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+soma . #13

E lá se vão três quartos de 2009. Pois é, a primeira década do terceiro milênio já era. E que década. Emissão de carbono, explosão demográfica, terrorismo, crise alimentar, bolha financeira, redes sociais, web 2.0, o mundo indexado por algoritmos, aquecimento global, células-tronco, gadgets tecnológicos inconcebíveis 10 anos atrás. O mundo sem pé nem cabeça, o mundo com pés e cabeças demais. Na música, vimos a crise da indústria do disco virar o nascimento da indústria das músicas em games. Vimos o esfacelamento dos feudos pop dar espaço a partículas musicais infinitas, boiando na indefinível matéria negra do que antes era o mercado. Nas artes, latas de spray brasileiras saíram de muros puídos dos centros urbanos para a parede de castelos medievais e o interior de museus outrora sisudos. Nos EUA, ajudaram a eleger o primeiro presidente negro da história do país. Em um mundo que precisa parar de acelerar, mas que não pode parar de acelerar, o que é mais importante? Manter o foco, talvez. Manter a sanidade, como? Viver bem, com certeza. Qual o lugar da arte e da música dentro disso tudo? Nós não sabemos ao certo. Mas sabemos que elas são necessárias. E é necessário que elas sejam, tanto quanto possível, livres. É por isso que, a cada dois meses, matamos nossos leões para colocar a +Soma nas ruas. Afinal, alguém precisa lembrar que, em setembro, completam-se 10 anos do lançamento do álbum Fortificando a Desobediência, do rapper

Xis,

que coloriu o cenário acinzentado como concreto do rap brasileiro.

Ou fazer uma análise detida e contextualizada da obra de Fabio Zimbres, um gênio das artes visuais no país que, generosamente, emprestou seu talento a mídias distintas, que circulam pelas ruas em fanzines xerocados ao mesmo tempo em que se prestam à contemplação em galerias de arte. Também achamos importante entrar na mente da artista

Fefê Talavera

e, se não desvendar, ao menos encarnar seus monstros e digerir sua manifestação personalíssima. Da mesma forma, queremos olhar de perto

Dea Lellis; investigar as raízes da música Tortoise; ouvir as histórias do eterno moleque

a violência sutil de menina de

Psilosamples João Parahyba.

do

e do

Você, que nos acompanha, vai notar também algu-

mas alterações no nosso projeto gráfico, sinal de que estamos também nos desapegando da década que passa. Nos tempos que vêm pela frente, ainda que não saibamos exatamente nosso papel, vamos continuar falando de pessoas e obras que perseguem arduamente a mesma ideia que nós: liberdade.

+Soma



+conteúdo 16

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80 shuffle fabio zimbres

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seja como é tortoise do comando vermelho ao pcc

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joão wainer o bicho-moleque joão lil monsta

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entre(outros) p.u.t.s. galeria pirata

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inteligente roça music quem é o moderno agora? quem soma

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seleta a bandeira laranja reviews

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quadrinhos coolt agenda

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ezekielbrasil.com 11


O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo. Para informações acesse: www.maissoma.com

Iniciativa .

ssssssssssssssssss

Kultur Studio Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP www.kulturstudio.com

REVISTA SOMA #13 Setembro 2009

Fundadores . Kultur alexandre Charro, Fernanda masini, Rodrigo Brasil e Tiago moraes

Editor . mateus Potumati Assistente Editorial . marina mantovanini Fotografia . Fernando martins Revisão . alexandre Boide Projeto gráfico . Fernanda masini Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera

Conteúdo áudio-visual . alexandre Charro e Fernando Stutz

Colunistas . Gustavo mini, Tiago Nicolas, Ricardo “mentalozzz” Braga & Daniel “ouriço” Peixoto, alex Vieira, Chico Felix e Guido Imbroisi

Gostaríamos de agradecer a Pedro Potumati, Pexão, Camila Miranda, Marina Camargo, Fotonauta, Agência Alavanca, João Wainer, a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início. Capa Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de

FEFÊ TaLaVERa

seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. Periodicidade . Bimestral Publicidade . Cristiana Namur moraes cris@kulturstudio.com

Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info

Para anunciar ou enviar material para review, entre em contato através do e-mail redacao@maissoma.com.

Impressão . Prol Gráfica Tiragem . 10.000 exemplares


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Ru Vil a F a M ida ad lga, ale 98 na Sã

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+colaboradores

Bruka Lopes

Janaina Felix

Renato Silva

Deve tudo a São Paulo, mas vai

Professora de inglês, faz traduções

Editor do Fanzine Colateral

criar o filho no interior. É jornalista.

em troca de entradas para o

e estudante de Letras na

Espaço +Soma. Quando voltar a

Universidade de São Paulo. Sua

beber, vai abrir uma Quilmes.

vida se resume a arte, música, literatura e nada de televisão.

Joshua Klein

Tiago mesquita

Fotonauta

Jornalista, mora em Chicago e

É crítico de arte e professor.

O Coletivo Fotonauta é: Andrea

escreve para o Pitchfork, Chicago

Marques, Daryan Dornelles e

Tribune e Time Out Chicago, entre

Eduardo Monteiro.

outros. Faz um frango assado responsa e gasta seu salário comprando giz de cera para as duas filhas pequenas.

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Debora Pill

marcelo Viegas

Daniel Tamenpi

É jornalista, produtora cultural

Skatista, cientista social e editor

Jornalista, pesquisador musical

e apresentadora do programa

da revista CemporcentoSKATE.

e DJ especializado em soul, funk

“Conexões Urbanas”, na rádio

É vocalista da banda Ästerdon e

e hip-hop. Escreve o blog Só

Eldorado FM.

faz parte do blog coletivo Zinismo.

Pedrada Musical, onde apresenta

Fã de José Saramago, Juca Kfouri

lançamentos e clássicos da

e Blagoslava Stipovic Mozetic, não

música negra.

exatamente nessa ordem.

andré maleronka

marina Camargo

Dagoberto Donato

É jornaleiro, não sabe cozinhar

Artista plástica e ilustradora,

Ou só Dago, toca o bimahead.

e gosta de comer strogonoff de

nasceu em Maceió e cresceu em

blogspot.com e é sócio do

carne frio às três da manhã.

Porto Alegre. Hoje faz do mundo

Neu! Club.

seu quintal e dos mapas e das letras sua inspiração e trabalho.

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Rodrigo Brandão – também conhecido por Rodrigo, Brandão, Audiolandro, P-Funk e até papai (por seu filho Jorge, claro) – é membro atuante do rolê paulistano na seguinte proporção: é 50% do vocal do Mamelo Sound System e 100% do agilizo de 100% dos eventos que ainda me fazem sair de casa. Além disso, é meu colega e truta de Chaka Hotnightz. Colei na goma – aliás, doce lar –, para trocar a boa e velha ideia de som. Liga um trecho da chapação na volta em grande estilo da Shuffle. 1

O play que quem é de verdade sabe que é de verdade mesmo Their Satanic Majesties Request, Rolling Stones. Como saiu depois do Sgt. Pepper’s, foi apavorado de cópia, mas é genial, se pá o melhor deles, e se pum mais ácido que o dos Beatles.

O discão galinha dos ovos de ouro Tábua de Esmeraldas, Jorge Ben. Quem me mostrou foi o Chico Science, e desde a primeira vez que rolei numa pista o bicho pegou. Um disco de ouro Paul’s Boutique, Beastie Boys. Simplesmente uma das maiores obras-primas da era moderna, sampladélico ao extremo. O tipo de álbum que já não seria possível no mundo de hoje. Um disco de pai pra filho A Love Supreme, John Coltrane. A Omotunde, Teresa, Pantera e quem mais vier. O seu LP for P-Funk Como o George Clinton é um octopus com duas cabeças, vou ser obrigado a burlar a regra e escolher um de cada, porque senão o coração não aguenta: Clones Of Dr. Funkenstein, Parliament e Maggot Brain, Funkadelic. Um play em que você já pirou antes mesmo de ouvir e que quando ouviu descobriu que era ainda mais foda Aí a resposta é Tragic Epilogue, Anti-Pop Consortium. Seu disco de amigo de straight edge The Revolution Will Not Be Televised, Gil Scott-Heron. Esse não é 7-ep (como diz a gíria pinheirense), mas é 7P: Poder pro poeta preto, punk e perigoso, porra! Um disco de que Sun Ra falou Kung Fu Meets The Dragon, Lee “Scratch” Perry. Porque ninguém é mais místico que o mestre do dub... Seu disco preferido de afro-samba gravado ano passado por um sambista da nova geração vindo de Guarulhos e do hardcore Como o Pastiche Nagô do Kiko Dinucci e seu Bando Afromacarrônico ainda não saiu em vinil, vou ser obrigado a dropar um humilde substituto: Os Afro-Sambas de Baden Powell & Vinícius De Moraes.

Disco que eu mais peguei emprestado durante uma Chaka Love Below, Outkast.

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desenhos de sucata:

fabio zimbres Por Tiago MesquiTa . FoTos Marina CaMargo

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Contar a piada: Meio Em 2000, Fabio Zimbres lançou um daqueles divertidos livros animados, em que as figuras se mexem enquanto folheamos rapidamente. Trata-se de uma narrativa muito simples, na verdade uma gag, típica de antigos programas humorísticos. Acredito que a pequena peça seja exemplar da linguagem de Zimbres nos desenhos, quadrinhos e ilustrações. O livro dedicava-se ao decoro, aos bons costumes e ao respeito ao próximo. Não por acaso, foi intitulado Bem Educado. O artista gosta do assunto. Tanto que reuniu alguns dos seus desenhos e pinturas em um volume chamado Guia Prático de Boas Maneiras. Alguns de seus personagens, como Hugo, das tiras do álbum Vida Boa (2009), e Alcides, em Música Para Antropomorfos (2007) perdem um tempão escutando ou se auto-punindo pela inadequação às regras do “bom comportamento”. Em Bem Educado, dois personagens de chapéu se encontravam e se cumprimentavam. Um deles era a caricatura do homem sem qualidades. Desenhado esquematicamente, não tinha maiores características e nem detalhes que o singularizassem. Por isso, poderia estar tanto na margem direita superior de um convite de festa junina, como ocupar a estampa daqueles belos pijamas confeccionados na cidade de Borda da Mata (MG). Tal como as figuras egípcias nos hieróglifos e nas tumbas da antiguidade, era desenhado com a cabeça de perfil, o corpo de frente e os dois pés, lado a lado, idênticos, sem parte de dentro e nem parte de fora. Era uma forma idealizada, sem carne nem particularidades. Zimbres não dava pista de quem era o sujeito, mas colocava botõezinhos no que parecia

4CaPa soccer no hanashi

ser sua camisa e um chapéu na sua cabeça. O figurino transformava aquelas formas simples e dóceis, aquela silhueta achatada, com membros como apêndices, em um caipira, vestido como os homens de respeito se apresentavam no Brasil antes da década de 50 e continuam a se apresentar nas zonas rurais. Diante dele, um robô, feito com peças quadriculadas, de chapéu na cabeça e sunga nas partes pudorentas. Ele aparecia de frente, olhando para nós, que manuseamos o caderninho, e não voltava o olhar para o seu interlocutor. Como muitos dos personagens de Zimbres – sejam eles humanos, cachorros que falam, vestem terno, desenhos que se destacaram do papel – o robô parecia uma montagem de blocos coloridinhos a andar pelas ruas. Mecanicamente, guardava semelhanças com o homem, e fazia um gesto banal, mas recomendável quando alguém que merece respeito aparece diante de você. O caipira tirava o chapéu da cabeça e saudava a máquina, demonstrando cortesia. O robô, tão simples e cortês quanto seu interlocutor, notava a boa vontade e repetia o cumprimento. Notávamos aí que o decoro era um gesto automático, como se o robô estivesse aprendendo a ser gentil – ao retirar

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4panamรก


4original da CaPa Para o quadrinho antropomorfos

o chapéu, retribuindo uma gentileza, ele não notava que tirava fora sua cabeça. A máquina pifava e o caipira se assustava com o suicídio cometido pelo robô em nome dos bons modos. Como boa parte das histórias de Zimbres, o desfecho era ao mesmo tempo trágico e cômico. De forma condensada, o trabalho parece revelar alguns assuntos recorrentes na obra do artista. O primeiro, e mais evidente, é colocar, em um espaço meio indistinto, figuras que não parecem pertencer ao mesmo mundo. Ninguém espera que um robô conviva com um caipira a ponto de cumprimentá-lo na rua. Outra coisa que interessa Zimbres é remover a cabeça e outras partes do corpo de seus personagens. Agora mesmo, em 2009, ele mostrou uma série de desenhos à caneta em que figuravam disquetes, fitas cassete e outros objetos desmontados. As peças, afastadas umas das outras por linhas tracejadas, pareciam disponíveis para fazer qualquer coisa. Como em suas histórias, ele desmonta e remonta, faz da narrativa o que quer.

desMontar: CoMeço Em outros momentos, Zimbres deu sentidos diferentes à mutilação. Começamos do meio, então voltemos ao começo. Ainda na década de oitenta, Zimbres editava a revista Animal junto com Newton Foot, Priscila Farias e Rogério de Campos. Já no primeiro exemplar, ilustrava o índice com uma série de nove desenhos em que aproveitava a cabeça de um rato e a colocava sobre nove corpos diferentes, separados à mesma distância; um padrão de fazer inveja a quem arranja as prateleiras dos melhores supermercados e a qualquer artista do minimalismo. A cabeça de rato se parecia muito com a cabeça do Mickey, mas sem os traços de neotenia que nos fazem ver no personagem de Walt Disney uma figura bonitinha que nunca envelhece. Em cada uma de suas nove aparições, o rato era uma coisa diferente. Surgia com a blusa do Pato Donald e os membros inferiores de um rato de esgoto; com as luvas e sapatos do Mickey, mas nu, com o sexo exposto; como robô, executivo, super-herói, super-herói decadente e dançarina havaiana. 22


Ao deslocar uma parte do corpo de um íco-

ZiMbres e seus parCeiros de jornada busCavaM o MesMo tipo de liberdade narrativa e de desenho livre, seM neM a infantiliZação do traço neM o kitsCh MusCuloso das revistas de herói.

ne dos quadrinhos e montá-lo nas partes de outros personagens, Zimbres subvertia o sentido daquelas figuras e mostrava a que a sua geração vinha. No seu desenho, o rato

4vida boa

continua a ser Mickey, mas menos idealizado e mais trágico, como se tirasse a fantasia e largasse com ela toda a segurança de um desenrolar previsível e feliz. Agora a vida dele era vivenciada como a nossa. Essa nova abordagem dos personagens e das narrativas dos quadrinhos era almejada por boa parte dos autores e editores da Animal. Figuraram, naquelas páginas, gigantes como Vuillemin, Andrea Pazienza, Jaca, Gary Panter, Filipo

Em vez de recriar as alucinações, o artista desfazia a ilusão e, com o tempo, passou a se ocupar de ilusões cada vez mais complexas. Fez formas de desenhar mais simples e modos ainda mais sofisticados de dispor as figuras na página. Em 1991, com a Animal na raspa do tacho e o amor no peito, Fabio Zimbres mudou-se para Porto Alegre. Lá, se aproximou das artes plásticas e aprofundou sua pesquisa. Sua abordagem dos quadrinhos passou a lidar com o espaço da página e distribuir narrativas simultâneas, que muiScozzari etc. Buscavam uma renovação da narrativa e do desenho nos

tas vezes se sobrepunham umas às outras. As formas de decompor e des-

quadrinhos. Desde o uso de balões até a disposição dos quadros na pá-

construir, antes temáticas, passaram a se ocupar com a narrativa e o modo

gina, tudo podia ser repensado. Zimbres e seus parceiros de jornada bus-

como ordenar a passagem de uma página à seguinte. Por isso, ele passou a

cavam o mesmo tipo de liberdade narrativa e de desenho livre, sem nem

se dedicar cada vez mais ao desenho, à pintura e à ilustração.

a infantilização do traço nem o kitsch musculoso das revistas de herói. Curiosamente, o raciocínio trabalhou com algumas questões que perpassa-

a ideia hegeMôniCa de underground ainda tinha alguM sentido Contestador. proCurava-se afirMar uM gosto que não é o estabeleCido e não quer ser refinado, Mas que proCura Contar algo novo, que até então não interessava a ninguéM. Mas, ao Contrário dos CoMix dos anos sessenta, que CriaraM a hq underground, os quadrinhos de ZiMbres não busCavaM uMa relação CoM as aluCinações e neM CoM realidades subterrâneas, Cheias de aspeCtos repugnantes, sexo e exCreMentos. sua abordageM não era de uM realisMo ao Modo de dauMier ou os freak brothers, de gilbert shelton. CoMo na história do Caipira e do robô, lhe interessaM situações Corriqueiras – aliás, absurdas de tão Corriqueiras. Uma de suas primeiras páginas, de 1990, foi a série

ram boa parte da produção pictórica da década de oitenta. Muito da pintura feita naquela época se dedicava a sobrepor e relacionar figuras que pareciam pertencer a momentos diferentes. O trabalho de David Salle foi o exemplo mais caricato desse tipo de trabalho. Lá, duas instâncias de pintura falam

Minha Vida de Cachorro. Nela, um personagem com cara de cachorro e corpo de gente, como o Pateta, aparecia flutuando sob um feixe de luz, como em um programa de TV, e dizia: “levitar é fácil, basta tirar os pés do chão”. Nada de fato acontecia e ele não nos ensinava nada. 23


de forma cínica sobre uma moralidade sexual. Uma camada é mais realista, outra um desenho transparente que aparece sobreposto à imagem mais convencional. Embora essa sobreposição tenha ótimos resultados na pintura de um Julian Schnabel, considero fraco o modo como Salle associa uma parte à outra. O artista usa uma imagem como espécie de sentido oculto da cena pintada com mais rigor. A figura mais apagada explica e condena a outra. Salle não inventou isso e nem estava sozinho: era o espírito de uma época, e ótimos artistas brasileiros trabalharam a questão muito bem. No trabalho de Zimbres, acredito que isso tenha aparecido por ele trabalhar no entrecruzar de diversas poéticas. Agora, nada mais distante da produção de Zimbres do que essa intenção didática. O que ele consegue com essa sobreposição é criar associações livres. A ideia, creio eu, veio dos quadrinhos. Como ele tem uma cultura de quadrinhos maior que a biblioteca de Alexandria, seu raciocínio em pintura e em desenho sempre acompanhou uma reflexão sobre a linguagem. O artista também foi editor, por anos, da coluna Maudito Fanzine, em que acompanhava a produção de zines de todos os cantos. Talvez por isso ele tenha encontrado na produção de livros de artista a melhor forma de reunir aquele raciocínio de pintura e ilustração com o das narrativas sequenciais. Já em suas primeiras tiras, havia uma espécie de indefinição do lugar onde acontecem as cenas e uma omissão do que acontece no intervalo entre um quadrinho e outro. Quando o desenhista começou a trabalhar os seus livros de artista, como Adelante, A Luta Entre o Bem e o Mal e Balanço Anual, os assuntos passaram a ser a forma de o desenho ocupar a página, a falta de sentido de signos soltos e mesmo a tentativa de retirar qualquer sentido moral das figuras. O traço do artista tentava diminuir a zero o grau de interpretação. Não se tratava mais de quadrados que criavam uma narrativa no tempo, mas figuras que ocupavam um espaço e faziam algo naquelas páginas por se associarem de uma forma meio solta. Livros como As Férias de Hércules e o trabalho magistral feito a partir do po-

Mal comparando, quando Picasso e Braque, em 1908, durante o chamado

ema Panamá (2004), de Blaise Cendrars, aproveitam o caráter gráfico e inter-

cubismo analítico, resolveram desmanchar o volume e dissociar os contor-

cambiável das figuras, que muitas vezes são tratadas como caracteres soltos

nos e cores do desenho, criaram outras relações e trouxeram liberdade para

no espaço, que mudam de sentido de acordo com o contexto. Como palavras

a arte. Logo, as faces de uma paisagem eram tão planas quanto as letras da

que, utilizadas em um lugar diferente, aludem a sentidos diversos. Em seu

tipografia e, assim, passavam a se relacionar como elementos superficiais.

gibi Música Para Antropomorfos (2007), um homem esquisito é apresentado

Esses elementos por vezes sugeriam imagens, por vezes apenas uma coisa

como um sujeito solitário, a criar bichos de sucata e atribuir vida a eles, e

ao lado da outra. Mas se tratava de um período heróico da modernidade,

depois é mostrado como um prédio. Torna-se um grande empreendimento

com confiança na razão e no seu potencial de colocar as coisas juntas.

imobiliário, onde acontecem golpes de estado, programas culturais e todo o tipo de absurdo da razão. A partir desse momento, o artista estabelece uma

Fabio Zimbres trabalha em outro período, a partir de outros elementos. Por

relação solta entre os elementos. As cenas são sugeridas, mas cheias de inter-

exemplo, figura material obsoleto, fitas, disquetes. Imagens gastas, como a

ferências. A ilusão feita e refeita pela proximidade das figuras. Quando refaz

do Mickey. Desenhos e figuras se parecem com resíduos de um futuro que

as imagens de Cendrars em Panamá, Zimbres procura isso. Aqui, permito-me

já passou. Por isso, ainda se trata da ilusão. Em Música Para Antropomorfos,

aproximar alguns desses procedimentos poéticos de decisões das primeiras

a manutenção da primeira edição de alguns livros e a audição de discos na

vanguardas modernistas. Por um lado, a associação vem do trabalho feito a

prensagem original faz toda a diferença. Os personagens, que acreditam

partir do poema de Cendrars, mas essa dissolução da cena cria relações sol-

viver em um ambiente superior – quando vivem enclausurados em um robô

tas entre as figuras e mesmo entre os elementos de cada figura.

