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bicicleta sem freio design, style and make music as a group. what do you do? converseallstar.com.br/linhapremium
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+soma . #17
Na falta de trem ou outro meio de transporte menos agressivo para o planeta, viajar de carro de São Paulo a Belo Horizonte é diversão pura. A estrada, cheia de curvas e com poucas pistas, não é lá das mais seguras, mas o asfalto é razoável. Se o céu estiver aberto, você vai sentir como se estivesse entrando num rótulo de embalagem de margarina ou doce-de-leite, à medida que se aproxima de um dos povos mais legais do Brasil. No nosso caso, a viagem foi ainda mais especial porque estávamos realizando uma missão: falar com Arnaldo Baptista. Encontrar um ídolo de tantos anos sempre levanta aquelas questões incômodas sobre os limites entre ser jornalista e fã. Mas Arnaldo é uma figura tão simpática, louca e extrovertida que o desconforto foi por terra logo que entramos em sua casa. Depois de nos deixar à muito vontade, ele e a esposa, Lucinha Barbosa, nos deram acesso total a uma mente peculiar, que recomeçou do zero como um disco rígido formatado depois de um bug quase irreparável. Outra mente que teve forças para se reinventar – e alçar voos altíssimos – foi a de Jun Matsui, mítico tatuador brasileiro que trabalhou como dekassegui no Japão, descobriu seu talento para a arte e chegou a desenhar corpos de membros da Yakuza. De volta ao Brasil, ele se tornou um dos profissionais mais requisitados e caros do país, com seu estilo carregado inconfundível e seu ethos de trabalho digno de um monge zen. Se os dois começaram do zero, Eugene Hutz não partiu nem disso. Filho de ciganos, criado na Ucrânia soviética, ele driblou a opressão do regime comunista e o preconceito étnico com um do-it-yourself de causar embaraço a qualquer punk de um país capitalista. O líder do Gogol Bordello falou sobre gipsy punk, morar no Rio e trabalhar em Hollywood com o peito aberto de quem não se choca nem deslumbra com nada, mas não perde a intensidade de viver.
Thais Beltrame também gosta de virar o mundo do avesso. Seus desenhos delicados e solitários pulsam com uma reflexão obsessiva sobre o papel do artista e sua obrigação de sacudir a zona de conforto – sua e do público. O papel do artista também é objeto principal do trabalho de Baixo Ribeiro e sua Choque Cultural, que, antes de ser uma galeria, leva a ferro e a fogo uma missão educativa inédita no Brasil. Momento parecido com o de Thais vive a cantora e compositora Alessandra Leão. Em turnê do seu segundo disco solo, Dois Cordões, ela experimenta o esplendor de uma carreira que chamou a atenção de David Byrne e promete ser o próximo grande passo da música pernambucana no Brasil e no mundo. Prestes a lançar o primeiro disco, Rincón Sapiência e Diego de Moraes representam a ponta-de-lança de um horizonte incrível para a novíssima música brasileira. Possibilidades infinitas a quem vê o mundo a partir da experiência-zero.
2DESENHO DE JUN MATSUI
+SOMA
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+conteúdo
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Shuffle . Zegon A Experiência-Zero de Arnaldo Baptista Thais Beltrame Alessandra Leão . Bala Que Rasga o Luar Depois da Tempestade . Entrevista com Jun Matsui Ensaio de Fotos . Michel Gomes Entre (Outros) Nekro . Veneno Remédio Rincón Sapiência . ÁFRICAZONALESTEBRASIL Mariana Abasolo . Fé no Mistério Eugene Hutz . A Perpetuidade da Folia e da Sujeira Blitz the Ambassador . Boombox Suicida Diego de Moraes . Anjo Exterminado Quem Soma . Baixo Ribeiro Seleta . Especial Cleptomania Quadrinhos Obras Primas . Curtis x Kurtis Reviews
Endereços
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O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo. Para informações acesse: www.maissoma.com Kultur Studio | +Soma Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP www.kulturstudio.com REVISTA SOMA #17
C
Maio 2010 M
Fundadores . Kultur
Y
Alexandre Charro, Fernanda Masini, CM
Rodrigo Brasil e Tiago Moraes
MY
Editor . Mateus Potumati
CY
Repórter . Marina Mantovanini Fotografia . Fernando Martins Ferreira
CMY
Revisão . Alexandre Boide
K
Projeto gráfico . Fernanda Masini Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro, Fernando Stutz, Fernando Martins Ferreira e Luiza Hecker Colunistas . Tiago Nicolas, Ricardo “Mentalozzz” Braga, Pedro Pinhel, Rafael Sica, Nik Neves e Gabriel Goes Gostaríamos de agradecer a Lucinha Barbosa, Aluizer Malab e Marcelo Domingues, Alessandra Leão, Rodrigo Caçapa, Casa de Francisca, Pedro Robles e SESC Pompeia, Drik Sada, Chelo Redson e SESC Santana, a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado! Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início. Capa Arnaldo Baptista por Fernando Martins Ferreira
Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. Periodicidade . Bimestral Publicidade . Cristiana Namur Moraes e Macarena Edo publicidade@maissoma.com
Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info
Para enviar sugestões e material para review, entre em contato através do e-mail redacao@maissoma.com.
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Impressão . Prol Gráfica Tiragem . 10.000 exemplares
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+colaboradores
Arthur Dantas
Daigo Oliva
Matias Maxx
Pedro Pinhel
Daniel Tamenpi
31 anos. O capitalismo roubou
Daigo Oliva, 25, é fotógrafo. Nasceu,
28 é cannabista, editor da revista
Pedro Pinhel é diretor de arte
Jornalista, pesquisador musical
minha virgindade e atualmente
cresceu, ainda não reproduziu, nem
Tarja Preta e sócio da loja La
profissional, jornalista amador,
e DJ especializado em soul, funk
sou contra TUDO que tá aí.
morreu. Em nome de Ian Mackaye,
Cucaracha. Está a procura de uma
colecionador de discos obstinado
e hip-hop. Escreve o blog Só
Ama Crass, 4 Walls e Itamar
Mike Watt e Bill Stevenson, amém.
namorada com CNH e endereço
e blogueiro fanfarrão. Gosta muito
Pedrada Musical, onde apresenta
fixo para os dias de TPM.
de basquetebol, suco de abacaxi
lançamentos e clássicos da
com hortelã e de seu setter, Banza.
música negra.
Assumpção. A favor da paz, do amor e da esperança.
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André Maleronka
Danny North
Hígor Coutinho
Rafael Sica
Nik Neves
É jornaleiro, editor da Vice, não sabe
Fotógrafo inglês, é colaborador de
Faz o blog Goiânia Rock News e
É de um lugar frio e selvagem. Correu
Misto de ilustrador e viajante, tem
cozinhar e gosta de comer stognoff
NME, Spin e The Guardian, entre
acha que a intenção é a lingerie
atrás do tempo perdido, mas trocou
nos quadrinhos seu porto. Produz
de carne frio às três da manhã.
muitos outros.
da ação.
as pernas. Vestiu as mãos antes que
com o grupo Bestiário a revista
perdesse os dedos e se ergueu sob
PICABU 5. A história desta edição é
um pequeno ponto de luz. Radicado
uma homenagem ao universo das
no mesmo lugar, desenha com seu
BD europeias, especialmente Hergé
par de luvas de boxe.
e seu Tintin.
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com Zé Gonzales Por tiago nicolas
Uma mixtape (em vinil ou CD) Uneasy Listening. Antes de qualquer um ouvir falar em mash-up ou 2 Many DJs, Z-Trip e DJ P inventaram a fórmula, mas nos toca-discos. DJs de verdade, mixando na raça, sem Ableton Live. Um disco que você mixaria com o Black Album do Jay-Z para dar sequência à serie de álbuns-cores (Green Album, Grey Album etc.) Para detonar o Danger Mouse, pode ser dois? Grand Funk Railroad (ou Red Album) e The Beatles 19621966: The Red Album, para criar o Pink Album e deixar o Jay-Z mais cor-de-rosa... Disco para tirar as crianças da sala quando rola Marvin Gaye – Let’s Get It On. Esse é para mandar as crianças passar o final de semana na casa da avó. Disco que tem alguma produção sua que está mais para Zé Pedro do que para Zegon Wanessa Camargo – W. Fiz duas músicas, “Festa na Floresta” e “Meu Menino”, que valeram muito a pena financeiramente. Comprei meu Lowrider no mesmo dia com o cheque.
Um disco que faz apologia à cocaína Johnny Cash – At Folson Prison e Dillinger – Cocaine in my Brain. Roubei ambos do Arthur Veríssimo.
Disco que você deixava no armário pessoal no Love Story (ele já foi DJ da lendária “casa de todas as casas” paulistana) SNAP – World Power. Mas era no antigo Love Story, na Rego Freitas.
Segundo o Pitchfork, Zé Gonzales é um ex-skatista profissional. Tudo bem, ele andava de skate, mas todos nos sabemos que o Zé é o DJ Zegon, que já estava no jogo antes mesmo de ele existir, deve ter tempo de serviço suficiente na carteira para se aposentar. Além disso, é produtor de uma porrada de coisa e lançou no ano passado o play do N.A.S.A, com uma penca de convidados. Por isso, já era hora de fazer essa edição da Shuffle com ele, o meu querido José Gonzales.
Seu disco mais estrebuchado DJ Babu – Super Duck Breaks. Quase furado de tanto fazer scratch.
Disco que confirma a sua descrição no Pitchfork e o seu sobrenome Thrasher Skate Rock Vol 3: Wild Riders of Boards. Emprestado pelo amigo Fabio Bolota e nunca mais devolvido.
Disco que chegaria em primeirão na Fórmula Indy em São Paulo Precisaria ser do-ityourself e chegar nas cabeças. Para isso, não há ninguém melhor que o Emicida.
Homenagem extra da Shuffle e da Chaka Klan ao grande Speed, sagaz e sem crise, covardemente assassinado enquanto fechávamos esta coluna. Speed – Meu Nome É Velocidade
2Tiago Nicolas é 1/6 da Chaka Hotnightz 16
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Por Mateus Potumati . Foto ao vivo por Acervo UH/Folha Imagem.
“Sentiu que toda a sua carne se dissolvia num turbilhão de luz. E sentiu-se imediatamente feliz. Feliz como se marchasse lado a lado com uma multidão amigável de numerosos camaradas. Por estranho que pareça, soube que já não era nada, ou melhor, que era simultaneamente ele próprio e os outros, unidos numa segurança, num calor e numa força coletiva.” Stefan Wul, em O Império dos Mutantes (1958). 18
“Di z em que a gente colocou a guitarra na música [brasileira],
mas a guitarra já existia desde antes de eu nascer.
Na verdade,
o Mutantes colocou o contrabaixo.”
A
história de Arnaldo Baptista tinha tudo para acabar mal. Moleque-prodígio do tropicalismo, cultuado como a própria personificação do movimento por Caetano, Gil e Tom Zé, o cérebro criativo dos Mutantes esteve perto de ter o mundo nas mãos. Mas, como em tantos outros casos da época, o desbunde da década de 60 virou badtrip nos 70. Em uma avalanche que envolveu uma dieta diária de LSD, crises com os colegas de banda e o fim de um relacionamento de oito anos com Rita Lee, Arnaldo saiu dos Mutantes direto para uma descendente de depressão e loucura. Ladeira abaixo, ainda sobrou talento para gravar Lóki? (1974), seu primeiro disco solo, obra tão grandiosa quanto solenemente ignorada pela crítica e pelo público ao longo de décadas. Finalmente, no réveillon de 1982, internado na ala psiquiátrica do Hospital do Servidor Público, em São Paulo, resolveu levar ao limite a relação entre arte e vida. Pulou do 4º andar – talvez para, como um dos personagens do livro que batizou sua antiga banda, se dissolver em luz. Acordou meses depois, milagrosamente, sob as piores previsões de recuperação possíveis.
Mas Arnaldo é um sujeito de sorte. Ao lado do leito em que estava, uma dupla de amigas fazia uma vigília heroica. Uma delas, Lucinha Barbosa, acabou se casando com ele. Mais do que isso: o adotou como missão de vida. Nas duas décadas em que o casal morou em um sítio na cidade de Juiz de Fora/MG, Arnaldo se recuperou – com sequelas, como a da fala, causada por uma traqueostomia –, desenvolveu o hábito da pintura e seguiu compondo. O mais importante, sobreviveu para ver sua importância finalmente reconhecida em âmbito mundial. A partir dos anos 1990, uma onda de revalorização da música dos Mutantes se seguiu ao interesse de Kurt Cobain pelo grupo. Na esteira, Arnaldo ganhou uma leva de novos seguidores no exterior, como Devendra Banhart, Sean Lennon, Belle and Sebastian, Circulatory System (aka Neutral Milk Hotel sem Jeff Mangum) e outros. Em 2006, na volta dos Mutantes, viu a plateia do sisudo Barbican Theatre, em Londres, quase colocar o teatro abaixo. Um ano depois, no Brasil, foi ovacionado por 80 mil pessoas no Parque da Independência, em São Paulo, de
longe o maior público na história da banda. Ainda em 2007, se desligou novamente dos Mutantes e ficou de fora de Haih ou Amortecedor, melhor esforço do grupo desde Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, de 1972 (último registro em estúdio com Arnaldo, seu irmão Sérgio Dias e Rita Lee, antes da fase progressiva dos Mutantes). Ano passado, teve sua vida retratada no ótimo documentário Lóki?, produzido pelo Canal Brasil e dirigido por Paulo Henrique Fontenelle. No filme, se referiu ao incidente no hospital em 82 como fundamental na sua vida: “fui podado, recuperado de um jeito absoluto”. Nada mais natural para um mutante. De mudança para Belo Horizonte, o casal nos recebeu no apartamento que aluga no bairro de Funcionários, região central da cidade. Entre divagações sobre evolução humana, discos voadores, tropicalismo, rock brasileiro e a volta dos Mutantes, Arnaldo Baptista faz piada com tudo – inclusive com a própria loucura, mesmo quando é traído por ela. E, após ter quase morrido de dor, provou que o gênio meio palhaço, meio cientista maluco segue lá dentro, intocado. 1
Como você tá vendo, Arnaldo, eu fiz um monte de anotações pra falar com você... Ah, mas precisa. Eu vi o teu livro (uma cópia de A Divina Comédia dos Mutantes, de Carlos Calado, com grifos e anotações), e eu fazia a mesma coisa na escola. Às vezes pensava “tô ficando louco” (risos). Fazia umas anotações meio bobas, mas que pra mim tinham significado. Na época eu estudava no Mackenzie. Você estudou o que no Mackenzie? Fiz o clássico (hoje chamado de ensino médio) lá, junto com o pintor Antônio Peticov (amigo e empresário dos Mutantes no começo da banda). Até que comecei a ganhar mais dinheiro com os Mutantes do que onde eu trabalhava. Aí, desisti do estudo e do trabalho. O Sérgio parou de estudar ainda antes disso, né? Isso, na 2ª série (atual 6ª série do 1º grau). Ele ensinava guitarra, tinha uma vida diferente. Eu trabalhava, meu irmão mais velho também (Cláudio César Dias Baptista, luthier e técnico de som dos Mutantes), mas o Sérgio foi diferente desde o começo. E aquela história dos duelos de guitarra na Pompeia, você chegou a pegar algum? Ah, isso era coisa do Sérgio, eu não lembro se cheguei a ver algum. Ele vai saber falar melhor. Mas o Sérgio conheceu a cidade inteira assim (risos). Quando a gente é criança, normalmente os instrumentos que mais chamam a atenção são a guitarra e a bateria. Por que você quis pegar o baixo? Tocar bateria era complicado. Naquela época, minha mãe nunca aceitaria uma em casa, era muito barulho. Meu irmão mais velho chegou a tocar, tinha uma bateriazinha, mas minha mãe reclamava, “para com esse barulho!” (risos). Do meu lado de ver, usei o contrabaixo porque pegava mais o total da música. Me deu vazão nesse sentido de harmonia. E não existia teclado na época, nenhum conjunto tinha.
“Em vez de usar o sol ou o vento pra produzir
energia, ainda somos piromaníacos. Mas atingimos atingiu uma etapa em
que devemos tomar consciência do que estamos fazendo com o nosso lar, a Terra.”
O seu negócio era o piano, né? Por causa da sua mãe (a pianista Clarisse Leite). Exatamente. E o piano também tem um grave forte. Sem dúvida. Muito mais forte que a guitarra. Eu estudava num piano de cauda e não era muito bom em ler música, mas minha mãe tocava muito Debussy, Ravel, Chopin, tudo, então eu decorei todas essas músicas. Hoje em dia eu toco de ouvido graças a isso. 20
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Falando em hoje em dia, rolaram várias coisas bem legais pra você nos últimos anos, desde o Let it Bed (2004) pra cá. Houve uma revalorização do seu trabalho pessoal, ao contrário do que houve nos anos 1990, que foi uma coisa mais em cima dos Mutantes. Como vai a vida pra você hoje? A vida tá boa. Eu fico aqui meio ilhado, em função de não poder tocar bateria, porque é um apartamento. Quando eu vou [para o sítio de Juiz de Fora], fico uma semana e ataco minhas músicas de outra maneira, com baixo, guitarra, bateria, tudo. Aqui é mais violão. Mas vai dando certo, antigamente era muito mais difícil. Ter gravador de dois canais em casa já era muito difícil, hoje é normal ter um de 12 canais. Então fico entre o apartamento e o sítio, que é onde tenho meu estúdio. Tenho pintado bastante, escrevi este livro (mostra Rebelde Entre os Rebeldes, lançado pela Rocco em 2008) e sempre componho.
Além de verem o rock de forma diferente dos amigos, você, o Sérgio e a Rita também nunca foram na onda dos roqueiros de mais sucesso no Brasil na época, que importavam muita coisa do pop italiano... Talvez tenha origem nesse lado de o Sérgio fazer duelos com guitarristas, ter tocado com todo mundo, conhecido vários estilos. A gente também tinha esse lado de orquestra, que era diferente dos outros roqueiros, e além disso tinha menina no conjunto, o que pra eles era uma coisa bem esquisita (risos). Nosso vocal era apoiado em The Mamas and The Papas, Single Singers. Era bem aprimorado. E tem outra coisa: dizem que a gente colocou a guitarra na música [brasileira], mas a guitarra já existia desde antes de eu nascer. Na verdade o Mutantes colocou o contrabaixo. Algumas orquestras já tinham guitarra. A gente fica rebelde às vezes e não sabe até onde, né? O Caetano também, tanta gente... (risos)
O primeiro disco dos Mutantes é bem tropicalista, com muitas parcerias, orquestração, diversidade. O segundo é um pouco menos, mais focado na parceria com o Tom Zé e em vocês três. O terceiro já tem bem menos Duprat e nada dos outros tropicalistas. O tropicalismo pros Mutantes foi só um momento daqueles dois primeiros discos mesmo, ou vocês levaram alguma coisa com vocês depois? Foi uma coisa dos primeiros discos, concordo. Hoje não me atinge tanto, mas no exterior as pessoas são muito conectadas à Tropicália. Mas tem tantas coisas profundas na vida além de estilos, né? A diferença entre o Mutantes e eu atualmente, por exemplo. Virou uma banda sem amplificador valvulado, sem instrumento Gibson... Muitas guitarras, sintetizadores. Virou um lado orquestral sem orquestra. Tá bem próximo a Yes, Genesis e distante de Cream etc. Tem essa diferença de estilos, hoje.
Voltando àquela época: uma coisa que eu queria entender sobre o envolvimento de vocês com a Tropicália... (interrompendo) É uma ótima pergunta, porque eu mesmo não sei o quanto nosso envolvimento foi importante (risos). Eram culturas diversas, o Caetano altamente formado, sabia de Filosofia, o Gil bem numa de raízes, o Tom Zé hilariante sempre, extrovertido... Aquela coisa toda, e a gente contra Elis Regina, Geraldo Vandré, Zimbo Trio (à época, a ala nacionalista da MPB, que se opunha ao tropicalismo)... Tinha também aquele problema político, e o papai era secretário do [ex-prefeito e governador de São Paulo] Adhemar de Barros – andava com carro de chapa branca com sirene, rádio, tudo. A gente ficava um pouco isolado dessa coisa de revolta. Eu nunca entendi muito bem essa coisa da França, o Caetano estudou mais.
Por quê? Eles fizeram uma rebeldia que virou “comunismo”, a gente virou guitarra na música, estilo também. Tropicalismo virou rock’n’roll pra gente depois de um tempo.
Como você avalia o som dos Mutantes hoje? Eu acho que tá mais... gay (risos gerais). É um papel carbono dos Mutantes de antigamente, sem orquestra e com sintetizador. O Sérgio nunca foi de estudar, sempre foi meio rebelde, mas ultimamente, nos ensaios, ele vinha tentando dar uma de professor. Fica dando ordem, bronca, parece uma escola de música, não mais um conjunto. Eu cansei de convidá-lo pra vir até a minha casa, mas ele nunca foi. A humildade pra ele é muito difícil de entender. Mas isso já passou.
