Sem emprego formal, senegaleses trabalham como camelôs Responsáveis pelo sustento da família na África, imigrantes buscam forma alternativa para driblar crise. Texto: Raysa Guagliardo e Nathy Gaieski Foto: Raysa Guagliardo e Fernanda Lima
Comércio concentrado na Zona Norte de Porto Alegre mostra a padronização das mercadorias. | Foto: Fernanda Lima Não é difícil encontrar imigrantes africanos em Porto Alegre. Basta circular pelas principais avenidas da cidade que lá estão eles, com maletas prateadas recheadas de relógios, anéis, colares e bijuterias. De maneira padronizada, todas estão fixas em um pedestal e exibem veludo vermelho em seu interior. Na Capital, 800 senegaleses buscam por melhores condições de vida. “Lá (no Senegal) não tinha trabalho pra mim, aqui tem” é a frase que repetem com a convicção de quem vislumbra um futuro melhor no Brasil. O senegalês Ibrahima Ba, 27 anos, sonhava vir para o Brasil e construir uma vida nova, com emprego e salário fixo. Não queria mais a rotina instável do
Senegal, onde nem trabalho tinha. Em Porto Alegre, Ibrahima ainda não atingiu o objetivo. Por enquanto, trabalha de domingo a domingo comercializando relógios, roupas e capas para celular. Fatura em torno de R$ 3 mil a cada 30 dias – o dobro do que recebe um vendedor ambulante no país africano. A metade vai para Dakar, capital do País, onde vivem a mãe, a esposa e a filha, que o ambulante ainda não conheceu pessoalmente. O africano chegou em 2014 e conta que escolheu vir para o Brasil por ser um país de “legalização fácil”. No primeiro mês já estava com os documentos e empregado. O senegalês fala arábe, frânces e inglês. Mas ainda tem muita dificuldade com o português.
O senegalês exibe seu documento brasileiro. | Foto: Raysa Guagliardo Porto Alegre não foi a primeira opção para o imigrante, primeiro morou em Caxias do Sul. Lá, trabalhou com carteira assinada como alimentador de linha de produção por mais de um ano. Recebia pouco: R$ 5 por hora. Apesar do baixo salário, não foi o dinheiro que o fez abandonar a Serra. Ibrahima foi embora porque diz ter sofrido preconceito racial e social tanto nas ruas quanto dentro da empresa. “Eles me diziam: ‘negro, você é um nada’”, contou, envergonhado, em uma mistura de idiomas. Ibrahima não conseguiu detalhar o que, de fato, aconteceu em Caxias. Só não quer mais voltar para lá. Com tristeza e vergonha estampadas em suas feições, encerra o assunto: “As pessoas não gostam de africano por lá”.
Na Capital, passou a buscar novas oportunidades. Quando descobriu que poderia ganhar mais trabalhando como camelô nas ruas, viajou para São Paulo. Voltou de lá com o primeiro lote de mercadorias, repetindo o caminho que outros imigrantes já haviam feito. Por enquanto, Ibrahima parece feliz com o trabalho de ambulante. O dinheiro que envia para o Senegal é essencial para ajudar no sustento da família que por lá deixou. E lá também ficou um pedaço de seu sorriso. A saudade de casa ele relata em cada história. Tenta diminuir a distância através das fotos trocadas pelo celular. Enquanto conta sobre os primeiros passos e palavras de sua filha mostra orgulhoso algumas fotografias. Quando Ibrahima partiu para o Brasil a esposa ainda estava grávida. O senegalês confessa o enorme desejo de poder ter sua pequena nos braços “é muita saudade”, fala entre sorrisos e lágrimas. Segundo ele, é pela filha que trabalha sete dias por semana, sem folga, descanso ou divertimento. Como o objetivo de viver de forma estável no Brasil está longe de se concretizar, já mira o retorno para Dakar. Em 2017, Ibrahima quer estar no Senegal. Em princípio, para visitar a família e finalmente conhecer a filha. Mas não descarta um retorno em definitivo ao país.
