem sempre é linear. Saio na rua e ouço um cara falando uma merda, acho engraçado e aquilo me lembra de alguma outra coisa, que me dá uma ideia que às vezes não tem nada a ver com a merda que o cara falou! (Risos) Defina seu trabalho em uma frase curta, estilo frase de msn ou twitter. (Risos) [Mari diz] Você faz esse tipo de tortura com todo mundo que entrevista, tipo Marília Gabriela? (Risos) Não, mas quando é com amigo tem que dar uma judiada, né? Quem vai ao programa dela já sabe que tem que chegar com uma frase pronta na ponta da língua. Então, assim, de surpresa é mais divertido! A Mari mandou outro dia uma que me define bem: “Se Deus escreve certo por linhas tortas porque eu é que vou ter que fazer linhas retas?” (risos) Para terminar, gostaria de dizer mais alguma coisa em sua defesa? (Risos) Deixa eu pensar… “Quem não deve não treme!” 3

2SAIBA Mais www.mottamobil.blogspot.com 60

4Saluda el Tricitáxi! . Acrílica sobre madeira MDF recortada . 2009

4Navalhada . lápis de cor sobre papel kraft . 2007 61


e r t n E ros) l t a i c u e arte 2 sp E O P ( Na edição passada, publicamos um especial com obras selecionadas para a 1ª Exposição Anual Entre (Outros). A exposição aconteceu no Espaço +Soma, foi incrível e resultou em um livro-catálogo que já está disponível na nossa loja. Na seleção para a exposição e o livro, algumas obras bem bacanas ficaram de fora por motivos de espaço. Mas esta seção nasceu justamente para não deixar os (Outros) na mão. Por isso, nesta edição publicamos uma segunda leva de trabalhos de alguns artistas selecionados para o projeto Entre (Outros). 1

São eles: Cena 7 Ignore Por Favor Lucas Biazon Rômolo Tinico Rosa Vagner DoNasc Vital Lordelo

Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço? Mande um email para entreoutros@ maissoma.com com amostras da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!

ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A +SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.

VITAL LORDELO

4flickr.com/photos/DOM_VITAL

TINICO ROSA

4flickr.com/photos/TINICO_ROSA


LUCAS BIAZON

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4flickr.com/photos/ANYWHEREDOTDOC

IGNORE POR FAVOR

4flickr.com/photos/IGNOREPORFAVOR 65


66 VAGNER DONASC

CENA 7

4flickr.com/photos/CENA7-MPC 67

4flickr.com/photos/VAGNERDONASC


4DETALHE DA OBRA beija-flor canhoto . acrilica e óleo sobre tela . 2009

Arte Multicultural Por Marina Mantovanini

Fernando

Chamarelli Na contramão da maioria dos artistas, que se envolvem com arte desde muito cedo, o primeiro contato de Fernando Chamarelli com as tintas e as telas aconteceu há apenas dois anos, quando ele tinha 25. Suas criações recentes têm ecos das técnicas aprendidas no curso de design gráfico – formato vetorial, cores chapadas e um processo de elaboração que começa no papel para depois se espalhar pela tela. Equilíbrio, harmonia, forma e contraste também seguem um método baseado nas leis da psicologia Gestalt. As regras que guiam seu processo criativo o levaram na direção de uma linguagem urbana, expressa por ares pré-colombianos. Para suavizar tanto perfeccionismo, Chamarelli se inspira em artistas como Anil Gupta, OSGEMEOS, Dali, Klimt e Magritte, e agrupa esses diferentes estilos em suas pinturas. 1

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4DETALHE DA OBRA Fronteira . acrilica e óleo sobre tela . 2009

Em comparação com a maioria dos artistas, você começou a pintar tarde. Qual o caminho que percorreu até estrear nas telas? Quando eu tinha 14 anos, um amigo me deu um gibi do Wolverine. Fiquei muito impressionado e logo comecei a desenhar os personagens dos X-Men todos os dias. Depois das HQs, comecei a fazer desenhos em vários outros estilos. Desde o início fui autodidata, e ganhei os meus primeiros trocados desenhando retratos e reproduzindo fotos em folhas tamanho A3. E em Penapólis, onde nasci, a molecada costumava fazer máquinas de tatuagem caseiras. Fiz uma pra mim com uma colher, motor de carro de brinquedo e tubo de caneta bic amarrado com linha e fita (crianças, não façam isso em casa). Eu me identifiquei muito com esse universo da tattoo, e às vezes viajava para as convenções de tatuagem. Com o tempo, comprei equipamento profissional e por um curto período passei a frequentar o estúdio de um amigo. Depois fui cursar a faculdade de Design e ia para as ruas fazer algumas intervenções, como graffitis e lambe-lambes. Somente depois que terminei a faculdade é que encontrei o meu estilo e comecei a pintar. Como funciona o seu processo criativo? No design existe todo um processo de elaboração antes de chegar ao resultado final. Acho que por isso eu ainda não consigo pintar direto na tela. Começo a criar no sulfite, estudo umas cores no papel pra depois reproduzir na tela. O rádio está sempre ligado durante todo o processo. A música ajuda a fazer fluir o meu trabalho. Para a tela que estou pintando no momento, criei a arte ouvindo Lia de Itamaracá e o CD das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha. Às vezes vem à cabeça a história de alguma lenda ou mito que li e começo a criar. Mas basta ficar na frente de uma folha branca que surgem os personagens. Não gosto de ficar pensando muito no que vou fazer, tenho uma ideia geral e deixo rolar. Se pensar muito o desenho trava. Parece que quanto mais eu penso menos [a ideia] se desenvolve. Os seus quadros têm particularidades que indicam, mesmo sem a sua assinatura, que determinada obra é sua. Como chegou tão rápido no estilo atual? Dois acontecimentos têm vital importância no amadurecimento das minhas pinturas. Trabalhei por alguns anos com o Adobe Illustrator, e isso fez com que eu enxergasse tudo em forma de vetores, com poucas sombras e cores chapadas. Gosto de misturar personagens e as cores vibrantes do graffiti com vetores da arte digital. O outro motivo foi uma viagem que fiz para Olinda. Levei um choque ao conhecer a cultura que existia naquela região do país. O artesanato é muito rico, e os estilos musicais, como o maracatu, samba de coco, ciranda, mangue beat e baião, são densos. Também tenho uma ligação muito forte com povos e culturas antigas que não sei explicar de onde vem. Mesclo arte maia, inca e asteca com arte africana. Arte marajoara com chinesa e maori, egípcia, rupestre e indiana com arte das tribos antigas do extremo norte da América e assim por diante. Além disso, com o tempo o estilo foi evoluindo e se desenvolvendo aos poucos, sem eu perceber. Me preocupo mesmo em fazer algo legal e que me agrade. O fato de você viver em uma cidade do interior muda em alguma coisa o seu processo de produção? A vida mais tranquila define de alguma maneira os seus trabalhos? Acho que sim, pois a tranquilidade é essencial quando estou criando. Gosto de ficar próximo da natureza, acho que isso me ajuda a criar mais formas orgânicas com harmonia e equilíbrio. Quando você percebeu que poderia viver de arte? Há pouco tempo descobri que muitos artistas de rua de São Paulo, que eu admirava, conseguiram mostrar seus trabalhos também dentro das galerias. Daí senti que também poderia ter meu lugar ao sol. Deixei o trampo de 70

designer em uma agência para tentar viver de arte, pintando e ilustrando. A correria não para, e é preciso ser uma pessoa criativa. Recentemente assisti a uma palestra de um sociólogo italiano que dizia que a profissão do futuro vai unir trabalho, estudo e diversão, então creio que estou no caminho certo. Você já expôs em coletivas fora do país. Isso trouxe algum retorno para a sua carreira? Como rolou esse contato? As primeiras exposições de que participei foram coletivas fora do país. É estranho conseguir mostrar primeiro meu trabalho no exterior e só depois no Brasil, mas por outro lado é bem massa, porque abre as portas e aos poucos vira uma bola de neve. Depois que comecei a divulgar o meu trabalho na internet, os gringos foram os primeiros a entrar em contato comigo pelo flickr. E assim rolaram os convites. É muito bom poder divulgar em outros países. Outras exposições coletivas estão para acontecer e estou conversando com uma importante galeria dos EUA, que me convidou pra fazer uma expo individual lá ano que vem. Espero que dê tudo certo. Quais são os materiais que você usa para criar as suas telas? Depois de desenhar com um lápis na tela o que criei no papel, eu pinto com tinta acrílica e um pouco de tinta a óleo. Meu próximo passo deve ser misturar pintura com escultura. No geral, tudo na arte me atrai, gosto de usar as mais diferentes superfícies e diferentes técnicas e materiais. Acho que não devem existir regras, cada um pode pintar com o que quiser ou com o que tiver ao alcance. Como você define o seu trabalho? Não curto impor um significado muito exato para as minhas pinturas e dizer essa tela significa “x” e aquela outra, “y”. É legal ouvir dos observadores suas diferentes interpretações da mesma obra. Muitas vezes eles veem muitas coisas que eu não enxergo dentro daqueles “mosaicos”. Afinal, Kant dizia que nunca seremos capazes de saber com toda a certeza como as coisas são em si. Só podemos saber como elas se mostram a nós. Como você enxerga o mercado de arte contemporânea no Brasil? Sente que nos dias de hoje tem mais espaço ou continua difícil encontrar o lugar ao sol? Não tenho muita experiência pra fazer uma análise profunda sobre o mercado de arte contemporânea brasileiro. Sou novo nesse mundo, nunca fui a nenhuma bienal e moro distante das grandes capitais que consomem esse tipo de arte. Mas na minha opinião é bem difícil pra quem está chegando agora, eu estou vivendo isso. A educação do país ainda é ruim, e são poucas as pessoas que admiram arte. É um tipo de trabalho bem desvalorizado. Você tem de fazer porque gosta. Principalmente aqui no interior, muitas pessoas veem minhas telas e dizem: “Legal, mas por que você não pinta uma paisagem, um cavalo, flores ou um gato bem bonito?” Por outro lado, têm surgido novas galerias e espaços, e a internet ajuda muito quem está começando. Acho que quem não desiste encontra algum dia o seu espaço. O que espera daqui pra frente? Espero que os artistas da nova geração sejam valorizados pelo excelente trabalho que fazem e que cada vez aconteçam mais exposições e surjam novos espaços culturais. E torço para que eu consiga me manter vivendo apenas das minhas pinturas e ilustrações. 3