Aliás, já sugeriram que vocês nunca foram pra cadeia justamente porque seu pai era amigo do Adhemar de Barros. Ah, isso é bem provável! (risos) De certa forma, eles tinham respeito pela gente. Vocês e seus amigos eram bem do rock, tanto que o Raphael Vilardi (amigo de infância e parceiro de Arnaldo antes dos Mutantes) pulou fora da banda quando vocês apareceram com o Gil. Ah, isso tem a ver tanto com a cultura de cada um... Ele usou até o meu apelido, “Cray, isso não é rock’n’roll!” (risos). Como era o apelido? Cray! Quando eu era criança, gostava muito de uma dobradinha [enlatada] da marca CRAI, então minha mãe me deu esse apelido e pegou (risos gerais). Mas o Gil era mais complexo que o iê-iê-iê, né? Na harmonia dele tinha sétima, sétima diminuta, quarta. E eu tinha um lado clássico, que a turma do iê-iê-iê puro não tinha. Então tentei misturar as duas coisas, com uma força extrema do Rogério Duprat. Ele transformava meu modo de encarar o som – se eu falava de violino em pizzicato, ele entendia, colocava na pauta e as coisas apareciam. O que diferenciava a tua formação da do Raphael e dos seus outros amigos roqueiros pra você dizer “é legal fazer isso”? Mamãe e papai eram artistas, né? Papai era tenor, poeta, escreveu quatro livros. E mamãe, dizem que foi a primeira mulher a escrever um concerto para piano e orquestra no mundo. Então a gente teve uma formação erudita. O Raphael ouvia disco dos Ventures e outros conjuntos, mas eles não iam muito além disso. Eu também tinha um conhecimento de teclado, só que no nosso cojunto não tinha teclado – eu era o baixista, meu irmão era um guitarra e o Raphael também era guitarra. Era o Six Sided Rockers? Isso, e antes teve o Wooden Faces – os caras-de-pau (risos). O Six Sided foi quando já entraram a Rita [Lee], a Mogguy (Maria Olga Malheiros, colega de Rita Lee no colégio no começo dos anos 1960) e a Suely [Chagas]. O Raphael fazia música de forma diferente, mas a gente se entendia também, entre idas e vindas. 22
A partir de a A Divina Comédia. É isso, pode crer. (risos) O tropicalismo foi um movimento com data pra acabar, né? Estava até programado o “enterro” do movimento no Divino, Maravilhoso, mas o programa acabou sendo cancelado antes. Nunca fiquei sabendo desse aspecto... Eu tinha pouca convivência com o Caetano. Com o Gil tinha mais. Mas nunca foi tão filosófico a ponto de ele me dizer que tinha uma tendência a acabar. O Caetano tinha mais controle sobre o tropicalismo, ele era a ponte com produtores, televisão, empresários. Ele tinha uma visão mais completa.
“Se eu fosse um ET e visse a Terra
como ela é hoje, tão careta e religiosa, hesitaria antes de entrar em contato com gente que poderia me julgar Deus. Imagina, eu fazendo telecinese por
eletroímãs e o povo achando que era milagre? (risos)”
Esse jeito do Sérgio influenciou na guinada progressiva dos Mutantes a partir de 1972, ou foi uma coisa de vocês dois juntos? Naquela época foi bem junto. A gente tinha momentos fantásticos de criação, ele fazia uma frase na guitarra (imita uma levada na guitarra) e aquilo dava asas à nossa imaginação. Eu também vinha com a minha composição, no estilo da “Balada do Louco”, a Rita também contribuía muito. A gente se combinava, era bem interessante. Na fase inicial vocês eram um contraponto tropicalista aos Beatles, mas depois foram pra esse lado. Como você avalia essa mudança? Acho que teve muito a ver com o fato de a gente ter ouvido Yes, pelo Yes Album. Eu, que até aquele momento não tinha me apaixonado por nenhum tecladista, passei a adorar o Tony Kaye. Gostei do som que ele fazia, e enveredamos por esse lado, com todos os prós e contras. O Liminha comprou um baixo igual ao do Chris Squire (baixista do Yes), um Rickenbacker, que eu não gosto – acho muito fraco, sem saída, muito agudo, estereofônico. Fica muito tipo orquestra sinfônica. Tipo Yes, né? Isso acabou me fazendo concentrar minha composição mais no teclado do que no baixo, como era no começo. E [o teclado] ampliou mais minha forma de ver as coisas. Hoje, quando você pensa nos Mutantes, que fase você lembra mais? Interessante essa pergunta, é uma etapa tão importante da minha vida. Tenho impressão que a parte que mais me atingiu foi o Tecnicolor (disco gravado em 1970 e lançado apenas em 2000), foi o lado mais total nosso. Gravamos em Paris, fomos mixar no estúdio dos Beatles. Ampliou o nosso conhecimento, nossos horizontes musicais. Eu tive a consciência da música do Mutantes para o mundo, não só para o Brasil. Teve também o Baurets (Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, disco de 1972), que expandiu bastante nossa música aqui no Brasil. Esse disco foi importante não só pela “Balada do Louco”, mas como um todo para os Mutantes. Depois da sua saída dos Mutantes, você ficou bem concentrado no trabalho com o piano. Seu vocal também saiu um pouco do rock pra uma coisa mais soul, Otis Redding, Tim Maia etc. É, às vezes eu tento me julgar cantor (risos). É difícil, tem que impostar mais a voz, saber usar o microfone. O Tim Maia falou pra mim uma vez: “Arnaldo, a gente imposta a voz, mas canta nesses [microfones direcionais da marca] Shure, que só pegam a boca. O único microfone que serve pra cantar mesmo é aquele AKG quadradinho D12, que pega o nariz e a boca”. Ele cantava impostado e me aconselhou a usar, é um preto-e-branco, muito bom, e ainda fica bonito no 23
piano (risos). Quando eu estava gravando o Let It Bed em casa, me trouxeram um outro microfone que eu nunca tinha visto. Era um AKG também, mas com duas válvulas, uma de cada lado. Eu falei “mas o que que é isso?” (risos). Era um pré-amplificador interno de válvula. E o microfone custava 2 mil dólares! Depois, no estúdio, me mostraram a diferença: colocaram um Neumann, que é o melhor microfone que existe, e compararam com o AKG valvulado. E era completamente diferente, parecia que o AKG tinha mais espírito. O Neumann é famoso pela fidelidade, mas o AKG é bem mais soul. Eu sou audiófilo, né. É um termo fundamental pra mim. Uma vez fui até Nova York comprar um amplificador valvulado, pra ouvir música na minha vitrola. Fui até uma loja chamada Manny’s, a maior de lá, e o vendedor disse “aqui só tem amplificador velho, Marshall, Fender, tudo porcaria. Vai naquela loja ali da frente”. Nessa outra loja, na Rua 45, tinha um amplificador novo, da marca Audio Research, que tem uma válvula de eletrodo, igual à que o Jimi Hendrix usava no Marshall. Comprei um pra mim, a diferença é tangível. Aliás, você e seus irmãos não apenas foram sempre ligados nessa coisa de áudio, mas em ciência de forma geral. O Cláudio César foi do clube de astronomia quando criança, e depois montou a CCDB, fez vários instrumentos pra vocês, pedais de efeitos, sistemas de som etc. E a carreira inteira dos Mutantes foi influenciada por ficção científica. Você ainda lê alguma coisa do gênero? Me lembro muito do Ray Bradbury, do Stefan Wul, que escreveu O Planeta dos Mutantes (de onde, segundo o biógrafo Carlos Calado, o jornalista Alberto Helena Jr. teria sugerido o nome da banda a Ronnie Von, que batizou os Mutantes). Hoje em dia eu não leio tanto, eu mais escrevo... Tô escrevendo outro livro, pintando camisetas, quadros. Antes do seu acidente você passou por uma época ruim, com problemas pessoais, a imprensa te malhando muito e depois esquecendo de você. Hoje as pessoas têm mais noção do seu valor e você faz até piada disso tudo, nas suas músicas e nos seus quadros. Como é isso pra você? Importante você falar nisso, porque às vezes eu me sinto muito palhaço (risos). E às vezes sou meio físico, [homem das] ciências, audiófilo etc. A gente muitas vezes se deixa levar por momentos. Aquela foi uma época de testar minha resistência em tudo. Quando eu estava vivendo com a Martha, mãe do meu filho (em 1977), cheguei a andar a pé até Catanduva, a 400km de São Paulo. Eu achava ela lindíssima, mas meio monótona. Então preferia andar, né? (risos gerais) Eu não tinha mais instrumentos em casa, tinha vendido tudo e estava muito sem dinheiro. Ela falava que eu queria pertencer ao sistema, mas o sistema não queria que eu pertencesse a ele. Mas os Mutantes chegaram a ganhar um dinheiro bom uma época, não? Acho que nunca ganhamos pra valer, mas quando fizemos aquele anúncio da Shell (que envolveu a gravação da música “Algo Mais”, incluída no disco Mutantes, de 1969), lembro que ganhei 15 milhões (risos). Não lembro nem que moeda era, nem quanto valia. Mas fui correndo e comprei uma Corvette. Depois acabei vendendo esse carro. A gente era muito jovem. E além disso, sempre que entrava algum dinheiro, investíamos muito em equipamento. Comprei uma caixa Alesis – que pra mim foi uma aventura, mudou bastante meu som –, órgão Vox, clavinete Hohner. Depois fui vendendo tudo. Nem lembro de tudo que tive. Hoje em dia é diferente, eu tenho que ter não só teclado, mas baixo, guitarra, bateria, gravador e os amplificadores. A gente vai levando do jeito que dá. Quando você saiu dos Mutantes, a banda estava bem progressiva, mas o Lóki vai pelo caminho oposto: você no piano, à Elton John, cantando com doses de amargor que remetem até a Orlando Silva, de quem vocês tiravam sarro no começo (risos). Como se deu essa mudança? Acho que tem a ver com isso que você falou, que fiquei muito eu e o piano. Mudei pra Serra da Cantareira – eu, que tinha trabalhado de vigia noturno da companhia telefônica (risos) –, construí uma casa e me dediquei muito ao piano. Foi um lado que teve a ver com o Lóki. O disco saiu disso, de criação em torno do que eu possuía na época: a casa e o piano. Mutantes foi eu com o baixo no começo, depois com o teclado e na fase solo foi o piano. 24
Reza a lenda que sua mãe sofria pra te ensinar. Eu era chato, perfeccionista (risos). A gente sempre tem umas lacunas, todas as pessoas no mundo. E é isso que impede a evolução pela mutação. Hoje, por tecnologia genética, eles mexem em dados nos cromossomos. Então o lado natural da mutação – a gente poderia ter sexto dedo, três pulmões – hoje em dia é feito em laboratório. “Sexto dedo” era pra ser o nome do segundo disco, né? Isso. A gente fez até uma sessão de fotos (uma delas está na contracapa do LP Mutantes, de 1969). Mas é interessante isso, vamos ver até onde a mutação tecnológica pode levar a evolução humana. O que você acha do mundo hoje? Acho que a Terra está no apogeu da Era Ígnea. Pros ígneo-rantes, “ígneo” é relativo ao fogo, né? (risos) Em vez de usar o sol ou o vento pra produzir energia, ainda somos piromaníacos. Mas atingimos uma etapa em que devemos tomar consciência do que estamos fazendo com o nosso lar, a Terra. Poderíamos tentar nos comunicar com seres extra-terrenos pra ver se aprendemos alguma coisa. Mas se eu fosse um ET e visse a Terra como ela é hoje, tão careta e religiosa, hesitaria antes de entrar em contato com gente que poderia me julgar Deus. Imagina, eu fazendo telecinese por eletroímãs e o povo achando que era milagre? (risos) Penso também que a humanidade – mudando de palhaço pra físico, como eu te falei (risos) – aprendeu a eliminar os gauss (medida de densidade de fluxo magnético) dos ímãs, mas, pra vencer a força da gravidade, teria que eliminar os grávitons (partícula hipotética da gravidade quântica), que determina que objetos não-metálicos, como a minha mão, sejam impulsionados para baixo. Os discos voadores fazem isso. Mas o ser humano evolui, hoje em dia já se fabrica até aviões sem piloto, que atingem velocidades tão altas que uma pessoa não aguentaria. Vai saber até onde a humanidade chega... ciborgues, sei lá (risos). Você falou de ETs e discos voadores. Você chegou a ver algum? Foi uma coisa de momento, lá no sítio. Eu estava com uma costureira no ateliê e apareceu no céu, por uns 20 segundos. Passei a crer em um lado de ver, antes eu só pesquisava. Agora eu tento entender, embora ainda sem conseguir. Mas vou tentar entrar em contato com eles. (risos) 3
2 Saiba mais: www.arnaldobaptista.com.br www.osmutantes.com
“Aquela foi uma época de testar minha
resistência em tudo. Quando eu estava
vivendo com a Martha, mãe do meu filho, cheguei a andar a pé até Catanduva, a 400km de São Paulo.
Eu achava ela lindíssima, mas meio monótona. preferia andar, né?
Então
(risos gerais) Eu não tinha mais instrumentos em casa, tinha vendido tudo e estava muito
sem dinheiro.
Ela falava que eu queria pertencer ao sistema, mas o sistema não queria que eu pertencesse a ele.”
4técnica mista sobre papel de algodão . 2009 4nanquim e aquarela sobre papel de algodão . 2008
enterrado em neve Por Marina Mantovanini
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na página ao lado, parece que estamos sempre tão longe de casa
THAIS BELTRAME
As mulheres francesas não saem da vitrola da artista Thais Beltrame enquanto ela cria seus desenhos em preto-e-branco. Nanquim, pincel e papel são suficientes para que ela divague através de rabiscos semelhantes aos que fazia na infância. Aos 33 anos, Thais passou por experiências que a fizeram retornar ao começo. Em seu ateliê, cercada por diferentes papéis trazidos por ela e por amigos de diversas partes do mundo, ela bateu um papo com a +Soma e refletiu sobre o seu trabalho e o papel das mulheres na arte. 1
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que os que me apoiavam. Eu tinha um professor muito antipático, muito da linha da arte conceitual, que menosprezava o meu trabalho, tachando-o de ilustração só por ser figurativo. Mas, ao mesmo tempo, ele me desafiava a questionar o que eu tava fazendo, e isso é muito importante para o artista. Quando me perguntavam por que eu era artista, minha resposta era sempre: “porque eu gosto”. Comecei a ser obrigada a refletir. Também aprendi a ir a museus, porque o que eu fazia antes era muito mais próximo do que
Você começou desenhando desde pequena, como a maioria dos artistas, ou o seu processo foi diferente? Sempre desenhei, nem lembro quando foi a primeira vez. Nunca gostei de lápis de cor, sempre desenhei em pretoe-branco. Pegava a caneta bic, uns livros mais antigos da minha mãe e rabiscava, era meio compulsivo. E eu já saquei uma coisa desde pequena: não me interessa tanto ver como uma coisa é exatamente, trabalho muito de memória. Eu perguntava pra minha mãe: “quantas pernas tem um cachorro?” Lembro disso porque ela me sacaneava: “seis”. Aí, quando eu mostrava pro meu pai, ele dizia: “mas um cachorro com seis pernas?” Eu era muito imaginativa. Um dia minha mãe me levou ao estúdio do Mauricio de Sousa – eu tinha uns cinco, seis anos e todo mundo falava que eu ia ser artista. Levei um monte de desenhos pra ele ver. Ele 28
“Cada trabalho que desenvolvo é uma descida ao inferno, ao inferno pessoal. Não é fácil, você não sabe o que vai ter pela frente.”
olhou e disse “vai treinando que, quando crescer, você vem trabalhar aqui para desenhar a Mônica”. Saí indignada de lá, falava pra minha mãe: “não vou desenhar desenho dos outros!” Não sei o que pensei, se ia mostrar meus desenhos e ele montaria um gibi meu (risos). Você chegou a estudar desenho nessa época? Eu era aquela criancinha-prodígio da escola. Todo mundo falava que eu ia ser artista e isso me incomodava – me incomoda até hoje, não lido bem com elogios –, e nessa época era mais difícil. Eu desenhava muito, em quantidade. E aí teve um concurso, eu venci, e ganhei um curso de pintura. Tinha uns 10 anos. Mas o professor não quis me dar aula porque achava que eu tinha um estilo próprio. Não queria me estragar. Então eu nunca fiz nada, não estudei. Na adolescência veio aquela rebeldia chata, e eu não queria mais atender às expectativas de ninguém, porque todo mundo tinha certeza que eu ia ser artista. Fui morar fora, estudar comunicação. Por que você decidiu estudar fora? [Decidi] já no primeiro ano do colegial. Primeiro fui para San Francisco, estudar comunicação. Na época, eu não conseguia relacionar meus desenhos com uma profissão. Mas, na faculdade, eu levava tudo que via para o lado poético, não tinha escapatória. Um professor me falava: “você escreve bem, mas não é informativo”. No final das contas, fui fazer uma aula de modelo vivo e pensei: “é isso que eu deveria fazer, o que eu tô fazendo nessa aula de jornalismo?” Transferi a faculdade para Chicago e fui estudar arte. Alguns artistas condenam a faculdade e outros a acham quase fundamental. Como foi para você? Acho que a experiência de ter saído do país, enfrentado um monte de coisa sozinha, foi muito mais valiosa do que o aspecto acadêmico. O acadêmico me deu uma travada, tive que ficar um tempo me destravando. Mas alguns professores me desafiaram muito, e foram mais importantes do
Sempre fico na dúvida entre o que separa uma ilustração de uma obra de arte. Acho que não sou uma boa ilustradora, porque tenho uma relação muito intensa com o meu trabalho. Pra mim, é difícil ilustrar um texto. Meu primeiro trabalho de ilustração foi na [revista] Vida Simples. Era incrível pra mim, porque os textos eram ótimos, eu me identificava. Já ilustrei outras coisas que achava meio fúteis, e aí já é difícil. Vejo que um bom ilustrador é muito mais maleável, a maneira como ele consegue transformar o visual com o texto, essa versatilidade de moldar o trabalho com o que está escrito. Pra mim, um bom trabalho de arte vive e respira, independentemente de ter um texto acoplado a ele. Então não vou falar que quem faz ilustra não pode ser artista, mas é fato que a arte tem que ter alma. Ilustração é um trabalho mais racional, e trabalho assim não me interessa. Como você desenvolveu a sua técnica? Praticando, praticando e
algumas batalhas você perde
via nos gibis e nos livros. A experiência foi legal, mas eu não sei dizer se foi essencial, porque hoje vejo que trabalho como sempre trabalhei. Saí de lá achando que era uma ilustradora, realmente me convenci disso.
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praticando. Sempre fui apaixonada por linha. Então, em tudo que eu fazia acabava usando a linha. Se fazia uma aula de cerâmica, já tava eu riscando. Assumi a linha porque é o que eu mais gosto de fazer, é com o que mais me identifico, e cada vez presto mais atenção na sensibilidade dela. Antes eu desenhava com caneta nanquim, aí passei para bico de pena e hoje é só pincel. Com o pincel você consegue dar vida à linha, ela tem movimento. Foquei muito na linha, que é o que eu tenho feito desde pequena, explorando dentro do mesmo tema. Sempre fui muito objetiva, não patinei muito nas técnicas. Pelo menos por enquanto. De onde surgiram os personagens dos seus desenhos? Eu diria que é uma continuidade. Se você ver meus desenhos de quando era criança, não está muito longe do que faço. Então, de novo foi bem intuitivo. É lógico que durante o caminho você sofre influências, mas não tenho uma explicação lógica, [é] uma identificação com algo que já está dentro de você. Foi um desenvolvimento natural. A impressão que tenho é que crio universos, uma história mesmo. Mas não sou eu que mando, quem dera. Quanto aos personagens, eu não gosto de desenhar adultos, não sei por quê. Acho que, muito mais do que crianças, são humanos, e quanto mais a gente cresce, mais a gente se perde. Sinto que a raiz de tudo está na infância, o mais verdadeiro está ali, quer coisa mais espontânea do que a reação de uma criança? E os sentimentos, a relação com o mundo...
pássaro II
4nanquim sobre papel
“Gostaria de acreditar que as coisas que faço pertencem a um outro tipo de realidade. Acho que o papel de um artista também é reverter valores, olhar para o mundo e virá-lo do avesso.”
Você coloca suas dores nos desenhos? Acho que tenho sensibilidade para as dores do mundo, sou do tipo que não aguenta muito ver jornal. Uma coisa com a qual eu não faço questão de lidar é o mundano, realmente não tenho nenhum interesse em chocar. Gostaria de acreditar que as coisas que faço pertencem a um outro tipo de realidade. Acho que o papel de um artista também é reverter valores, olhar para o mundo e virá-lo do avesso. Anos atrás, a gente não tinha máquina fotográfica, e o desenho retratava coisas históricas. Não me vejo nesse papel, pelo contrário. Quero passar coisas boas.
