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Johta Rodrigues
Como canta Alceu Valença: “um anjo de fogo endemoniado, que vai ao cinema, comete pecado, que bebe cerveja e cospe no chão”. Nascido em Pentecoste, interior do Ceará, e abraçado por Fortaleza. Além de ser dado à escrita, é artista visual e arte educador.
A paixão de um diabo encarnado
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Eis aqui um diabo encarnado, queira ou não confiar. Trago hoje meu relato que desejo compartilhar, vivi um amor de uma noite
e levei um anjo pro altar.
Entre os leões da praça eu corria, na última noite de carnaval.
Comigo uma garrafa vazia e uma angústia sem igual. Nem aguardente podia me livrar daquele mal.
Na festa da carne eu estava
com o peso da solidão. Nenhuma alma penada pra ficar com esse pobre cão. Só lamento me restava, meu destino era a danação.
Aquietei meu casco no chão parando pra descansar. Contemplei a multidão buscando a quem atentar, quando vi aquele ser, fiquei sem acreditar.
No meio daquela roda, se acabava de dançar. Tamanha alegria do anjo que brilhava como o luar, tinha as asas estiradas que ninguém parecia enxergar.
Anjo eu não tinha contemplado, só tinha ouvido falar. Fiquei tão extasiado que fui pra perto espiar aquele ser iluminado que não parava de rebolar.
Ele tomava um vinho santo, que deixava o lábio carmim. Eu escondido no canto, ele olhou e sorriu pra mim. Mordi meu beiço pensando: Vou atentar esse querubim.
Cheguei-lhe no pé do ouvido, e lhe chamei pra perdição,
ele respondeu num gemido: Eu sabia que tu era um cão. Eu falei: Tu tá perdido, tua cintura num solto, não.
Colei meu corpo no dele, e com as asas me envolveu. Dei-lhe um beijo quente, e nele a gente se perdeu. No meio daquele mar de gente eu disse: essa noite tu és meu.
Depois de tanto beijo, pela mão lhe peguei. Em brasa era o meu desejo, e pra longe eu lhe chamei. Num endiabrado ensejo, na porta duma igreja encostei.
A festa ficou distante, ali, só o eco da folia, e eu e o meu anjo amante, naquela ruela vazia. Eu com um anseio vibrante, pensando no que a gente faria.
Na porta daquela igreja o anjo se ajoelhou, eu vendo tamanha heresia, meu olho até faiscou.
Com aquela boca macia, pro céu ele me levou.
Mas num castigo divino a porta se arrebentou. Aquele anjo malino, me vendo no chão, gargalhou. Levantei feito um gato ladino, e ele para dentro apressou.
Para consagrar a profanidade, no altar eu lhe deitei. Ele se despiu da santidade e pro pecado eu lhe arrastei. Agarrado com aquele anjo, minha redenção encontrei.
Com nosso ato consumado, ao seu lado me joguei, lhe envolvi em meus braços, sua barba acariciei, em seu cabelo enrolado, meus dedos entrelacei.
Com a cabeça em meu peito, Meu anjo homem dormiu. O cristo me olhava sem jeito, Até parece que nunca viu. Eu ainda gozava do feito quando o sono me cobriu.
Acordei com os braços vazios e com um padre praguejando, ele me jogou água benta e eu saí com o couro queimando, procurando em vão meu anjo, que cedo saiu voando.
Era quarta-feira de cinza. O carnaval tomou seu fim. Do anjo me ficou o gosto daqueles lábios carmim, junto com a doce memória dele sorrindo pra mim.