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ntender as transformações do cérebro em função de fennômenos contemporâneos é o objetivo de Sináptica. São reportagens que buscam mergulhar no funcionamento do mais misterioso órgão do corpo humano, alterado pelas conseguências do uso intensivo da tecnologia e pelas relações sociais modernas. Um projeto de jornalismo científico realizado por alunos da Famecos/ PUCRS, que se vale de pesquisas agrupadas para novas consultas e história, em sinaptica.atavist.com ou use o QR-Code abaixo:
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histórias sobre o cérebro humano 13
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Reitor Ir. Evilázio Teixeira Vice-reitor Jaderson Costa da Costa Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues da Cunha Diretor da Famecos Cristiane Mafacioli Carvalho Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier Realização da disciplina Projeto Experimental IV – Editorial Gráfico Professores responsáveis Alexandre Elmi, Karen Sica e Moreno Osório Reportagem Ágatha Pedotte, Antonio Carlos De Marchi, Bruna Ferreira, Gabriela Castro, Júlia Pulvirenti, Laura Zucchetti, Marcel Horowitz, Mariana Ribeiro, Rafael França, Rebeca Kuhn Silveira e Rodrigo Aliardi Reus Coordenação gráfica e Projeto gráfico Raysa Guagliardo Diagramação Ágatha Pedotte e Raysa Guagliardo Endereço Avenida Ipiranga, 6.681 Prédio 7 - Porto Alegre (RS) - Brasil www.pucrs.br/famecos – Julho de 2017 sinaptica.atavist.com
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QUEM
SOMOS Ao começar a disciplina de Projeto Experimental IV Editorial Gráfico, já na primeira aula no primeiro semestre de 2017, teve início uma inquietante busca por explorar temas pouco comuns no jornalismo. Tomados pela curiosidade de compreender dilemas do cérebro humano moderno, alunos e professores se empenharam na proposta de investir no jornalismo científico e especializado. Esta publicação não se resume a contar histórias romantizadas ou tão somente reproduzir explicações da ciência. Sináptica tem como essência utilizar a comunicação como mecanismo de interpretação dos fenômenos da mente contemporânea, observando reflexos na sociedade atual. A necessidade de encontrar na mídia textos mais aprofundados sobre a relação do cérebro com comportamento, trauma, transtornos e memória, entre outros temas, guiou a nossa abordagem sobre o assunto. Com conteúdo técnico ilustradi por exemplos práticos, Sináptica se propõe a dar voz e visibilidade àquilo muitas vezes negligenciando nos meios de comunicação tradicionais, por exigirem dedicação mais complexa. Com o objetivo de discutir tanto hipóteses levantadas em conversas informais, quanto em discussões acaloradas sobre temas controversos que não costumam aparecer na mídia – como o suicídio –, a ideia é servir-se do conhecimento científico para proporcionar compreensão a todos que se interessam pelas pautas selecionadas. Seguindo a intenção de tornar a abordagem do cérebro menos burocrática e mais compreensível ao entendimento de suas funções, influências e consequências, o projeto se justifica pelo desejo coletivo de falar sobre isso no jornalismo. Entre nessa viagem guiada por um dos sistemas mais complexos, encantadores e em constante transformação: o cérebro humano.
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sinapses 10 contemporâneas O poder do órgão mais complexo do corpo humano
cérebro 18 de silício
Como a era digital pode afetar as funções da memória
abraço 24 virtual
Hormônio da ocitocina traz prazer por meio de likes nas redes sociais
neurônios 32 criativos
Criatividade pode ser desenvolvida com estímulos ao cérebro
trauma 38 inconsciente
As marcas e os transtornos provocados pela violência urbana
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síndromes 46 modernas
As doenças que afetam o cérebro humano no século XXI
corpo que 58 sofre
Conexões cerebrais se transformam em transtornos alimentares
agressão 66 juvenil
Adolescentes mais agressivos suscitam debate na sociedade
ecos do 72 suícidio
Como ficam as mentes quando convivem com a vontade de morrer?
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SINAPSES SAENÂROPMETNOC O cérebro é capaz de se regenerar e se transformar conforme os estímulos externos. Mas como isso impacta a vida em sociedade?
Júlia Pulvirenti
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ão é novidade para ninguém que, de uns anos para cá, o jeito de se relacionar com as pessoas se transformou. Basta um par de cliques para que não precisemos mais decorar endereços e números de telefone. As fotos, antes guardadas com esmero pelas famílias em caixas e gavetas, hoje estão armazenadas em memórias digitais. A intensa produção de conhecimento virtual, juntamente com a era dos likes e do compartilhamento, chegou e revolucionou o modo como percebemos os outros. Uma pesquisa realizada pelos psicólogos do site ForensicPsychology.net apontou que a população mundial gasta 35 bilhões de horas na web por mês, e que 61% dos internautas são considerados viciados na internet. Além disso, eles comprovaram que se consome o triplo de informação que há 50 anos. Embora traga facilidades, o uso excessivo da web pode ser danoso. Conforme a reportagem Cérebro de Silício, de Antonio Carlos De Marchi, o fato de não exercitar a memória pode causar seu atrofiamento, garante a cientista britânica Suzan Greenflield. Muito mais do que avanços e modificações sociais, as tecnologias e a modernização podem ser capazes de mudar o cérebro fisicamente. Muitas das descobertas na área da neurociência ocorreram nos últimos 50 anos, expandindo o conhecimento acerca das funções desempenhadas por esta parte enigmática do corpo humano. As pesquisas conseguiram demonstrar que o cérebro é plástico, maleável, e que possui a capacidade de se reinventar, produzir novos neurônios e novas conexões, explica a professora da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e pesquisadora do Centro de Memória do Instituto do Cérebro Cristiane Furini. A professora afirma que, com o avanço da ciência, hoje existem técnicas que permitem observar o sistema nervoso central em atividade, como a ressonância magnética funcional e a tomografia por emissão de pósitrons, que possibilitam detectar as regiões mais ativas em cada situação, permitindo que se mapeie o funcionamento. Uma das principais consequências do bombardeio de informações é a ansiedade – considerada por especialistas o mal do século XXI. Muitas pessoas não têm paciência para assistir a um vídeo com mais de dois minutos, por exemplo. Pulam já para a parte final. Com os aplicativos de mensagens instantâneas, são poucos aqueles que estão disponíveis a esperar horas para receber uma resposta. Há 50 anos, só era possível se comunicar pessoalmente ou por carta, hábito quase inexistente atualmente. Com a internet, pode se tornar mais difícil a concentração em um único conteúdo, como um livro ou um artigo. Há, também, um hormônio chamado ocitocina, responsável pelo
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comportamento e formação de laços pessoais. Ele é conhecido como “hormônio do carinho” ou “do amor” e é liberado em situações positivas, causando a sensação de bem-estar. Conforme a reportagem Abraço Virtual, produzida por Ágatha Pedotte, o neuroeconomista Paul J. Zak comprovou, em 2010, que o engajamento nas redes sociais aumenta os níveis de ocitocina no cérebro. A cada notificação e like, o coração acelera, e o sentimento de aprovação passa pelo corpo todo. Estudos têm demonstrado que o celular pode atrapalhar a capacidade de atenção em uma tarefa específica. Apenas notar uma notificação no telefone causa a mesma distração se o indivíduo usasse efetivamente o aparelho. Dessa forma, manter a concentração ou a atenção em determinada atividade significa, essencialmente, inibir distrações de forma flexível e de acordo com as necessidades de cada instante. Alexandre, que preferiu não identificar o sobrenome, é diretor de uma agência de publicidade em Porto Alegre e vive na prática as constatações de Cristiane. Segundo o empresário, quatro funcionários foram demitidos entre 2015 e 2016 por excesso de uso dos smartphones. “O uso do celular atrapalhava até mesmo aqueles que eram bons publicitários. Houve muitos atrasos na entrega de resultados aos clientes, falta de atenção em reuniões e desorganização”, lamenta. Por esse motivo, tem se falado muito em alternativas que podem auxiliar a manter o foco em uma determinada tarefa. A pesquisadora dá algumas dicas. “Uma saída é dividir a jornada de trabalho, ou seja, a cada 50 ou 60 minutos realizar um intervalo de 5 a 10 minutos, além de manter uma boa alimentação e eliminar a bagunça e o desconforto, pois um ambiente limpo e organizado se torna mais convidativo ao trabalho ou estudo.” Outra alternativa para treinar a concentração são as oficinas de criatividade, cada vez mais comuns em universidades e grandes empresas. Dentre os principais da região sul do país está o Laboratório de Criatividade do Parque Tecnológico da PUCRS, o CriaLab, responsável por capacitar diversos funcionários de empresas por meio de metodologias que incentivem sua criatividade. Mais detalhes de seu andamento serão apresentados na matéria Neurônios Criativos, escrita por Marcel Horowitz. Além das novidades digitais, há um processo natural que modifica o cérebro de forma estrutural e funcional: o envelhecimento. O cérebro de adultos e idosos, quando comparados com o de jovens, pode começar a apresentar uma diminuição de volume, com perda de 5% a 10% entre os 20 e os 90 anos. Cristiane explica que esse procedimento pode ser entendido por várias alterações, incluindo diminuição da densidade de conexões sinápticas, da atividade
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de neurotransmissores e perda dos prolongamentos dos neurônios, conhecida como plasticidade cerebral. Entretanto, a médica esclarece que durante o envelhecimento normal não há dano significativo de neurônios, e que a perda neuronal poderá ser observada na presença de doenças neurodegenerativas. Outro fator decisivo para modificações extremas no cérebro é a violência urbana, que será abordada mais profundamente na reportagem de Bruna Paz Ferreira, Trauma Inconsciente. Uma pesquisa publicada no U.S. Department of Veterans Affairs revela que 60% dos homens e 50% das mulheres estão propensos a passarem por algum trauma na vida. Acontecimentos extremos como agressão sexual, abuso infantil, assaltos ou testemunhar morte e ferimentos podem causar traumas que, a longo prazo, desencadeiam crises de pânico, depressão, ansiedade ou fobia social. Ainda segundo a pesquisa realizada pelo ForensicPsychology.net, os usuários mais ativos da internet têm mais do que o dobro de chances de serem pessoas deprimidas e possuem 20% a menos de matéria branca cerebral (uma espécie de “geleia” que transmite sinais nervosos). O resultado dessa combinação é a alteração das emoções, memória, oratória e velocidade do pensamento. Um estudo realizado pela instituição de saúde pública do Reino Unido, Royal Society for Public Health, em parceria com o Movimento de Saúde Jovem, revela uma realidade preocupante: o Instagram é a rede social mais nociva à saúde mental. Por outro lado, o site menos nocivo é o YouTube, seguido do Twitter. Facebook e Snapchat ficaram em terceira e quarta posição, respectivamente. É de conhecimento geral que a maior parte dos jovens de 14 a 24 anos estão conectados às redes sociais. As taxas de ansiedade e depressão nessa parcela da população aumentaram 70% nos últimos 25 anos. Para este levantamento, 1.479 indivíduos apontaram o quanto as principais redes influenciavam sentimentos negativos e positivos. A resposta foi clara: o compartilhamento excessivo de fotos pelo Instagram impacta negativamente o sono e a autoimagem dos jovens. Outro comportamento decorrente da extrema exposição social é o FOMO (fear of missing out ou, em tradução livre, medo de estar perdendo). É comum, principalmente para os adolescentes, sentirem-se excluídos por ficarem de fora dos acontecimentos ou das tendências da internet. As causas, consequências e a maneira como essas doenças abalam a vida de seus portadores serão esclarecidas na reportagem Síndromes Modernas, realizada por Gabriela Castro, Laura Zucchetti e Rodrigo Aliardi. A psicóloga Carolina Rabechini explica que a personalidade de uma pes-
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soa só se forma por completo aos 18 anos, e, ainda assim, pode vir a sofrer algumas transformações por eventos externos traumáticos. Desta forma, o adolescente sente a necessidade de aprovação por estar em constante busca da identidade. Ele experimenta diversos grupos de amigos, escuta diferentes tipos de música, pois precisa ter a sensação de pertencimento. Durante a pesquisa feita pela Royal Society for Public Health, o Instagram recebeu mais da metade das avaliações negativas: sete a cada 10 voluntários disseram que o aplicativo faz com que eles se sintam piores em relação à visão de si mesmos. Carolina aponta essa baixa autoestima como resultado da comparação com outras pessoas. Entre as meninas, também por causa do Instagram, nove em cada 10 se sentem infelizes com seus corpos e pensam em mudar a própria aparência, até mesmo por intervenções cirúrgicas. “As plataformas que supostamente ajudam os jovens a se conectarem podem estar alimentando uma crise de saúde mental”, afirmou a Royal Society for Public Heath, na divulgação dos resultados da pesquisa. A busca por aprovação e perfeição pode causar transtornos físicos e cerebrais, como bulimia e anorexia, que serão tratados mais a fundo na reportagem Um corpo que sofre, de Mariana Ribeiro. Assim, não é surpresa que o número de suicídio está aumentando ano após ano. Na matéria de Rebeca Kuhn, Ecos do Suicídio, serão apresentados dados sobre essa tragédia que afeta não só quem deu fim à própria vida, mas também os familiares. Segundo pesquisa do Núcleo de Informações em Saúde do Rio Grande do Sul, foram contabilizados 1.167 casos de suicídios em 2016, 1.137 em 2015 e 1.111 em 2014. A psicanálise trabalha o suicídio como um ato singular, nunca igual ao outro. Além disso, as pesquisas confirmam o impacto negativo da tecnologia na vida das pessoas. Atualmente, vem sendo produzidos diversos conteúdos que englobam esse assunto, por se tratar de um interesse geral, e, muitas vezes, geram um certo fascínio. Séries como Black Mirror e 13 Reasons Why mostram como a necessidade de aprovação altera pensamentos e comportamentos, podendo levar alguém a cometer uma fatalidade, como matar outra pessoa para preservar a própria reputação ou se suicidar para acabar com o sofrimento. Alguns pensam que o suicídio é fraqueza, ou que depressão e ansiedade não passam de frescura. Não é raro escutar de pessoas mais velhas que “antigamente não tinha esse tipo de problema” e que hoje em dia “as crianças estão muito avançadas” e que, por esse motivo, o mundo está tão conturbado. Para Cristiane, as crianças não estão mais avançadas ou não são mais inteligentes que aqueles que nasceram há 20 ou 30 anos. Elas estão apenas passando por um processo de adaptação. As crianças nascidas nos últimos
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anos têm acesso a um maior número de tecnologias, desde brinquedos com muitos estímulos até jogos e aplicativos. Para a médica, é importante analisar o contexto. Gerações anteriores não nasceram inseridas no meio digital e tiveram que incluí-lo em sua rotina. “Assim, para as gerações que já nasceram na era digital, a internet é algo natural e essencial, um meio para se relacionar, estudar e trabalhar, mas isso não significa que sejam mais ou menos inteligentes, é só a maneira como estamos vivendo atualmente”, desmistifica Cristiane. Entretanto, as novas mídias influenciam a forma como os jovens convivem com amigos e familiares. Para a defensora pública do Rio Grande do Sul, Barbara Sartori, os adolescentes podem ter seu desenvolvimento afetado pelo fato de se isolarem. A atenção está mais voltada ao computador ou à tela do celular, que para a vida fora da internet. Os pais precisam ficar atentos para esse comportamento não se tornar corriqueiro e resultar em desequilíbrios emocionais como agressividade e déficit de atenção, que serão explicados a fundo na reportagem Agressão Juvenil, de Rafael França. Desta forma, a publicação Sináptica busca aprofundar os estudos acerca do cérebro humano e suas transformações na contemporaneidade. A “massa cinzenta”, como é chamada por alguns especialistas, não mudou apenas fisicamente. A internet, a violência, as doenças psíquicas e outros fatores fazem com que as pessoas tenham outra percepção dos outros e de si mesmas. Nas próximas páginas, você vai descobrir e compreender a complexidade do órgão mais importante do corpo humano.