2SAIBA MAIS www.flickr.com/lfchamarelli 71


BATE PANela

Por Debora Pill . FOTOs AO VIVO DIVULGAÇÃO

Frutas na mesa, pia, chaleira, fogão, pano de prato, geladeira. E pratos, é claro. Foi nesse ambiente familiar que o cantor, compositor e multi-instrumentista paulista Curumin viajou no tempo e revisitou momentos da sua vida que ajudam a entender de onde vem a vitalidade da sua música. Curumin é mesmo multi: agita seus pratos tanto em ondas pop, como Arnaldo Antunes, Vanessa da Matta, Céu e Otto, até nas mais independentes, como Instituto, Rômulo Froes e Guizado. Lá fora, já batucou com Tommy Guerrero e Femi Kuti. Sua desenvoltura no palco parece tão natural quanto a preparação do chá na cozinha de sua mulher, a cantora Anelis Assumpção. Descontraído e sofisticado, ele reinventa seu som costurando soul, funk, dub, reggae, hip-hop, samba e baião. Experimentalismo, psicodelia e, quem diria, psicologia. Receita tão boa que levou seu segundo disco a se destacar entre os mais vendidos de música latina no iTunes. Pronto. Está na mesa. 1

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Como surgiu sua história com a música? Sempre gostei de música. Antes de tocar um instrumento, lá pelos 6 anos, eu adorava Sidney Magal. Vestia roupas parecidas e cantava que nem ele. Essa história é bem queima-filme, né? (Risos.) Mas era isso que rolava na época, é uma coisa daquela geração. As TVs e rádios investiam pesado nos sucessos populares, todo mundo via o clipe do cara e saía imitando, assim como foi com o Michael Jackson. Não é que nem hoje, que as pessoas gostam de coisas mais particulares, tem um monte de nicho. Quando você descobriu a bateria? A gente descolou um amigo da classe que tocava. E nos ensaios eu pirava na bateria. Todo intervalo eu ficava lá, tocando. Até o dia em que saiu um ritmo. Porque tem toda a coisa da coordenação, que é difícil. E daí, quando consegui encaixar o chimbau com a caixa e o bumbo e acertei a coordenação dos membros, cara, eu pirei! Ficava em casa batendo no corpo, no ar. Fiquei tão instigado que resolvi montar uma bateria em casa. Um tio me deu uma pandeirola, eu montei o chimbau, um amigo me deu um pandeiro, eu fiz a caixa. Daí tinha um móvel que eu usei como prato, um tablado de madeira e um pé de enxada torto que, quando eu batia, tirava o som. Eu colocava os discos e ficava acompanhando. Nessa época rolava muito Led Zeppelin, Pink Floyd… E quando veio a primeira bateria de verdade? Eu devia ter uns 12 anos. Fiz até caixinha – ligava pra família toda dizendo que não queria presente de aniversário, queria dinheiro pra comprar a bateria! Aí eu achei uma baratinha, no [jornal de anúncios paulistano] Primeiramão. 73


Era um cara de Sapopemba, e eu morava no Paraíso. Então escalaram minha avó pra me levar, ela já velhinha. Foi uma epopeia, viagem de um dia inteiro, a gente se perdeu no meio do caminho e tudo. A bateria era bem ruim, mas durou uns cinco anos. Como você descobriu que tipo de som queria fazer? Comecei a prestar mais atenção no que meu irmão mais velho escutava. Ele sempre foi interessado em música, estudava, lia as revistas, ia atrás dos discos que indicavam. E um dia ele chegou com o Inner Visions, do Stevie Wonder. Aí mudou tudo. Até então eu só conhecia “I Just Called To Say I Love You” e achava o cara um mala. Ouvi o disco e pirei totalmente. Foi quando descobri a música negra americana e comecei a investigar o funk soul.

“A perspectiva da bateria em relação ao público é bem diferente. Em lugar pequeno rola essa comunicação fácil, mas em lugar maior o desafio é grande. E os últimos shows que rolaram nos EUA foram pra umas cinco mil pessoas, eu não estava acostumado.”

Fala sobre o seu primeiro disco, Achados e Perdidos. O Achados veio assim que acabou a Zomba (banda de funk com Paula Lima). Eu tinha um monte de ideia, umas músicas prontas. Tinha “Guerreiro”, mas com outra letra, mais filosófica. Era bem ruim! E eu tinha acabado de comprar uma MPC e ficava montando base. O [Gustavo] Lenza tinha um computador com Pro Tools e trabalhava na YB. A gente gravou disco nos períodos de férias, pegava dois, três dias produzindo e ficava uns meses parado. Isso tudo rolou em uns dois anos. A gente criava aos poucos na MPC e ia jogando no computador, fazendo as letras. Você acha que poderia ter feito ele em menos tempo? Acho que não. Eu estava me formando em psicologia na época, inclusive meu trabalho final foi sobre Jung. Foi também nessa época que comecei a garimpar coisas desconhecidas, tinha o Ramiro [Zwetsch, jornalista], que discotecava em várias festas e a gente ficava pesquisando sons. Eu era meio viciado, comprava uns cinco CDs por mês. O Achados é resultado dessa fórmula: um cara que estudou o funk soul americano, pirou no funk soul brasileiro e usou as possibilidades do Pro Tools da época. Foi quando a Quannum resolveu lançar o disco? É. E foi um desafio pra mim, porque eu sempre fui meio na minha. De repente veio a Quannum querendo mostrar o meu som no território americano! Foi assustador no começo, eu estava com os caras que admirava. Na época eu nem tinha um formato certo de banda, fazia várias experimentações. Daí o Blackalicious veio tocar no Brasil e o Lenza estava fazendo o som. E acabou rolando o clássico “deu o disco pros caras, os caras ouviram e curtiram!” (risos).

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E como foi o lançamento nos EUA? O primeiro show foi engraçado. Eu estava assutado. Foi em NY, no CMJ, que é um festival gigante. Foi um show estranho, numa cobertura, tipo private party. Rolava churrasco em cima e o show embaixo. E, como eles só tinham grana pra levar duas pessoas, tive que me virar. Acabei pegando um músico de lá, o Victor Rice, pra tocar baixo, o Quincas [Moreira] foi tocando teclado, e a gente ia soltando os beats. Como foi o show nesse formato enxuto? Essa linguagem é muito dos americanos, né? Você tem o MC e o cara soltando a base. Eu não tinha essa capacidade de entretenimento! Entrei na cobertura e tinha um monte de pôster meu, o Charlie Tuna passando o som com o Mistical… Comecei a suar frio. Me lembrou o primeiro show que fiz na vida, na escola. A gente subiu no palco e a partir dali deu um branco. Até hoje não sei o que rolou. Foi ali que eu conheci o Tommy Guerrero, que também estava lançando disco. A gente fez um som junto no dia e logo depois abrimos o show dele, e foi bem mais legal, com um público mais tranquilo, skatista. E as turnês pelos EUA? Ah, sempre rolou do jeito que deu. Da segunda vez eu ia com banda, mas o produtor me ligou um dia antes falando que os vistos não tinham saído. Foi uma loucura atrás de gente com visto de turista! Comecei a perguntar quem tinha e poderia ficar uma semana nos EUA. Cheguei lá, peguei um dia de ensaio num estúdio e foi isso, no dia seguinte a gente estava abrindo show do Femi Kuti em Miami! Loucura total. Foi só na terceira vez que rolou a turnê mais bacana, do jeito que a gente estava acostumado a tocar.

O que mudou do Achados e Perdidos para o Japan Pop Show? Rolou um amadurecimento como músico, coisa que só o trabalho gera. Toquei com o Arnaldo [Antunes] por uns cinco anos, com Otto, Vanessa, Céu. Também percebi que toda a música negra ao meu redor tinha algo em comum, dava pra costurar numa coisa só. No Japan rola também a coisa da relação dos japoneses com o tempo. Eles são ultra modernos e ao mesmo tempo ultra tradicionais. Tudo que eu ouço é dos 60 e 70, e no disco usei a sonoridade e a textura das músicas antigas. Mas eu vivo nos anos 2000. Então espelhei isso da tradição com o moderno, através das ferramentas que a gente passou a usar. Falando em ferramenta, você abandonou de vez o cavaco? Eu gosto, mas nunca esteve internalizado, saca? Com a bateria me sinto mais à vontade, estudei, curto. Consigo estar mais dentro da música, conversar melhor com ela. Me sinto mais solto no palco também. E com isso passei a construir essa coisa de envolver mais o público. Isso é uma das características mais marcantes do seu show. A perspectiva da bateria em relação ao público é bem diferente. Em lugar pequeno rola essa comunicação fácil, mas em lugar maior o desafio é grande. E os últimos shows que rolaram nos EUA foram pra umas cinco mil pessoas, eu não estava acostumado. Para fechar, por que Curumin? Ah, é apelido de criança, coisa de escola. Na época eu tinha franja, e como sou moreno, com olho puxado, a galera acabou me chamando assim. Mas, quando vou tocar no Norte, o pessoal pergunta: “Por que esse nome?”. Eles não entendem. Porque lá tem os originais, né? (risos).3

2saiba mais www.myspace.com/curumin

Como foi no Brasil depois disso? Quando o Achados saiu pela Quannum, comecei a tocar mais aqui, rolou Blen Blen, Funhouse, Sesc. E o show também começou a ficar mais legal. Teve uma fase de experimentação, sem bateria e com beat programado, eu no cavaco com uma banda diferente. Daí foi mudando, comecei a tocar mais bateria, porque é do que eu gosto mais. E aí rolou turnê com a Céu, o batera dela não pôde ir e eu acabei passando um mês lá. Fiquei no estúdio do [DJ/produtor do Blackalicious] Chief Xcel, conheci melhor os caras, com tempo de sair e trocar ideia. Tudo isso fez muito parte da feitura do Japan [Pop Show]. Por quê? A gente começou a encontrar novas referências. Eu tocava em lugares diferentes, via shows de uma galera nova. Isso tudo abriu minha cabeça, era um novo circuito. Desde o dia em que o meu irmão trouxe o Inner Visions, saquei que gostava daquilo. Então o foco que eu já tinha na música negra do mundo acabou se expandindo, porque comecei a ouvir coisas que não conhecia, como reggae, música brasileira também. Tudo na rede, pesquisando.