A arte feita por algumas mulheres no Brasil hoje tem similaridades, como a delicadeza dos desenhos e alguns símbolos ligados à natureza. De onde você acha que vem isso? Vou falar por mim. Cada trabalho que desenvolvo é uma descida ao inferno, ao inferno pessoal. Não é fácil, você não sabe o que vai ter pela frente, e eu tenho muito interesse em psicologia, em Jung, e lendo percebi que estava usando muitos arquétipos sem nem me dar conta. Usando muitos símbolos do imaginário do I Ching. A montanha tem um papel muito importante, a árvore tem um simbolismo gigantesco, a casa é você. E isso foi natural, nunca li para colocar símbolos no trabalho, foi inconsciente. Quanto às outras artistas, acho que tem uma mistura de coisas: é comum rolar um determinado período com uma tendência estabelecida, e hoje os artistas têm muito acesso a outros trabalhos, usam muitas referências. Eu entendo do que você está falando, tem um pouco de tendência, mas pode ser um resgate da mulher mesmo, a mulher tem muito mais ligação com o selvagem, com a natureza, e talvez isso seja reflexo. O que importa é ter o olhar crítico. Como você entrou para a Famiglia Baglione (coletivo de arte urbana)? Foi do nada. Voltei pra cá, comecei a fazer ilustração e a conhecer um pessoal mais relacionado com o graffiti. Na época, era o pessoal mais aberto. A primeira vez que fui pintar na rua foi a convite de um amigo meu do colegial, e comecei a conhecer mais gente. Por conta disso, fiz um trabalho junto com o Pato, e a gente ficou bem amigo.. Aí o William [Baglione] começou a ver meu trabalho e um dia me chamou para entrar. Ele apareceu em um momento legal, porque eu ainda não tinha me encontrado, e com a Famiglia entendi o valor do meu trabalho.
na página ao lado, Eu Vim De Longe Pra Me Despedir
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sem título (série sob o céu de TalAfar
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de conforto, e o papel tem essa coisa mais confortável. A rua tem um milhão de variáveis. É importante perder o controle. Às vezes o muro é todo zoado, às vezes o lugar não é muito seguro, ou chove, ou aquele desenho que você achou que dava pra fazer não vai rolar. Mas não sou grafiteira, vejo mais como um exercício, sair da rotina. Faço com o mesmo cuidado, mas é mais descompromissado. E o que te inspira a criar? Eu leio bastante, mas é tudo muito indireto, muito de absorver. Tem um ditado célebre: “quanto tempo você demorou pra fazer isso? Minha vida inteira”. Essa é a bagagem de um desenho, é muito do dia-a-dia, das coisas que vivi. Fiz uma viagem pra China e até hoje guardo muito dela. Sou muito devagar. Todas as experiências por que passo são digeridas. Ano passado você fez sua primeira individual fora do Brasil, na Carmichael, em Los Angeles. Como é expor fora? Não tenho grande experiência, mas vou falar do que eu vivi. O que sinto é que ainda tem sido mais legal lá fora. É diferente a relação que as pessoas têm com arte aqui e lá. Em Brighton (onde a artista participou de uma coletiva em 2008) foi incrível, acho que foi a experiência mais legal, porque é da cultura dos caras – a pessoa tá passando ali, vê que tem uma coisa legal e entra, quer saber quem é o artista, tem uma conversa com você. Você vê bem a resposta das pessoas, elas têm interesse. Mas eu sinto que aqui tá começando a ter um público mais jovem, menos elitista, a ter uma circulação mais saudável. 3
2Saiba mais: flickr.com/thais_beltrame baglione.blogspot.com
4nanquim sobre caderno chinês . 2010
Qual a diferença entre criar em muros e nos papéis? É bem diferente, porque pintar na rua é sair da zona
“Um dia minha mãe me levou ao estúdio do Mauricio de Sousa – eu tinha uns cinco, seis anos e todo mundo falava que eu ia ser artista. Levei um monte de desenhos pra ele ver. Ele olhou e disse ‘vai treinando que, quando crescer, você vem trabalhar aqui para desenhar a Mônica’. Saí indignada de lá, falava pra minha mãe: ‘não vou desenhar desenho dos outros!’ Não sei o que pensei, se ia mostrar meus desenhos e ele montaria um gibi meu (risos).”
sem título
Como é ser a única mulher dentro da Famiglia? Acho tranquilo. Sempre convivi com muito menino, sempre fui moleca. Sempre fiz muita questão de não me colocar como mulher. A gente já fez muito trabalho juntos, já expôs juntos, e cada um tem o seu ritmo de trabalho. Não tem diferença. Estar em um coletivo não é fácil, cada um tem as suas opiniões, mas o William é mais do que um agente, é um paizão, e nunca me tratou como menina. Inclusive, ele é durão, e é importante que seja, porque mais do que amigos, mais do que artistas, somos iguais. E a gente tem uma coisa de criticar, de falar muito a verdade sobre o trabalho do outro.
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L a r d n a s e ã s o e l A Bala Que rasga o luar Por Arthur Dantas . foto ao vivo por Pedro Robles/Divulgação
“Hoje, depois de sete anos de luta inglória, descobrimos que sempre nos faltou um requisito essencial: a honestidade. O que continua não querendo dizer nada. Se a gente se descobriu caipira um dia, não quer dizer que a gente vá ser o caipira que as pessoas se acostumaram a ver em festa de São João; aquilo é caipira de televisão paulista. Se a gente se descobriu rock, não quer dizer que a gente use lambreta, casaco de couro e cante ‘Long Tall Sally’ o dia inteiro.” Zé Rodrix, no início dos anos 1970. 1
O
relato de Rodrix, justificando o término do cultuado Som Imaginário e o início do até então incerto trio Sá, Rodrix e Guarabyra, desafia preconceitos ainda hoje disseminados e cultivados no eixo Rio–SP. Por isso, serve para falar do trabalho da pernambucana Alessandra Leão, responsável por um dos discos mais incríveis de 2009, Dois Cordões. Se a preguiça vigente não criasse rótulos bobos como “música de pesquisa” (“Quando produzo um disco, escuto várias coisas diferentes – talvez seja o mais próximo que eu chegue de pesquisa”, brinca a cantora), Dois Cordões poderia entrar pela porta da frente no rol dos melhores discos pop/popular do planeta. Porém, se o que se espera do pop contemporâneo calcado em música africana é o que fazem artistas como Joanna Newsom, Vampire Weekend e Dirty Projectors, os arranjos e a dicção de Alessandra Leão ganham vulto ao dialogar de forma mais sutil (para o ouvinte daqui, já que nossa música é um tanto africana também) e rotunda, resultando naquilo que a música brasileira faz de melhor: miscigenação para evolução das tradições. Além dos obstáculos ocasionados por essa visão distorcida, há também a predominância de um tipo de relação personalista demais em relação à música, que costuma enxergar arte apenas no intérprete – característica reforçada amplamente pela indústria do entretenimento, sempre disposta a fabricar novas “divas”. Porém, no caso de Alessandra Leão (cantora, compositora e percussionista, que, assim como as igualmente interessantes Karina Buhr e Isaar França, passou pelo grupo Comadre Fulozinha), a combustão se dá justamente quando suas ideias são retrabalhadas pelo esposo, o compositor, arranjador, produtor musical e violeiro Rodrigo Caçapa, responsável pelos curiosos arranjos do álbum – três camadas de cordas tensionadas ao máximo. “Caçapa tem um jeito muito dele de tocar, compor”, define Alessandra. A entrevista com a artista é permeada por notações musicais, e em pouco tempo voa através de universos sonoros distintos, mas interligados – nomes como Fela Kuti, Rodrigo Campos, Beck, Kiko Dinucci, Chico Science, Ali Farka Touré, Caetano, Gil, Chico e até Pet Shop Boys. “O primeiro disco que comprei foi deles”. (risos)
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“O Ch i co S cience e o Mestre Ambrósi o... Um tipo muito peculiar de tocar guitarra, ao modo do oeste africano, tem dado a tônica da música pop mais engajada em transformações. No disco anterior, eu até participei um pouco, mas quando começamos a produzir o Dois Cordões, dei carta branca pra ele (Caçapa). Ninguém melhor pra isso do que ele, que me conhece muito bem. Na época da produção do disco escuto várias coisas diferentes – talvez seja o momento mais próximo que eu chegue de pesquisa (risos). E a gente sempre tem uns discos de referência no período. Quais foram essas referências, no seu último disco? Congotronics (coletânea de grupos do Congo alinhados em torno do Konono Nº1), Ali Farka Touré – a guitarra dele é como mais gosto: melódica e não harmônica, limpinha. E fica bonito fazer em contraponto, que é uma técnica super erudita, como Bach compunha. O disco inteiro é com cordas em contraponto? Sim. Não tem nada com harmonia cheia – tem terças, mas não chega nem a ser um acorde. Mas as camadas preenchem o campo harmônico todo, não fica vazio. E tudo é composto a partir da melodia principal. Sempre. E como começa o processo de composição? Tudo começa a partir de um conceito, e vamos o mais profundo possível dentro dele. Por mais que tenha essa presença grande dele nos arranjos, ele sempre pergunta “o que você quer?” Se eu chego com alguma ideia, ele fala “pensa direito se é isso que você quer”, e eu fico ali pensando. De uma coisa abstrata vamos caminhando pra coisas mais práticas, de estética. Nesse disco eu sabia que queria uma coisa mais pesada, assim incluímos o terceiro ilú – antes só havia dois. No Brinquedo de Tambor (primeiro álbum da Alessandra) eu não havia gostado da sonoridade dos ilús. Explica o que é um ilú... É um tambor de pele, que se toca com a mão e vai do mais grave até o mais agudo. Antes a gente não usava o tambor mais grave. Em Pernambuco, usamos ele nos xangôs, que é nosso candomblé. Em Salvador eles usam o atabaque.
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... tiveram um impacto grande, mas geraram também uma versão um pouco distorcida das coisas. Para algumas pessoas, quando a Nação Zumbi colocou maracatu na música deles, ficou parecendo que o maracatu se ‘modernizou’. E esse conceito de moderno é uma bosta. O maracatu se modernizou faz muito tempo.”
Você pensa sobretudo no ritmo? Pergunto porque você é percussionista... Eu componho muito com percussão, mas fazendo coisas comuns, lavando pratos etc. Sempre acho engraçado como as coisas vão se aproximando naturalmente. Quando eu tava quase terminando uma música desse disco novo, “Fogo”, um amigo indicou um poema do João Cabral de Melo Neto, “Estudos para uma Bailadora Andaluza”, que fala de uma dançarina de flamenco (Todos os gestos do fogo/ que então possui dir-se-ia:/ gestos das folhas do fogo,/ de seu cabelo, sua língua;/ gestos do corpo do fogo,/ de sua carne em agonia,/ carne de fogo, só nervos,/ carne toda em carne viva.). Depois, ouvindo o [músico e compositor gaúcho] Arthur de Faria, uma música chamada “As Coisas da Casa” (do álbum Música para Bater o Pezinho), acabei mudando completamente a ideia inicial. E tem a parte do gênero, por assim dizer. No primeiro, havia muito samba de roda do Recôncavo Baiano e do coco de roda da Mata Norte pernambucana, e ainda assim caiu muito para o samba. No Dois Cordões eu queria que fosse mais para o coco, porque o samba de roda é mais festivo. O coco, apesar de ser festivo também, tem uma certa tensão. Porque Dois Cordões? Porque o disco trabalha muito com a dualidade, o pesado e o leve, o ir e o voltar, a calma e a briga. Mas também lembro sempre dos dois cordões do maracatu, que manobram e protegem o terno (cortejo que acompanha os músicos). A imagem [da capa] é dos dois cordões de maracatu.
lessandra faz parte da primeira leva de artistas influenciadas visceralmente pela cena mangue beat. Seu encontro com o futuro marido, Isaar França e Karina Buhr, ambas parceiras no que seria o Comadre Fulozinha (na época chamado por um crítico de São Paulo de “Mestre Ambrósio de saias”), se dá no contexto da nascente cena mangue beat recifense (“no início eu não sabia de nada, nem o que era uma oitava”). Após uma turnê internacional com o Comadre, a cantora, que já era mãe, abandonou a instabilidade da vida artística para administrar uma clínica médica. “Meu pai falou ‘comprei um presente pra você’. Logo achei que era um estúdio. Na verdade era uma clínica. Resolvi topar, imaginando que aquilo ia trazer uma segurança etc.” Mas ela acabou voltando para a música, via produção musical: iniciou o projeto/CD Folia de Santo, que, além da própria, contou com vários artistas criando músicas com inspiração religiosa. Paralelamente, iniciou o trabalho de concepção de seu primeiro disco, Brinquedo de Tambor, de 2006. A dignidade e o destemor ao tratar a música popular como se pop o fosse coloca Alessandra no mesmo terreno em que atua Siba e sua Fuloresta do Samba. Apesar dos temperamentos distintos, as ambições musicais são complementares. As letras de “Andei”, de Alessandra (ai, andei, andei/ não corro mais/ cada passo que eu dou/ me leva/ Cada passo que eu dou/ Faz o seu giro/ Muda o sentido/ Onde eu vou), e de “Toda Vez Que Eu Dou um Passo o Mundo Sai do Lugar”, de Siba (De manhã escuto o mundo/ gritando pra me acordar/ Ouço o mundo dizendo/ corra pra me acompanhar/ Se eu correr atrás do mundo/ porém não pude alcançar/ também não vivo pensando/ de ver o mundo acabar), fornecem sugestões sobre semelhanças e distinções no trabalho de ambos: cada um é para o que nasce. “Fiz um brega, ‘Cheira Que É de Pera’, para uma peça de teatro e até gostei do resultado. Meus amigos falaram que eu devia criar um nome e fazer mais bregas pra ficar rica. Mas eu já tinha visto que as coisas não funcionavam assim; tinha que fazer algo em que acreditasse”, diz Alessandra. Voltamos à conversa falando sobre o peso de Dois Cordões em contraponto à leveza, e talvez à imaturidade, de seu primeiro trabalho.
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o falam que meu tr d n a u abal h “Q eu não concordo. oéu No Comadre ma rel a, Fulozinha a gente eitur trabalhava muito com temas de domínio público. As letras falavam de uma região, e eu não moro no interior. É engraçado porque me lembro que fiz uma música falando de passarinho um tempo atrás, e nem passarinho eu tinha. Eu nasci e fui criada em Recife.”
Penso no toque de artista em seu trabalho e no de Siba, com quem acredito que você dialogue, ainda que de um ponto oposto no universo da música tradicional pernambucana.
O Siba é um poeta. Sempre que vou compor letras, quando coloco palavras que não uso no cotidiano, acho estranho, não me soa próprio. Eu não sou poetisa. O Siba, desde a época em que começou a pesquisar cantoria, maracatu, foi desenvolvendo esse lado. Eu admiro ele imensamente como mestre de maracatu – não deixa nada a dever aos outros mestres de lá – , mas obviamente o repertório dele é diferente, não teria como não ser. Quando falam que meu trabalho é uma releitura, eu não concordo. Porque inclusive tem autoria. No Comadre Fulozinha a gente trabalhava muito com temas de domínio público. As letras de um modo geral falam de uma região, de uma comunidade, e eu não moro no interior. Não dá pra você falar do luar do sertão...
Não dá. É engraçado porque me lembro que fiz uma música falando de passarinho um tempo atrás, e nem passarinho eu tinha. Eu nasci e fui criada em Recife. E como foi que essa música entrou na sua vida? Família?
[Não teve] ninguém. Meu pai é economista e minha mãe é psicanalista (risos). O mais próximo era um tio-avô que tocava bateria. Comecei a me aproximar da música através do teatro. Eu queria estudar e fazer teatro. Na verdade, queria fazer dança, tinha interesse em danças étnicas, fiz dança afro, popular. Por falta de opção fui para o teatro, mas vi que seria uma péssima atriz (risos). Por sorte, peguei o começo do movimento mangue. Lembro de ver show do Chico [Science & Nação Zumbi] na praia de Boa Viagem e pensar: “Meu Deus, o que é isso?” 38
Sério?
Foi. Fiquei muito impactada. Voltei pra casa sabendo que era aquilo que queria. Chico era muito impressionante, não tinha quem ficasse parado. E no Abril Pro Rock eu vi o Mestre Ambrósio (grupo anterior de Siba), e era engraçado porque no início [do grupo] metade do show era acústico e metade elétrico. Ali eu pirei de fato, me deu a sensação de ser algo mais profundo. Eu era muito pirralha e ia em todos os shows deles. Daí acabei ficando amiga dos meninos e comecei a conhecer maracatu etc. Em São Paulo existe um samba tipicamente paulistano, mas que se manteve na esfera da canção popular/tradicional e não se tornou pop/produto cultural. A minha impressão é que em Recife há um diálogo maior entre a cultura popular e a pop...
O Chico Science e o Mestre Ambrósio tiveram um impacto grande, mas geraram também uma versão um pouco distorcida das coisas. Para algumas pessoas, quando a Nação Zumbi colocou maracatu na música deles, ficou parecendo que o maracatu se “modernizou”. E esse conceito de moderno é uma bosta. O maracatu se modernizou faz muito tempo. Teve uma febre de alfaias, de maracatu, e foi algo bom, muita gente tomou conhecimento da música de Pernambuco por causa disso. Essa ideia da música tradicional ter que se modernizar é muito esquisita. Ela nunca parou no tempo, sobrevive às transformações, aos governos, e continua. Se você pegar os figurinos de maracatu de um tempo atrás e os de agora, são muito diferentes. O frevo tocado cinquenta anos atrás era muito mais lento do que é hoje. 3
2saiba mais www.myspace.com/alessandraleao 39
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e poi s d a e d Te m pesta
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ista c i om Jun Matsu
Por Tiago Moraes . retratos em cor por bitão . imagens divulgação
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Me lembro como se fosse ontem da primeira reunião de pauta da Soma. Entre outros nomes, sugeri o de Jun Matsui, a quem sempre acompanhei e admirei. E sabia que sua história renderia uma boa entrevista. Na época, Jun tinha acabado de voltar de Tóquio e começava a reconstruir sua vida em São Paulo, o que inviabilizou a matéria. Tentei mais algumas investidas nas edições seguintes, que também acabaram não se concretizando. Eis que, três anos depois, resolvi retomar o contato e finalmente conseguimos nos encontrar. Era o momento certo para Jun, agora já completamente restabelecido de uma crise que o levou a abandonar uma carreira de sucesso no Japão, com estúdio bombado e uma recém-inaugurada loja de sua marca Life Under Zen (Luz). A entrevista rolou em duas sessões em seu misto de casa, estúdio e ateliê no bairro de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, e passou por assuntos diversos como skate, imigração, Oriente versus Ocidente, reality shows, joias, mulheres e, como não poderia deixar de ser, tatuagem. 1
Lembro do seu nome envolvido com o skate na década de 1980. Fale um pouco de suas lembranças da época. Eu acho minha história com o skate muito mal resolvida. Foi uma ruptura brutal pra mim: um dia eu estava no Brasil, andando direto, fazendo demos, e no outro estava no Japão trabalhando numa fábrica. Lembro que na época eu usava umas pulseiras, e depois de uns três dias no Japão peguei uma tesoura e cortei todas. Foi um momento marcante, eu já sabia que não voltaria para algo que, sem exagero, foi uma das fases mais felizes da minha vida. Esse background no skate influenciou de alguma forma sua formação e sua personalidade? Completamente. Minha perspectiva das coisas ainda tem esse elemento skate muito forte. Se eu vejo uma session rolando, por exemplo, meu pé logo começa a formigar, você sabe exatamente o que o cara lá está sentindo… É uma doidera, cara! E por que decidiu deixar o país e morar no Japão? Foi uma fuga. Meus pais se separaram e aquilo foi brutal pra mim. Lembro que eu morava no Jaguaré e tinha uns malucos do bairro, uma japonesada, e sempre rolava um papo tipo “tal cara foi pro Japão, fulano de tal também” e que era super fácil, só ir numa agência na Liberdade que os caras providenciavam tudo e te mandavam pra lá. E na real eu queria mesmo ir pra Califórnia, mas não rolava, era muito 42
difícil conseguir visto, grana etc. Daí, com essa oportunidade de ir pro Japão, eu pensei “Porra, de qualquer jeito eu quero sair fora. Então vou pro Japão, trabalho, junto uma grana e vou pra Califórnia”. Foi uma questão de conveniência, uma oportunidade de ir sem gastar um tostão. E me lembro que tudo que eu tinha era uma passagem de ida e cem dólares no bolso, sendo que no aeroporto de Los Angeles já gastei quarenta num boné! (risos) Que tipo de emprego você teve lá no começo? De operário em fábrica de carros, linha de produção. (risos) Fiquei nessa uns três meses e descobri que tinha um primo meu em Tóquio na construção. Fiquei mais uns meses com ele trabalhando pesado, embaixo da terra, bueiro etc. Depois de um tempo conheci uma garota brasileira que me levou para trabalhar numa balada. Foi aí que tudo começou, comecei a olhar aquela cena e perceber algo familiar. Como você foi recebido lá pelos locais? Rolou algum tipo de preconceito por ser dekassegui ou foi tranquilo? Foi tranquilo, mas rolavam algumas situações complicadas. Quando eu ligava para falar com alguém e dizia meu nome completo, Jun Itie Matsui, era complicado pro cara do outro lado entender que ele estava falando com um brasileiro de Recife, que fala japonês igual a uma criança. E o povo japonês é super purista, eles se referem a um mestiço como “haafu” (do inglês “half”), que significa metade, ou o que não é inteiro. 43
Como se deu essa sua transformação de dekassegui para um dos tatuadores mais requisitados e considerados do Japão? Se você for pensar, o que um cara como eu, sem formação acadêmica, com 19 para 20 anos, solto no mundo poderia fazer? Não tem muita opção, saca? Esse lance da tatuagem era uma fantasia que eu nunca tinha dividido com ninguém. Lembro de ter ido a uma convenção de tatuagem em São Paulo, de ver o Marco Leone, o Hercule, e eu olhava pros caras e achava aquilo tudo muito foda. Queria fazer uma tattoo e meu pai não deixava, então sempre tive esse fascínio pela coisa. Já morava no Japão e rolou uma viagem com uma ex-namorada para Los Angeles. Conversando no avião, ela me perguntou o que eu pretendia fazer da vida, e foi aí que eu disse pela primeira vez “Acho que vou ser um tatuador”. Eu gostava muito de desenhar, curtia muito tatuagem, mas no Japão era super difícil encontrar um tatuador, você tinha que conhecer alguém que tinha se tatuado. E como foi esse começo de carreira como tatuador? Nessa viagem, minha ex-namorada voltou pro hotel e falou “acabei de conhecer um tatuador, fui no estúdio dele, ele me disse que vai te dar uma força, te ajudar a comprar os equipamentos”. Lembro que na hora eu fiquei meio puto, aquela coisa do orgulho masculino de querer conquistar as coisas por conta própria. Mas acabei indo lá trocar uma ideia, e o fato de morar em Tóquio fez toda a diferença, existia uma admiração natural dele pela cena e a história da tatuagem no Japão. Ele me deu uma puta força, mal sabia que estava falando com um pernambucano! (risos) Voltei pro Japão com todo o equipamento, chamei meu irmão e disse “Segura meu braço”. Ele esticou a pele, eu comecei a me tatuar e perguntei “E aí, acha que rola?”. E ele “Rola, rola…” (risos) Depois um brother falou que queria ser meu primeiro cliente. Eu conhecia dois tatuadores no Japão que também me deram uma força – ficava no estúdio deles vendo eles trabalharem. Depois juntei uma graninha e larguei meu emprego pra me dedicar somente à tatuagem. Aluguei um quartinho, ia pra lá e ficava dormindo, não rolava nada, o telefone não tocava. Ficava pensando “Fodeu!” Acha que se tivesse começando hoje seria mais fácil? Cara, hoje um moleque de classe média, que tem opção de estudar, pode falar “Vou ser tatuador”! Ou mesmo o graffiti, que era uma parada super transgressora, logo mais vai estar no currículo de uma FAAP da vida. Há 15 anos, você não queria ser tatuador: acabava tatuando. Era mais por falta de opção mesmo. O tatuador tinha sempre aquela imagem do cara mal-humorado, fumando e bebendo sem parar. Hoje os estúdios viraram clínicas, a coisa se profissionalizou. Qual foi o impacto dessa mudança pro Japão na sua vida? Acho que eu virei gente de verdade no Japão. Me considero sortudo de parado lá em vez de ir para a Califórnia. Acho que eu seria uma pessoa completamente diferente. Porque nesse período, dos 20 aos 30, você amadurece pessoal e profissionalmente. E ter passado essa fase no Japão foi muito importante, eu sou muito grato a isso. Por mais que eu pensasse que não tinha como estar em um lugar mais alienígena na Terra, eu sempre tive um lance meio familiar ali, sempre me senti bem. E não basta você gostar da cidade, a cidade tem que gostar de você. Eu vi muito isto acontecer: pessoas que chegavam em Tóquio e queriam fazer isso e aquilo, mas a cidade mastigava e cuspia os caras.
