Revista Renovação. 131 . Nov/Dez 2021
REAVIVANDO A
CHAMA
AS VIRTUDES TEOLOGAIS Na obra da criação, tudo foi feito belo e esplendoroso. Quis também Deus uma criatura para chamar de filho, na qual pudesse depositar todo seu infinito amor. Como todo filho herda características genéticas e comportamentais de seus pais, a Trindade Santa infundiu em nós suas mais nobres características. “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’” (cf. Gn 1,26). Pela imagem, temos como que a “genética” de Deus refletida em nós. Características como amor, perdão, criação, inteligência, entre outras, que são próprias da Trindade, estão refletidas em nós e não há como nos desfazer delas. Pela semelhança temos comportamentos como os do Senhor, porém, pelo pecado, perdemos a semelhança e nem sempre praticamos o amor e o perdão como Jesus, nem criamos o que convêm como nosso Pai Celeste e nem sempre utilizamos a inteligência de maneira iluminada pelo Paráclito. Desde o início, somos escolha de Deus: “Não fostes vós que me escolhestes mas eu que vos escolhi” (cf. Jo 15,16) e, sabendo de nossa fraqueza provocada pelo pecado, dotou-nos de virtudes para que, praticando-as, nos tornemos novamente semelhantes a Ele.
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tude é uma disposição habitual e firme para praticar o bem. Permite à pessoa não somente praticar atos bons, mas dar o melhor de si mesma. A pessoa virtuosa tende para o bem com todas as suas forças sensíveis e espirituais; procura o bem e opta por ele em atos concretos” (CIC 1803). A palavra virtude vem do grego areté (ἀρετή) e do latim virtus e tem o sentido de “hábito ou maneira de ser uma coisa” (MORA, 2001). Conforme o artigo 7 do Catecismo da Igreja Católica, as virtudes estão divididas em Virtudes Cardeais e Virtudes Teologais. As virtudes cardeais ou humanas são a Prudência, a Justiça, a Fortaleza e a Temperança. “Se alguém ama a justiça, o fruto dos seus trabalhos são as virtudes, porque ela ensina a temperança e a prudência, a justiça e a fortaleza” (Sb 8, 7). A palavra “cardeal” tem raiz no latim cardo que se pode traduzir por “eixo, gonzo, dobradiça”, nos sugestionando a compreender quais são as principais virtudes das quais derivam tantas outras. As Virtudes Teologais são a Fé, a Esperança e a Caridade e referem-se diretamente a Deus e dispõem os cristãos para viverem em relação com a Santíssima Trindade. Têm Deus Uno e Trino por origem, motivo e objeto (cf. CIC 1812).
Virtude
As Virtudes Teologais
Nos ensina o Catecismo que “a vir-
O apóstolo São Paulo nos ensina
sobre estas virtudes, chegando até a destacar qual é a maior delas: “Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade – as três. Porém, a maior delas é a caridade” (I Cor 13,13). Não é fácil ao homem, ferido pelo pecado, manter o equilíbrio moral (cf. CIC 1811), sendo assim, as virtudes têm por finalidade nos permitir praticar os atos próprios dela sem precisar de um auxílio especial de Deus. Um cego não pode enxergar se Deus não lhe conceder uma graça especial para ver. Já quem vê, ou seja, quem não é cego, enxerga sem precisar de um auxílio especial divino, apenas faz uso das faculdades naturais que lhe foram concedidas. Assim são com as virtudes. Somos levados a praticá-las na nossa vida ordinária, sem a necessidade de especial intervenção divina, uma vez que Deus já nos deu a capacidade própria por meio delas. Sem as virtudes infusas da fé, da esperança e da caridade, por exemplo, não poderíamos praticar seus atos próprios sem uma graça milagrosa, mas como o Senhor nos reveste delas, podemos concretizá-las em nosso dia-a-dia apenas com o auxílio ordinário. Os hábitos da fé, esperança e caridade são, na nossa vida sobrenatural, como os olhos para ver, ouvidos para ouvir, entendimento para pensar ou boca para falar na vida natural, ou seja, são potências que nos habilitam a crer, esperar e amar (cf.