–, acreditam que um disco de vinil modificará a vida de um sujeito de um modo que a cópia digital jamais fará. Enquanto vivem um golpe de Estado, perdem tempo com discussões vitais sobre as diferenças de tradução do sábio Undraganah por Jundaí e Thelonious Monk.

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4à direTa, CaPa Para revisTa Voodoo e ao lado as férias de hércules

Em sEu gibi MúsiCa para antropoMorfos (2007), um homEm Esquisito é aprEsEntado como um sujEito solitário, a criar bichos dE sucata E atribuir vida a ElEs, E dEpois é mostrado como um prédio. torna-sE um grandE EmprEEndimEnto imobiliário, ondE acontEcEm golpEs dE Estado, programas culturais E todo o tipo dE absurdo da razão.

juntar as peças: final Para encerrarmos com o fim, em 2009 Fabio Zimbres lança Vida Boa. Nele, o artista reuniu as tiras que ele publicou entre 1999 e 2001 na Folha de S Paulo, fez mais quarenta tiras e arrumou tudo em uma história. Acompanhamos as desventuras de um cachorro antropomorfizado a lamentar sua falta de sorte, seu fracasso e celebrar as suas conquistas para um copo. O objeto começa a falar depois que um dos amigos de Hugo, também com cara de cachorro, diz que “Deus poderia ser um copo”. E o copo responde. Depois disso, não sabemos se os diálogos com o copo são o superego do protagonista ou um objeto bem acabado a caçoar da vida patética dele. O fato é que Hugo passa a depender completamente da interlocução com o objeto, tal como muitas outras formas de oráculo ou de manias que criamos para a vida. Mas a maior ilusão de Hugo é a de que amanhã, tudo bem. Pouco a pouco ele perde quase tudo, menos a esperança de dias felizes. O tema também aparece nos desenhos que o artista expôs este ano em uma coletiva em Porto Alegre. Em trabalhos feitos a caneta, pedaços de figuração parecem inventar espaços domésticos e paisagens quase primitivas. Tudo parece meio falso, como as promessas que fazemos pra nós mesmos deitados na cama. Em 2006, Zimbres publicou um artigo no jornal da Sociedade dos Ilustradores do Brasil. Nele, concluía: “Se o mercado de ilustração se resumisse a fazer sempre o que o editor quer, eu estaria fazendo outra coisa. Não porque ache isso menor, mas porque é uma forma de trabalhar que não me interessa pessoalmente. O mercado de ilustração é vasto e há muita coisa diferente para se fazer. O importante é cada artista achar seu lugar.” Fabio Zimbres achou o seu, e é um universo. 3

1Saiba maiS www.fzimbres.com.br

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O MO

É

SEJ C A

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“As pessoas gostam muito mais do Seja Como For do que do Fortificando a Desobediência, por quê? Porque o Seja é mais filmezinho, tem mais começo, meio e fim. Tanto que fez sucesso, e é um disco artesanal!”, conta Marcelo dos Santos, 37, mais conhecido como Xis. O aniversário de dez anos do lançamento de seu primeiro disco solo – um clássico do rap nacional, que trouxe sucessos como “Us Mano e As Mina” e “Bem Pior” – pareceu uma ótima desculpa para bater um papo com ele. O estranho silêncio da imprensa em torno desse aniversário só aumentou o entusiasmo em conduzir a conversa, que, além da feitura do álbum histórico, também revela momentoschave do rap no Brasil. 1

Por André Maleronka

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Como foi fazer o disco? o seu primeiro single solo, “De Esquina”, tinha estourado. Eu não tinha pensado em disco até 1996, quando o DJ Hum e o Thaíde fizeram O Poder da Transformação, uma coletânea pela Paradoxx. Cara, 95 e 96 foram os piores anos que eu vi pro rap. Nenhuma rádio tocava, nem os 50 Cents da vida que tocam hoje em FM. Não tinha nada, nem R&B, nada. Era rock e rock. Aí o Hum chamou eu e o LF (ex-colega de Xis no DMN) para o álbum, cada com uma composição. O LF não quis, e eu não queria fazer sozinho. Na época eu ficava na Cohab rabiscando com uns moleques da área, ensinando umas métricas, uns flows. Nessa eu conheci o Dentinho e gravamos “De Esquina”, em 96. A música saiu em 97 e estourou. O Natanael [Valêncio, DJ já falecido] tocou ela bastante na rádio que hoje em dia é a SulAmérica Trânsito, 92,1 FM. Depois ele foi pra 105 FM e continuou tocando. A música estourou umas três vezes, e aconteceu o mesmo com “Us Mano e as Mina”, que estourou duas vezes, em épocas e lugares diferentes. Mas a Paradoxx não dava assistência nenhuma. mesmo quando estourou? Não, tava bem ruim. Mas era um começo – pro RZO, pro Consciência Humana – de composições que fizeram sucesso três anos depois. Eu fiquei de 89 a 94 até conseguir lançar um disco pela Zimbabwe, o Cada Vez Mais Preto (do DMN). Só que as músicas foram feitas entre 88 e 91. Então as letras de 94 a 96 saíram no Seja Como For, em 99. A gente tava ali, canetando e brigando pelo rap nacional. Um disco que mudou muita coisa pra gente foi o The Chronic, do Dr. Dre, de 92. A gente – Racionais, DMN – vinha naquela de Boogie Down Productions e Public Enemy. Tinha o De La Soul e outros, mas [modelos] eram esses dois. Quando chegou o NWA e o Dre, nossa cabeça abriu pro G-Funk e pras paradas mais lentas, não tão cravadas como eram as do PE. Aí, como eu precisava fazer show, pedi a instrumental e a vocal da “De Esquina” e a Paradoxx liberou. [Na sequência,] fiz uma música chamada “Só Por Você”, uma balada. Hoje, você entra naquele “Letras Preferidas” no site Vagalume e ela é das mais votadas. A mulherada gosta – na época ninguém fazia musica pra mulher, os caras tinham vergonha, sei lá. O rap tinha essa coisa de falar contra branco, de falar da rua. Na época nem falava tanto do crime. Aí fiz um single com “Só Por Você” e “De Esquina”, que foi o que começou a bancar o Seja Como For. Eu e o KL Jay prensamos três mil cópias pela 4P, gravadora que foi montada a partir desse single. Eu trabalhava de vendedor – hoje dá pra viver de rap, fazendo som na rádio Mix FM, vou estrear um programa de TV no segundo semestre, mas na época não tinha como. O Kléber (KL Jay) me deu mó força, falou “não, mano, a ‘De Esquina’ é muito louca”. Eu sempre achava que os caras falavam isso zoando, porque naquela época, em 97, tinha os bailes – Chic Show, [Projeto] Radial, Clube da Cidade – e a galera tinha preconceito com os “lagartixas”, uns caras que dançavam que nem a galera dança funk, rebolando. A música tocava muito nos bailes e esses caras dançavam, então eu ficava meio cabreiro quando me falavam que o som era da hora. E realmente fez muito sucesso, abriu a porta pra eu poder fazer o meu disco. Porque você saiu do DmN? Por várias coisas: por causa do tema, e porque banda é sempre difícil – um pensa de um jeito, outro pensa de outro. A gente cresceu junto: eu, LF, Slick (a primeira formação do DMN). O Slick era amigo do Kléber pra caramba, depois eu fiquei mais próximo do Kléber do que do Slick, e a gente abriu muito show do Racionais entre 89 e 94. O último que fiz com o DMN foi no Corinthians, lançamento do disco do Racionais. Fizemos vários projetos maneiros com o DMN. O Projeto Rap no [Instituto da Mulher Negra] Geledés, a revista Pode Crê!, primeira revista de hip-hop daqui. Uma edição foi com o Brown na capa, outra com Thaíde. As pessoas esquecem disso. Uma revista feita por mim, pela Sharyline, pelo Marcão do FNR, pelo Face Negra, pelo Resumo do Jazz. Bandas da quarta, talvez quinta geração de bandas de rap daqui. 29


E o DMN fez coisas importantes. Além de ter tocado em tudo quanto foi lugar e levantado a bandeira da questão racial, teve um projeto chamado Repensando a Educação em mais de 60 escolas na periferia de São Paulo, na época da Erundina – isso foi uma das paradas mais loucas que já fiz na vida. Mas era muito difícil. Não é como hoje, todo mundo vai pra um lugar, tem microfone aberto, um par de toca-discos e sai tocando. Enfim, eu cansei do tema, do flow, saturou a amizade também, muito mais com o LF – que nem tá mais no Brasil, acho tá em Nova York há um tempo. Acho que minha cabeça na época tava mais aberta que a dos caras. Eu queria fazer uma parada mais ampla. Mesmo no dmn,

eu já queria falar menos da questão racial e ampliar: falar do problema do onibus, da esquina, falar de amor. Não ficar somente ˆ nas palavras de ordem. Era muito baseado no Public Enemy, e portanto

E mudou a cara do rap nacional, né? Porque esses artistas anteriores

na questão americana. Sempre foi muito São Paulo/Nova York, muito Brasil/

eram outra linha, não eram politizados.

Estados Unidos. Mas assim a gente esquecia do próprio bairro e esquecia do

Acho que isso vem da época da Zimbabwe. De 89 até 94 as paradas eram muito

resto do mundo também. Aí a gente foi quebrando algumas barreiras: pegava

politizadas, tinha uma proximidade muito grande com o movimento negro. Os

um som num sábado, ligava na caixa d’água na Cohab, aí ia tocar numa escola

caras de baile curtiam, mas quando você colava com bombeta ou agasalho na

não sei onde. Conforme ia chegando mais gente, a molecada vinha com outras

festa, meio que davam uma brecada. E os DJs eram DJs de baile, não eram MCs,

informações, com outras gírias, outras preocupações. Lembro de uma vez que

sabe? Quem apoiou, chegou falando “tem aqui uma data pra vocês” foram Mo-

o Brown me ligou falando: “Pô, a gente tá falando muita coisa igual, será que é

vimento Negro, Geledés, MNU (Movimento Negro Unificado). Isso por um lado

só isso mesmo?” E não era só isso. Dá pra você falar de diversas coisas dentro

foi do caralho – váááários livros! Foi uma escola, uma parada que eu sinto falta

do rap, mas na época as pessoas não aceitavam. Aí acabei saindo. Teve uma pá

na galera de hoje. Num certo momento deu uma saturada, porque os caras falavam: “ó, você tem que falar isso, tem que pensar assim”.

de coisa pessoal também, conviver é embaçado.

E a gente ficava cantando mais na USP e na Faculdade E quando você vê a mudança, a saída desse pior

de Direito do que na perifa. Viramos porta-vozes do

momento do rap?

movimento negro de São Paulo. Brasília sempre teve

Talvez a ida do Natanael pra 105, que é o começo do

uma frente legal, também. Quando a gente lançou o

Espaço Rap.

disco com o DMN, pensei: “Abalamos, chegamos perto

Pegava no interior paulista inteiro, quase... É, e assim a gente conseguiu fazer uma frente. A força que veio do interior, e aqui Zona Oeste, Norte, Sul e Leste escutando o Natanael. E também tinha as equipes: Black Mad, Zimbabwe, Kaskata’s. Isso eu acho que deu a liga. O rap nacional teve vários estouros. Antes do Cultura de Rua (coletânea de 1988), o Pepeu fazia muito baile, [Ndee] Naldinho fazia muito baile, Mike Bacana, vários caras. Bailes que não existem mais, que hoje são bailes funk, tinham rap, tudo dentro do baile black, naquele contexto, antigão. Normalmente fazendo versões de músicas americanas. Tinha a “Bastião”, “Melô da Lagartixa”. Tinha o Black Juniors também. Entrou na trilha sonora da Chispitas, foi sucesso com as crianças. Lembro como se fosse hoje, a morte do Michael Ja-

Lembro de uma vez que o Brown me ligou falando: “Po, ˆ a gente tá falando muita coisa igual, será que é só isso mesmo?” E não era só isso. Dá pra você falar de diversas coisas dentro do rap, mas na época as pessoas não aceitavam.

ckson me fez pensar nisso. Comprei uns onze discos

do disco do Racionais”. Aí no mesmo mês chegou o Câmbio Negro apavorando! A produção era bem melhor do que a nossa, o X e o Jamaika estavam muito mais entrosados. Você não consegue fazer uma parada fodida sozinho em casa. Se não tiver uns parceiros que manjem de som, não acontece. quanto tempo de estúdio para gravar o Seja Como For? Nossa, cara... A gente colocou “De Esquina” na 24 de Maio (rua que concentra galerias com lojas de discos no centro de SP), demos de mão em mão e a música começou a estourar. Depois levei “Só Por Você” na 105 e o Calmon, diretor da emissora, falou: “Que porra é essa? Isso é Xis? Isso é rap?” Eu falei “é, é um rap pras minas”. Ele me olhou meio assim, mas um ano depois veio me dizer: “Lembra aquela música, aquilo que eu falei? É a mais pedida aqui, a mulherada adora”. Foi aí que a gente falou: vamos fazer o álbum. Eu

do Bezerra da Silva com o meu pai. O disco saía numa sexta-feira e no sábado

tinha muita letra. Eu e o KL Jay começamos a procurar estúdio. Não lembro

a gente saía do Buraco Quente na Vila Formosa e subia até uma lojinha que

bem como, mas o Paulo Boy apareceu, e produzimos com ele desde o come-

acho que existe até hoje, na [Av. Dr.] Eduardo Cotching. Lembro

que em 82 a gente foi nessa lojinha, eu pedi e meu pai comprou um compacto do Black Juniors pra mim. Aquilo mudou minha vida! Malcom McLaren, naquela vinhetinha da Bandeirantes fm que passava na tv, o Michael Jackson e o Black Juniors foram essenciais. Consi-

ço. O disco saiu nesse dia, 8/10/99 (aponta um flyer na mesa), a gente deve ter ficado até o meio desse ano produzindo, e tínhamos começado no segundo semestre de 97. Praticamente dois anos, em três estúdios diferentes. “us mano e as mina” veio como?

dero esse um dos booms do rap, só o Miéle tinha cantado uma parada ali (“Melô

O Kléber tava na Alemanha, quando ele saiu daqui a gente tava com o disco

do Tagarela”, versão de Rapper’s Delight do grupo Sugarhill Gang, lançado em

praticamente pronto. Ele levou uma cópia pra escutar na viagem, eu fiquei

1979), depois o [produtor] Mr. Sam com o Black Juniors e aí os bailes. Era di-

com outra. Um dia eu falei com ele pelo telefone: “Kléber, não leva a mal, não,

tadura militar, época das Veraneios (viaturas de polícia). Cansei de ver função

o disco tá louco, mas tá faltando uma música que mostre a Cohab do jeito que

tomando geral e tapa na cara de polícia em porta do baile, ou mesmo na rua. E

ela é.” Porque chega final de semana, a rapaziada fica dando rolê de carro, as

aí veio o boom da São Bento, depois Cultura de Rua e o boom do Racionais em

minas ficam dando um rolê de três, quatro juntas na rua. Os caras jogando

92. A partir daí só deu Racionais! E mesmo assim quebrando pedra pra caralho.

bola. E o disco tinha saído daquele esquema de falar de preto e branco, fala-

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4Xis e Dentinho, autores de “De Esquina”, lá por 1998

4 Mano Brown (ao fundo) conferindo de perto um show do DMN nos anos 1990


va de amor, esperança, política, crime, mas ainda era um disco sombrio. “Fiz um som ali, não leva a mal, não”, eu disse. E ele: “Relaxa, pega nada, é tudo nosso”. Quando ele chegou no estúdio e escutou, fez uma expressão do tipo “caralho, fodeu, sonzeira”. Eu loopei o DeBarge, a música “I Like It”, aí fiz o beat. Estavam o King e o Paulo Boy escutando, achando legal, aí eu peguei o mouse e tirei todo o loop. Quando ficou assim os caras começaram a dar risada: “Hahahaha, música de lagartixa!” A gente ficou meia hora chorando de dar risada. Aí eu olhei pros caras e falei: “Vai ficar assim”. Eles: “Ah, você não tá fazendo isso”. Deixei o sample só no final, mas se você pegar e colocar em cima da música, vai ver que dá certinho. Aí toquei o tecladinho em cima. Na real eu sempre achei que “Us Mano e as Mina” era meio uma vinhe-

Depois levei “Só Por Você” na 105 e o Calmon, diretor da emissora, falou: “Que porra é essa? Isso é Xis? Isso é rap?” Eu falei “é, é um rap pras minas”. Ele me olhou meio assim, mas um ano depois veio me dizer: “Lembra aquela música, aquilo que eu falei? É a mais pedida aqui, a mulherada adora”. Foi aí que a gente falou: vamos fazer o álbum.

ta, nunca pensei em trabalhar a música. Queria só falar que meu bairro é da hora, os caras e as minas do meu bairro são da hora, tão começando a curtir um rap agora... Porque na Cohab ninguém curtia rap. Eu cheguei a subir com a calça ao contrário que nem o Kris Kross e os caras: “Caralho, o Corintiano é louco!”. Eu tinha a mira do Public Enemy desenhada na calça, a mesma coisa. Andava vestido no estilo hip hop na Cohab e ninguém entendia, sacou? Não tinha informação, não tinha jornal, internet. Quando saí correndo com o disco debaixo do braço querendo fazer clipe, todo mundo falava que queria fazer de “Us Mano As Mina”. Nos bailes, os DJs soltavam “Us Mano e as Mina” e a galera curtia. Não teve como. Lembro que o Sampa Crew tocou num evento de aniversário de São Paulo no Ceret, 80 mil pessoas, e me chamaram pra participar. Foi todo mundo com as mãos