“Quando eu digo que a pessoa é mais importante que a tatuagem, quero dizer que, se você tiver um espírito forte, pode fazer qualquer coisa, fazer um monte de riscos na pele, que as pessoas vão te imitar, porque você é quem você é.” 44
Como se deu essa transição de tatuador tradicional, que tatua o que o cliente pedir, para o tatuador autoral, que só usa tinta preta e tatua desenhos que cria? Isso começou no Japão. Na verdade eu sempre tive essa loucura com o preto. Nunca me achei muito bom com cor, com talento para nada que não fosse essa pegada mais gráfica, mais bold, tribal. Lógico que no começo eu tatuei de tudo, demônios da tasmânia, golfinhos, clássicos que eu acho que todo mundo deve ter que fazer um dia. Mas sempre tinha em mente trabalhar só com o preto. Aí eu conheci o Sabado em Nagoya, um 45
“Foi uma ruptura brutal pra mim: um dia eu estava no Brasil, andando [de skate] direto, e no outro eu estava no Japão trabalhando numa fábrica. Lembro que na época eu usava umas pulseiras, e depois de uns três dias no Japão peguei uma tesoura e cortei todas. Foi um momento marcante, eu já sabia que eu não voltaria para algo que, sem exagero, foi uma das fases mais felizes da minha vida.”
cara que aprendeu a tatuar no Brasil e fez o caminho inverso ao meu. De vez em quando eu ia pra lá tatuar e comecei a fazer uns blocões pretos. Tinha o Gary Kosmala, que era um dos originais da chamada Black Wave em Los Angeles, que eu também conheci e foi uma grande influência. Foi tudo muito gradual, mas posso dizer que entre 1997 e 1999 começou a rolar uma história mais forte. E o Japão foi um terreno fértil pra isso: a galera se jogava, por isso eu sempre considerei a minha tatuagem japonesa, pelo simples fato de ter se originado e desenvolvido no Japão. Há muita diferença na forma como um tatuador oriental e um ocidental lidam com a coisa? Pra mim tem esse estilo americano, que é baseado num modelo de negócio mais tradicional, uma loja na rua, e o modelo japonês, que é o cara tatuando no apartamento dele, sem placa, só com a divulgação boca-a-boca. Lógico que hoje lá tem uma galera que já adotou o formato americano. Mas se você chegar no estúdio de um cara como o Horiyoshi, por exemplo, vai até poder escolher o tema, mas não vai aprovar o desenho dele. Se você chegou ao cara, está subentendido que já passou dessa fase. Alguns tatuadores brasileiros conseguiram montar verdadeiras grifes e chegam a ter 10 tatuadores trabalhando para eles, em um esquema de alta rotatividade. 46
Esse aspecto do negócio eu acho até legal, a galera tem que fazer grana mesmo. Acho que tem espaço pra todo mundo, e uma loja dessas pode ser a porta de entrada para um cara que vai fazer uma parada muito vanguarda lá na frente. O que uma tatuagem representa para você? Pra mim é um ornamento e acabou. É você se olhar no espelho e se sentir mais bonito, mais estiloso com a tatuagem do que sem ela. Agora, isso não quer dizer que você não possa fazer uma tattoo que tenha um significado a mais, uma homenagem póstuma ou uma brincadeira entre amigos, por exemplo. Essa questão decorativa é a primeira de todas e sempre é ligada a uma questão de origem, de significado, identificação. E o legal é que cada pessoa tem a sua viagem. O Horiyoshi achava incrível as pessoas quererem algo que dói para caralho, é muito caro e ainda vai te deixar numa posição foda dentro da sociedade. Li certa vez no seu site a frase “A tatuagem nunca é mais importante do que a pessoa que
a está usando”. Acha que tem muita gente tatuando e sendo tatuada meramente pela estética hoje em dia? Não sei se é uma questão meramente estética ou se é uma combinação de estresse com consumismo. Acho que tem um aspecto consumista nisso tudo, mesmo que ninguém chege e fale “olha a tatuagem que eu comprei”. E a galera quer se tatuar. Agora a qualidade, o que vai ser tatuado, o quão superficial isso pode ser ou não, é o que separa quem é quem nessa história. Então, quando eu digo que a pessoa é mais importante que a tatuagem, quero dizer que, se você tiver um espírito forte, pode fazer qualquer coisa, fazer um monte de riscos na pele, que as pessoas vão te imitar, porque você é quem você é. Quando você decidiu voltar ao Brasil, tinha certeza de que seu trabalho seria aceito? Na real estou surpreso até agora, porque quando decidi voltar pra cá eu não tinha a menor ideia do que iria acontecer, se eu iria trabalhar, se rolaria uma receptividade. Mesmo com o retorno
do meu blog e as dezenas de comentários positivos, eu tinha essa dúvida. A cena aqui também é muito forte, tem muita gente. O Evan, por exemplo. Sou fascinado pelo trabalho do cara, pelo que ele consegue fazer aqui, a começar pelo fato de ser húngaro e tatuar a pele de brasileiros em estilo oriental, melhor que muito japonês. É louca demais essa mistura que rola aqui. E funciona, é muita doideira! Há quanto tempo você está morando em São Paulo? Eu estou nesse retiro há quase três anos. Parei tudo que estava fazendo no Japão, porque minha marca de roupas, a Life Under Zen (Luz), se tornou um reflexo do que eu estava vivendo na época, da minha personalidade e crise de identidade geral. Era muita gente envolvida e eu tinha perdido o controle da situação. Tinha acabado de abrir uma loja, investido uma puta grana, só que não tinha conteúdo, então resolvi simplesmente acabar com tudo, voltar pra cá e recomeçar. Saí de um esquema com oito pessoas trabalhando para mim, eu não
“Tem essa história de falarem que tatuagem é arte, graffiti é arte. Não é arte, meu, é artesanato! Sei lá, de 500 grafiteiros existam talvez três caras cujo trabalho você vai olhar e falar “Isso é muito foda!” Com a tatuagem é a mesma coisa.”
fazia porra nenhuma porque sempre tinha alguém pra fazer por mim. Eu até levava a tatuagem a sério, mas não se compara com a maneira como eu abordo a coisa hoje. Então, basicamente, nestes últimos três anos estou pagando por um lifestyle que tive durante muito tempo. Fico trancado no estúdio o dia todo, preparo eu mesmo todas as minhas refeições. Vou no Ceasa toda semana, coisa que quatro anos atrás era impensável. Eu ia no supermercado e não sabia nem o que comprar. Tive um puta crescimento aqui, algo que demorou para acontecer na minha vida. Fala um pouco da sua vida atual e desse seu novo envolvimento com o design e produção de joias. Acho que tudo se resume ao fato de eu querer que as coisas deem certo. Passei uma época tomando decisões pautadas por questões financeiras, talvez por influência do Japão, um lugar que cheira a dinheiro, entendeu? Também pelo meu histórico familiar, eu buscava estabilidade a qualquer custo. E foi um lance 47
“A tatuagem tá na moda e, se essa previsão de que as pessoas vão ficar cada vez mais estressadas e deprimidas estiver certa, elas vão se tatuar ainda mais. Um cara se tatua em dois momentos: ou porque ele tá fodido, ou quando ele está sólido, confiante. A tatuagem está sempre num desses extremos, nunca no meio.” que nunca tive de verdade. Quando percebi isso, resolvi que começaria a decidir pelo que me faria mais feliz, resolvi relaxar um pouco e concluí que tudo ficaria bem. Nos últimos anos, levei uma vida super tranquila e simples, sem social, consumismo zero – não por uma questão ideológica, e sim financeira. Minha viagem foi mesmo tatuar, e eu aprendi pra caramba nesse período. O melhor de tudo é que eu não tinha a menor expectativa em relação a nada. Tem um ditado japonês que diz “Ishi no Ue nimo Sannen”. Traduzido, significa “Mais três anos em cima da pedra”. Isso tem muito a ver com novos desafios e com a história do ciclo de três anos, tempo necessário para que algo se encerre e se concretize. Eu sempre soube que esses três anos que se completaram seriam foda, que meu padrão de vida mudaria completamente e que eu teria que segurar a onda. Essa história com as joias já vem de um bom tempo, é algo que sempre tive vontade de fazer, mas sabia que ainda não era a hora certa. Quando tomei a decisão de parar com tudo, me matriculei numa escola de joalheria e fiquei lá, dividindo bancada com um monte de japonesinhas que ainda deviam estar no colégio. (risos) E tudo isso está se materializando agora, a primeira série de peças acabou de ficar pronta. Qual a sua expectativa em relação a esse projeto? Se for levar em consideração o que pessoas falam, estou confiante. Mas eu penso a longo prazo, e acho que vou precisar cumprir novamente esse ciclo de três anos. Ainda estou muito no começo. Continuo tatuando, fazendo as minhas coisas, mas isso é a coisa mais importante pra mim agora. E acho que, apesar de estar focado nas joias, já estou tentado a esculpir peças maiores, objetos e esculturas. Sinto que é uma questão de tempo pra isso acontecer. Você consegue encontrar alguma relação entre os dois ofícios? No Japão, o verbo que se usa para tatuar é entalhar. A tatuagem maori também é considerada um entalhe. Acho que são ocupações similares, ambas são artesanato. Tem essa história de falarem que tatuagem é arte, graffiti é arte. Não é arte, meu, é artesanato! Sei lá, de 500 grafiteiros existam talvez três caras cujo trabalho você vai olhar e falar “Isso é muito foda!” Com a tatuagem é a mesma coisa. 48
Pra mim é muito claro que você está no time dos artistas já que têm um estilo próprio, bem autoral, marcante, diferente do tatuador artesão que passa o dia replicando desenhos como estrelinhas, diabos-da-tasmânia e índias com o cabelo esvoaçante. Eu tenho uma índia dessas tatuada (risos). Duas, na verdade (risos gerais). Essas índias foram clássicas nos anos 1990, né? Voltando à pergunta, você se considera um artista? Eu nunca me considerei um artista. Na verdade, me considero um cara de sorte pra caralho. Tenho sorte de a galera curtir esses desenhos que eu faço. É o que eu sei fazer, o melhor que eu tenho para oferecer. E tem essa coisa da moda, né? A tatuagem tá na moda e, se essa previsão de que as pessoas vão ficar cada vez mais estressadas e deprimidas estiver certa, elas vão se tatuar ainda mais. Um cara se tatua em dois momentos: ou porque ele tá fodido, ou quando ele está sólido, confiante. A tatuagem está sempre num desses extremos, nunca no meio. Tenho algumas tatuagens feitas em épocas e com tatuadores diferentes. Mesmo hoje, 15 anos depois da primeira, ainda consigo enxergar um significado para cada uma delas. Não tenho arrependimento, pelo contrário: fazem parte da minha essência. Por outro lado, tenho amigos que me dizem que se pudessem voltar atrás não fariam nenhuma, ou fariam tudo diferente. Imagina eu, no Japão, solto no mundo, doidão, literalmente possuído, cheio de questões e histórias na cabeça e me tatuando pra caramba, mas sempre com essa coisa meio budista de comprar amuletos – quando na verdade um amuleto tem muito mais força se você ganhar ele. Hoje eu olho pra isso e acho engraçado, sabe? Uma tatuagem sobre a qual você pesquisou, que tinha todo um significado, depois de um tempo pode não significar mais nada. E outra que você fez doidão num quarto de hotel em Amsterdam, pode ter um significado enorme depois de anos. E esses reality shows, Miami Ink, LA Ink? Se por um lado ajudam na popularização da tatuagem, por outro meio que banalizam, não acha? Cara, isso era uma questão de tempo. Ajuda a disseminar a escola de tatuagem americana, e nisso eles são muito bons, conseguem colocar na TV, num formato que é facilmente absorvido.
Mas nós estamos falando de televisão, entendeu? Não dá pra levar muito a sério ou ter uma opinião formada a respeito, é entretenimento, existem programas de tudo que é tipo – de carro, moto, cirurgia plástica, a tatuagem é só mais um tema ali no meio. A real é que a maioria de nós vai morrer sem nunca ver as tatuagens mais fodidas do mundo, porque essas pessoas não aparecem. Quantas vezes eu não vi, em casas de banho no Japão, cenas cinematográficas de carrões parando na porta, o boss descendo com vinte seguranças, entrando na sauna, os caras todos de terno na porta e só o chefão de toalha, com o corpo completamente fechado de tatuagem? Eu acho que esse conceito de arte-crime é o next level da parada. Porque, do jeito que as coisas vão, é a única coisa que ainda vai ser relevante. Hoje em dia o cara vai lá, se tatua inteiro, até o pescoço, escreve southside, LA, mas de onde saiu isso? Da cadeia. De onde saiu a tatuagem japonesa? Da máfia. Essa foi a galera que começou tudo. Hoje em dia qualquer um pode comprar a sua, e isso tira muito a magia da coisa. Seu estilo, como você mesmo define, é uma mistura do oriental com o das ilhas do Pacífico, dos maoris, da Polinésia. Hoje, três anos depois de voltar ao Brasil, você acha que a cultura daqui começou a influenciar o seu traço? Influenciou, sim. Já estava rolando e se desenvolvendo, mas eu sinto e vejo no meu desenho hoje. Toda essa mistura de etnias, de história, é muita doideira. Como você explica um cara vir de avião do Sul só pra tatuar comigo um desenho muito influenciado pelo que acontece no
“A maioria de nós vai morrer sem nunca ver as tatuagens mais fodidas do mundo, porque essas pessoas não aparecem. Quantas vezes eu não vi, em casas de banho no Japão, cenas cinematográficas de carrões parando na porta, o boss descendo com vinte seguranças, entrando na sauna, os caras todos de terno na porta e só o chefão de toalha, com o corpo completamente fechado de tatuagem?” Pacífico? Será que é só porque o cara simplesmente curte o meu estilo? Não sei, acho que outras conexões mais fortes levam esse tipo de coisa a acontecer. Sei lá, de vidas passadas. Eu nasci em Recife, cresci no Mato Grosso, depois em São Paulo, fui pro Japão, e não sei de onde vem, mas tenho essa ligação muito forte com o Pacífico. Como você lida com o fato de interferir para sempre na vida de uma pessoa? Não é louco pensar no que motiva uma pessoa a ir até o seu estúdio para ser marcada para o resto da vida? A gente está falando aqui de um mundo de homens maduros, adultos e bem resolvidos. E isso já poupa um monte de conversa, de análises e discussões sobre o que que a gente está fazendo, entendeu? É lógico que tem um aspecto no mínimo intrigante no fato de você desenhar algo num cara que vai ficar pro resto da vida. É óbvio que existem todas as facetas sociais, culturais, espirituais, artísticas, teológicas e filosóficas,
mas não dá pra ficar pirando nisso, senão você enlouquece. Então eu realmente espero lidar com pessoas que sabem o que querem. E eu falo muito de homem porque considero a tatuagem uma atividade essencialmente masculina. Isso não é uma afirmação machista, mas estética. Não quer dizer que não existam mulheres que possam se tatuar e circular perfeitamente nesse universo masculino e continuar sendo mulher, entendeu? Mas não são todas, pelo contrário. Por que você acredita que a tatuagem tem mais a ver com homens do que com mulheres? Talvez pelo histórico da tatuagem, do que era feito nas ilhas. Pode parecer careta, é uma opinião muito pessoal, mas o corpo da mulher e do homem são completamente diferentes e não podem ser tratados da mesma forma. Hoje, essa linha [divisória entre os sexos] tá ficando cada vez mais cinza na cabeça da maioria das pessoas, e eu estou indo na contramão. Quero que fique cada vez mais definido, e não estou falando só de tatuagem, obviamente. Se você me perguntar se uma tatuagem faz uma mulher mais mulher, a resposta é não. Então por que uma mulher faria algo que não vai realçar sua feminilidade – pelo contrário, pode até neutralizar, desfigurar? Pra mim isso é uma questão meramente estética, não quero ser interpretado como um radical ou retrógrado, mas me considero um especialista em tatuar homens. Meu trabalho é masculino. Mas existem mulheres que vestem bem o que eu faço, e está tudo certo. 3
2saiba mais lifeunderzen.com 49
retorvisor texto e fotos por
michel gomes
Escura e úmida. Minha realidade é interna. Não me atrevo com o dos olhos para fora. As portas nada me abrem. As janelas, o vento do desespero. Por horas, a angústia é tão grande como o esfolar dos meus dedos nas paredes da minha consciência. Sonho ser mais um tijolo. Amanheço uma pilha.
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Ainda se houver luz em algum fim, o caminho até lá será hostil o suficiente para me manter encasulado. Ousar seguir seria condenar meu ser ao flagelo de lâminas de insensibilidade e egoísmo.
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Quanto se fala de beleza, perfeição, felicidade... Não vejo esse rastro. Olho para cima, está a morte, para o lado, a injustiça, para baixo, não sei se está de ponta-cabeça ou se é estranho assim mesmo. Uma menina esteve neste subterrâneo. Juntos, palidamente inexpressivos, ali vivíamos.
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Um gesto súbito: seu ombro se foi. Pelo menos derramou uma lágrima. Urgi em mantê-la viva. Como se para sempre pudesse tê-la em mim. Mas secou. Sem antes ser ácido que escorreu fundo e deixar cinzas como pegadas.
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Sou fraco para tentar. Imploro ajuda não sei de quê. Pode ser mero reflexo. Não sei se me interessa. Sinceramente, ainda não conheci o invejável. Pela fotografia, à minha maneira, tateio algo. Ignoro sua forma e seu onde-vai-dar. Certamente seguirei dentro de mim.
1saibamais www.michelgomes.com
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raquel schembri
Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço? Mande um email para entreoutros@maissoma.com com amostras da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!
ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A +SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.
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ALEX VIEIRA
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BINHO MARTINS
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TUILA BARBOSA
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Veneno Remédio Por Arthur Dantas . Fotos por Daigo Oliva
“Quanto ao artista em si, ele carrega aquela dor que lhe espeta o coração, mas existe ao mesmo tempo um forte elemento inconsciente em sua arte, que é uma das principais razões de sua beleza e intensidade”. Esse trecho do mítico crítico de rock Lester Bangs, sobre o início da carreira solo de Iggy Pop, define exemplarmente Carlos Rodriguez, mais conhecido como Nekro, o maior vocalista/frontman do punk rock/hardcore latino. Enquanto Iggy Pop se mostrava patético, flagelado, o antirockstar por excelência, Nekro, com a mesma intensidade, também se fragiliza em frente a seu público, expondo emoções íntimas, chegando ao limiar da vergonha, do cafona, misturando tudo isso a temas políticos radicais, o que confunde ainda mais a audiência, assim como o velho Iggy. A entrega de ambos no palco é a mesma, uma entrega que parece definitiva, como se o mundo estivesse por acabar assim que as luzes se apagassem. 1 66
Sua música, seus livros, seus desenhos e seus fanzines transpiram felicidade e bem-estar, mas sem deixar a realidade de lado. Não há escapismo em suas letras à frente do cultuado Fun People (o grupo que lhe deu reconhecimento mundial no mundo punk) e de seu atual grupo, Boom Boom Kid, mas o artista argentino que diz ironicamente ter “mais de 30 anos” é um eterno adolescente e prefere ver o copo sempre meio cheio. Com as 19 canções do álbum Art Of Romance, de 1999, a obra-prima do punk latino gravada por Steve Albini, o Fun People esteve prestes a romper com o círculo punk rock e alcançar sucesso massivo. Turnês pelos EUA, México, Europa, Japão e toda a América Latina, muitos discos vendidos, uma legião fervorosa de fãs e um álbum invejável recém-lançado. Mas no auge, com dez anos de carreira, o grupo se desfez. “O Fun People no final era algo muito difícil, teve muita mudança de formação, decisões a tomar e opiniões diferentes. Preferi começar uma banda nova, porque não queria continuar com algo até virar uma merda, preferi deixar as coisas bem feitas e começar outro projeto. Não era só uma coisa de vender discos, fazer turnês mundiais, fazer muitos shows. Não é assim”, explicou o carismático vocalista baixinho, de longos dreads loiros, em uma pizzaria na Rua Augusta, em São Paulo, próximo ao Outs, onde aconteceria o último show do Boom Boom Kid na cidade. Tudo o que foi dito até aqui não é suficiente para explicar o quão distinto é o trabalho de Nekro. Com versatilidade, cantando de raivosos hardcores a boleros, de punk rocks à la New York Dolls a baladas românticas, ele consegue combinar canções/militâncias sobre questões de gênero, ação direta não-violenta, direitos dos animais, desarmamento, direitos gays, e o direito ao aborto, a nostálgicas canções amorosas, músicas sobre a história esquecida de uma Argentina rebelde e temas sobre prazeres mundanos como beber água, fazer amigos, surfar, andar de skate ou jogar frisbee – brinquedo que dá nome a seu último trabalho e vem junto com ele. Eu acho que o melhor álbum que você fez foi o Art Of Romance. Acho que todos seus interesses, sua maneira de fazer música e pensar o mundo estão da melhor forma ali. Hardcore é uma música que não me agrada tanto hoje em dia – não vejo mais a eletricidade no ar, um vigor, uma urgência. O que você pensa sobre o assunto? Antes de começar o show na Pacolli estava me sentindo mal, com a garganta inflamada, febre. Quando comecei a tocar, já na segunda música, parecia recém-nascido (risos). Música é remédio para mim, é puro amor. Me faz sentir bem e traz felicidade. Sempre quis fazer isso, desde pequeno, nunca pensei o que teria que fazer na outra semana, nunca fui um adulto normal, mas também nunca quis ser o mais radical. Sempre quis fazer fanzines, escrever, andar de skate, fazer minhas músicas. É a música que me leva pra outro mundo, um lugar mais caloroso, multicolorido, onde todo mundo está bem. É meu jeito de falar “ei, man, por que você está assim, o mundo pode ser mais divertido, colorido, não precisa ver tudo cinza”. Se não puder caminhar, vou cantar; se não puder cantar, vou escrever. É ver o lado bom das coisas. Você se expressa de uma forma punk rock: tem energia, tem uma agressão, uma forma rápida e direta de se comunicar. Só que você trata das coisas de um jeito muito terno, como se estivesse conversando intimamente com o ouvinte. Transforma sua própria forma de existir em uma coisa política e compartilha isso com os outros. Eu tenho muitos problemas pessoais. Como posso dizer... Eu vivo na beira do caos todo dia. Por mais difícil que esteja, faço da música uma pílula. Quando a tomo, tudo melhora. É assim que vejo a música. Na Argentina 68
“Eu tenho muitos problemas pessoais. Como posso dizer... Eu vivo na beira do caos todo dia. Por mais difícil que esteja, faço da música uma pílula. Quando a tomo, tudo melhora. É assim que vejo a música.”