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CRIOLO DOIDO filÓsofo do submundo Por André Maleronka

A fala do MC Criolo Doido tem seu ritmo pontuado por pausas dramáticas e interpretações nas alturas e intensidades. Isso, mais o uso desbragado de linguagem corporal em suas explicações cheias de parábolas e certezas, dão a sensação de que o Criolo não subestima seu interlocutor. “Sim, é isso, estou aqui representando o personagem Criolo Doido, é o que tem pra hoje”, ele parece sinalizar o tempo todo. Ainda que interpretando, ele não poderia ser mais franco: o personagem que criou, um filósofo, é também a maneira que Kleber Gomes encontrou para lidar com a vida e as coisas do mundo. 1

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“Ninguém consegue fazer nada sozinho, então a Rinha, hoje, é da cidade de São Paulo, é um patrimônio. Lá é o único lugar onde o cara que ainda não tá muito firme na cena pode cantar.”

Prestes a lançar um DVD ao vivo, ele concorre ao Hutúz e também é o protagonista do recém-lançado Profissão MC, filme dirigido por Alessandro Buzo, escritor “suburbano convicto” e apresentador do quadro “Buzão” no programa Manos e Minas da TV Cultura, e por Toni Nogueira, que apresenta o quadro “Domingão Aventura” no Domingão do Faustão. Criolo é um MC habilidoso: suas músicas parecem ser escritas a partir das levadas criadas à rap bate-cabeça, e seu senso de humor é ímpar, como sabem todos os que já o viram apresentando a Rinha dos MCs, evento semanal que começou em parceria com o DJ Dandan – hoje o DJ Marco e Kiko, do Pentágono, também se responsabilizam pela organização. É uma noite com discotecagem só em vinil e microfone aberto para batalhas de freestyle, nas quais o público decide os ganhadores. Um espaço de criação musical único na cidade. Porque você resolveu fazer um DVD? Um dia eu tava chateado com umas coisas na Rinha e falei “pode colocar aí, gravação do DVD do Criolo Doido, quero ver se o negócio vai estourar ou não vai”. No microfone? Não, entre a gente mesmo, depois do evento. Aí o DJ Marco – a gente tava começando a trabalhar junto, isso foi ano passado, ele não conhecia esse meu jeito meio maluco de ser – colocou no flyer na outra semana! Aí eu conheci a Vivi [Rocha, diretora do DVD] e ela disse que daria uma força. Quando fomos ver, tinha quase vinte profissionais envolvidos. Tá muito bonita a parada, parte técnica de alto nível. A gente tá correndo pra sair este ano ainda. Fatalmente será independente, mas, se tiver alguma proposta em que o DVD saia a um preço justo, a gente pode conversar. A grande ideia é que o máximo de pessoas veja esse trabalho, porque não é só um registro de músicas, é um registro de sentimentos. E esses sentimentos podem modificar alguma coisa. As músicas são apenas um detalhe dentro de toda essa história. O grande lance é o teu olhar, o porquê de você estar fazendo a música – e aí as coisas vão acontecendo. 78

Foi tudo gravado no Executivo, na Rinha? Tudo gravado no Executivo Bar, um antigo puteiro que tá sendo re-significado. Às sextas-feiras é o encontro de uma massa humana: jovens, adolescentes e o pessoal das antigas que gosta de música boa. A gente transformou esse lugar. Você pode escutar boa música, rever amigos e fazer novos amigos – a proposta da festa e do encontro cultural que é a Rinha dos MCs sempre foi essa. E acontece lá, na Sete de Abril (rua no centro de São Paulo), abaixo do nível da terra e... (risos) estamos com a sétima chave da sétima porta do umbral. Como começou? A Rinha surgiu da necessidade de uma festa em que a gente pudesse escutar as músicas que queríamos. A gente tinha saudade dos anos 90, e pouquíssimos DJs estavam saciando nossa sede de música. Era a necessidade de um espaço para discutir nossas músicas e onde a rapaziada – no começo a da Zona Sul, porque a Rinha nasceu no Grajaú e no Iporanga – se encontrasse e cantasse suas músicas, mostrasse fotografias, esculturas. A gente jamais imaginou que ia chegar aonde chegou. É muito louco isso: a partir do momento em que você divide uma ideia, ela não é mais sua, e as pessoas vão se sensibilizando. Ninguém consegue fazer nada sozinho, então a Rinha, hoje, é da cidade de São Paulo, é um patrimônio. Lá é o único lugar onde o cara que ainda não tá muito firme na cena pode cantar. E imprime pressão nele. Não é um lugar onde o cara sai tipo “cantei por cantar”, ele sabe que tem uma pressão positiva ali. Ele vai pra lá assim: “tem muita gente aqui que manja muito, então vamos ver se é isso mesmo – da parte deles e da minha também”. O que acontece lá é uma avaliação de quatro ou cinco situações ao mesmo tempo. Quando começou? Em 2006, na Robert Kennedy. Foi em seis lugares diferentes, todos na Zona Sul de São Paulo. Agora tá há um ano no Executivo. Você só tem um disco e já é conhecido – indicado ao Hutúz e tudo mais. Como surgiu o disco? Muitos parceiros cederam as instrumentais, ninguém me cobrou nada. Muita gente me ajudou: o W-Jay do SNJ, o Slim Rimografia, o Apolo do Pentágono, o Raul do Iporanga. Eu demorei dois anos, e depois de pronto demorei um ano pra pôr na rua. Agora tem um rapaz de uma empresa que ficou interessado em algumas músicas e vamos ver o que acontece. Ele tinha pensado num single da música “Vasilhame”, mas agora escutou os outros sons e tá pensando num EP virtual. Eu ouvi uma versão demo de “Grajaúex”. Você vai gravar essa? Eu pretendo, tem muita música nova. A gente tem que equacionar falta de grana e qualidade técnica, então demora um pouco. Mas você pretende lançar fisicamente também? Sim, a gente não pode se iludir com isso. Muitas pessoas ainda têm videocassete. Muitas casas não têm nem luz! Se a gente for parar pra pensar, o Haiti é aqui com todas as forças. Inclusive as Forças Armadas (risos).

Recentemente o hip-hop ganhou mais espaço na mídia de novo. Isso é verdade ou não? Era inimaginável cinco anos atrás ter um programa como o Manos e Minas na TV aberta. Acho que isso mostra o poder de consumo do nosso povo e da música negra. Não é só o afoxé, o samba, que são coisas maravilhosas, mas também essa outra parte que tem o rap e o reggae. Já, já, vai ter um programa de reggae na TV aberta. Tem muito grupo, muita gente, muito show. Perceberam que os barrigudinhos têm poder de consumo. Tudo tem um custo, e agora tem uns patronos, mas tudo é transitório. Os amores, os cortes de cabelo e até o estilo musical podem ser – não é porque tá na TV que é pra sempre. As coisas têm que ter história – o que é eterno você vai guardar na sua biblioteca de coisas boas. E como você escreve? Tomado por muita emoção, cara. Tomado por muita indagação, por muita vontade de mudança minha, interna. Porque, se eu não estiver disposto a enxergar tanta coisa errada que tenho dentro de mim, o que eu vou querer mudar? Comecei com 12 anos de idade. Um colega de escola tava preocupado em não passar de ano e fez uma rima dizendo que ia pegar o pergaminho dele. Foi a primeira vez que vi um cara fazendo uma rima, e era uma baita de uma analogia, ainda por cima. Tinha o programa Metro Tech na rádio Metropolitana. Acho que era do Armando Martins – meu Deus, será que alguém vai me bater de eu estar falando errado? (risos) Quando fui ver tinha uma multidão de gente de várias outras quebradas fazendo isso também. O hip-hop no Brasil já passou por várias fases. Você acha que isso tem a ver com o quê? Com a produção dos grupos? Com a postura? A gente pode pensar no rap – ou em qualquer outra coisa, na verdade – da seguinte forma: quando você tem um terreno muito grande e constrói uma cidade sem nenhum projeto de urbanização, ela vai crescer de um jeito. Se planejar, vai crescer de outro jeito. Mas também não podemos jogar toda a culpa em quem tava na linha de frente cantando esse rap. Era uma estética nova que trazia consigo um monte de auto-estima. A gente tinha que se firmar naquele momento, era importante falar daquilo, bater de frente com alguns temas. A gente tava vivendo aquilo, de verdade, dia a dia. Se tivesse uma ou duas pessoas dessas que fazem mega eventos e mega situações vendo o rap nascendo ali com a noção de quanto ia crescer no nosso país, isso talvez tivesse sido diferente. Teve muito guerreiro que gritou muito forte, mas não teve como ser ouvido. É tudo planejamento. Mas não dá pra planejar algo novo, a gente tá num processo ainda. É tudo muito novo, e a dinâmica do ser humano mudou muito. Antigamente uma pessoa podia ficar o dia inteiro discutindo temas filosóficos. Hoje a gente não pode – e não quer! Demorava três meses pra uma fita minha chegar num outro bairro, a gente achava o máximo um cara de outro bairro vir cantar na nossa escola. Hoje tem tudo a um clique, e cabe a você ver o que tá exacerbado e o que tá faltando. Mas o rap é um diamante que brilha muito, e as pessoas não tão sabendo encontrar o ângulo dele com o brilho mais perfeito. É que a gente valoriza a individualidade, mas nunca aceita a individualidade do outro. 3

2 Saiba mais www.myspace.com/criolomc twitter.com/criolomc

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Mais que música, uma missão

Para quem está ligado no cenário do rap brasileiro atual, o MC Marechal é uma grande expectativa. Seu nome começou a vagar pela cena no fim dos anos 90, através da lendária festa carioca Zoeira Hip-Hop, com seu primeiro grupo, o subversivo coletivo Quinto Andar, além da Academia Brasileira de Rimas. Com 10 anos de carreira e considerado por muitos uma das promessas do rap no país, Marechal é visto como um talento sem nunca ter lançado um disco. Em um papo franco e aberto em seu estúdio no bairro de Itaipu, em Niterói, Marechal soltou o verbo, falou de projetos com novas propostas e diferentes visões de mercado e afirmou: seu momento é agora. 1

ma re chal

Por Daniel Tamenpi fotos por fotonauta

Você já tem uma história dentro do hip-hop. Como tudo aconteceu? Quando eu era moleque, meu sonho era ser jogador de basquete. Eu via os vídeos pra estudar os lances e o rap sempre tava no meio. Era aquela época do Lakers, Chicago Bulls. Quando saiu o primeiro disco do Shaquille O’Neal, eu pirei. Pensava: vou jogar na NBA e lançar um disco de rap (risos). Depois conheci os caras daqui: Racionais e Gabriel o Pensador. Foram os sons que me impulsionaram pra esse caminho. Eu já sabia que Public Enemy era uma parada de atitude, mas não entendia as letras. Quando o Gabriel lançou “Matei o Presidente”, comecei a me ligar que não era só atitude, mas também a mensagem. Daí comecei a me envolver. E quando surgiu a ideia do Quinto Andar? Eu já andava com o De Leve, que também jogava basquete, e a gente começou a brincar. Depois conheci o Speed, com uns 15 anos. Ele foi um cara muito importante, me apresentou outros estilos, como o jazz. Daí começou meu vício de comprar disco, um pouco antes da época da Zoeira (festa de hip-hop que fez história no Rio). O Quinto Andar foi uma ideia de espírito de coletivo – no começo tinha grafiteiros, b-boys. Eu comecei a gravar com aqueles mics de CPU, jogava no Napster e a parada começou a espalhar. E acabou se tornando uma coisa meio revolucionária, subversiva. Hoje em dia eu olho pra trás e vejo mérito, foi uma parada maneira pra época. Política e ideologicamente eu não concordo com a maioria dos envolvidos hoje em dia, mas respeito muito aquele momento. 80