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pra cima. Veio gente me dizer: “Ô, o Maurício Manieri tá tocando sua música lá

Porque você diminuiu o seu ritmo de lançar discos?

no Anhembi, tá todo mundo cantando”. E aí depois no carnaval em Parintins,

Cara, tem até aquela música do J-Live em que ele fala “Eu estou satisfeito”. É

os caras cantando, Xuxa cantando na Globo sábado de manhã. A música rou-

assim: às vezes você sonha com uma parada. Eu sempre sonhei muito com tudo que envolvia o hip-hop, sou apaixonado. E cantar e lançar discos era uma des-

bou a cena do disco todo.

sas coisas, um dos sonhos. Hoje não sonho em lançar disco, mas sinto de novo até aquele momento, como você via a relação da mídia com o rap?

uma necessidade de lançar disco. O disco do DMN, por exemplo, eu fui no corte,

Eu sempre achei que a mídia nunca entendeu o rap. Tenho pas-

a gente mixou numa mesa manual, todo mundo ajudando. Na época do Seja

tas e pastas guardadas de matérias – a primeira sobre o De La Soul

Como For eu ia no estúdio, botava a voz e ia pro rolê, não ficava muito lá. Ficar

que saiu n’O Estado de São Paulo eu tenho aí guardada. E sem-

no estúdio é muito cansativo. As pessoas gostam muito mais do Seja Como For

pre escreveram MUITA besteira. Mas simplesmente por não enten-

do que do Fortificando, por quê? Porque o Seja é muito mais filmezinho, tem

der o rap. O cara escreve de uma parada que não conhece, não vive.

mais começo meio e fim, com os interlúdios, as viradas, do que o Fortificando,

E aí entra uma porção de coisas: porque aí o rap ficou com fama de música de

que é um disco muito mais musical – mas não tem o filminho – e dá um puta

protesto, de música de preto etc. E

trampo fazer isso. Só funciona se você for bom, estiver com tesão de fazer, ins-

realmente é música de protesto e

pirado. É que nem o político que se elege duas, três vezes e ainda tá ali. Por quê?

música de preto, mas e o Eminem,

O cara não tá satisfeito, não tá feliz, não conseguiu ajudar? Por que não vai fazer

e o De La Soul? E às vezes, quan-

outra coisa? Eu fui fazer outras coisas. Adoro fazer rádio, adoro fazer televisão e

do os caras vão escrever, fazem

fui fazer isso. Não deixei de fazer as paradas, mas tudo tem seu tempo... Depois

mal feito, de uma maneira ruim.

do Napster, ficou uma loucura – uma parte do estouro de “Us Mano e as Mina”

A gente mesmo tentou fazer por

foi por causa do Napster em 2000. Eu tive dois parceiros de internet foda nessa

si só. No Geledés a gente sentou

época: um foi o MP3 Clube, que ajudou muito – trabalhavam lá o Marcelo, que foi

todo mundo e ficou discutindo, e

meu chefe na Planet Music, e o Skowa; outro foi o Napster. Eu ligava o Napster

foi: “Ó, não vamos trocar ideia com

de madrugada da Cohab e era download atrás de download. O [grupo carioca

ninguém, não vamos trocar ideia

de rap] Quinto Andar sentiu isso. Conheço poucas bandas que tiveram essa

com a Folha de São Paulo, com a

experiência de fazer tanto sucesso assim na internet. Então você pensa: pra que

Globo, com a Gazeta, ninguém”.

eu vou colocar meu disco na rua se o cara pode curtir meu som assim?

A gente fazia show pra 20, 25 mil pessoas e não saía uma nota em nenhum lugar. Aí você abria o jornal no outro dia e o show de fulano tal que tinha 300 pessoas ganhava meia página.

E fomos fazer a nossa parada. A gente queria falar sobre a gente.

E a Xistape 2?

Quando saía no jornal, era muito

É uma parada dessas aí. Eu não lanço disco, mas tô na rua, então toda hora

estigmatizado. Todo mundo foi

que chego num pico o porteiro fala: “E aí, e o disco novo? Não tem música

sofrendo com isso, e foi dando bri-

nova?”Claro que tem, tem um monte. Mas isso quer dizer que eu perdi o con-

ga interna também. A gente fazia

tato com o cara. Por mais que eu seja conhecido, não sou mainstream, não tô

show pra 20, 25 mil pessoas e não

na mídia que nem o NX Zero. Aí fiz a primeira mixtape. Sempre fui pirado em

saía uma nota em nenhum lugar. Aí

mixtape, e acho que tem que ser mixada, senão não tem graça. Mas muitas

você abria o jornal no outro dia e o

das coisas que eu tinha e queria usar não tinha em vinil. Aí juntei grana um ano

show de fulano tal que tinha 300

pra comprar um par de CD-X e num Hip Hop DJ eu conheci o [DJ] RM, que

pessoas ganhava meia página.

foi uma grata surpresa. Ele é do Clã Leste – uns caras da minha área que têm como tutor o Zulu, da segunda geração de b-boys da São Bento, ex-Código

mas isso é assim até hoje, né?

13. Aí o RM topou. Primeiro ficou um mês na net e nada, mas depois virou

É, não mudou. Hoje tem internet, mas os jornais ainda são assim, infelizmente.

viral. Lembro que uns três blogs falaram: o teu, o do Tamenpi e alguns outros,

Veio o J-Live pro Brasil, e é ridículo não chegar nenhum jornal pra conversar

mas ainda assim teve download demais. Aí foi de mil downloads pra 6 mil, 12

com o cara. É um cara talentoso, que é DJ e MC, tem projeto social, um cara

mil, 20 mil. Nem sei como tá agora. Tenho 20 minutos da 2, mas vou segurar.

que acrescenta. É um erro, porque com tantas pessoas em São Paulo, Rio,

Prensei 2 mil cópias da 1 também, e dou como cartão de visita. Se o cara fala:

Curitiba, Florianópolis e tantos outros lugares do Brasil que gostam dessas

“Cadê seu disco novo?”, é porque ele gosta de você. Se não gosta, não vai

paradas, tantos moleques que vão ler, não saber o que um cara desses pensa,

perguntar, sacou? Então, quando me perguntam isso, dou a Xistape. 3

não conseguir dialogar com esse cara. Acho que um jornalista de música devia ficar atento a isso. Mesmo porque o rap é uma arte transformadora, muda o ser humano. E não é todo tipo de música que faz isso. Muita música só passa pela vida das pessoas. Tem muita gente que dança na boquinha da garrafa e depois de cinco, dez anos, a pessoa não quer nem ver a foto disso, sacou? Tem vergonha, não dança mais. E tem gente que nem gosta de música. Mas tem muita gente que é envolvida pelo rap, e isso muda a vida dessas pessoas. Parece papo de “ah, tira da rua”, mas é verdade, cara, muda as pessoas. E a gente ficou brigando, se digladiando com a mídia, teve provocações dos dois lados. Acho que foi perda de tempo.

1Saiba maiS myspace.com/pretobombafad

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Por Joshua Klein . Fotos Divulgação

4Jeff Parker,

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Doug McCombs, John Herndon, Dan Bitney e John McEntire


Por Joshua klein . Tradução Janaina FeliX . FoTos divulgação

É noite de sexta-feira em Chicago. Sob o clima nublado e quente, comum no mês de julho, o Tortoise se apresenta para milhares de pessoas no respeitado Pitchfork Music Festival, no Union Park (região Oeste da cidade). A plateia, quase toda local, é a mesma que vem seguindo a banda desde sua estreia, em 1993, mas o Tortoise não toca nenhuma faixa de seu último álbum, Beacons of Ancestorship. Em vez disso, a banda se concentra quase totalmente em clássicos como Millions Now Living Will Never Die, de 1996, e TNT, de 1998, por decisão soberana do “write the night”, concurso que permitiu aos fãs votar e escolher o setlist de cada banda da noite. (Outros grupos, como Yo La Tengo, Built to Spill e Jesus Lizard, que voltou a tocar recentemente, enfrentaram o mesmo desafio.) 1

“E

sse show não foi dos mais legais”, admite John Herndon, um dos cinco multi-instrumentistas do Tortoise, durante uma pausa no meio de uma turnê que se

espalha por vários pontos do mundo. Herndon tem o direito de estar chateado. Beacons of Ancestorship marca um interessante retorno às origens do grupo, além de encerrar um intervalo de cinco anos desde o último disco. Faz todo o sentido que ele prefira deixar de lado músicas antigas como “The Suspension Bridge at Iguazú Falls” ou a épica “Djed” e focar mais nas novidades, que oferecem uma fusão consistente de influências – algumas óbvias, outras mais obscuras – que vão de jazz a Krautrock, passando pelo compositor Ennio Morricone. Essa capacidade de se apropriar de sons indefinidos ao seu redor e os transformar em algo novo é uma prova do poder de síntese do grupo. “Tentamos fazer algo diferente a cada disco”, diz Herndon, encolhendo os ombros. “E eu realmente acho que cada disco é um reflexo dos cinco – de onde nossos ouvidos estão no momento em que compomos as músicas, do que estamos escutando. Quando ouço os antigos, consigo dizer exatamente quais as nossas influências em cada época. É uma questão de entrar em sintonia com o que sentimos e tentar ser fiel a isso.” Desta vez, uma influência improvável, compartilhada por mais de um membro da banda, pairou sobre todo o processo de gravação: o saudoso e grande produtor de hip hop James Yancey, mais conhecido como J Dilla. Herndon não está sozinho: o legado de Dilla, morto em 2006, continua vivo e fornecendo grande dose de inspiração ao rap underground. Mas o Tortoise? “Talvez não seja

“Talvez não seja tão óbvio para algumas pessoas, mas a influência de J Dilla foi muito grande”, diz Herndon. “Alguns de nós ouvimos muito as coisas dele. Aí, você vai trabalhar nas músicas em casa e precisa se esforçar pra não parecer que está copiando o Jay Dee.” Ele ri. “Mesmo querendo muito.”

tão óbvio para algumas pessoas, mas a influência de J Dilla foi 35


muito grande”, diz Herndon. “Alguns de nós ouvimos muito as coisas dele. Aí, você vai trabalhar nas músicas em casa e precisa se esforçar pra não parecer que está copiando o Jay Dee.” Ele ri. “Mesmo querendo muito.” Essa revelação deixa transparecer outra constatação: a de que o Tortoise raramente faz música da maneira que a maioria das bandas faz. Questionado sobre o número de faixas em que a banda toda tocou junto, ao mesmo tempo, no mesmo recinto, Herndon nem precisa se esforçar para lembrar. “Nenhuma”, ele responde. “Zero.” “É raro sair alguma coisa quando a gente se junta pra tocar”, ele explica. “Já tentamos – tentamos muito, na verdade – mas nunca deu resultado. Não existe, infelizmente, muita interação em grupo enquanto estamos gravando, pelo menos não nesses álbuns. Talvez no último tenhamos feito algumas coisas com duas ou três pessoas ao mesmo tempo. Eu gostaria que tocássemos mais como um conjunto, uma unidade, mas isso é para outras bandas. Não é assim que a gente faz.” Os membros do Tortoise sempre trabalham sozinhos, individualmente, juntando pedaços de músicas em estúdios caseiros, em notebooks ou no ônibus da turnê. Só depois disso eles tentam

“E eu realmente acho que cada disco é um reflexo dos cinco – de onde nossos ouvidos estão no momento em que compomos as músicas, do que estamos escutando.

(algumas vezes com sucesso, outras nem tanto) montar um álbum coeso.

“‘Prepare Your Coffin’ (de Beacons of Ancestor-

festivo Tom Zé (a quem o Tortoise acompanhou

ship) já estava finalizada quando chegamos ao

em turnê nos EUA em 1999). E a música refle-

estúdio”, diz Herndon, citando uma rara exceção

te isso: Beacons of Ancestorship, por exemplo,

nos hábitos da banda. “Mas geralmente alguém

é funky, saturado com sintetizadores e agressi-

traz uma música ou uma demo que fez em casa.

vo, enquanto It’s All Around You, de 2004, era

Às vezes as partes são mais completas, às vezes

mais sereno e arrastado. “Prepare Your Coffin”,

é só uma melodia ou uma ideia rítmica que os

faixa do novo disco, remonta a uma linhagem

outros completam. Nosso trabalho é principal-

que vai de progressivo a Can, enquanto “Nor-

mente construir. A gente gasta tempo no estúdio

thern Something” é metade música de malhação

construindo coisas, adicionando. É um processo

e metade alusão a alguma trupe de tambores

de adicionar e eliminar, editar, modelar e remo-

sul-americana. “Gigantes” finca um pé em folk

delar.” Herndon ri. “É por isso, também, que lá se

terrestre e o outro em eletrônica extraterrestre

foram cinco anos entre um álbum e outro.” (Mas

com facilidade impressionante. Por outro lado,

os integrantes do Tortoise, que também conta

“Yinxianghechengqi”, com sua guitarra e baixo

com Doug McCombs, Dan Bitney e Jeff Parker,

de falantes rachados, é praticamente punk.

se ocupam com outros projetos – de trabalhos em estúdio a apresentações com grupos de jazz

Talvez o Tortoise faça tudo parecer fácil, mas

como a Rob Mazurek’s Exploding Star Orchestra

não há dúvida de que cada nota e arranjo foram

ou bandas como Eleventh Dream Day).

cuidadosamente trabalhados. Na verdade, todos os álbuns da banda até hoje foram produzi-

Esse esforço doloroso – e às vezes frustrado –

dos por John McEntire, membro perfeccionista

geralmente resulta em álbuns que, apesar de

do grupo que já produziu álbuns para Stereo-

compartilharem algum DNA sonoro entre si,

lab, Bright Eyes e Kassin +2, entre outros. Talvez

soam muito pouco ou nada parecidos uns com

seja seu trabalho o maior responsável pela tra-

os outros. Afinal, esta é uma banda que se sen-

ma musical que conecta e percorre cada álbum

te confortável atuando como grupo de apoio de

do Tortoise. Mas, ao mesmo tempo, Herndon às

ícones tão distintos como Daniel Lanois, com

vezes imagina como seria agitar um pouco as

sua música etérea e cheia de climas, e o sempre

coisas no estúdio. “A gente já conversou sobre

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Quando ouço os antigos, consigo dizer exatamente quais as nossas influências em cada época. É uma questão de entrar em sintonia com o que sentimos e tentar ser fiel a isso.”


trabalhar com um produtor de fora, mas já te-

par em colocar um hit no rádio ou algo do tipo”,

mos um controlador na banda, que quer produ-

observa Herndon. “Nenhum de nós está ficando

zir todos os nossos álbuns!”, diz Herndon, rindo,

rico com isso. Passei a maior parte da minha car-

se referindo ao voluntarioso McEntire. “Eu ado-

reira na banda trabalhando, num emprego con-

raria trabalhar com outra pessoa só pra ver no

vencional. Portanto, só quero fazer um som inte-

que ia dar. Gostaria de ver o que o John McEnti-

ressante. E espero que as pessoas queiram fazer

re faria se fosse só um músico da banda, e não o

parte dessa jornada com a gente, mas não estou

responsável por gravar o disco todo. Só pra ver,

muito preocupado com isso.” Ele ri novamente.

como um experimento. Mas eu não sei se e nem

“Somos o Tortoise”, diz, fingindo uma arrogância

quando isso aconteceria.”

inabalável. “Nós podemos tudo.” 3

Felizmente, o Tortoise é livre para tentar praticamente qualquer coisa que quiser, seja no estúdio ou em qualquer outro lugar. Enquanto outras bandas buscam a fama ou o mainstream, eles seguem tranquilos em seu nicho pequeno e singular, no qual o sucesso é um conceito definido pela própria banda, não por ditadores arbitrários de tendências. “A gente não tem que se preocu-

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O diretor de cinema Caco Pereira de Souza resolveu mexer num vespeiro. Em seu primeiro longa, vai levar para as telas a origem do crime organizado no país. 1

400CONTRA1 DO COMANDO VERMELHO AO PCC

Por Bruka Lopes . FOTOS DIVULGAÇÃO por daniel chiacos e carolina born



A

Prisão Provisória de Curitiba (PPC), presídio desativado na capital paranaense, serviu de cenário para o diretor Caco Souza filmar sua saga. E não deve ter sido fácil encarar o desafio de contar como

foi o surgimento do Comando Vermelho, organização criminosa que nasceu no Instituto Penal Cândido Mendes, mais conhecido como presídio de Ilha Grande ou Caldeirão do Diabo – uma comparação com o presídio de Caiena, Guiana Francesa, localizado na Ilha do Diabo. O aparecimento do Comando marcou o inicío de uma nova era na criminalidade brasileira. A “organização” do crime aconteceu entre o final da década de 1960 e início da de 1970, quando o governo militar, com o intuito de equiparar revolucionários e inimigos do Estado – como jornalistas e intelectuais de esquerda – a criminosos comuns, resolveu misturar presos políticos com prisioneiros que cumpriam pena pelos mais variados tipos de contravenção. O tiro acabou saindo pela culatra, já que a convivência nem sempre fácil entre esses dois grupos tão distintos e as experiências compartilhadas proporcionaram aos detentos o contato com técnicas de guerrilha, organização, hierarquia e todo um conhecimento proveniente da caserna. O diretor não mediu esforços para se aproximar o máximo possível dos acontecimentos reais. Além da vasta pesquisa, quem serviu como principal consultor nas filmagens foi ninguém menos que o próprio Willian da Silva Lima (o Professor), conhecido assaltante de bancos que, juntamente com Rogério Lemgruber (o Bagulhão) e Paulo César Chaves (o PC), formou o núcleo responsável pelos primeiros passos do Comando Vermelho. A consultoria de Willian em nada chamaria a atenção não fosse o fato de ele estar foragido há dois anos. Depois de ter cumprido mais de 38 anos, se somadas

O 400contra1 é como se fosse o berço desses outros filmes, do Cidade de Deus, do Tropa de Elite, do próprio Carandiru”

todas as passagens pelos mais variados presídios, Willian atualmente luta por uma revisão de pena. “Ele já é um idoso com problemas neurológicos e precisa tomar remédios controlados”, conta o diretor. “A gente se falou durante os sete anos em que tudo se desenvolveu. Nosso contato se deu muito antes de começarem as filmagens. Ele sempre me passou informações preciosas, tanto sobre a maneira como eles se organizaram durante os anos de resistência na época da ditadura, como também sobre coisas do cotidiano, sobre o dia-a-dia na prisão, informações que não só serviram para o roteiro, como também para a direção de arte, figurino, além de ser um material importantíssimo para a composição dos personagens para os atores. Ele me disse que [enquanto estava no presídio] estudava a pena do homem, que tinham grupos de estudos e discutiam sobre a situação do país”, relata. O filme se encontra em fase de montagem, com lançamento previsto para abril de 2010. Caco recebeu a +Soma para um bate-papo e falou sobre as filmagens, sobre Daniel Filho e a Globo Filmes e sobre a convivência com os prisioneiros reais que fizeram parte da figuração.