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CÉREBRO DEOICÍLIS O descompasso entre as facilidades e o uso irrestrito da tecnologia afeta diretamente a memória ao transferir funções do cérebro humano para o cérebro digital
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cada dia mais dependente de aparatos tecnológicos, a população mundial se vê refém do uso constante de recursos encontrados na internet, como, por exemplo, uma rápida consulta para tirar alguma simples dúvida ortográfica. Somente no Brasil, 102 milhões de pessoas, ou seja, mais da metade da população, estão conectadas, segundo pesquisa realizada no final de 2015 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI. br). Em vez de usarem o próprio intelecto, as pessoas recorrem ao cérebro digital, que basta estar conectado à internet para poder ser usado. Um estudo realizado pela Kaspersky Lab, empresa de cibersegurança da Rússia, em 2015, constatou que as pessoas consultadas procuram guardar novas informações em computadores e dispositivos móveis em vez de usarem a memória. A pesquisa ainda revela que 70% dos adultos entrevistados que lembram de números de telefones usados durante a infância não memorizam o telefone atual do trabalho ou de parentes próximos. O artigo The Internet Has Become the External Hard Drive for Our Memories, publicado pelos pesquisadores Daniel Wegner (Harvard University) e Adrian Ward (University of Colorado Boulder), na revista Scientific American, delega à internet a função de extensão do cérebro humano, quando explicam que o aspecto social da lembrança está sendo substituído por ferramentas digitais. Embora a internet traga facilidades, o uso em excesso pode gerar atrofiamento precoce do encéfalo. A afirmação é da cientista britânica Suzan Greenflield. Ela se baseia em dois estudos, um realizado por chineses e outro por americanos. O primeiro verificou mudanças morfológicas em cérebros de crianças proporcionais ao tempo em que estiveram imersas no mundo virtual. O segundo revela mudanças complexas no comportamento de pessoas expostas continuamente à tecnologia, porém, a pesquisa aponta que é difícil concluir o que é ruim e o que é bom nelas, apesar de existirem e ficarem gravadas na memória. A pesquisadora do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da PUCRS Jociane de Carvalho Myskiw é enfática ao dizer que a estrutura cerebral atrofia quando pouco utilizada. “Quanto menos usamos o cérebro, mais difícil será na próxima vez que teremos de usá-lo. Os nosso neurônios perdem sinapse e conectividade quanto menos usamos; e, quanto mais usarmos, melhor serão os resultados”, explica. A pesquisa realizada pelo Kaspersky Lab revela outro dado importante: das 6 mil pessoas pesquisadas, 79% delas tendem a guardar memórias pessoais em formato digital. Se há 15 anos fotografias eram armazenadas em álbuns físicos, hoje, com o baixo custo e a alta quantidade de cliques feitos, elas são depositadas em pastas, muitas vezes desorganizadas, nos computadores,
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na nuvem e nas redes sociais. É como Cristine Bertan costuma armazenar a maioria de seus momentos. Desde 2015, quando teve seu notebook roubado, a consultora do SEBRAE procura salvar em plataformas digitais fotos, vídeos e documentos. Cristine armazenava seus arquivos apenas no computador portátil antes de o mesmo ter sido levado por ladrões. “Hoje em dia, guardo meus materiais e registros de trabalhos no máximo de lugares que puder. Perdi muita coisa que nunca mais poderei ter de volta”, conta. Outra pesquisa, guiada recentemente pela psicóloga Linda Henkel, da Universidade Fairfield, nos Estados Unidos, aponta que o uso indiscriminado do smartphone para tirar fotos prejudica a habilidade de lembrar daquilo que está sendo vivenciado. A pesquisa de Linda, publicada na revista online Psychological Science, revela que, ao não interagir com o objeto a ser fotografado, o ser humano acaba por designar ao aparelho tecnológico essa função. Jociane diz que é mais provável que lembremos do momento de forma detalhada ao dar importância para algo. Isso inclui criar laços tanto com sentimentos quanto com materiais físicos. “Esquecer está muito mais ligado com os significados dos acontecimentos do que com prejuízo de memória”, afirma. Na contramão desta pesquisa, Taysson Cenci, empresário de uma pequena cidade da Serra Gaúcha, tem o costume de, ao menos uma vez por mês, apagar todas as fotos e vídeos que faz com o celular. “Toda vez que a memória do meu smartphone fica cheia eu vou lá e faço uma limpeza geral. Não salvo no computador e nem publico nas redes sociais. Apago tudo”, afirma. Cenci explica que, por não serem registros importantes, na maioria das vezes não tem porquê mantê-los e que, se for um registro de grande valor sentimental, a memória dele o ajudará a lembrar. Jociane afirma que não é problema armazenar registros fotográficos e filmagens de forma digital, e que o aparelho tecnológico revela, de forma mais fiel, como realmente aconteceu determinado fato. “É uma maneira diferente de ter os detalhes, já que antes tínhamos apenas fotos físicas. O filmar existia, mas era algo caro. A diferença é que hoje você tem uma memória num dispositivo digital e ela é mais fidedigna. Principalmente se for filmagem”. O mesmo ocorre quando o assunto é informação. Ao usarem o computador como extensão do cérebro, conferindo a ele a atividade de lembrar-se das coisas, as pessoas passam pelo processo chamado de “amnésia digital”, que é quando elas se dão a licença de esquecer informações importantes, pois sabem que podem buscá-las a qualquer momento na internet. Esse fenômeno é visto por Jociane como uma estratégia criada pelo cérebro para não ficar atrofiado. “Hoje estamos mais preocupados em saber onde a informação está
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do que em tê-la. Saber onde encontrá-la também é um exercício. As pessoas se preocupam menos em ter a informação consigo, porque hoje é tudo muito dinâmico. Se você souber onde encontrá-la é bem melhor do que tê-la consigo”, avalia. Jociane, que também é professora universitária, observa esse fenômeno dentro da sala de aula. “Vejo pelos meus alunos. Quando dou um artigo para lerem e peço a opinião deles, de prontidão eles já querem ir pra internet pra saber se alguém já falou sobre. É como se você não precisasse pensar por si, porque alguém já fez isso. Com isso, a gente acaba se esforçando menos. Pessoas procuram cada vez mais por tutoriais ao invés de ler o manual. São praticidades da modernidade que acabam nos deixando mais preguiçosos”, conta. Para quem usa frequentemente a internet, qualquer informação pode estar acessível apenas a alguns cliques. Num artigo publicado na revista científica Science, Betsy Sparrow, Jenny Liu e Daniel M. Wegner afirmam que a internet “tornou-se uma forma primária de memória externa, onde as informações são armazenadas coletivamente fora de nós mesmos”. A pesquisa conduzida por Betsy aplicou uma série de experimentos que testou como as pessoas lembram de informações se elas estão acessíveis na internet. A primeira amostragem identificou que as pessoas lembravam menos se soubessem que as informações estavam armazenadas online. No segundo momento, se as pessoas pesquisadas pudessem achar uma determinada informação online, teriam uma probabilidade menor de lembrar dela posteriormente. No entanto, se a informação não pudesse ser acessada facilmente online, as pessoas, conscientes disso, apresentaram chances maiores de lembrar da informação. A quantidade de informações, somada ao desejo de estar por dentro de tudo que acontece no mundo, está fazendo com que a memória de curto prazo esteja sempre cheia. Essa memória, diferente da memória de trabalho, que é muito rápida e dura segundos – por exemplo, se alguém dita um número telefônico; é muito provável que após discado logo seja esquecido –, dura minutos ou poucas horas. É a que se usa para manter uma conversa ou para acompanhar a narrativa de um livro. A sobrecarga de informação acaba dificultando a armazenagem de conteúdos no cérebro, fazendo com que não haja controle eficaz do grande fluxo de informações que passam pela memória de curto prazo, como explicou Tony Schwartz, especialista em produtividade, ao The Huffington Post, em 2013. “Estamos constantemente perdendo a informação que acabou de entrar – pois estamos constantemente substi-
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tuindo-a e não há espaço para guardar o que já estava dentro”. O resultado é uma experiência muito superficial, na qual o homem só tem o que está na sua memória naquele momento. Schwartz avalia que é “difícil as pessoas metabolizarem e entenderem a informação porque há tanto conteúdo vindo em sua direção e isso é muito atraente. Você acaba sentindo-se sobrecarregado porque o que você tem é uma quantidade infinita de fatos sem uma maneira de conectá-los em uma história que faça sentido”. Jociane avalia que o cérebro faz concessões a partir de uma seleção do que é importante para a pessoa e, ao mesmo tempo, generaliza a todo o momento. “Pessoas com supermemórias reclamam que não conseguem viver o hoje porque se elas forem contar sobre o dia de ontem, vão demorar exatamente 24h para tal”. Jociane avalia que o esquecimento também é bom, pois o cérebro precisa fazer generalizações. “Não tem por que eu gravar todos os tipos de cadeira que encontro no meu dia a dia. Eu gravo o biotipo da cadeira e pronto. Generalização é uma necessidade de sobrevivência. Quando é necessário, a nossa estrutura cerebral tem a capacidade de gravar os detalhes ao máximo possível”, explica. Isso ocorre quando a emoção, que é o fator determinante para formar as memórias de longo prazo, é posta em evidência. Esse tipo de memória se constrói ao longo de três a seis horas após um aprendizado e depende de uma série de processos bioquímicos, modulados por vários neurotransmissores, em células localizadas em estruturas específicas do cérebro. Na avaliação de Jociane, a construção da memória de longo prazo depende de como e quão constantemente as pessoas interagem com a memória digital. “Existe o risco de que o registro constante de informação em dispositivos digitais nos torne menos propensos a guardar informações de longo prazo e até nos distraia de memorizar corretamente um acontecimento”, finaliza.
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LAUTRIV Quantidade de curtidas nas redes sociais liberam o hormônio da felicidade no cérebro. A sociedade moderna está viciada em aprovação social?
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Brasil possui em torno de 200 milhões de habitantes, 54,9% deles possuem acesso à internet, de acordo com dados da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (Pnad) e divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2014. O Brasil é o país da América Latina que mais faz uso de redes sociais. Em 2016, uma pesquisa feita pelo eMarketer revela que 93,2 milhões dos brasileiros já estavam fazendo uso delas naquele ano. Quase metade da população está ativa nesses sites e aplicativos. A internet gera mudanças comportamentais e sociais, e o crescente acesso a ela incentiva a mudança. A busca por aprovação do outro para crescimento social sempre esteve presente, porém, as redes sociais impulsionaram ainda mais essa necessidade. O sentir-se aceito por outros ocorre por intermédio de fotos, vídeos, publicações e compartilhamentos de ideias em suas páginas pessoais. O número de seguidores, curtidas e comentários define o quanto uma pessoa é popular e, portanto, aceita em sociedade. Muito além de um movimento no comportamento social, a aceitação via redes sociais causa a liberação de um hormônio no cérebro: a ocitocina. Ocitocina ou oxitocina é um hormônio encontrado em abundância no interior do hipotálamo, região no interior central dos dois hemisférios cerebrais que, dentre suas diversas funções, é responsável pelo comportamento. Uma das primeiras descobertas sobre esse hormônio foi sua capacidade de facilitar o parto em mamíferos. Estudos atuais indicam que a ocitocina auxilia na formação de laços pessoais: quando as pessoas estão na internet esses laços são intensificados. O hormônio do carinho pode ser liberado em contatos sociais face a face. A interação entre indivíduos na internet e presencialmente acontecem de maneiras diferentes. Quando a interação social é feita de forma presencial, existe maior dificuldade na liberação do hormônio, precisando necessariamente vir de um momento especial ou de alguém especial. Sendo assim, a liberação da ocitocina provocada a partir do uso das redes sociais é influenciada por fatores que vão além de aprovação de uma pessoa importante para o indivíduo. Ela é baseada em números e influência no digital. O nível de ocitocina no cérebro quando estamos nas redes sociais é equivalente à quantidade que é liberada em momentos mais emocionantes na vida real, como casamentos, por exemplo. O psicólogo André Verzoni destaca que a aprovação social continua sendo importante tanto no ambiente físico quanto no meio online. Porém, ela surge como consequência da necessidade de consolidação de identidade das pes-
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soas. “As redes sociais oferecem recursos que permitem a construção de uma superidentidade, seja ela fictícia ou não”, explica. Verzoni ressalta, porém, que a sustentação de uma identidade virtual pode ser tão difícil, desafiadora e estressante quanto criar e consolidar uma identidade na vida real. Em 2010, o neuroeconomista Paul J. Zak descobriu e provou cientificamente, pela primeira vez, que o engajamento nas redes sociais aumenta os níveis de ocitocina no cérebro. Zak destaca, em entrevista concedida à revista Fast Company, que a ocitocina, hormônio da felicidade, é liberada quando alguém confia em outra pessoa e esse sentimento de confiança é recíproco. “As empresas sempre estão tentando liberar a ocitocina, elas irão tentar fazer você confiar nelas, mas elas continuam descobrindo em pesquisas que elas não podem forjar esse acontecimento”, afirma. Dessa forma, quando o assunto é redes sociais, os likes seriam demonstrações de confiança no conteúdo que está publicado, e a resposta do cérebro é a liberação do hormônio que dá a sensação de felicidade. Assim funciona, inclusive, com comentários, compartilhamentos e seguidores. Se os números estão altos significa que você está postando os conteúdos certos e sendo aceito pela sociedade. A ocitocina é também chamada pelo neuroeconomista e outros estudiosos da área de cuddle hormone, em tradução livre seria o hormônio do carinho. Raquel Recuero explica em seu artigo Jogos e Práticas Sociais no Facebook: Um estudo de caso do Mafia Wars que as redes sociais são uma metáfora para a estrutura de um grupo social. Para ela, os sites de interação são constituídos pelos indivíduos e os laços sociais existentes entre eles. Esses laços, por sua vez, são formados através das interações do dia a dia e podem ser classificados entre fortes e fracos. Os fortes são constituídos pela intimidade, já os fracos são o exato oposto. A autora destaca que esses níveis de laços são, muitas vezes, confundidos no mundo online, onde não é preciso manter um contato ou um nível de intimidade para ser “amigo” de alguém. Afinal, basta clicar em adicionar ou seguir que aquela pessoa já estará conectada a outra. Verzoni diz que o comportamento social nas redes é distinto do contato presencial. A principal diferença reside nos obstáculos que o ambiente virtual impõe à capacidade dos indivíduos de ter empatia. Ou seja, é muito mais difícil ter afinidade nas redes sociais. Por essa razão, a possibilidade de mal-entendidos, conflitos e condutas inadequadas pode aumentar. “Estudos apontam que a falta de contato visual, o sentimento de impessoalidade e a falta de identificação nos ambientes virtuais podem trazer influências negativas sobre o comportamento social das pessoas”, destaca.