Encarte Reavivando a Chama
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MTD 621). A virtude teologal da Fé A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que Ele nos disse e revelou e que a Santa Igreja nos propõe para acreditarmos, porque Ele é a própria verdade (CIC 1814). A Dei Verbum ensina que “pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade e prestando voluntário assentimento à Sua revelação” (DV 5). A fé como virtude vem de Deus, porém não nos é imposta. Devemos aceitá-la livremente e compreendendo o que ela é. Conforme avançamos nas moradas da alma durante nossa jornada na fé, passamos a viver por ela, ou seja, ela nos motiva a crer fielmente no amor de Deus por nós, sem dúvida ou revolta, nos colocando fortemente e fielmente no caminho que nos leva de volta ao céu, pois “o justo viverá pela fé” (Rm 1, 17). A fé não se perde com qualquer pecado mortal, mas unicamente com aqueles que lhe são opostos, isto é, a apostasia total a Cristo (cf. MTD 625). O pecado praticado não nos é desculpa para a falta de fé, ao contrário, é a fé que nos faz crer no perdão de Deus e que podemos, sempre que arrependidos, nos reconciliar com Ele, principalmente quando fazemos uso do Sacramento da Confissão.
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A palavra norteadora que vivemos neste ano de 2021, “Descerá sobre vós o Espírito Santo e vos dará força e sereis minhas testemunhas” (At 1,8), só pode ser vivida exercendo a virtude da fé. Na versão grega dos 70 (Septuaginta), é usada a palavra “martyres” (μάρτυρες), que no latim foi traduzido por São Jerônimo como testes e, em português, “testemunha”. A palavra em grego nos remete a mártires, que significa testemunha, mas
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não apenas uma testemunha passiva, mas uma que viveu, sentiu e amou Cristo a ponto de derramar seu sangue por amor a Ele. Somente pela virtude da fé, que é sobrenatural agindo no nosso natural, podemos ter a têmpera dos mártires, indo até às últimas consequências para testemunhar Jesus Cristo. A virtude teologal da Esperança A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos Céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo (cf. CIC 1817). A virtude da esperança nos coloca em estado de alerta constante e prontidão perene, como verdadeiros sentinelas, que esperam a vinda do Senhor, cujo dia e horário não sabemos quando será. Ela nos move a nos afastar do pecado, mesmo contra todos os conselhos e perseguições deste mundo, pois nos dá a firmeza, junto com a fé, de saber que não pertencemos a este mundo, apenas vivemos nele como igreja peregrina, assim como o grande patriarca que mesmo “contra toda a esperança humana, Abraão teve esperança e acreditou. Por isso, tornou-se pai de muitas nações” (Rm 4, 18). Quando vamos a uma consulta médica, mesmo com horário marcado, precisamos esperar pela nossa vez de ser atendido. Se atrasar então, nossa paciência começa a se esgotar e, por vezes, ficamos irritados, sentimo-nos enganados, pois queremos ser atendidos o quanto antes. Alguns de nós chegamos ao extremo de ir embora, saindo da sala de espera sem nem mesmo ter sido atendido. Muitas vezes, na nossa caminhada o Senhor nos coloca em uma sala de espera, para nela aguardarmos o momento de sermos atendidos por Ele.
Nem sempre compreendemos, mas a virtude da esperança nos faz aguardar pacientemente, em atitude de oração e penitência, pois “a esperança não engana” (cf Rm 5,5) já que Deus nos trata sempre com seu amor incondicional fazendo o que é necessário para nossa salvação, nos tempos e momentos apropriados. Saibamos, portanto, aguardar pacientemente pelos tempos de Deus na santa sala de espera, onde a virtude da esperança impedirá que desanimemos. “Espera, espera, que não sabeis quando virá o dia nem a hora. Vela com cuidado, que tudo passa com brevidade, embora o teu desejo faça o certo duvidoso e longo o tempo breve. Olha que quanto mais pelejares, mais mostrarás o amor que tens a teu Deus, e mais te regozijarás com teu Amado em gozo e deleite que não pode ter fim” (Santa Teresa de Jesus, em Exclamaciones del alma a Dios) A virtude teologal da Caridade A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas por Ele mesmo e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus (cf. CIC 1822). Caridade é o amor posto em prática. O apóstolo São Paulo descreve suas características mais sublimes dizendo que “a caridade é paciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente, não procura o próprio interesse, não se imita, não guarda ressentimento, não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13, 4-7). Na sociedade hodierna vivemos um tempo em que a caridade verdadeira, como virtude, perde-se nas aparências. Vivendo “amores” superficiais, em uma pseudo-liberdade, muitos estão fechados no próprio egoísmo, tocando