Ibrahima e as mercadorias da maleta prateada. | Foto: Fernanda Lima
Modou e Aliou em sua rotina de vendas na Capital. | Foto: Raysa Guagliardo Aliou Diop, 28 anos, e Modou Noiim, 27, ambos nascidos em Dakar, capital do Senegal fizeram um investimento de R$ 21 mil cada um para saírem do Velho Mundo também buscando prosperar no Brasil. Amigos desde a infância, decidiram vir juntos. O longo trajeto, iniciado no Senegal, cruzou Equador e Bolívia para chegar ao Brasil. Do Acre, os amigos percorreram todo o território nacional de ônibus até desembarcarem em Caxias. De lá, para Porto Alegre, a última parada. Esta é a história que se repete em cada esquina da Capital. São quilômetros de chão trilhados por infinitos pés cansados, mas que ainda assim, buscam trabalho. Os amigos trabalharam em restaurantes até descobrirem, na prática, que mil reais é um salário baixo para uma jornada de mais de 12 horas. Segundo a legislação brasileira, uma semana de serviço é composta por, no máximo, 40 horas, com um dia de descanso. Os senegaleses dizem que trabalhavam mais de 80 horas na semana, de domingo a domingo. Com apenas uma folga no mês, não recebiam direitos previstos em lei, como hora extra ou adicional noturno.
Desiludidos com as possibilidades do trabalho formal, tentaram a sorte como vendedores ambulantes nas ruas da capital. Do Senegal trouxeram a experiência, ambos já vendiam óculos e relógios lá. Para cada um, o mês de vendas em Porto Alegre gera em torno de R$ 2 mil. Ao contrário de Ibrahima, eles se permitem folgas e descansos no meio da semana. Modou passa o dia vendendo relógios e óculos nas calçadas da Avenida Assis Brasil. Às 15h, fecha a maleta prateada onde guarda os produtos e retorna ao apartamento para descansar até as 17h. Depois, em uma lanchonete, inicia a segunda jornada de trabalho que segue até a 1h da manhã. Segundo o senegalês, o salário mínimo não é bom, mas é proporcional ao tempo que trabalha. “A gente vem aqui para trabalhar, fazemos bem as coisas, não queremos receber pouco”. A conexão com a internet é essencial para todos os imigrantes. É ela que permite manter o contato com o país de origem. No celular, que eles sempre têm em mãos, as fotos das famílias e de suas comidas típicas têm um sentido especial. Em uma das imagens, Aliou mostrou o ‘thieboudienne’, arroz com peixe na tradução literal, feito em solo brasileiro.
As comidas típicas, feitas por Aliou em Porto Alegre. | Arquivo pessoal “No Brasil come feijão e arroz, no Senegal, é thieboudienne”, explicou Aliou. Recriar as refeições aqui é uma maneira de manter fresco o paladar com os pratos típicos de suas terras. Mesmo com saudade da família e da culinária de Dakar, Modou não tem intenção de voltar a morar na África, apenas visitar. O jovem, que não é casado, espera se estabelecer no Brasil e criar uma família aqui. Já o amigo
Aliou, que deixou a esposa no Senegal, pretende voltar, mas admite a possibilidade de retornar com uma brasileira. Os senegaleses, muçulmanos em sua grande maioria, podem manter até quatro casamentos. Aliou envia dinheiro para a esposa e para a família em Dakar. Recentemente, perdeu R$ 4 mil em mercadorias, apreendidas pela fiscalização municipal, por ausência de nota fiscal. Conforme a legislação (Lei 10.605/2008), os produtos cuja origem e legalidade não forem comprovadas são recolhidos e destruídos. Sem ter o que vender, desta vez o dinheiro fez o caminho de volta: foram os parentes que enviaram recursos para ele conseguir se estabelecer novamente. O fluxo de dinheiro entre Senegal e Brasil é intenso. É comum os imigrantes que estão em Porto Alegre receberem ajuda financeira de parentes. O senegalês Mor Ndiaye, presidente da Associação de Senegaleses de Porto Alegre, lembra que os que viajaram tinham melhores condições financeiras na África para poder custear a viagem. Mor é um exemplo para os outros imigrantes, está no Brasil há oito anos. Aqui, casou com uma brasileira há seis. Além da Associação, ele também é o responsável na Secretaria Municipal de Direitos Humanos por receber, cadastrar e providenciar os papéis para os imigrantes. “Eles precisam de mim, e eu deles, somos irmãos do mesmo país”. O líder conta que há muitas reclamações vindas de imigrantes sobre exploração e racismo nas empresas. Dependendo do grau de denúncia, a Associação tem dois advogados para agir em nome do imigrante na defesa dos seus direitos. Mas não é somente o preconceito que eles enfrentam por aqui. A depressão é outro problema comum. Muitos não conseguem trabalho, sentem saudade de casa, têm dificuldade para se comunicar e sofrem com crises existenciais. Contudo, voltar para casa é muito raro. Mor conta que houve apenas um caso nesses últimos meses. Um rapaz havia adoecido desde a chegada ao Brasil, sem conseguir se curar, preferiu voltar para a África.