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Por trás das telas de computadores, tablets e smartphones, os indivíduos sentem-se anônimos e livres para dizerem o que pensam. Verzoni explica que, ao mesmo tempo em que as redes sociais trazem impessoalidade e sentimento de intimidade por, aparentemente, mostrar coisas pessoais sobre a vida das pessoas, elas também destacam aspectos negativos para a vida em sociedade. Além disso, a busca incessante por likes pode ser pejorativa, já que a vida que existe por meio da internet é apenas uma representação da realidade. Isto é, as pessoas mostram o que há de melhor nas redes para, justamente, impressionar e ganhar reconhecimento. Um estudo feito em 2015 pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, em parceria com a Universidade de Leuven, na Bélgica, e publicadaono Journal of Experimental Psychology: General, diz que, ao ver as postagens felizes de outras pessoas, o indivíduo tende a sentir-se triste com a própria vida. A pesquisa analisou 84 estudantes universitários usuários de redes sociais. No período da pesquisa, eles não postaram ou compartilharam conteúdos, apenas observaram o que as outras pessoas estavam publicando. O estudo identificou um aumento do sentimento de tristeza e inveja enquanto os estudantes olhavam postagens. Nas redes sociais, todos possuem a vida perfeita e, mesmo sabendo que essa não é a realidade, a competição silenciosa para ver quem é mais feliz torna as relações mais fracas e o ser humano mais triste e invejoso. Verzoni explica que esse sentimento de inveja e apatia em relação à vida de outras pessoas não tem relação apenas com a suposta felicidade expressada em seus perfis, mas também com a quantidade de aprovações. “Os likes podem funcionar tanto para liberar a ocitocina e deixar as pessoas felizes e sentindo-se aceitas, quanto para as deixar tristes ao ver que outra pessoa possui mais aprovação social do que ele”, esclarece o psicólogo. Em contrapartida ao sentimento de inveja ao observar a vida do outro, existem pessoas nas redes sociais que encaram as suas postagens como uma chance de reconhecimento além do social. As influenciadoras digitais enxergam em cada foto uma oportunidade profissional de embarcar em um novo mercado de trabalho que envolve blogueiras e youtubers. Khamire Pimentel Batista (1.785 seguidores, 1.344 publicações e média de 100 likes por foto no Instagram) e Isadora Assis (519 seguidores, 14 publicações e média de 150 likes por foto no Instagram) são estudantes da área de comunicação. Levantam todos os dias para trabalhar e estudar e fazem coisas normais do dia a dia de uma pessoa comum. Mas o que leva ambas meninas de vinte e poucos anos possuírem engajamento crescente em fotos publicadas nas redes sociais?
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Para Verzoni, likes são aprovações ou reforços positivos. “Dependendo do indivíduo que curtiu e o que ele representa para a pessoa, o efeito pode ser ainda maior”, explica o psicólogo. Nas relações sociais face a face essas aprovações também ocorrem, mas, habitualmente, elas são mais subjetivas. Nesse sentido, os likes podem assumir um caráter mais aditivo, uma vez que são rápidos, diretos e instantâneos. Khamire, 24 anos, e Isadora, 20 anos, revelam que utilizam truques para aumentar engajamento em suas fotos. “No meu Instagram, a ideia é sempre postar coisas que eu amo e fazem parte de mim, por exemplo, paisagens, pôr do sol e algo relacionado à moda”, diz Khamire. A estudante de Publicidade e Propagada comenta que possui uma sequência para publicação. Geralmente, publica primeiro uma foto sua e duas de paisagens. Depois, imagens do trabalho, que ela classifica como “fotos para respiro conceitual”. O próprio pensamento estratégico para o compartilhamento de suas fotos nas redes sociais já enfatiza a influência da ocitocina no cérebro. A relevância no meio social tem se tornado crescente e o surgimento dos influenciadores digitais, youtubers e blogueiros prova o quanto ser importante na internet é sinônimo de status social. O cidadão comum também quer fazer parte disso, e busca, por meio de momentos especiais, oportunidades para emplacar na rede e conseguir likes. Vários pontos são levados em consideração antes de publicar uma foto nas redes sociais, o horário é um deles. Para Isadora, os melhores horários para receber likes são de noite. “Escolho postar no início da noite durante a semana porque sei que esse é um horário que as pessoas estão checando as redes”, revela a estudante de Jornalismo. Já Khamire faz suas postagens no meio da manhã e no fim da tarde. Para ela, esses horários são os que seus seguidores mais estão presentes nas redes. A busca por aprovação social e por uma identidade digital, como destacado anteriormente por Verzoni, se faz muito clara no meio online. Os likes representam o quanto um indivíduo é aceito, assim como seu número de seguidores e comentários. Khamire e Isadora dizem que os likes representam para elas popularidade, e que se sentem bem quanto mais ganham em suas fotos. A estudante destaca que “os likes são importantes porque refletem a identificação e geração de valor de um conteúdo para a audiência”. Khamire tem interesse em transformar o seu engajamento nas redes sociais em algo profissional. A preocupação com horário, edição das fotografias, quantidade de conteúdos a serem publicados em suas redes sociais decorrem de uma preocu-
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pação com a presença online. Essa “caça” constante por aprovação social e reconhecimento na vida virtual pode ser considerada uma consequência do costume do cérebro à liberação da ocitocina. Verzoni destaca que a busca por aprovação social não é exclusiva de jovens e nem é consequência das atividades na internet, apesar de ter sido intensificada com o uso das redes sociais. De acordo com o pesquisador, todo o desenvolvimento social dos seres humanos é marcado pela interação em sociedade, e, portanto, a aprovação de seus iguais. “A medida para a necessidade de aprovação social seria o equilíbrio, e o quanto ela realmente serve para tornar o indivíduo melhor”, explica. Dessa forma, apesar de intensificada e se apresentar de uma forma diferente, a aprovação social não é uma consequência da sociedade moderna. Ela nasce da própria interação humana e evolui conforme os padrões sociais mudam. Com o surgimento da internet e crescimento do uso das mídias sociais, os indivíduos encontraram formas mais instantâneas de sentirem que fazem parte da sociedade. Através de fotos, textos e vídeos, os melhores aspectos da vida daquele indivíduo são expostos na internet, e não em busca de tornar eterno os momentos felizes, e sim para conquistar a aprovação da sociedade. Antes o hormônio do carinho era dificilmente liberado em abundância no cérebro, precisando que a pessoa estivesse em contato com momentos especiais e pessoas que representassem links emocionais. Quando a aprovação social é colocada também na internet, os sentimentos são substituídos por números, e o cérebro moderno compreende que quanto mais likes, comentários e compartilhamentos, mais importante a pessoa é na sociedade. A mudança real no cérebro moderno não é a respeito da necessidade de aprovação, ela sempre esteve lá, a diferença é que agora existe uma forma mais fácil de liberar um hormônio que traz a sensação de aprovação, confiança e felicidade.
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SOVITAIRC O funcionamento da criatividade e como é possível melhorá-la
Marcel Horowitz
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pesar da maioria das pessoas ainda associar o processo criativo como fator intrínseco ao trabalho de artistas, por exemplo, a crescente busca por cursos e oficinas que estimulem a criatividade no mundo empresarial e outras áreas demonstra que esta característica não se restringe apenas a músicos, pintores e atores. Segundo o professor de Design Gráfico da Universidade de Minnesota, Brad Hokanson, que ministra o curso “Solução criativa dos problemas”, a criatividade é parte das habilidades mentais do ser humano e pode ser adquirida e trabalhada através de exercícios práticos por qualquer pessoa. O avanço da chamada “neurociência da criatividade” fortalece a ideia de que o processo criativo consiste de sequências cognitivas interativas, conscientes e inconscientes, que podem ser estimuladas através da ativação de diferentes regiões do cérebro. Neurocientistas defendem que o modelo que divide o cérebro entre os hemisférios esquerdo e direito não oferece o melhor entendimento sobre como se dá a dinâmica cerebral da criatividade. Teorias mais recentes afirmam que diferentes regiões cerebrais podem ser utilizadas para dar conta da tarefa. Essas regiões trabalham com um “time” para realizar o trabalho criativo, podendo recrutar diferentes estruturas dos hemisférios cerebrais em uma espécie de interação dinâmica. Estas conexões podem ser resumidas em três grande operações: rede de atenção executiva, rede da imaginação e rede da saliência. Randy Buckner, eleito pela revista Science Magazine como um dos 10 mais influentes neurocientistas da atualidade, define que a rede de atenção executiva é aquela que envolve uma interação entre as regiões do córtex pré-frontal e áreas do lobo parietal, e é ativada quando estamos concentrados em uma palestra ou aula desafiadora, ou engajados em resolver problemas complexos de raciocínio que coloquem grandes demandas sobre a memória. O neurocientista norte-americano também concluiu que a rede da imaginação está ligada à construção de simulações mentais baseadas em experiências passadas, como as usadas durante lembranças, pensamentos sobre o futuro e geralmente quando imaginamos perspectivas ou cenários alternativos para o presente. É a chamada rede da cognição social, que envolve áreas profundas do córtex pré-frontal e lobos temporais, juntamente com a comunicação entre várias outras regiões internas e externas do córtex parietal. Segundo Buckner, a rede da saliência está associada à corrente interna de consciência e consiste dos córtex cingulado anterior dorsal e anterior insular. O segredo para a compreensão da neurociência da criatividade está em reconhecer que diferentes padrões de interação são importantes em distintos
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estágios do processo criativo. Por exemplo, Rex Jung, pesquisador especializado em neurociência da criatividade, sugere que quando permitimos que a mente vagueie livremente para imaginar novas possibilidades criativas, é bom reduzir um pouco a ativação da rede executiva de atenção e aumentar a ativação das redes de imaginação e saliência. É isso que acontece no cérebro de músicos de jazz e rappers quando estão improvisando. Mas o modelo de estrutura da cognição criativa é apenas um primeiro passo para compreender a questão. Essas pesquisas apresentam somente pistas da verdadeira neurociência da criatividade. A investigação de processos de larga escala nas redes neurais é a direção na qual tais estudos convergem para se aproximar da conclusão de que o processo criativo aparenta envolver uma dinâmica de ação recíproca das redes mencionadas. Segundo uma pesquisa realizada pela Federação de Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), entre 2013 e 2014, o mercado da chamada “indústria criativa” cresceu 90% no Brasil e, em 2015, atingiu a marca de um milhão de profissionais formais trabalhando em áreas como publicidade, design, moda, cinema, tecnologia, pesquisa, entre outras. De acordo com o estudo, com base a salarial das empresas que atuam no mercado da economia criativa, estima-se que o setor movimentou cerca de R$ 126 bilhões em 2013. Os dados demonstram que este mercado cresceu 69,8% no país em dez anos, o que significa um avanço de 36,4% do PIB nacional no mesmo período. “É isso que as empresas precisam, porque não adianta fazer uma empresa com muita eficiência, um ótimo produto, mas não ser do interesse do consumidor. A grande diferença é a capacidade de você fazer gerar valor”, afirma o coordenador de Projetos de Indústria Criativa da Firjan, Gabriel Bichara Pinto. O Relatório da Economia Criativa, produzido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO) em 2013, aponta que o comércio mundial de bens e serviços criativos somou US$ 624 bilhões (R$ 2,3 trilhões) em 2011, mais do que o dobro do crescimento registrado em 2002. Um exemplo disto é o fato de que, no mesmo ano em que o relatório foi produzido, este mercado adicionou aproximadamente 77 bilhões de libras esterlinas (R$ 430 bilhões) no Reino Unido, de acordo com dados divulgados pelo Departamento de Cultura, Mídia e Esporte britânico. Por aqui, em 2012, o Ministério da Cultura instituiu a Secretaria de Economia Criativa, com o intuito de fomentar esta atividade no país, com uma linha de crédito especial para projetos da área disponibilizada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES). Contudo, apesar das evidências neurocientíficas e mercadológicas, um
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dos motivos que pode explicar por que apenas uma minoria da população mundial é criativa está no fato de o cérebro estar naturalmente programado para poupar energia. É por essa razão que muitos profissionais que trabalham com a área da cognição criativa pregam que é importante sair da chamada “zona de conforto” e entrar em contato com novos estímulos e realidades que favoreçam a criatividade. Foi neste contexto que a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) criou o seu próprio laboratório de criatividade, o CriaLab. Fundado em agosto de 2011 no Parque Científico e Tecnológico da PUCRS (TECNOPUC) com o intuito de fomentar um espaço para diálogos criativos, o CriaLab desenvolve oficinas, palestras, cursos e projetos de capacitação com a intenção de estimular o processo criativo a partir de diferentes métodos interdisciplinares. Segundo a funcionária Juliana Bittencourt, o laboratório foi fundado na crença de que todas as pessoas podem ser criativas, se estimuladas por meio dos métodos certos. Entre os principais clientes do CriaLab está a HP Inc Brasil. Desde o final de 2013, a empresa firmou uma parceria com o laboratório com o intuito de unir o conhecimento originado pela universidade às necessidades do mercado, apostando em projetos que fomentem a conexão de ideias. Outra parceira desta iniciativa é a Hewllet Packard Enterprise (HPE), organização criada a partir de uma fração da HP. Anualmente, o CriaLab é responsável por capacitar diversos funcionários destas empresas a partir de metodologias que incentivem sua criatividade, em turmas que variam entre 20 e 100 pessoas, e cursos que duram de seis meses a um ano. O diretor do centro de pesquisa e desenvolvimento da HPE, Luis Fernando Saraiva, menciona a importância do fator humano em uma cultura organizacional. Segundo Saraiva, “o processo de inovação precisa acontecer em todas as esferas de uma empresa”. Para ele, o trabalho conjunto com o CriaLab proporciona o estímulo da inovação como uma prática diária e os resultados positivos desta parceria podem ser observados no desenvolvimento da empresa. Na opinião do diretor, a parceria com o CriaLab incrementou os esforços na área de pesquisa e desenvolvimento porque, na visão dos clientes da empresa, “é mais importante resolver problemas reais do que simplesmente criar novos produtos”. A crença na demanda criativa do mercado também é partilhada pelo professor do curso de Letras da PUCRS e escritor Charles Kiefer. Para ele, a demanda por criatividade é uma necessidade de mercado. A PUCRS, frente a este quadro, tomou a dianteira ao tornar-se a primeira universidade a oferecer cursos de Escrita Criativa desde graduações até doutorados. Para Kiefer, professor de escrita criati-