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4foto por fernando gomes

E essa frase, “Um Só Caminho”? É uma concepção a que a gente chegou, muito baseada na filosofia oriental: o sentimento de trabalhar focado em um objetivo. E com várias pessoas a seu lado nessa mesma energia. Não tem muito como explicar. Como o Bushidô, que é um código de honra não escrito. A gente não tá criando uma seita, ou uma religião, é somente um conceito, uma filosofia em que a gente acredita. Nossa marca é o “Espírito Independente”.

Desde a sua saída do Quinto Andar, expectativas muito grandes foram criadas em cima do seu trabalho pessoal, mas até hoje você não lançou nada oficialmente. Por que essa demora tão grande? Na minha cabeça não demorou, porque foi um bom tempo de amadurecimento. E não digo amadurecimento só do rap, mas da música. Quero atingir as pessoas com isso, porque foi esse lado que me inspirou. Eu fui atingido pela mensagem do rap, não entendia nada de música. A mensagem foi o que me fez querer estudar a música. É complexo. O tipo de mensagem que pretendo propagar, que foi o que ouvi e me inspirou, com GOG, Racionais, Sabotage, é o tipo de coisa que eu quero, mas tem que ter muita responsabilidade. E cautela. Eu escrevo coisas relevantes, mas não por ser melhor ou pior. Lido com uma frase que é a seguinte: tenha certeza de que o que você vai dizer é mais relevante que o silêncio. Isso é rap. Nego é muito afobado, não acho que demorou tanto. Tem gente que demora uma vida inteira pra lançar um disco. Eu queria montar uma estrutura, que você está vendo aqui. Um escritório, com um estúdio que não deve pra ninguém. Agora a gente pode falar como “adulto” com qualquer pesssoa. Não dá pra passar por moleque. Já tô com 29 anos, sacou? E essa estrutura precisa ser planejada para se sustentar. Eu nunca vou parar de fazer música, mas fazer um disco é um investimento. 82

Você está oficializando sua marca de roupas né? Vai ser esse o nome? Sim. Nós já temos toda a estrutura, anos de experiência com a Tujaviu. Vai se chamar Muro Brasil (www.murobr.com). É um conceito novo de roupa. Um artista de música, um artista plástico, uma música com um conceito e a coleção sendo lançada em cima desse conceito. A música é enviada para artistas plásticos, que desenvolvem um desenho cada, com sua assinatura, inspirado nesse tema, para ampliar a mensagem com algo visual. Todas as peças saem com o disco contendo a música tema. As coleções são permanentes, em respeito à atemporalidade dos sons e das mensagens. Vamos trabalhar com as melhores malhas, costuras e estampas, em sete tamanhos.

Tudo bem, o disco é um investimento, mas você podia ter lançado faixas soltas. Por que não fez isso? Acho que as coisas conspiraram a meu favor nesse lado. Eu faço as músicas e apresento nos shows. Nesses shows vai um cara e grava, joga no Youtube e a parada se dissemina. Essas gravações ao vivo, na minha concepção, funcionam como mixtapes, tá ligado? Geral já teve acesso a várias músicas, tanto que não lancei nada, mas todos cantam nos shows. Essas “mixtapes ao vivo” acabaram se tornando um trabalho de base que funcionou. Não era exatamente o que a gente pretendia. Fazer música, a gente tá pronto pra fazer a qualquer hora. Nem é o meu estilo, na real. Eu espero, estudo, essa é a minha forma de fazer. Na minha concepção você só pode extravasar sua arte da forma como ela realmente é, não pode virar um padrão de mercado e tentar se adaptar a isso, sacou? A minha arte é o contraponto do padrão de mercado. Mas e agora? Chegou o momento? Sim. Estou com novas ideias na cabeça. É uma coisa mais dinâmica. Meu foco é chegar com trabalho na rua no formato clássico de empreendedorismo que aprendi vendo. Produto bom, barato e de fácil acesso. A ideia é lançar três discos com uma periodicidade de quatro meses. Serão cinco músicas por cinco reais. O nome dos discos vai ser Porradão de 5. O formato do CD vai ser tipo um disquinho (mostra o modelo: um CD com uma arte e um rótulo como se fosse um vinil), e também vai sair em vinil. Cinco faixas de um lado, os instrumentais do outro. O vinil é muito importante. Faz parte da cultura. Além disso, tô montando cenário, telão, videoclipe. Toda uma ideia pras apresentações ao vivo. Em dezembro o primeiro vai estar na rua. Estamos com várias prontas, como você pôde ver aqui. Tem toda uma galera envolvida que acredita no projeto: o Emicida, Gutierrez, Rael da Rima, Carlos Dafé, um coral chamado Boca Que Usa, músicos e produtores como o Donatinho, Kassin, Berna Ceppas, Damien Seth, Luís Café, Felipe Pinaud, Ramon Torres, Felipe Mendoça, Tricky Trompete, Helio Bents. Na parte da mixagem e masterização, vou fazer tudo lá fora. A intenção é estar no topo da qualidade mesmo. Já estou em contato com alguns engenheiros, como o Ken Lewis (que já trabalhou com Kanye West, Notorious BIG) e o Steve Sola (Mobb Deep, Alchemist). Na parte de masterização estou em contato com Bernie Grundman, que fez masters clássicas como “Thriller”, do Michael Jackson, e “The Chronic”, do Dr. Dre. A ideia é criar todo um conceito sobre o que seria o “Espírito Independente” e a forma de empreendedorismo das comunidades, tá ligado? Vamos distribuir cultura. Venda de mão em mão, com ajuda de revendedores em áreas demarcadas estrategicamente, nos shows e também via internet, pelo www.umsocaminho.com.br, que contém informações sobre nossas ações e conteúdo relacionado a música, conhecimento e filosofia.

Lido co m u ma frase que é a seguinte: tenha certeza de que o que você vai dizer é m ais re levante que o si lêncio. Isso é rap.

Você tem um projeto muito interessante no Rio de Janeiro chamado Batalha do Conhecimento. Fale um pouco sobre isso. Começou como oficina de rap. Eu tentava ensinar pra molecada o lance de 16 barras, a história, quem foi Chuck D, sabe? Eu fazia o lance do rap e tinha um professor de literatura falando sobre poesia. Esse começo foi muito didático, mas não atingiu a forma que eu queria. Era pra 20 cabeças, não pra 400, sacou? Então pensei em fazer uma parada mais interativa, que tinha a ver também com esse lance do conhecimento. Daí surgiu a Batalha do Conhecimento. Por enquanto, é só o começo. Eu tô acabando de finalizar o projeto, pra começar a correr atrás de Leis de Incentivo, porque a ideia é fazer isso nas escolas, com palestras, workshops de outros tipos de empreendimentos: mecânica, como criar sua marca de roupa e por aí vai. A ideia não é fazer uma oficina pra pessoa virar MC, e sim uma oficina de educação pra vida mesmo, onde a gente interage pelo rap. Tipo uma nova universidade. Batalha do Conhecimento é a minha vida. A gente vive na batalha por conhecimento, tá ligado? E isso gera tudo que a gente conhece. Se não fosse vários caras pra mostrar outros caminhos pra gente, ficaríamos só vendo o que nos é imposto. 3

2saiba mais umsocaminho.com.br 83


M. ARMANI A

Por Arthur Dantas . Retratos Maurício Capellari

inda que a palidez de sua pele possa sugerir o contrário, Marcelo Armani, o multi-instrumentista gaúcho notório por seu trabalho como baterista da banda SOL (Screams of Life), imprime calor, sabor e vitalidade em tudo o que realiza artisticamente, fazendo jus ao sangue que corre nas veias e, como é comum a esse tipo tão especial de pessoa, fazendo da criação necessariamente uma missão. Seu trabalho solo, o CD-R Os Conceitos do seu Mundo Definem a sua Vida?, lançado em julho deste ano, é um dos experimentos musicais mais audaciosos da temporada. Do modo de produção do disco ao conceito e a forma, tudo tem a passionalidade típica dos idealistas.

