RejaneArruda
DAPOÉTICADOATOR TEATRO&CINEMA
Rejane Arruda
DA POÉTICA DO ATOR Teatro & Cinema
Vila Velha SOCA 2019
Rejane Arruda
Da PoĂŠtica do Ator: Teatro & Cinema
2019
Sou todas essas palavras, todos esses estranhos, essa poeira de verbo (S. Beckett).
Prefácio por Eduardo De Paula
De longe surgem alguns vestígios de memórias sobre o trabalho criativo dessa atriz perspicaz que é Rejane Arruda. Ainda nos tempos da graduação – e isso significa os bons anos da década de noventa passados no Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (USP) –, lembro-me de um exercício cênico chamado, se não me engano, “Lalarolirando Larai” 1, no qual ela atuava de modo a explorar uma linguagem corpóreo-vocal que era já uma espécie de trânsito entre jogo lúdico e lalação (para utilizar um conceito presente neste livro e caro à pesquisatriz 2), performatividade e teatralidade. Dos inúmeros trabalhos no teatro, na televisão e no cinema que tenho ciência de a Rejane ter se envolvido, me restrinjo apenas a este “Lalarolirando Larai” por nele reconhecer algumas das questões relevantes para a cena contemporânea – em especial os conceitos que os teóricos das artes da cena nomeiam como performatividade e teatralidade. Podemos nos referir, ao primeiro, a partir da compreensão ampliada sobre a perspectiva de jogo – o que nos permite considerar que tanto as micro quanto as macro relações nas quais o caráter do imprevisível como elemento operacional que subverte regras prévias e a ordem dos resultados esperados, age de modo casual, determinante e nos recolocam frente à compreensão de que “isto ou aquilo” é jogo, ou seja: a ordem do performativo é a do jogo. O segundo conceito pode ser considerado como qualidade daquilo que é próprio ao universo teatral, pois ainda que a noção acerca de teatralidade possa ser empregada para além do teatro, acho pouco relevante para artistas, pesquisadores e interessados sobre este campo, problematizar e utilizar tal conceito que não para problematizar os processos produtivos das artes da cena. E hoje, me dou a liberdade de analisar aquele precioso “Lalarolirando Larai” à luz destes conceitos codependentes sobre teatralidade e performatividade, chegando a uma resposta-indagação nada simples que em tal processo de
Exercício de direção teatral de Elton Wagner e atuação de Rejane Arruda (década de 1990; CAC-ECA/USP). “Pesquisator” foi um termo cunhado no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator, pelo Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva (CEPECA-ECA/USP). Neste texto me dou a liberdade de se referir à Rejane Arruda como “pesquisatriz” – dado a coerência entre os sentidos que este conceito porta e a atitude eloquente desta atriz & pesquisadora. 1 2
pesquisa e criação tais questões já estavam presentes nas atenções desta pesquisatriz e operacionavam suas ações artísticas. Nas trilhas de suas pesquisas, acompanhamos neste “Da poética do ator: teatro e cinema”, o esforço prazeroso da pesquisatriz por enquadrar – outra vez utilizando um conceito aqui bastante presente – os estudos sobre a arte de ator ao acompanhar, detalhar e recortar não apenas as proposições mais relevantes observadas nos principais nomes da cena teatral do Século XX, mas principalmente aquelas mais pertinentes para o desenvolvimento deste trabalho e o que dele acredito ser o legado mais importante: os rastros metodológicos e procedimentais para o desenvolvimento dos processos de preparação e criação do ator – esteja este sujeito frente à câmera ou a uma plateia. Nesta esteira, aos poucos vamos nos deparamos com as principais referências do Século XX relacionadas aos encenadores-pedagogos – Stanislavski, Meierhold, Brecht, Grotowski e Barba – e suas inquietações sobre os processos criativos e formativos do ator em busca de uma certa “autonomia nos processos de criação”. Outros homens do teatro europeu figuram no texto, como Piscator, Artaud e Kantor – e do continente americano, como dois expoentes, observamos, no Brasil, a atuação de Eugênio Kusnet e, nos EUA, do Living Teatret nas figuras de Julian Beck e Judith Malina. Para além destas referências, também nos deparamos com o terreno as vezes bastante escorregadio relativo às teorias teatrais, suas conceitualizações e tentativas de categorização. Daí as problematizações e as incongruências sobre “teatro pós-dramático” e/ou “teatro performativo”, consecutivamente nas figuras exponenciais de Hans-Thies Lehmann e Josete Feral. O recorte de ambos está ligado à cena teatral do último ¼ do século XX, destacando por um viés, as características presentes na cena teatral, como sua independência da estrutura fabular, do texto concebido a priori como matéria fundante do fazer teatral e da incompletude como elemento que obriga o espectador a “fazer funcionar” os sentidos possíveis da cena. Por outro lado, uma cena que passa a revelar os processos de sua produção como material espetacular – além da presença das novas mídias, da colagem, do tempo dilatado, das biografias transformadas em textualidades, do estabelecimento de uma espécie de tempo-espaço para um jogo que embaça o campo perceptivo do espectador ao inseri-lo em um jogo de cena fronteiriço entre ficção e realidade. Ao passo que a pesquisatriz vai verticalizando tais questões e transformando-as em caminhos e proposições pessoais, nos deparamos com a abordagem do procedimento “Corpus Subject Investigation”, um momento de precioso compartilhamento pedagógico que revela os caminhos de preparação e criação dos atores durante a montagem de cenas da peça “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos. Tal procedimento parece agregar as metodologias centrais presentes em sua pedagogia, como a memorização pela escrita, a improvisação e a
construção de partituras de ações físicas, o jogo de regras e suas subversões, além das noções próprias do cinema que passam a colaborar com a feitura da cena teatral como suportes para o desenvolvimento criativo do trabalho do ator, são elas: enquadramento, incidência e arranjo. Entre tais questões, Rejane ainda encontra espaço para colocar em jogo algumas provocações criativas de fazedores das artes da cena contemporânea: Pina Bausch e a dança-teatro, Robert Wilson e seu teatro de imagens, Anne Bogart com os viewpoints e Marcelo Lazzaratto com o “campo de visão” – ambas referências fundamentais para o campo da pedagogia teatral. O salto final nos transporta ao território do cinema, apresentando um estudo minucioso sobre o rosto, o olhar, a luz, a direção de ator – mas mais justo seria utilizar “direção de atriz” devido o contexto e os exemplos utilizados: Anna Magnani, Lynn Carlin a Clarissa Kiste e a própria pesquisatriz Rejane Arruda, entre outras –, até chegar à questão importante relativa aos cineastas em formação e a necessidade de afinação do olhar para a condução de atores – questão de suma pertinência à pedagogia do teatro em relação à formação de diretores. Por fim, encerra analisando alguns filmes e refletindo sobre as questões da recepção a partir da posição própria à esta figura que frui e se coloca em jogo com os afetos presentes no confronto de si mesmo com as imagens sobre ela projetadas. “Da Poética do Ator: Teatro & Cinema” é mais um dos envolvimentos criativos e provocantes desta pesquisatriz irrequieta, atualizada com seu tempo e em busca pela organização de caminhos pessoais na vereda não apenas relativa às artes da cena, mas principalmente aquela especialmente ligada ao seu prazer maior: a Arte de Atriz. Boa leitura,
Eduardo De Paula, 22/05/18, Bologna/Itália.
Prefácio por Suely Aires O escritor Jorge Luis Borges dizia que um livro era uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente universo, até o momento em que ele encontre seu leitor. De certo modo, podemos dizer que Rejane Arruda, em seu livro, provoca e desafia um leitor, produz desassossegos e segue, apresentando autores, conceitos e incitando à invenção. Entre arte e psicanálise, entre texto e corpo, entre voz e enunciação, as ideias contidas em “Da Poética do Ator: teatro & cinema” impedem a tranquilidade de um ponto seguro e preciso, exterior ao texto, que permita ao leitor uma apreensão totalizante deste ensaio. Há efeitos dissonantes do livro que incidem sobre aquele que se dispõe a acompanhar seus argumentos e descaminhos e, como resultado desse percurso, esse prefácio traz as marcas de uma afetação, de um desconserto interpretativo, que se sustenta em minha posição de leitora: sigo rastros e pistas. Já de início, na Parte I, a escolha por uma apresentação entre teoria psicanalítica, teorias da linguagem e práticas autorais, por meio de certa homologia, desalinha o que parece, por vezes, tão habitual nas produções de arte e psicanálise. Há, na escolha por um paralelismo entre planos enunciativos, um tensionamento que impede a aplicação de uma teoria, conceito ou campo sobre o outro. Dito de modo mais claro, não há um uso da teoria psicanalítica para pensar a função do ator ou seu papel na encenação. Tampouco há esclarecimento ou formalização da teoria psicanalítica a partir do teatro, da concretude das ações do ator ou das imagens e cenas no palco. Há, sim, certa performatividade entre modos de enunciar e afirmar hipóteses que provoca o pensamento, fazendo deslizar o seu ponto de apoio. Nesse sentido, o texto desloca o leitor, pois parece transitar em um caminho já trilhado, quando, em verdade, inventa o seu caminhar ao propor que o ator seja um agente de produção poética no processo de sua construção. É por meio desse desconserto, das diferenças que saltam à vista e embaralham o olhar, das palavras já conhecidas que se colocam em novo contexto, que se abre o campo da invenção. Cabe destacar que esse movimento só se torna possível em função da manutenção de um espaço vazio, intervalo que permite criação, tanto no texto teórico agora apresentado, quanto na experiência cênica promovida pela autora em seu trabalho como atriz e professora, cujo percurso traz as marcas da relação entre psicanálise e teatro. Na argumentação desenvolvida ao longo do livro, a homologia entre as práticas cênicas e a teoria psicanalítica revela-se, de um lado, como um método de apresentação do problema central da pesquisa e, de outro lado, como um estilo que permite transmissão. Efeito moebiano de uma posição enunciativa.
Ao leitor, que segue as indicações da autora, cabe equilibrar em cada uma das mãos um objeto e, em certo esforço de malabarista, fazer girar os elementos que compõem uma das hipóteses do texto: a resistência à técnica faz do sujeito um artista, pois a partir de sua dificuldade criam-se caminhos singulares. A resistência à técnica deve aí ser entendida não como recusa, mas como um fazer com, um tensionamento que se constitui como espaço de subjetivação. São necessários, portanto, o confronto entre o leitor e aquilo que o provoca no texto, entre o ator e as estruturas cênicas, para que advenham soluções singulares como ato de insistência diante do furo, tempo de invenção e reinvenção. Trata-se do encontro com uma estrutura – cênica, de procedimentos, preparatória, tal como ilustrada pela autora em diferentes contextos – que deve ser contemplada, descoberta e provocada em seus limites. Como dar “o pulo do gato” da arte para a ciência? Essa é uma das perguntas instigantes que lançam o texto para diante de si mesmo. A resposta da autora surge poucas linhas depois: não me parece ser a técnica o que garante o estatuto da arte. Resposta sutil que sustenta-se em uma afirmação leve, quase uma opinião – não me parece... Mas o que o leitor encontra, sob essa aparente simplicidade, é uma questão delicada entre técnica e método, entre arte e ciência. E, no texto de Rejane Arruda, é a noção de dispositivo, em seu caráter tensional e performático, que ocupa o palco, costurando ideias, dando ao argumento seu lugar: entre arte e ciência, entre técnica e método, performa-se a poética do ator. Solução singular que se produz a partir do encontro com a contingência e a exclusão: nem técnica nem método, entre arte e ciência, modos de figuração do objeto a. Como consequência, não é um savoir-faire ou savoir-y-faire que se destaca da cena enunciativa que a autora propõe; não se trata de um saber, mas de um ousar, de permitir-se o risco dos caminhos ainda não trilhados, dos corpos ainda em construção, do abandono dos espectros de diferentes autores e teorias, da elaboração e composição de novas possibilidades, da subversão do instituído. É nessa direção que a invenção se coloca como artifício, como engenho e realização, no justo momento do acontecimento em cena: posição do ator. Ou poética, diria a autora. Mas isso não se faz sem o encontro com o imprevisível, com o que do corpo escapa, com isso que para de não se escrever. Como afirma Lacan, a arte está sempre às voltas com o real – declaração da qual decorre a principal hipótese da autora: a obra de arte afeta o espectador justamente por figurar algo que não se consegue traduzir (em palavras), mas que funciona como causa de seu desejo. É o conceito de objeto a que embasa a proposta teórica e cênica de Rejane Arruda, mas apenas na condição de reconhecer a especificidade desse objeto: não especularizável, não nomeável – em uma desiginação estável – e hipótese de trabalho. Seguindo os passos de Lacan, a autora concebe a centralidade do real e seus diversos tratamentos pela arte, na composição de bordas e
figurações – vazio, excesso, anamorfose e descrença no olhar. E no corpo dessa experiência – de escrita, de leitura, de interpretação – insiste um núcleo ou ponto de resistência que situa aquilo que o espectador não consegue capturar, aquilo que o leitor entrevê pela voz da autora e que o ator transmite. Resistência formal entre experiência do espectador e do ator, entre expectativa do leitor e enunciação do autor, que abre espaço para o que insiste: ponto de real. A transmissão que opera no texto parte de fragmentos de teorias e de experiências cênicas, ocupa-se de restos, constitui-se como operação de perda que se refaz na escrita e que permite a inclusão de um. Eis o leitor, atrás das cortinas, de volta aos palcos. Eis o ator, dentro de um dispositivo, às voltas com a invenção. O recurso às fotografias, os fragmentos de filmes, as cores, cortes e planos – em sua beleza desconcertante no capítulo 16 – possibilita que o leitor siga as pistas interpretativas lançadas por Rejane Arruda: o que se dá ver é um lugar de atravessamentos, de reverberações, de efeitos; lugar onde se pode vislumbrar uma impressão de vida – expressão da autora – em uma cena que é construída por um outro, por diferentes outros, e que parece determinar o enquadramento. Mas esse enquadramento não é único: ele é tão fragmentário e díspare, numeroso e variado, quanto os autores e diretores que comparecem ao espetáculo. Polifonia de vozes, miríade de olhares em que se encontra o leitor – labirinto. Com um fio em mãos, é possível percorrer o emaranhado de possibilidades interpretativas, transformando o labirinto em um espaço de encontros e perdas, em um jogo de espelhos e de linguagem. Cada leitor pode, então, seguir em seu estranhamento tão familiar. Mas isso não se dá senão ao preço de produzir uma passagem do comum ao próprio, de aí incluir algo de seu na interpretação. Somente ao lançar-se na aventura da leitura, ao permitir-se prosseguir, mesmo diante dos pontos difíceis do texto, é que o leitor poderá produzir um lugar que acomode suas questões e, talvez, poderá recolher algumas respostas – experiência dramática. No entanto, a passagem do comum ao próprio – percurso do leitor – tangencia um ponto muito específico: a experiência da atriz Rejane Arruda permite o trajeto oposto, que do próprio se chegue ao comum, ao compartilhável, à possibilidade de teorizar sobre o tema, de produzir conhecimento e disso fazer escrita. Desse modo, pode lançar as bases para um laboratório onde a poética se apresente como modos de figurar o objeto a e em que os atores manejem os arranjos e os limites do dispositivo teatral. Há aí uma fronteira e uma mudança de registro produzidas pela autora: diante de uma questão, uma vez apresentadas as abordagens conhecidas, os caminhos já trilhados – e as referências no campo da arte, do teatro e do cinema são abundantes –, ela buscará, ao longo do livro, dar forma ao que ainda não tem forma. É nesse contexto que a hipótese quanto aos modos de figuração do objeto a no campo do teatro e do cinema mostra-se ainda mais provocativa, pois permite que seu objeto de investigação e inquietação seja mantido e insista, sem redução ao
campo do já conhecido: a teoria e a prática são continuamente interrogadas. Poderíamos dizer que entre imaginário, real e simbólico, um enodamento é proposto: da passagem do próprio ao comum e ao compartilhável se constitui um espaço de re-invenção. Saber-fazer com o real. Ousar simbolicamente. Performar imaginariamente. Em decorrência dessa operação de enodamento, uma das hipóteses de trabalho de Rejane Arruda ganha maior consistência: a poética do ator é experiência de um semblante e dispositivo de atuação. Ora, o semblante a ser construído deve necessariamente levar em consideração as diferentes roupagens do objeto a, elemento essencial no dispositivo de atuação. Mas tal consideração só se faz pertinente se, em consonância com Lacan, indicarmos a natureza não especular e não nomeável do objeto em causa. Ao considerar a proposta geral do livro, podemos supor que o caráter ensaístico escolhido pela autora dá a ver um dispositivo em ação, maquinaria de práticas, discursos e corpos, que atualiza o encontro com as contigências, que provoca um leitor. Só-depois o leitor poderá reconhecer o que foi produzido em seu efeito de verdade; verdade semi-dita e ficcionalizada, cujo objeto central insiste: novo filme, nova montagem, nova experiência de corpo, voz e olhar. Ironicamente, ao longo do texto, um destino anunciado – a hipótese de Rejane Arruda quanto às figurações do objeto a – só será constituído posteriormente, pelo leitor, personagem lançado para o tempo futuro, que ocupará o papel de destinatário deste livro-carta, às voltas com o objeto. Nesse sentido, é interessante considerar que um leitor se constitui desde fora, mas no interior do texto, e que, a cada instante, ele é confrontado, deslocado, refeito pelo gesto de leitura e pela enunciação da autora: nova volta moebiana. E nesses volteios, mais uma vez, Jorge Luís Borges surge em cena, agora, sob a pena de Foucault: em seu prefácio de “As Palavras e as Coisas”, o filósofo refere-se ao riso e ao desconserto produzidos pelo texto borgiano, afetações que perturbam as familiaridades do pensamento e os planos sensatos. Só depois de ler Borges, Foucault poderá rir e embaralhar as posições de autor e leitor: não, não, eu não estou lá onde você me espia, mas aqui, de onde te olho rindo. Armadilha para o olhar, fuga do enquadramento, efeito de surpresa. É, portanto, ao fim desse percurso, após seguir rastros e pistas, que posso testemunhar um lugar de afetação e indicar que a possibilidade de surgimento de um leitor implica deixar-se provocar pela autora e manejar vazios e excessos em “Da Poética do Ator: teatro & cinema”. Proponho, então, que os curiosos levantem as cortinas, adentrem nas salas, invadam as telas, experimentem o texto e se deixem simplesmente levar. Aventura poética.