O filme tem presídio, bandidos... Você não tem medo de começar a rodar os festivais internacionais e ser rotulado como mais um filme violento vindo do Brasil? Talvez até tenha, sim. Teve uma matéria quando a gente tava filmando que saiu no O Globo. Aí, quando a reportagem saiu na versão online, teve vários comentários do tipo: “Putz mais um filme de violência. Brasileiro não quer mais ver isso. Tem tanta coisa bonita pra mostrar. Pra que ficar falando nesse tema de novo e tal”. Isso tudo me fez pensar que essa temática realmente está incomodando as pessoas. No dia seguinte, tinha outro comentário: “Imagina, isso é a nossa história, isso acontece no dia-a-dia, é bom a gente saber onde começou”. Eu acho que não vai ser unânime nunca, né? Sempre vai ter uma pessoa que vai achar que o filme é violência pela violência, ape-


nas mais um filme sobre bandidos no país. E tem gente que vai achar que é uma história pertinente para entender o estado das coisas hoje. A origem está aqui, nós é que fomos deixando de lado. Quais suas maiores dificuldades durante as filmagens? Como foi a relação com os presos? (Prisioneiros reais trabalharam como figurantes e alguns tiveram participação maior.) Imagina, cara. Foi um tesão. Havia muita gente e também muitas meninas no set. Foi uma verdadeira lição. Acabamos virando irmãos dos caras, foi até difícil no dia em que terminaram as filmagens em Curitiba. Foi muito emocionante. Ficou todo mundo impressionado com a sensibilidade deles. Um cara de sei lá quantos anos de cadeia, 15 anos de cadeia, um que matou, outro que assaltou, todos chorando na nossa despedida. Foi uma coisa muito, muito forte para todos e para mim.

Essa noção de que as pessoas têm que ter disciplina para realizar as ações, fossem assaltar bancos ou prestar uma solidariedade ao companheiro que estava preso”

E como foi o critério de escolha? A produção do filme participou? Não. Só a Secretaria de Ações Penitenciárias do Paraná. Eles usavam um critério assim: não tinha estuprador e não tinha pedófilo. Esses caras não saíam do presídio. Mas tinha traficante, assaltante de banco, assassino e tal. Porra, foi muito prazeroso e impactante. Problemas qualquer filmagem sempre tem. Estava até comentando com a Sara [Valar, assistente de direção], com o Bernardo [Zortea, diretor de arte] e com o Rodolfo [Sanchez, diretor de fotografia] que quando a gente rodava a câmera era um tesão, uma delícia, porque as coisas fluíam, sabe? Todos os atores, o Daniel [Oliveira], a Daniela [Escobar], a Branca Messina, que fez o Não por Acaso, o Fabrício Boliveira, o Jefferson [Brasil], o

Teve algum dia em que você achou que alguma coisa ia ser muito com-

Lui Mendes. Pô, foi do caralho, [formamos] um grupo muito fechado e

plicada de resolver?

a fim de que as coisas acontecessem, sabe? E ninguém media esforços

Nada, nada. Com o elenco e com a equipe nunca teve nada, pelo contrário,

pra nada. O Daniel, no segundo dia de filmagem, estava com um galo

foi muito prazeroso. Acho que o mais difícil mesmo foi a fase anterior, que é

enorme na cabeça. Bateu a cabeça em outro ator. Se é um cara fresco,

a de conseguir levantar grana pra filmar. Também a fase que nós nos encon-

que não está a fim do negócio, logo começa a dar problema.

tramos agora, que é a de conseguir o resto do dinheiro pra finalizar o filme. Onde entra a Globo filmes? Eles apoiaram? Eles entraram e isso foi sensacional. Acredito que muito se deva também ao fato de eu ter conversado um bom tempo com o Daniel Filho, que acompanhou todo o projeto por parte da Globo Filmes. É ele quem aprova os projetos? Não, eles têm uma comissão que seleciona os projetos e encaminha para os consultores, que são ele, o Guel Arraes... Enfim... E aí, no meu caso, o filme acabou indo para as mãos dele, e pra mim foi muito importante, foram muito produtivas as conversas que tivemos sobre o roteiro, sobre o filme. E como foi trabalhar com o Daniel? O cara conhece muito, né? Conhece muito de cinema, de mercado. Foi uma aula pra gente. Como você vê os filmes atuais dele? Acha que ele encontrou uma maneira de fazer blockbusters brasileiros? Um nicho ou algo assim? Eu acho que tem filme que cai no gosto popular e tem filme que não cai. Não existe receita. Quantas comédias a gente fez até hoje? Mas quantas deram certo? Quantos filmes violentos a gente fez? E quantos deram certo? E não é certo falar que o Daniel é um cara que só faz comédia, ele faz outros filmes, como O Primo Basílio, que tem a ver com comédia, com drama.


Para encerrar, o que diferencia 400contra1 dos demais? A diferença fundamental é que estamos falando de um momento histórico, da formação de um grupo. De certa forma, é um filme sobre a resistência, sobre gente que tinha informação. Não era um bando de tresloucados que pegava fuzis e saía atirando a esmo. Os caras tinham uma puta bagagem. Eles liam na cadeia. Talvez tivessem mais informação do que boa parte da classe média brasileira na época. Mais visão de mundo, uma visão global. Na passagem do Willian comigo, ele me disse que estudava a pena do homem, que [os presos] tinham grupos de estudos e discutiam a situação do país. Tinha essa marca forte de esquerda. Na verdade, se for parar para pensar, o 400contra1 é como se fosse o berço de filmes como Cidade de Deus, Tropa de Elite, Carandiru. Do próprio Sérgio Rezende, que fez o filme Salve Geral, sobre os ataques do PCC. Porque ali é o início de tudo, e é com o grupo do Willian que começa essa coisa da organização, a noção de coletivo, de que as pessoas têm que ter disciplina para realizar as ações, fossem assaltar bancos ou prestar solidariedade ao companheiro preso, à família do cara, essas ramificações. Isso fortaleceu o grupo. Essa noção é uma das diferenças fundamentais da ideia do grupo do Willian e desse filme. Não que os outros sejam melhores ou piores, não é isso que eu quero dizer, mas essa é uma diferença básica dessa história para as outras.

3

2SAIBA MAIS 400contra1.blogspot.com



Cresci

virado pra rua.

Em bons anos de trabalho fotografando as quebradas de São Paulo, aprendi a enxergar a periferia, a favela e os invisíveis. Pular o muro que separa as duas cidades me fez entender melhor algumas coisas e ao mesmo tempo fez com que outras perdessem completamente o sentido. Periferia é periferia, não importa a língua cor ou lugar. E as descobertas são infinitas. Voltar minhas lentes para a África foi uma experiência parecida com a de desbravar São Paulo. A África negra é a quebrada do mundo, porque sempre foi tratada com desdém por seus “donos”. Os europeus lotearam o continente sem se preocupar com as nações que o habitavam. Dividiram para saquear, escravizar, matar e jogar fora, deixando países estuprados jogados na sarjeta do planeta. Tem coisa que não adianta ler, ver em fotografias ou filmes. Não adiantaram Kapucinski, Pierre Verger, Mia Couto, Salgado e tantos outros que descreveram tão bem o continente. Precisei pisar na terra, sentir o cheiro e ouvir os sons para perceber o quanto somos parecidos. A mesma curiosidade que em 1994 me fez mergulhar de cabeça na periferia de São Paulo voltou a cutucar o lado mais perigoso do meu cérebro, aquele que quando provocado não descansa enquanto não tocar o fundo da alma de um tema. Este é um trabalho que está nascendo, e como bom recém-nascido não faz ideia do que vai ser quando crescer. Talvez ainda sejam precisos anos ou décadas para se definir a maneira e o formato em que ele será mostrado. A única certeza é que a periferia de São Paulo e a periferia do mundo têm muito mais semelhanças do que eu supunha. Uma explica a outra, e é por ai que mora a essência deste trabalho que chega ao mundo.

João Wainer



47







53


Em sua infância no Vale do Paraíba, o garoto João era muito ligado à terra, ao mato, aos bichos e ao rio. Aos 17, já em São Paulo, fugiu de casa para ser músico. Nos anos que se seguiram, tocou e reprocessou sons com a maioria das preciosidades musicais deste planeta. Inventou instrumentos, criou estilos. Agora, recém chegado da Sérvia, João Parahyba vai virar personagem de quadrinhos. O bicho-moleque tem história pra contar. Confira algumas a seguir. 1

O Bichomoleque

João Por Debora Pill

que a bateria de samba de boteco! Minha busca sempre foi espiritual. Quando comecei, nos anos 60, me enfiei em vários lugares para conhecer melhor os ritmos brasileiros. Por seis anos toquei atabaque em um centro de umbanda. Conheci também mesa branca, candomblé... Todas as religiões e sincretismos brasileiros. A música é um reflexo disso, é um reflexo do ser humano. Depois que a música popular tomou conta, surgiram novas ferramentas, veio a música eletrônica, a figura do DJ, o scratch, sample... Toda uma nova geração dos 90 para cá que tem muita informação, são artistas criadores de uma nova linguagem. Foi quando você conheceu o Suba, né? Isso, 7 de abril de 1990. O Suba me deu a chave para abrir a porta desse lado espiritual. Falar essa linguagem de moleque... No sentido de poder experimentar de tudo, sabe? Ele, um sérvio-croata que veio ao Brasil conhecer a música brasileira. A gente se encontrou e descobriu que tinha afinidade de irmão. Fomos parceiros até o dia em que

Como começou sua história na música?

ele morreu. Faz dez anos agora em novembro, foi

Foi no Jogral, a primeira boate de São Paulo com

no dia de finados. E num acidente bobo: um cur-

música ao vivo todos os dias da semana. Tinha

to circuito no home theater na casa dele.

chorinho, seresteiro, cantor moderno. Foi lá que eu comecei minha carreira de percussionista e

Como foi a sua relação com ele?

baterista. Foi lá também onde começaram Cae-

Além de criar coisas comigo, o Suba me deu

tano, Gil, Edu Lobo, Chico, a Tropicália. Conheci

liberdade de criar tudo o que eu quisesse. Ele

ali toda velha guarda do samba brasileiro: Cle-

tinha uma concepção de criação muito livre –

mentina de Jesus, Cartola, Candeia... E conheci

assim como o Hermeto Paschoal tem, ele tinha

a velha guarda do jazz também! Duke Ellington,

com a música eletrônica. E, além de ser um

Oscar Peterson, Dizzy Gillespie... Foi no Jogral

grande músico, era um grande engenheiro de

que a gente conheceu o Jorge Ben e com ele

som. Eu chamava o que a gente fazia na década

criou um estilo novo de música, que se transfor-

de 90 de “música reprocessada”. Hoje chamam

mou no samba rock. Daí nasceu o Trio Mocotó.

aquilo de “música eletrônica”.

E como surgiu a timba? Na época, era proibido tocar bateria em boates, por ser barulhento demais. Tive que improvisar! Inventei um jeito de tocar o tan tan de mão sentado em cima com vassourinha. Era fácil de carregar. E assim acabei inventando a timba, que se tornou comum no Brasil. Ela nada mais é do 54


55


56


Qual a diferença?

E aí fizeram o São Paulo Confessions…

Falando em Sérvia, você acabou de voltar de

Quando você fala “música eletrônica”, supõe o

Então, essa experimentação toda saiu nesse dis-

lá. O que rolou por aquelas bandas?

uso de uma bateria sintetizada, de um teclado.

co, que é considerado um dos primeiros grandes

Desde a morte do Suba existe um festival ma-

E a música eletrônica evoluiu nos últimos dez,

discos de música moderna eletrônica. Fiz todas

ravilhoso na cidade dele, em um forte. São 24

quinze anos de um som realmente feito por equi-

as bases com o Suba. Segundo declarações da

palcos, e neste ano resolveram fazer um palco

pamento eletrônico para algo acústico e repro-

Madonna, é um dos cinco discos de cabeceira

especial em sua homenagem para mostrar toda

cessado por equipamento eletrônico. Isso não é

dela! (risos) Junto com ele foi lançado também

música nova do mundo. Aí me convidaram para

música eletrônica na concepção de colocar um

o da Bebel Gilberto, que vendeu mais de um mi-

montar uma noite brasileira, e eu levei o Trio

processador de frequências e ficar brincando,

lhão de cópias e acabou se tornando também

Mocotó, a Kátia Brownstein, a Cibelle e o Amon

como foi nos anos 50 e 60 com John Cage. Com

um marco. Foi a partir desses discos que a Nu

Tobim, além de DJs que conhecem muito a mú-

o advento dos teclados, vieram notas musicais,

Bossa surgiu e o Brasil passou a ser reconhecido

sica brasileira. Foi uma grande noite, para mais

sons eletrônicos similares a instrumentos de

e respeitado na música eletrônica.

de oito mil pessoas.

eletrônicas, orquestras de cordas eletrônicas... Eu

Fale sobre sua ligação com os DJs.

E agora? O que tem aprontado?

não chamo isso de eletrônico, chamo isso de re-

O Suba também foi a chave entre a minha ge-

Além de dirigir o Trio Mocotó, que nos últimos

processamento de sons. O laboratório de repro-

ração e a geração mais jovem da música bra-

cinco anos fez quase duzentos shows mundo

cessamento se tornou uma coisa muito mais im-

sileira – DJs como Nuts, Patife, Marky, Dolores.

afora, estou produzindo um disco, que vai fa-

portante do que o instrumentozinho eletrônico.

O cara não precisa ir para faculdade aprender

zer parte de uma série em comemoração aos

nota, arranjo musical, da ma-

meus quarenta anos de carreira. É um álbum

O lance com o Suba era que a

neira acadêmica. Para ter uma

que relembra os anos 60, quando convivi com a

gente estava procurando uma

bagagem de experiência e co-

maioria dos grupos de música instrumental bra-

porta do paraíso infinito de

nhecimento, acho que o lado

sileira. Era a época em que começou o samba

criatividade. E isso a gente ti-

intuitivo e o acadêmico devem

jazz – Tenório Jr, Manfredo Fest, Arthur Verocai,

nha na cabeça, mas não tinha

andar juntos. E a garotada foi

Tamba Trio, Jongo Trio, Bossa Jazz Trio e Cesar

a fundo nisso... E eu, exata-

Mariano, Laércio de Freitas, Dom Salvador, Do-

mente por estar dentro dessa

nato, Deodato, enfim, uma série de pessoas que

linguagem rápida e fácil, con-

criaram a identidade do jazz brasileiro. O disco

segui transmitir minha experi-

vai ser em homenagem a eles. Tem participação

ência para esses DJs.

do Hamilton Godoy (Zimbo Trio), do Laércio de

corda, de sopro, percussão. Aí criaram baterias

ferramenta. Até 1990, era caríssimo gravar um trabalho em que você coloca cordas, passarinho, água, buzina, trombone. De repente, você tem um mundo inteiro à disposição! No nosso primeiro trabalho, a gente colocou James Brown, índios caiapós, Edgar Scandurra, eu, o Suba e uma cantora lírica, tudo em três horas de trabalho. E isso começou a se tornar um videogame musical tão fácil de mexer que foi uma grande abertura para o mercado musical. Não precisava mais ter instrumento, dava pra fazer música em qualquer lugar.

Fiz todas as bases com o Suba. Segundo declarações da Madonna, é um dos cinco discos de cabeceira dela! (risos) Junto com ele foi lançado também o da Bebel Gilberto, que vendeu mais de um milhão de cópias e acabou se tornando também um marco. Foi a partir desses discos que a Nu Bossa surgiu e o Brasil passou a ser reconhecido e respeitado na música eletrônica.

Freitas, do Cleiber (Jongo Trio) tocando gaita, Como você se mantém à frente

tem o Hamilton de Holanda.

de tudo? Como dizia a minha avó, eu te-

E os outros da série, já existem?

nho o bicho carpinteiro. Os sér-

Já. Ano que vem sai outro disco, mais eletrônico,

vios me chamam de “nano

no estilo do meu disco Kizumba, de 93. Esse dis-

serz” – “serz” é tipo o bicho da

co foi feito num Atari ST que tinha quatro mega

maçã, que nunca está parado,

de RAM. Era totalmente midi. Depois eu fui pro

sabe? E, por ser pequeno, eu

estúdio e gravei em cima solos acústicos de ami-

me considero nano. Quer dizer,

gos. Na época, todo mundo torceu o nariz por-

é mais informação em menos

que era eletrônico e o disco nem saiu. Em 2000,

espaço! (risos) Eu nasci com

a YB achou o disco maravilhoso e resolveu lançar

a vontade de buscar coisas. O

no mercado. Foi engraçado, porque o disco tinha

sonho não começou, nem ter-

sido feito em computador, mas como todo mun-

minou. O sonho existe, e você

do tocava em cima ao vivo ele acabou mudando

sonha se quiser. Estou sempre

de cara. Vou lançar um disco seguindo o mesmo

procurando linguagens novas,

conceito, já tenho umas trinta músicas prontas

maneiras novas de exprimir a

inéditas. E, no final do ano que vem, vou fazer

espiritualidade e o sentimento.

um disco todo acústico sobre as minhas raízes:

É isso que me faz moleque a cada dia. O Zoran

o Vale do Paraíba, minha infância. Com música

Janjetov, um cartunista sérvio que era muito ami-

caipira e um monte de coisas integradas. 3

go do Suba e trabalha com feras como Jodorowski e Moebius, vai criar o Nano Serz para mim! A gente vai fazer uma historinha em cima dele, com música e quadrinho. Vai ser a história de um bichinho carpinteiro que nasceu de um átomo de curiosidade e não para nunca. Ele se alimenta de tudo, é curioso por tudo, fuça em tudo.

1saiba mais myspace.com/joaoparahyba

57


lil Monsta. Entrevista com Fefê Talavera Por Tiago Moraes

Todo mundo tem seus monstros. Sentimentos como medo, raiva, e culpa que, para não serem somatizados e atingirem proporções gigantescas, precisam ser exteriorizados de alguma forma.


Fernanda Salinas Talavera, ou simplesmente Fefê Talavera, usa a sua arte para colocar para fora todos os seus, e pouco a pouco vai se libertando de sentimentos que a cutucam e incomodam. Brasileira de raízes mexicanas, essa artista de 29 anos formada na FAAP, e pós-graduada nas ruas, reside atualmente em Madri

com o marido, o também artista francês Remed. Mas seu espírito livre e inquieto faz com que possa ser encontrada em qualquer parte do mundo, seja pintando um muro na Itália, expondo num museu em Ottawa ou cantando num palco para milhares de pessoas na Malásia. 1


Você se lembra de quando e como começou a se interessar por arte? Sempre me interessei, desde pequena, meu pai costumava me ensinar a pintar com aquarela e pastel seco. Eu ficava maravilhada com as cores, os cheiros e a facilidade que ele tinha pra fazer qualquer coisa. Acredito que tenha sido o meu maior exemplo. Os meus pais sempre me apoiaram, a casa deles é cheia de arte. Também tive aula com a Leda Catunda, foi com ela que fiz meu primeiro quadro, e depois de um tempo me interessei em começar a fazer coisas na rua… Você se formou em artes plásticas na FAAP, uma das escolas de arte mais tradicionais e renomadas do país. Paralelamente, experimentou muito nas ruas, e se envolveu com a cena de arte urbana justamente em um momento em que o graffiti tradicional começou a dividir os muros com outros tipos de intervenções. O que você aprendeu de importante na faculdade que nunca aprenderia na rua e o que aprendeu na rua que nunca aprenderia numa faculdade? Aprendi que para ser artista você precisa ser livre, não precisa de uma faculdade. Ela me limitou muito, eu entrei lá livre e saí completamente bloqueada. Você até aprende coisas importantes, como História da Arte e uma pequena noção das técnicas, mas é só isso. De resto, eu me irritava muitíssimo em ter que fazer o que o professor queria e não o que eu queria. Quem é ele para dizer se minha arte está certa ou errada? Na FAAP está cheio de professor/artista fajuto, muita panelinha, muita arrogância, muito conceito…blah!! Não aguento!!! Já na rua é outra história, não existem regras. Se você quiser expor seu trabalho você vai lá, faz e

“...eu me irritava

“... Já na rua é outra

A quantidade de gente que vê o seu trabalho é

muitíssimo em ter que

história, não existem

enorme, e o mais legal é que não é só a galera

fazer o que o professor

regras. Se você

queria e não o que eu

quiser expor seu

queria. Quem é ele para

trabalho você vai lá,

dizer se minha arte está

faz e pronto, está lá à

certa ou errada?...”

disposição...”

pronto, está lá, à disposição de quem quiser ver.

que frequenta galerias de arte, mas o jornaleiro, a senhorinha que lava os banheiros do hospital, o porteiro, e até mesmo o curador da Bienal. Na rua a gente tem mais possibilidades de aproveitar o espaço, de fazer cada vez maior e de experimentar diferentes tipos de superfícies.