Marcelo é um autodidata da música. Em dezesseis anos dedicados à bateria, só recentemente se meteu a realizar um estudo mais formal e sistemático do instrumento. Sua relação com a música tem raízes familiares. “Meu avô tocava acordeão e bateria e, como meus pais trabalhavam, era ele que cuidava de mim quando eu tinha uns 3 anos de idade. Ele me botava numa perna e na outra apoiava o acordeão. Não por acaso fiquei meio surdo de um ouvido, que é o que ficava do lado do acordeão (risos). A primeira vez que prestei atenção na bateria foi com 11 anos, no disco Killers, do Iron Maiden. Tive aquela percepção de como soa o bumbo etc. Em casa se escutava muita música gaúcha, Sidnei Lima, irmãos Bertucci. Com o tempo comecei a escutar Ramones. Naquela época não tinha dinheiro, fazia bateria de travesseiro, tirando bateria do D.R.I. Com 14 anos meus pais me deram uma bateria bem vagabunda, os tambores eram feitos de papelão, era uma maravilha de carregar”, ele conta com o bom humor que lhe é característico. Sua primeira banda séria foi a SOL, formada em 1998, seguindo a sugestão do amigo nas sessions de skate Roger Canal, guitarrista e letrista do SOL. E, estranho em se tratando de um baterista, tudo deveu-se a um problema com seu “instrumento” de trabalho: “Eu quebrei o braço e fiquei sem andar de skate – foi nessa época que decidimos fazer uma banda. O Roger me passava fitas do NOFX, Pennywise e Bad Religion, falava pra ouvir aquilo e, quando melhorasse o braço, tentar tirar aqueles sons”. Feita a recuperação, gravaram a primeira demo, que chamou muito a atenção na época, ao realizar um som que misturava Agent Orange com Dinosaur Jr. A formação mais conhecida do grupo, a segunda, contava ainda com o baixista Felipe (“ele trouxe um sangue 84

novo, mostrou My Bloody Valentine pra gente, mudou bastante as coisas”) e o percussionista Tetsuo (“foi uma grande escola, porque passei a tocar com instrumentos meio primos do meu, mudou minha percepção completamente”), e foi como quarteto que gravaram dois álbuns pelo finado selo Amplitude Discos, de São Paulo. O segundo álbum, A Força, era um rolo compressor sonoro que sintetizou as maiores virtudes do grupo: uma parede de ruídos acachapante despachada em camadas de repetição e uma lírica simples e entusiasta das coisas boas da vida, como o amor e a amizade, que propagam uma certa esperitualidade que ainda guia em certo nível as ambições artísticas de Armani. “Quando a banda acabou, fiquei meio perdido, acabou um ciclo – descobri que aquela conexão que tinha entre os membros da banda não é em qualquer lugar que se alcança. Cresci ali como músico e, acima de tudo, como pessoa”.

Em seu trabalho solo, Armani ressente-se um pouco do individualismo inerente a tal situação (“Tocar sozinho me incomoda, por causa do lance individualista. É louco: hoje você vê mais duos do que trios, inclusive! Muita gente tocando sozinha... pra mim, isso é uma questão séria”). Nos sete temas de seu mais recente álbum, ele comanda bateria, percussão, clarinete, metalofone (criado artesanalmente), samplers, captações de campo e outros sons. No processo de gravação caseiro (grava tudo em seu quarto e capta ruídos da rua diretamente de sua janela), Armani se vale do processo de “sound by sound”, no qual as texturas e notas que aparecem sempre pela tangente em seus experimentos são construídos em tempo real. A linha condutora, obviamente, é a bateria. Da explosão sonora de seu grupo anterior, pouco restou: o novo disco é altamente imagético, e cumpriria bem o papel de trilha tanto para uma película sci fi perdida de Tarkóvski como para a obra de um David Lynch. Minimalismo, intuição free jazz e batidas africanas se amealham, se confundem e acabam por criar uma obra que coloca o recém-formado projeto de Marcelo Armani na companhia do melhor que se tem realizado em termos música de invenção no país. 3

2Saiba mais www.myspace.com/marceloarmani 85


Richard Ribeiro não tem dedos suficientes para contar em quantas bandas já tocou. Calma, isso não é nenhuma piada de mau gosto. Richard é um dos músicos mais versáteis do cenário independente paulistano e, além das mãos, já emprestou sangue e talento para nomes como Diagonal, São Paulo Underground, Cidadão Instigado, Debate, Jeneci, Echoplex, Fóssil e, claro, seu projeto próprio, Porto, que recentemente lançou Fora de Hora. Confira um bate-papo com ele. 1

Por Rodolfo Herrera Fotos Paulo Borgia

Depois do Stazzmatazz veio o Diagonal. Qual foi a maior mudança entre as duas bandas? O Cláudio. A banda acabou e eu já tocava com o Edmundo, o Meireles e o Xan no Echoplex. Nesse meio tempo, o Sérgio conheceu o Cláudio e começaram a montar o Diagonal. Peguei o bonde andando e fui convidado. Quando o Sérgio te chamou pra tocar no Diagonal, vocês estavam ouvindo outras coisas? Nós ouvíamos as bandas da Dischord. E começamos a compor tendo esse selo como diretriz, tudo por influência do Cláudio. Como todo garoto com sede das coisas, comecei a dissecar as bandas de lá. Quando você é mais novo acaba sendo obsessivo com as coisas que conhece. O Echoplex existiu em paralelo com o Diagonal e teve fôlego durante uma época, mas o disco só saiu quando a banda já estava quase inativa. Por quê? Exato. Depois que gravamos, o disco demorou uns três anos para sair! Não estávamos em sintonia. Naquela época era difícil bancar sozinho o disco. Faltava também uma visão melhor de tudo que envolvia ser uma banda.

Você se envolveu com música muito cedo. Seu primeiro instrumento foi a bateria? Eu comecei a tocar violão por volta dos 12 anos, e o interesse pela bateria veio mais tarde, aos 14. Na época, meu pai era cantor sertanejo e eu acompanhava. Ele chegou a ir ao Bolinha! (risos) De certa forma, fui influenciado a começar cedo. Você é criança e vai aos shows do pai, rodeado de amigos músicos... E a primeira banda, veio quando? Aos 14, com um amigo de infância, o Sérgio [Ugeda]. Ele estava aprendendo a tocar guitarra e eu disse que ia aprender bateria. Em casa tinha uma que havia sido da banda do meu pai e estava jogada (nessa época a dupla já tinha acabado), olhei e saí tocando. A nossa banda se chamava Stazzmatazz, mas o nome mudava de acordo com o que a gente ouvia. O Sérgio sempre foi o seu companheiro de música. O que vocês ouviam? Ouvíamos Helmet. Era só isso que existia pra gente (risos). 86

Eu lembro de um show do Echoplex há muito tempo, você tocando muito pesado. Fiquei impressionado com aquilo! Era muita energia naquela época, éramos uns loucos tocando. Eu estourava minha mão, voava sangue na caixa e não parava de quebrar pratos e baquetas. Jovem, né? E quem te inspirava naquela época? O John Stanier (Helmet), o Zach Barocas (Jawbox), o Brendan Canty (Fugazi), entre muitos outros. O Flávio também, que hoje toca no Forgotten Boys. Na época vi ele tocar no Page 4, era muito diferente, bacana de ver. Ele tinha um estilo bem agressivo. O Zach Barocas misturava técnica e agressividade de uma maneira bem peculiar. Ele tem um jeito mais técnico e super criativo que me chamava atenção. Fui atrás do que ele ouvia, ouvi os discos que ele tocava. Pra mim é um dos melhores bateristas de rock até hoje. Ele foi uma puta referência.

Como foi a transição do Debate para o Diagonal? O Sérgio queria voltar a cantar em português – coisa que ele parou quando começou o Diagonal. Essa acho que era a principal motivação. Além de tocar mais e viajar. Foi na época do Debate que seu projeto solo tomou forma. Mas, antes do Porto, você começou a tocar com mais bandas, fazer turnês e a se apresentar como Richard Ribeiro, certo? Comecei a compor quando voltei de uma turnê que fiz na Polônia com o SP Underground. Tive contato com outros tipos de música e principalmente com outros tipos de músicos, a começar pelo Rob Mazurek. Começou a sair um pouco do rock, né? Foi uma coisa natural. Você busca outras coisas, eu fui tocar com o Maurício [Takara], com o [Guilherme] Granado, com o Mazurek e naturalmente quis outros ares. Assim como na vida que você muda, às vezes você não é o mesmo de dois anos atrás. O tempo foi passando, toquei com pessoas ótimas e nesse intervalo tive vontade de começar a compor e me desprender mais da bateria. Eu compunha em casa, sozinho, fazia melodias na guitarra e no metalofone sem a bateria. Tinha um porta- estúdio. Quando gravei umas dez músicas, chamei o Renato Ribeiro para tocar comigo. Vocês gravaram o disco aqui em São Paulo com o Devin Ocampo, do Medications. Qual foi o papel dele? Ele foi engenheiro de som. Gravamos em um dia, eu já sabia como queria o disco e ele simplesmente gravou. Respeitou tudo que fizemos no estúdio, achou melhor assim. Depois, levou para os EUA para mixar na casa dele e remasterizar. Fala um pouco sobre a composição do disco. Como foi o processo para fazer aquelas músicas todas soarem como algo uniforme? Todas as ideias do disco aconteceram quando eu estava andando na rua ou pegando um ônibus, longe dos instrumentos. Aí passava a ideia pro porta-estúdio, sempre foi assim, construindo a música na minha cabeça para depois tocá-la. Algumas tiveram como base melodias de guitarras, outras, contos do Cortázar, outras partiram da bateria. Cada uma tem um ponto de partida, mas todas foram criadas longe do estúdio, até porque eu não tinha tempo nem dinheiro pra ficar lá, tocando sozinho. Acabei desenvolvendo esse processo, e é assim até hoje. 3

2saiba mais myspace.com/richardribeiro 87


+quem soma

B

. Lucas “Pexão” Ribeiro . Por Arthur Dantas . Fotos Maurício Capellari

atman. Dum Dum. Skate. Fanzines. Garage Fuzz. Jaca. Adão Iturrusgarai. Trampo. Adesivo. Choque Cultural. Christian Strike. Porto Alegre. São Paulo. Punk. Hip-Hop. Fernando Ribeiro. Againe. Beautiful Losers. Mateus Grimm. HQ. Arte. Noz Art. Most. Galeria do Rock. Ed Templeton. Tuna Head. Transworld. Wu Tang Clan. Sebadoh. Carlos Dias. Transfer. Fita Tape. Entrevistar Lucas V. F. Ribeiro, 30 anos, é se jogar numa viagem a subculturas dos anos 1990 e compreender como elas moldaram uma das personalidades mais interessantes da nova cena artística brasileira. Acompanhar a ainda incompleta trajetória de Lucas “Pexão”, como é conhecido por seus comparsas (“quando comecei a andar de skate, um cara começou a me chamar assim, por causa dos olhos caídos, de peixe morto. Eu fiquei brabo, daí fodeu. Mas alguns dos meus skatistas preferidos tinham apelidos como Piolho e Urina, então não pareceu