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va e organizador de diversos cursos ligados à temática, muitos de seus alunos se tornarão profissionais ligados a setores que envolvam criatividade e, desta forma, darão sequência à tendência no mercado de trabalho. “Vivemos uma época em que o trabalho criativo é a única alternativa para a mecanização do trabalho em um futuro próximo. Neste sentido, cada vez mais pessoas procuram cursos que estimulam a criatividade como forma de obtenção de um diferencial no mercado”, disse. Sob o aspecto da Neurociência, Kiefer acredita em modelos que auxiliam a instrumentalizar a criatividade nas pessoas. Para o escritor, incentivar a leitura e a escrita é a melhor maneira de despertar o processo criativo. “Temos que olhar para o nosso cérebro como um músculo que pode ser treinado. A leitura é a melhor forma de fazer isto, uma vez que sua prática é um dos melhores estímulos para sinapses cerebrais e outras atividades da mente”, afirma Kiefer. Não é o que pensa Vinícius Mano, autor do livro Conceito Criativo: notas sobre o processo de criação na publicidade. Na visão do professor de graduação em Publicidade e Propaganda da PUCRS, existe um modismo que está sendo explorado por diversas empresas que perceberam esta tendência de mercado. Para Mano, não basta incentivarmos a criatividade através do excesso de cursos e oficinas, mas sim criar uma cultura que estimule as pessoas a correrem o risco de investir em alternativas diferenciadas. ”Tem muita enganação. Estes cursos muitas vezes mascaram o verdadeiro processo criativo, pois acabam maquiando ideias ruins através de metodologias pré-concebidas. Em minha opinião, apenas 20% do total das pessoas possuem potencial criativo genuíno.” Mano afirma que diversos governos, como o da Inglaterra, instituíram a indústria criativa como departamentos de Estado responsáveis por suscitar valores ligados à criatividade no mercado e na sociedade. Para ele, a criatividade, hoje em dia, possui valor econômico e isso tem um lado bom e outro ruim: por um lado, existe um incentivo cada vez maior ao trabalho “pensante” no mercado; por outro, o conceito de criatividade acabou sendo banalizado, o que gerou um modismo que muitas vezes não passa de simples engodo. A criatividade pode ser o segredo para aqueles que desejam se diferenciar no mercado de trabalho. As empresas buscam uma atitude pró-ativa de seus funcionários e apostam em ações e modelos tanto para desenvolvimento pessoal de seus contratados quanto para o avanço dos negócios. Resta apenas descobrir qual será o verdadeiro papel da criatividade em um futuro próximo, que, ao que tudo indica, aparenta ser propício ao desenvolvimento do processo criativo.
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TRAUMA E T N E I C S N OC N I A violência urbana tornou-se um problema de saúde pública. A mais corriqueira é o assalto, que traz para a vítima não somente o medo e a insegurança, mas traumas que podem ser levados para a vida
Bruna Ferreira
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s assaltantes estavam tensos. Mas o guri passava dos limites. Era muito agressivo. Me perguntaram se o carro tinha corta corrente ou rastreador, mas o guri não acreditou em mim. Me mandou entrar no carro e me ameaçou bastante, mas consegui tranquilizar eles e o mais velho me soltou. Rodei com eles no carro por uns 200 metros. Foi bem rápido. Tive medo, mas sabia que eles queriam o carro”. Este é mais um relato de uma vítima, entre tantas, que passou por algum tipo de violência na Capital. O fenômeno tem se tornado um caso de saúde pública pelos danos que pode acarretar na integridade física e mental de uma pessoa. Douglas Lacerda, 25 anos, relata o que ocorreu em junho de 2016. Há pouco menos de um ano, o estudante de Jornalismo passou por um assalto que, por algum tempo, o fez refletir e até mesmo se culpar pelo o que havia ocorrido. “Quando fui assaltado, me cobrei por ter sido descuidado. O carro estava na frente da minha casa. Eu saí pelo portão e olhei para todos os lados, não vi nada, então abri o porta-malas para pegar um livro, mas descuidei por um minuto e, quando olhei para trás, um cara de uns 40 anos e um guri de uns 14 anos vieram na minha direção. Demorei para perceber que eu não tive culpa, que, independentemente de cuidado, em um minuto dois caras colocam uma arma na tua cabeça e roubam teu carro”, conta. Douglas mora em um bairro de classe média alta e já ouviu muitas histórias de assaltos por ali. A própria família do estudante já teve quatro carros roubados. Por este histórico de tantos roubos, sempre se cuidou muito. Achava, inclusive, que nunca havia sido assaltado por ser cuidadoso. Mas após o assalto percebeu que, no fundo, ele era apenas uma exceção. O estudante ressalta que, depois, redobrou os cuidados e que, ao mesmo tempo, muitas ações do dia a dia o remetem a lembrar do episódio. “Hoje não me permito ficar um minuto descuidado. Não que ache que isso vai me proteger de um assalto, mas tu te condicionas a ser constantemente preocupado. É inconsciente, qualquer sinal te remete à mesma sensação vivida no assalto. Tu achas que com precaução tu estás te protegendo, mas é só uma barreira criada pelo teu cérebro”, explica. Apesar dos relatos, Douglas não procurou nenhuma ajuda psicológica e afirma que, diante de tudo isso, após a pessoa passar por este tipo de evento pode, involuntariamente, julgar outras pessoas. “Depois do assalto, não paro mais o carro quando tem alguém desconhecido circulando na rua. Isso te causa também atitudes que considero ruins, como estereotipar perfis que tu consideras perigoso. Tu acaba sendo injusto e preconceituoso sem nem saber”, reconhece.
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O assalto se transformou em um evento traumático. Mesmo passado o susto, o estudante seguiu se sentindo ameaçado. É como se o episódio em que viu sua vida em risco o acompanhasse para sempre. Douglas sofreu com a violência urbana, mas o mesmo pode acontecer a quem sofre ou presencia situações de agressão sexual, violência, morte ou desastre natural. Segundo uma pesquisa publicada no site U.S. Department of Veterans Affairs, 60% dos homens e 50% das mulheres estão propensos a passarem por algum trauma em suas vidas. Enquanto as mulheres tendem a ser vítimas de agressão sexual e abuso sexual infantil, os homens tendem a sofrer com acidentes, agressões físicas, desastres ou testemunhar morte ou ferimentos, como em casos de guerra. Mas como se comporta o organismo da pessoa que passou por um trauma? É possível afirmar que as alterações comportamentais de Douglas refletem uma mudança na maneira do seu cérebro funcionar? Pessoas que passam por alguma situação ameaçadora podem desenvolver doenças emocionais e mentais como depressão, síndrome do pânico, transtorno de ansiedade e até mesmo problemas gastrointestinais. A essas doenças dá-se o nome de psicopatologias. A mais comum depois de um trauma é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que afeta regiões cerebrais. Uma delas é o Sistema Límbico, onde estão estruturas fundamentais para as reações emocionais, a amígdala, por exemplo. Ela é responsável pela identificação de uma ameaça. “Quando se tem TEPT, esta estrutura se ativa de forma desregulada, fazendo com que a pessoa passe a identificar situações neutras como ameaçadoras”, explica a psicóloga e doutoranda em Neurociências na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Letícia Leite. Responsável por uma pesquisa sobre TEPT, em desenvolvimento no Instituto do Cérebro (InsCer), na PUCRS, Letícia esclarece que no Sistema Límbico há uma outra estrutura fundamental para o armazenamento de nossas memórias e uma área sensível aos efeitos do estresse: o hipocampo. Conforme a psicóloga, após a vivência de um evento potencialmente ameaçador, o hipocampo diminui de tamanho. O estudo conduzido pela pesquisadora gaúcha é uma das diversas iniciativas que buscam melhores tratamentos e resultados para pessoas que passam por um quadro traumático. A pesquisa Avaliação do Efeito de Técnicas Autoaplicáveis em Parâmetros Clínicos e Cerebrais de Pacientes com Transtorno de Estresse Pós-Traumático propõe um novo tipo de intervenção em casos de TEPT. Sob orientação dos pesquisadores Augusto Buchweitz e Diogo Lara, Letícia está testando a utilização de um estímulo auditivo que permite um
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acesso mais rápido à memória emocional, pois consegue um contato mais direto com o Sistema Límbico. “Essa revivência é intensa, pois o áudio usa um estímulo bilateral, facilitando o acesso ao Sistema Límbico. Nossa hipótese é de que a pessoa terá condições de realizar a reconsolidação da memória traumática, ou seja, ela deixa de ser traumática e passa a ter ressignificação”, exemplifica Letícia. O TEPT não é nada incomum. Não há um fator determinante para explicar por que pessoas que passam por situações semelhantes respondem de maneiras diferentes e algumas o desenvolvem. Essas questões podem variar a partir de características de personalidade, gênero, condições socioeconômicas e até mesmo a frequência da ocorrência do evento. De acordo com o site National Institute of Mental Health, do Departamento de Saúde dos Estados Unidos e Serviços Humanos, nem todas as pessoas que passam por algum episódio de perigo ou medo desenvolvem o transtorno. Algumas experiências, como a morte repentina de um ente querido, por exemplo, também podem causar um transtorno de estresse. De acordo com o site, os sintomas podem começar três meses depois do incidente traumático ou, às vezes, anos depois. Em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou a violência como um dos maiores problemas de saúde pública. Situações nas quais pessoas enfrentam casos em que há probabilidade de morte, lesões, danos psicológicos, problemas de desenvolvimento ou privação de direitos, desencadeiam uma série de implicações para saúde mental e emocional. O Atlas da Violência 2017 mostra que o Brasil tem o maior número absoluto de homicídios no mundo. No período de 2005 a 2015 o número de homicídios aumentou 22,7%. Uma das violências que se tornou corriqueira é o assalto. Embora em alguns casos não haja agressão física, ainda assim é uma violência que pode trazer vários danos à saúde. Em abril de 2011, aos 15 anos, Cezar Tortorelli chegava em casa com o pai quando foi abordado por quatro assaltantes. Os criminosos entraram com Cezar na residência e renderam ele e toda a família por cerca de 45 minutos, tempo suficiente para levarem tudo e fugirem nos dois carros da família. Cezar, hoje com 21 anos, alega que, depois do episódio, todos ficaram mais receosos e com medo de passarem por algum tipo de violência semelhante. “Levou cerca de um ano até eu me sentir tranquilo novamente ao chegar e sair de casa, mas o medo nunca passou totalmente”, avalia. Embora a família e o próprio Cezar não tenham desenvolvido algum tipo de transtorno ou trauma, todos mudaram alguns hábitos na rotina a fim de evitarem que algo semelhante acontecesse novamente. “Ao chegar em casa, costumamos analisar muito bem o ambiente para ter certeza de que não
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há nenhuma ameaça. Apesar de o assalto ter ocorrido em casa, eu também passei a ser muito mais atento na rua”, enfatiza Cezar. Ainda que tenham se passado seis anos do incidente, ele confessa que nunca esqueceu o que viveu naquele dia e que algumas ações do dia a dia o remetem ao fato. “Gravei muito a forma como os bandidos falavam conosco, uma entonação agressiva, mas quase sussurrada. Sempre que escuto alguém falando dessa forma, volto a sentir o que senti naquele dia”, relata. Algumas pessoas, após passarem por tais situações de violência, não conseguem esquecer o evento, fazendo com que essas memórias retornem involuntariamente. “Existe uma falha do cérebro em processar essas memórias de uma maneira contextualizada, de uma maneira verbalmente coerente, ou seja, se durante o evento eu foco mais em aspectos sensoriais, movimentos, a memória fica mais sensorial, mais desorganizada e depois se tem mais dificuldade em fazer uma narrativa coerente desse evento”, explica o psicólogo Gustavo Silva, que trabalha no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE), da PUCRS, atendendo pessoas que passaram por algum abalo emocional. A explicação de Gustavo ajuda a entender por que o cérebro, de maneira inconsciente, faz as pessoas lembrarem de situações ruins. Quando certas recordações não são decodificadas da mesma forma que as memórias positivas, ocorre uma confusão no armazenamento e a pessoa acaba por lembrar o ocorrido a partir de gestos, sons, movimentos. Assim como as doenças mentais variam de pessoa para pessoa, os tratamentos seguem essa mesma linha. Um artigo publicado na biblioteca biomédica dos Estados Unidos, US National Library of Medicine National Institutes of Health, que realiza pesquisas na área da saúde, alega que iniciar os tratamentos logo após o trauma é fundamental para resultados a longo prazo, uma vez que, com o tempo, memórias traumáticas tornam-se resistentes aos tratamentos. Um dos tratamentos mais conhecidos é o de Terapia de Exposição Prolongada. O propósito desse tratamento é fazer com que o paciente reviva a situação traumática, fazendo uma escala gradual desse evento em que a pessoa vivenciou. “Tu pede para a pessoa imaginar, retornar ao evento por imagens mentais. Isso faz com que ela traga não só recordações por imagem, mas todos os sentimentos e sensações que ela viveu naquela situação. A terapia é prolongada, são várias sessões até que a pessoa deixa de ser sensível àquela memória, já não sendo mais um peso emocional”, explica a psicóloga Letícia. Por meio desse tratamento também é possível que se faça uma escala de situações ansiogênicas da pessoa, ou seja, se descobre onde foi o evento traumático, quais os estímulos que fazem com que ela lembre do ocorrido. A
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partir daí, o paciente vai sendo exposto a imagens mentais, fazendo-o voltar à situação vivida, inclusive com os sentimentos e as sensações pelos quais passou. A diferença desse tratamento para o que está sendo pesquisado no InsCer é a questão do uso do estímulo auditivo, que faz com que a memória emocional seja acessada mais rapidamente do que apenas imaginar a situação e, com isso, consegue-se um acesso mais direto ao Sistema Límbico. O artigo Evolucionismo e genética do transtorno de estresse pós-traumático, publicado em 2008 na revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, apresenta estudos realizados em pacientes que desenvolveram TEPT cujos resultados apontaram diminuições anatômicas em algumas partes do cérebro, como na atividade do córtex medial pré-frontal e a diminuição do volume do hipocampo. No entanto, ainda não é possível afirmar com certeza que o cérebro de quem passou por um evento traumático muda. Desse modo, não há como saber se de fato ocorreram alterações nos cérebros do Douglas e do Cezar, embora ambos tenham vivenciado situações que os deixaram com as marcas de um trauma.