está tudo muito estranho politicamente, muita insegurança, muito caos, muita violência. E tudo isso existe porque há muita fome, e tudo isso existe porque tem um erro na divisão de riqueza e poder, sabe? Aí temos mais polícia, mais exército. A Argentina é um país muito estúpido, parece que as pessoas não se lembram que há pouco tempo morreram mais de 30 mil pessoas [na ditadura militar], uma geração inteira morta. Uso minha música pra me comunicar, pra falar que você pode cuidar das pessoas, fazer as coisas de outro jeito. A música muitas vezes é um espelho. Eu escrevo uma música e fico feliz. Tiro toda minha merda pra fora. Como uma catarse? Exatamente. Tem gente que fala que minha geração é apática. Não acredito nessas coisas. Eu me sinto jovem, tenho alegria de viver, não me canso de conhecer as coisas, isso é ser jovem. Essas pessoas que sabem tudo e já viveram tudo não me interessam. Pra viver é necessário morrer e nascer várias vezes. Boom Boom Kid é como uma colagem, um crossover desde a primeira música, o primeiro fanzine. O último disco, Frisbee, muda o estilo de canção pra canção, não tem cinco músicas parecidas ali. Gosto de desconstruir as coisas. É punk rock? É e não é. É rockabilly? É e não é. É hardcore? É e não é. E como surgiu a chance de gravar com o Steve Albini? Tenho um amigo em Chicago, o Martin (ex-vocalista da lendária banda de hardcore latina Los Crudos), que falou do Fun People pra ele, que era uma banda independente etc, começou a instigá-lo, e ele falou “ok, quero conhecer esses caras”. Quando fomos gravar com o Steve Albini, no dia anterior tinham saído o Robert Plant e o Jimmy Page de lá. Quando saímos, entrou o Cheap Trick, sabe? E cobrou o mesmo valor que gastaríamos em Buenos Aires. Eu gostava do Steve Albini, do Big Black, ele gravou o Big Boys, que são coisas diferentes, e nós nunca copiamos timbre de ninguém,
nunca ficamos nessa de querer entrar em alguma onda. Ele foi muito legal no estúdio, quando tudo ficava confuso ele falava “ok, dois minutos de descanso, vão comer uma pipoca, vejam [a comédia sobre uma banda de metal fictícia] Spinal Tap (risos). Ele foi tocar na Argentina e queria que o Boom Boom Kid abrisse pra eles, mas não estávamos lá. O Boom Boom Kid fala muito de infância e inocência como algo pra se defender do mundo – já no Fun People não havia muito esta ideia. Por que usar deste tipo de imagens agora? Eu defendo a liberdade e o livre pensamento. Não quero voltar a ser criança, é como falar de julgar: eu nunca julgo nada. As crianças nascem, correm, brincam e ficam peladas... Por que nós, com mais de 30, anos não podemos fazer o mesmo, man? Que importa o que os outros pensam? Todo mundo sempre fala “não, não, não”, e eu “sim, sim, vai, vai”. Vergonha é uma palavra que não está em seu vocabulário? Às vezes, lamentavelmente (muitos risos). E como a sua família enxerga o seu trabalho? Meu avô fica muito feliz, já foi em meus shows. O pai dele tinha um armazém, e quando os anarquistas italianos chegaram à Argentina, nos anos 1930, ele os ajudava. Então ele teve contato com ideias anarquistas desde muito cedo. Depois virou socialista, mas um socialista libertário, e sempre gostou das coisas que escrevia. Ele já foi em shows e cantou canções anarquistas dos anos 30 no microfone em alguns deles. É muito louco isso. 3
2 Saiba mais www.myspace.com/boomboomkid www.funpeople.com.ar 69
Por André Maleronka
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áfrica zonalestebrasil Rincón Sapiência
No final de março, Rincón Sapiência lançou seu primeiro single independente, “PromoTrampo Volume 1”, e o clipe da música “Elegância”. Mas o balanço já era um dos rap mais tocados em São Paulo antes de ganhar essas versões física e visual – como acontecera com “Jaçanã Picadilha”, do Relatos da Invasão. O MC de levada gatuna agora prepara o EP AudioVisual Elegante, a ser lançado ainda no primeiro semestre. Foi na praça onde tudo começou, perto da estação de metrô Artur Alvim, que conversamos com ele. 1
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uem produziu “Elegância”? Fui eu, no [programa] Fruity Loops. Tenho que estudar mais, mas com os VST (interface que integra plugins a editores de áudio) que tenho posso trabalhar MIDI – é a onda que eu tô, trabalhar bastante com a timbragem eletrônica. O Nefasto é um dos produtores que mais dominam esse tipo de programação – destacaria ele, o Parteum e o Hurakán. Foi o Nefasto quem me passou algumas regras de montar acorde, de escalas, as notas. Com a noção que peguei, pensei no crunk (fusão de hip-hop e electro). É um estilo bem cru, e a ênfase é mais na rima, na levada. Pensei que, com a bagagem que tinha, conseguiria criar. É muito feliz a ideia da letra. Qual foi a sua brisa? Na verdade muitos artistas encararam o crunk como se fosse a salvação pra ganhar dinheiro, pra invadir os lances. Só que, por mais que o bumbo grave seja um atrativo e o timbre eletrônico dê um caráter mais pop, a boa música você ouve na pista, no MP4, em qualquer momento. E o crunk tem uma série de quesitos pra você rimar – tem a interpretação, porque fica mais lento com os BPMs mais compassados, então pra rimar tem que pôr uma malandragem, uma entonação. O lance de elegância é um pano de fundo. Falo de repressão policial, questão racial, conflito de classe. Mas, em vez de agredir, faço com irreverência, com ironia, jogos de rimas, trocadilhos e terminações [de frase] legais. Consigo dar um papo que é sentimental meu mesmo – do que tenho, sendo da periferia, da vaidade – mas consigo dialogar com o cara de uma classe social mais alta e com o moleque da periferia. Elegância não é só estética, é postura também.
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Como você começou a cantar? Influência do meu irmão, que ouvia rap desde 92, 93. Eu ouvia muito, mas nunca tive a pretensão de cantar. Meu lance era tentar jogar bola. Peguei firme mesmo, de desempenhar a primeira letra, em 2000. Tava desencanando do [futebol de] várzea, vi meu irmão escrevendo, entrei na onda dele... Fiz uns versos, juntei com os versinhos que ele já tinha feito e desenrolei. Ia rolar um evento aqui. O palco tinha o formato de um morcego, então até hoje o lugar é conhecido como Praça do Morcegão. E lá se apresentou o Xis – na época ele era a minha maior influência. Por quê? Como eu era muito novo, não conseguia ter aquele conteúdo mais padrão da época e falar de umas cenas mais sinistras. E o Xis já conseguia desenrolar de um jeito que me atraía, sabe? Ele falava das paradas da quebrada, mas falava de outro jeito, e de outros assuntos. Tanto é que minha primeira música era bem uma versão COHAB 1 de “Us Mano e As Mina”. Porque ele era da COHAB 2, falava de lá, e a minha falava dessa praça, dos moleques do skate, da várzea daqui. Nessa fase teve uma febre das bandas de rock, tipo Charlie Brown, a galera tinha esse castelo. Meu lance era rap, mas me chamaram. Eu tinha 14 pra 15, acho. E rolou, tocamos no evento. Foi bacana porque compus, aprendi a cantar. No mesmo ano rolou um show na escola, outro no internato de Franco da Rocha. A banda acabou e fui começando a me amarrar em cantar em base eletrônica programada. Isso tudo me deu mó visão, vi que tinha liga. Você participou do disco do Kamau, depois da mixtape do Emicida. Como você conheceu eles? Nesse primeiro show na praça o Kamau cantou com o Consequência. Eu usava uma rima do Kamau pra apresentar o batera no show. Ele viu. O tempo passou e o Jamal fez um concurso de rap. O júri era o Kamau e mais dois. Não era nem Rincón ainda. Cheguei sem DJ, com o vulgo de MC Chato. Acabei surpreendendo, o Kamau passou o telefone dele. Começou essa onda de microfone aberto, das festas na Sala Real, mais pra frente [os shows de rap na Galeria] Olido... Encontrava todo mundo ali. Essa fase me ajudou, porque o Kamau me botava pra fazer show, me levava junto... Ele sempre teve show diferente, não era só cantar uma música, parar, cantar outra. Ele modulava o show, e essa parada faço até hoje – de desenhar meu show, editar, fazer um roteiro. Aprendi muito. A gente tem uma afinidade, por mais que não ande tão juntos como antes. Quem produziu a música “Transporte Público”? Também eu. É muito legal essa música. Me conta mais dela. Teve essa fase do underground, que surgiu como “o rap mais evoluído, que vai quebrar os 72
paradigmas”. Mas quebrou um clichê e se criaram outros. Vi que precisava amadurecer também, ser mais pé no chão e saber fazer música boa. Tive uma fase de fazer vários tipos de música, de rimar de jeitos e com temas totalmente diferentes. Fiquei chutando pra vários lados até que me encontrei. Saquei que tenho que fazer música na qual as pessoas possam se encontrar, independente do rap. Fazem muito rap falando de rap, e é muito louco, né? É um sentimento, um amor pela arte, uma militância. Mas nem todo mundo tá envolvido nesse lance. Então comecei a olhar mais pra mim, pro meu cotidiano, pra minha história e da minha família, e ver o que eu poderia fazer pra dialogar com todo mundo. Pra minha mãe ouvir, pro meu vizinho também, pro moleque do rap. Na periferia nós somos condicionados a reproduzir o que impõem pra gente. Consegui ter a visão de que tinha que sair daqui pra adquirir mais informação, pra me articular, saber e formar minha opinião. Você vê TV, ou vai pra rua e só tem uma quadra mais ou menos pra bater uma bola, aí toma uns enquadros e fica nesse ciclo. Então comecei a sair bastante, ocupar lugares de diversas classes sociais, e nesse ritmo eu tava sempre no metrô. Era de lei, tanto é que falo ali sutilmente “me passo por um idoso uma hora”, porque eu comprava até bilhete de idoso. É uma parada que até é da bagunça, mas enfim, era uma saída que encontrei pra poder me locomover, senão ia ficar aqui. A condução é muito cara e não funciona bem. Não condiz, a gente paga caro pra não ter um serviço bacana. “Transporte Público” foi a letra que eu pensei: “vou falar com todo mundo”.
cara que gosta de experimentar, tem discos de batucada, berimbau, e eu gosto disso. Então pro foco de sair dos padrões, calhou certinho. De onde veio esse seu outro vulgo, Manicongo? Primeiro, foi uma música do Nas. Admiro o trabalho dele, que consegue estar no mercado, em programas de TV, mas tem um rap bem politizado, com uma informação legal. Numa música ele fala a respeito dos afro-descendentes: aprendemos que somos descendentes de escravos, mas na verdade muito tempo atrás os pretos também eram reis, rainhas, curandeiros, magos, arquitetos, manjavam de astrologia. Essa parada ficou ofuscada, né? Pro Brasil, muitos afro-descendentes vieram de Angola ou do Congo, onde rolava o mercado dos escravos. Os reis do Congo eram chamados de Manicongo. A presença cultural desses pretos do Congo é muito forte em Minas, e minha avó veio de lá. Grande parte dos afro-descendentes acaba se condicionando a uma postura mais cabisbaixa, mas se você pensar “pô, sou filho de rei, sou descendente de um rei”, isso ergue sua autoestima. A escravidão foi só um momento, por causa das armas de fogo, da religião, de uma série de coisas que acabaram fazendo com que funcionasse a colonização e esse tipo de serviço. E o nome soa legal, né? É uma brecha pra eu falar isso pras pessoas, e se mistura com a prepotência do rap também. Me defino como um cara bom, um rei também, saca? Trabalhando pra criar o império Manicongo. 3
“Teve essa fase
do underground, que surgiu como ‘o rap mais evoluído, que vai quebrar os paradigmas’. Mas quebrou um clichê e se criaram outros. Vi que precisava amadurecer também, ser mais pé no chão e saber fazer música boa.”
O A.S.M.A. é seu DJ e dirigiu o clipe. Como vocês se conheceram? Foi quando surgiu esse novo formato de rap intitulado underground e comecei a querer me antenar dessa cena. Fiquei sabendo de uma festa no Centro, da [marca de skate] Aspect. Eu queria um DJ e não conhecia ninguém que ia tocar, mas colei e enquadrei o A.S.M.A. Eu tava aberto a trocar ideia com qualquer um, e ele ficou meio cabreiro, mas me passou o telefone. A gente ficou uns dois anos assim, só se falando por telefone. Até o dia em que nos trombamos, a gente se divertiu, porque ele tem muito disco de música brasileira e uns raps diferentes do que as pessoas costumam escutar. Fomos trocando figurinha. Ele é um
1Saiba mais myspace.com/rinconzl 73
mariAna abasolo fé no mistério
Por Marina Mantovanini
Aos 24 anos, a paulistana Mariana Abasolo estreou sua segunda exposição individual no Espaço +Soma. A jovem artista usa o desenho como principal plataforma artística, mas também gosta de passear pelas colagens. Simpatizante da pirataria tanto na arte como fora dela, ela acha fundamental acabar com a ideia de que cultura é artigo de luxo. Conheça mais sobre Mariana na entrevista que ela concedeu à +Soma. 1 Você me disse uma vez que basicamente faz as mesmas coisas desde pequena: estuda, desenha, cuida das plantas e caminha. Como anda sua vida agora? Segue a mesma coisa, acho que essa é minha dinâmica mesmo. Essas coisas, por mais simples que sejam, me deixam bem. É o que me traz calma e me dá aquela sensação de estar em um caminho que parece ser meu. Não que esse caminho realmente exista, mas só essa sensação já me ajuda a seguir fazendo as minhas coisas. E a arte, como ela entrou na sua vida? Para falar a verdade, eu não me sinto realmente envolvida com arte até hoje. Minha vida se encaminhou para isso, mas ela acontece muito longe disso tudo também. Agora, acho que meus primeiros contatos foram no colégio mesmo, aquela coisa de criança de desenhar o tempo inteiro. Dei sorte também de ter estudado em um colégio que me deu uma base muito boa disso tudo, não só de arte, mas de ser gente mesmo. Visitávamos tribo indígena, caverna, fábrica de sorvete, outros países, tudo. O que me fez ser, antes de alguém conectada à arte, interessada em viver e aprender as coisas. Acho que é mais por aí.
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O que te inspirava a desenhar, durante o colégio? Acho que o que me inspirava mesmo eram os videogames, desenhos da TV, embalagens de coisas e meu avô, que pintava. Lembro de uns meninos no colégio que desenhavam o Pateta igualzinho, e pra mim era impressionante! Isso me fazia ficar triste com a minha falta de habilidade e me fez deixar o desenho um pouco de lado (risos). Mas durou pouco tempo, eu comecei a gostar mais dos meus desenhos que do Pateta e ficou tudo bem. Você chegou a estudar em alguma escola de arte? Assim que sai do colégio me mudei para o Rio de Janeiro e fui estudar artes na UFRJ. De cara vi que dali não ia sair muita coisa, era muito bagunçado... e resolvi que ia ter que me virar pra conseguir aproveitar um pouco melhor. Aí decidi cursar o que seria meu “curso ideal”. Acabei aprendendo algumas das coisas que queria e conheci umas pessoas legais, mas em geral achei bem desestimulante. Não sei se o problema era a instituição, a infra-estrutura muito ruim, os professores desanimados, ou os alunos que já entram se levando a sério demais. Enfim, depois de quatro anos nessa, voltei pra São Paulo e agora faço uma outra faculdade, de Tecnologia e Mídias Digitais. O curso tem quase nada a ver com arte, mas me inspira muito mais.
Por quê? Passei o último ano inteiro desenhando menos e lendo muito mais. Começou com um trabalho acadêmico que eu precisava fazer. Resolvi falar sobre a necessidade dos mitos, símbolos mitológicos e principalmente do mistério pra que a nossa vida aconteça. Entrei em contato com muita coisa que eu precisava. O trabalho acabou, mas eu sigo com a pesquisa até hoje. Sabe aqueles assuntos que parecem te escolher? E agora, quando precisei parar e produzir para a exposição, percebi que o que fiz foi registrar, junto a outras coisas que me aconteceram, tudo isso que tinha estudado. Dois desenhos seus saíram na Gudi 02, que tem a proposta de virar referência em arte. Como rolou esse contato? A Gudi é mesmo muito legal! Eu já tinha trabalhado antes com o Dani Ueda, um dos responsáveis pela revista. Ano passado cheguei até a participar de uma exposição lá no cartel011, um espaço que ele tem com outros três amigos em São Paulo. Funcionou muito bem trabalhar com eles e desde então seguimos fazendo algumas coisas. A Gudi foi uma delas. Agora vai sair uma série de camisetas também.
“Nunca fui tímida, mas sempre gostei muito de ser invisível. Isso é fundamental pra eu me sentir à vontade, poder passar um pouco desapercebida. Acho até que é por isso que gosto tanto de morar em São Paulo.”
A exposição Fé no Mistério, que está no mezanino do Espaço +Soma, é sua primeira individual? Montei uma [individual] em Cataguases (MG), numa espécie de museu principal da cidade. Ficava no centro de uma praça, era enorme,lindo. Tive que ocupar umas sete salas, mas foi com trabalhos que eu já tinha feito antes. Agora é bem diferente, os trabalhos foram feitos para isso, ela foi tomando forma aos poucos na minha cabeça. E fazer uma individual nunca foi uma questão pra mim, não é uma coisa que eu sentisse vontade de fazer. Mas achei o processo de montagem muito prazeroso, me fez entender com mais facilidade a relação entre alguns trabalhos, e deles comigo também. Essa exposição já tem um significado muito especial pra mim.
Como você vê a evolução do seu trabalho desde que começou? Vejo muitas mudanças em espaços curtos de tempo, acho que porque o volume de trabalho é grande. Eu trabalho em casa, e é difícil ser muito disciplinada. Mas já percebi que sou disciplinada a longo prazo. Às vezes passo um mês meio folgada, sem fazer o que precisava, mas compenso depois. Quando paro pra ver o que fiz em um ano inteiro, é muita coisa. Sigo registrando o mesmo tipo de coisa, mas vejo muita diferença de técnica e atenção. Me preocupo muito mais com os detalhes, acho que tenho mais paciência também. Vejo uns desenhos de um ano atrás e me acho muito grosseirona (risos). Mas com certeza isso vai acontecer ano que vem com os desenhos de hoje. A mão também parece que depois que
afina não desafina mais. Antes eu desenhava todos os dias e, se parava uma semana, quando voltava já tava bem sem segurança, tudo meio torto, demorava uns dois dias pra voltar ao normal. Hoje posso passar um mês sem fazer nada, mas de primeira já tá tudo no lugar. No seu Flickr há alguns trabalhos de colagens. Qual a importância desse estilo pra você? Isso é engraçado, porque eu gosto muito de fazer colagem. É o que faço mais rápido e com mais facilidade. Coloco uma coisa em cima da outra e pronto, vai sempre de primeira. Tenho duas pastas lotadas de recortes que fui acumulando nos últimos sete anos. Uma parte só de pedaços de céu, outra plantas, crianças, e assim vai... Mas é aí que mora o maior mistério: eu raramente paro pra fazer [colagens], mesmo sabendo que costuma funciona bem. E pensando bem agora... deve ser de tanto trabalho que dá arrumar a pasta de volta (risos). De qualquer forma, tá nos meus planos me dedicar um pouco mais a isso. Por que muitas vezes os personagens dos seus desenhos estão com os rostos escondidos? Bom, aqui tem mais de uma questão. Esses desenhos são os que considero mais próximos de autorretratos que eu poderia fazer. Nunca fui tímida, mas sempre gostei muito de ser invisível. Não gostava que me percebessem muito. Quando fui fazer teste pra entrar no colégio, com uns 3 anos, fiz um desenho lindo – minha mãe que disse –, mas toda vez que a professora chegava perto de mim pra me ver desenhando eu parava e ficava só olhando pra cara dela. Só continuava se não tivesse ninguém me vendo. Me acharam maluca, mas deu certo e entrei no colégio! Isso é, e sempre vai ser, fundamental pra eu me sentir à vontade, poder passar um pouco desapercebida. Acho até que é por isso que gosto tanto de morar em São Paulo. E, depois de ter feito os primeiros desenhos assim, percebi que encontrei um jeito que gosto para retratar algumas coisas. Nunca me interessei por desenhos de observação crua mesmo, sempre preferi desenhar o que eu sentia de quem ou do que eu via, e dessa forma consegui me aproximar um pouco mais disso. 3
*A exposição Fé no Mistério está em cartaz no Espaço +Soma até 29 de maio.
