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Cançado Tomé
Cançado Thomé
Escritor, libretista, maratonista, mediador, professor e analistade investimentos. ganhador do Prêmio de Literatura Unifor 2019, escreve libretos para ballets, com peças montadas, como “O julgamento” e “Mediadora de deusas”. Participou da Coletânea Literária LGBT, dos livros coletivos “Quase nome” (contos), “Pélagos” (contos) e “Todos os tempos do universo” (crônicas). Publicou o infantil “Sonho de uma noite de ouriço”, como libreto para ballet e como livro pelo Projeto Primeiras Leituras. Cançado está nas redes: @cancadothome
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Aviso de conteúdo: violência, assassinato e transfobia
Para Keron Ravach
Instagramer, youtuber, digital influencer, sonho adolescente, infantil, entre o bobo e o inocente. A menina como as outras, tão comum, queria pôr a cara no sol. Sol da rede, dos cliques, dos likes, dos follows, artista, estrela, admirada, cobiçada. Queria ser seguida, estimada, invejada, copiada, comentada; foi perseguida, socada, chutada, esfaqueada, apedrejada. Agressão A menina queria ser como as meninas queriam ser, querem ser, talvez sejam. Não ela, não será, porque não era como as outras meninas, não ela. Não era porque não era permitido ser, não foi permitido, não é permitido. Ser o que se quer, o que se vive, o que se é. Existência Uma menina que surgia, se descobria, se construía, menina em elaboração, em mutação. Traquinagem de criança confrontando travessa a travessia sobre o abismo infinito da identidade. Ousadia de mulher, pujante, que sem sê-lo constatou prematura que, sim, o era. Mirando o futuro à frente desafiou a corda bamba entre gêneros, padrões, expressões. Identificações Futuro à frente tornado futuro para trás, futuro do pretérito, particípio, descontinuado, concluído. A adolescente tímida transmutada em notícia involuntária, em manchete indesejada, em relato policial. No
mês da visibilidade, tornada meio de visibilidade, compelida a convocar à causa: Jovem trans teve a vida interrompida com pauladas, socos, chutes, facadas e pedradas. Interrupção Camocim madrugada, terreno baldio, longe dos amigos, longe da família, longe de proteção. Armada a emboscada, preparada a cilada: aliciamento, ardil, embuste a ocultar a intenção. A menina isolada, inocente e desarmada, hora da ação - agressão em traição. Ausência de cor no peito por mais uma das nossas meninas que tomba. Luto E a barbárie facínora ainda inconformada com a vida cessar, com fim singular. Agressão sobre o corpo, vilipêndio do cadáver, ânsia de fazer cessar a existência. Mais uma paulada, olhos perfurados, outra facada, um chute, de novo uma pedrada. Selvageria ávida de eliminar todos esses anormais, toda essa abominação, toda essa perversão. Atrocidade Ódio individual coletivo, lava em ebulição mal contida abaixo dos subterrâneos do preconceito. Erupção de golpes jorrando sobre a menina o magma que todo dia chamusca. Em olhares de repreensão, em negativa de nome social, em estorvo à identidade. Amálgama do desequilíbrio individual com a ferocidade coletiva intolerante com o simples existir. Discriminação Polícia descartou que o ato infracional tenha ocorrido em razão da orientação sexual. O ato infracional descartou a travesti em razão da ocorrência de seu existir. A relevância da identidade de gênero descartada, levando a novo descarte da vítima. A vítima do descarte infracional, descartada na razão do ato de ocorrer travesti. Institucionalização Silenciou-se a menina que experimentava um corpo, uma pele na qual se acomodaria. Que traçava a travessia transversa através de trilhas trançadas, trilhos entrecruzados, encruzilhadas tramadas. Transitoriedade entre o que lhe determinam no nascer e o que se autodetermina. Garota que executava trajetória de transformação, movimento de modificação, fluxo de flexão, autodeterminação. Transição
Transicionando entre gêneros como a leitura que transiciona entre versos de uma epopeia. Poesia para amar de todas as formas, para existir de todas as formas. Corpo poesia, pele palavra, que sendo recitada se modela, se ajusta, se amolda. Plasticamente se modificando, argila para nova escultura, nova deusa, nova mortal, nova mulher. Travesti Menina que gostava de dançar com amigos e depois tomar banho de mar. Flor vermelha na mão, ofertada à audiência, a vida vermelha nas mãos, ofertada. Aos sonhos, ao porvir, à transição, à descoberta, ao futuro que era possível. Esperança vermelha derramada sobre o asfalto, querendo adubar novas safras, novas flores diversas. Horizontes Hoje é Keron, anteontem foi Dandara Kettley – todo dia é dia para transfobia. Hoje é Keron, ontem foi Luana Kelly – todo dia é dia para transfobia. Hoje é Keron e quem será amanhã? – todo dia é dia para transfobia. Todo dia transfobia, toda travesti todo dia, todo dia luto, luta, todo dia. Transfobia Keron Ravach só tinha 13 versos.