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SANREDOM No último século, a população mundial foi amplamente afetada por distúrbios psiquiátricos por conta dos problemas enfrentados na era moderna
Gabriela Castro, Laura Zucchetti e Rodrigo Reus
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magine-se no interior de um automóvel que transita em um túnel. O caminho é longo, a iluminação, baixa. Por um tempo considerável, você convive com essa realidade: pouca luz e ambiente fechado. Finalmente, quando volta a trafegar a céu aberto, um volume expressivo de luz chega até sua retina, ofuscando a visão em contraste com a situação anterior. Neste momento, ocorre um processo de readaptação à nova realidade, com certa irritabilidade. Aos poucos, os sentidos voltam ao normal e você segue a viagem. A situação descrita traduz o que os especialistas afirmam que está acontecendo com o cérebro do homem moderno. É uma fase de transição. O homem passou, nas últimas décadas, a receber informações num ritmo muito maior do que a capacidade encefálica comporta normalmente. Agora, reage a esta transformação profunda. Na última metade do século 20, a globalização, as novas relações de trabalho, os avanços nas telecomunicações e nas redes sociais, entre outros processos, mudaram completamente as relações humanas. As gerações atuais sentem os sintomas dessa mudança, o que desencadeia reações. Hoje, todas essas transformações, forçadas em grande parte, por aspectos externos, cobram um preço que é sentido pelo organismo e se reflete na qualidade de vida. Uma espécie de irritação permanente obriga o homem a sair da sua zona de conforto pela necessidade de se readaptar. O cérebro humano é produto de dois fatores que interagem: a hereditariedade e o ambiente, sendo que os atributos ligados ao DNA de cada indivíduo são determinantes nesse processo. Entender essa definição é fundamental para compreender os transtornos do cérebro contemporâneo. Distúrbios psíquicos associados ao intenso estresse são altamente danosos à atividade cerebral, podendo deixar marcas de difícil cicatrização ou até mesmo permanentes. Depressão, ansiedade, síndrome do pânico e síndrome de Burnout são as principais patologias de cunho emocional que afetam, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 700 milhões de pessoas no mundo e representam 13% do total de todas as doenças neurológicas. Fisicamente, cada indivíduo tem o cérebro singular, assim como as impressões digitais e, por isso, não há nenhum fator isolado que explique a ocorrência desses transtornos. Segundo Pedro Lima, psiquiatra e pesquisador do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (Inscer), “na Psiquiatria, quase todas as doenças têm uma predisposição genética, sendo este o principal motivo, mas fatores ambientais também influenciam”. O neurologista e pesquisador Edilson Prola Filho, que atua há 30 anos na área clínica, acrescenta que a combinação desses fenômenos é determinante na formação, no encéfalo, das áre-
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as onde a emoção se desenvolve. “Todas as informações percorrem a massa encefálica para formar um perfil de comportamento emocional, e o mínimo desvio de quaisquer dessas atividades pode desencadear essas doenças”, explica Prola Filho O especialista argumenta que todas as emoções são expressas por meio de mudanças viscerais motoras e de respostas somáticas estereotipadas, como os movimentos dos músculos faciais. O médico situa as áreas afetadas explicando que a expressão emocional está ligada ao sistema motor visceral, que requer a atividade das estruturas cerebrais centrais. Elas governam os neurônios neurovegetativos pré-ganglionares e ficam localizadas no tronco encefálico e na medula espinhal. Essas áreas encefálicas ligadas às emoções e aos comportamentos sociais, agrupadas, são denominadas de Sistema Límbico, embora pesquisas recentes demonstram que outras zonas cerebrais atuam de forma decisiva nestes processos, como a amígdala e as áreas corticais nos lados orbital e medial do lobo frontal. Esta estrutura está exposta às consequências do estilo de vida contemporâneo, levando a alguns transtornos modernos, como ansiedade, depressão e síndrome do pânico. Nas últimas décadas, o avanço das pesquisas melhorou a capacidade de diagnosticar e perceber estas doenças. Os sintomas também ficaram mais perceptíveis e conhecidos. Por exemplo: falta de ar, palpitações, taquicardia, respiração ofegante, medo intenso e sensação de que a morte está próxima são sintomas da síndrome do pânico. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de pessoas que convivem diariamente com a depressão cresceu 18% entre os anos de 2005 e 2015. Cerca de 5,8% da população brasileira sofre de depressão. Foram ao todo 11,5 milhões de casos registrados no país em 2016. A caracterização para os quadros depressivos sempre se dava como melancolia, má vontade, falta de personalidade ou até mesmo preguiça. O termo melancolia foi cunhado por Hipócrates – grego, considerado o pai da Medicina –, que notou características depressivas e as sistematizou em torno do nome. No último século, o termo caiu em desuso, embora ainda seja utilizado para caracterizar casos de depressão profunda. Seu substituto moderno é o vocábulo depressão, que herdou grande parte dos atributos da melancolia do passado. Do ponto de vista fisiológico, a depressão está relacionada com a interação de agentes químicos, como serotonina, dopamina, glutamato, entre outros. São caminhos neurais diferentes que, juntos, determinam cognição, interesse e vontade. A noradrenalina, neurotransmissor envolvido na regulação do humor, do ciclo de sono e na resposta de estresse, desencadeia eventos
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em efeito cascata, que se manifestam em forma de ansiedade primariamente, e, depois, em depressão. Para o psiquiatra Lucas Spanemberg, professor do curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a evolução da área se deu a partir das classificações modernas das doenças psiquiátricas e ajudou no diagnóstico, na aceitação e no tratamento dos quadros depressivos. “No final do século XX, houve uma sistematização da classificação das doenças mentais e as primeiras deram maior importância para quadros depressivos”, esclarece. Lucas explica que estudos realizados por meio da tecnologia de neuroimagem apontam que, no quadro da depressão, há redução de atividade em áreas corticais, como córtex cingulado anterior, área associada a funções como modulação de respostas emocionais, motivação e atenção. Em contrapartida, há maior metabolismo de áreas mais primitivas do cérebro, como a ínsula, relacionada à sensação de repulsa, e do Sistema Límbico como um todo, com amplo papel no processamento de emoções negativas. A química Gabriela Eldelwien, 29 anos, é portadora da Síndrome de Borderline (transtorno de personalidade), que pode desencadear depressão. O diagnóstico do quadro depressivo aconteceu há sete anos. Ao perceber o desinteresse por atividades corriqueiras, como encontrar os amigos, participar de jantares e buscar uma posição profissional, procurou auxílio médico. “Minha família não sabia como lidar comigo. Algumas pessoas achavam que minhas desculpas eram mentira. Foi difícil. Hoje tenho o acompanhamento regular de psicólogo e psiquiatra, além das medicações. E mesmo assim, ainda tenho altos e baixos”, desabafa. Segundo a OMS, o Brasil é o país com a maior taxa de pessoas portadoras de transtornos ansiosos no mundo. Isso afeta 18,6 milhões de brasileiros, um total de 9,3% da população. Fatores socioeconômicos, como pobreza e desemprego, e ambientais, como estilo de vida nas grandes metrópoles, são alguns dos problemas que os pacientes enfrentam. A ansiedade é uma reação normal que todo o indivíduo possui como fator de autoproteção em situações de medo, expectativa ou dúvida. Mais de 60% dos episódios depressivos são precedidos por quadros de ansiedade. O sintoma passa a ser motivo de preocupação no momento em que aparece frequentemente e interfere nas atividades cotidianas, sendo classificado como Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG). “A ansiedade é um sintoma normal que todos sentem, e funciona como um sinalizador de algum grau de perigo. A ansiedade é aceitável e necessária para evitar que o indivíduo se exponha a riscos, mas quando intensa e prolongada, passa a ser generalizada, podendo provocar ataque de
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pânico”, frisa o psiquiatra Lucas Spanemberg. A síndrome do pânico é um dos gêneros da ansiedade. As crises ocorrem de forma inesperada. Os sintomas são desespero e medo de que algo ruim aconteça, mesmo que não haja motivo aparente ou sinais de perigo iminente. As crises se retroalimentam, ou seja, a cada ocorrência surge a preocupação com novos ataques. A rotina torna-se difícil devido ao receio permanente da perda de controle, surtos psicóticos ou ataques cardíacos. É o caso da estudante de Enfermagem Ana Paula Guimarães, 22 anos. Ela foi diagnosticada com síndrome do pânico há seis anos. Ana precisou ficar nove meses afastada do trabalho, além de trancar a matrícula na faculdade. “Não dormia sozinha, não saía de casa sem alguém me acompanhando. Até para tomar banho precisava que alguém ficasse me fazendo companhia”, conta. Como consequência do transtorno de ansiedade e síndrome do pânico, ela acabou desenvolvendo um quadro depressivo. “Fiquei um ano tratando apenas com Psiquiatra e parei de tomar os remédios. Voltaram as crises e então fui diagnosticada com depressão. Hoje, uso medicamento diariamente e faço terapia a cada quinze dias. Ainda espero pela minha total recuperação”, conclui. A Síndrome de Burnout também é uma doença moderna do cérebro, descoberta em 1974, que afeta especialmente profissionais que lidam diretamente com outras pessoas. O ranking das profissões mais expostas tem no topo os médicos, seguidos por professores, enfermeiros, jornalistas e funcionários públicos. Entre alguns dos sintomas estão a exaustão constante, impaciência, dificuldade em relacionamentos profissionais, irritabilidade, perda de memória, falta de concentração, enxaqueca, gastrite e insônia. “No dia 27 de maio de 2010, na nona aula do dia, eu desisti de tudo. Abri a porta no meio da aula, fui embora e nunca mais voltei.” O relato da professora paranaense Íria de Marco resume o ponto máximo do esgotamento profissional ou síndrome de Burnout. Ela faz parte de uma estatística alarmante: cerca de 30% dos trabalhadores são afetados pelo transtorno. Os dados que constam em estudo do International Stress Management Association do Brasil (ISMA-BR), que analisou mil profissionais de idades entre 25 e 60 anos. Destes, 94% sentem-se incapacitadas de trabalhar. Cerca de 89% dos casos seguem suas vidas profissionais, mas não conseguem realizar as tarefas propostas, e 47% sofrem de depressão. A pesquisa concluiu que, em média, o trabalhador com Burnout trabalha até cinco horas a menos do que seus colegas. A dedicação exagerada pelo trabalho é uma das principais características de quem desenvolve Burnout, segundo o psicólogo Darcy José Cabral Marquez, que trata a síndrome há pelo menos 20 anos. “Ser o melhor e sempre