1saiba mais flickr.com/photos/abasolo 76
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EugeneHutz
Por Matias Maxx . Fotos por Danny North
A Perpetuidade da Folia e da Sujeira (*)
“Estávamos na Kombi, voltando do Lapa/ Tipo matinê, veio o cara, perguntô/ E aê, cigano, onde é o after-party?” O sotaque esquisito, embalado por uma levada de funk carioca, é de Eugene Hutz, ucraniano de origem cigana e frontman da banda Gogol Bordello. O batidão logo dá espaço ao violino cigano de Mio Vacite e às guitarras distorcidas do próprio Eugene, numa confusão sonora transcontinental. Estou na Casa do Cigano, estúdio de Ricardo Vacite, filho de Mio, presidente da União Cigana do Brasil. Aqui, Eugene prepara um projeto experimental com músicos brasileiros, provisoriamente intitulado “Que Porra É Essa?”
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Alem de tocar com o Gogol desde 1999, Eugene dividiu com Elijah Wood o papel principal de Uma Vida Iluminada (2005) e estrelou Sujos e Sábios (2008), primeiro filme dirigido pela Madonna. Depois de trombar com a figura de bigodão e calça “pescando siri” em inúmeras situações nas ruas e baladas do Rio de Janeiro, resolvi entrevistá-lo. Marcamos um papo numa casa de sucos em Ipanema, antes de uma sessão na Casa do Cigano, onde me esforcei para fazer uma assessoria de gírias e sotaques na gravação do “Funk da Kombi”, que abre esta reportagem. 1 (*) Agradecimentos a Daniil Kharms
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uando fui pros Estados Unidos as pessoas perguntavam: ‘Cara, a imigração deve ter sido traumática, não?’ Sim, é traumática, mas ao mesmo tempo nós fomos criados pela União Soviética para sermos guerreiros. Qualquer coisa fora dali era moleza… É só aprender a língua e depois perguntar ‘onde é a festa?’”
Como você veio parar no Brasil? Já faz quase dois anos, na primeira vez eu vim para ver uma garota…
E como você chegou ao punk rock? Foi nos EUA ou ainda na Ucrânia? Quando eu saí da Ucrânia, [o gênero] já estava nas paradas de lá. Eu já tinha tido várias bandas, me envolvia em qualquer doideira que rolasse na cidade. É engraçado, tínhamos toda uma sociedade de pais e professores cuzões soviéticos ensinando aos filhos que rock’n’roll dava câncer, que era um produto da ideologia podre do capitalismo patrocinada pelo Pentágono. Enquanto todos brigavam por isso, eu discutia com meu pai sobre o que era mais legal: Dead Kennedys ou Emerson, Lake & Palmer. Mas brigávamos na mesma intensidade.
Brasileira? Não! Ela é da Romênia, é antropóloga e está estudando os ciganos do Brasil. Acabei não saindo do quarto durante um mês… Aí o meu herói de todos os tempos, Manu Chao, veio ao Brasil e me apresentou alguns músicos. Fomos pra Pernambuco no Carnaval, conheci várias pessoas criativas, como o pessoal do Mundo Livre. Me senti muito inspirado por toda essa atmosfera. Mas não foi uma grande surpresa, apenas uma prova, porque eu sempre curti música brasileira e quis visitar o país. Em Nova York, tenho vários amigos e fãs brasileiros que iam aos shows e às minhas festas dizendo: “Cara, quando você for ao Brasil vai querer ficar!” Fiquei feliz que acabou sendo tudo isso mesmo! Conheci um círculo maravilhoso de amigos aqui. Outra coisa que fez eu me sentir muito em casa foi ter conhecido ciganos brasileiros que me receberam muito bem, pessoas que falam a mesma língua que meus avôs, sabe? A maneira como eles preservam a cultura cigana faz eu me sentir perto das minhas raízes. A maioria dos brasileiros não conhece muito da cultura cigana, apenas estereótipos de nômades e cartomantes… Todo mundo tem esses estereótipos. É um mecanismo de proteção, acho. Hoje em dia, de maneira muito lenta, está começando a mudar. Outro dia fui com amigos fazer uma doação a uma favela de ciganos que fica depois de Niterói, as pessoas se chocam: “Tem um acampamento cigano lá? Nunca ouvi falar!” Fica só a uma hora de viagem daqui. Você só começou a viajar na cultura cigana depois que teve de fugir de Kiev por conta do acidente nuclear em Chernobyl, né? Na Ucrânia, o preconceito contra ciganos é muito maior do que aqui. Os ciganos daqui ainda conseguem ser dentistas, advogados, políticos. Na Europa isso é quase impossível, você só pode ser o que os ciganos fazem, existe um muro invisível. Então muitos ciganos pintam seus cabelos de loiro e falam pras pessoas que são turcos, ou qualquer outra coisa. Minha família é mestiça, eu mesmo não tenho muito cara de cigano, e minha família fez o possível pra esconder nosso lado cigano na Ucrânia. Esconderam tão bem que eu não sabia praticamente nada a respeito até fazer 17 anos. A cultura fez parte da nossa vida em família, mas nada de vestimentas ciganas, e só um pouquinho da nossa língua nativa estava presente. A música estava sempre presente também, mas só porque todos amam a música cigana. Qualquer manifestação mais óbvia era proibida. A parte não-cigana da família não gosta de ciganos, sabe? Eles só gostam hoje em dia porque leram no NY Times que gipsy punk é cool. Não comentam a respeito quando vou à Ucrânia, porque eu digo: “Você não gosta de ciganos? Pois é, você só tem esse computador por conta do punk gigano!” Foi um longo caminho até provar que eles estavam errados. Você chegou a viver em acampamentos ciganos? Sim, depois de Chernobyl. Vivi na Polônia, Áustria, Hungria e Itália. A Itália é o único país que compete com o Brasil em termos de desordem e caos. Acho que talvez eles até ganhem. Vocês estão próximos do título, mas acho que eles levam, hein? (risos) 80
E tem muito preconceito por lá? Sim! É terrível! Dos piores, na Itália e na Romênia. Mas os ciganos não vieram da Romênia? Vieram originalmente do Rajastão, há uns mil anos. O primeiro exôdo foi pra Turquia, pelo Oriente Médio, depois pra Marrocos, Espanha. Por isso o flamenco tem influência arábe. O segundo êxodo foi alguns séculos depois, da Turquia pra Romênia, e da Romênia pra a Rússia e toda a Europa. Há cerca de dois milhões de ciganos por lá hoje em dia, é o país com a maior população cigana no mundo. Mas lá também não é um país muito civilizado, portanto há muita discriminação. Você cresceu na Ucrânia Soviética, não? Nasci e fui criado até os 18 anos na Ucrânia, sob o comunismo total. Ninguém pensava que isso fosse mudar um dia! Era tipo “nascemos assim e vamos morrer assim”. Não havia nenhum sinal no ar de que viriam mudanças. Quando elas vieram, aconteceu tudo de maneira muito rápida, ninguém acreditou quando o Gorbachev chegou e dividiu o país... Ele fez a coisa certa, arrebentou o império! A Rússia sempre criticou o imperialismo, seria lindo se não fossem os maiores imperialistas do mundo. A Rússia é um império até hoje em dia. Da Sibéria até a Polônia, todas as nacionalidades dessa área foram forçadas a falar russo nos últimos 200 anos. Agora que a URSS acabou, todo mundo está voltando aos poucos pras suas raízes. Se é que eles lembram quais são essas raízes. Como você conheceu o rock num país soviético? Não era proibido? Era proibido, mas sempre tinha alguém que sabia como conseguir coisas proibidas. Meu pai foi provavelmente um dos primeiros caras a ter uma guitarra elétrica na URSS. Ele era músico e tinha dom para idiomas, então conseguiu entender a cultura rock’n’roll ouvindo rádios estrangeiras. Ele tinha uma banda e pegava todas as mulheres, não tinha nem competição.
E existia repressão contra a cena? Sim, oficialmente nada era permitido. Na maioria das vezes, os shows eram no apartamento de alguém. Quando o Gorbachev chegou ao poder, a coisa começou a ficar mais leve, e aí pudemos tocar em casas de show. Mas elas eram tão zoadas que construíamos os palcos do zero na véspera dos shows. Minha escola foi isso, fazer tudo eu mesmo. Quando fui pros Estados Unidos as pessoas perguntavam: “Cara, a imigração deve ter sido traumática, não?” Sim, é traumática, mas ao mesmo tempo nós fomos criados pela União Soviética para sermos guerreiros. Qualquer coisa fora dali era moleza… É só aprender a língua e depois perguntar “onde é a festa?” (risos) Como se formou o Gogol? Todos os integrantes são imigrantes? Sim, mas foi como uma bola de neve. Quando cheguei a Nova York, não conhecia ninguém e comecei a tocar no metrô. Fiz isso por uns dois meses, tocava guitarra e cantava músicas do Johnny Cash e vários rockabillies. Aí, no metrô, conheci um cara que tocava acordeon e viramos um dueto, depois um trio. Mais ou menos um ano depois chamamos um baterista e gravamos nosso primeiro álbum, que é praticamente acústico. Demoramos uns quatro anos pra ter um baixista. Éramos uma banda com influências de reggae sem baixista! Bem estilo “Que porra é essa?” (risos) Nosso quinto álbum está saindo agora, o nome é Transcontinental Hustlers. Quando eu pegar o CD master, vou jogar na Lagoa Rodrigo de Freitas, porque todas as letras foram escritas lá. Eu voltava das turnês com a cabeça transbordando de merda, que nem um banheiro público depois do Carnaval, saía de casa todas as manhãs, caminhava até a Lagoa e escrevia por horas. A maior inspiração veio daqui, com toda essa solidariedade, esse espírito, um cara do Leste Europeu na América Latina. E Hollywood, como você chegou lá? Ah, para. Eu não sou ator de verdade! Não tenho opinião a respeito. As pessoas falam pra eu me mudar pra LA e investir na carreira, mas isso não tem nada a ver comigo. A cada dois ou três anos alguém me procura pra fazer filme e, se a companhia for boa, eu gostar do roteiro e tiver tempo, eu faço. Mas meu amor é a música, nada é igual a isso. Existe uma lavagem cerebral que faz as pessoas acreditarem que, se você está na telona, é Deus. Pessoas inteligentes sabem que é mais que isso. Me diverti muito nos meus filmes porque estava em boa companhia e os papéis eram bons. Há um mês, na Ucrânia, conheci o Kusturica. Nesse caso, eu digo sim a qualquer momento. Deve rolar algo no futuro. E a Madonna? Como rolou essa história do filme? Ela me ligou… Pegou meu número com um amigo. 81
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empre tinha alguém que sabia como conseguir coisas proibidas. Meu pai foi provavelmente um dos primeiros caras a ter uma guitarra elétrica na URSS. Ele era músico e tinha dom para idiomas, então conseguiu entender a cultura rock’n’roll ouvindo rádios estrangeiras.”
Hoje você vai a uma loja de música e tem uma prateleira inteira de rock cigano. Antigamente eram uns cinco CDs. O mesmo acontece com o funk lá fora, ainda está brigando por espaço! Ainda precisa de um par de artistas de peso pra elevá-lo a outro nível. Provavelmente Sany Pitbull é esse cara. Acho que deu, né? Porra… Não estava esperando que você fizesse o que os jornalistas malas fazem, tipo me perguntar sobre a Madonna… Sou amigo dela há três anos… E sou amigo do Manu Chao há dez! Ele é meu maior herói! Meu também! Amizade com ele pra mim é… Muito mais importante que com a Madonna… É engraçado termos falado dez minutos sobre ela e trinta segundos sobre Manu. Fala do Manu então, porra! Como vocês se conheceram? Ele te ligou também? Não! Foi muito engraçado… Quando comecei o Gogol em NY… Eu vi um show do Manu no SummerStage do Central Park em 2001. Exato! Eu estava lá! Eu abri esse show! Tipo, “Alô, aqui é a Madonna”? Ela deixou primeiro umas cinco mensagens na caixa postal antes de eu acordar. Não fiquei muito surpreso, porque muita pessoas vinham me dizer que ela era fã da banda. Uma coisa legal dela é que, se ela é fã, é fã de verdade! Ela sabe ser fã! Eu também sou assim. Então ela me ligou e disse: “Cara, quero fazer algo com você. Não sei o quê, mas preciso fazer!” E eu ri, não tinha nenhuma ideia do que fazer, faltavam duas semanas pro início de uma turnê. Acabei sugerindo um curta. Aí acabamos fazendo um filme inteiro. Foi meio assim. E como foi dar rolê com ela no Carnaval do Rio? Milhões de seguranças? Não, cara, só às vezes. Ela é bem legal, cara! Vários caras do hip-hop e outros tipos de música batem ela em termos de entourage, muitos caras não saem de casa sem umas 40 pessoas atrás. Com a Madonna foi bem normal. Uma das minhas coisas preferidas no Rio é ir aos ensaios das escolas de samba. Mas fui a um desfile pela primeira vez com ela… E, vou te dizer, prefiro os ensaios. E baile funk? Você costuma ir? Eu já fui… Precisava ir, porque fui um dos primeiros DJs a tocar funk carioca em NY, na época em que era bem tosco, parecendo que as pessoas reinventaram a música do nada. Curto esses fenômenos porque é sempre interessante ver algo sair do nada e chegar ao topo. Infelizmente existem vários aspectos negativos no baile funk, e poucos funks com mensagens sociais. Mas ainda aprecio esse fenômeno. Acho que, se os artistas não desistirem e continuarem progredindo, pode se transformar num gênero muito legal. O Gogol Bordello foi formado com gente de vários países, todos obcecados pela música cigana. Tínhamos um movimento e fomos bem-sucedidos em transformar isso num gênero – basicamente o mesmo processo do reggae nos anos 70, quando era apenas uma coisa exótica. tipo o calypso, e graças a Marley e outros se transformou num fenômeno mundial de verdade. 82
Puta que pariu! Era você? Me lembro que a assessoria de imprensa disse que “uns doidões do Leste Europeu” iam abrir o show! Foi nesse dia que o Gogol Bordello virou uma banda de rock de verdade! Também foi nesse dia que um monte de latinos se tornaram nossos fãs. Mano Negra e The Clash sempre foram minhas bandas favoritas. Assim que saiu, ouvi por acaso o primeiro álbum solo do Manu, então o meu amigo William, que faz a curadoria no SummerStage e é ucraniano, me liga dizendo: “Preciso de uma sugestão de algo maneiro de world music! Nada de caras do Oriente Médio tocando cítara, quero algo com pegada rock!” Aí eu falei pra ele do Manu, disse: “Compra o disco, leva pra casa e liga pro cara”. E ele fechou o show! Aí falei pra ele: “Eu te dei essa ideia, agora você tem que me colocar pra abrir o show!” (risos). Ele falou que já tinham uma banda espanhola no pacote, e eu disse: “Balela! Por favor, manda minha demo pro Manu!”. E ele mandou. O Manu nunca tinha ouvido falar do Gogol, mas ouviu, curtiu e topou a abertura. Conheci ele na passagem de som, depois tocamos juntos de novo na Europa. Que doideira! Eu também estava no backstage, e depois fui a uma festa. No Bulgarian Bar! Depois que fechou ficamos tocando na calçada com o pessoal da Radio Bemba numa jam interminável. Eles fazem isso o tempo todo. Fiesta? Onde? Aqui! Fiquei animadão: “Esses caras são que nem ciganos!” Manu sempre foi uma grande inspiração e um dos primeiros a me falar sobre o Rio, então eu vim conferir e já estou quase há dois anos nessa. 3
2Saiba mais www.gogolbordello.com 83
Blitz The Ambassador foi uma das grandes novidades no hip-hop em 2009. Natural de Gana, na África, o rapper mudouse para os Estados Unidos para concluir seus estudos e por não ver futuro na carreira musical em seu país. Com uma proposta sonora bem diferente – que unifica, no real sentido da palavra, o rap com as raízes africanas –, o rapper formou a banda The Embassy Ensemble (que conta com a colaboração de integrantes do Hypnotic Brass Ensemble) e lançou seu elogiado disco de estreia Stereotype, no meio do ano passado. Seu autodefinido “afrotronic hop”, que une afro-beat, eletrônica e rap, agradou de cara, e o Embaixador está com a agenda cheia de shows. O MC ganense já abriu turnês de nomes como Nas e Big Daddy Kane. Em conversa com a +SOMA, ele falou sobre suas raízes, sua música, Fela Kuti, a decadência da indústria fonográfica e muito mais. 1
blitz thE ambassadOr boombox suicida
Por Daniel Tamenpi . Fotos divulgação
Você nasceu e foi criado em Gana, na África. Como foi sua aproximação com a música, e quando o hiphop passou a fazer parte de sua vida? Ter crescido em Gana influencia tudo que eu faço – definitivamente influenciou meu estilo musical por completo. Meu estilo de som dentro do hip-hop é um reflexo direto do highlife e do afro-beat, que foram as músicas da minha infância. Na África nós temos uma relação muito intensa e poderosa com a música. Você já viu um show do Fela [Kuti]? Mas eu também peguei muita influência do resto do mundo. Eu adoro música em geral, então dá para ouvir jazz, funk, música latina e blues no meu disco. Fui apresentado ao hip-hop pelo meu irmão mais velho quando eu era bem novo. Entre os primeiros artistas que ouvi estavam Public Enemy, Bid Daddy Kane e Rakim. Eu li que você tem como principal influência Fela Kuti e Hugh Masekela. Fale sobre a importância que esses músicos têm para a África e para a música africana. Eles foram os primeiros a abrirem a África para o mundo, em termos de música africana de raiz. Foram os primeiros a exportar esse som. Sem eles eu não poderia fazer o que faço. Eles pegaram sons tradicionais e os tornaram internacionais. Agora estou tentando pegar esses mesmos sons e incluí-los no hip-hop.
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O que levou você a se mudar para os Estados Unidos? Eu me mudei para os EUA para cursar uma Universidade e seguir minha carreira musical. Existem muitas oportunidades nos Estados Unidos e em Nova York, em particular. O seu som tem o diferencial de incluir a banda The Embassy Ensemble, que dá grande ênfase aos metais, criando uma sonoridade única dentro do hip-hop e fugindo de comparações com outras bandas de rap. Você já tinha esse formato na cabeça? Sim, eu sabia que nenhuma banda de hiphop enfatizava os metais. Por ser de Gana, eu considerei necessário incluir isso no meu som. Se você ouvir o Embassy Ensemble, reconhecerá a banda imediatamente, exatamente pelo naipe de metais.
O hip-hop comercial não é feito para ter mensagem que não gire em torno do consumismo. Mas sinto que as pessoas comuns que conheço lidam com uma gama bem maior de questões, e é para essas pessoas que eu falo.
Como está sendo a aceitação da sua música nos Estados Unidos? Temos sido muito bem aceitos. Chegamos ao Top 10 no ranking americano do iTunes hip-hop. Estamos fazendo turnês constantes pelo país e conquistando novos fãs a cada dia. Como você define “afrotronic-hop”? Estava esperando alguém me perguntar isso. Afrotronic-hop é afro-beat, eletrônico e hiphop, tudo junto. A minha música é isso.
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A capa de Stereotype é ótima, parece uma campanha contra as rádios. Como você teve essa ideia? Antes de começar a escrever as músicas eu pensei na imagem de um homem com cabeça de boombox cometendo suicídio. Mais tarde, nós demos vida a esse personagem e o chamamos de St@tic Stereohead. Foi a minha metáfora para a indústria musical. Essa imagem influenciou o meu som também. Depois disso, todas as músicas que eu fazia tinham que ser tão fortes quanto essa imagem. A parte mais longa do processo foi fazer o álbum. Não quis que fosse apenas uma compilação de músicas, quis criar um disco verdadeiro e consistente, que levasse o ouvinte a lugares diferentes. Como qualquer grande história, eu queria inspirar, desafiar e entusiasmar o ouvinte. Tudo de uma vez só. Então gravei várias músicas. Muitas delas não entraram no álbum simplesmente porque não se encaixaram na vibe, no sentimento de uma determinada sessão, ou porque eram muito semelhantes em estilo a alguma outra música que eu já tinha feito. Alguns desses sons terminaram fazendo parte da mixtape “On My Mistape Sh*t”. Por isso a mixtape acabou ficando tão boa. Eram faixas feitas para entrar em um disco completo. Confesso que conheci sua música através de downloads em blogs. O que você pensa dessa situação dos downloads ilegais de sua obra? Música é feita para ser ouvida. Até esse ponto, a música é gratuita. O que não é grátis são elementos do show, que não podem ser transformados em marca comercial. Um dia as pessoas que fazem download da minha música irão a um show ou comprarão uma camiseta. Acho que é uma excelente forma das pessoas conhecerem meu trabalho. Por isso, eu me concentro no visual e no show ao vivo. É importante ter alguma coisa que as pessoas não possam baixar na internet. A experiência ao vivo é única, e gostaria muito de fazer uma turnê pelo Brasil em breve. Suas letras têm um teor social e político muito forte, fato raro no hip-hop atual. Qual a importância de temáticas sérias para o hip-hop? O hip-hop comercial não é feito para ter mensagem que não gire em torno do consumismo. Mas sinto que as pessoas comuns que conheço lidam com uma gama bem maior de questões, e é para essas pessoas que eu falo. Não tenho problema nenhum com músicas que são puramente divertidas, mas acho que é preciso existir outro pólo, uma plataforma para pessoas que querem falar sobre assuntos mais sérios.