Você teve uma fase bem marcante com os seus

bichos

(ou

monstros)

tipográficos,

feitos com tipos recortados de cartazes de lambe-lambe, e com isso conseguiu respeito e reconhecimento não só na comunidade de arte urbana como também entre os tipógrafos. Fale um pouco dessa fase e do que essas criaturas representavam para você. Fazer os bichos tipográficos para mim foi um grande passo na minha carreira de artista. Comecei pintando em pôsteres velhos e colan-

Li em algum lugar que esses seus monstros são a

do na rua, daí percebi que esses pôsteres por

sua maneira de exteriorizar toda a raiva, o medo,

si só já eram uma obra de arte. Aquelas letras

os sonhos e desejos. O que deixa você com raiva

tinham vida para mim, eram tão bonitas que

hoje? E com medo? Com o que você mais sonha?

eu comecei a recortá-las em grande quantida-

E o que mais deseja?

de e, como eu já fazia os monstros, resolvi ten-

O que mais me deixa com raiva é a ignorância, a

tar com a colagem, e deu certo. Essa fase foi

prepotência e a crueldade. Tenho medo da dor de

super boa, porque foi a época em que conheci

perder alguém que eu amo. Sonho em ter mais pa-

os meus mais queridos amigos. O Flip me con-

ciência com as pessoas… e desejo conseguir sobre-

vidou pra expor na Most, foi a minha primeira

viver mais alguns anos fazendo arte.

individual, e na sequência as coisas começaram a acontecer. Comecei a fazer mais exposições

Sua arte traz influências astecas e maias, e isso

na Choque Cultural, e depois começaram as

faz todo o sentido, já que você tem raízes no Mé-

rolar os convites para exposições no exterior.

xico, berço dessas culturas. Por outro lado, você cresceu e passou toda a infância e adolescência

Você ainda pretende acordar essas criaturas

em São Paulo. Qual das duas culturas mais in-

de novo um dia ou aquilo foi só uma fase que

fluenciou e moldou o seu trabalho até chegar ao

não pretende retomar?

que é hoje?

Claro, elas continuam vivas, só preciso ar-

As duas culturas são uma grande influên-

ranjar um tempo para cortar letras – de-

cia. Dentro de casa a minha cultura sempre

mora muito e eu me desespero. Gosto de

foi a mexicana, já fora de casa foi a brasileira,

mudar

téc-

então fica meio difícil… Mas acho que no ge-

nicas, de ir reciclando tudo que eu já fiz.

ral a cultura mexicana me influenciou mais…

sempre,

de

descobrir

novas

Hoje você mora em Madri. Quais as principais diferenças que você vê na cena cultural de Madri e da Europa como um todo em relação ao Brasil? A cena cultural aqui é incrível, os europeus têm sorte nisso, têm sempre shows, espetáculos, têm sempre milhões de coisas interessantes para ver, coisa que no Brasil não tem. Acho muito prazeroso sentar num parque super bem cuidado, ir aos museus, no verão tem muita coisa pra fazer, tem cinema ao ar livre, tem pracinha onde todo mundo senta pra bater um papo e tomar cerveja, tem festa de bairro, tem uns lagos para andar de canoa com o namorado…



Você se casou recentemente com o Remed, um

Vi que vocês têm pintado muito juntos… Não

francês que também é artista. Onde e como se

só diversos murais nas ruas como também

conheceram? Foi no Brasil ou na Europa?

telas. Como funciona o processo criativo de

Nos conhecemos em Barcelona, numa exposi-

vocês? E como é pintar em conjunto? Quando

ção dele na Montana Gallery. Quando vi a arte

você pinta com ele é diferende de quando pin-

dele pela primeira vez, me apaixonei pelo traço

ta com algum outro artista?

e principalmente pelas letras e significados.

Pintar com o Remed é bem difícil. A gente é mui-

Logo depois a gente foi pintar juntos na rua e foi

to diferente, e tem uma grande intimidade de ma-

aí que o nosso amor nasceu.

rido e mulher, e esse tipo de intimidade é bem diferente de quando eu pinto com algum outro artista, a não ser que seja alguém muito meu amigo também. A gente sempre briga quando pinta junto, não tem jeito! Eu não entendo por que ele não me deixa à vontade, coisa que com qualquer outro artista não acontece… Sinto que ele não me dá espaço, que é ele que sempre tem as idéias, e quando sinto que estou conseguindo me liberar ele vai e apaga a minha pintura… Que raiva! Em relação às pinturas que você faz na rua, muitas pessoas relacionam diretamente ao graffiti, quando sei que prefere relacionar o seu trabalho na rua com o muralismo. Fale um pouco sobre isso, explique essa diferença. A real é que eu nunca fui grafiteira, pintar com o spray para mim é só mais uma técnica como qualquer outra. As pessoas é que adoram classificar tudo, dizer que a Fefê é isso ou aquilo… Eu pinto junto com artistas que grafitam há anos, e nunca pensei em me tornar uma grafiteira, primeiro porque não faço bomb, segundo porque a minha técnica no graffiti é péssima! Também não sigo nenhuma doutrina do graffiti, acho muito pequeno se fechar num mundinho em que você só pinta com essas pessoas ou só escuta esse tipo de música, ou só sai com essa galera… fica muito vazio. É tão mais interessante conhecer outras técnicas, outras culturas, outras ideias, do que ficar nesse círculo vicioso que não ensina nada.

“... não sigo

só escuta esse tipo de

nenhuma d outrina

música, ou só sai com

d o graffiti, acho

essa galera…

muito p e queno

fica muito vazio.

s e fe char num

É tão mais interessante

mundinho em que

conhecer outras

vo cê só pint a com

técnicas, outras

essas p essoas ou

culturas, outras ideias ...”


4 deTalhe de Tela Por FeFê e doze green Eu não só pinto muro como pinto qualquer su-

vida senão artista. É o que sempre quis, até de

porte que eu encontre. Prefiro ser chamada de

país eu mudei, acho que tenho muita sorte por

artista do que de muralista, ou grafiteira, ou

tudo que tem acontecido… O que falta para tudo

qualquer outra coisa.

sair perfeito mesmo agora é começar a vender mais. A crise aqui na Europa está super forte, en-

No ano passado você fez uma exposição em

tão a vida fica bem mais difícil, e não rola ficar

amsterdam junto com o Doze Green, uma das

trabalhando para os outros de graça, isso eu não

maiores lendas do graffiti mundial. Como rolou

faço, exijo o respeito que todo artista deveria

essa conexão e como foi a experiência?

exigir sempre.

A conexão que rolou com o Doze foi quando o conheci em Nova York, em uma exposição de

Você parece transitar com facilidade por di-

que participei junto com outros artistas brasilei-

versas técnicas, como o desenho, a pintura, as

ros. A gente se viu uma vez e já rolou uma li-

colagens e os carvings. Tem alguma que é a sua

gação muito forte, então decidimos fazer uma

predileta ou depende muito do dia, do humor?

expo juntos. Começamos a trocar ideias pela

Toda técnica me fascina, e tem aquelas para que

internet e descobrimos que havia muito em co-

a gente leva mais jeito… Acho que vai muito do

mum no que pensávamos e no que a gente fazia,

dia, às vezes só quero desenhar, outras só quero

até que um dia ele me chamou pra fazer uma

riscar, outras colar… E tem aqueles dias que nada

expo com ele em Amsterdam.

sai do jeito que você quer. Muitas vezes prefiro

A experiência da exposição com ele foi bem in-

pintar quando estou muito triste, assim coloco

tensa, ele já é mais velho e tem umas manias a

toda a minha energia naquilo.

que eu não estava acostumada. Como sou uma pessoa de forte caráter, não suportava muita

Fale um pouco do seu projeto musical, Lil

coisa que ele fazia, não estou acostumada com

monsta. é mais uma válvula de escape para sol-

esse tipo de macho e às vezes a gente saía no

tar os monstros, colocar a raiva pra fora?

pau. Passamos um mês trabalhando juntos, e no

Total, é mais uma técnica! Mas com música é

final deu no que deu… Fizemos uma puta tela

bem diferente. Eu amo música, e respeito mui-

legal juntos, mas a relação acabou aí.

to. Comecei a cantar porque tinha um namorado que era produtor na Áustria. Ele dividia o estúdio

Pelo seu flickr dá pra perceber que você está

com o Stereotyp, e um dia eles me pediram para

viajando muito, pintando com diversos artis-

fazer um freestyle em português. E eu comecei

tas, expondo seu trabalho em diversos países.

a rir, sou bem tímida, mas pensei que não tinha

é a vida que você sempre quis ou ainda falta

nada a perder e tentei. Lembro que sentia as mi-

alguma coisa?

nhas bochechas bem quentes (risos), devia estar

Eu penso que não poderia ser outra coisa na

roxa de vergonha. E eles gostaram do resulta-


4 Mural Por FeFê e reMed do e mandaram o acapella para uma porrada de

um talento incrível, vale a pena dar uma olhada.

produtores pelo mundo. Foi assim que eu come-

Já na música o que eu tô mais ouvindo agora é

cei, e depois alguns músicos começaram a me

Major Lazer, projeto do Diplo com o Switch, uma

chamar pra cantar… Achei tudo isso muita lou-

mistura de dancehall com eletrônico. Outros que

cura, porque nem pensava nisso, que um dia isso

não saem do meu ipod são o Boxcutter, que é

pudesse acontecer.

mais tranquilo, tem bastante dub, dubstep, glitch e minimal e o Sa-Ra, mais pro electrosoul, hip

qual a influência que a música exerce no seu

hop, são 3 produtores americanos foda!

trabalho como artista? E, agora que você também tem esse projeto musical, o que leva da

o que podemos esperar da Fefê num futuro

sua arte para a sua música?

próximo? Exposições? Shows? Pretende visitar

Sempre fui muito ligada à música, sempre gos-

o Brasil em breve?

tei de trabalhar com músicos que admiro, como

Brasil sim, possivelmente ainda esse ano. Expo-

Stereotyp, Al Haca e The Bug. Colaborei com

sições tenho uma em outubro em Ottawa, na

eles fazendo som e arte, às vezes só para uma

Canteen Gallery, e também uma em Bilbao, na

mixtape, e outras fazendo a capa do disco.

SC Gallery… Sobre shows, nenhum marcado no

Faço parte de um projeto que se chama Crun-

momento.

chtime junto com diversos artistas de diferentes áreas e de diferentes culturas, e sempre nos reu-

quer mandar alguma mensagem final?

nimos para criar juntos. E não importa se alguém

Um “big up” para toda a minha família, para o

não sabe pintar, ou cantar, ou dançar, todo mun-

maridão e para os amigos mais próximos que

do faz tudo. Basicamente a ideia é se divertir e

nunca me abandonaram. 3

entreter quem está assistindo. As pessoas que fazem parte desse projeto são muito talentosas, e vale a pena trabalhar com elas porque sempre rola uma troca musical ou artística muito forte. Você sempre acompanhou de perto a cena underground de música e arte aqui no Brasil. o que tem ouvido e visto de bom e novo aí pelas suas andanças na Europa? Sempre conheço muita gente por cada lugar

2Saiba maiS

que passo. Recentemente conheci duas artistas

flickr.com/fefe_talavera fefetalavera.blogspot.com myspace.com/lilmonstaff crunchtime-records.com

incríveis, italianas, uma é a Pona e a outra é a Arianna Vairo. Elas são bem jovens, e ambas têm


e r t n E ros) l t a i c u e sp E O ( Desde a primeira edição, o projeto Entre (Outros) vem cumprindo o papel de dar espaço a novos artistas, trabalhos e ideias que inspiram. Em 2 anos, apresentamos algumas dezenas deles. Agora, com a inauguração do Espaço +Soma, o projeto ganha ainda mais corpo e passa a fazer parte do nosso calendário de exposições. De 3 de setembro a 10 de outubro de 2009, as paredes do Espaço +Soma serão tomadas por trabalhos inéditos de 20 artistas de diversas regiões do país, na primeira edição da Exposição Anual Entre (Outros). 1

São ELES: Binho Barreto

Lucas Biazon

Cena 7

Luciano Scherer

Dimas Forchetti

Mariana Abasollo

Don Torelly

Pjota

Eduardo Sancinetti

Renan Santos

Emerson “Emol”

Rômolo

Fernando Chamarelli

Tinico Rosa

Guilherme Dietrich

Vagner doNasc

Ignore por Favor

Vital Lordelo

Leandro Schereder

Victor “Viti” Grosman

Confira nas próximas páginas um aperitivo do que está por vir e não deixe de vir até aqui ver a exposição pessoalmente.

soma.com com amostras da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado! 3

ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A +Soma, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXãO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAçO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIçãO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.

maRIaNa aBaSoLLo

so espaço? Mande um email para entreoutros@mais

4FLICKR.COM/PHOTOS/ABASOLO

Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nos-


LuCIaNo SCHERER

4FLICKR.COM/PHOTOS/INCRIVEL


PJoTa

68

4FLICKR.COM/PHOTOS/PJOTA1


69

DoN ToRELLy

4FLICKR.COM/PHOTOS/DON_TORELLY


70

RENaN SaNToS

4FLICKR.COM/PHOTOS/RENANZZ


VITI

4FLICKR.COM/PHOTOS/DESENHOSDOVITI 71


72


People Under The Stairs

p. u. t. s. c Você é daqueles que sentem falta da cena rap dos anos 90, quando safras de MCs e produtores surgiam aos montes, criando instrumentais simples (por serem sampleados de algo já existente) mas geniais, e quando vendagem não significava mais que a própria música? Relaxe. Você não está sozinho. Na contramão da lógica atual, o grupo PEOPLE UNDER THE STAIRS remete ao espírito dos b-boys e à atmosfera das ruas, e não estou falando das ruas mostradas hoje em clipes milionários com gangues, drogas e armas. 1

Por daniel TaMenPi . FoTos divulgação

o P.u.T.S. tem um estilo próprio, com batidas simples. Como vocês chegaram a esse som? Fazemos primeiro os beats. Tudo vem daí, do sentimento de cada batida. Eu e Double K somos produtores antes de sermos letristas, mas, como não gostávamos das letras que víamos, resolvemos começar a escrever. Pra gente a produção é 80%, e acho que é por isso que ficamos conhecidos no mundo. Mesmo que as pessoas não entendam as nossas letras, o som agrada. as letras do P.u.T.S. falam sobre o underground de Los angeles e sobre experiências próprias. Vocês acham que isso atrai um público maior? Pra gente é diversão, não pensávamos nisso no início. A cena underground em Los Angeles foi muito grande nos anos 90, mas era engraçado,

riados em Los Angeles na década de 90,

porque vários grupos e rappers encarnavam

em meio ao skate e a uma cena musical

personagens. Tinha gente que pintava a cara,

efervescente, Thes One (nascido Chris

usava chapéus gigantescos, se fantasiava. Nós

Portugal em 1977 na Califórnia, de mãe norte-

não queríamos isso, queríamos ser só o People

americana e pai peruano) e Double K (nascido

Under The Stairs – dois caras de LA que escu-

Michael Turner Jr em Los Angeles no mesmo

tavam Bob James e Zimbo Trio ao mesmo tem-

ano) absorveram o que ali havia de melhor. Jun-

po, entende? E essa diversidade nos levou a fa-

tos, eles cresceram garimpando sebos de vinis

zer um som muito honesto, com a nossa cara.

atrás de timbres orgânicos e loops para produzir

ATÉ ME ARREPENDO DE ALGUMAS COISAS QUE DISSE EM LETRAS, DE TãO PESSOAIS. INCLUSIVE, NO SEGUNDO ÁLBUM, FALO MAL DE UMA GAROTA QUE hOJE É A MINhA ESPOSA, MãE DOS MEUS FILhOS (RISOS). SE FôSSEMOS PERSONAGENS, TALVEZ NãO TIVÉSSMOS ESSES ARREPENDIMENTOS. MAS TAMBÉM NãO SERíAMOS REAIS. E ESSES PERSONAGENS NãO DURARAM, PORQUE NãO CONSEGUIRAM MANTER A IMAGEM. NóS VAMOS GRAVAR DURANTE MUITOS E MUITOS ANOS.

seus beats simples e suaves, com breaks de bateria espetaculares, samples funkeados e levadas jazzísticas. Tudo isso é combinado com letras sobre temas cotidianos, com uma atmosfera de positividade. Eles não são somente rappers, são contadores de história, o que fazem como poucos. Também são seus próprios DJs, gravam em seu próprio estúdio e fazem seu próprio design. O primeiro disco da dupla, The Next Step (1998, independente), foi recebido com entusiasmo na Costa Oeste e chamou a atenção de Chris Stevens, manager da OM Records (um dos selos mais interessantes de San Francisco).

quais são as influências do P.u.T.S.? Com contrato assinado com a OM para outros

É engraçado, porque temos falado muito sobre

discos, o P.U.T.S. deslanchou e hoje, uma década

a morte de Michael Jackson. Cinco anos atrás eu

após seu surgimento, tem seis discos gravados

não diria que ele era uma grande influência, mas

e uma legião de fãs espalhada pelo mundo. As

agora percebi que minha música tem referências

turnês pelos EUA, Europa, África e Oceania tota-

fortes do som dele. Percebi que se o artista Mi-

lizam mais de 200 apresentações por ano. Com

chael Jackson não existisse eu não seria o que

shows marcados na América do Sul no fim do

sou. E Double K também não. Não só ele, mas

ano, Thes One trocou uma ideia conosco, na qual

também George Clinton, com a Mothership Tour,

falou do sonho de conhecer o Brasil e contou al-

ou Biz Markie, ou Led Zeppelin, sabe? A música

gumas histórias desses dez anos.

te influencia sem você perceber. E, como viaja73


“As

pessoas têm que entender que o hip-hop original é feito de experiências locais. Elas são a principal contribuição ao hip-hop e à música em geral. Não adianta o Brasil ou a França quererem copiar o nosso estilo, porque não vai ser verdadeiro. A última coisa que o mundo precisa é de cópias dos rappers de NY e LA. Aqui os rappers viraram mais celebridades do que rappers, entende? As pessoas vão aos shows pela celebridade, não pela música.

mos muito, ficamos expostos à cultura e à música desses países. No Brasil, com certeza nossas mentes se expandirão ainda mais. As pessoas irão aos shows para se divertir, mas pra nós será mais uma fonte de inspiração. O ultimo álbum de vocês, Fun DMC, tem todo um conceito nas músicas. O que vocês estavam querendo mostrar com esse disco? Cada disco é uma oportunidade para resgatar experiências pessoais. Com o Fun DMC, quisemos retratar um fim de semana em Los Angeles, em que fazemos churrasco, nos divertimos, bebemos, fumamos. Por mais que viajemos muito, nada é igual ao que temos na nossa área. É muito importante as músicas manterem suas raízes locais, isso ajuda as pessoas a entenderem o con-

texto e o jeito do lugar. Quando eu escuto Tony Tornado, percebo ali o nosso funk (dos EUA), mas é um som brasileiro. Com o Fun DMC, nós tentamos mostrar o que LA representa pra gente. Durante a gravação, fomos a vários churrascos