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demonstrar alto grau de desempenho é peculiaridade marcante deste transtorno. A pessoa mede a autoestima pelo sucesso profissional”, define. Darcy ainda enfatiza que o transtorno não surge do nada. É um processo que pode ser identificado pelo esgotamento emocional e físico, causado pelo estresse excessivo e prolongado. “Confundir essa patologia com estresse laboral, que afeta profissionais do modo geral, principalmente por conta dos sintomas semelhantes, como gastrite e lapsos de memória é algo bem comum”, explica. O estresse crônico leva à diminuição do fator de proteção neuronal, afetando a ramificação dendrítica dos neurônios. Consequentemente há morte de células e redução do volume – atrofiamento – de regiões cerebrais. A psicóloga Marine Meyer Trinca trabalhou durante 14 anos no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, um dos maiores do país. Ela aponta três problemas principais do Burnout: exaustão emocional, diminuição da realização pessoal e a despersonalização (distanciamento afetivo). Marine destaca que na sociedade moderna o tempo livre é cada vez mais escasso. “Temos dificuldade de conviver com o ócio. Temos de ser produtivos o tempo todo e isso gera uma pressão muito grande”. A psicóloga foi responsável pela área de psicologia na unidade de check-up até o ano passado. Ela lembra que os sintomas são bastante parecidos com o estresse emocional e que somente dedicando grande atenção aos pacientes, o médico será capaz de distingui-los. A psicóloga afirma que o desgaste emocional, no Burnout, danifica aspectos físicos: “a pessoa fica deprimida, ansiosa, até letárgica, e isso gera várias doenças associadas a esses sintomas. Um apagão completo”. Íria de Marco experimentou o dissabor da doença. Professora por 29 anos, desenvolveu a síndrome há sete, chegando ao pico do esgotamento em 2010. “Sentia vários sintomas, percebendo mudanças em mim, achando que ficaria doente, mas não imaginava o que viria pela frente. Em poucos meses me esgotei completamente”, recorda a docente. Íria escreveu o livro Eu, Professora, e o Burnout, no qual conta detalhes de sua experiência e aponta os problemas do sistema educacional, que transformam os professores em alvos potenciais de doenças do trabalho. Foi exatamente o que aconteceu com João Henrique*, gestor de uma grande empresa multinacional da área da informática e gerenciamento de dados, em Caxias do Sul. Ele ainda enfrenta as mazelas do Burnout e tem dificuldades extremas para falar no assunto. Mesmo assim, ele conta que sua vida foi devastada pelo transtorno. “A sensação é de estar preso num buraco bem fundo e escuro, sem poder sair. A gente não entende o que está acontecendo. Parece que não é mais a mesma pessoa”, relata. Ele não consegue descrever
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o início do problema, mas lembra das dificuldades dos profissionais de saúde em identificá-lo. O relato de João Henrique*, no que tange ao diagnóstico, é corroborado pela psicóloga e pesquisadora da área da saúde mental do trabalhador, Jaqueline Brito Vidal Batista. Ela revela que em recente pesquisa com peritos em Medicina do Trabalho, o profissional habilitado para determinar o afastamento de um trabalhador por invalidez, indicou que, na maioria dos casos, esses profissionais não estão capacitados para identificar o Burnout. “Se estuda pouco e se sabe menos ainda sobre essa síndrome. Mas, ainda assim, o Brasil é um dos países que mais pesquisa a respeito, depois de Estados Unidos e Espanha”, afirma. Jaqueline alerta que a doença pode levar à morte. Ela presenciou o caso de uma colega do programa de pós-graduação da Universidade da Paraíba, que sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), em sala de aula, após o ápice de uma crise. Para Íria e João Henrique*, a tragédia só não foi semelhante porque conseguiram se tratar a tempo. Ambos afastaram-se de suas profissões para não mais voltar. Íria se aposentou da escola, e João Henrique* se desligou de sua empresa e está recomeçando suas atividades de forma autônoma. “Hoje sei que preciso respeitar meus limites”, confessa, em tom de alívio. Não existem exames objetivos para a detecção do transtorno, já que os sintomas são diversos, tanto físicos quantos psicológicos. A psicóloga norteamericana Christina Maslach desenvolveu o primeiro instrumento para detectar a síndrome, chamado Maslach Burnout Inventory (MBI). Trata-se de um teste psicológico que, por meio das respostas dos pacientes, cria uma escala que pode determinar o grau de comprometimento do paciente. Este teste foi utilizado durante certo tempo, porém a autora passou a cobrar royalties, tornando inviável sua aplicação. Com as dificuldades encontradas para acessar o instrumento criado por Maslach, o psicólogo espanhol Pedro Gil-Monte criou, na Universidade de Valência, o CESQT (Cuestionario para la Evaluación del Síndrome de Quemarse por el Trabajo), questionário com perguntas específicas, semelhante ao MBI, que vem sendo amplamente disseminado em todo o mundo e colaborado no diagnóstico precoce da síndrome de Burnout. O novo instrumento dispõe de 20 itens distribuídos em quatro subníveis. O primeiro deles é a ilusão pelo trabalho, com cinco itens que tentam determinar se o paciente vê seu trabalho como uma fonte de realização pessoal. A lista se completa com desgaste psíquico (com quatro itens que visam conhecer o nível de desgaste emocional), indolência (seis itens para precisar
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o nível de comprometimento, com perguntas como “não gosto de atender alguns alunos?”) e culpa (cinco itens buscando conhecer remorsos pelos comportamentos adotados no trabalho). Esses itens são então avaliados mediante uma escala de frequência de cinco pontos: de zero (nunca) a quatro (muito frequente/todos os dias), tendo como ponto intermediário a pontuação dois (às vezes/algumas vezes por mês). Cada subnível é calculado pela média da pontuação dos itens. Baixas pontuações na ilusão pelo trabalho e altas pontuações em desgaste psíquico, indolência e culpa supõe altos níveis da Síndrome de Burnout. Especialistas entendem que as relações modernas estão tornando o homem ainda mais suscetível a essas doenças. “O cérebro se adapta ao nosso tempo e as doenças estão surgindo conforme nossa sociedade avança”, analisa Jaqueline. Os medicamentos industrializados auxiliam a controlar muitos dos sintomas vistos, mas sua utilização em larga escala e tempo prolongado têm se mostrado nefasta para as atividades cerebrais, que podem ser afetadas de forma irrecuperável. A psiquiatria convencional lida com o cérebro e os desequilíbrios dos neurotransmissores, numa atitude característica da medicina alopática. Alguns profissionais questionam o rápido diagnóstico através da sintomatologia do paciente, que permite ao médico receitar drogas medicamentosas, muitas vezes de tarja preta. Isso porque, ao tratar a química cerebral, pode-se levar à dependência desses remédios e, inclusive, ocasionar efeitos colaterais, sem obter a melhora clínica esperada. O uso desses medicamentos químicos não resulta em cura permanente, mas em uma boa atuação em nível paliativo. Segundo o psiquiatra Ariel Roitmann, os tratamentos tradicionais e de fácil acesso são a psicofarmacoterapia e a psicoterapia. Os medicamentos respondem a uma taxa de 50% a 60% da melhora do quadro e costumam trazer alívio a curto prazo para os pacientes com sintomas moderados ou graves que apresentam prejuízos na vida pessoal e no trabalho. “Os remédios não são suficientes para o tratamento, necessitando de psicoterapia associada, embora tenham evoluído no sentido de reduzir os efeitos colaterais”, conta. Tratar mente, corpo e espírito – o indivíduo em sua totalidade – pode ser mais eficaz do que o consumo exagerado de remédios. Nesse sentido, a medicina integrativa, criada em universidades americanas no ano de 1970, fomenta novas possibilidades para os tratamentos médicos, que diferem da medicina tradicional e ortodoxa. O termo se refere a uma medicina que desenvolve uma abordagem ampla do indivíduo, com o enfoque na saúde de forma geral, cedendo espaço para o uso de práticas complementares. O sistema vigente
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de saúde é, geralmente, reativo, e os diagnósticos recaem inteiramente sobre os sintomas e no tratamento de doenças específicas, enquanto esse conceito propõe a prevenção e a promoção da saúde. O tratamento do organismo como um todo, utilizando nutrientes fundamentais na formação dos neurotransmissores (moléculas químicas envolvidas na comunicação cerebral), associado a técnicas de relaxamento mental e psicoterapia, auxilia numa resposta de cura e sustentação do tratamento médico instituído sem o consumo exacerbado de substâncias químicas que podem desencadear outras patologias. Há técnicas cientificamente comprovadas que despertam o autoequilíbrio corpóreo e psicossocial por meio da correção e harmonização dos recursos emocionais, físicos e energéticos. Shiatsu, yoga, acupuntura, tai-chi-chuan, florais, reiki, massagem bioenergética, musicoterapia, homeopatia, técnicas de respiração e quiropraxia são algumas das especialidades que auxiliam no estresse, no combate e prevenção de ansiedade, insônia e depressão. Há pouco tempo, essas terapias alternativas eram contestadas por estudiosos e especialistas da Medicina, mas após a certificação de suas eficácias, passaram a ser utilizadas em conjunto com as práticas tradicionais. Pelo motivo de promoverem um tratamento pouco invasivo e de rápido resultado, instituições renomadas de saúde e pesquisa científica passaram a adaptar as novas abordagens terapêuticas. Elas foram implantadas no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006 devido à demanda crescente da população e pelas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). O Hospital Albert Einsten inaugurou o primeiro curso de pós-graduação em medicina integrativa do país, e a rede privada tem oferecido possibilidades desses tratamentos aos seus pacientes. O médico Victor Sorrentino, precursor do movimento no Brasil, trabalha com a longevidade saudável buscando a prevenção da saúde de forma ativa através da medicina integrativa. Nesta área, o adequado é investigar uma causa para as síndromes, sejam advindas de motivos orgânicos, psicológicos, distúrbios metabólicos ou hormonais. Essa descoberta é feita por meio de exames específicos. “Muitas pessoas são diagnosticadas com depressão por terem passado por uma situação delicada e terem tido seu quadro hormonal alterado. A busca é olhar para a pessoa de forma completa e descobrir quais os pontos que podemos melhorar, colocando aquilo que está bagunçado no devido lugar”, revela. Os desequilíbrios químicos associados às doenças psiquiátricas podem ser decorrentes de problemas em outras regiões do corpo, considerando que a saúde física está diretamente relacionada com a emocio-
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nal. “O paciente é o principal responsável pela sua melhora e é conduzido a entender que a cura vem de dentro para fora”, expõe. Terapias complementares e hábitos saudáveis que combatem o estresse ajudam a prevenir o retorno dos sintomas. É importante integrar uma boa alimentação, atividades físicas e técnicas de relaxamento junto ao conhecimento médico na trajetória de uma linha mais natural, para alcançar bons resultados. “Não sou contra o uso de medicamentos, inclusive acho que, muitas vezes, são necessários e auxiliam, mas evito porque prefiro recorrer a métodos mais saudáveis que exigem mais estudo e têm eficácia”, sugere. Ana Maria Saad, cineasta, que sofria de grave depressão, síndrome do pânico, fobia social e compulsão alimentar, conta que a corrente psiquiátrica afirmava serem transtornos mentais incuráveis. Após conhecer a medicina integrativa, ela passou a aplicar os princípios em sua rotina, criando disciplina em ações diárias para trilhar os objetivos da cura. Meditação, yoga, alimentação funcional e surfe foram seus aliados nesse processo. “Descobri que todas as causas têm tratamento, e a cura está dentro da gente”, revela. Com o apoio da psiquiatra e neurologista Maria Henriqueta Camarotti, que tem mais de 40 anos de experiência, Ana aprendeu que a resiliência é o poder da autotransformação, da neurociência à evolução humana e que os mecanismos psicocerebrais são capazes de alcançar a cura por meio da consciência. Maria Henriqueta diz que “os medicamentos são instrumentos que têm a função de anestesiar a dor causada pelas emoções, de repor as substâncias que o corpo ou a cabeça necessitam, mas a cura deve agregar possibilidades”. Os procedimentos alternativos podem reduzir o tempo de tratamento e a dosagem dos remédios ingeridos. “A psicoterapia aliada à medicação é comprovadamente mais eficiente do que os métodos isolados”, conclui. *Nome fictícios para preservar a identidade dos depoimentos.