Suely Aires, 15/03/2018, Salvador/Brasil.
Apresentação por Rejane Arruda Contemplando a perspectiva de certa diversidade de poéticas, situo primeiramente uma reflexão sobre o Teatro, trazendo traços da sua trajetória no Século XX, até o Pós-dramático, mostrando que é no hibridismo que o ator contemporâneo precisa se situar. Para isto, apresento, como norte, uma ideia instrumental do que seja “poética”, utilizando-me do arsenal conceitual da psicanálise lacaniana. Em um segundo momento, a reflexão se estende para o Cinema, com proposições pontuais, que se alongam para o desenvolvimento de “figuras do ator” na Linguagem Cinematográfica. Assim, respondo a demandas específicas da prática atoral, na medida em que a cinefilia e as aulas de Atuação para Cinema e Direção de Atores (ministradas na Academia Internacional de Cinema, Escola Superior de Artes Célia Helena, Oficina de Atores Nilton Travesso e Universidade Vila Velha), além da prática como atriz em cinemas independentes e autorais, me dão subsídios. O que proponho, tanto no Cinema quanto no Teatro, é uma estrutura de trabalho para o ator. Que este se reconheça como agente da produção poética e perceba o manejo do processo de sua construção. Se o ator está inscrito na estética do diretor X, do grupo de teatro Y ou no dispositivo de produção teatral ou cinematográfica Z, os arranjos serão diferentes, o discurso e os materiais com os quais joga e, também, as resultantes. Assim, pretendo contribuir com um olhar que se traduz como “Política do E”: dialética suportada por princípios opostos (ao invés da exclusão), em um dispositivo onde as diferenças fazem o ator produzir. Isto para que o manejo contemple as contingências: o que escapa ao esperado e à sistematização (em outras palavras ao controle) - e atualizações (o que volta pelo corpo, se impondo como sintoma e estilo). Quanto às escolhas estéticas, as marcas do que nestes textos proponho para a atuação estão relacionadas a certa performatividade da construção dramático-realista, que por sua vez se traduz como modalidade possível do Teatro Contemporâneo. São reflexões forjadas ao longo de dez anos, a partir de práticas sucessivas; questões, trocas, diálogos imbuídos de problemas do nosso campo, aos quais procuro responder; ou de dicotomias que procuro ultrapassar. Por um
lado, me posiciono frente a procedimentos e o desenvolvimento de conceitos, para a circulação em campos diferentes (Teatro e Cinema); por outro lado, trago propostas para o ator. Evidentemente, muitos objetos ficaram de fora e poderão ser futuramente abordados. Atenho-me, aqui, a princípios formadores. Rejane Arruda, 29/05/2019, Vila Velha/Brasil.
Sumário Introdução 14 Parte I: Corpo, Linguagem, Enquadramento. 1. Outro conceito de corpo
19
2. Função do arranjo
25
3. Enquadre, incidência e atualização
34
4. A Incorporação do pré-jogo: tentativas de formalização de um procedimento estranho
43
Parte II: Por um Jogo de Enquadramentos Híbrido. 5. Arranjos paradigmáticos como campo de extração
52
6. Traços do contemporâneo: autonomia da poética teatral
68
7. Realismo e vanguardas: uma tensão que faz mover
77
8. A teatralidade enquanto choque de visualidades
85
Parte III: Interrogando o Arranjo Dramático-Realista 9. Performando a teatralidade no jogo de enquadramentos, repensando a tessitura do dramático
94
10. Modalidades de jogo em um dispositivo complexo: ainda o texto 106 11. Elemento atrapalhador e outros princípios: a performatividade na poética dramático-realista 12. Por uma poética realista estranhada
120 137
Parte IV: Ator, Cinema e Estranhamento. 13. Figuras de uma poética do ator no cinema
152
14. O Ator no contexto da direção cinematográfica: atuação como território de estranhamento
171
15. A criação do corpo em articulação com a estética fílmica: modalidades de agenciamento da poética cinematográfica pelo ator
178
16. Um fora do quadro: o que brilha no rosto? 183 17. Diversidade no campo da direção de atores: uma estrutura da prática da atuação para a orientação de cineastas em formação
194
Parte V: Espectador, Estética, Recepção. 18. Ruptura e deslocamento: o espectador em ato
200
19. A indeterminação como figura da poética fílmica
204
20. Pedro Costa: “revolutio” na tessitura “real”
210
Considerações Finais
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Referências Bibliográficas
223
Introdução O ator é um “encenador de incidências”, um encenador de excitabilidades; mostrador das reverberações dos materiais no seu corpo: palavras, imagens, movimentos, sons, objetos. Estas reverberações, ele precisa enquadra-las (organiza-las no tempo-espaço), constituindo uma plasticidade do desenho corporal e da voz, e a visualidade de ações que implicam a plasticidade de um universo ficcional. A primeira questão que surge é a singularidade das experiências, pois a criação cênica se apresenta como objeto em sua diferença, que não se repete. Talvez devêssemos pensar, com Josette Feral, que não existe “o” Teatro e sim teatros. Qualquer teoria da criação, ao invés de trazer à tona uma verdade (que refutaria as outras), seria tal como um texto. Um texto do qual aquela cena específica é efeito. Pois na prática da pesquisa, o que percebemos é que: a teoria modifica o seu objeto. Os conceitos são, também, materiais de criação. É o que observamos nas descrições de encenadores que, ao longo do XX, dedicaram-se às investigações sobre o ator, como Stanislavski, Grotowski e Barba. Ao formular a noção de “impulso de dentro para fora”, designando, no corpo, o centro como um “dentro” (e as extremidades como um “fora”) – ou seja, definindo um vetor, uma relação espaço-temporal para a inscrição da ação física em cena – Grotowski criou uma grafia, um enquadramento plástico na cena do ator. A poética do ator em Grotowski implica, portanto, a sua teoria do impulso, diferente da teoria do impulso de Stanislavski, fundamentada em outra modalidade de ação física 1 e gerando outras resultantes. Seguindo este argumento, diríamos que as articulações com outros campos do saber (como as ciências naturais, a física e a biologia ou, ainda, a filosofia e a psicanálise) servem para os artistas como materiais textuais na consolidação de diferentes poéticas. É possível perceber que o modo como cada pesquisador anuncia a verdade do seu processo está intimamente articulado a sua criação. Da mesma maneira que, nas Artes Plásticas, temos o Método Paranóico Criativo de Salvador Dalí, nas Artes Cênicas temos o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, a Antropologia Teatral de Eugênio Barba, o Teatro Épico de Bertold Brecht, o Método das Ações Físicas de Stanislavski, a Mímica Corporal Dramática de Decroux, o Teatro Pobre de Grotowski. São modos diferentes de enunciação sobre a atuação e, para além da pretensão
Ação física é o termo tradicionalmente utilizado no campo da pedagogia e teoria do ator. O termo partiu de Stanislavski e assumiu diferentes conotações ao longo da pesquisa de outros diretores-pedagogos, como Jerzy Grotowski e Eugênio Barba. 1
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científica (ou seja, de formalizar uma verdade) estes discursos estão implicados como material para a encenação. Chegaríamos à impossibilidade do pensamento científico nas Artes Cênicas? Outro campo, cuja formalização da experiência singular exigiu uma série de problematizações, é a psicanálise. Freud e Lacan pretenderam elevar a psicanálise ao estatuto de ciência para afastá-la da via do misticismo (esta que também tantas vezes se apresentou como o ponto de chegada das pesquisas em teatro). No entanto, se por um lado, os instrumentos dos quais dispunha Freud implicavam conceitos da biologia e da neurologia, por outro, o pai da psicanálise declarou que esta inaugurava uma nova ciência. Quando Lacan propôs o seu “retorno a Freud”, se apoiou principalmente em noções da antropologia e da linguística, formalizando o inconsciente a partir de duas operações que Freud propôs como via régia sonho: o deslocamento e a condensação. Tomando o deslocamento como a metonímia e a condensação como a metáfora (as duas operações fundamentais da linguagem), Lacan propõe o inconsciente estruturado como uma linguagem. Linguagem que não se sustenta em relações unívocas entre significantes e significados, mas em infinitas articulações entre os significantes, materiais isoláveis que se deslocam e se empilham (ou se condensam), em torno do que seria um objeto causa do desejo: justamente a falta-a-ser do sujeito, o locus de um vazio estrutural (que é efeito da linguagem). Também nas Artes Cênicas creio que seja importante deslocar os campos de onde extraímos conceitos. Muitas vezes, são as dicotomias advindas da tradição filosófica (como a compartimentação em corpo, mente e alma ou a oposição dentro e fora) que nos fundamentam. E se, por exemplo, trocamos a noção de memória “da célula” (ou “do músculo”), pela noção de memória de um corpo atravessado por linguagem (e sujeito às reverberações dos deslocamentos e condensações do significante), o que acontece? Qual é a consequência para uma prática, já que a teoria a transforma? Ou, ainda se, no lugar da oposição “dentro-fora”, instalamos outra oposição: entre a função do enquadramento e da incidência de um material oculto – sendo que tanto este quanto aquele podem igualmente causar a excitabilidade? E, ainda, se utilizamos a noção de cadeia de impulsos como sucessivas substituições entre os materiais, tanto os ocultos quanto aqueles que estão expostos ao olhar do espectador? O que acontece com a prática se trocamos o discurso teórico? Para Lacan, o sujeito do inconsciente freudiano é o sujeito da ciência moderna. Na psicanálise está em jogo a elaboração de um saber que é sempre singular. O falasser 2 (o falante que deita no divã) implica um corpo individual e certa bateria de significantes da qual é efeito. 2
Neologismo proposto por Lacan.