a vida apenas pelas próprias paixões, tendo como ultrapassado o mandamento do amor deixado por Jesus: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo” (Jo 15,12). O Papa Emérito Bento XVI ensina a diferença do amor vivido pelo mundo do amor ensinado por Jesus: “A este respeito, fomos dar com duas palavras fundamentais: eros como termo para significar o amor ‘mundano’ e ágape como expressão do amor fundado sobre a fé e por ela plasmado. As duas concepções aparecem frequentemente contrapostas como amor ‘ascendente’ e amor ‘descendente’”. (Deus Caritas Est 7). O amor eros, que segundo a mesma encíclica deveria nos aproximar do irmão, está tão deturpado hoje em dia que atrapalha nosso entendimento e a prática da caridade como virtude, pois precisaríamos chegar ao amor ágape, desprendido, desinteressado, bom e paciente e com todas as características citadas no parágrafo anterior. Já nos tempos da igreja primitiva havia este alerta: “que vossa caridade não seja fingida” (Rm 12,9a). O termo original, que na tradução é “não seja fingida”, é an-hypòkrito: “sem hipocrisia”. A caridade precisa ser sincera, precisa vir do coração, não é um gesto exterior. O Cardeal Cantalamessa ensina que “é o Apóstolo mesmo [São Paulo] quem explicita a diferença entre as duas esferas da caridade, dizendo que o maior ato de caridade exterior – o de repartir com os pobres todos os próprios bens – não serviria de nada sem a caridade interior (cf. 1 Cor 13,3). Seria o oposto da caridade ‘sincera’. A caridade hipócrita, de fato, é justo a que faz coisas boas sem querer bem; que mostra por fora o que não tem correspondência no coração. Neste caso, temos uma pequenez da caridade, que no fim pode ser disfarce de egoísmo, da busca de si mesmo, instrumentalização do irmão ou simples remorso de consciência” (CANTALAMESSA 2021). Não podemos brincar de amar, nem nossos Grupos de Oração podem fingir esse amor. Precisamos da virtude da caridade para amar nossos irmãos de todo o coração, verdadeiramente, fazendo concretizar em obras a fé e a esperança nascidas dentro de nossa alma. É a caridade que nos vinculará definitivamente ao Senhor, o único que é perfeito, como diz a Sagrada Escritura: “Mas, acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição” (Col 3,14).
homem dócil aos impulsos do Espírito Santo (CIC 1830). Vivendo as virtudes teologais teremos todas as condições e potência de Deus em nossa vida para sermos, a todo tempo, testemunhas do Senhor onde quer que estejamos. Que neste tempo onde a esperança se renova pela virada de ano, entrando no tempo de propagar a chama de Pentecostes que viveremos em 2022, possamos permitir que cresça a fé, a esperança e a caridade, que aliadas ao Batismo no Espírito Santo, nos deixarão inabaláveis no seguimento a Jesus, vivendo o amor de Deus derramado em nossos corações. Peçamos ao Espírito Santo que nos ajude na prática destas virtudes, rezando como ensina a Santa Madre Igreja: Ato de Fé: Senhor Deus, creio firmemente e confesso todas e cada uma das coisas que a Santa Igreja Católica propõe, porque Vós, ó Deus, revelastes todas essas coisas, Vós, que sois a Eterna Verdade e Sabedoria que não pode enganar nem ser enganada. Nesta fé é minha determinação viver e morrer. Amém. Ato de Esperança: Espero, Senhor Deus, que, pela vossa graça, hei de conseguir a remissão de todos os pecados e, depois desta vida, a felicidade eterna, porque Vós prometestes, Vós que sois infinitamente poderoso, fiel e misericordioso. Nesta esperança é minha determinação viver e morrer. Amém. Ato de Caridade: Senhor Deus, amo-Vos sobre todas as coisas e ao meu próximo por causa de Ti, porque Vós sois o Sumo Bem, infinito e perfeitíssimo, digno de todo amor. Nesta caridade é minha determinação viver e morrer. Amém. Referências: MORA, Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001, tomo IV. MTD - Manual de Teologia Dogmática, Edição Portuguesa, 1958. Terceira prédica da Quaresma, Frei Raniero Cantalamessa, OFMCap, em 08 de janeiro de 2012.
“A consumação de todas as nossas obras é o amor. É nele que está o fim: é para a conquista dele que corremos; corremos para lá chegar e, uma vez chegados, é nele que descansamos” (São Basílio Magno, Regulae fusius tractatae). Conclusão A vida moral dos cristãos é sustentada pelos dons do Espírito Santo. Estes são disposições permanentes que tornam o
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