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ERFOS Na cortina de insegurança e dor, as conexões cerebrais se transformam pouco a pouco e dão margem aos transtornos alimentares
Mariana Ribeiro
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heguei a pesar 30kg. Minha anorexia nunca foi porque quis emagrecer. Odiava tanto o meu corpo que queria morrer, mas não tinha vontade de me matar. Pra mim, isso não tem cura. Estabiliza, mas a sensação de que pode voltar a qualquer momento é constante”. “Já pesei 49kg com 1,74m. Busquei tratamento e hoje me sinto melhor, mas não acho que seja algo que ‘se cure’. Sinto que é muito fácil cair nesse buraco de novo”. “Cheguei a vomitar mais de cinco vezes por dia. Fácil. Se cria um vínculo e o transtorno acaba sendo como um amigo. A gente sente muita vergonha de admitir que é um problema”. “Com uns 12 ou 13 anos comecei a seguir um site que ensinava a ser uma pessoa ‘ana’ e ‘mia’. Emagreci 30kg em poucos meses, mas continuava me enxergando gorda num corpo que todos diziam ser magro. Não me sinto curada, pois se eu começar a ler sobre isso de novo fico louca. É um ciclo viciante”. Medo, vergonha, insegurança, frustração, desespero, alívio. A sensação mista de desprezo, não pertencimento e repulsa ao próprio corpo pode ser tão drástica quanto parece. Uma luta silenciosa e violenta que se instala, se fortalece e encontra no dano físico a atenuação das dores da alma. Tão profundo a ponto de ver na balança valores absolutos de fracasso ou sucesso. Assim como em tantas outras histórias que permanecem no silêncio, a luta narrada por Luiza*, Isadora*, Sofia* e Renata Andrade é realmente uma disputa entre as mensagens cerebrais que mantêm os transtornos e aquelas que buscam freneticamente uma estabilidade dos estímulos danosos. A cura, de fato, ainda não existe. As conexões cerebrais por trás dos transtornos alimentares ainda surpreendem até mesmo profissionais da saúde e pesquisadores. Com uma intensa gama de fatores desencadeantes, a transformação cerebral que ocorre em pessoas que sofrem de anorexia e bulimia é grande o suficiente para ser comparada a processos fisiológicos somente atingidos com administração de medicamentos em pessoas normais. Conhecidas como doenças modernas, a anorexia nervosa e a bulimia nervosa trouxeram para a psiquiatria atual o desafio de classificar os conflitos de identidade com o corpo sob a perspectiva de fatores biopsicossociais. Em outras palavras, a rejeição à comida passou a ser analisada de forma ampla, relacionando aspectos psicológicos aos sintomas físicos de inanição e purgação. Divididos em predisponentes, precipitantes e mantenedores, esses fatores podem ter origem individual, familiar e sociocultural, de acordo com a pesquisa Etiologia dos Transtornos Alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. No entanto, independente do gatilho motivador, a
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ciência mostra que, uma vez instalados, os transtornos alimentares passam a fazer parte da composição cerebral do indivíduo. Relatos de pessoas que conviveram com estes desequilíbrios ajudam a entender a relação entre mecanismos cerebrais e alimentação. Conforme explica o psicólogo e pesquisador Jason Halford, coordenador da Rede de Pesquisa de Obesidade de Liverpool e membro da Associação Britânica para o Estudo da Obesidade, em seu artigo sobre a psicobiologia do apetite, o sistema nervoso central recebe informações tanto de experiências sensoriais quanto de sinais metabólicos. Diferentes áreas do cérebro se empenham na comunicação entre estímulos de fome, relação cognitiva de prazer com o alimento e sensação de saciedade. O hipotálamo, região do cérebro que liga o sistema nervoso ao sistema endócrino, pode ser dividido em hipotálamo lateral, conhecido como “centro da fome”, e hipotálamo ventromedial, também chamado de “centro da saciedade”. Halford alerta, no entanto, que a liberação de estados fisiológicos de fome e saciedade dependem do recebimento adequado de informações pelo cérebro. Estruturas límbicas, responsáveis pelas emoções e por comportamentos sociais, também se conectam aos núcleos do hipotálamo, gerando integração entre fatores emocionais e a relação com a comida. De acordo com a ciência, os fatores predisponentes, aqueles que acompanham o indivíduo desde a herança genética, traços de personalidade e eventos adversos, constituem o primeiro espaço para o aparecimento de transtornos alimentares. Entram nesta lista: tendência à obesidade, transtornos de ansiedade, baixa autoestima, ideal cultural de magreza e abuso sexual. A partir deste momento, o cérebro começa a transformação das mensagens, que não tarda a repetir o telefone sem fio para outras partes do corpo relacionadas à ingestão de alimentos. Estudos recentes apontam que a principal mudança na psicoterapia com transtornos alimentares se deu na compreensão de que por trás da idealização da magreza, existe uma carência psíquica muito dolorida, e que por vezes o corpo acaba sendo a única forma de expressão dessas tensões. O caso de Luiza*, que desenvolveu anorexia e bulimia após ser vítima de estupro aos 13 anos, evidencia o sofrimento escondido. Com nojo do corpo violado e sem coragem de tirar a própria vida, parar de comer foi a alternativa para lidar com o medo e a insegurança. Com o tempo, o álcool e a cocaína tornaram-se aliados para encarar a fome e a dor no estômago, e juntos, criaram um mecanismo inconsciente de rejeição da comida, expulsando tudo o que era ingerido com pouco ou nenhum esforço. “Hoje ainda sou magra e ainda é
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muito difícil comer”, conclui a jovem. De fato, a desnutrição provocada pela anorexia aumenta a quantidade de cortisol circulante, influenciando no equilíbrio do metabolismo e nos sinais do trato digestivo. De igual forma, quando ocorre a liberação da serotonina, substância responsável por conduzir impulsos nervosos, são ativados os neurônios da saciedade, alterando progressivamente os neurotransmissores que regulam a alimentação saudável e gerando um círculo vicioso de perpetuação e baixo peso. Isto é, após um quadro longo de anorexia, a volta ao peso normal se torna fisiologicamente muito mais difícil em função da mensagem errada que os hormônios transmitem para o corpo em recuperação. Uma infância magra seguida por uma adolescência com ganho de peso e a sentença de 90kg. Após sofrer bullying na escola e relacionamentos censurados pela aparência física, Renata decidiu que ia emagrecer a qualquer custo. Foram seis anos vomitando depois de comer e passando dias sem comer nada. Tudo para se encaixar no padrão de beleza e atender às expectativas que a sociedade tanto cobra. Depressão e problemas com a autoestima reforçaram a autocrítica em se considerar feia e seguir buscando diminuir cada vez mais as medidas. “Acho que o poder vem da nossa própria mente de pensar que o emagrecimento será a solução de tudo e que a comida realmente faz mal e é desnecessária”, conta. Hoje aos 21 anos, falar abertamente sobre o tema foi um dos caminhos encontrados por Renata para persuadir a si mesma sobre a necessidade de dialogar sobre transtornos alimentares. Após a Segunda Guerra Mundial e a intensificação dos processos de industrialização, urbanização e consumo, as pressões sociais sobre corpo e forma ganharam muito espaço no cotidiano, de acordo com o artigo Transtornos Alimentares, das psicólogas Silvia Pedroza de Faria e Helene Shinohara. A criação de estereótipos de magreza, em especial para o universo feminino, trouxe a conseqüente e perigosa confusão com a autoimagem. Com isso, as influências socioculturais dos transtornos alimentares legitimaram a falácia de que o corpo humano é totalmente maleável e que ideais estéticos de magreza podem ser atingidos apenas com esforço pessoal. Além disso, a cultura de boa forma física, reforçada pela mídia e pela sociedade, ratifica o conceito de que ao conquistar um corpo magro automaticamente todos os outros objetivos de vida serão alcançados. Com a ideia fixa de que se fosse mais magra seria mais fácil conquistar e se relacionar com as pessoas, após períodos complicados de compulsão alimentar, aos 19 anos Sofia* começou a vomitar para compensar a alta ingestão calórica. Sempre em guerra com a balança, ela acredita que um abuso sexu-
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al sofrido na infância pode ter relação com a baixa autoestima desenvolvida ao longo dos anos. Com a descoberta de um universo em que era permitido comer tudo e livrar-se da comida rapidamente, ela acreditava que tinha um superpoder, uma identidade secreta. Com o tempo, porém, percebeu que não tinha mais controle sobre a bulimia e que comer e vomitar não dependia mais de vontade própria. Era algo maior, que se retroalimentava. Quando se deu por conta, os pensamentos, as emoções, as relações familiares e afetivas haviam mudado. Era como se não fosse mais possível viver de uma forma “normal”, sem a dependência do transtorno para lidar com a vida. Recentemente Sofia* iniciou tratamento com psicólogo, psiquiatra e nutricionista. Entretanto, após sete anos de bulimia, a relação com a comida ainda é difícil. “Não sei em que ponto sou eu e em que ponto é o transtorno. A gente pode aprender a conviver com ele, mas tem que estar sempre sob vigilância”, relata. De acordo com o que defende a psicóloga argentina Cecile Rausch Herscovici no livro A Escravidão das Dietas, o ciclo de bulimia torna-se autoperpetuador, pois após um tempo os próprios métodos purgativos passam a liberar os episódios de comer compulsivamente e vomitar para outras condições da vida não relacionadas à fome, mas sim ao alívio do estresse e da ansiedade. A diminuição da atividade serotoninérgica também é um fator que facilita os episódios bulímicos, pois o indivíduo perde o controle metabólico da quantidade de alimento consumida. Conforme aponta o livro Transtornos Alimentares e Obesidade, de Maria Angélica Antunes Nunes, o desenvolvimento do corpo feminino na puberdade torna importante a reorganização da autoimagem e autoavaliação. A manutenção de um sistema de conflito com a aparência física muitas vezes é a porta de entrada para os transtornos alimentares. Com dietas restritivas e, por vezes nulas, e o desenvolvimento de uma relação ritualística com a comida, pensamentos obsessivos são desencadeados levando à necessidade doentia de controle. A associação da magreza ao sucesso, atração sexual e competência são alguns dos principais fatores psicopatológicos da insatisfação com o próprio corpo e o desenvolvimento de culpa e vergonha, que reforçam a necessidade dos neurotransmissores de forçar o emagrecimento. Nos blogs e sites que estimulam o comportamento pró Ana e Mia (anorexia e bulimia), a principal mensagem difundida entre quem sofre dos transtornos é justamente a respeito do poder de controle da mente sobre o corpo, incentivando que a comida não é mais necessária quando a pessoa se convence disso. As dicas vão desde a importância de ter um corpo magro para ser feliz, independente da razão do transtorno, até listas de quais alimentos são mais fáceis de vomi-
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tar e a disponibilização de calculadoras de calorias. Os relatos em fóruns de discussão também englobam experiências exitosas e conselhos valiosos para quem está entrando no mundo Ana e Mia, como posições e movimentos para facilitar a expulsão da comida o mais rápido possível ou se alimentar apenas de água e gelo para enganar a fome. Perfis no Instagram, muitas vezes anônimos, exibem fotos de corpos extremamente magros como estandartes de beleza, o que é confirmado pelo número de manifestações positivas nas imagens. Vídeos do YouTube intitulados “Magra inspiração”, “Como parar de comer”, “Regras para ser uma boa Ana/Mia” servem como guias de como seguir com o transtorno, tratado como melhor amigo. Comentários em ambas as redes sociais agradecem às palavras de apoio e incentivo, e propõe a criação de grupos de WhastApp para troca de experiências diárias. Porém, ao pesquisar “#anorexia #bulimia” no Instagram, uma página de ajuda explica que a pesquisa se refere a distúrbios alimentares e que a prática deles é perigosa. Além disso, recentemente foi criado um grupo no Facebook de apoio a meninas com transtorno alimentar, abrindo, ainda que timidamente, um espaço para desabafo, debate e ajuda mútua sem julgamentos entre quem sofre em silêncio. De toda forma, o principal agente potencializador caracteriza-se pela necessidade de corresponder aos padrões sociais impostos. A essência dos transtornos não está diretamente ligada com a alimentação em si, mas sim com as tensões psicológicas e cerebrais vinculadas às recompensas emocionais. O controle na relação com a comida representa o controle associado ao sucesso pessoal nos demais setores da vida e a valoração pessoal passa a ser diretamente relacionada com a capacidade de manter-se em adequação aos ritos alimentares. A busca por uma estabilidade entre corpo e alma permanece constante. Como disse Renata Andrade no post de desabafo em seu perfil, ainda sangra, ainda dói, ainda existe o peso do mundo sobre a exigência do corpo, mas é possível se sentir bonita e seguir em frente. *Nomes fictícios para preservar a identidade dos depoimentos.
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LINEVUJ Os jovens estão cada vez mais agressivos, mas é o cérebro que está se modificando ou a sociedade?
Rafael França
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ublicado desde 1998 e atualizado constantemente, o Mapa da Violência é uma iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que visa ajudar o Estado no combate à violência e contextualizar os homicídios país. Em sua versão de 2014, há um enquadramento específico aos jovens de 15 a 19 anos. No ano de 2010, a taxa de homicídios para a faixa etária era de 63,7 para cada 100 mil habitantes. Um ano depois, o número caiu para 60. Apesar da queda, é possível constatar que a agressividade é um dos fatores preponderantes para esta faixa etária analisada. Mas de que maneira a agressividade afeta os jovens? Em um estudo feito em 2012 por Juliana Munique de Souza Siqueira e Claudette Maria Medeiros Vendramini, para a Universidade de São Francisco, nos Estados Unidos, há uma análise para observar a relação entre as variáveis de inteligência e agressividade. O objeto de estudo foram 35 alunos da sétima e oitava série de uma escola no interior de São Paulo, com idades entre 13 e 17 anos. Na análise final do experimento, foi constatado que não há uma relação entre agressividade e inteligência. Todavia, de acordo com as autoras, é possível concluir que o comportamento de jovens adolescentes é influenciado por alterações psicológicas, físicas e sociais. Ou seja, o meio em que ele está vivendo ajuda a moldar a sua identidade. O psiquiatra e pesquisador do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer) Pedro Lima destaca que a agressividade pode ser um fator positivo em determinadas situações. Um exemplo disso é a percepção de cada pessoa quanto a uma relação com o próximo no sentido de estar sendo posto para trás ou não. Segundo o pesquisador, esse tipo de agressividade é normal, não é negativa e faz parte do ser humano. Dentre os diversos tipos de agressividade, há dois considerados anormais: o premeditado, responsável por planejar ações, e o impulsivo, que realiza na hora a ação, sem nenhum planejamento. Em ambas, há alterações no funcionamento do cérebro dessas pessoas. Segundo Lima, existem modificações neuroquímicas e na estrutura do cérebro, além da maneira de como o indivíduo recebe e interage com o ambiente, e isso é perceptível desde a infância. O pesquisador afirma ainda que, de certa maneira, é possível ter uma noção de previsibilidade em relação à chance da pessoa se tornar, ou não, uma transgressora. Lima acredita que é possível traçar perfis: “Quando as pessoas têm esse sistema nervoso autônomo com menos emoção e mais sóbrio, existe muito mais chance delas se tornarem transgressoras, visto que isso vem desde a infância”. Apesar da possibilidade de se ter uma previsão em relação a um futuro
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transgressor, retratada pelo pesquisador, o contexto em que o jovem está inserido ainda faz diferença, mesmo em tempos mais tecnológicos. Apesar do ambiente social em que a pessoa está inserida ser o diferencial na formação do indivíduo, a família ainda é uma fonte de influência neste aspecto. Lançado em 2011, o filme Precisamos falar sobre Kevin: um breve momento de reflexão conta a história de um jovem com problemas de relacionamento com a sociedade. O garoto torna-se um serial killer, o que ilustra o ápice da agressividade, proveniente da origem genética. A história é impactante a ponto de ser possível traçar uma linha tênue entre o filme e os massacres que ocorrem com certa frequência nas escolas dos Estados Unidos, bem como o de 2011 em uma escola brasileira em Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro. Nestes casos, a questão familiar é um pilar essencial, e a falta dela acaba provocando consequências na inserção do jovem na sociedade em sua fase mais complicada: a adolescência. Com tantos indicativos de problema, não é raro a questão da agressividade entrar na esfera judicial. Para a defensora pública do Estado do Rio Grande do Sul Barbara Sartori a família é a base de tudo e a falta dela ajuda a explicar o motivo de tantos crimes agressivos. “Antes, os jovens se xingavam, davam tapas, puxavam os cabelos. Hoje em dia, eles estão se matando”, relata. Outro estudo acadêmico, realizado em 2006 por Sônia Regina Pasian, na época mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), analisa adolescentes em uma faixa etária um pouco diferente, de 15 a 19 anos. No levantamento, 120 jovens que não apresentavam em seu histórico transtornos psiquiátricos ou psicológicos graves, nem deficiências sensoriais ou cognitivas, foram estudados. De acordo com a pesquisadora, o nível socioeconômico dos estudantes entrevistados é um fator influenciável na manifestação da agressividade dos adolescentes, apesar da atuação do ambiente, e isso é um ponto fundamental na concepção final desta pesquisa. Além disso, a tecnologia avançada do século XXI também é um ponto influenciável na opinião da defensora pública Barbara. Com o aumento do uso das novas mídias, há uma tendência ao isolamento, o que atrapalha o desenvolvimento social dos jovens. A defensora também relata que, na percepção do Judiciário, a maioria das pessoas está doente. A agressividade aflora, principalmente, em épocas de transição. Aos 21 anos, Charles* percebe que os primeiros sinais de que era mais agressivo que os adolescentes da época apareceram há nove anos. O jovem relata uma briga que teve no colégio, na quarta série, em que levou um soco. “Talvez os meus
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problemas tenham iniciado ali, a partir deste acontecimento, quando eu tinha 12 anos”, afirma. O estudante sempre relutou em aceitar este cenário, pois acreditava que tinha um comportamento normal e que os outros estavam errados e o tiravam do sério. A relação com a família, que tem papel essencial no processo de desenvolvimento pessoal, também era complicada na vida de Charles. Após se manter distante de brigas por três anos, o jovem conta que voltou a ser agressivo aos 16. “Eu já briguei de soco com o meu pai mais de uma vez”, conta. Ele ressalta, ainda, que se tivesse dialogado mais com a família, certamente a agressividade teria aflorado menos. Após tratamento psiquiátrico, Charles foi diagnosticado com transtorno depressivo em menor escala, potencializado pela agressividade. A sociedade vive um momento de atenção a esses problemas. Na visão da psicóloga Alessandra Dias, há um meio termo entre o “fator agressividade” estar mais em evidência na mídia hoje que em gerações passadas. Segundo Alessandra, não há uma geração mais agressiva que outra. “As crianças têm mais espaço para demonstrar essa agressividade. Na minha época, na escola, quando eu era adolescente, existia o bullying também. Mas não era um tema tão falado, não se dava tanta vazão a isso”, afirma. Entretanto, a agressividade exagerada é frequentemente vista, por exemplo, no modelo de ensino atual das escolas públicas e privadas. Para Alessandra, não há mais o respeito que existia antes e isso influencia na construção e no molde do jovem à sociedade. “O professor tinha o direito de repreender o aluno. Existia uma figura de autoridade. Agora, isso está se perdendo”, diz. Ela ainda argumenta que o rumo da educação está indo para um caminho complicado de desrespeito e isso também é uma questão de agressividade. Segundo ela, os pais não dão voz e nem razão para o professor. As relações humanas também são diretamente afetadas a partir do pré-conceito da agressividade. Segundo Lima, não é o cérebro que está mudando e, sim, a questão social e os seus fatores. Entre os motivos citados pelo pesquisador, pode-se ressaltar a piora educacional, o que faz com que não haja limites, e o resultado final seja prejudicial para a sociedade. *Nome fictícios para preservar a identidade dos depoimentos.