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O seu lugar, como sujeito, é constituído como diferença radical. Ele não encontra, no discurso corrente, a verdade que possa ser designada como sua: “o que eu sou não tem resposta”. É como se o discurso mentisse de saída. De maneira que o analisando se torna um subversivo do discurso corrente, cavando outros; assim como os artistas e os cientistas. Segundo Gilson Iannini é entre Montaigne e Descartes que o sujeito da ciência moderna se constituiu; a partir de um corte na cosmologia do mundo fechado aristotélico e medieval, que abre, em seu lugar, “a imensidão sem fronteiras de um espaço ilimitado”, ontologicamente indiferenciado. “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”, diz Pascal (Iannini, 2012, p. 219). É sob a égide da indeterminação que surge o método científico como uma metalinguagem que deveria ser “capaz de impor uma forma inteligível ao campo dos fenômenos (...) e estabelecer as condições de verdade das proposições teóricas” (idem, p. 220). Para Lacan, o mundo não é uma realidade empírica separada do sujeito que o observa. Ao tentar a metalinguagem que traduza os fenômenos, a ciência moderna teria desconsiderado a diferença radical do sujeito, implicada como desejo de um saber singular. Fico tentada a dizer que, no caso da experiência cênica, a verdade da criação também não é passível de designação. Tal como na psicanálise, esta se encontraria articulada a saberes singularizados. Mas, se não existe o universal capaz de designar uma verdade da criação (e a teoria é material textual que implica a diferença entre as poéticas), a questão passa a ser como chegar a algo que adquire valor de conhecimento – passível de transmissão no campo da pedagogia do ator e do teatro. Como dar “o pulo do gato” da arte para a ciência? Acredito que a questão que se apresenta é como universalizar uma estrutura que possa ser representativa da diferença. Existem culturas diversas do fazer artístico, com seu savoir faire e as suas técnicas. No entanto, não me parece ser a técnica o que garante o estatuto da arte. Digamos que é mesmo quando algo a subverte, ou seja, quando há o espaço do desejo (que por princípio é subversivo) que a arte aparece. Um desejo que não é o querer, mas que trai o querer. De maneira que uma teoria das Artes Cênicas deveria reconhecer a operação de subversão de um suposto. Para Lacan, a catarse é o centro do que ocorre na experiência do teatro – que deverá lidar com as formas do vazio e da anamorfose: “Enquanto mecanismo do inconsciente, o teatro seria o lugar de uma falação em torno do Buraco, do Vazio” estrutural do sujeito (Pizarro, 2008, p. 05). O espectador é levado a uma posição de escuta deste vazio. A cena produz um lugar para que este se exiba. No caso do ator, enquanto artista, poderíamos dizer que a sua poética dá a ver este buraco que, por princípio, é efeito da linguagem. Como resultante encarnada, a sua criação (figura) implica os atravessamentos das cadeias de significantes, que se deslocam e condensam, de maneira que o vazio estrutural seja apontado. E, por estar o ator sujeito as reverberações 16
destas cadeias, os seus precipitados aparecem na cena do corpo, tal como as imagens encarnadas do sonho. Vejamos um exemplo da prática: quando um ator trabalha com uma partitura física como material, ou seja, com uma cadeia de formas e movimentos de transição, ao extrair, por exemplo, das Artes Plásticas, formas para realiza-las corporalmente, estas formas funcionam tal como significantes, se deslocando e se condensando junto a outros materiais. Por exemplo, no jogo de improvisação com a visualidade de uma situação ficcional, estas formas reaparecem atualizadas (em reverberações corporais) e transformadas; condensadas à visualidade das ações que o ator descobre durante a experiência do improviso. O fato desta criação de improviso não nascer da intencionalidade do ator, mas de rearranjamentos na tessitura da sua memória corporal, abriu caminho para que Stanislavski a atribuísse ao inconsciente 3 (mesmo que, segundo ele, não estivesse utilizando este termo com precisão). Poderíamos dizer que as ações físicas (que compõem a figura do ator em cena) são como os precipitados de deslocamentos e condensações; tal como as imagens do sonho, que implicam esta espécie de objeto causa do desejo, locuo Vazio – falta-a-ser do sujeito e por isso desejo. A hipótese é que, como a verdade do sujeito não pode ser dita, tal como no sonho, a arte seria uma forma de “meio dizê-la”. Haveria um efeito de verdade na cena que valida o discurso científico a esta articulado. Ao invés da prática cênica como objeto de conhecimento a anteriori (cuja verdade deveria ser designada), teríamos uma prática que articula aquele pedaço de discurso (que a inventa) e engendra “um efeito” de verdade, graças à inscrição no dispositivo cênico (que por princípio coloca o Vazio em questão). O que garante a ciência do ator seria o dispositivo de encenação através do qual uma resposta é endereçada ao outro. Tal como Grotowski respondeu a Stanislavski sobre a questão do impulso, engendrando a diferença que o marcou como sujeito na história do conhecimento. Uma verdade se constitui como efeito da obra, no lidar com a indeterminação que destitui o saber anteriormente constituído. No caso do ator, é a própria tessitura corporal que se desloca para que, dos restos das reverberações, um desejo advenha (e legitime a nova forma discursiva).
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Ver STANISLAVSKI, A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
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PARTE I CORPO, LINGUAGEM, ENQUADRAMENTO
1. Outro conceito de corpo
A psicanálise surge com Freud na virada do Século XIX para o XX, centrada na ideia de inconsciente; e se revela enquanto um campo de saber, com objetos e hipóteses próprios. Principalmente a psicanálise lacaniana acusa uma articulação entre verbo e corpo, a linguagem e o inconsciente. Lacan vai de encontro a Freud, construindo novos conceitos na medida em que dialoga com outros campos, como a Antropologia, a Matemática (Teoria dos Conjuntos), a Filosofia, a Lingüística. Com o neologismo falasser, ele se refere à sustentação do sujeito no ser que fala (usa a linguagem). Aparece uma relação problemática com o “ter” um corpo, abrindo a perspectiva de se pensar outras noções de corpo: “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante (...)” (LACAN, 2007, p. 64). O corpo aparece como “conjunto vazio” – ou “um a mais” (e não como a identidade do sujeito). O corpo é para Aristóteles, aponta Lacan em Mais, ainda, o modelo do um. Mas esse um é o indivíduo, isto é, o um-todo-só. E cabe a Lacan interrogar então sobre a origem verdadeira do significante Um (p. 196-7; ed. fr. p. 130- 1). (...) o corpo poderia ser o modelo, ou seja, a origem imaginária, não do um-todo-só, que é significante, marca, traço, corte, mas do um-a-mais que é o conjunto vazio (MILLER, 2007, p. 213-214).
É como se o corpo estivesse a mais ao sujeito, só que este a mais é vazio e, tal como uma lata vazia, faz eco. “Trata-se de dizer, simplesmente, que o corpo existe como um saco de pele, vazio, fora e ao lado de seus órgãos. (...) Sua ex-sistência aos elementos que ele contém, sua consistência de continente é a do conjunto vazio na fórmula: {1, Ǿ}” (MILLER, 2007, p. 213-214). 19
Na psicanálise, o corpo é o suporte do inconsciente na medida em que é nele que “a linguagem copula”: “(...) o sentido como tal, definido pela copulação da linguagem, posto que é a partir dela que dou suporte ao inconsciente, com nosso próprio corpo” (LACAN, 2007, p. 118). Corpo que, imaginariamente, dá unidade a uma imagem de si, saco vazio onde ecos são percorridos, implicados como “modo de gozo” irredutível daquele corpo. Corpo como lugar onde “a fala goza”: “na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a certo gozo” (LACAN, 2007, p. 55). Gozo como excesso; gozo como repetição; gozo como estilo; gozo como escrita; gozo como êxtase; gozo que seria puro na morte; gozo como angústia; como contato com um real indizível; traumático gozo como sem-sentido: são diversas as figurações do gozo que aparecem na obra de Lacan. Aventuramo-nos a trazer estas ideias para a investigação sobre o ator em cena. Podese dizer que ele treme, tal como um ser apaixonado; pode-se dizer que o saco vazio é encharcado, sujeito às contingências dos encontros entre os diversos materiais que compõem a especificidade da sua memória, articulados à forma de gozo daquele corpo. É como se não fosse possível escapar da especificidade da própria história, fantasia e pessoalidade (apesar das paixões de Artaud, Craig, Meyerhold, pela impessoalidade). É necessária a morte da pessoalidade para que a poética surja? E quando se advoga a impressão do “humano” – sendo este um dos paradoxos da poética cênica – postulando-se um humanomorto? E quando se fala de “realismo” ou “cotidianidade” e do seu automatismo, pode-se trabalhar certa impessoalidade, também? Ainda que cada sujeito implique as marcas inerentes ao seu corpo-linguagem, as letras de uma história de afetos? Ainda que, para além de uma estrutura que o determina às avessas, esteja a contingência do “fora-do-sentido” com o qual o sujeito se enlaça (este tal gozo, do qual o ator tenta se defender ou que vive em sua fantasia)? Tal como um Genet, quando coloca a paixão pela morte em cena; como Kantor, Craig, Meyerhold, quando colocam o boneco (morto do homem) em cena, o ator vive uma fantasia de morte. Quando trabalha a fé cênica (Stanislavski, 2005) para dar lugar a outro, é de si que (imaginariamente) abre mão. O “dentro de si” é constituído em nome do “pensamento da personagem” enquanto “fora de si” ele produz o “corpo da personagem”. Nesta fantasia de ser outro, ele joga com toda a sua estrutura: linguagem, corpo, memória. Algo do verbo que escapa à linguagem A paixão de Artaud pelo som em detrimento do sentido pode expressar algo da alingua, tecido de pedaços de som a nível a-estrutural, caos: “Alíngua é o nível a-estrutural 20
do aparelho verbal, ao passo que a linguagem e o discurso são ordenações” (COLER, 2010, p. 16-17). Lalação vem do latim “lallare”, que designa o fato de cantar “lá, lá...” para adormecer as crianças, dizem os dicionários. Designa o balbucio da criança que ainda não fala, mas que já produz sons. A lalação é o som separado do sentido, mas como se sabe, entretanto, não separado do estado de contentamento. (...) Os efeitos dessa alíngua ultrapassam, e muito, tudo aquilo que dela podemos apreender. Esses efeitos são os afetos, no sentido em que é a alíngua que afeta primariamente o gozo. (...) Que se possa gozar da matéria verbal, é algo assegurado pela existência do poeta (LACAN, 2007, p. 118)
Como o ator brinca com a corporeidade dos sons, dos cacos, dos saltos? Também a fantasia une e dá unidade a alguma ordem pulsional, fazendo do outro um objeto do gozo da sua fala. As imagens das pessoas são tecidos de onde o ator recorta significantes, que entram no seu discurso e arranjo, fazendo ressonar, no “saco vazio”, o “singular” do qual é efeito. A produção atoral é resultante destes ecos (sujeito partido e um corpo vazio), encharcados do gozo da alingua e do tecido de cicatrizes da linguagem, sob a chancela da fantasia que diz da sua verdade. Se a criação é singular, estruturalmente traz consigo algo que não amarra diretamente o sentido da cena (representação), mas se revela enquanto estilo (próprio). Assim, se é artista; tem-se, sempre, uma versão própria do personagem e ações físicas determinadas pelas repetições de um modo-de-gozo.
A linguagem, do que é feita? Cada material encontra-se em relação de diferença com outros. A linguagem é um sistema de diferenças organizado em dois eixos: o eixo horizontal (sucessão) e o eixo vertical (empilhamentos) – tal como uma pauta musical.
Pauta Musical
A estrutura da relação entre as notas está em jogo; a ausência daquelas que não aparecem na escrita musical, mas estão “na escala” do dó ou do si também. Quando colocada em funcionamento, significantes (notas, materiais) podem deslizar de um empilhamento para o eixo horizontal, formando a melodia, em sucessão com outros. O eixo vertical denota uma relação metafórica: uma coisa no lugar de outra. O horizontal indica metonímia: deslizamento, uma escorregada. Os elementos deslizam na linha melódica; vão de um lugar a outro. Assim, as operações de sustentação da linguagem são: metáfora e metonímia (substituição e deslocamento) – e não (como se a linguagem fosse um dicionário) relações diretas entre significantes e significados. Nos anos sessenta, a noção de escritura cênica enquanto um “amontoado de signos” (onde cada elemento significa algo) entrou em colapso. Fato importante para a práxis da “posta em cena”, pois nos ensinou a não reduzirmos a criação aos “significados” do texto. Construímos “outra escrita”, onde o texto dramático está como um dos materiais. O texto falado se organiza com as ações físicas – outros materiais, outras notas. A noção de “enquadramento” nos permite pensar esta relação como um jogo, complexo e difícil, entre a presença da palavra e a visualidade das ações físicas, ambas evocando ações distintas. As visualidades (das ações), evocadas pela palavra e pelo corpo, se justapõem, opõem, compõem. A organização espaço-temporal entra em jogo: em oposição ou justaposição, em síntese, harmonia ou dissonância (composição). A lei do arranjo é também lei da composição. Materiais cuja incidência banha o corpo (e atualiza o seu modo de gozo) são utilizados para trazer à tona o tecido ressonante e o estilo do ator (o que não se aplica à equação ainda assim faz efeito aos olhos).
A incidência do material Encontra-se o termo “incidência” em Lacan, denotando um efeito de inscrição do significante no corpo. Trazemos da Física o termo “ângulo de incidência”, junto à imagem de um raio de sol “incidindo” na pele, tocando, fazendo-se inscrever, ou seja, entrar, afetar, marcar.
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Ângulo de Incidência
Para Lacan, o gozo marca o significante no corpo, pois faz significar “aquela parte”: “(...) uma parte que, do corpo, é significada nesse depósito. (...) Nisso que ele é termo, o significante é aquilo que faz alto ao gozo” (LACAN, 1996, p. 36). Esta proposição aponta a perspectiva de construirmos um corpo cênico com a linguagem, na medida em que cada parte é “significada” e se constitui como diferença – quando se recorta, isola, monta (incidindo). O material que incide é da ordem do simbólico: “Por que é que damos tanta ênfase à função do significante? Porque é o fundamento da dimensão do simbólico” (LACAN, 1996, p. 32). O “material” – algo que pode ser nomeado (está na linguagem) – incide, construindo corpo (cênico, expressivo). Na práxis teatral, os materiais do ator são chamados por Stanislavski (2005) de “estímulos”. No entanto, não se trata da resposta (a um estímulo), tal como um órgão (estimulado) “responde” ao tratamento – ou como a reação de fechar as pálpebras frente a uma ameaça (estímulo) de algo entrar nos olhos. Neste caso, todos reagem da mesma maneira: fechando os olhos. Na criação atoral não se sabe da ação resultante, porque há o modo de gozo de cada um, que produz algo específico diante do estímulo/material. Reconhece-se a imprevisibilidade e contingência do processo. A ação física implica um indizível (do real do gozo) junto a materiais que (enquanto diferenças articuladas) fazem eco. É como se o material fosse “acachapado” no corpo (tal como uma bola de basquete na rede) bem no ponto de incidência. Substituímos, assim, a ideia de reação ao “estímulo” pela ideia de uma incidência (contingente) do “material” no corpo que produz cena.