Você é um artista independente e faz questão de dizer isso. Seu disco foi lançado pelo seu próprio selo? Como você vê o futuro das majors em uma época de decadência da indústria fonográfica? Sim, eu lancei o álbum pelo meu selo, Embassy MVMT. Acho que a indústria musical está mudando rapidamente. Os grandes selos estão sofrendo uma verdadeira crise. A indústria musical da forma que conhecemos está morrendo, se ainda não morreu. Músicos independentes podem fazer música mais rápido e sem amarras. Eu gosto da liberdade de ser independente. A internet muda tão depressa e é tão flexível e veloz... Agora é possível chegar diretamente até os fãs. Como você enxerga o hip-hop atual nos Estados Unidos e também no mundo? O hip-hop ao redor do mundo é mais usado para influenciar mudanças políticas. Nos Estados Unidos é algo mais recreativo. Não existem tantos artistas ligados a movimentos. Mas há algo a ser dito para o mercado que os artistas comerciais têm dado conta de criar. Existe, claramente, um amplo mercado nos Estados Unidos, então isso não pode ser ignorado. Eu acho que o hip-hop é o que fazemos dele. Gostaria que você indicasse bons nomes da música africana atual. Reggie Rockstone, K’naan, Wale, Baja And The Drye Eye Crew, e Mensa. 3
2saiba mais myspace.com/blitztheambassador 87
Diego
de Moraes
“ANJO EXTERMINADO” Por Higor Coutinho . Foto DIVULGAÇÃO
Pelos versos de Camões Pelo traço de Robert Crumb Pra quem já leu Grande Sertão Pra Bob Marley e pra quem quer que fume Pelas barbas do profeta Cada um que trace sua meta Prestes a lançar seu primeiro disco, Parte de Nós, Diego de Moraes ainda atropela as palavras para dissertar sobre sua curta carreira, num discurso tão urgente quanto articulado. A seu lado, numa das mesas do bar recentemente adotado pela nova boemia cultural de Goiânia, está Gabiras, percussionista d’O Sindicato – sua banda de apoio, que pontua a verborragia frenética do colega com fôlegos explicativos que escapam calmamente entre bafejos de fumaça e goles de cerveja. 1
Diego de Moraes nasceu em Cuiabá, mas a cidade que acolheu as primeiras manifestações de sua inquietude musical foi Senador Canedo, distante cerca de 20 km da capital de Goiás. Começou tocando bateria em bandas de orientação punk-rock, cujos nomes, The Cretinos e Leigos, já sugeriam os rudimentos da futura mordacidade lírica. Depois de cumprir os protocolos de principiante (o que, é claro, incluiu covers de Nirvana e Ramones), Diego descobriu que sua ambição artística ia muito além, e decidiu assumi-la sozinho e em cadência nacional. Os primeiros shows em Goiânia foram acompanhados tão somente por um violão e, vez ou outra, pela irmã (então com 13 anos) na bateria. E foi assim, numa espécie de versão cínica, acústica e bronzeada do White Stripes, que Diego chamou a atenção da cidade para sua música aflita, ao mesmo tempo conectada à iconoclastia pré-punk dos Stooges e à tradição torta dos gênios malditos da MPB: sem guitarra nem distorção, em 2006 Diego vence o Tacabocanocd, festival competitivo majoritariamente de rock, e leva como prêmio a gravação de seu primeiro EP. Ainda em 2006, foi destaque de festivais de música popular, estabelecendo uma tímida e ainda involuntária ponte entre dois mundos vizinhos, mas praticamente isolados um do outro. Nesse ínterim, talvez vítima da simplificação preguiçosa que enxerga folk em qualquer violão metido no rock, parte da imprensa se apressou em atribuir a etiqueta às canções do então bardo punk, o que rendeu uma resposta tão lacônica e precisa quanto haviam sido rasas as primeiras análises de sua música:
“Não é folk, é fuck you!”
Diego de Moraes (esq.) e o percussionista Gabriel Cruz, em Goiânia
Em 2007, Diego lançou Reticências..., o EP-prêmio, seu primeiro registro com guitarra, baixo e bateria. O disco escancarou a provocação, ironizando a preferência do rock local pelo idioma dos Beatles (“Vou começar pedindo desculpa / Peço
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desculpa, não é sua culpa / Sei que não é a preferência de vocês / Estou aqui com a minha deficiência outra vez / Mas infelizmente eu ainda não sei falar inglês/ I don’t know / Então o jeito vai ser cantar assim mesmo em português / Sim senhor!”). De lá para cá, Diego de Moraes foi reclassificado e, vestido de neotropicalista, percorreu o circuito de festivais independentes, ganhando lastro fora de casa com apresentações cuja intensidade e franqueza cênica parecem ter a mesma importância do repertório. Sentado à mesa do boteco, atrás de um copo de cerveja pela metade, sua fala parece custar a acompanhar seu raciocínio, que, dando voltas atávicas na própria biografia, revela uma personalidade bem mais complexa do que sua figura franzina sugere. Quando pergunto qual a importância da política em sua obra, Diego mistura Maiakovski com Roberto de Campos para explicar que “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, para em seguida ironizar até as próprias convicções, citando o economista conservador: “O esquerdista é um
capitalista canhoto!”
Mas apesar da auto-ironia que disfarça a homilia esquerdista com um véu de sarcasmo, nesse terreno arenoso Diego escapou por pouco ao clichê. No começo de sua carreira não era difícil enxergar certa carga ideológica, traduzida em lembretes insistentes de sua condição de proletário (nessa época, o músico amargava oito horas diárias num call-center), e de que, antes de ser aclamado como revelação local, não tinha dinheiro sequer para pagar os ingressos dos festivais que logo passaria a frequentar como atração, em horário nobre. Porém, aparentemente ainda envolvido pelo mesmo ideário, Diego soube resistir ao discurso pronto e às palavras de ordem, substituindo slogans vencidos por uma visão tão desconfiada quanto crítica, desprezando sectarismos e renovando suas convicções políticas num filtro tão cáustico como incomodado. Também pudera. Depois de se associar ao que, em Goiânia, foi batizado de hard-rock-Setor-Bueno (em referência à enormidade de bandas de rock nas regiões mais nobres da capital), um novo horizonte se abriu e aparentemente convenceu o rapaz de que as coisas nunca haviam sido tão pretas ou brancas: a predominância de tons de cinza provou que, pelo menos na música, seu talento valia muito mais que seu salário. E ao descobrir que seu ímpeto artístico ultrapassava a parceria com O Sindicato, estabelecida logo depois do festival Tacabocanocd, Diego desdobrou-se em uma série de projetos paralelos, cuja única semelhança era sua declarada efemeridade: regeu a meteórica carreira do Filhos de Maria, enfrentou narizes torcidos como metade da dupla caipira Valdi & Redson e agora (ou pelo menos até o fechamento da edição) desliza uma espécie de psicodelia agreste com o Pó de Ser, endereçando alusões abstratas ao clássico Paebirú, de Zé Ramalho e Lula Cortês. Mas a despeito das atividades “extracurriculares”, Diego nunca se desviou do foco. E hoje, depois de pedir mais uma cerveja ao garçom, segue falando de seu primeiro disco com a sofreguidão de quem aguarda, de charuto na mão, notícias do nascimento de um filho. Já admite certa inclinação folk (ainda que a diluição dos elementos não permita uma identificação tão objetiva), e aproveita a deixa para estabelecer conexões entre o blues e o country e a tradição sertaneja brasileira, manifestada nos ritmos nordestinos e nas modas de viola: “Imagina que loucura se o Tião
Carreiro tivesse se encontrado com o Johnny Cash!” Ao mesmo tempo, se distancia da estética punk
óbvia, relegando essa função à postura e ao discurso: em “Animal”, que conta com participação do tecladista Astronauta Pinguim, chega a citar textualmente “I Wanna Be Your Dog”, dos Stooges. E apesar de tudo, Diego e Gabiras também recusam o selo MPB, descartando a chancela em nome da liberdade estilística, e para manter uma distância segura de uma turma que parece perdida no tempo: “O lance é que o pessoal da MPB em Goiânia quer fazer... MPB. Mas isso aí acaba soando como o pior disco do Ivan Lins nos anos 80. Pegam os piores timbres, tentam fazer uma coisa altamente formalizada... E nunca dá certo! (risos)” E enquanto ouve que parte do público insiste em associá-lo a Raul Seixas, e a imprensa persevera em lhe atribuir influências tropicalistas, Diego de Moraes seca o último gole de cerveja no copo americano antes de cravar, encerrando o papo: “Dá pra dizer que as minhas
fontes de inspiração de hoje, são Walter Franco, The Who e Bob Dylan. Mas como diz uma música do disco: ‘Eu me enganei quando pensei que eu era eu / Eu sou parte de nós!’” 3 1 saiba mais myspace.com/diegodemoraes
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+quem soma
S
. baixo ribeiro . Por Mateus Potumati
e você é razoavelmente interessado em arte urbana brasileira, já deve ter trombado com alguma realização de Baixo Ribeiro. No comando da Choque Cultural, ao lado da esposa Mariana Martins e do sócio Eduardo Saretta, ele exerceu papel fundamental no crescimento do gênero no país nesta década. Aberta ao público oficialmente em novembro de 2004 no bairro de Pinheiros, em São Paulo, a Choque pegou carona no boom de pioneiros nacionais como Osgemeos, Speto e Lost Art para criar, mais do que uma galeria/agência de arte, um projeto educativo. “A espinha dorsal da Choque é a educação”, ele explica, rodeado de quadros em uma sala anexa no andar superior da galeria. “Percebi uma energia nova muito forte de ideia, dinâmica, pensamento, como lidar com a arte. Mas também existia uma dúvida grande de como se colocar profissionalmente em relação a um mercado que tem uma dinâmica própria, e também uma série de vícios.” Partindo dessa necessidade, a missão educativa da Choque
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passou a atuar em toda a cadeia de produção: dos profissionais técnicos (gráficas, tipografia, oficinas de gravuras, metal, silk etc.) ao jovem colecionador, passando pelos artistas representados – uma lista extensa, que inclui nomes como Stephan Doitschnoff, Titi Freak, MZK, Speto, Daniel Melim e Pjota. “A gente sempre fez questão de colocar em contato artistas velhos, novos, famosos, desconhecidos, estrangeiros, brasileiros.” O trabalho alcança ainda grupos de crianças carentes na UNIBES, no Canindé. A vocação para o intercâmbio criou um estilo de curadoria próprio, que se tornou uma das marcas registradas da Choque e atraiu a atenção do MASP, que convidou o trio para curar a mega-exposição “De Dentro Para Fora/ De Fora Para Dentro”, no final do ano passado. A estreia histórica da arte urbana no museu atraiu mais de 135 mil pessoas, número expressivo em qualquer lugar do mundo. “O nome Choque Cultural é autoexplicativo”, Baixo esclarece. “A
gente quer promover choques – não no sentido da violência, mas da diversidade, de promover encontros. Tudo pode estar no mesmo lugar.” O primeiro grande projeto nessa linha foi a “troca de galerias”, feita com a também paulistana Fortes Villaça em 2006. No ano seguinte, foi a vez da emblemática Jonathan LeVine entrar no jogo. O pontapé inicial da parceria com os estadunidenses foi a exposição “Ruas de São Paulo”, que levou oito artistas brasileiros a Nova York. “Queríamos criar uma plataforma para intercâmbio. Seria bom pros artistas americanos, pros brasileiros, pro público. Enfim, todo mundo ganharia.” O capítulo mais recente dessa história foi a exposição conjunta de Gary Baseman e Josh SHAG Agle na Choque, no começo do ano. “A gente conseguiu abrir uma porta que vai e volta sem parar, e que reflete em outros projetos”, Baixo avalia, apontando que até artistas sem relação com a galeria têm se beneficiado. Retomando o tom educativo, ele complementa: “A grande escola do artista é a viagem, ver sua cultura através de outros olhos, ter essa
distância brechtiana, de conseguir se enxergar estando em outro lugar.” Na condição de galeria, porém, é impossível viver sem fazer dinheiro, e a Choque aprendeu a vender. Seus clientes hoje incluem não só toda uma nova geração de colecionadores, mas compradores do circuito de arte tradicional. Um trunfo, mais uma vez, da visão educativa. “Por que nós vendemos obras? Porque tem que ser vida real. É muito importante que haja venda, que a gente consiga criar um novo colecionismo – gente que vem e compra um original de um artista no auge, mas que também compra um sticker de 1 real. Queremos tirar o estigma de que coleção de arte é coisa de gente rica. A parte comercial, de comprar, colecionar, é só um detalhe dentro do que a arte pode fazer pelas pessoas.” Quando fala em mudar vidas, Baixo Ribeiro cita várias vezes o nome do artista cearense Aldemir Martins, pai de Mariana. Ele deixa claro o quanto o contato com o sogro, morto em 2006, foi decisivo para sua visão conceitual das artes. “O Aldemir foi
muito importante pra mim e pra arte brasileira em geral. É um cara pra ser estudado, resgatado, o trabalho dele tem uma profundidade plástica e de influências que vai muito além da estética: enlgoba a visão profissional e o conhecimento da importância social do artista.” Segundo Baixo, o estilo de Aldemir o preparou para atravessar o boom
“Queremos tirar o estigma de que coleção de arte é coisa de gente rica. A parte comercial é só um detalhe dentro do que a arte pode fazer pelas pessoas.” mercadológico dos anos 1980/90 e ingressar em um novo modelo. “Pra gente, essa mudança profunda, da volta da arte pras pessoas, da democratização do acesso, da valorização da sensibilidade artística, é uma coisa nova, um momento de transformação. Mas a revalorização disso não nos surpreende, porque a gente já viu o lado anterior.”
O choque educativo de Baixo Ribeiro segue firme em 2010, com projetos de alcance cada vez mais amplo – alguns deles, garante, só sairão do papel daqui a quatro anos. “Nosso projeto é de longo termo. É difícil fazer porque você tá longe da grana, depende mais de parcerias, associações. Mas eu tenho orgulho do trabalho que faço e da nossa equipe. A gente tá nos primeiros degraus de um projeto que vai muito mais longe. Sei que estamos fazendo um negócio legal.” Em uma cidade massacrada pelo imediatismo como São Paulo, é inevitável dar um sorriso otimista ao ouvir algo assim.
2saiba mais choquecultural.com.br 91
Coisas que Gostamos de Guardar
Por Mentalozzz “radiola com pitch acelerado”, com assistência técnica do Dr. Jacob Pinheiro Goldberg
O entrevistado desta edição é advogado e cleptomaníaco nas horas vagas. Não vamos identificálo, porque algum engraçadinho pode levar isso a sério – usaremos um nome falso (que tal “Sílvio”?). Aproveitando-se desse amigo com uma queda por lembrancinhas de bar, a SELETA finalmente fala sobre um tema controverso no mundo do colecionismo, que conta com adeptos do porte do rabino Henry Sobel e da gostosinha da Winona Ryder. Sílvio gosta de guardar souvenires pequenos – e, claro, fáceis de levar – como copos, cardápios, bolachas de suporte e abridores de garrafa, mas sua coleção também conta com uma cadeira. 1
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ara abordar um assunto tão delicado, fomos buscar a ajuda profissional do doutor em psicologia Jacob Pinheiro Goldberg, que faz parte da nossa seleta de pessoas. Com criatividade e lucidez, ele emite sempre opiniões de alta qualidade, seja com um insight novo, seja resvalando no óbvio. Um cara bem post-rock.
Algum ritual, mandinga? Sim, quando sou descoberto e tenho que pagar pelo copo, coloco ele no bolso do paletó e viro uma cambalhota na saída do bar. Se o copo quebrar, não era mesmo para ser meu.
Quantos objetos gentilmente subtraídos você tem em casa? Em casa, nenhum. Deixo tudo na minha mãe, se der B.O. é problema dela (risos). Lá deve ter por volta de 120 objetos, porque dou muitos de presente. É só a pessoa pedir que eu dou. Na verdade tenho pavor que alguém roube, por isso prefiro dar logo (risos).
Opinião do Dr. Jacob Pinheiro Goldberg:
Que critério você usa para formar sua coleção? O critério principal é a vacilada de garçom. Deu bobeira, eu tenho que pegar, mesmo que seja algo repetido. E como você começou? Não lembro direito, porque na época pré-bafômetro eu caprichava na diversão e tinha muito apagão seguido de amnésia. As coisas iam aparecendo no meu bolso, na bolsa da minha esposa, nos armários de casa. Lembro do susto que levei quando me deparei com a cadeira do bar dentro do quarto de dormir. Pensei: “como eu fiz isso?”. (risos) 92
Já rodou? Sim, algumas vezes. Mas, como normalmente os garçons fazem uma abordagem desastrosa, revistando de forma invasiva e truculenta, eu, como bom advogado, mostro a eles que a reação exagerada e desproporcional faz com que eles também cometam erros jurídicos. Assim, o melhor é entrarmos em acordo ali mesmo. Aí eu pago os copos para ninguém ter dor de cabeça na delegacia, já basta a da ressaca da manhã seguinte.
“O colecionismo pode ter um caráter mórbido patológico quando se torna compulsivo. No limite, quando o indivíduo perde a capacidade de se controlar, pode ser levado à cleptomania. Assim, diante do objeto que ambiciona, ele ultrapassa a regra da propriedade e se apropria do objeto sem levar em conta a noção e o conceito da posse alheia. O colecionador compulsivo é infantilizado, ao contrário do colecionador maduro, que o faz por satisfação estética.”
1saiba mais jacobpinheirogoldberg.com.br 93
nik neves
4nikilustrador.com
+quadrinhos
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4 revistasamba.blogspot.com
4rafaelsica.zip.net
gabriel goes
rafael sica
Curtis Mayfield
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Pedro Pinhel faz o Radiola Urbana e
o blog Original Pinheiros Style. A partir desta edição, escreverá sobre dois discos aparentados entre si nesta coluna.
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ObraSPrimas
Por Pedro Pinhel
curtis versus kurtis
Ícones de estágios diferentes da evolução da música negra norte-americana, Curtis Mayfield e Kurtis Blow têm muitos pontos em comum em sua trajetória. Se não foram os precurssores da temática social como discurso predominante em seus respectivos estilos, certamente foram pioneiros – Mayfield em 1970, quando pouquíssimos artistas, como Sam Cooke, o tinham feito; e Blow em 1980, quando nem sequer a trupe de Grandmaster Flash havia se arriscado em terreno tão fértil (a clássica “The Message” seria lançada apenas dois anos depois, em 1982). Curtis Mayfield, intérprete, compositor e cantor incomparável, se tornou grande demais para seu ex-grupo vocal, The Impressions, e partiu para sua fantástica carreira solo com o hoje célebre Curtis, responsável por 50% desta coluna. Kurtis Blow, rapper da fase disco do gênero, surgiu como um artista enérgico, criativo e versátil. Suas rimas, sempre esgoeladas e sobrepostas a bases das discotecas e do break, misturavam temas sempre variados, como as festas, a diversão, as ruas, a pobreza e a dificuldade da vida no gueto em 1980. 1
2Curtis (1970)
Mais conhecido pela espetacular trilha para o filme Superfly, de 1972, o soulman Curtis Mayfield é uma das figuras mais inventivas da música negra norte-americana. Tão fundamental para o gênero soul da virada da década quanto seus contemporâneos Marvin Gaye e Stevie Wonder, o ex-integrante do grupo The Impressions rapidamente se tornou grande demais para o combo, e o resultado de tamanha inventividade foi o hoje celebrado Curtis (Curtom), disco de estreia do maestro, lançado em 1970. Mayfield, que já acumulava as funções de compositor, arranjador e vocalista nos Impressions, continuou o processo de evolução criativa em sua primeira tacada solo. Talvez o maior mérito do LP seja o fato de ter praticamente introduzido o discurso de temática social na soul music – ok, Sam Cooke havia gravado petardos socialmente relevantes aqui e ali, e Marvin Gaye já estava em estúdio com seu What’s Going On, mas tecnicamente Curtis Mayfield é o cara – de forma absolutamente autoral, associando o R&B elegante dos anos 60 ao soul/funk que seria a marca registrada da produção negra ao longo década de 70. Faixas como “If There’s a Hell Below We’re All Gonna Go”, “We The People Who Are Darker Than Blue” e “Move On Up” (sampleada pelo esperto Kanye West para uma faixa não tão esperta assim) tiveram impacto instantâneo na nova estética musical do gênero, mas a dica para os aficionados e diggas em geral é a lindíssima “The Makings Of You”, cujos arranjos açucarados e vocal suave são capazes de desalojar calcinhas e roupas íntimas em geral com a simplicidade da força do pensamento. Confira!