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OIDÍCIUS Familiar, vítima ou profissional da saúde: como ficam as mentes daqueles que convivem com a ideia do suicídio?
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reparada para uma fria noite gaúcha, Gabriela* havia comprado uma garrafa de vinho, uma barra de chocolate e ingredientes para o suco verde da manhã seguinte. Parecia estar tudo normal não fosse um SMS enviado para sua irmã, Paola*. “Boa noite para sempre”, dizia a estranha mensagem. O que Gabriela queria dizer com isso? Paola ligou para entender. Na mistura de sentidos e pensamentos pôde sentir o cheiro do álcool na voz bamba da irmã. “Descansa, Gabi. Tenta dormir”, disse Paola em sua tentativa de fazê-la parar de beber. “Fica tranquila. Vou deitar”, ela respondeu. Não conformada, mas ainda com a ideia de que seria apenas mais um trago, Paola fez questão de ir até o apartamento da irmã quando sua mãe disse que sentira algo ruim no peito. Usando a chave que guardara por já terem morado juntas, Paola entrou. Assim que pisou no apartamento, notou a televisão ligada e sentiu um vento forte e gelado. Não se sabe se o frio vinha da porta da sacada que estava aberta ou da dor de ver Gabriela suspensa por um barbante, já sem vida. Gabriela é um dos 1.167 casos de suicídios registrados no Rio Grande do Sul no ano de 2016. Segundo informações do Núcleo de Informações em Saúde, este número vem aumentando nos últimos anos. Foram 1.111 em 2014 e 1.137 em 2015. Ou seja, de 2014 a 2016 houve um aumento de mais de 5%. Se os dados absolutos assustam, o que pensar quando é levado em consideração o número de mentes atingidas pela que opta em se desligar? No cérebro de Paola, a caçula da família, a ideia do suicídio era preocupante, porém cotidiana. Desde pequena ela ouvia os choros e o deslumbre da irmã sobre viver em dor. Gabriela, embora quisesse se tratar, achava charmosas as cenas dramáticas dos filmes a que assistia: deitar no divã para desabafar, misturar remédios com bebidas, dormir durante o dia inteiro, e, quiçá, cortar o pulso com a faca menos cortante da cozinha. Todas essas cenas ela trouxe para a vida real. Ao sentir na pele esses momentos e sendo atriz formada em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), criou uma peça teatral onde interpretava uma jovem que tentava o suicídio com medicamentos, mas nenhum forte o suficiente para matá-la. A plateia ria com o desfecho da personagem que tentou a morte e só obteve um desarranjo intestinal. A ironia da comédia dramática a fez tentar mais uma vez o mesmo ato em casa, mas a ambulância chegou antes das cortinas fecharem. Oscilando entre a comédia e o drama, Gabriela foi diagnosticada com depressão e bipolaridade. Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, a bipolaridade, doença caracterizada pela alternância entre melancolia e euforia, atinge 2,2% da população brasileira, ou seja, são 4,2 milhões de diagnostica-
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dos. Estima-se que cerca de 15% dos doentes acabam se matando. O desespero do bipolar pode ser explicado cientificamente, diz o psiquiatra Flávio Kapczinski. Os ápices de euforia e depressão são tóxicos ao cérebro. As crises da doença são acompanhadas da descarga de substâncias como a dopamina, que desempenha importantes funções no organismo, como o humor e a sensação de prazer, e glutamato, bastante importante para o aprendizado e a memória. Para controlar essa emoção, o organismo manda para a região células protetoras, que inflamam e causam a perda de conexões entre neurônios. “Assim como o organismo do diabético sofre com os picos de glicemia, o cérebro de quem tem transtorno bipolar não controlado sofre com o excesso de neurotransmissores”, explica Kapczinski. Mesmo com as tentativas de desistir, Gabriela procurava sozinha a cura. As saídas que ela buscava variavam de um extremo a outro. Iam de desabafar com a família até se sujeitar a antigas técnicas de eletrochoque, convencendo o próprio psiquiatra a autorizar o procedimento. Ela não tinha ânimo em viver, mas também não tinha coragem para se matar. Para Paola, que acompanhou de perto a dor da irmã, o suicida, na maioria dos casos, não tem como objetivo final terminar com sua própria vida, e sim acabar com o sofrimento. Segundo a psicóloga Flávia de Carlos, que atualmente está escrevendo a dissertação de mestrado intitulada O lugar obsceno do suicídio, a psicanálise trabalha o suicídio como um ato singular. Para ela, cada caso é diferente do outro. Logo, não há como saber como age a mente de uma pessoa que opta em tirar a própria vida. Para Flávia, uma vez que não há como interpelar quem se matou, o que resta para os sobreviventes (familiares, amigos, analistas) é tentar fazer algo diante das consequências dessa ação, procurar seguir vivendo, apesar do ocorrido. “Trata-se de uma ação que sempre deixa interrogações: Por quê? Como? E se? Atribuir um sentido, uma interpretação, ou mesmo escrever um livro – como fez o escritor Érico Veríssimo em O Resto é Silêncio após ver uma moça se atirando de um prédio –, são tentativas de lidar com o suicídio”. Embora tenha trazido muita tristeza para os familiares, Paola conta que se sente aliviada por não ver mais a irmã tão deprimida. A agonia e a preocupação eram sentimentos muito presentes até chegar o momento da morte. A perda causou uma forte dor na família, mas eles compreenderam também que era o fim do sofrimento da Gabriela. Juntos, eles procuraram se conscientizar de que a morte foi uma escolha. “Ela não quis mais estar aqui e isso a gente tem que aprender a respeitar”, desabafa Paola. O caminho trilhado pela família, em diferentes etapas até chegar à aceitação, é confirmado por alguns autores que trabalham com a hipótese de fases
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do luto: na primeira, o sistema de respostas despende esforços persistentes no sentido de recuperar o ente querido; na segunda, há dor e desespero; na terceira, reorganização. Um mecanismo que frequentemente aparece no luto é a raiva. Freud diz que a função do luto seria desvincular as memórias e esperanças em relação ao falecido. Segundo a neurologista e mestre em Psiquiatria e Comportamento Humano na UFRGS Fabiana Eloisa Mugnol, essas memórias possuem características predominantemente emocionais e inconscientes, determinadas por conexões neuronais nas regiões cerebrais relacionadas à regulação afetiva. Essas memórias são mais difíceis de serem apagadas, e a tristeza é proporcional à atividade das estruturas envolvidas. Ou seja, a modulação da memória e do comportamento dos familiares e outras pessoas próximas à vítima é afetada diretamente pela morte de um ente querido, num modelo conhecido com diástase-estresse. O suicídio de Gabriela, e centenas de outros que acontecem por ano, fazem o Rio Grande do Sul ser o Estado com maior número de casos no país. A média gaúcha é de 9,5 a 10 mortes para cada 100 mil habitantes, enquanto o índice nacional é de 5. Por isso, o Estado foi o primeiro no Brasil a contar, desde 2015, com um auxílio gratuito para quem precisa ser ouvido no Centro de Valorização da Vida (CVV). O CVV possui 200 voluntários que atendem, em média, 2 mil gaúchos por dia. Segundo a coordenadora de divulgação e porta-voz do CVV de Porto Alegre, Liziane Eberle, as principais queixas recebidas são de solidão e depressão. Para ela, cada pessoa pode ajudar a evitar o suicídio de outra. Basta ouvi-la. Conforme Liziane explica, os voluntários do CVV são treinados para saber escutar e auxiliar. Se o chamado for sobre suicídio, os atendentes disponibilizam todo o tempo necessário para o desabafo para, quem sabe, a ideia ser deixada de lado. Se a pessoa pedir por socorro, o CVV indica formas gratuitas. Se for o caso da pessoa já ter se automutilado e querer voltar atrás, o CVV aciona os bombeiros e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU). E como ficam as mentes daqueles que trabalham no voluntariado? O que é ouvido no telefone permanece apenas lá, diz Liziane: “A gente sabe que não deve levar pra casa os problemas e nem trazer os problemas de casa pra cá”. Para Augusto*, 36 anos, estudante de Geografia de Porto Alegre e que pensa em ser atendente do CVV, o suicídio sempre esteve nos seus pensamentos. Quando tinha 28 anos – na margem do maior índice de suicídio da capital gaúcha do ano passado, segundo Sistema de Informações de Mortalidade (homens de 20-29 anos, com 14 de casos em um total de 88) – ele se encontrava em uma fase de incertezas, sem se sentir aceito na sociedade. Foi quando sentou na janela do
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sétimo andar de um prédio. ”Foi aí que tive a ápice da crise de identidade. Completamente sozinho, não vi instâncias que pudessem me socorrer. Não enxergava além, a única solução era acabar com a vida”. Balançando suas pernas e olhando para baixo, a 20 metros do chão, a mente de Augusto elaborou um filme sobre sua vida, trazendo questionamentos e reflexões. “Tive uma centelha de vida que brotou. Quando vi, voltei para a realidade e desci da janela”, lembrou. Embora tenha passado oito anos deste dia, Augusto conta que já não há vontade de se matar, mas a sombra está sempre presente. “A tentativa do gatilho de terminar com a vida ainda existe, é real”, desabafa. Não só por ter passado por outras crises de depressão, mas por enxergar o suicídio de uma maneira poética, romantizada: “O suicídio possibilita escolher a morte, decidir de que forma, como e quando morrer”. Consciente dos ecos do suicídio, Augusto afirma que, embora a decisão de tirar a própria vida magoe muito aos outros, trata-se de uma decisão pessoal. Para ele, é um equívoco culpar o suicida. “A dor e o sofrimento das pessoas são coisas que não podemos mensurar”, afirma. Para enfrentar a depressão e a predisposição ao suicídio, ele contou com a ajuda de medicamentos e de um psiquiatra que o auxiliou a enxergar alternativas sem ser a fuga da vida. “Comecei a programar o cérebro para receber melhor as coisas e tratar toda a informação que eu recebo”, explica, tentando elaborar a forma que encontrou para não desistir. Para ele, o que pode ser feito para evitar o suicídio é a atenção, o cuidado. “Não é vigiar a conta do Facebook. Atenção é conversar olho no olho, é estar presente, é perguntar o que está acontecendo”, ressalta. Ele afirma que a ajuda profissional também é necessária para as pessoas que pensam em tirar a vida ou sofrem de depressão ou outras doenças contemporâneas. A vigilância sobre a população com tendência suicida exige olhar atento dos profissionais da área da saúde, com supervisões frequentes. Além do prejuízo ao paciente, um único suicídio afeta emocionalmente, socialmente e economicamente, no mínimo, outras seis pessoas entre familiares, amigos, colegas de trabalho, comunidade e a sociedade como um todo. A opção de parar a mente contagia as outras: são os ecos do suicídio. Falar parece ser a melhor maneira de ajudar quem precisa e, também, de quebrar o tabu do suicídio. O resto, como diz Érico Veríssimo em sua obra sobre o tema, é silêncio. *Nomes fictícios para preservar a identidade dos depoimentos.
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