O recorte do olhar Na estrutura do trabalho do ator, há também encadeamento: materiais “deitados” no tempo (horizontal) da cena. O que cabe no seu olhar? O seu olhar desliza entre os materiais que vai recortando – agilmente, tal como uma câmera de cinema, que se abre e transita pela
superfície da cena? É o que se percebe na proposição de Grotowski: (...) eu penso no canto dos olhos, a mão tem um certo ritmo, vejo minha mão com meus olhos, do lado dos meus olhos quando falo minha mão faz um certo ritmo, procuro concentrar-me e não olhar para o grande movimento de leques (referência às pessoas se abanando no auditório) e num certo ponto olho para certos rostos, isto é uma ação. Quando disse olho, identifico uma pessoa, não para vocês, mas para mim mesmo, porque eu a estou observando e me perguntando onde já a encontrei. Vejam a posição da cabeça e da mão mudou, porque fazemos uma projeção da imagem no espaço; primeiro esta pessoa aqui, onde a encontrei, em qualquer lugar a encontrei, qualquer parte do espaço e agora capto o olhar (...) (GROTOWSKI, 1998, p. 1)
Os materiais que o olhar do ator recorta são significantes (diferenças) se substituindo – e o movimento do olhar os coloca horizontalmente no tempo. Enquanto uma ponta do foco de atenção do ator desliza em sucessão (horizontalidade da cena), a outra ponta está situada em uma pequena parte da ação física (bordas do próprio corpo) que apenas entrevê (o restante, não pode capturar). O foco é uma função na medida em que algo dele sempre escapa. O que se recorta se torna material, mas a ação física é, em grande parte, inapreensível através deste olhar-linguagem que recorta uma superfície. Segundo Spolin, (2010) é graças à divisão-de-foco que “o espontâneo acontece”. O brotar (espontaneamente) da ação só pode se realizar porque o ator está concentrado (com o foco grudado) em outro lugar: a regra-de-jogo, a instrução-de-jogo. Por isso, o importante não é que a regra seja cumprida, mas que o ator se mantenha em relação com a sua presença, para que o foco permaneça dividido. A espontaneidade acontece na medida em que a produção corporal “sai do foco”. O corpo estufa, preenche o espaço-tempo delimitado pelo enquadramento. O que interessa no ateliê da criação atoral é a perspectiva de se despertar ecos impregnados na tessitura do corpo (uma malha de atravessamentos), na medida em que este é vacúolo vibrante, atualizando o singular e, ao mesmo tempo, desenhando-o. A ação física oferece as bordas (os limites) para os efeitos diversos de reverberação. A hipótese do arranjo de materiais e do jogo de enquadramentos ganha força ao se ler a teoria o ator. Certas descrições mostram uma incidência insistente de significantes, como “preciso” (houve uma época em que a ode a precisão imperou). A palavra pode ser marcada como instrução de jogo (“ser preciso”). E o ator acostuma-se a realizar a partitura física de maneira precisa, criando uma “segunda natureza” (Stanislavski, 2009); a sua natureza cênica.
2. Função do arranjo
Segundo Sausurre, a imagem acústica é o significante 4, a parte material do signo, em relação de arbitrariedade com o significado (conceito) e em relação de diferença e negatividade com outros significantes. O significante é um significante por diferenciar-se de todos os outros, por “não” ser todos os outros. O termo é retomado por Lacan em sua análise do “inconsciente estruturado como uma linguagem”, com a primazia do significante sobre o significado (barrado). Em Lacan, o significante não significa nada, e sempre se remete a outro significante. O jogo com a imagem acústica (palavra em escuta silenciosa) como instância isolável, é estrutural no trabalho do ator. Seja a nomeação de um subtexto (Stanislavski) ou de uma qualidade física (Barba), uma instrução de jogo (Spolin) ou a voz do diretor (rememorada, cuja incidência reverbera), o lugar da imagem acústica é estrutural. Esta proposição vai contra o postulado de que a ação física pressupõe o material interno. Ao contrário, o material acústico interno é algo diferente e posto em relação com a ação física. Esta proposição implica a hipótese do trabalho do ator como um arranjo, um “acorde” cujas “notas” são testadas e experimentadas juntas. Assim, a mesma ação física pode contar com diferentes materiais acústicos internos (produzidos por associação instantânea na cena ou postos em jogo intencionalmente, antecipadamente). Tanto a imagem acústica, quanto a imagem visual (o que Kusnet chama “visualização” e Barba “paisagem interna”) pode ser intencionalmente produzida, para atuar de forma conjunta com as associações instantâneas a partir da escuta em cena. 4
Ver SAUSSURRE, F: Curso de Lingüística Geral e LACAN, J: Discurso de Roma. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998.
Silva chama de “impressão digital” a inscrição do corpo do ator em cena. O termo “impressão” designa certa aderência, no corpo, dos materiais que estimulam o ator. É como se o seu efeito da incidência reverberasse e despertasse os ecos da memória corporal, imprimindo um jeito particular de produzir uma cena. O termo “digital” designa o que não tem justificativa, que é daquele corpo em específico. De maneira que, se extraímos a impressão digital da cena para repeti-la (há uma mudança de estatuto) esta se torna material, cuja reverberação entra em arranjo com outras para que nova impressão digital seja construída (a impressão digital é sempre única). Existe um vetor, constituído por materiais empilhados, que implica a verticalidade (sem intervalo de tempo): as reverberações dos materiais e a impressão digital estão presentes a um só tempo. Ao escutarmos “a cena do corpo”, o que se escuta é material, pois elemento isolável, que causa excitabilidade. Tudo o que pode ser recortado com a linguagem (e estimula) é material (significante). De maneira que, apesar da ação física estar implicada, ela é apenas uma das notas que ressoa em um acorde complexo. Mas o que acontece entre a impressão digital e o arranjo de materiais? Quais operações implicadas neste vetor “material – impressão digital”? Como os arranjos se constituem? O ator utiliza materiais expostos: objetos e músicas oferecem limite às bordas corporais (temporal ou espacial). Um limite que contorna (desenha) efeitos de incidência (reverberações) daqueles (visuais e acústicos) que estão ocultos (internos). Enquanto um material incide promovendo certo caos, outro incide organizando o tempo e o espaço daquele corpo. Tal como o enquadramento de uma câmera de cinema (implicando tempo-espaço), o desenho corporal aparece como bordas de uma superfície. As reverberações na tessitura corporal são delimitadas por estas bordas (limites) do desenho corporal, organização espacial e temporal. A incidência dos materiais ocultos tende a romper os limites dos enquadramentos, “dilatando” a impressão digital, borrando-a, estufando-a.
Estrutura do arranjo de materiais do ator
O que propomos como “materiais de enquadramento” não são somente objetos, projeções e músicas (materiais externos), mas tudo o que situa um tempo-espaço: também a fala (que exige um tempo de enunciação), o desenho corporal (cujo movimento implica relações espaciais e temporais) e a visualidade da situação fabular, que implica imagens de um tempoespaço outro (o tempo-espaço ficcional). Até a visualidade de uma relação enquadra. Trata-se de um enquadramento específico, que pode se chocar com outros, absorvê-los e articula-los. Uma voz sonorizada também se comporta como enquadramento. Mais precisamente, como uma “régua sonora”, pois marca, no tempo cronológico, limites para os efeitos das reverberações de materiais de incidência (que vão até certa marca, momento da fala sonorizada) de todo um arranjo. Os fragmentos de uma voz sonorizada podem representar os pontos de troca entre os acordes dos materiais do ator, cujas reverberações implicam impressões digitais novas que se desenvolvem nos intervalos, entre uma marca e a outra: os seus efeitos se desdobram até chegar a próxima marca (quando o arranjo é trocado).
A ação inscrita em uma situação fabular é uma modalidade de enquadramento porque situa as impressões digitais em um tempo-espaço outro (que se dá por associação na imaginação do espectador). A visualidade da ação da fábula pode ser evocada com o desenho do corpo, ou pela palavra, de maneira que há jogos de articulação, justaposição, absorção. Quando, em um espetáculo, pedaços de histórias são narrados, aparece a “distância” (a diferença) entre o contexto da instância narradora e o contexto da estória (e aparece também a visualidade da relação entre os dois). Testemunha-se, ainda, o olhar do espectador como uma modalidade de enquadramento. Isso na medida em que as associações que este produz situam a impressão digital na visualidade do seu mundo. Se todos podem ler a mesma ação, isto implica que uma modalidade de enquadramento foi constituída (e não “o significado” da impressão digital que evoca esta ação). Este ponto é importante. Reconhecer que o olhar produz a visualidade de uma ação associada no “instante-já” da cena, não quer dizer que o espectador atribui um significado estável para a impressão digital (quer dizer que ele cria um enquadramento). Da mesma forma, o ator pode jogar com uma interpretação (pois, estruturalmente, não sabe como esta vai ressoar nos ecos da sua tessitura corporal e produzir a impressão digital junto a outras reverberações). O “não saber” está implicado na criação. O fato de o ator utilizar uma interpretação não quer dizer que o espectador vai escutar aquilo que foi por ele (pelo ator) interpretado. O lugar da escuta do espectador (que produz um enquadramento) é diferente do lugar do material que estimula o ator (de incidência) extraído da sua interpretação: “O ciclo das associações pessoais do ator pode ser uma coisa e a lógica, que aparece na percepção do espectador, outra.” (GROTOWSKI, 2012, p. 233). Por parte do espectador, percebe-se uma montagem, que implica as cadeias significantes que cada um engendra (e a plasticidade de cada olhar). O que o ator associa (ou recorta com a linguagem) – por exemplo, o que ele produz ao responder “O que você quer?” Perguntar é uma das estratégias de Stanislavski. A resposta é um material que pode reverberar; fazer incidência. Pontuar isso tem importância porque é comum vermos atores engajarem-se em certa defesa da indeterminação como garantia de uma fruição da cena (porque a escolha do “significado” fecharia a leitura do espectador). Existem poéticas que se utilizam da coincidência entre o material de estímulo do ator e aquele da escuta do espectador (porque precisa da escuta de certo desenrolar das ações em cena). É o que propõe, por exemplo, Eugênio Kusnet. Mas, ainda assim, trata-se de evocar um enquadre (neste caso coincidente) e não o significado. Na medida em que a poética do corpo do ator, na cena contemporânea, é designada como uma “escrita”, as impressões digitais podem ser designadas como letras. Esta designação tem um sentido bastante preciso. A escrita do corpo não é a escuta dos significantes (que aquela
escrita permite). Cada um escuta de um jeito uma mesma escrita (cena) do corpo (da mesma maneira que cada um escuta de um jeito um texto escrito no papel) – ainda que vejam as mesmas ações dramáticas. Ao operarmos com a noção de impressão digital enquanto letra, estamos considerando que algo escapa a sua leitura e causa enigma. Ainda que a linguagem esteja implicada, bem como a visualidade de uma ação, algo resta à leitura desta mesma ação. Plasticidade corporal Há implicação mútua dos materiais em uma espécie de eixo vertical. Estes materiais não estão dispostos, em sucessão, na horizontalidade da cena, mas a um só tempo (através da sua reverberação), em um mesmo instante. A precipitação da impressão digital ocorre como espécie de combustão, a “química” de uma cena do corpo; espécie de montagem que foge ao controle do eu porque se dá na tessitura da memória corporal. Alguns materiais organizam os efeitos da reverberação de outros, implicando um desenho ou movimento no corpo. O fato da reverberação dos materiais poder ser atualizada (tornada presente) sem que o ator situe seu foco de atenção, testemunha que um eco foi impregnado. Através deste eco, o material se instala sem que o ator se dê conta. A tarefa do ator é deixar-se atravessar. Ele escuta a impressão digital, recortando-a com o olhar. O seu foco de atenção se divide com esta escuta. Imagens (figuras), extraídas das Artes Plásticas, Cinema ou outros campos, podem ser repentinamente (e repetidamente) instaladas quando o ator está em improviso, nas bordas do corpo, o desenhando.
Imagens
Não necessariamente precisam ser figurativas. Uma imagem abstrata, um quadro no Pollock, por exemplo – como se cria impressão digital a partir dela?
Jackson Pollock: Number 32, 1950
Ao incorporá-la, o desenho do corpo (que encarnou esta imagem) evoca uma ação. Quando se instalam nas impressões digitais, as imagens configuram um enquadramento plástico-corporal cuja visualidade é filtrada: elas se transformam. No processo de incorporação, ao evocar ações, a abstração anterior é absorvida. Surge outra visualidade: a da situação, da relação, do endereçamento, da ação, da ficção. Por exemplo, na pintura abaixo, está implicada a visualidade de uma ação (da mulher, sozinha, tomando um chá ou café, talvez à espera de alguém) inscrita em uma situação que esta pintura evoca (e que poderia ser evocada de outra maneira, inclusive por palavras). A visualidade plástica da tessitura da pintura é específica e diferente da visualidade das ações que ela evoca, portanto.