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tão ruim”), é entender um pouco o próprio processo de formação do meio em que nosso entrevistado é um dos maiores protagonistas. Começando Pelo Fim Pode parecer estranho, mas o responsável pela recém-inaugurada galeria Fita Tape – ao lado de sua companheira, Ana Ferraz – nem sempre viu com bons olhos o trabalho de vender obras alheias. Houve duas influências fundamentais para esse processo: “O Christian Strike (que veio ao Brasil participar da mega exposição Transfer e é um dos responsáveis pela mítica expo Beautiful Losers) foi um cara importante para eu entender que pode ser legal se focar em vendas – o que parecia meio contraditório pra mim. Disse que tem gente que compra pra investimento mesmo, mas tem outros que abraçam a causa, seguem o trabalho dos artistas, discutem arte em um nível muito alto. Eu nunca pensei em ser um art dealer, um Damien Hirst – sempre pensei em viabilizar a carreira dos artistas que eu

amo, pra arte deles não virar apenas um lance ocasional”. Nesse sentido, o trabalho de um dos donos da Choque Cultural em São Paulo sempre foi um norte: “Acho genial o Carlinhos [Dias, artista plástico e músico] poder viver de arte, por isso acho louvável o trabalho do Baixo Ribeiro”. As Origens Lucas não teve uma infância normal. Sua mãe, Dedé Ribeiro, é uma conhecida agitadora/ produtora cultural de Porto Alegre. Seu pai, o falecido cantor Fernando Ribeiro, é um importante e cultuado compositor gaúcho. Fabio Zimbres foi seu padrasto. “Desde muito pequeno eu vivia rodeado de desenhistas legais por causa da minha mãe, como o Adão Iturrusgarai, o Jaca, depois o Fabio Zimbres”. Seu primeiro zine, Ameba Sorridente, dava-se ao luxo de ter colaboradores como Schiavon, Zimbres, Adão e Pedro Alice, por exemplo. E a separação de seus pais trouxe outro elemento definitivo para a formação do galerista: “Meus

pais se separaram cedo e meu pai foi pra São Paulo. Até ele falecer, eu ia direto pra lá. Ele era dono do estúdio Vice Versa, que é enorme – hoje é o estúdio da Trama. Eu dava rolê em São Paulo com os motoboys do estúdio: eles me levavam na Galeria [do Rock] pra comprar disco de rap. Quando meu pai largou a música, começou uma relação forte com pintura”. Boa parte da produção de Fernando Ribeiro, inclusive, está na casa de Lucas.

Templeton, o pessoal até brincava que eu era fã demais dele. [Templeton] Tinha essa visão do skatista como um novo ser criativo, a ligação com as subculturas.” Foi nesse período que Lucas criou o Tuna Head, zine que lhe deu notoriedade, “junto com o Bocão, que foi trabalhar na Qix e já era metido com skate. O zine tinha muito [a função] de alimentar a comunidade local, que na época tava completamente morta”.

E No Meio do Caminho Havia Um Skate “Depois veio o skate, no começo dos anos 90, quando ele tava completamente morto. Sou total cria do skate do começo dos anos 90 – todo mundo andava devagar, as roupas imensas, não tinha a menor chance de dar certo como esporte (risos). As trilhas de skate eram impecáveis também – o Wu Tang Clan estava antes nas trilhas de vídeo do que em qualquer outro lugar. Tudo cabia nas trilhas dos vídeos, de rap a Sebadoh. E a arte... nossa! Sou totalmente influenciado pelo Ed

Daí para a frente, o mal já estava feito. Pexão participou do site de notícias de skate bancado pela marca Qix, escreveu e escreve para diversas publicações ligadas ao meio, fundou a seminal galeria Adesivo (ainda sem saber vender obras direito e sendo vítima de cinco assaltos), organizou a Transfer, maior exposição de arte urbana do Brasil, no Santander Cultural em Porto Alegre, criou um estúdio de criação com sua companheira, o Noz Art, e abriu a galeria Fita Tape com uma expo coletiva classuda. Atualmente, é uma individual de Billy

Argel que ocupa o espaço. No futuro? Trampo, Fabiano Lokinho e Mateus Grimm. Aliás, é Grimm que sintetiza a importância local de Lucas Pexão: “Dá pra dizer que existe em Porto Alegre uma cena de graffiti antes e depois da Adesivo. Ele aproximou muita coisa: skate, arte, quadrinhos, música. Pra mim, em especial, o cara é muito importante; mas também foi pra galera que acreditava e se encontrava desde o início. Ele tem a preocupação de valorizar o artista, nunca privilegiou algum em especial, trabalha lado a lado, impulsiona mesmo”. 3

2saiba mais fitatape.art.br Leia o bate-papo na íntegra em maissoma.com

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Por Mentalozzz e Ouriço

A seleta desta edição tem o prazer de falar sobre alguns LPs cobiçados por boa parte dos colecionadores. Os álbuns da fase psicodélica do apresentador, cantor, publicitário e aviador Ronnie Von (que de quebra ainda batizou os Mutantes) viraram febre anos atrás, quando uma série de homenagens e tributos resgatou do esquecimento a fase doidona do Príncipe da Jovem Guarda. Em um bate-papo descontraído – mas sem perder a linha jamais – em sua casa na capital paulista, ele revelou à +Soma as memórias que guarda daquela época, que

vai do final de 1967 até o início de 1970 e rendeu três LPs: o primeiro, sem título específico e com duas datas diferentes (na capa, 1968; no rótulo, 1969), seguido por A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nuncamais, de 1969, e Máquina Voadora, de 1970. Ronnie Von revela ainda detalhes sobre o dia em que, aproveitando que um certo trono estava vago, chamou seus aliados e realizou a música que emanava do seu coração. Para sorte do reino e alegria dos súditos, alguns príncipes têm seu dia de usurpador. 1

No final de 1968, você já tinha feito

contratual de entregar um disco, então

Como o mercado recebeu o disco?

sucesso e era conhecido como O Príncipe.

chamei o maestro Damiano Cozzella para a

O disco não foi um sucesso de vendas e até

Por que mudou tanto? Não teve medo de

direção e os arranjos e o Arnaldo Saccomani,

foi quebrado publicamente. Não tocava

perder público?

entre outros, para ajudar com as letras.

no radio (só o Big Boy tocou uma vez na

Eu era famoso mas sofria muito, estava

Fomos para o estúdio com liberdade total,

Rádio Mundial).

bem isolado. Para minha família e meus

sem a regência da presidência mercantilista.

amigos eu estava me perdendo na carreira

Ficamos livres para experimentar.

era bossa nem jovem guarda, e muito menos

Quer dizer que vocês experimentaram

chamado de louco. Me acusaram de queimar

tropicalista: eu era O Príncipe, o filhinho de

de tudo?

dinheiro porque o disco não vendeu.

papai que roubava espaço no mercado,

Sim, inventamos, gastamos muito, quebramos

Pediram para eu tirar o pé do acelerador,

um playboy que não era politicamente

espelhos, contratamos quarteto de cordas

mas ainda foi possível lançar A Misteriosa

engajado e que nem música censurada pela

para a faixa dos espelhos quebrados – que

Luta do Reino de Parassempre Contra

ditadura tinha.

é minha preferida – e até gravamos trotes e

o Império de Nuncamais e Máquina

jingles para clientes imaginários. Colocamos

Voadora. Depois fui ficando mais

Então você resolveu fazer discos mais

tudo no disco, fiz o meu psicodelismo. Vejo

comportado novamente.

psicodélicos para quebrar essa imagem?

hoje que esse disco de 1968 foi o único que

Não foi premeditado. Eu já tinha feito um

fiz como realmente gostaria.

90

Você chegou a fazer shows com esse repertório?

disco com guitarras elétricas antes, com

Coisas que Gostamos de guardar

A gravadora adorou? Com a volta do comando da gravadora, fui

artística; para o mercado musical, eu não

músicos argentinos da mesma turma dos

E drogas?

Poucos. Era muito difícil levar o clima do

Mutantes. Mas aí a gravadora com que eu

Não, eu não era inspirado em viagens de

disco para os shows. As músicas tinham que

tinha contrato, devido a um impasse durante

LSD. Já tinha visto alguns amigos terem

ser adaptadas, os arranjos, refeitos.

a troca de presidente, ficou sem comando.

experiências e achei que não servia para mim.

Não havia recurso para reproduzir ao vivo

Justamente nessa época eu tinha a obrigação

Eu era mais poesia, sons e música mesmo.

toda a loucura que criamos no estúdio.

3

2mentalozzz e ouriço sofrem de síndrome do pânico e atuam na censura televisiva. 91


Mariana não teria filhos. Dedicaria parte de sua vida ao tarô e outra à mãe, doente crônica desde sempre e para sempre. Jairo, mesmo sem conhecer Mariana, vivia irritado com a excessiva dedicação dela à mãe e a certa altura declarou não ter condições de sustentar a relação. Então partiu, deixando Mariana, a mãe e a possibilidade de João nascer em suspenso.

João nasceu de uma intenção. Seus pais não chegaram a se conhecer, se amar, se tocar, que dirá fazer sexo. Ainda assim, em 1979 brotou no ar a possibilidade de que os dois se cruzassem e dali nasceu João.

Mariana e Jairo não se conheceram, não se casaram, não trepararam, não se amaram, mas se divorciaram. João, ora, nasceu de uma possibilidade. Apareceu com oito anos de idade, nu, envolto em uma cortina de fumaça no campo do terreno baldio ao lado do colégio e foi adotado por uma freira. É considerado,

João não é amargo. É ingênuo. Peço que toque uma canção na escaleta. “Neil Young? Ou Roberto Carlos?”

Esse é João. O primeiro filho dos divórcios quânticos da primeira onda. Diga adeus para nossa plateia, João. “Fuen.”

Tire a escaleta da boca, João. Seus pais não lhe ensinaram bons modos? Jairo, o pai de João, tocava escaleta na banda do colégio. Mariana, mãe de João, era baliza. Os dois viajariam juntos para um torneio de bandas marciais em Três Cachoeiras, mas Mariana teve cachumba e ficou em casa, sofrendo muito, lendo um pouco e descobrindo o tarô. Jairo, por sua vez, passou a viagem de ônibus inteira desenhando homens com capa e espada ao lado da guria que anos depois seria sua esposa e com quem teria três filhos. Nenhum deles era João.

até hoje, o primero filho dos chamados divórcios quânticos, as rupturas de meras possibilidades amorosas, onda endêmica nos anos 90 e que até hoje persiste sem explicação científica.

Pergunto a João como ele se sente. “Como qualquer pessoa normal.”

Pergunto de seus planos para a vida. “Viver e construir meu caminho.”

Peço que seja mais específico. “Me tornar bom em escaleta e no tarô.”

Comento que eram as habilidades de seus pais quânticos. “Coincidência.”

2gustavo mini escreve em Ilustração guilherme dable

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oesquema.com.br/conector

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+reviews

1Bondinho . Sergio Cohn e Miguel Jost (orgs.)