Isso foi crescendo e se tornou mais competitivo

de amigos, ligamos o gravador e usamos o baru-

– quem era o melhor rapper, qual área era mais

lho como background do disco.

pesada, cada um defendendo seu bairro. Com o tempo, o hip-hop começou a se popularizar, ou-

Legal você citar o Tony Tornado. Vocês conhe-

tros estados apareceram e a competição aumen-

cem música brasileira?

tou ainda mais. NY vs. Nova Jersey, NY vs. LA, e

Sou muito fã, desde garoto. É óbvio que ainda

hoje em dia é o mundo contra o mundo, o lugar

não ouvi tudo, mas nos interessa bastante. Nossa

não importa mais. Isso não se encaixa no con-

música combina com a brasileira, principalmente

texto das raízes do hip-hop. As pessoas têm que

pela positividade. Procuro pesquisar bastante a

entender que o hip-hop original é feito de expe-

respeito, não só o estereótipo da bossa nova que

riências locais. Elas são a principal contribuição

Vocês são colecionadores de vinil? Gostam de

ficou conhecido aqui. Gosto de Mutantes e desse

ao hip-hop e à música em geral. Não adianta o

garimpar pérolas perdidas?

lado mais psicodélico, bastante coisa de MPB e

Brasil ou a França quererem copiar o nosso estilo,

Com certeza. Tivemos várias experiências espe-

Tom Jobim. O sobrenome do meu filho é Jobim

porque não vai ser verdadeiro. A última coisa que

taculares procurando discos em lugares como

em homenagem ao maestro.

o mundo precisa é de cópias dos rappers de NY

Índia, Egito e México. Indo a lugares aonde grin-

e LA. Aqui os rappers viraram mais celebridades

gos não iriam, fazendo isso só pela música. Espe-

Voces já estão trabalhando em um novo disco?

do que rappers, entende? As pessoas vão aos

ro que um dia eu possa contar tudo isso em um

Qual será o conceito desse trabalho?

shows pela celebridade, não pela música.

livro ou DVD, porque documentei grandes experiências em vídeo. Mas, mesmo assim, muitas

Todos os nossos discos foram feitos para nós mesmos. Por sorte, as pessoas gostaram. Mas o

“San Francisco Knights” é o som mais conhe-

coisas são difíceis de capturar só com imagens.

disco novo será feito para os fãs, e vai se chamar

cido do P.U.T.S. no Brasil. Qual a importância

Os discos são importantes, mas essas experiên-

Carry The Weight. Não vamos carregar tanto

dele pra vocês?

cias são o melhor que tiramos pra vida. Se no

nas letras pessoais, vamos tentar voltar às raízes

É uma musica muito querida. Fiz o beat com

Brasil me levarem nos sebos, talvez nem compre

do hip-hop, da mesma forma que Stepfather foi

17 anos, tinha acabado de pegar minha cartei-

nada, mas só a experiência de estar em lugares

baseado no soul dos anos 70 e 80. Mas o disco

ra de motorista e fomos a San Francisco visitar

onde tem gente que gosta de música, entende

também tem uma influência grande do rock –

um amigo. A viagem foi incrível. Ela se tornou

de discos; em bairros populares, comendo comi-

não pensem é nu-metal ou esse tipo de lixo, é

o nosso primeiro hit, e sempre que escuto esse

das típicas da região, já vale tudo. Hoje em dia

um lance mais psicodélico. Aguardem.

som volto àquela época, jovem e inexperiente,

vejo que os discos são só uma razão entrar em

sem conhecer ainda os desgostos da vida. Acho

contato com a realidade desses locais. 3

Vocês são um grupo ligado fortemente à cultu-

que é esse clima exuberante e descompromis-

ra hip-hop de raiz, dos quatro elementos, Zulu

sado que fez da música a favorita de muitos fãs.

Nation etc. Como veem a cena atual?

É nossa música mais inocente, ao contrário dos

Desde o começo do hip-hop, a coisa mais impor-

sons atuais. Quinze anos depois continuo can-

tante era a expressão das experiências de cada

tando ela nos shows e a vibe é sempre muito

local. Começou em Nova York: cada área tinha

boa. Fiz coisas muito melhores, mas essa música

seu estilo, suas gírias e isso transparecia nos sons.

realmente mexe com as pessoas.

74

1saiba mais www.putsonline.co.uk myspace.com/peopleunderthestairs


75

4Double K (esq.) e Thes One (dir.), do P.U.T.S., curtem um fundo de quintal


Por Renato Silva . Fotos por Fotonauta

galeria pirata

“Estamos vendendo o nosso trabalho, que é uma apropriação de centenas de obras de videoarte. Os artistas ‘apropriados’ são, na sua quase totalidade, contemporâneos, e justamente por isso acreditamos que entendam bem os conceitos e procedimentos de apropriação. Se a performance é legítima, não há do que reclamar. Seria um contrassenso.” É assim que Alex Topini, 30, do coletivo Carioca Filé de Peixe, se refere ao mais novo projeto do grupo, denominado Piratão – uma ação sem precedentes na história da distribuição de arte visual no país. Sua fala, carregada de sentidos distintos, ultrapassa a simples discussão sobre a pirataria e a propriedade intelectual. 1 76


Coletivo Filé de Peixe, do Rio, explora os limites entre arte e comércio ilegal

Propriedade intelectual e apropriação da arte alheia para uso comercial são objeto de discussão há muito tempo. No Brasil, Túlio Lima Vianna, doutor em Direito pela UFPR, ecoa as ideias do norte-americano Lawrence Lessig, guru do Creative Commons, e sugere que a lei de direitos autorais – complicada até mesmo para os profissionais do ramo, em sua opinião – se baseie no copyleft. Na esfera política, o exministro da Cultura Gilberto Gil defendeu uma discussão mais ampla com relação à pirataria, fazendo inclusive uma apaixonada defesa ética da prática como “desobediência civil”. A Suécia testemunhou recentemente o surgimento do Pi-

A

ratpartiet, partido pirata que já se espalha pela ideia do Piratão surgiu em 2008 e já

Europa e defende o fim dos direitos autorais. O

resultou em duas ações em praças pú-

Piratpartiet já é o terceiro maior do país escandi-

blicas da capital fluminense e em Porto

navo em número de membros e em 2009 elegeu

Alegre, onde o coletivo se apresentou na feira

um deputado no Parlamento Europeu.

de arte contemporânea Desvenda, no mês de

4da esquerda para direita, felipe cataldo, fernanda antoun e alex Topini

julho. Topini, que vive no bairro carioca de San-

Sem se alinhar necessariamente à desobediência

ta Teresa – novo reduto de ateliês e de diversos

proposta por Gil, a ideia do Piratão é que os pró-

representantes da safra contemporânea de ar-

prios artistas agenciem a venda de suas obras,

tes brasileiras –, é um sujeito expansivo, elétri-

abrindo assim caminho para que elas sejam vis-

co, incapaz de produzir uma frase sem que seu

tas por muitos (nas ações do coletivo, um DVD é

raciocínio se espalhe por outras questões liga-

vendido por R$ 5,00, e três saem por R$ 10,00).

das ao objeto em discussão. Com trabalhos nas

O Filé de Peixe possui até mesmo uma caixa

áreas de fotografia, vídeo, poesia experimental

postal para facilitar o envio de trabalhos. “A di-

e arte sonora, já participou de mostras coletivas

ferença é que o Piratão é uma performance, não

no país e em Estocolmo. Desde 2006, compõe o

um comércio”, explica Topini. “Fazemos alusão à

coletivo em parceria com o jornalista, poeta e ci-

pirataria, simulando esse comércio informal, mas

neasta Felipe Cataldo, 28, e a fotógrafa Fernanda

investigamos essa prática e fazemos um uso cir-

Antoun, 28, realizando projetos de intervenção

cunstancial dela. É uma ação efêmera, esporádi-

urbana e ocupação de espaços artísticos não

ca. O que fica, depois de cada edição do Piratão,

convencionais no Rio de Janeiro. O Piratão, que

é o registro, em vídeo e foto, bem como os seus

vem sendo entendido por muitos como simples

resíduos.” Apesar de muitos pedidos, o Filé de

e costumeira pirataria, leva às ruas apenas obras

Peixe não vende qualquer vídeo por encomenda.

de artes visuais, com a intenção de que o cida-

“Recebemos telefonemas e emails de vários can-

dão comum tenha acesso a trabalhos cuja circu-

tos do Brasil e de países como Argentina, Portu-

lação quase sempre se limita a galerias, museus

gal e Canadá, mas a resposta é sempre a mesma,

e coleções particulares. Aos poucos, essas obras

direta e firme: não. Os vídeos só poderão ser ad-

vêm se tornando objeto de fetiche e formando

quiridos no momento da performance. Não faz

um novo universo de coleções.

sentido se for de outra forma.” 77


“Por que haveríamos de ser processados? O que estamos fazendo não é pirataria. O vídeo é um arquivo e pode circular sem prejuízo à obra em si. Não estamos vendendo o trabalho de ninguém, logo não estamos cometendo crime.”

dução audiovisual voltada para o campo das ar-

divulgação prévia, e o público só fica conhecen-

tes plásticas. Considerá-los arte seria apreender

do os horários e locais durante a performance.

“Vemos essa questão muito bem situada na Pop Art, especialmente nos processos de deslocamento, que embora sejam inaugurais em Duchamp, com os ready-mades, permeiam e justificam, em larga medida, junto com as teorias de apropriação, as práticas artísticas no movimento. A grande diferença é que estamos relativamente sugerindo uma direção contrária: em vez de deslocarmos toda uma iconografia ligada ao consumo de massa para galerias e museus, como fez o Warhol com as Campbell’s Soups, estamos simulando o deslocamento de um signo artístico dos museus e galerias para as ruas, conferindo-lhe um status de produto. Produto audiovisual comum, comercializado de maneira banal e a preço vulgar. Essa proposição tem nos interessado muito.”

Mas é fato que o coletivo se apropria de obras sem autorização, e é claro que surgem saias justas. Quanto à possibilidade de sofrer um processo jurídico, Topini é categórico: “Por que haveríamos de ser processados? O que estamos fazendo não é pirataria. O vídeo é um arquivo e pode circular sem prejuízo à obra em si. Não estamos vendendo o trabalho de ninguém, logo não estamos cometendo crime. São objetos performáticos que ativam redes de troca em torno da pro-

nizada por Marcos Bonisson, que consiste em três mostras com meia hora de duração cada contendo vídeos de até 1 minuto. Além da venda dos DVDs, o coletivo também promove a “Sessão Pirata” por onde passa, com apresentação surpresa de vídeos de uma hora de duração. Não há

o objeto em parte, e não na sua totalidade.” A coexistência entre autores consagrados e no-

Outra reflexão necessária é com relação ao ter-

O acervo do Filé de Peixe contém centenas de

vatos implicou alguns percalços à ação, já que

reno arenoso em que o Filé de Peixe arma sua

títulos, que representam boa parte da produção

há um interesse natural do público pelos primei-

banca. À primeira vista, se o Piratão pode ser

de videoarte brasileira e mundial. Alguns des-

ros. A solução para o problema foi criar alguns

confundido com uma empreitada comercial co-

ses trabalhos são já bastante conhecidos e es-

desdobramentos da ideia original: “Começamos

mum – com estratégia de mercado e lucro puro e

tão no canal do coletivo no Youtube (youtube.

a pensar em uma operação que pudesse se ser-

simples –, como estabelecer seu valor artístico? É

com/coletivofiledepeixe). A lista inclui artistas

vir da atração causada por esses autores para

uma trilha longa, essa traçada pelo trio, que não

internacionais consagrados como Andy Warhol,

agenciarmos de maneira subversiva – e sem

se furta em combater críticas, dando mostras de

Bill Viola, Joseph Beuys, Nan June Paik, Marcel

controle por parte dos compradores – trabalhos

que o embasamento para a sua proposta é sufi-

Broodthaers, Maya Deren e Paul McCarthy, que

de autores mais recentes na história da videoar-

cientemente forte para digeri-las com bom senso

estão entre os mais vendidos. Entre os nacio-

te. Foi então que surgiu o ‘Inserções em Circui-

e simpatia. Num exemplo de como o bom humor

nais, nomes ainda desconhecidos se misturam a

tos Clássicos’. Ao comprar um vídeo do Warhol,

pode perfeitamente se aliar à sagacidade, Topi-

obras de Andrei Müller, Gustavo Speridião, Le-

por exemplo, a pessoa levará para casa também

ni nos dá um exemplo que ilustra o pensamento

tícia Parente, Márcia X e Fernando Cocchiarale

um vídeo surpresa, de um autor novo, enxertado

que inicia esta matéria: “Uma artista nos enviou

(com o raríssimo vídeo Chuva). Há também a

de maneira compulsória no DVD.”

um email e disse que não lembrava se havia pas-

requisitada trilogia OÇAPSE/OPROC/ZUL, orga-

sado o número da conta para depositarmos o diDeixando de lado as questões estéticas e contex-

nheiro. Eu respondi que já tínhamos o numero de

tuais, a ousadia do Filé de Peixe remete às ações

sua conta artística e nela temos depositado uma

audaciosas de grupos como o paulista Ruptura

boa quantidade de divulgação do seu trabalho,

e o carioca Frente, ambos ativos nos anos 1950,

porque ele vem sendo exibido por nós há muito

ou mesmo o Neoconcreto, surgido da cisão do

tempo.” É a espinha, entalada na garganta. 3

Movimento Concreto em 1959 e que reuniu Hélio Oiticica, Amilcar de Castro, Lygia Clark, Lygia Pape e Franz Weissmann. Se ainda não podemos falar em vanguarda com relação ao Filé de Peixe, ao menos eles demonstram uma interessante coragem de quebrar padrões, tendo em vista um diálogo com seu próprio tempo. Apesar desses exemplos mais próximos, porém, a maior influência do Piratão é a Pop Art dos anos 60. “Nos baseamos, sobretudo, no que diz respeito à relação entre arte e consumo de massa”, diz Topini. 78

1saiba mais www.youtube.com/coletivofiledepeixe filedepeixe.multiply.com


79


ßfl Œ ¥¶ ¤ inteli gente roça music

Por MaTeus PoTuMaTi

A música eletrônica do Brasil vive uma fase boa. Do sucesso internacional de Gui Boratto à ascensão de talentos como Dada Attack e The Twelves – sem falar na profusão de clubes, raves e festivais gigantescos pelo país –, o gênero atravessa um equilíbrio razoável entre êxito comercial e efervescência criativa. Um dos frutos mais recentes e notáveis desse momento vem de Pouso Alegre, cidade bucólica no Sul de Minas Gerais (região conhecida como Vale da Eletrônica), e atende pelo nome de Zé Rolê. Desde o ano passado, Zé, 23, tem alimentado suas páginas no Myspace (myspace.com/ psilosamples e myspace.com/psilogentalha) com tracks incendiárias, que exploram os limites entre o techno, a IDM e a ambient house com injeções alucinadas de todos os tipos de música brasileira e um senso de humor impossível de ignorar. Menos robótico que um Autechre e com mais molejo que um Squarepusher, Zé sampleia sem dó uma gama de sons que vão de Clube da Esquina ao seriado Chaves, passando por forró, midis de videogame, modas de viola e Michael Jackson. Em setembro, além de participar da coletânea +Soma Amplifica 2, Zé lançou As Aventuras de Zé no Planeta Roça, pelo selo paulistano Okiru (o disco pode ser baixado gratuitamente em www.okiru.org). E a cabeça do mineiro não para de criar. Comprove por você mesmo. 1

80


% / ŒŁ/ Fala um pouco do seu background musical, de como você entrou nessa de fazer música eletrônica do interior.

Comecei produzindo beats para os raps que eu fazia, mas com o passar do tempo eu comecei a

me interessar por outros lances. Não achei muito natural continuar produzindo trabalhos artísticos

típicos de grandes centros urbanos. As coisas

foram tomando forma naturalmente, sem regras. Quando comecei, eu só pensava em conseguir

algumas biritas e azarar garotas. Eu tinha 18 anos

frase logo vêm à minha cabeça DJ Marky, Patife entre outros caras que misturam samba com drum’n’bass de altíssimos bpm. Eu valorizo os caras, mas jamais me imaginei dentro desse gênero. Se um dia eu dividir um palco com eles, sinceramente eu não sei que merda isso daria (risos). Acho que o parentesco com Richard e Venetian talvez exista, mas é muito distante, afinal vivemos em universos completamente diferentes. Os caras passam muito frio, têm culturas e vivências totalmente diferentes das minhas. Aqui eu passo calor, convivo com samba, funk

convivo com samba, funk proibidão, moda de viola, forró, congada, cores, folia de reis. eu nado em lagoa, bebo uma cachacinha amarelinha, minha família se reúne pra fazer pamonha. tudo isso de alguma forma acaba influenciando direta ou indiretamente os meus breaks, e eu quero diferenciar mesmo.

e estava bem confuso sobre que caminho tomar.

proibidão, moda de viola, forró, congada, co-

Sempre pensava em gênero musical, mas hoje

res, folia de reis. Eu nado em lagoa, bebo uma

concluí que isso é uma grande besteira. Se eu

cachacinha amarelinha, minha família se reúne

rotulasse o meu trabalho, me prenderia a uma

pra fazer pamonha. Tudo isso de alguma forma

linguagem, e quero produzir o que o meu estô-

acaba influenciando direta ou indiretamente os

mago mandar. Hoje faço samba e amanhã quem

meus breaks, e eu quero diferenciar mesmo. Não

sabe eu faça dark beats (risos). Estudei em São

penso nos caras do velho mundo como referên-

Paulo por um tempo, aprendi muita coisa e voltei

cia, mas a metodologia é a mesma: sou amante

pra Minas. Gosto do interior, as pessoas são me-

da tecnologia, de fato. Outra coisa que tenho em

nos neuróticas e os pequenos detalhes como co-

comum com muitos deles é o fato de fazer per-

res e cultura me inspiram bastante. Mas também

fomances apenas com um laptop aberto e não

não sou apegado, na primeira oportunidade eu

mixar muito bem (risos). Mas prometo me dedi-

caio fora daqui sem olhar para trás (risos).

car mais nos live acts.

Seu som tem algum parentesco com o Venetian Snares e o Richard D James, mas ao mesmo tempo tem um experimentalismo típico do rock rural e de outros regionalismos brasileiros. Como você se vê dentro da música eletrônica brasileira? acha que é mais um músico experimental ou de eletrônica no sentido mais popular do termo? É estranho eu tentar me enxergar na cena da música eletrônica brasileira. Quando ouço essa 81


¥¶ ¤ ß

Como você compõe suas músicas? que tipo de

Teu EP Gentalha (com samples do seriado

equipamento usa, como é o processo?