Edward Hopper - Automat, 1927
Há cenas onde a plasticidade do corpo se desprende completamente da visualidade da ação. Como em algumas peças de Bob Wilson, por exemplo, o desenho do corpo nada tem a ver com as ações que as falas evocam – causando uma espécie de defasagem, de fissura entre duas camadas. A pintura do corpo evoca associações que podem articular uma fabula ou dela se distanciar, implicando outras camadas de associações. A parte da plasticidade corporal que não
encontra o enquadramento de uma situação pode implicar estranhamento 5. O mesmo acontece com a sonoridade da voz e da palavra. A operação de absorção da abstração (na visualidade de uma ação) implica gradações. Há poéticas que contam com uma absorção intensa, quase total, de maneira que a visualidade da situação encobre a abstração, testemunhando que se nomeia “mimese da realidade”. Mas também uma atividade perfeitamente inscrita na visualidade do cotidiano, como cortar cebolas, estender a toalha ou acender a lareira (para utilizarmos um exemplo de Stanislavski), pode ser um enquadramento plástico-corporal abstrato (quando ainda não inscrita no sentido da ficção). A plasticidade 6 corporal e a plasticidade ficcional são camadas diferentes e evocam associações diferentes. Abre-se um campo de experimentação para a inscrição do corpo na poética da cena e se observa a necessidade de se criar repertório plástico-corporal, para que este seja atualizado (reapresentado) durante o jogo com os outros enquadramentos. A imagem do próprio corpo como campo de extração Por conta de um projeto de intercâmbio do “Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator” 7 em 2013, ministrei um curso em Portugal, na “Escola Superior de Teatro e Cinema” de Lisboa. Nesta ocasião, criei uma espécie de treinamento. Figuras extraídas das artes plásticas são projetadas e o ator brinca de incorporá-las (e variá-las) junto a outros estímulos (músicas e palavras que a própria figura provoca de estalo ou anteriormente produzidas a partir de fragmentos de texto dramático). Chamei esta oficina de “Plasticidade do Corpo Dramático”. O ator improvisa, experimentando as ações que as figuras evocam; desdobrando um fluxo de improviso a partir de associações, quando em jogo com outros materiais. A imagem de uma cena do corpo, já constituída, também pode se apresentar como um campo de extração de materiais, que descrevemos, nomeamos, rememoramos, repetimos. É um momento em que o ator desloca-se da posição de dentro da cena para exercitar o olhar sobre ela. Assim, monta-se a preparação do jogo seguinte. O ator também pode filmar as cenas (ao invés de apenas contar com a sua rememoração para tentar visualizar a imagem do seu corpo cênico). O que interessa é que, tanto de dentro, quanto de fora (da cena), cadeias de associações se desdobram: um material leva a outro, que leva a outro, que se junta com outro, formando
A palavra estranhamento é utilizada por Brecht. Há momentos em que Brecht diz que a estilização basta para provocar o estranhamento. Em outros, ele postula a crítica, quando expõe a distância entre um conflito individual (do personagem no caso) e o contexto social que o extrapola (com as suas relações de poder e determinação social). De maneira que se opera com a ideia de contradição (Ver BORNHEIM, G. Brecht: A Estética do Teatro: São Paulo: Graal, 1992). 6 Estou tomando aqui a palavra “plasticidade” como “capacidade de transformação”. 7 Grupo de pesquisa registrado no diretório do CNPQ e sediado na Universidade de São Paulo, onde desenvolvi mestrado e doutorado. 5
arranjos. E a produção cênica entra nesta cadeia. Materiais “estalam” (em associações) quando caminhamos pela rua. Trata-se de olhar internamente para uma cena do corpo. Pode ser que esta associação reconfigure todo o arranjo (tal como um caleidoscópio, quando as pecinhas de cristal colorido formam nova imagem). Por um lado, esta multiplicidade de associações ajuda na criação: o arranjo “engorda”. Novos materiais são introduzidos e as associações anteriores implicam resíduo. Uma complexa tessitura é bordada, com pedaços de camadas anteriores. Por outro lado, é necessário um “corte”, para que novas associações não nos desloquem infinitamente. Não são todas as associações que servem. Muitas delas devem se manter apenas como material de incidência (sem aparecer em cena). Quando estou atuando como diretora, assumo este papel: cortar. Mas, também o diálogo com o outro, a poética (que nos antecede), o projeto estético (e metodológico) pode implicar limites e operar os cortes. O diálogo com a cultura cênica que nos antecede abre a perspectiva do ator utiliza-la como campo de extração. Um movimento da cena performativa de Pina Bausch, por exemplo, pode torna-se material a ser transformado (e absorvido) no jogo de enquadramentos com a fala de um texto.
Imagens de movimentos utilizadas em treinamento
O discurso como material Sobre as imagens, o ator elabora (não o discurso que traduz a cena, mas) a sua inscrição na poética (que o antecedeu e que descobre), seja se valendo da recusa de outras e de sucessivas tentativas de experimentação, ou ainda na medida em que tenta se inscrever, mas não consegue e, assim, acaba por criar uma nova poética: a sua impressão digital (isto na medida em que esta poética está sustentada por um discurso que implica efeitos).
Campos teóricos são também utilizados como campos de extração de materiais. Por exemplo, “esquadrinhamento disciplinar” é um termo de Foucault. Este termo pode articular uma imagem na qual o ator se engaja (e resulta visivelmente implicada nas impressões digitais). Assim, o discurso teórico se configura como um material de criação junto a outros. Durante um ato de criação partilhado, existe um texto que se recorta, junta, desdobra – onde o ator está imerso. Uma espécie de rede de sustentação, uma malha, para a tessitura das impressões digitais, na medida em que a sua reverberação se prolonga.
3. Enquadre, incidência e atualização
A hipótese do arranjo implica diferentes funções: a.) a “incidência” (a excitabilidade), dos materiais que apenas o ator vê, que invadem ou situam o seu foco; b.) o “enquadramento” (no tempo-espaço da cena ou no tempo-espaço ficcional, pois na medida em que uma situação é visualizada, o enquadre acontece); c.) a “vulnerabilidade”, quando a atualização das reverberações que transpassam a memória corporal acordam os ecos antigos, provocando uma combustão (que não controlamos, mas manejamos nas escolhas e nos procedimentos preparatórios). Em Exposição, primeiro jogo descrito no Fichário de Viola Spolin (2000), pede-se para que o ator se mantenha, em pé, diante da plateia “sem fazer nada” durante um minuto. Utiliza-se este jogo para se transmitir a importância do foco. Primeiramente, “desfocado”, o ator deixa-se assolapar pela timidez. Em um segundo momento, ao instalar um material no foco (“contar as cadeiras do auditório”), o corpo se acalma e ele consegue parar de rir, tremer, se contorcer, etc. Com a “voz de jogo”, o instrutor instala um material: “Conte as cadeiras do auditório” (uma instância verbal, uma frase). Com a instalação desta frase, o ator se organiza; melhor dizendo, é “enquadrado” na relação com a sua voz, que conta: “uma, duas, três cadeiras no auditório”. Uma cadeia verbal, acústica, é capaz de organizar o tempo, pois situa um trilho de elementos diferenciais (no caso “um, dois, três”) em sequencia. Assim, consegue-se sustentar a cena do corpo para o olhar do outro. O material “voz interna” pode instalar um enquadramento. O trilho (acústico) entra no foco, organizando as ressonâncias no corpo, que são atualizadas. O corpo presentifica certo tempo-ritmo (Stanislavski, 2009). A tessitura corporal com seus ecos, vibrações e afetos é contornada (enquadrada), desenhada, enquanto o ator sofre a incidência desta voz. Uma partitura física já constituída pode, também, enquadrar, enquanto outro material a pressiona, desorganizando o seu espaço-tempo (e fazendo-a dilatar). A partitura física é apenas
um dos materiais do arranjo, no entanto. Existem outras plasticidades, outros enquadramentos. Da parte do espectador, o olhar enquadra (situa) a produção corporal do ator. Considerando as associações que a produção atoral pode suscitar neste espectador, o seu olhar organiza, situa, em um mundo seu, a produção cênica. Quando se lida com a “posta em cena” (Pavis, 1999) exige-se, do ator, um manejo dos enquadramentos. A fala do texto dramático causa uma excitabilidade e a identificação imediata com ações – que, no entanto, através da Análise Ativa (Knebel, 2005) podem ser alteradas ou subvertidas, a partir de um novo olhar. É preciso constituir uma poética (da cena) – que não se restrinja à representação destas ações interpretadas na escuta do texto. Para não representar ações A plasticidade de materiais extraída das Artes Plásticas pode significar uma maneira de treinar os atores para se tornarem extra-cotidianos. A figura extraída media a criação corporal, oferecendo um enquadramento possível (organização no espaço e tempo) para que se produza a poética do desenho. O ator não apenas interpreta o texto, mas atua em direção a uma plástica estranhada que tantos defenderam: Craig, Kantor, Meyehold, Barba, Wilson. São desenhos mais ou menos precisos, disformes, mais ou menos abstratos (conforme a poética, que aposta no que não é familiar, tornando-se também uma poética do estranho). O trabalho com o material “iconográfico” (extraído da obra de um pintor, revista, fotografia, filme, etc) deixa clara a função do enquadramento plástico-corporal que, no entanto, pode, também, ser exercida pela “cotidianidade”. Esta que, em sua simplicidade, se faz poética. Quando, no entanto, algo se introduz como perturbação, aparece um segundo enquadramento: a visualidade de um pensamento e olhar (“do personagem”). Assim, além da fala advinda do texto, temos pelo menos mais três suportes para a escuta: plasticidade corporal, cotidianidade e visualidade do pensamento, portando-se como linhas paralelas em jogo (e não enquanto representação uma da outra). O personagem como enquadramento O “personagem” pode ser tomado, enquanto “figura” inscrita na ficção que se evoca, ou seja, como “efeito de enquadramento”. Assim, pode-se conceber uma atuação dramáticorealista (com a mimese da cotidianidade enquadrada pela visualidade da ficção “como se fosse real”) também como uma modalidade possível de poética. Esta modalidade se dá pelo jogo entre enquadramentos diferentes: a visualidade do pensamento, a cotidianidade e a ficção que, entre si, implicam fissuras.
Uma das camadas da visualidade é composta pelas ações da personagem. Não as ações físicas, mas as ações dramáticas, situadas na diegese, que podem coincidir ou não com as ações físicas (elas também podem se descolar, produzindo estranhamento). O personagem escutado no texto faz incidência no ator, mas o que o espectador está lendo não é o texto e sim a cena (a escrita da encenação): outro discurso (o cênico), que implica os próprios desenhos e, também, o que o ator atualiza (sem querer). Sobre o quê o ator atualiza sem querer: entre a percepção do quê o foco do ator recorta e o enquadramento (que o organiza), a memória corporal ressona e se abre. A excitabilidade é acionada por caminhos invisíveis dentro da tessitura de memória pelo simples fato do ator “ser” para o olhar do outro. O que recorta e desenha esta “massa” amorfa, sem forma, são os materiais de enquadramento, que recortam (isolam) aos efeitos de incidência. Enquadre temporal
A música não implica, de antemão, limites para as bordas (desenhos) corporais. Mas incide, sobre o ator, organizando o tempo. No caso do enquadre constituído a partir do som, o ator estará livre para constituir os desenhos através das atualizações da tessitura interna de sua memória corporal, que “acorda” (e atualiza as formas marcadas anteriormente). Na medida em que a memória corporal é atualizada, esta se constitui com desenhos mais ou menos precisos – pois sujeitos ao jogo de enquadramento do momento. Além da incidência do material que situa o foco (escuta), estão, no arranjo, reverberações revividas que fazem parte da história daquele corpo. A música não enquadra o espaço (apenas o tempo); outros materiais não enquadram, nem tempo nem espaço. Ao contrário, bagunçam. O que se conclui é que se trata de um arranjo complexo: enquanto um material enquadra o tempo, outro enquadra o espaço, outro faz ressonar a memória do corpo atualizando ecos sem que o ator se dê conta (e bagunçando). O uso de materiais diferentes deixa entrever funções diferentes: incidência, enquadramento e a memória corporal, que carrega o ator (função que da “vulnerabilidade”).
Absorção de figuras Encontramos a palavra (a fala externa) e o movimento como dois enquadramentos que disputam a superfície do corpo; como se a impureza (ou deformação) de um fosse necessária para se “caber” no outro (ou para que estes dois caibam em um terceiro).
Um enquadramento enquadra outro
Deparamo-nos com a perspectiva de um enquadramento enquadrar o outro. No caso da utilização de figuras para enquadrar o corpo (desenhar as bordas), se estas não estiverem presentes em cena, podem ser consideradas como um material oculto. O “pulo do gato” é quando estas são atualizadas via tessitura interna. A forma se adequa (é absorvida por outros enquadramentos). O foco não está mais na figura e sim nos materiais de absorção: a relação com o outro, por exemplo.
FOCO Pressão
ÁREA DE VULNERABILIDADE/MEMÓRIA Pressão
ENQUADRAMENTO
Produção corporal em potência
Ao invés da figura estar na área verde (propositadamente), como forma que organiza o corpo ela retorna na área rosa (“dentro”) enquanto temos outra coisa enquadrando. O que ocupa a área verde é a relação. É a “ação sobre o outro”, que situa o foco. A imagem marcada no corpo retorna moldando-se a este outro enquadre. Algo novo se captura neste instante. O enquadramento situado na área verde pode ser os limites espaciais ou oferecidos por
um figurino, objeto, pela relação (ficcional) imaginária (do personagem) ou contexto de jogo, a relação com um material utilizado como substituição (Hagen, 2010) ou mesmo com a imagem acústica que funciona da instrução de jogo: pequeno, grande, lento, rápido, etc. A partitura física já desenhada (e marcada) deverá retornar (sozinha, “sem pensar”). Entre citação e diluição Além das Artes Plásticas para a extração de figuras, pode-se utilizar o Cinema, a Fotografia, a História em Quadrinhos, o Teatro Performativo (movimentos de Bausch, por exemplo), imagens de animais, pessoas conhecidas ou desconhecidas. A citação é uma das operações presentes na Arte Contemporânea (e também no Teatro Pós-dramático). Glenn Brown utiliza-se da pintura de outros como material determinante. A visualidade do original é exposta, no entanto, a nova produção é autoral. Mantendo-se o desenho intacto, este funciona como citação (se é reconhecido), mas, se borrado, é transformado, diluído.
Obra de Glenn Brown
No caso deste pintor, a produção não está impressa no corpo, como acontece com o ator, quando a carne é uma tela que traz protuberâncias, marcas, ecos, estilo. No caso do ator, a tendência é, na medida da incorporação, transformar e absorver a imagem de partida.
Cotidianidade e abstração na articulação com a diegese Em treinamentos barbianos 8, começa-se pela atividade abstrata. São ações de puxar, lançar, empurrar (que chamamos “primárias”) e que, ainda descontextualizadas, formam uma coreografia abstrata. De repente, se absorve a forma corporal em outro enquadramento.
Enquadramento pela diegese
O princípio do uso da abstração para se chegar ao sentido da ação abre possibilidades para o jogo com as frases (internas ou externas) auxiliares (que ajudam a absorver aquelas formas). Assim, constituem-se as ações dramáticas. O desenho corporal é enquadramento em sua diferença; é “outra coisa” em relação a diegese. Há espaço entre os enquadres, composição. Nas fissuras, o espectador cria, trabalha, preenche. Surgem associações em diferentes direções, cadeias associativas diversas. O exercício de associar é múltiplo. A operação de absorção da abstração do movimento na visualidade de uma ação, ou da sonoridade da voz na visualidade da ação vocal, implica gradações.
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Atores do Odin Teatret, companhia de Eugênio Barba, espalham modalidades de treinamento de ações físicas pelo mundo, trabalhando com grupos de teatro diversos.
Articulação entre dois enquadramentos
Há poéticas que contam com uma absorção intensa (quase total), de maneira que a visualidade da situação encobre a abstração, implicando o que se nomeia “mimese da realidade”.