Haitiano recém chegado esperando Mor para regulamentação de papéis. | Foto: Raysa Guagliardo Um dos papéis fundamentais da Associação, de acordo com Mor, é justamente auxiliar nestes primeiros momentos em terras brasileiras. “Tentamos ajudar os recém-chegados da forma que podemos, com moradia, alimentação e trabalho”. Porém, a entidade não trata somente de questões materiais. A religião, muito valorizada culturalmente, é uma das preocupações do líder. A Associação realiza dois encontros que ocorrem em domingos alternados do mês. Em um deles, debatem as dificuldades, a convivência, o trabalho. No outro, reservam para orações e estudo do Alcorão.
A padronização das mercadorias Não existe um levantamento sobre o número de imigrantes que atua de maneira irregular em Porto Alegre. O que se sabe, no entanto, é que a maioria é de senegaleses, de acordo com a chefe da Seção de Fiscalização da SMIC, Luciane Mattei. Ela afirma que grande parte do material comercializado pode ter origem irregular/ilegal, seja pela falsificação, contrafação (falsificação de produtos de modo a iludir sua autenticidade) ou descaminho (venda de produtos sem origem comprovada e sem taxação de impostos).
“Verificamos que as mercadorias são comercializadas em um kit padrão – composto por uma maleta e um pedestal – o que nos leva a crer que são disponibilizadas por um ou poucos fornecedores ainda não identificados”, relata. Em conversa com os senegaleses, todos afirmam a mesma coisa: “buscamos a mercadoria em São Paulo”. Entre gaguejos, palavras em francês e em português, desviam o assunto e o olhar quando a conversa começa a se aproximar sobre quem é o fornecedor dos produtos.
Ramo alimentício muçulmano pode ser um dos motivos da migração para o Sul, em 2013, aponta estudo. A persistência na migração reflete a situação socioeconômica no Senegal. No país, menos de 40% da população é alfabetizada, 40% está desempregada e 57% da população rural vive abaixo da linha da pobreza, com US$1,25 (menos de R$ 5) ao dia. (COTAÇÂO: economia.uol.com.br) A Associação dos Senegaleses informa que não existe nenhum convênio entre Brasil e Senegal e que os próprios imigrantes acabam agindo como “coiotes” para intermediar a viagem e a chegada ao Brasil. Grande parte dos caribenhos e africanos que chegaram em 2012 foram empregados no interior do estado. A região apresentava crescimento e ofertas de trabalho especialmente na indústria metalúrgica, moveleira e construção. Isso formou uma rede de informações positivas sobre emprego no Brasil, o que incentivou ainda amais a migração. Além disso, a necessidade de mão de obra para o abate Halal, visando a exportação de carnes para países muçulmanos, também fez crescer o número de migração. Conforme a pesquisa “Os novos rostos da imigração no Brasil” de 2014, mais de 300 empresas brasileiras exportam carnes para aproximadamente 40 países de religião muçulmana. E este serviço só pode ser feito por praticantes do islamismo, de acordo com o ritual descrito no Alcorão. Este é um mercado que segue em expansão, visto que 1 bilhão e 850 milhões de pessoas seguem a religião islâmica. No próprio Senegal, quase 90% da população é praticante do Islamismo.
Com a crise econômica que o país enfrenta desde de 2015, com demissões, falências de empresas e aumento do desemprego, as alternativas de trabalho minguaram, e o comércio ambulante irregular passa a ser uma alternativa cada vez mais comum. E talvez a única para quase 20 senegaleses que continuam chegando em Porto Alegre todos os meses.
(http://www.editorialj.eusoufamecos.net/site/senegaleses-emprego-informal/)