1Slayer . World Painted Blood . American Recordings . 2009

. Azougue Editorial . 2009 Houve um tempo em que a música popular brasileira era mais ousada, criativa, pulsante e travava um diálogo face a face com o que acontecia em tempo real. Disso, ninguém razoavelmente informado duvida. Agora, que houvesse veículos de comunicação escrita que dessem conta de toda aquela cena e mimetizasse alguns procedimentos inovadores que a música oferecia, aí é outra história. Se a maioria silenciosa do cada vez menor bolo da indústria cultural pouco nos oferece de vibração e revelação em relação à morna cena músicocultural dominante na atualidade, o Bondinho, revista que em sua segunda vida durou boas 13 edições no ano de 1972, farejou o espírito de seu tempo e deu voz e profundidade ao que de melhor foi produzido na música da época. E não só isso: couberam ainda perfis e entrevistas com escritores, cineastas e poetas, por exemplo. Tudo naquele período, como queria a Tropicália, era divino, maravilhoso – apesar dos calabouços da ditadura vigente. Os artistas defendiam posições (curioso ver Tom Zé xingando o plágio, técnica tão querida pelo próprio na atualidade), falavam do mundo (Milton Nascimento falando do racismo ao qual era exposto mesmo numa grande cidade como o Rio de Janeiro é valiosíssimo), e, acima de tudo, falavam de suas produções, ambições e predileções estéticas. Além disso, polemizavam entre si. Caetano falava de Gil, que falava de Jards, que elogiava Hermeto, que desancava o rock progressivo, que tinha como entusiasta Rogério Duprat, que citava Mautner, que se empolgava com a fase de Gal Costa e com o Teatro Oficina... É indescritível ver a tenacidade e eletricidade daquele tempo, a arte brasileira tinindo trincando, como cantavam os Novos Baianos. Para quem, como eu, tem no DNA uma curiosidade atroz pela reflexão pruduzida pelos bons protagonistas da cultura brasileira, esse é o livro do ano, certamente.

3Por Arthur Dantas

1José Roberto Bertrami And His Modern Sound . Aventura . Far Out Recordings . 2009 Co-fundador do trio Azymuth nos anos 1970, ao lado de Mamão e Alex Malheiros, José Roberto Bertrami reaparece com seu novo álbum solo. Em Aventura, Bertrami impressiona nossos ouvidos apresentando uma musicalidade que lembra décadas passadas, mas que, ao mesmo tempo, é totalmente atual, passeando por grooves diferentes a cada faixa. O disco começa com “Ecstatic”, um deep funk que lembra grupos como Soulive. Em “Brilliante”, Bertrami nos remete à época clássica do Azymuth, com climas tranquilos e alegres. A faixa título parece a ressurreição da Banda Black Rio, nos tempos de Maria Fumaça. E não para por aí. Tem jazz em “Maixa”, bossa em “Nos Tempos da Bossa”, influências claras da música latina em “Dança de Salão”, além da ótima “Eighties Times”, um jazz-funk matador. O pianista aventura-se por diversos timbres, do clássico Fender Rhodes, passando pelo órgão, até o piano acústico, mostrando-se bem à vontade em todos eles. Cada faixa apresenta uma atmosfera diferente. Um dos grandes lançamentos da música instrumental brasileira em 2009, Aventura é um dos favoritos ao Grammy Latino deste ano. 3Por Daniel Tamenpi

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1Una Gira en Sudamerica . Fabio Mozine . Läjä Records . 2009 Relatos de tour são quase um gênero literário. No punk, temos como um dos maiores exemplos Get In The Van, de Henry Rollins, contando os anos de boemia podre, paranoia persecutória e violência verbal, musical e corporal por trás do Black Flag. O livro de Mozine – membro do fantástico Mukeka Di Rato – conta os percalços de uma turnê pela América do Sul com o Merda, seu trio de hardcore tosco (como se Mozine tocasse outra coisa na vida...). Com o talento que lhe é peculiar, o autor traça um bom (e divertido) retrato do que uma década de trabalho sério no underground constrói. Ou seja: quase nada! Una Gira mostra o perrengue nem tão brabo assim (quem viveu o punk nos últimos 15 anos sabe que as coisas já foram bem piores) do trio, metidos em um carro apertado, cheio de discos e materiais promocionais, fazendo shows no interior do continente, dormindo na casa da mãe de amigos, o “boicote” de punks bobos, as bebedeiras, as centenas de coxinhas frias consumidas em postos rotos na estrada e, toque autoral tratando-se de Mozine – um administrador de empresas do mundo bizarro, que trocou o escritório confortável pela ralação em um selo e a manutenção de bandas de rock podrão –,a neura com dinheiro e vendas. Como o próprio autor ironiza, “rock de comércio”. Bem-vindo à realidade do punk nativo. Como nos melhores relatos do gênero, é possível sentir-se como um quarto membro dessa zona toda.

3Por

Arthur Dantas

1você

outros livros na loja da +soma

encontra este e

1Umbigo Sem Fundo . Dash Shaw . Quadrinhos na Cia . 2009 Nada de pontas amarradas, reviravoltas no roteiro ou diálogos cheios de sacadas. Umbigo Sem Fundo, romance gráfico do quadrinista Dash Shaw, cativa e surpreende o leitor por simplesmente inverter a narrativa de ficção à qual nos permitimos acostumar nas HQs, nos filmes e nos livros, estruturada em torno de fins, efeitos e artifícios. Influenciada pelo ritmo dos mangás, a HQ de 720 páginas (que levou três anos para ser finalizada) flui rapidamente. Em diálogos mais importantes, às vezes as páginas são ocupadas por dois quadros apenas, e em outros momentos vemos uma pessoa trocando de roupa detalhadamente. Desenhando em branco e marrom, por vezes o autor indica textualmente cores e outros detalhes que considera importante nas ilustrações. Em um toque de surrealismo, Peter, o caçula da família, é desenhado como um sapo – reflexo de sua autoimagem. A história que se conta no livro é a do divórcio de Maggie e David Looney após 40 anos de casamento, que reúne seus filhos já adultos para um último fim de semana juntos, narrado com surpreendente naturalidade. Como na vida real, nada tem um propósito a ser explicado, nenhum grande mistério é resolvido, nenhuma situação serve como mote. A vida simplesmente acontece, com a maior banalidade possível. Assim mesmo, acompanhamos os personagens com compaixão, porque sabemos que seus defeitos ou suas virtudes não são medidos, apenas os fatos, e que o microcosmo em que vivem é o terreno da vida que todos nós levamos. 3Por Amauri Stamboroski Jr.

Muitas bandas lutam durante toda a carreira para que sua música sobreviva a sua própria fama. O Slayer conseguiu essa proeza há muito tempo, com Reign in Blood (1986), álbum monumental que segue ditando o padrão para o que há de verdadeiramente agressivo no metal. Se a banda chegou a um nível muito difícil de ser superado, não há dúvidas quanto ao seu esforço por se manter fiel a sua missão de destruição. O segredo está em sua simplicidade brutal e na resistência em ceder a tendências passageiras, algo a que o Slayer tem dedicado uma atitude incansável e totalmente punk. Bateria barulhenta como uma britadeira, vocais grunhidos, guitarras massacrantes: bem ou mal, a esta altura você já sabe o que esperar deles. Isso também vale para World Painted Blood, segundo álbum desde o retorno do baterista Dave Lombardo e talvez, caso você acredite no baixista/vocalista Tom Araya, o último da banda. Essa última questão faz pouca diferença na prática, já que, caso o Slayer grave outro álbum, sabemos exatamente como ele será. O primeiro ponto, porém, é vital: Lombardo se encaixa tão perfeitamente na banda que sua simples presença já leva os guitarristas/compositores Jeff Hanneman e Kerry King a pegar mais pesado. Músicas como “Snuff” não demoram a cair com os dois pés em um hardcore ultra-rápido, ao passo que músicas relativamente amenas como “Beauty Through Order” são combinadas com a pancadaria ininterrupta de faixas como “Public Display of Dismemberment”. Boa parte do novo material remete a temas familiares à banda, como a guerra e o fascismo, o imaginário apocalíptico da faixa título ou, ainda, mais uma história de serial killer (“Psychopathy Red”). Esse é o tipo de coisa que aprendemos a esperar do Slayer, porque é o tipo de coisa que faz do Slayer o Slayer. Mais importante ainda, é o que impediu a banda de sucumbir diante das fraquezas que acometeram seus antigos companheiros de trash metal Metallica, Megadeth e Anthrax, bandas outrora formidáveis que hoje não passam de sombras do que já foram. World Painted Blood não se compara ao que o Slayer já produziu de melhor, mas, como bombas que erram o alvo por muito pouco, faixas explosivas como “Human Stain” e “Not Of This God” chegam bem perto disso. 3Por Joshua Klein

1banda gentileza . banda gentileza . Independente . 2009 Em linhas superficiais, pode-se situar o disco homônimo de estreia da Banda Gentileza como parte da onda criativa mais recente da chamada nova MPB. No entanto, seria uma afronta à sanidade reduzir a esse rótulo as 12 faixas e pouco mais de 40 minutos do álbum. Em “Preguiça”, por exemplo, o samba vem com força surpreendente, principalmente em se tratando de um sexteto paranaense. Parte da responsabilidade pelo feito pode ser atribuída ao produtor carioca Plínio Profeta, vencedor do Grammy Latino por seu trabalho em Falange Canibal, lançado por Lenine em 2002. O clima de festa à Los Hermanos dá as caras em “O Indecifrável Mistério de Jorge Tadeu”, em que os metais e a vontade de dançar dominam os refrões, que chegam ao fim citando um verso de “Garçom”, de Reginaldo Rossi. Na sequência, “Afinal de Contas” reafirma as influências da banda, explorando o clima das valsas vienenses, que também servem como base para a explosiva “Coración”. A risonha e jazzy “Sintonia”, como o nome sugere, tem os dois pés no dub. O indie-rock tem seu espaço em “Pseudo Eu”, música de letras autocríticas e melodia fácil que fica na cabeça por horas. Essa variedade de influências está na internet, de graça, no MySpace (/bandagentileza) e no Twitter (@ bandagentileza) do grupo. Isso que é gentileza. 3Por Alex Correa