Absorção quase total de um enquadramento no outro
Dijunção e estranhamento A dramaturgia dramática enquadra a produção do ator na visualidade do mundo do personagem, com a sua lógica. Mas a ficção não está morta; ela se mexe. As circunstâncias imaginárias permanecem em ebulição. Plástico, o imaginário é bordado e se transforma. Stanislavski testemunha o esforço do ator para inscrever os materiais no contexto imaginário: “Surge, então, uma breve discrepância. O ator logo investiga, para ver qual é a parte que não está em ordem”. (STANISLAVSKI, 1989, p. 281). Mas, muitas vezes, também é necessário quebrar a sua lógica, em função do jogo com outros enquadramentos.
Em algumas peças de Bob Wilson, o desenho do corpo nada tem a ver com as ações que as falas evocam – causando uma dijunção proposital entre as duas camadas.
Dijunção entre as duas visualidades (da cena e da diegese)
A parte que fica de fora do enquadramento da diegese estranha
Em Stanislavski, os treinamentos acabam por formar uma “segunda natureza”, termo utilizado também por Barba a respeito do corpo extra-cotidiano (que se treina) e por Adler em relação ao registro corporal da cotidianidade (que se treina também).
Diz respeito ao modo pelo qual cada ator reinventa seu próprio corpo para tornar possível o exercício da linguagem teatral. Fundamentalmente, refere- se a uma transformação psicofísica, que torna possível a experiência da vida cênica. A expressão “segunda natureza” (Ruffini, 2007), cunhada pelo diretor russo Constantin Stanislavski, diz respeito à forma pela qual o ator precisa reaprender as ações que aprendeu no seu cotidiano, de modo a construir outra “natureza corporal” (ALCÂNTARA, 2013, p. 909-910).
Pensando na cotidianidade como enquadre plástico-corporal cênico, característico de certas poéticas, também é preciso materiais para impregnar o corpo (pois se não há materiais, o ator se depara com o vazio da cena e paralisa). Se não há materiais, não há como introduzir a cena, seja implicando a plasticidade estranhada ou a cotidiana, íntima, familiar. Se a imagem abstrata pode ser enquadrada com a escuta, que produz uma associação (e a visualidade da associação enquadra), o mesmo acontece com a cotidianidade: provoca associações que a situam como ação física (enquadram) na fantasia (ficção). Mesmo que não se trate de construção unificada pela fábula (mas um fragmento solto, que depois se dilui), a ação é evocada do corpo (afetado de cotidianidade) impresso singularmente. Uma atividade inscrita na visualidade do cotidiano, como cortar cebolas, estender uma toalha ou acender a lareira (para citar exemplos que aparecem em Stanislavski) 9, também pode ser utilizada como enquadramento aleatório em busca de possíveis sentidos provisórios na sua relação com a ficção. Abrir a porta, calçar a sandália, mexer na caneta, podem inclusive, não ter articulação alguma com a ação dramática ou configurar-se como contra-ação (fazendo oposição) – sendo que a resolução de jogo é a síntese, acordo ou alternância. Ao mesmo tempo, podemos dizer que, quando a dramaturgia performativa valoriza a plasticidade do eixo extra-ficcional (onde o contexto de realização da obra é tematizado), ainda assim, há um imaginário (sentido) em jogo: o contexto do ator; o sentido da sua relação com o ato cênico e o espectador. A imagem de um “eu” em relação com “outros” implica sentido e identificação. Neste caso, o trabalho de transformação “da abstração para o sentido das ações” será contextualizado no eixo extra-ficcional.
“Deixem que os atores cruzem a cena e executem suas ações físicas segundo as necessidades da peça: procurem livros nas estantes, abram janelas, acendam uma lareira, e assim por diante” (STANISLAVSKI, 2005, p. 298- 299)
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4. A Incorporação do pré-jogo: tentativas de formalização de um procedimento estranho
A “incorporação do pré-jogo” surge de um desdobramento da “Memorização Através da Escrita”, procedimentos transmitido por François Khan, ator do “Teatr Laboratorium” de Jerzy Grotowski 10. Khan propõe que as falas extraídas de um texto-dado (texto de outro para ser dito) sejam memorizadas não pela repetição oral, mas pela repetição da escrita (no papel). Para a “incorporação do pré-jogo”, incluímos o texto “do ator” junto às falas do autor, (com a nomeação de figuras das artes plásticas ou movimentos performativos, falas internas e outros materiais). O pré-jogo é uma espécie de rubrica do próprio ator. É memorizado pela repetição da escrita para que, em cena, seja atualizado e transformado no jogo de enquadre. No pré-jogo estão pensamentos, falas escondidas, inventadas, segredadas, que ajudam o ator a enlaçar-se à fala do autor. Algo parecido com o subtexto stanislavskiano, mas utilizamos o próprio contexto, e associações inusitadas (livre-associações), sem prender-se a qualquer lógica da personagem.
“Encaixe” no texto do ator no texto do autor.
A fala externa (do autor) quando enunciada é inscrita como impulso, porque entra para substituir este material que a antecede (frase inventada). O impulso se inscreve justamente na troca entre os dois materiais: a fala externa substituindo à interna (que marcou o corpo durante a
Ver mais em: KHAN, François. Reflexões sobre a Prática da Memória no Ofício do Ator de Teatro. Revista Sala Preta, ECA/USP, v. 9, 2009.
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repetição da escrita e criou ações internas em potência). Intercalamos materiais (fala externa, fala interna e descrições do desenho corporal) criando cadeias de palavras. As associações que vão para o pré-jogo acontecem também por encontro: quando se olha outros materiais e a estes associamos o texto. São materiais ocultos de incidência. O ator os nomeia e os inclui. Depois os memoriza em certa sequência, fixa. Com a repetição da escrita, a reverberação desta cadeia é marcada no corpo (como em qualquer treinamento a repetição fixa), mas ainda ao nível dos impulsos (sem o enquadramento plástico corporal). Ainda ao nível da incidência. Em improvisação, esta reverberação é atualizada. É como se a cena fosse o forno (aquecido pelo olhar do outro) que faz crescer o pão (a massa das incidências). O ator precisa de massa para, na cena, fazer pão. Nesta metáfora, a massa é o acúmulo de reverberações do préjogo. As reverberações das palavras, escritas inúmeras vezes, reaparecem no corpo para servir ao ato de improviso. O ator vai para o jogo “preenchido” por estas incidências. O pré-jogo é treinado com a repetição da escrita para que seja esquecido. Ou seja, para ser atualizado fora do foco de atenção, para que ressurja através da tessitura da memória corporal sem intencionalidade (na combustão com os materiais do instante-já do jogo). O préjogo é apenas “um dos” materiais (em sequência, ordem, sucessão, trilho, caminho de sucessivas trocas) cuja reverberação pode despertar a tessitura corporal. A prática criativa abre um campo de investigação: vozes (do diretor, outros atores, interlocutores eventuais); vozes internas (imagens acústicas ou visuais advindas de associações com a própria história de vida); descrições de movimentos performativos; imagens extraídas das artes plásticas ou do corpo cotidiano; ações extraídas de filmes, etc. Vozes que podem entrar no pré-jogo. A partitura física será marcada como resultante de uma espécie de montagem, entre pré-jogo com um deslocamento que acontece no ato de improviso e os enquadramentos. Este “deslocamento” significa: a sequência do pré-jogo está lá, mas se desloca para além dela mesma (como que desenrolando um tapete). Por exemplo, se no pré-jogo estava registrado que eu “toco o umbigo”, em cena eu levo a mão ao sexo. Em cena, com o jogo de enquadramentos, produzimos um “para além” da cadeia (outra produção, nova e não pensada anteriormente); o corpo vai um pouco adiante, atualizando e criando algo diferente do que foi registrado no papel e memorizado; traz consigo uma série de outros ecos, que aparecem. Ao organizar os limites no momento do jogo, os enquadramentos implicam uma necessidade de preenchimento. Com este “além de si mesmo” preenchemos um limite que está mais largo do que o imaginado (que dilatou). A tessitura corporal tem espaços e tempos abertos. Ela implica uma abertura, defasagem entre os impulsos do pré-jogo e o tempo-espaço em cena. É nesta abertura que o ator cria. O ator encontra-se munido dos impulsos do pré-jogo, mas, ao se
deparar com o vazio (desta defasagem), vai além, ocupando o espaço-tempo com a produção daquele instante. A via pela escrita do verbo Com a Memorização Através da Escrita evita-se a sonoridade em bloco, difícil de aconchegar ou ser absorvida na ação. Evita-se que a sonoridade da fala seja constituída de maneira autônoma em relação ao enquadramento plástico-corporal. O ator fala pela primeira vez diante do outro, em ação, criando uma base para a imagem vocal que absorvida pela visualidade da ação que surge na hora. Mesmo sem ter sido repetida em voz alta, a fala “vem” durante a cena (porque foi repetido o seu impulso e fixado). Da mesma maneira, a descrição das figuras extraídas das artes plásticas ou os movimentos performativos também “vêm”: aparecem, de maneira a ajudar a construir o enquadramento plástico-corporal. E também são absorvidas pela visualidade das ações e relações. Propõe-se, assim, o hibridismo. A ação física extra-cotidiana não está desconectada das ações. Ela estranha, mas também compõem um sentido no mundo ficcional, onde a relação com o outro está inscrita, e onde a fala está inscrita (mesmo que algo escape e estranhe). Se associações (durante a escrita) implicam o corpo e se, com a repetição, são alinhavadas, a reverberação desta cadeia se precipita, carregando consigo ecos que perdemos de vista. É como puxar um fio: os ecos se precipitam e ajudam a construir ações. Estes materiais se desenrolam em uma sucessão de impulsos e entram em relação com a fala dita pela primeira vez. A partitura física (ou seja, o enquadramento plástico corporal) surge deste jogo e, só então, é fixado. Não se trata da representação, mas de produção naquele instante, inesperada, porque surgem enquadramentos inesperados. Torna-se uma brincadeira gostosa: descobrir as ações que as figuras sugerem e que imprimem estranhamento – abrindo a perspectiva da linguagem híbrida, entre o expressionismo e o realismo. Podemos alinhavar um lugarzinho para uma destas figuras na escrita do pré-jogo, fixando o seu encontro com uma fala interna e outra externa, criando uma espécie de acorde: um empilhamento de três notas. Trata-se de fixar a reverberação deste acordes em sucessão com outros, criando um arranjo, tal como na escrita musical. Este processo é intuitivo e singular, pois cada um escuta a figura de um jeito; nomeia-a e descreve-a de maneira singular no pré-jogo. Trata-se também de encontros inesperados, pois, quando se olha, é de súbito (ou como que por insight) que se vê uma ação. No entanto, fora da cena (na criação do pré-jogo), não estamos na posição de encenar a incidência desses encontros no corpo. De maneira que é preciso alinhavar os acordes na memória da tessitura corporal
(através da repetição da escrita) para ter a sua reverberação atualizada em determinado lugar da cadeia, como impulso, durante a cena.
“Jeune Femme en Buste Dite La Florentine” de Hippolyte Flandrin (1809-1964)
Mas como esta figura, descrita em palavras (palavras que estão no papel), pode se reproduzir via reverberação corporal no fluxo da fruição de um improviso bem naquele lugar designado? Não é fácil teorizar porque isto acontece. Uma possível explicação é que a imobilidade do corpo, durante o ato de escrever, porta-se como um enquadramento (limite) que potencializa o impulso para as ações (que, por sua vez, vão explodir em cena). Guarda-se a vontade e ela cresce a cada repetição (quase isso). O movimento da mão que escreve também faz oposição à fruição rápida das associações, potencializando seu impulso, por oposição. Esta é uma hipótese.
A caligrafia borrada parece uma escrita “psicografada”.
O pulso da fruição das ações experimentadas na imobilidade (durante a escrita) tende a descompassar, estragar, borrar, romper com a caligrafia. É o sinal de que o impulso está forte o suficiente para se precipitar em cena – e “estragar”, então, outro enquadramento: o cênico. Repetir até a mão escrever sozinha (até não precisar mais do intervalo do tempo para lembrar): esta é a estratégia. A repetição desta cadeia ritmada passa a implicar o corpo. Este fluxo vai para a cena. Em cena, não se precisa pensar na imagem. Os impulsos implicam uma “dilatação” da forma corporal (planejada), porque (além de atualizá-la) tendem, também a deformá-la. Trabalha-se com a tensão do impulso instalado também pela fala interna. Os limites do desenho corporal são borrados, vencidos – gerando imprecisão, oscilação, vida (e hibridismo entre realismo e expressionismo, entre o desenho e a destruição do desenho). Esta é a questão. A resultante é um híbrido e não uma forma estanque. A opção por este procedimento é uma opção também estética (e não apenas metodológica). “Não pensei neles, mas apareceram”: é o testemunho recorrente dos atores. As sucessivas trocas entre palavras, na medida em que uma substitui a outra (naquela mesma sequência), implica fissuras, espaços, saltos – que, em cena, o ator preenche com a dilatação do corpo (para ocupar o tempo e espaço que, na cadeia escrita, não existia). Indícios em outros autores Devido à estranheza deste procedimento, fui procurar referências. Encontrei muitas que me ajudaram. Não exatamente a respeito do procedimento que proponho, mas a respeito de outros que, juntos, podem fundamentá-lo. Em Grotowski, encontrei não a escrita, mas a repetição do que ele chama “treino na imobilidade”: não a repetição da partitura física, mas dos impulsos, enquanto o ator visualiza as ações. O ator começa esses pequenos impulsos, quase sem mover-se. Se nessa sequência dizia algo, o ator no início faz esses pequenos impulsos deixando correr o texto. Depois começa a dizer essas frases na mente, sem pronunciar as palavras, na sua cabeça, e quanto chega aquele fragmento que precisa realizar em plena ação. Tal preparação, na verdade quase estática, eu diria caracterizada por uma retenção dos impulsos, ou por impulsos contidos, não o colocará de modo algum em uma posição difícil para começar. Ao contrário, será como uma catapulta que o lança (GROTOWSKI, 2012, p. 220).