Chaves) pode passar despercebido à primeira

Em alguns casos eu uso fragmentos de uma mú-

vista, pelo fato de parecer só uma brincadei-

sica pra construir outra, em outros produzo tudo.

ra. mas tem muito detalhe ali, um trabalho mi-

Eu uso diversos softwares, emuladores de recur-

nucioso de métrica, ritmos etc. qual foi a tua

sos de estúdio, como sintetizadores, samplers e

ideia quando fez o disco? Você não tem medo

mixers.Também gosto bastante de recortar e gra-

que ele seja considerado um trabalho menor

var. Minha relação com o computador é a mesma

por causa do tema?

com um violão ou um acordeon. Não conheço

Por que um trabalho seria maior

os hardwares, elétrica. Acho a

muitas técnicas, só tento usar com o máximo de

ou menor que o outro? Quando

metodologia deles bem inte-

flexibilidade e liberdade. Em show, eu ligo o lap-

eu ouvi o EP remix do Richard

top no mixer e pronto, faço minhas brincadeiras

D James, Power-Pill Pacman,

em tempo real, usando diferentes softwares e

e o remix do lendário joguinho

técnicas. Mas quem acha que ver Psilosamples

de computador Lemmings, um

ao vivo é me ver suando frio com performances

single compacto chamado Sfx

magníficas e impressionantes como o [produtor

Lemmings, foi o suficiente pra

de música experimental californiano] Daedelus

eu tomar uma cerveja, abrir

no Monome (hardware minimalista para aciona-

o Sound Forge e começar a

mento de música eletrônica), por exemplo, vai

brincar, recortar e criar frases

cair do cavalo. Eu me importo apenas com o que

nos sintz, construir breaks e

o eu estou fazendo. E prefiro não citar nomes

o caralho-a-quatro. Eu e um

de softwares, afinal não estou ganhando pra isso,

monte de pessoas gostamos

não quero me tornar um garoto propaganda de

do seriado, achei que estava na

algo que eu nem sequer tenho registros (risos).

hora de remixá-lo, ainda mais

Não é importante saber que programa fulano de

quando na real eu estava remi-

tal usa, o importante é escutar e sentir a música.

xando de tabela o mestre Jean

Jacque Perrey (um dos pionei-

não dou a mínima pra quem vai achar ele um trabalho menor ou maior, com todo respeito. o gentalha foi tudo que meus amigos mongolóides da rua precisavam escutar.

ressante. Aqui no interior seria

dificil encontrar esse tipo de referência em um conservató-

rio de música ou em qualquer outra escola formal. No máximo eu encontraria uns caras

que me recomendariam John

Cage. Admiro e respeito muito ele, embora não conheça nada a fundo. Mas não é a minha

onda. Eu gosto de sentar e

conversar sobre o som, o silêncio, acústica, síntese, e principalmente sobre como intro-

duzir toda essa carga em uma track. Ou seja, adoro bater um

papo sem compromisso com quem me compreende.

Neste ano, você já lançou “as aventuras de Zé

ros da música eletrônica, autor

no Planeta Roça”, pela okiru. Tem mais alguma

do tema do seriado), então por

coisa na agulha? que linha tem trabalhado mais?

alguns momentos eu gozei de emoção a cada gole

o que você tem ouvido hoje? Tanto internacio-

Tem muita coisa, o problema é que eu vivo dele-

e a cada clique. Ficou pronto em questão de dias.

nal como brasileiro.

tando material. Estou produzindo o Mental Surf,

Uma galera gostou, e isso já me deixou muito feliz.

Escuto muito as minhas próprias tracks, preci-

que infelizmente para os freaks e felizmente para

Não dou a mínima pra quem vai achar ele um tra-

so prestar muita atenção nelas (risos). Mas ouço

mim será um disco pago. Afinal, eu não nasci em

balho menor ou maior, com todo respeito. O Gen-

outras coisas, também. Não paro de escutar

berço de ouro e tenho que correr muito pra acon-

talha foi tudo que meus amigos mongolóides da

os discos do Rei Harakami, sou muito fã. AdoAdo-

tecer algo (risos). Não sei dizer sobre linhas, às

rua precisavam escutar.

ro tudo do Luke Vibert, do Jean Jacque Perrey,

Plaid, Squarepusher, Cornélius, Caribou, Badun,

vezes acho que estou produzindo techno, mas

você pode achar que é um breakbeat e fulano

Você tem uma relação com DJs de psytran-

Rumpistol, Ceephax Acid Crew, Tipper, Benn JorJor-

pode achar que é um ethno, experimental; sicrano

ce, mas, fora talvez a ideia de “psicodélico” e

dan, Bogdan Raczynski e por aí vai. De nacional

achar que é braindance, IDM. Eu prefiro produzir

“transe”, não há muito em comum entre o seu

eu escuto bastante rap: ParteUm, Racionais, Slim

sem saber como o público vai caracterizar, sem

som e o que normalmente se vê de psy. qual a

Rimografia, Kamau, E.M.I.C.I.D.A. Gosto bastante

desmerecer a criatividade de quem escuta. Uma

sua relação com essa cena? Isso te trouxe algu-

de Mundo Livre S/A, e tem muita coisa antiga

coisa é certa: vai ter ritmo, grooves e melodias.

ma coisa boa?

que sempre escuto – Hermeto Pascoal, Sivuca,

Tenho outros álbuns mofando no meu HD. Vai

Já frequentei raves, fiz DJ sets em algumas, mas

Mestre Lua, entre outros. Algumas músicas pop

sair tudo, um dia, quem procurar vai encontrar. Só

não tenho relação com DJs de psy trance. Mas

me agradam também. Sempre me pego ouvindo

ainda não sei onde nem quando e como (risos).

confesso que já tive relações com algumas meni-

“barbaridades do povão” sem maiores constranconstran-

nas do rebolation (risos gerais). Na verdade, me

gimentos (risos gerais). 3

envolvi mais nos chillouts. Foi ali que encontrei liberdade para tocar musicas em reverse, subir e descer, brincar de ser místico, bruxo, remixar de

Wando a Luiz Gonzaga, de Eazy-E a Trentemøller (risos). Eu tenho um carinho muito grande

pelo techno. Conheci alguns nerds de Santa Rita do Sapucaí (capital do Vale da Eletrônica, no Sul

de Minas) que escutam minimal russo 24 horas por dia e aprendi a operar os sotwares, entender 82

1Saiba maiS

www.okiru.org myspace.com/psilosamples myspace.com/psilogentalha


¤ ßfl 83


Entrevista com Dea Lellis

4Fenris . aCrĂ­liCa sobre PaPel . 2009

Por Tiago Moraes


4CARIBOU . acrílica sobre papel . 2009

Não se deixe enganar pela aparente inocência dos desenhos e das pinturas de Dea Lellis. Eles podem parecer meigos e inocentes num primeiro olhar, mas carregam altas doses de sarcasmo e questionamento sobre os excessos da vida moderna, como o consumismo desenfreado e todos os hypes criados pela indústria para alimentar ainda mais esse desejo de consumo. Formada em design gráfico e artista autodidata, Dea divide o seu tempo entre a fábrica de biscoitos da mãe, onde trabalha meio período, e a sua arte. A inspiração vem de filmes de terror, canais de TV sobre animais, da música e de cenas e personagens que encontra no dia-a-dia. 1


Acho engraçado esse lance todo, o culto à roupa, ao lance material, passar a noite toda acampado em frente a uma loja para comprar um tênis… Acho um exagero, e tudo que não tem um equilíbrio não faz bem, e a moda é muito isso, de extremos. quando você começou a desenhar? Desenho desde criança, sempre gostei, mas tinha vergonha de mostrar. Daí, de uns anos para cá, resolvi assumir e comecei a postar no flickr, e vi que as pessoas estavam curtindo, então comecei a me empolgar mais, fui desencanando… quais suas maiores influências? No Brasil, a Silvana Mello. Lá fora, Josh Keyes e Marcel Dzama. Gosto muito também do Billy Argel e do Danielone, curto muito essa coisa meio skate, meio metal. Eu piro em logo de banda de metal, mas não consigo fazer minhas coisas para esse lado, acaba sempre saindo meio de menininha (risos). E o que você mais curte retratar? Animais, é claro. Adoro os bichos, fico pesquisando, vendo Animal Planet (risos). Normalmente tento encontrar alguns que tenham a ver com a situação que quero retratar… Também gosto muito de desenhar pessoas, com movimentos engraçados ou curiosos e roupas… Ah, também adoro desenhar

Fala um pouco disso, dessa sua fixação pelos hipsters… (Risos) Acho engraçado esse lance todo, o culto à roupa, ao lance material, passar a noite toda acampado em frente a uma loja para comprar um tênis… Acho um exagero, e tudo que não tem um equilíbrio não faz bem, e a moda é muito isso, de extremos. Aí recentemente inventaram os sneakerheads, ou cabeças-de-tênis, acho esquisito se denominar assim, mas enfim, acho divertido pegar no pé desse pessoal.

4TuurngaiT . aCríliCa sobre PaPel . 2009

moderninhos (risos).


Então a maioria desses personagens que você desenha são inspirados em cenas e pessoas reais, que você vivencia no seu cotidiano? Sim. Todos eles são bem pessoais, tem pessoas do meu convívio e outras que não são, mas

Não é uma coisa de perseguição, coloco nos desenhos momentos e situações que me incomodam na hora, pessoas que me irritam ou que têm atitudes que considero erradas, exageradas. É como eu já disse uma vez: já que não se pode matar de verdade, mato no papel.

que no momento têm a ver comigo. Não é uma coisa de perseguição, coloco nos desenhos momentos e situações que me incomodam na hora, pessoas que me irritam ou que têm atitudes que considero erradas, exageradas. É como eu já disse uma vez: já que não se pode matar de verdade, mato no papel (risos). É como um desabafo. Você está apresentando a sua primeira exposição individual, no Espaço +Soma. Fale um pouco dessa exposição. A exposição apresenta 14 trabalhos que têm como cenário o Ártico, tanto no período do inverno como no verão. Também tem uma mistura de mitologia inuit e nórdica, um pouco de tortura medieval e, é claro, moda. É um reflexo de como vejo certos exageros na vida das pessoas, e nessas pinturas eu retrato situações em que membros de tribos esquimós lutam contra todo esse “mal” para continuarem livres. Há uma certa dose de misantropia, valorizando a natureza e o indivíduo. E são todas pinturas, que é algo que comecei a fazer há pouco tempo. Antes

4norThwesTern . aCríliCa sobre PaPel . 2009

eu só desenhava com canetinhas.


Não existe essa questão da vaidade em relação a roupas, eles se vestem simplesmente porque precisam se aquecer. (sobre os esquimós)

Por que retratar o ártico e os esquimós em um país tropical como o Brasil? Acho que a ideia foi trabalhar com os opostos mesmo, além da questão do clima. Por estarem meio que no fim do mundo, os esquimós são mais protegidos de influências externas. Não existe essa questão da vaidade em relação a roupas, eles se vestem simplesmente porque precisam se aquecer. Percebo que a moda está sempre presente nos seus trabalhos, seja nas padronagens das roupas dos personagens, nas roupas em si, nos tênis… Você tem algum interesse especial por moda ou é pura tiração de onda com os hipsters mesmo (risos)? (Risos) Então, eu cheguei a fazer um semestre de faculdade de moda, foi na época em que eu estava costurando bastante, mas aí não tive paciência, vi que não era a minha. Gosto das estampas mais pelos desenhos, o resto é tiração de onda mesmo. além de desenhar, você tem um talento absurdo para a costura. Chegou a fazer muita coisa legal, lembro daquele monte de

4senTido . aCríliCa sobre PaPel . 2009

animais que você costurava, tubarões-martelo, raias… Você deu uma parada ou é algo a que continua se dedicando também? Não, acho que me cansei um pouco. Eu gostava muito de ver o resultado dos bichos, mas achava meio chato e cansativo de fazer. Já no desenho, para mim todas as fases são prazerosas. Mas tenho pensado em voltar aos poucos, conseguir fazer um link entre os desenhos que venho fazendo ultimamente e os bichos que eu costurava.


Os lobos normalmente predam os feridos, fracos e velhos, e o black metal prega a mesma coisa, aniquilar os fracos de cabeça, os submissos e a cultura mainstream

Se pudesse escolher ser qualquer animal, qual escolheria? Por quê? Lobo. Porque acho bonito e tem um significado legal, além da história dele dentro do black metal. Os lobos normalmente predam os feridos, fracos e velhos, e o black metal prega a mesma coisa, aniquilar os fracos de cabeça, os submissos e a cultura mainstream, com o intuito de melhorar a espécie. Mas sem aquelas besteiras de satanismo e neonazismo. Já que sei que você curte muito música. Se tivesse que escolher uma trilha sonora para as pinturas que produziu para sua exposição, qual seria? Apesar de ter escutado bastante Mos Def esses últimos meses, acho que não tem muito a ver com o clima… Fico com o Pentastar do Earth então, um disco de que eu gosto muito. Para finalizar, mande um recadinho final para todos os hipsters de plantão… (Risos) Continuem fazendo bastante merda,

2Saiba maiS flickr.com/metalpreto

4MunTlig Pá is . aCríliCa sobre PaPel . 2009

para eu ter sempre inspiração!


+quem soma . Luciano Valério .

L

Por Mateus Potumati

embro que um metaleiro cabuloso

No começo dos anos 1990, no mesmo CECAP

sobre Exu. Valério, por coincidência, quebrava

lá do CECAP, que tirava a gente

(bairro de classe média-baixa em Guarulhos/

a cabeça para aprender a editar vídeos

pra caralho, chegou um dia com

SP que deu ao mundo os Mamonas Assassinas),

em casa. A união foi natural. “A gente saiu

o Fresh Fruit for Rotting Vegetables do

ele integrou grupos como o Personal Choice,

filmando tudo quanto é terreiro de São Paulo.

Dead Kennedys e me falou ‘você gosta

pioneiro do hardcore straight edge sul-

Não tínhamos noção de nada, foi bem punk,

de punk, moleque? Então tó’.” A cena é

americano, e Sight for Sore Eyes. Anos depois,

no sentido literal mesmo. Pegava a câmera e

comum durante a conturbada adolescência

buscando novos ares, aproveitou um acerto

falava ‘vamo aí’.” O vídeo foi elogiado, com

masculina: cara mais velho apavora

demissional e foi viver na Europa. Lá, habitou

direito a exibição em auditório lotado, mas

molecada, que nutre uma relação de ódio

as invasões urbanas de Amsterdam por 5 anos

a carreira de cineasta não sobreviveu ao dia

e admiração por ele. Se foi por força direta

e tocou baixo na banda crust polonesa Matka

seguinte. “O projeto acabou e a gente voltou

daquele encontro ou não, é difícil dizer.

Teresa. Mas a vida em empregos temporários

a ficar na merda, os dois (risos).” O embrião

Mas a verdade é que o espírito do punk

tem prazo de validade. “Foi bom pra caralho

da Desmonta, porém, já estava criado.

nunca mais desgrudou de Luciano Valério.

ter saído, mas você se sente meio órfão, não

Hoje, à frente da Desmonta, selo/produtora

faz parte nem de um lugar, nem de outro”, ele

Pouco depois, enquanto fuçava no site da

paulistana, ele ainda se guia pelo mesmo

lembra. De volta ao Brasil em 2006, era hora

gravadora Dischord, Valério ficou sabendo

bom e velho do-it-yourself do passado –

de investir tempo em algo mais duradouro.

que Joe Lally, ex-baixista do Fugazi, tinha

mas com um senso de subversão muito

O parceiro não poderia ser mais adequado.

lançado um projeto solo. Sem dinheiro para ir

mais apurado, capaz de unir sob o mesmo

“Conheço o Kiko [Dinucci] desde os 6, 7 anos”,

ao exterior, ele começou a ter ideias e mandou

guarda-chuva o afro-samba urbano de Kiko

ele conta. “Estudamos juntos até o colegial, ele

um email para Lally. Dois dias depois, custava

Dinucci, o experimentalismo de M. Takara, a

sempre mais caseiro e eu mais da rua.” Dinucci,

a acreditar no que via na tela: “Quer fazer meu

eletrônica freak de Psilosamples e o improv

já avançado em sua pesquisa sobre cultura

show? Beleza, vamo aí”. “Ele deve ter pensado

do grupo europeu Speeq.

afro-brasileira, produzia um documentário

que eu era algum produtor experiente (risos).”


O aprendizado, como sempre, foi na marra.

Pastiche Nagô tem algumas tiragens esgotadas

esquema, de trazer o cara, reservar uns dias

O primeiro obstáculo já intimidava: o custo

e é queridinho da crítica e de descolados – e

de estúdio pra todo mundo se reunir e tentar

de trazer uma banda inteira do exterior. A

mais: a faixa “Engasga Gato” fará parte da

fazer uma parada diferente.” Falando sempre

solução encontrada acabou agregando outro

próxima temporada da série Burn Notice, da

em um plural nada majestático, ele continua:

parceiro fiel e se tornou uma marca registrada

Fox –, nem sempre foi assim. “Agora o trabalho

“A gente sempre quis fazer uma parada mais

da Desmonta. “Precisava de alguém daqui

dele é mais aceito fora do meio do samba, mas

aberta, com um monte de gente ao redor, e

pra tocar com ele. Colei no Maurício [Takara,

esse mesmo público que escuta o Kiko Dinucci

fazer a coisa circular. Mais importante do que

baterista do hurtmold e Marcelo Camelo],

hoje, um ano atrás ficava ‘samba??’. O Kiko era

fazer dinheiro ou ter atenção da imprensa,

que eu já conhecia desde a época do hC .

pagodeiro pra esses caras. hoje, ele é cool.”

é tocar. É por isso que até hoje a gente tá

Montamos uma banda aqui mesmo e o Joe

Sobre o porquê do fenômeno, ele teoriza:

chamando gente de fora pra vir pra cá: por

aceitou na boa.” Logo, uma turnê de 12 shows

“Acredito que muita gente se abriu pro Kiko

acreditar que, agregando e juntando pessoas

estava pronta, incluindo datas no SESC.

por causa do Maurício, ‘quem é esse cara que

relacionadas ao selo pode sair coisa boa”. Ele

tá lançando disco com o Takara?’ E se pensar

pensa por um momento, como se buscando na

No final da turnê, Takara deu o sacode que

o trabalho deles tem muito a ver um com o

memória o balanço desses três anos. “E sai, dá

faltava. Com seu terceiro disco solo pronto em

outro, tanto que fizeram várias coisas juntos.

resultado e é legal pra caralho.”

mãos, ele intimou: “Por que você não lança?”

Os dois evoluíram muito com isso.”

Luciano lembra: “Foi ele que me deu o chute na bunda. Eu tinha pouco dinheiro, na época

hoje, em três anos de existência, a Desmonta

ele colocou e eu investi a parte que eu tinha

está prestes a lançar o sexto disco do catálogo

no site”. Mais uma vez, deu certo. Depois

e já realizou shows de Josh Abrams (ex-

de M. Takara, finalmente foi a vez de lançar

Prefuse 78), Jeff Parker (Tortoise), Nathan Bell

o primeiro disco de Kiko Dinucci. Se hoje

(ex-Lungfish) e Thavius Beck. “Sempre nesse

2Saiba maiS www.desmonta.com

91


Por Mentalozzz e Ouriço

Como designer e fotógrafo, a atividade principal do paulistano Ricardo Kobe é desenvolver rótulos para rações de peixes, trabalho que exige dele dias à espera do melhor ângulo de seus temperamentais modelos subaquáticos. Ele dá as caras nesta Seleta porque é um guardador de primeira: guarda garrafas de CocaCola, rádios, dioramas e bonecos. Mas invejável mesmo é sua coleção de máquinas de pinball (ou flippers, se você preferir) e arcades que fizeram parte de quem viveu a infância e a adolescência entre as décadas de 60 e 90.