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+reviews

1Black Drawing Chalks . Life Is A Big Holiday For Us . Monstro Discos . 2009

Cinco fatos sobre o novo álbum do Black Drawing Chalks: 1) Trata-se, em primeiro lugar e inegavelmente, de um disco de rock. Um belo disco de rock. Passando longe do experimentalismo ou de elementos “modernos” demais, Life is a Big Holiday For Us caminha no sentido da objetividade. Guitarra, baixo, bateria e voz (ok, tem um tecladinho ou outro, mas nada excessivo). Ou seja, sem frescura. Rock duro, como dizem por aí. 2) Não é um disco revolucionário e nem tem essa pretensão. Levando em conta os vinte e poucos anos dos integrantes, a lista das possíveis pretensões é bem mais realizável: tocar alto e pesado, se divertir, beber cerveja e faturar groupies. Até onde sei, tudo de acordo com a cartilha do rock and roll. 3) LIABHFU oferece, em onze faixas, um variado cardápio de rock cantado em inglês. Em alguns casos, as diferentes influências são perceptíveis na mesma música, como em “Free From Desire”, cuja levada motörheadiana é interrompida por um momento à Franz Ferdinand. Já a porrada “The Legend” lembra Rocket From The Crypt do início ao fim. E as boas referências roqueiras seguem disco afora: Hendrix, Nebula, QOTSA... 4) A caixinha digipack traz uma arte incrível, super colorida, vintage, assinada pelo coletivo de designers Bicicleta Sem Freio. Se existe alguém que pode transferir o espírito da banda para um desenho são eles, e não é à toa: Douglas Castro (baterista) e Victor Rocha (guitarrista e vocalista) fazem parte do coletivo, o que garante a identidade visual caprichada da banda. 5) Eles são de Goiânia, apadrinhados por Fabrício Nobre (MQN), e esse é apenas seu segundo álbum. Tomara que o atual hype em torno da banda não seja fugaz (como já aconteceu com tantas outras), o que garantirá portas abertas, oportunidades e a devida atenção a um futuro que promete ser bem interessante. 3Por Marcelo Viegas 1você encontra este e outros livros na loja da +soma

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1Jay-Z . The Blueprint 3 . Roc Nation . 2009

1Blitz The Ambassador . Stereotype . Embassy MVMT . 2009

O lançamento do terceiro album da série The Blueprint, The Blueprint 3, concebido por Jay-Z e recém-saído do forno, foi cercado de muita expectativa no universo musical. Os oito anos que separam os lançamentos de The Blueprint, disco que deu início à saga, e este BP3 foram especialmente marcantes para a carreira do empresário-MC. Se no primeiro LP, possivelmente o mais importante da carreira do HOVA, havia muito a ser dito, criticado e inteligentemente observado, além uma série de inovações na produção, nos beats e timbres – como por exemplo o surgimento de um certo Kanye West na contenção da grande maioria das faixas –, o segundo e mais fraco dos três álbuns apresentou um Jay-Z estranhamente preguiçoso, escorado em um time fraco de convidados (não muito) especiais, que fatalmente encobriram boa parte de seu talento, além de um punhado de tentativas mal-sucedidas de crossover rap/pop. Além disso, um verdadeiro abismo comercial e até mesmo conceitual separa o CEO Jay-Z de 2009 do ex-traficante de língua afiada nascido no Brooklyn (NY) e com um ótimo disco no curriculum vitae (o espetacular debut Reasonable Doubt, de 96). Portanto, a sensação que se tem ao longo das (várias) primeiras audições do terceiro volume da série é a de que a metralhadora vocal do homem que nunca escreveu suas rimas (!) já esteve mais carregada de munição. A necessidade de parecer politicamente correto para com uma sociedade que o aceita tão bem após tantos anos no “jogo” contrasta de forma gritante com o discurso do rapper que sempre questionou tudo e todos – de MCs a traficantes, de ex-mulheres a grandes corporações. A aparente discrição se torna ácida e letal quando o tema são outros rappers e a situação do gênero na virada da década: “Eu voltei para eliminá-los, mas vocês mesmos parecem já ter feito isso por mim” (alguém precisava ter dito isso, Jay!). A produção de The Blueprint 3, entretanto, mostra que o Poderoso Chefão do rap sabe exatamente como conduzir as coisas. Faixas produzidas por Kanye West, Timbaland e No I.D. mantêm o nível lá em cima, enquanto a participação de um grupo reduzido de convidados (nada) especiais não chega a comprometer o resultado final, transformando o LP numa agradável mistura dos dois primeiros volumes da série. Por essas e outras, se você não gosta de Jay-Z, bom sujeito não deve ser. (Em tempo: não deixe de conferir o sample espetacular, e não creditado, do petardo “Ele e Ela”, de Marcos Valle, na faixa “Thank You”.). 3Por Pedro Pinhel

1Broadcast and The Focus Group . Investigate Witch Cults of the Radio Age . Warp Records . 2009 O novo EP (48 minutos e 23 faixas – imagine o álbum) da dupla britânica de música retro-eletrônica Broadcast é uma parceria com o amigo, capista oficial do grupo e pioneiro da “assombrologia” (“hauntology”, em inglês, termo adotado pelos críticos Simon Reynolds e Mark Fisher) The Focus Group, também conhecido como Julian House. O disco é a convergência entre o pop eletrônico sessentista do Broadcast (que deve a sua existência a grupos como The United States of America) e as colagens climáticas do Focus Group, que ressuscita sons mortos (vozes, barulhos da natureza) para uma nova vida como espectros melódicos sob uma camada lo-fi e mal-sincronizada de efeitos. O resultado é a trilha sonora para uma bad trip de LSD passada dentro de um filme de terror japonês, ou para uma versão pagã e primaveril da série de videogames Silent Hill. Ao mesmo tempo, é o som de um passado imaginário, com melodias ensolaradas como em “The Be Colony”, porém assombrado mais por impressões e sentimentos do que por fantasmas reais. 3Por Amauri Stamboroski Jr.

Uma das grandes surpresas do hip-hop em 2009 atende pelo nome de Blitz The Ambassador. Nascido e criado em Gana, na África, embalado pelos ritmos do afro-beat e do highlife (música popular de Gana), o rapper tem em Fela Kuti e Hugh Masekela suas principais influências. No rap, sua inspiração está em nomes como KrsOne e Rakim. Em Stereotype, seu álbum de estreia, ele apresenta uma sonoridade que define como AfrotronicHop – que remete a The Roots, porém com um clima mais festivo e alegre. Acompanhado por sua banda, The Embassy Ensemble, que tem como carro-chefe um naipe de metais espetacular (com membros do genial Hypnotic Brass Ensemble), Blitz The Ambassador faz um dos sons mais criativos no hip-hop atual. Mas não é só o som que impressiona. Sua levada é agressiva e suas letras têm um discurso poético raro hoje em dia. Em meio a tantas bijuterias descartáveis lançadas no mercado fonográfico, Stereotype é um disco que vale ouro.. 3Por Daniel Tamenpi

1Built to Spill . There is no Enemy . Warner . 2009

Com um disco com o mesmo nome de uma graphic novel de ficção científica distópica que fala de genética, o Anti-Pop volta como grupo. Quando surgiram, eles eram só respostas sonoras ao que pareciam ver como caretice no hip-hop, trabalhando muito a estrutura das músicas, os timbres nas batidas e nas vozes, as interpretações das levadas e as rimas mais complexas. Era um troço agressivo, mas não tanto quanto esse disco. Ou talvez mais, porém de outra maneira. Não consegui pescar se foram as tensões internas da reunião após uma separação nunca muito bem explicada ou se foram as realizações dos projetos e carreiras solo desde o disco Arrhythmia, de 2002, que pesaram. A segunda hipótese parece fraca: Beans era sem dúvida menos abrasivo do que o próprio Anti-Pop, High Priest, mais experimental e barulhento, e mesmo assim muito diferente do que escutei aqui. Não sei muito do produtor E. Blaize, mas o disco é menos fraturado sonoramente que Tragic Epilogue, de 2000, e The Ends Against the Middle, de 2001, numa sequência lógica do álbum do ano seguinte. As ideias sonoras como intrusões e surpresas do início foram ficando mais concisas ao longo da discografia do grupo – é só comparar qualquer música do primeiro disco com “Ping Pong”. Tensões internas, talvez, mas soa meio pretensioso, no final das contas. Ninguém aqui é biógrafo dos caras. O que leva a outra explicação, talvez a mais simples de todas. Trata-se um disco mais dominado por M. Sayyid, o MC que eu ainda não tinha mencionado. Nas levadas e no timbre de sua voz, ele sempre foi o cara mais assemelhado ao rap mais dedo na cara que costumamos identificar como o de Nova York. Sim, como seus parceiros, o que ele sempre fez foi parecia partir de uma releitura – às vezes bem intelectualizada – do rap em geral para criar formas novas. O problema é que, perto dos malucos com quem ele cola, Sayyid até parece normal. Não sei se é uma hipótese válida. Mas acho que fala um pouco sobre o disco. 3Por André Maleronka

Esqueça o álbum anterior, You in Reverse, que prendia rapidamente a atenção pela músicas mais diretas e, diga-se de passagem, menos criativas. Aperte o play e prepare-se para ouvir um disco denso, composto por riffs de guitarra longos e etéreos combinados ao vocal anasalado e arrastado de Doug Martsch – a mente inventiva por trás da banda. There is no Enemy, oitavo álbum de estúdio do Built to Spill, demora para conquistar, mas quando se revela mostra a diversidade de texturas e camadas de cada canção com ecos de anos setenta. São os detalhes que passeiam por entre os solos de guitarra e o ritmo sólido que fazem este disco brilhar: o trompete na agridoce “Things Fall Apart” ou a trompa inesperada e melódica em “Life’s a Dream” mostram que não há fronteiras criativas, mesmo para uma banda que perdura há mais de 15 anos na estrada. Depois dos dois últimos discos, que se perdiam em lugares-comuns, riffs repetitivos e letras sem graça, Doug retoma o melhor do passado do Built to Spill, tão bem registrado nos épicos Perfect From Now On e Keep It Like a Secret. E, mesmo que ele diga que as letras não são autobiográficas, parece que agora tem algo a proferir: “Venha aqui e fique por um tempo/ Tudo o que eu sei é o que quero dizer”, na letra de “Done”, oitava canção de There is no Enemy. A intenção é clara e convence.

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3Por Marina Mantovanini

1Anti-Pop Consortium . Fluorescent Black . Big Dada Recordings . 2009

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alex vieira

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Foto: Gabriela D`Andrea l Arte: Renato Petillo

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