Existe em Grotowski a noção de impulso retido que, depois, em cena, explode; e da repetição interna (para, em um segundo momento, lançar-se). Grotowski trabalha este tempo anterior à entrada do ator em cena, de preparação dos impulsos: “Enquanto preparam um papel vocês podem
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trabalhar sozinhos sobre as ações físicas. Por exemplo, quando vocês estão em um ônibus, ou então, esperando no camarim antes de voltar ao palco (...)” (RICHARDS, 2012, p. 108). Grotowski testemunha a diferença entre duas funções: a incidência da imagem das ações físicas (que o ator treina na imobilidade) e o enquadramento plástico-corporal (quando as realiza). O encadeamento das imagens incide sobre o ator no momento em que não está enquadrado (na partitura cênica), mas em outro lugar: no ônibus, camarim, na visualidade do cotidiano. Quando vocês fazem cinema, perdem muito tempo esperando; os atores sempre esperam. Vocês podem utilizar todo esse tempo. Sem serem percebidos pelos outros, podem treinar as ações físicas, e tentar fazer uma composição de ações físicas permanecendo no nível dos impulsos. Isso significa que as ações físicas ainda não aparecem, mas já estão no corpo. Porque elas são “in/pulso”. Por exemplo: em um fragmento do papel que estou fazendo em que estou sentado no banco de um jardim, uma pessoa está sentada ao meu lado, eu a olho. Agora, suponha que eu esteja trabalhando sozinho este fragmento com uma parceira imaginária. Exteriormente – não estou olhando para ela, eu a imagino – faço apenas o ponto de partida: o impulso de olhá-la. Da mesma maneira, faço o próximo ponto de partida: o impulso de me inclinar, de tocar a mão dela (o que Grotowski está fazendo é praticamente imperceptível) – mas não deixo que isso apareça completamente como uma ação, só estou começando. Você está vendo, eu quase não me movo, porque é apenas a pulsão de tocar, mas não exteriorizo. Agora eu caminho, caminho... só que estou sempre na minha cadeira. É assim que se pode treinar as ações físicas. Além disso, suas ações físicas podem estar mais enraizadas em sua natureza se vocês treinam os impulsos, ainda mais que as ações. Pode-se dizer que a ação física praticamente já nasceu, mas ainda está contida, e desse modo, em nosso corpo, estamos “colocando” uma reação certa (assim como alguém “coloca a voz”). (RICHARDS, 2012, p. 108-109)
Richards fala da “pulsão de tocar” quando, em imobilidade, o ator visualiza o toque. Visualizar (ou escutar internamente enquanto repete uma escrita) é experimentar a incidência (sem ainda estar no enquadramento). Neste momento, o enquadramento é dado pela posição em que o ator está (no camarim, ônibus ou escrevendo): imóvel. A imobilidade oferece resistência à incidência das cadeias visualizadas ou escutadas internamente – e esta resistência aumenta o seu impulso. Há uma relação de tensão entre incidência e enquadramento. Esta é uma hipótese. Em Stanislavski, encontramos o mesmo princípio do treino na imobilidade com a escrita: anotações. “Agora eu repito todas as ações que estão marcadas nessas anotações (...) sem as executar fisicamente. No momento, vou me limitar a estimular e reforçar os impulsos que estão dentro desta ação” (STANISLAVSKI, p. 217 apud RICHARDS, 2012, p. 108). O ator anota (escreve) os materiais de estímulo, criando um texto que se mistura ao do autor. Deparamo-nos com a prática de escrever para “preparar impulsos”. [...] Agarrem-se às palavras e frases isoladas de que tiverem necessidade. Escrevamnas e acrescentem-nas a seus próprios textos livres. Quando chegarem à segunda leitura e às seguintes, tomem mais notas, recolham mais palavras para incluir no
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texto que vocês mesmos inventaram para seus papéis. (STANISLAVSKI, 2005, p. 297)
Trata-se também de uma alternância entre duas cadeias: o texto-dado junto a materiais do ator, que se tornam texto. Encontrei em Knébel – a atriz, assistente e discípula de Stanislavski, que escreveu “Poética de La Pedagogia Teatral” (e outros livros) – a ideia de que o ator deve descrever “tudo o que pensa, toca, ouve e vê em cena”. Com estas quatro cadeias (vê, pensa, ouve e toca), cria um profícuo detalhamento de pequenas ações. Encontrei também um trecho onde Thomas Richards descreve um workshop de Cieslak 11 e a escrita novamente aparece, com os materiais são dispostos em duas colunas. Cada um teria que pegar o próprio caderno de anotações, dividir uma página em duas colunas e escrever, em uma coluna, tudo o que tinha feito durante a improvisação; e na outra coluna, escrever tudo o que tinha associado internamente: todas as ações físicas, imagens mentais e os pensamentos, as memórias de lugares, as pessoas (...). Ele disse que através de tudo o que tivéssemos escrito em nosso caderno seríamos capazes de reconstruir, memorizar e repetir a improvisação que havíamos acabado de fazer (RICHARDS, 2012, p. 13)
Há o momento em que o ator está enquadramento plástico corporal do espaço-tempo cênico, mas fixa a imagem visual ou acústica para uma preparação ao nível dos impulsos. Durante a escrita, vive a pulsação daquilo que ainda não se realizou. Há uma espécie de voz, que se materializa e vai se tornando consistente com a repetição. A voz como uma espécie de ordem de comando. O ator está implicado como objeto desta voz; objeto de si mesmo, de seu próprio comando. Da mesma maneira que, em Spolin, Boal e outras práticas, um instrutor maneja a produção do ator com a sua voz, com a escrita repetitiva do pré-jogo, ele próprio constrói a voz à qual seu corpo responde. A partir do que se escuta da escrita, acontecem associações livres, de estalo. Não se trata da lógica da associação de ideias, mas de saltos através da sonoridade. A associação que se dá pelo som: de “isSUAqui” (isso aqui) você chega em “SUA (puta)” ou “SU(or)”, através da associação com “sua”, que não está escrito (em “isso aqui”), mas é escutado durante a escrita.
Exemplo de cadeia associativa
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Ator de “O Príncipe Constante”, encenado por Jerzy Grotowski em 1965.
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As associações são inesperadas e para além do imaginário (sentido) sobre a situação ou sequência de ações onde um “eu ficcional” (ou um “ele”) está implicado em relações. A imagem e o sentido da situação se tornam mais claros durante a escrita, tal como “o quarto escuro pouco a pouco se enche de luz”, como descreve Stanislavski. Existe a pulsão de ver esta imagem (da situação do texto); existe a operação do olhar que implica a pulsão escópica: olhar o contexto ficcional que se constitui. Mas também há esta operação nonsense, do som que salta para outra coisa e faz graça.
A ajuda da filosofia e da psicanálise Este é só um exemplo. Pode-se associar a palavra “suar” nesta brincadeira, apesar dela não ter nada a ver com “isso aqui”. São estas associações que a escrita repetitiva viabiliza enquanto “passa cola”. Cola-libido. Sendo o corpo o lugar do gozo, como diz Soller (2010), este tipo de brincadeira tem a ver com o gozo – e com o corpo. Este corpo com o qual “a linguagem copula” (Lacan, 2007). Este procedimento faz jus a esta instância com a qual se designa uma espécie de “obscenidade do verbo” (Soller, 2010): a alingua. Uma impregnação do verbo no corpo pela via do gozo da música da fala. Segundo Fingermann é com esta alingua que o poeta brinca. A proposta então é o ator poetar! Poetar no pré-jogo. Outra maneira de compreender o procedimento é simplesmente reconhecer a articulação entre palavra e corpo, tal como testemunha Merlau-Ponty: “antes de ser o índice de um conceito, primeiramente ela é um acontecimento que se apossa de meu corpo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 316.). Vale a pena transmitir a citação inteira: Um sujeito declara que, à apresentação da palavra ‘úmido’, ele experimenta, além de um sentimento de umidade e de frio, todo um remanejamento do esquema corporal, como se o interior do corpo viesse pela periferia, e como se a realidade do corpo, reunida até então nos braços e nas pernas, procurasse recentrar-se. Agora a palavra não é distinta da atitude que ela induz, e é apenas quando sua presença se prolonga que ela aparece como imagem exterior e sua significação como pensamento. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 316.)
O exercício de memorização do pré-jogo através da repetição da escrita implica um jeito de se relacionar com o verbo e fazê-lo reverberar pelo corpo (para marca-lo). Isto na medida em que a palavra incide e, também, em que algo escapa (aos efeitos da linguagem). O fato de ser possível memorizar sem a compreensão: pode-se memorizar um texto (que não implique sentido algum, sem saber o que significa), só pelo som, indica que, na repetição, o ator conta com uma espécie de “cola”. Cola dos “caquinhos” do verbo. “Caquinhos” que percebemos nas “junçõezinhas” entre as palavras.
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PARTE II POR UM JOGO DE ENQUADRAMENTOS HÍBRIDO
5. Arranjos paradigmáticos como campo de extração
Já na primeira metade do século XX o paradigma da poética cênica como autônoma se estabeleceu, de forma múltipla, com projetos diversos. Vemos Meyerhold recuperar a visualidade do teatro de feira, dedicar-se ao grotesco e a abstração dos gestos; Brecht procurar o gesto estilizado, cuja primazia da forma implica a evocação da crítica (já que o ator inscreve a visualidade do seu pensamento e não “se esconde atrás” do enquadramento da ficção); Piscator intensificar as projeções, de maneira a sobrepô-las umas por cima das outras; a Bauhaus investir no ator como linha, grafismo; Craig teorizar o ator-marionete, projeto retomado em novos termos por Kantor, em um teatro onde a marionete é o modelo que o ator deve regar de vida; Grotowski se opôr à visualidade do gesto cotidiano e postular a ação física como um “ato total” (junto à visualidade do sacrifício e transe); Artaud dedicar-se às pesquisas com a sonoridade e o ritual para constituir o teatro como “peste” (termo que advém de Santo Agostinho, cuja “crueldade” é capturar o espectador, contagiá-lo de modo que perceba apenas quando é tarde demais) 12 – há visualidade da relação com o espectador: “somos capazes de fazê-lo gritar” (ARTAUD, 2008, p. 31). E o Living Theater dedicar-se a rituais coletivos para constituir um teatro ativista, de cunho libertador no mundo escravizado pela indústria armamentista e uma série de ditaduras; vemos Bob Wilson imperar com o “Teatro de Imagens”, sem a palavra do texto dramático ou quando sim, sobreposta pela força da plasticidade das imagens; vemos Barba constituir uma teoria do ator que lança mão da estilização nos teatros orientais como a “O teatro tem efeito retardado; você já está mudado e não tinha percebido. É tarde demais para recuar” (WILLEMART, 1996, p. 206).
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principal referência; e as fronteiras entre ator e bailarino serem borradas com a Thanz-theater de Pina Bausch; o dado biográfico utilizado como material de trabalho moldado em montagem e constituído como poética da cena; a proliferação do vídeo e materiais plásticos; a poética dos objetos e do som; a retomada da cultura popular como material cênico e a visualidade do oriente em trabalhos como os de Ariane Mnouchkine e Peter Brook.
Téâtre Libre, fundado por Antoine em 1887
De maneira que, sucessivos projetos anti-realistas marcaram, cada qual a seu modo, a consolidação de uma poética cênica autônoma em relação à literatura dramática ou a mimese da realidade proposta pelo projeto naturalista de Antoine. Até chegarmos ao que Lehamnn designou como pós-dramático percebe-se uma recusa da visualidade de um universo diegético (ficcional) fechado. Este mundo, onde indivíduos encontram-se implicados em relações intersubjetivas (evocadas pelo texto) a serem representadas é posto em cheque. Em relação aos textos considerados pós-dramáticos, o conflito e a progressão oferecida pelo dramático é uma espécie de referência a ser quebrada, seja pelos elementos épicos ou por materiais que, entre outros, Jean-Pierre Sarrazac e Jean-Pierre Ryngaert se dedicam a consolidar. São figuras como: coralidades e partilhas de vozes, onde não se sabe mais quem está falando; a paródia, a citação e diversas misturas que Sarrazac designa “monstros”: “Não se trata de, em nome de qualquer modelo mecanicista, desumanizar o drama, mas sim de produzir obras contra naturam e preferir à imitação rígida da bela natureza a livre variedade dos monstros” (SARRAZAC, 2002: p. 56 apud BRAGA, 2007, p. 02) – uma miscelânea de tendências reelaboradas de modo singular por cada autor, de maneira que a contemporaneidade se configura como uma escrita múltipla. A oposição que Lehmann faz ao dramático é explícita – e está articulada a uma tradição crítica alemã que passou por Walter Benjamin defendendo a narrativa e Peter Szondi 32
operacionalizando um estudo da dramaturgia a partir da oposição entre épico e dramático. A posição de Sarrazac é diferente da posição de Szondi que, com a oposição do épico ao dramático, demonstra a falência do segundo; e de Lehmann, que defende a escritura cênica sem o texto que a anteceda. Sarrazac defende um texto híbrido – assim como Pavis postula uma cena híbrida, entre a performance e a encenação (com o que nomeou performise). O texto dramático tem estado presente como campo de extração de materiais, servindo ao encenador na medida em que misturado com outros campos. Tal como Krzysztof Warlikowski 13 quando mistura fragmentos de “Otelo”, “O Mercador de Veneza” e “Rei Lear”; ou Vitez quando “amarra” versos de Yannis Ritsos com pedaços de “Electra” (Sófocles); e Romeu Castellucci 14 que, ao montar “Julio César”, coloca um ator obeso como Cícero (e a visualidade estranhada dos corpos entra em relação com a visualidade evocada no texto, gerando uma teatralidade específica daquele espetáculo).
Imagens de espetáculos de Romeo Castellucci
No bojo da crítica ao teatro dramático está a ideia de que o ator “representa” – enquanto no performativo ele “age"; ele atua (em nome próprio). Algo semelhante ao que, no teatro naturalista 13 14
Diretor da companhia polaca “Wroclawski Teatr Wxpólezesny”. Diretor da “Societas Raffaello Sanzio” (Itália).