Kurtis Blow
2 Kurtis Blow (1980)
O disco Kurtis Blow (Mercury), lançado pelo folclórico rapper homônimo em 1980, foi um marco à época de seu lançamento. Além de ser uma raridade – pouquíssimos albums foram lançados no primeiro boom do gênero, entre os anos de 1978 e 82, em que a prioridade eram singles e hits certeiros de medalhões como Sugarhill Gang e GrandMaster Flash & The Furious Five –, o LP foi o primeiro a introduzir mensagens de temática social no discurso do rap. Confira as celebradíssimas “Hard Times”, posteriormente regravada pelo duo Run-DMC, e “The Breaks” – que, apesar de ser um hino de festinhas aqui e acolá, retrata o dia-a-dia dos guetos norte-americanos da virada da década em questão, tendo influenciado diversos artistas do tal underground hip-hop da década seguinte. Kurtis Blow tinha a língua tão afiada quanto seu estilo performático, que culminou em uma das performances mais espetaculares da história do mítico Soul Train, ícone da TV norte-americana apresentado pelo carismático Don Cornelius (confira a versão ao vivo para “The Breaks” no YouTube imediatamente: bit.ly/ kbsoultrain). Mas nem só desses dois clássicos vive a pepita, portanto preste muita atenção às ótimas “Rapping Blow” (Part 2) e “Way Out West”, igualmente dançantes e inventivas. Mas a influência das discotecas estadunidenses não era a única na música de Blow, que foi buscou inspiração nas baladas soul para compor faixas como a nem-tão-boa-assim “All I Want In This World (Is To Find That Girl)”, que remete aos Chi-Lites, um dos grupos vocais preferidos do MC. O sucesso comercial de Kurtis Blow tem importância histórica evidente no cenário do rap, viabilizando contratos de long plays para gente como Run-DMC, Whodini e Fat Boys, a chamada segunda geração do gênero. O resto é história! 99
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1 Jorge Ben . Salve j orge! . Universal Music . 2010 Neste tempo de poucos (re) lançamentos históricos no país, a combalida indústria finalmente colocou no mercado um conjunto de álbuns que sintetiza o brilho de um artista que sempre esteve um passo adiante de todos os seus pares. Jorge colocou o negro em evidência como assunto pop na música brasileira, reinventou das formas mais absurdas a maneira de fazer declarações de amor, fez o samba virar rock sem trair nem um nem outro e recriou a maneira de tocar violão (“ele tem uma escola de samba inteira na mão direita” teria dito Gilberto Gil, outro mestre do instrumento). O poder de contaminação da estética de Jorge Ben é polivalente e paradoxal, tornando-o, em um país prenhe de músicos superlativos, uma admirada e linda pedra no caminho da música popular, que, por mais estudada que seja, guarda algum segredo não revelado – tal qual os alquimistas e o misticismo inocente/criativo da sua trinca sagrada Tábuas de Esmeraldas (1974), Solta o Pavão (1975) e África Brasil (1976). E é bom que se diga: muitos artistas pernósticos atuais podem discorrer sobre sua própria genialidade e sua inserção na tradição e quetais, mas nunca chegarão ao arranjo estético e conceitual que os três álbuns oferecem. Isso sem falar da vocação inigualável das canções de Jorge Ben para as multidões. Além da remasterização de todos os discos e da fidelidade canina aos projetos gráficos originais, a caixa traz todas as letras e textos breves e elucidativos da jornalista Ana Maria Bahiana para cada um dos trabalhos. Do revolucionário Samba Esquema Novo (1963) até o já citado África Brasil, são incontáveis os hits com cara de revolução musical, como “Mas Que Nada”, “Chove Chuva”, “Charles Anjo 45”, “O Telefone Tocou Novamente”, “Os Alquimistas Estão Chegando”, “Errare Hummanun Est”, “Jorge Well” (um iê iê iê psicodélico), “Comanche”, “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)” – tema baseado em uma insana releitura de riffs de Chuck Berry –, e as belíssimas e menos conhecidas “Porque é Proibido Pisar na Grama”, “Toda Colorida”, “Paz e Arroz” e “Jesualda”. Como se não bastasse, há também o incrível encontro entre Jorge Ben e Gilberto Gil de 1975 – uma apresentação descontraída e hipnótica dos dois para recepcionar o guitarrista Eric Clapton, que, boquiaberto, exigiu da gravadora a gravação de um álbum com ambos. No CD duplo de raridades e inéditas, há pérolas como o “Hino do Flamengo”(homenagem ao seu time do coração), “Cosa Nostra”, “Você Não é Maria Mas é Cheia de Graça”, “Maria Luiza” e “Mano Caetano”, gravada com Maria Bethânia. Lançamento do ano, trata-se de uma coletânea fundamental para entender o potencial de uma música popular e realmente criativa. Compre agora, sorria depois. 3Por Arthur Dantas. 100
1CocoRosie . Grey Oceans Sub Pop .2010 Os três anos que separam o penúltimo álbum da dupla freak CocoRosie, The Adventures of Ghosthorse and Stillborn (2007), do lançamento Grey Oceans mostram uma estética musical mais simples e acústica, sem os sonzinhos habituais produzidos por brinquedos e com menos interferências de elementos eletrônicos. Nada de anormal nisso, já que, desde do debute La Maison de Mon Revê (2004), as irmãs Sierra e Bianca Casady gostam de experimentar novas sonoridades ou retornar a elas a cada álbum que lançam. Mas isso não significa que elas perdem a identidade, pelo contrário, a característica principal da dupla de utilizar voz e instrumentos para construir canções abstratas só se fortalece. Para criar Grey Oceans, a dupla viajou por Buenos Aires, Melbourne, Berlim, Nova York e Paris pesquisando novos músicos para colaborar com elas. A receita deu certo, mas a participação chave do disco foi a do o pianista Gael Rakotondrabe, que usou improvisações jazzísticas para colorir várias canções. Talvez Grey Oceans não agrade tanto aos fãs que esperavam algo mais parecido com os dois últimos álbuns, mas, por outro lado, as irmãs podem ganhar novos ouvintes. 3Por Marina Mantovanini.
1Letuce . Plano de Fuga Pra Cima dos Outros e de Mim Bolacha Discos . 2009 O primeiro álbum do Letuce, intitulado Plano de Fuga Pra Cima dos Outros e de Mim, reúne doze músicas que falam de amor com melindre e sem clichês, dez delas assinadas pela multiartista Letícia Novaes e pelo multiinstrumentista Lucas Vasconcellos, um casal apaixonado com vontade de esbanjar esse sentimento. As outras duas são releituras: “Acontecimentos”, de Antonio Cícero e Marina Lima, e uma versão em francês com guitarras arrojadas de “Caso Sério”, renomeada como “Serieuse Affaire”, da musa Rita Lee e seu marido Roberto Carvalho. A dupla conta com o apoio de Rodrigo Jardim (baixo) e de Thomas Harres (bateria) para criar melodias que aglutinam a bossa nova carioca e a delicadeza da música francesa ao jazz e ao samba com manha de quem sabe o que faz. A parte visual também merece destaque: além da capa do disco, com uma bela fotografia do casal embaixo d’água, os videoclipes são produzidos por eles e mantêm uma atmosfera de obra feita em casa. O mais fascinante é que a música do Letuce não é pretensiosa, e exatamente por isso é uma delícia de ouvir. 3Por Marina Mantovanini. 1você encontra este e outros discos na loja da +soma
1Erykah Badu . New Amerykah Part 2 – Return Of The Ankh Universal Motown 2010 Depois de problemas com a gravadora e diversos adiamentos, a parte dois da série New Amerykah, de Erykah Badu, já está ao alcance dos ouvidos. O disco, que estava sendo pensado e produzido há seis anos, mostra que, qualquer que seja o tempo, Badu está sempre à frente dele. New Amerykah Part 2 – Return Of The Ankh soa mais orgânico que o primeiro da série. Produtores como Madlib, J. Dilla, 9th Wonder, Georgia Anne Muldrow e muitos outros são co-produzidos pela própria cantora, que deixa as coisas na forma ideal ao seu gosto. O disco começa com a calma “20 Feet Tall”, produção atípica de 9th Wonder, conhecido por seus timbres de bateria pesados e distorcidos, que desta vez assina apenas riffs de teclado. “Window Seat” é o single de trabalho e lembra a artista nos tempos do disco Baduizm, trazendo na linha de frente o baterista do The Roots, ?uestlove, e o pianista e produtor James Poysour. “Turn Me Away (Get Munny)” é uma releitura de “Get Money”, clássico de Notorious B.I.G. e Junior M.A.F.I.A. Biggie é homenageado mais uma vez com menções em “Fall In Love (Your Funeral)”, canção romântica em que a cantora ainda cita seus ex-affairs Andre 3000, do Outkast, Common e o atual namorado Jay Electronica. Madlib assina duas das melhores músicas do álbum: a hipnótica “Incense” e o groove enfumaçado “Umm Hmm”. J. Dilla também tem participação importante, com o beat suingado de “Love”, usando um loop com simples acordes de guitarra. A música “Jump In The Air”, que tinha vazado na internet e conta com participação de Lil Wayne e outros artistas, acabou ficando de fora e está disponível somente via iTunes. Ao contrário de New Amerykah Pt. 1, que tinha um discurso mais sério, com temas políticosociais, Erykah Badu fez em sua continuação um álbum bem emotivo, calcado em canções românticas, com produções suaves e jazzísticas. Satisfação garantida em qualquer momento. 3Por Daniel Tamenpi.
1High on Fire . Snakes For The Divine . E1 . 2010 Minha relação com o metal é muito semelhante à minha relação com o futebol. Faço vista grossa aos defeitos evidentes de ambos – em comum: tendência à misoginia, maniqueísmo, espírito gregário, sentimentalismo barato, grosseria, conservadorismo – em função de suas magníficas virtudes – capacidade de dar espetáculo, falta de espaço pra frescura, intolerância contra enganadores, valorização da técnica. Seguindo na metáfora, o disco novo do High on Fire é como o time atual do Santos (que eliminou o meu Tricolor do Paulistão): só dá espetáculo e bola dentro. Quinto disco de estúdio da banda californiana, Snakes For The Divine celebra o excelente momento de um dos grupos de metal mais constantes do século XXI – apesar da porra-louquice do guitarrista/vocalista Matt Pike, que já afundou outra grande banda, o Sleep. Em anos pós-indústria do disco, eles se tornaram referência de público e crítica sem cair nas armadilhas dinheiristas de bandas como o Metallica, nem sucumbir a modismos mofados como o nu-metal. No caminho de gente como Mastodon, Harvey Milk e Boris, o HoF joga no seguro: um mix meticuloso daquilo que o metal já deu de melhor ao mundo. A faixa homônima e “Frost Hammer”, que abrem o disco numa pegada speed metal, são irmãs das melhores porradas de World Painted Blood (não por acaso, Snakes foi produzido pelo mesmo Greg Fidelman que gravou o disco responsa de retorno do Slayer). “Bastard Samurai” põe a adrenalina para baixo aos poucos, caindo numa levada sludge à Melvins, que ressalta notas esparsas na guitarra como estrelinhas lisérgicas na retina. “Fire, Food & Plague” é quase doom, modernizado pela distorção meio 8-bits da guitarra, e com inflexões pelo stoner. Quem já viu o HoF ao vivo sabe que tudo só melhora quando esses três estão em cima do palco. É graças a bandas como eles que o metal segue sendo relevante. 3Por Mateus Potumati.
1Rock Rocket . rock rocket (EP) . Vyniland . 2010 Rock de roqueiro. Um belo termo para dizer que alguém faz um rock não ditado por cânones ou modismos? Rock sem mediação de qualquer tipo, direto e “visceral” – para usar o jargão da idiotia crítica reinante? Em tese, nenhuma dessas definições são lá do meu agrado, mas, desde que o circuito dos festivais independentes se estabeleceu no Brasil, elas se tornaram chavão para definir grande parte dos artistas em destaque nessa seara – Macaco Bong, Black Drawing Chalks etc. O Rock Rocket, de São Paulo, joga nesse esquema: garage rock, letras pouco elaboradas, celebração de temas ligados à juventude, diversão, baixo, bateria e guitarra sujas e diretas, e refrão para ser cantado derrubando litros de cerveja na banda e na plateia. Nada disso é necessariamente ruim, a menos que você não seja um membro da TFP ou coisa do tipo. O rock n’roll em seus primórdios tratou exatamente disto: universalizar, cristalizar e imortalizar o momento mais marcante da vida. O que muda no Rock Rocket nesse classudo EP em vinil de 45 rotações é que nas suas três faixas o grupo migrou de um punk rock inicialmente mais ordinário para um rebuscamento seco à moda de um The Who, Slade, Dr. Feelgood ou New York Dolls. Aquele vácuo entre o hard rock e o que se convencionou chamar de punk rock. Enfim, rock para curtir sem pensar no futuro. 3Por Arthur Dantas. 101
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1Gorillaz . Plastic Beach Virgin . 2010 Projeto idealizado para ter apenas um disco, uma turnê e fim, o Gorillaz acabou rendendo frutos riquíssimos em vitaminas sonoras. Formado pelos residentes Damon Albarn e o cartunista Jamie Hewlett, além de convidados de áreas diversas da música, o grupo criou tendências, colecionou prêmios e, doze anos depois, continua se superando. O sensacional Plastic Beach é o melhor, mais grandioso e ao mesmo tempo menos radiofônico álbum do grupo. A começar pela lista de participações, que inclui desde MVPs como Bobby Womack e Lou Reed até nomes atuais como Mos Def, Snoop Dogg, Hypnotic Brass Ensemble e muitos outros. As produções seguem na proposta do grupo: músicas que remetem a décadas passadas entre o soul, funk, rock, dub e o eletrônico contemporâneo. Sobra criatividade, além de se criar uma identidade sonora de acordo com o convidado da vez. O álbum abre com a Sinfonia ViVA, fazendo uma introdução orquestral para a faixa “Welcome To The World Of The Plastic Beach”, com um Snoop Dogg contido e a Hypnotic Brass Ensemble impondo sua metaleira nervosa. A música seguinte, “White Flag”, incorpora sons do Oriente Médio com a The Lebanese National Orchestra For Oriental Arabic Music acompanhando o grime dos ingleses Bano e Kashi. Damon Albarn aparece cantando pela primeira vez na ótima “Rhinestone Eyes”, com boas melodias recheadas de synths grudentos. O single “Stylo” traz a parceria entre Mos Def e Bobby Womack, além de um clipe cinematográfico com o badass Bruce Willis. “Superfast Jellyfish” é a faixa mais rap do disco, com De La Soul nas rimas e Druff Rhys, do Super Furry Animals, no refrão. A revelação sueca Little Dragon faz bonito na espacial “Empire Ants” e na melódica “To Binge”. O veterano Mark E. Smith, líder do The Fall, é responsável pela experimental “Glitter Freeze”, que antecede a voz inconfundível do também old school Lou Reed na balada “Some Kind Of Nature”. Damon Albarn volta na electro-pop “On Melancholy Hill” e na calma “Broken”, abrindo a parte final do álbum, com faixas mais experimentais, como a parceria entre Mos Def e a Hypnotic Brass Ensemble em “Sweepstakes” e a belíssima “Cloud Of Unknowing”, com Bobby Womack acompanhado pela Sinfonia ViVA. Mick Jones e Paul Simonon, ex-integrantes do The Clash e prováveis músicos da banda na próxima turnê, assinam a faixa-título ao lado de Albarn. O disco se encerra com a curta “Pirate Jet”, fechando assim a grande obra-prima do Gorillaz. Outro detalhe complementar, que faz parte do padrão de qualidade da banda, é a ótima gravação e mixagem do álbum, deleite para qualquer audiófilo. 3Por Daniel Tamenpi. 102
1Neill Blomkamp . Distrito 9 . Tristar Pictures/Block/Hanson . 2010 Quando a onda de filmes na favela já aparentava ter dado no saco – especialmente com aquela pataquada-pra-americano-sentir-culpinha de Quem Quer Ser Um Milionário –, o cineasta sul-africano Neill Bloomkamp mostrou que o filão ainda tem muita lenha pra queimar. Em Distrito 9, apadrinhado pelo pica-grossa Peter Jackson, ele não só inventou sozinho todo um gênero (que alguns têm chamado de “favela sci-fi”), como ensinou lições valiosas à indústria do cinema. Inteiramente rodado nas favelas de Soweto, em Joanesburgo, com um orçamento minúsculo para os padrões de Hollywood (e com retorno financeiro estrondoso), Distrito 9 conta a história de uma nave perdida de alienígenas que estaciona sobre a cidade. Contrariando as expectativas dos terráqueos, os etês estão fragilizados pela fome, são sujos, horrendos e estúpidos. Em vez de ajudar a Terra a evoluir, tentar nos conquistar ou ao menos explodir o planeta, eles logo se tornam mais um indesejável dejeto social em uma metrópole já caótica. Isolados em um gueto em Soweto, estão prestes a ser removidos para um local ainda pior, em uma operação higienista do governo. A contagem regressiva da bomba-relógio começa quando o chefe da operação, o burocrata panaca Wikus van de Merwe, acaba se envolvendo com os aliens em uma trama bizarra e repulsiva (não vou dar detalhes para não estragar a surpresa de quem não viu o filme no cinema, mas a diversão vale cada segundo). No decorrer da história, o papel de Wikus é invertido: de carrasco, ele passa a herói da resistência. Completamente contra sua vontade. Nos extras do DVD, quem já viu o filme não pode perder o documentário A Agenda Alienígena – Diário do Cineasta, que conta a saga de Bloomkamp desde o curta Alive in Joburg, de 2005, pontapé inicial de Distrito 9. Há belos depoimentos do elenco – em especial do genial Sharlto Copley, que faz o papel de Wikus – e detalhes sobre os efeitos especiais, que praticamente não usaram computadores e produziram efeitos tão impressionantes quanto os de um Avatar (e muito mais sujos). Item essencial não só para fãs de ficção científica, mas para qualquer apreciador de um cinema inteligente, desafiador e não acomodado. 3Por Mateus Potumati. 103
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1 The Convoy Tour . 25 Years of The Ex
1M. Takara 3 . Sobre Todas e
Ex Records . 2009
Qualquer Coisa Desmonta Discos . 2010
“Todo o evento foi o resultado de nossos 25 anos no coração da nova música.” A frase, dos membros do The Ex, a mais inspiradora força do punk desde que o Fugazi entrou em um hiato indefinido, fala um pouco da reunião de artistas tão distintos oferecida por eles na comemoração de seus 25 anos, em novembro de 2004, e registrada neste DVD. Ao contrário de artistas caça-níqueis como Rolling Stones, com sua celebração careta de uma eterna juventude, o Ex é um grupo que se reinventa de tempos e tempos, e as parcerias são um leitmotiv crucial para tanto. De Tortoise ao Sonic Youth, do Mekons ao grupo de improv ICP e o falecido violoncelista Tom Cora, todos tiveram envolvimento com esse núcleo que começou, fruto de seu tempo, em uma ocupação, permeado pelo punk e pelos ideais anarquistas. O comboio de 35 artistas de todo o planeta para seis apresentações reuniu do septuagenário saxofonista etíope Getatchew Mekurya à dançarina japonesa Hisako Horikawa, do poeta sonoro francês Anne-James Chaton ao rock selvagem dos italianos do Zuo ou o duo The Evens, além do próprio The Ex. Nas imagens captadas pelo influente cineasta underground Jem Cohen (que já fizera clipes para R.E.M e Elliott Smith, além do documentário do Fugazi e de outro DVD do Ex, Building a Broken Mousetrap), a felicidade resultante do encontro de pessoas tão distintas reafirma a vitalidade de uma comunidade criativa que mantém o idealismo independente vivo, e ainda é relevante para entender o passado, o presente e o futuro da música feita por pessoas que não buscam a catarse e a explosão sonora, e sim uma música sem mediação, que volte a alimentar os sonhos de uma comunidade. Assistindo ao DVD, é impossível não se espantar com o sentido de urgência e atualidade com que os membros do Ex encaram seu ofício. 3Por Arthur Dantas.
A primeira faixa exala ambiência kraut rock e a espacialidade dos sons eletrônicos. Logo, surge uma percussão. Bateria. Chega a segunda faixa, e a abstração vai ganhando uma batida mais identificável. Bem-vindo ao recém-organizado universo de M. Takara e seus dois comparsas, Roger (também do Hurtmold, assim como Takara) e Guilherme Valério, responsável pela guitarra. Lançado dois anos após Ocupado Como Gado Com Nada Para Fazer – primeira tentativa de Takara em expandir o trabalho solo rumo a um grupo –, Sobre Toda e Qualquer Coisa, ganhou estofo com letras que, como diz o título, trazem crônicas um tanto sarcásticas. Esta definitivamente é uma obra com o tamanho da ambição de seu criador: comunicativa, estranha, com uma esfera de experimentação pop que segue a linha de Eternals ou Four Tet, mas com uma dicção definitivamente brasileira e paulistana. A faixa “Rei da Cocada” é prova. Não se engane com a percussão, que poderia ser o dado de brasilidade: são justamente os elementos “exteriores”, o sax e o trompete em rompantes free jazz, a eletrônica e a letra, que transformam o projeto em um grupo tão ambicioso quanto o Hurtmold. Ganha todo mundo, inclusive o próprio Takara, que conseguiu ordenar sua experiência com programações, teclados e recursos eletrônicos em um grupo que destaca seu toque de autor de forma nada condescendente, favorecendo a construção de uma nova tradição. 3Por Arthur
Element/Nixon . Rua Oscar Freire . 909 www.elementskateboards.com Estação Artur Alvim . Av. Dr. Luis Aires 1800 . Artur Alvim . São Paulo SP www.vademetro.com.br Ezekiel . www.ezekielbrasil.com Galeria Olido . Avenida São João 473 . Centro . São Paulo SP 55 (11) 3331. 8399
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1Gonjasufi . A Sufi And A Killer . Warp . 2010 Filho de mãe mexicana e pai americano de origem egípcia, Sumach Ecks é MC, cantor, DJ e professor de ioga. Nasceu em San Diego, na Califórnia, mas atualmente vive no Deserto de Nevada, em Las Vegas. Ligado ao hip-hop experimental desde os anos 90, foi membro do coletivo Masters Of Universe, que nunca lançou nada oficialmente, mas fazia um som que se tornaria tendência com os selos Anticon e Def Jux. A categorização como hip-hop, porém, é restrita demais para definir sua música atual. O que chama atenção logo de cara é a forma como ele usa a voz, cantando de uma maneira ora tensa e suja, ora tranquila e calma, que o músico justifica como um padrão vocal ligado ao ensino da ioga e para a qual confessa ainda estar em busca de aperfeiçoamento. O resultado da junção desse estilo a uma enxurrada de efeitos como delays e reverbs não é nada normal, e às vezes beira o caótico. As letras são místicas, com mensagens que vão do céu ao inferno, sufismo, confissões poéticas, desordens mentais e outras loucuras. Para criar a base de suas mensagens, Gonjasufi cercou-se de um trio de bruxos na produção: Flying Lotus, The Gaslamp Killer e Mainframe, pupilo de J. Dilla. Batidas encaradas como mantras psicodélicos, com timbres incomuns, guitarras estridentes, samples obscuros, cítaras e muitas referências à musicalidade do Oriente Médio, passando pelo dub, punk e folk. Um álbum tão surpreendente que transcende os rótulos disponíveis atualmente, criando talvez um estilo lisérgico pós-moderno que só o futuro saberá definir. 3Por Daniel Tamenpi. 104
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Na foto: a artista Mariana Abasolo prepara uma das obras que estarão em sua exposição individual “Fé no Mistério” no Espaço +Soma, que acontece dos dias 23.04.10 a 29.05.10
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