Coisas que Gostamos de guardar 92

Máquinas de pinball custam entre R$ 900 (quebradas) e R$ 20 mil e não são fáceis de guardar, mas ele tem aproximadamente 100 em seu galpão-museu, na região do Cambuci (centro de São Paulo). Kobe não é o único dono de toda a coleção: ele é um dos integrantes do Pinball Clube São Paulo (www.pinballbrasil. org). Fundado em 1999, o clube promove o Torneio Brasileiro de Pinball, que conta pontos para o ranking do IFPA (International Flipper Pinball Association). 1


4riCardo kobe

Assim que ligou as chaves e as luzes começaram a piscar no galpão onde guarda as máquinas, tivemos a sensação de estar em um depósito de antigos robôs, principalmente ao ouvirmos o Cavaleiro Negro (a primeria máquina equipada com voz) nos desafiar para uma batalha, em seu português com sotaque americano. “O chip SC01 VORTRAX, responsável pela fala, é de origem Norte-Americana”, conta Kobe. Na época, as máquinas eram trazidas para cá e “abrasileiradas”. Na mesma linha, só que ainda mais pitoresca, Kobe tem uma máquina chamada oba-oba. Com seu samba desengonçado, ela nada mais é do que uma versão nacionalizada da clássica máquina da Playboy. Aqui, porém, a imagem do grande Hugh Hefner, dono da revista, e de suas playmates foi substituída por um desenho de Sargentelli e suas mulatas, em arte assinada por J. Pecegueiro, da Taito do Brasil. Um substituto à altura, sem dúvida. A máquina mais antiga do galpão é uma ace High, do longínquo ano de 1957. Com pés e estrutura de madeira, ela é totalmente manual – o que, se por um lado é um saco, permite a colocação de várias bolas em jogo simultaneamente, recurso bem legal que só foi percebido e implementado em futuras gerações de máquinas como forma de bônus. “Hoje a manutenção destas máquinas torna o preço da ficha caro e inviável para o mercado”, conta Kobe. “Os fabricantes, em grande maioria, migraram para a fabricação de equipamentos para cassino. Ou seja, elas estão sumindo e é essa a importância de guardar estas máquinas.” Se fora dos domínios do galpão essa indústria já deu tilt faz tempo, aqui dentro ela ainda têm anos de jackpot pela frente. 3

1Saiba maiS www.pinballbrasil.org

93



“É preciso ir fundo.”

Entregou a bandeira ao ser. E sentou na

“Fundo até onde?”

caixa d’água.

“Se há onde, ainda não é fundo o suficiente.”

“E agora?” João acordou com esse sonho. As costas duras,

“Agora balança de um lado pro outro.”

o pescoço duro, as opções engessadas. Subiu até o terraço e agitou a bandeira.

O cara balançou.

Ele tem uma bandeira. Um enorme estandarte

“É isso?”

laranja. Sempre que se pega deprimido, não

“É.”

toma comprimidos, não bebe, não reclama, não chora, não fuma maconha. Sobe em cima

Devolveu a bandeira. João voltou a bandeirear

do prédio e agita uma bandeira laranja. Uma

enquanto o outro observava sentado.

vez quase caiu, estava ventando e chovendo.

“Interessante.”

Se desequilibrou e foi salvo por uma antena

“Gostou?”

externa de VHF.

“É bom.” “Pois é. É o que funciona pra mim.”

conhecidas sem saber se aquilo foi dito ou

“Você faz por isso?” “Por isso o quê?” “Por essa sensação?”

não. Antes de despertar totalmente, já está

“É.”

no terraço com a bandeira laranja. Esses dias

“Só isso?”

um cara desceu flutuando do norte e ficou

“Me basta.”

observando a cena: João brandindo o mastro

“Não parece.”

Faz treze dias desde o impacto, e toda noite ele acorda com uma conversa entre pessoas

pra lá e pra cá, fazendo tremular o enorme

“É? Mas me basta.”

pedaço de tecido com o céu escurecido como

“Empresta de novo.”

pano de fundo. O homem que veio do céu pegou a bandeira de

“Por que você faz isso?”

João, quebrou o mastro no joelho e jogou tudo

“É meu antidepressivo.”

lá pra baixo.

“Como assim?” “Se eu acordo mal, venho aqui pra cima

“Por que você fez isso?”

bandeirear e melhoro. Consigo dormir.”

“É preciso ir fundo.”

“Como assim, acorda mal?”

“Fundo até onde?”

“Acordo mal. Me sentindo vazio, sem

“Se há onde, ainda não é fundo o suficiente.”

respostas.”

“Sem respostas pra quê?”

“Me diz: quem é você pra quebrar minha bandeira?”

“Pra qualquer pergunta.” “Não entendo.”

Mas o cara já tinha alçado voo, flutuando com

“Você não precisa entender. Você vem voando

calma de volta para o norte.

do norte. Não há necessidade de entender nada.”

“Desgraçado!”

“Agora entendi menos ainda.” “Toma.”

1gustavo mini escreve em www.oesquema.com.br/conector


+reVIeWs

1BIG STaR . KEEP aN EyE

três álbuns e suas derivações para dar corpo à nova caixa Keep an Eye

oN THE SKy . Rhino . 2009

on the Sky. Por isso, não é de surpreender que a caixa chegue logo às pérolas que conhecemos e adoramos, claramente influenciadas pelos

Certa vez, Brian Eno fez um

Beatles, Byrds, Beach Boys e outras bandas com B, mas trazendo ver-

comentário sobre o Velvet

sões distintas dessas sonoridades tão familiares.

Underground que se tornou célebre: poucas pessoas com-

Falando em versões, dezenas de demos e takes alternativos oferecem

praram seus discos, mas cada uma delas montou uma banda. As ven-

uma história paralela sobre o que poderia ter acontecido, caso a ban-

das do Big Star não poderiam ter sido muito diferentes, mas o impacto

da tivesse sido menos meticulosa ao construir e aperfeiçoar seu proto

posterior da banda é quase tão significativo quanto. Em apenas dois

power-pop. Se as estas alturas nenhuma mixagem nova mudará de for-

álbuns completos e um terceiro costurado a partir de gravações mal-

ma significativa os registros cravados na memória de todos que co-

sucedidas, o Big Star deixou um legado ao mesmo tempo triunfante e

nheceram a música do Big Star, Keep an Eye on the Sky nos encoraja a

desolador, que inspirou bandas tão distintas como Cheap Trick, R.E.M.,

ouvir essas faixas com novos ouvidos, reconhecendo como a banda foi

the Replacements, Teenage Fanclub e Jeff Buckley. Na verdade, se não

bem sucedida ao usar o estúdio como ferramenta. Isso é especialmente

fosse pelos fãs importantes, a música de Chilton, Chris Bell e compa-

verdadeiro em relação às faixas aleatórias porém comoventes de Third/

nhia poderia ter sido esquecida.

Sister Lovers, que precisou ser concluído pelo falecido produtor Jim Dickinson, após a deserção de Alex Chilton, líder da banda. A extasiante

Felizmente o que é bom sempre acaba vindo à tona, e hoje é difícil ima-

Thank You Friends , a mórbida mas inesquecível Holocaust e Lovely

ginar o mundo sem o Big Star. Levando em conta que a banda durou

Day (recriada mais tarde em Stroke It Noel ), por exemplo, crescem

apenas alguns anos, em meados da década de 1970, o mito Big Star se

exponencialmente de demo a produto final. Comparadas a essas revela-

alimenta de uma fonte modesta: apenas aqueles dois primeiros álbuns,

ções, as faixas ao vivo compiladas no disco quatro são mais uma volta

#1 Record e Radio City, a obra-prima conturbada e tardiamente lançada

olímpica do que material de audição obrigatória, mas elas ainda servem

Third/Sister Lovers, e, de forma secundária, I Am the Cosmos, obra solo

como afirmação do que o Big Star poderia ter sido, caso tivesse conse-

póstuma do guitarrista e vocalista Chris Bell. Como o trabalho solo de

guido durar tempo suficiente para que mais pessoas pudessem apreciar

Bell vem sendo trabalhado separadamente, restaram apenas aqueles

sua música.

3Por Joshua Klein . Tradução Janaina Felix

1DIRTy PRoJECToRS . BITTE oRCa . Domino Records . 2009 Antes um projeto do guitarrista Dave Longstreth, o Dirty Projectors apresenta este Bitte Orca como uma banda completa. De formação tão inusitada quanto sua música, aliás. Acompanhando guitarras, teclado, baixo e bateria, além da voz de Longstreth, três garotas também cantam. As vozes, no entanto, parecem adequar-se mais à função de instrumento do que de fio condutor, algo evidente em músicas como “Remade Horizon” e seu “teclado de gogós”. As guitarras de Longstreth são um capítulo à parte. Nota-se que a inspiração é africana, mas, mais que clonar o DNA rítimico do highlife e do afro beat como faz a maioria de seus pares atuais, ele prefere mutar seus fraseados, refazendo a travessia do Atlântico rumo ao caribe. Dos mais belos exemplos de virtuosismo não masturbatório. Se desde 2002 – quando lançou seu primeiro álbum ainda sem o nome Dirty Projectors, e principalmente após o lançamento do anterior Rise Above, uma releitura bastante pessoal do clássico do Black Flag – Longstreth tem se destacado por buscar, com uma grande variação de resultados, soluções criativas para o embate entre o experimentalismo e o pop convencional, aqui finalmente ele consegue encontrá-las. Não por acaso, Bitte Orca briga pelo título de disco do ano com outro que apresenta exatamente a mesma proposta (por vias diferentes, obviamente): Merryweather Post Pavillion, do Animal Collective. O exemplo mais redondo é “Stillness is the Move”, primeiro single, que se escora na estrutura de um R’n’B de FM para se constituir como uma colossal porta de entrada ao universo da banda – não seria muito estúpido supor que, com sua letra repleta de chavões roubados de canções populares e seu refrão grudento, faria sucesso na voz de Rihanna ou alguém do tipo. E o mundo seria um lugar mais feliz. 96

3 Por Dago Donato


1WHy? . ESKImo SNoW .

1DaVID BaZaN . CuRSE youR BRaN-

Anticon . 2009

CHES . Barsuk Records . 2009

Antes de mais nada, deve ser lem-

David Bazan trocou a certeza pela dúvi-

brado que este novo trabalho de

da. Se outrora foi o porta-voz da músi-

Yoni Wolf e seus colegas veio da

ca indie cristã, à frente do extinto Pedro

mesmas sessões que geraram o

The Lion, agora ressurge alinhado com

monumental Alopecia, lançado no

o discurso agnóstico, questionando seus

ano passado. Agora que o disco

antigos valores e expondo seus dilemas

saiu, fica mais claro o porquê de di-

numa espécie de terapia pública. Curse

vidir músicas da mesma safra em dois blocos. Enquanto Alopecia se

Your Branches, seu segundo trabalho solo (o primeiro foi o EP Fewer Moving

dividia entre o hip-hop e o indie rock, criando para si uma via nem lá

Parts, de 2006), eterniza em 10 canções a fase de contestação do artista. O

nem cá, um universo astutamente localizado a uma distância astro-

que não mudou – e para muitos é apenas isso que importa – foi a qualida-

nômica de qualquer noção que se costuma ter das fusões rap-rock,

de da sua música. A mesma voz sincera e emotiva que louvava agora “pre-

Eskimo Snow é basicamente um disco de baladas. Isso se reflete

ga” o questionamento. “É difícil ser um ser humano decente”, canta Bazan

também nas letras de Yoni, que deixa um pouco de lado “o tipo de

logo na primeira faixa (“Hard To Be”), resumindo seu estado de espírito e,

coisa que não admitiria nem para o psiquiatra” e aqui quer “falar em

ao mesmo tempo, alertando o ouvinte para o que o aguarda no restante do

decibéis íntimos com a precisão de decimais infinitos”. Mas pode ficar

álbum. Mas não pense que isso significa um disco soturno ou melancólico.

tranquilo, a alma doentia e o mundo decadente de Wolf continuam

O ritmo alegre de “When We Fell”, por exemplo, chega (quase) a destoar do

sendo o plano de ação, como ele deixa claro em “The Blackest Purse”

peso das palavras, que em certo momento anunciam: “Se minha mãe chorar

(“ainda uso a cueca do ex-namorado morto da minha ex-namorada”).

quando eu lhe disser o que descobri/ eu espero que ela se lembre que me

Ufa. Musicalmente, Eskimo Snow soa muito mais linear que Alopecia.

ensinou a seguir meu coração/ E se você a intimidar, como fez comigo, com

Por outro lado, tem arranjos mais densos e surpreende nos detalhes.

o medo da condenação/ então eu espero que ela possa vê-lo como você é”.

Em alguns momentos, chega a ser grandioso. Se o minimalismo à

Será necessário explicar com quem ele está travando esse diálogo? Bazan não

Steve Reich aparecia antes apenas como mais um elemento, aqui ele

chega a negar a existência divina, está apenas manifestando cansaço em ten-

vira eixo central em muitas das músicas, como “Against Me” e seu re-

tar compreender o incompreensível. “Muito cheio de medo e de profecias para

frão tecido com espirais de teclados e metalofones, ou na épica “Into

enxergar a revelação bem na minha frente/ cansado demais de tentar fazer as

the Shadows of My Embrace”, que começa como um inocente soul

peças se encaixarem”, ele confessa em “Bearing Witness”, um indie rock com

e transforma-se em um inferno de camadas concêntricas de instru-

guitarras de influência country. Fechando o disco, a emocionante balada “In

mentação. Antes herdeiro lírico e espectador de Dave Berman (“cho-

Stitches” comprova que, apesar dos seus esforços, tem sido difícil se afastar

rando na primeira fila do show dos Silver Jews” ), Yoni aqui também

de Deus: “A tripulação matou o capitão/ mas eles ainda podem ouvir sua voz/

se aventura no ambiente musical do ídolo – algumas das músicas até

uma sombra na água/ um sussurro no vento/ em longas caminhadas com

acenam para o folk – e triunfa. Com dois discões em dois anos, fir-

minha filha/ que ultimamente está cheia de dúvidas/ sobre você”. Em meio

ma-se como um dos mais brilhantes nomes revelados nesta década.

a tantas dúvidas e dilemas, uma coisa é certa: a música de Bazan continua

Só não vê quem não quer. 3Por Dago Donato

necessária, honesta e bela. Agnosticamente bela. 3Por Marcelo Viegas

1quaNTIC aND HIS ComBo BáRBaRo . TRaDITIoNS IN TRaNSITIoN . Tru Thoughts . 2009 Pesquisador musical fascinado pelos ritmos latinos, o produtor inglês Quantic mudou-se para Cali, na Colômbia, em 2007, para estudar os ritmos da América do Sul. Lá, montou um estúdio analógico e começou a gravar sob influência de sua pesquisa, dando mostras disso em seus dois últimos álbuns: Tropidélico, com a Soul Orchestra, de 2007, e o excelente The Death Of Revolution, de 2008, com produções tropicais voltadas ao dub e à música jamaicana. Agora, Quantic montou uma big band com músicos locais e feras como o baterista Malcom Catto (da banda The Heliocentrics) e fez um disco excepcional. Com arranjos do brasileiro Artur Verocai, Traditions In Transition busca uma fusão psicodélica entre diversas referências sonoras latinas como as músicas caribenha, peruana, panamenha e até brasileira com elementos do soul, jazz e ritmos africanos. É seu disco mais orgânico, com menos timbres eletrônicos. O produtor também teve êxito na seleção de convidados vocais, com diferentes estilos da música latina: o crooner panamenho Kabir, com sua voz rouca em “Linda Morena” e “I Just Fell In Love Again”; e a cantora Nidia Góngora, que comanda a percussão tribal misturada a levadas contínuas de guitarra de “Un Canto A Mi Tierra”. O produtor também experimenta outras vias, como em “Albela”, casando perfeitamente o vocal feminino indiano da cantora Falu com batidas sincopadas latinas. Quantic é um dos produtores mais criativos e ativos da atualidade. Com êxito em diversos outros projetos, o inglês mostra neste disco que anda fazendo muito bem seu dever de casa em relação à música do nosso continente.

3Por Daniel Tamenpi 97


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+coolt Um bom filme pra coleção, um livro pra escrever melhor, cinema, fotografia e inspiração na grande rede. 1

livro . o PaI DoS BuRRoS, DE HumBERTo WERNECK “A escola da vida” nos ensinou que “abraçar uma causa” é pior que “acreditar piamente”. Agora esquece isso e vai aprender a escrever melhor com um dos grandes do nosso jornalismo, passando longe de lugarescomuns e frases feitas. Um ano depois de O Santo Sujo, biografia de Jayme Ovalle, o mineiro humberto Werneck lança O Pai dos Burros [Ed. Arquipélago Editorial - 205 págs. - R$ 29], que traz mais de 4.500 expressões espalhadas pelos 2 mil verbetes da obra. O livro é fruto do hábito que humberto mantém, há quase 40 anos, de anotar num pedaço de papel qualquer as expressões que, de tanto uso, tornaram-se gastas. [endrigo chiri braz] 3foto . divulgação

2www.arquipelagoeditorial.com.br internet+fotografia . BLIND PHoToGRaPHERS O projeto Blind Photographers foi criado por Tim O’ Brien num dia comum, enquanto ele fotografava para uma revista e tomava seu “melhor amigo”, o café. O site reúne o trabalho de fotógrafos que veem o escuro mas fotografam vida. Nas mais de cinco mil imagens estão presentes a arte e a técnica de toda a evolução da linguagem universal da fotografia desde o século XIX. É como sentencia o fotógrafo Evgen Bavcar: “O mundo não é separado entre os cegos e os não cegos. A fotografia não é exclusividade de quem pode enxergar. Nós também construímos imagens interiores”. Blind Photographers é a prova. [paloma sá] 3foto . Alex Dejong/Blind Photographers.org

2blindphotographers.org cinema+internet . THE INTERVIEW PRoJECT, DE auSTIN LyNCH & JaSoN S. Uma viagem de 32 mil quilômetros em 70 dias na busca por respostas para perguntas como “Você tem algum arrependimento?”, “Quais seus planos para o futuro?”, “Qual a coisa mais importante para você?”. The Interview Project é um roadmovie-documentário dirigido por Austin Lynch que conta a história de americanos comuns escolhidos a esmo. Exibido na internet, são 121 curtas ao longo de um ano. Seria um filme real, não fosse a mão do cineasta David Lynch por trás das câmeras. “É algo humano e não podemos ficar alheios a isso.” [paloma sá] 3foto . divulgação

2interviewproject.davidlynch.com internet+inspiração . SPEZIFy Se para você a internet é fonte de inspiração e as buscas no Google já não te satisfazem mais, seus problemas acabaram! Uma empresa sueca achou um nicho pouco explorado na rede, o da inspiração. Já consagrado no Twitter e querido dos cidadãos mais criativos, o Spezify faz “inspired search”. Você digita apenas uma palavra e ele encontra milhares de fontes em sites como eBay, Flickr, Wikipedia, Twitter, Amazon, youTube, yahoo! e MSN search e organiza tudo em ícones imagéticos capazes de deixar qualquer um inspirado. Será o fim da era tediosa dos links azuis? [julia reina]

3foto: divulgação

2www.spezify.com Não LaNçamENTo DESEJo E oBSESSão . Trouble Every Day, de Claire Denis . 2001 Ah, o amor... sentimento inexplicável. É aquele fogo que arde sem se ver, intenso, fulminante. Mas para Shane Brown – o soturno personagem interpretado pelo multi-meios Vincent Gallo – o amor é ferida que se sente até o osso. Ao viajar para Paris em lua de mel com sua recém esposa June, o perturbado e misterioso herói busca ajuda médica de um expert em problemas da libido. Mas este tal doutor se exilou para cuidar de sua esposa, que comunga do mesmo problema, e não quer ser encontrado. Vale avisar de antemão que o controverso filme de Claire Denis não é uma comédia romântica, mas um thriller visceral e sombrio, que explora uma das diversas facetas das relações a dois e dos desejos de cada um, que nem sempre queremos conhecer ou revelar a nossos parceiros. [raphael bottino] 3

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