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(ou cujo projeto de atuação é naturalista) se demanda por: “o ator não representa, ele vive”? Segundo Roubine, aquilo que Antoine buscava na “fatia de vida” acaba por causar o estranhamento de uma alucinação. O “como se” fosse real, segundo Roubine “oferece ao espectador uma nova vertigem”: O exemplo paradigmático dessa vontade de deslocar as fronteiras que separa a realidade do campo da representação, de torná-los no fundo difusas, será Os açogueiros, de Fernand Icres (1888). Menciona-se bastante essa realização de Antoine, não sem alguma condescendência a respeito da pretensa “ingenuidade” do diretor. Imaginem. Ele havia decidido suprimir os acessórios tradicionais de cartolina mole e substituí-los por verdadeiras carcaças de carneiro, por “verdadeiros” pedaços de carne expostos no balcão do açougue que é o ambiente da peça! Mas Antoine era certamente menos “ingênuo” do que se dizia. Sabia que a confusão do fictício e do real e que o mimetismo integral no teatro definem uma utopia. Que o próprio da utopia é nunca se realizar. O problema é que, ao misturar as fronteiras, ao injetar, na imagem cênica, o real em estado bruto, ele expandia o campo referenciado da teatralidade e oferecia ao espectador algo como uma nova vertigem, a perturbação excitante da incerteza... O século XX, através das buscas mais antagônicas, e frequentemente as mais afastadas do naturalismo, não será capaz de se lembrar que o real também pode se tornar teatro. E que tem uma “presença”, como se diz, de extraordinária intensidade! O interesse da direção naturalista é que no fundo ela não designou claramente seu objetivo: acreditando que estava simplesmente desenvolvendo a arte do mimetismo, melhorando as técnicas da representação. O teatro não é mais apenas o lugar de uma ilusão mais ou menos “perfeita”. Torna-se um espaço de alucinação. O espectador acredita que está deixando o real na porta do teatro. O real o alcança no cerne do espetáculo e o lança na deliciosa confusão de uma percepção sem referências estáveis (ROUBINE, 2003, p. 115)
“O século XX, através das buscas mais antagônicas, e frequentemente as mais afastadas do naturalismo” (ROUBINE, 2003, p. 115): deparamo-nos o tempo todo com os testemunhos das oposições; estas, que nos ajudam a escolher os materiais e montar arranjos de maneira a dialogar com uma cultura da cena e os seus principais impasses. Assim, uma plasticidade corporal do dia-adia ou “da realidade” pode se situar como uma das modalidades possíveis de enquadramento (em jogo), pois é tecida de imagem. Tal como a visualidade da progressão e desenlace dramáticos, da crítica ou da distância temporal (presente no teatro épico). Assim como o quadro de cinema ou da pintura; tal como um espelho (que reflete a imagem), a “realidade” é uma visualidade a partir da qual se pode extrair um fragmento ou outro. Não se configura como inteiriça, mas implica limites. Para que alguns dos seus elementos possam ser postos em cena, ela pode ser quebrada, assim como o contexto diegético (que situa limites também). São visualidades, muitas vezes ofuscadas pela miseen-scene – e é a partir deste fato que se estabelece uma tensão (que percebemos neste trabalho) entre a plasticidade da fábula e da cena; entre o texto (que evoca visualidade) e a encenação (que implica a sua própria visualidade e também evoca outras, diferentes daquelas evocadas pelo texto). É possível utilizar materiais implicados na atuação naturalista, por exemplo, a divisão de foco entre uma atividade cotidiana e a visualidade da relação com o outro; entre fala interna e externa; entre a diluição do gesto e a plasticidade do pensamento. O jogo de enquadramento pode 34
contar com uma inscrição em um espaço-tempo ficcional quando o ator é situado ali como vivente. A ilusão da vida individual se inscreve; ela aparece: é vista. Nos projetos anti-realistas, ao contrário, a inscrição do corpo conta com diferentes modalidades de exacerbação de uma plasticidade cênica: uma poética da abstração da imagem ou da forma corporal; o jogo de evocação da crítica, da paródia; a visualidade da rua, festa, feira, pop; da deformação, ritual, sacrifício; a visualidade da morte (como postula Kantor) ou do boneco, aproximando a cena teatral da pintura e dança moderna (ou as desproporções inscritas com as projeções de vídeos). Quando pensamos no teatro pós-dramático como o lugar ao qual chegamos (pensando no campo onde se inserem encenadores como Jan Fabre, Frank Castorf, Christoph Schilngensief, Rene Pollesch, Robert Lepage, Roger Vontobel, Romeu Castellucci, John Romão, Anatolli Vassiliev, Robert Wilson, Pina Bausch, Peter Brook, Ariane Mouchkine, Richard Foreman, Peter Stein e tantos outros), podemos dizer que, quando se utilizar a cotidianidade do corpo (que é valorizada na poética realista) se rompe com o contexto ficcional. Ou, ainda, que se redimenciona o corpo, ampliando a sua imagem com projeções; trazendo à cena a poética dos bastidores, como acontece em Katie Michell. A encenadora britânica criou um estilo particular de encenar, misturando vídeos e cena: Uma mistura de cena viva e vídeos simultaneamente projetados daquela própria ação. Ter a câmera no palco para que você possa ver como as imagens são construídas (...). Em “Trem Noturno” são gabinetes no palco, existem câmeras em todo lugar, você pode ver alguém colocando o projetor. E lá na tela é bem realista. Isso é o que eu chamaria o lado brechtiano do pós-dramático no teatro. Como Brecht quis expor a mecânica da construção. 15
Quanto à atuação realista no pós-dramático, não se produz a ilusão de que o ator é o personagem e de que aquilo está acontecendo. A não que o espectador faça parte da dramatização. Como no espetáculo “66 Minutes in Damascus”, apresentado na “Bienal Internacional de Teatro”, no TUSP em 2013 16. Situados no lugar de turistas a passeio no Líbano, espectadores são vendados e colocados em um carro que circula por São Paulo simulando um sequestro. De posse dos “terroristas”, são então questionados sobre uma suposta reportagem enviada sem permissão ao ocidente. Passam por cubículos onde estão presos políticos, torturados em troca de informação. O espectador vive, em vertigem, “na pele”, as desventuras de um sequestro; e debate, com os “sequestradores” a situação política do seu país.
Fala de Marvin Carlson no Colóquio Internacional “Pensar a Cena Contemporânea” em Florianópolis, UDESC, junho de 2013. 16 Dirigido por Lucien Bourjeily especialmente para o LIFT Festival 2012, em Londres. 15
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Night Train (Katie Mitchell, 2013).
Sucessivas pesquisas propõem uma quebra da “quarta parede” ou espaço da ficção, em troca de outros eixos onde o espectador se encontra tematizado. Teatro múltiplo, que não é o caso de detalhar aqui, mas é importante que as oposições sejam testemunhadas, pois se situam como paradigmáticas para a escolha dos materiais. O campo do Teatro Pós-dramático é um estimulo para a extração de materiais, mas também a composição naturalista – que conta com uma divisão de foco entre interno e externo; entre cotidiano e relação; entre querer e agir; entre visualidade do pensamento e ação física. Não apenas as múltiplas encenações pós-dramáticas podem nos servir como campo de extração (através de citações ou diluições, quando o material é transformado ou posto em relação), mas a sua teoria. Quando Robert Wilson se dispõe a defender o procedimento de colocar um sapo gigante em cena sem que este se articule ou evoque qualquer tipo de visualidade fabular, abre a perspectiva da experimentação com a livre-associação. Quando o teatro pós-dramático traz materiais como areia, água, palha, argila, tinta, sangue (como vemos em Pina Bausch) sem que impliquem qualquer efeito de significação explicito na encenação, abre perspectivas da visualidade que se inscreve para além da inscrição na visualidade do drama. A presença dos materiais “nos causa” (nos engaja) sem que esteja inscrita na ficção onde a sua presença seria justificada. Pode-se dizer que a cena teatral, enquanto poética, além do efeito visual, implica um efeito de tematização do olhar – por exemplo, quando acontece no escuro, fora dos limites da luz; ou quando propõe o deslocamento do olhar do espectador para “ver outra coisa”; quando este recorta o que vê na cena poluída pelo excesso; ou a sobreposição dos enquadramentos o indaga e o faz circular, deslizar; ou, ainda, no efeito de vazio (de uma imensidão de água ou areia) que não lhe deixa ver outra coisa senão o mesmo. Ou, ainda, trazendo, para a cena, a visualidade da rua, do sacrifício; a poética do ritual, do grotesco, da crítica, da paródia; da ironia e da tribuna; dos 36
bastidores; da deformação e do sem sentido. São modalidades de um excesso, de uma exacerbação. Porque não se reduzem à representação de um discurso, mas se abrem para uma produção que gira em torno de algo que não se pega – tocando-a em forma de afeto. Muitas vezes, no pós-dramático, diferentes visualidades implicam fissuras, coisas soltas se abrindo no espaço de uma escuta onde o espectador produz um não saber (a evidência de um limite). Fazer ver outra coisa Um dos princípios que aparecem no pós-dramático é não justificar ou atribuir uma sobreposição de sentido às ações, mas operar por montagem – onde materiais são justapostos sem que impliquem uma totalidade. A inscrição (de um modo singular) na poética, é avessa à necessidade de circunscrever a obra em um discurso que caiba dentro dos limites do imaginário (das relações imaginárias, de identificação) do eu. O esforço do sentido apaga o efeito estético. A sobredeterminação do sentido, através da palavra ou da imagem que se quer inteira, gera uma espécie de queda da visualidade.
Elle était et elle est, même (Jan Fabre, 2004)
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Cries and Whispers (Ivo Van Hove’s, 2011)
Far Side of the Moon (Lepage, 2012)
Em “A Imagem entre o Olho e o Olhar” Dunker expõe uma passagem do texto de Freud “Sobre o mecanismo psíquico da desmemória” (1898), onde o psicanalista relata a tentativa de lembrar o nome de um pintor de afrescos: Luca Signorelli: “(...) com particular nitidez tinha ante meus olhos o auto-retrato do pintor – o rosto severo, as mãos entrelaçadas” (FREUD, 1988, p. 282). Quando consegue, por fim, lembrar-se do nome Signorelli, “a recordação hipernítida dos traços faciais empalideceu de imediato” (FREUD, 1988, p. 282). A imagem, antes intensa e carregada, torna-se pálida e rarefeita na medida em que o nome do pintor se completa (e com ele o sentido do esquecimento) 17:“A obstrução do sentido seria correlativa à intensificação da visualidade e, A memória advém da cadeia associativa. Freud lembra-se de Botticelli e Boltrattio (outros dois pintores). Em seguida, a repetição da sílaba “bo” o leva à Bósnia Herrzegovina, que o leva a Herr: maneira pela qual os médicos se referem aos pacientes para comunicar a morte: “A reconstrução se completa pela lembrança de que na cidade de Trafoi – nome próprio contido em Boltrattio – Freud recebera a notícia do suicídio de uma paciente acometido por uma perturbação incurável” (DUNKER, 2006, p. 02). 17
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inversamente, a retomada do sentido, pela interpretação do esquecimento, corresponderia ao decaimento da visualidade” (DUNKER, 2006, p. 02). Pensando na oposição entre sentido e efeito estético, no que diz respeito à ação produzida pelo ator, se esta é tomada como visualidade (e não como sentido), passa a modalidade de enquadramento. Mesmo que se crie enquadramento ficcional, este não necessariamente precisa estar restrito a um sentido. A lógica do sentido, inclusive, pode ser tomada, pelo ator, como um dos campos possíveis de extração de materiais isoláveis para o seu arranjo, de maneira a não lhe restringir as escolhas. O que restringira as suas escolhas, neste caso, seria a inscrição na poética da cena. Os limites da forma podem ser tematizados com as deformações e alterações das bordas corporais, o reenquadramento dos objetos e as projeções, por exemplo. Pode-se também dizer que a cena trabalha uma descrença no olhar quando se aproxima do efeito de alucinação que Roubine postula: o “como se tivesse acontecendo”; o “como se fosse verdade”. Ou a desconfiança do que se vê, quando se propõe a imagem alucinatória. Testemunha-se a figura do excesso na multiplicação de objetos, nas alterações do tempo, na exacerbação do afeto; defasagem entre enquadramentos justapostos; ou em uma repentina descoberta do olhar capturando algo no espaço-tempo (cênico ou da imaginação). A diluição da forma do enredo pode ser um dos viés para se trabalhar a questão dos limites da forma. A encenação ofusca as relações intersubjetivas a serem representadas e inscritas no enredo. Há uma oposição entre visualidades que empalidecem ou evocam outras. Um dos motes que norteou a construção plástico-corporal estranhada durante o século XX foi uma libertação dos valores burgueses, seus mecanismos de determinação e institucionalização. Vemos, em projetos de Meyerhold, Artaud, surrealistas, dadaístas ou Bauhaus, de Brecht a Teatro do Absurdo, uma espécie de fazer ver o que não está sendo visto; para além de um olhar institucionalizado, habituado, comum. Uma espécie de “quebra do olhar”. Também no naturalismo de Antoine o objetivo era fazer ver o que não estava sendo visto em um teatro escravizado pelas idealizações românticas e pelos dramalhões melodramáticos. Antoine criou um retrato da prostituição sem a idealização romântica de “Dama das Camélias”, provocando repulsa. Foi difícil para o público ver a crueza e deparar-se com “o desgosto que causavam as cenas desagradáveis de uma mulher que apodrecia consumida pela varíola” (BUSNACH, 1884, p. 205 apud FARIA, 1998, p. 39). A Dama das Camélias (1851) foi o primeiro grande sucesso da escola realista. Mas, segundo Marvin Carlson, apesar de contribuir para “uma sugestão do realista fatia-de-vida”, Alexandre Dumas Filho se diferenciava dos realistas subsequentes e do naturalismo, graças à “dedicação à moral do drama”. Zola tomava-o por idealista. “Enquanto Dumas queria corrigir o homem, Zola queria examiná-lo” (CARLSON, 1997, p. 267-269). 39
Após a Primeira Grande Guerra as grandes narrativas (o discurso sobre o mundo) desabam. Inicia-se a trajetória que vemos em movimento retroativo, centrada nas oposições paradigmáticas: à atuação dramática e à atuação naturalista – das quais nos valemos neste trabalho. Podemos dizer que, no projeto de inscrever a cotidianidade em cena (presente no naturalismo e que muitas vezes se confunde com ele) estão postos: vertigem, delírio e uma espécie de “não acredito no que vejo”: “descrença no olhar”. A cotidianidade do corpo, quando se investe em outra poética que não é a da deformação ou abstração das formas, também pode estranhar. Já um arranjo de Meyerhold tem outros materiais para estranhar; uma espécie de choque que se contrapõe ao universo burguês evocado pela palavra. Um exemplo é a sua montagem de “Casa de Bonecas” de Ibsen, em 1922, designada com o subtítulo “A História de Nora Helmer ou Como uma mulher preferiu a independência e o trabalho ao veneno da família burguesa”. Graças ao entulho que compõe o cenário, a frase “Me sinto confortável na minha sala diante da lareira”, de Helmer, resulta irônica (Abensour, 2011). Já na montagem de “As Auroras” em 1920, quando um dos personagens vai proferir o hino de vitória, Meyehold introduz uma notícia esperada pelo povo: o Exercito Vermelho se apodera de Perekop e coloca fim à guerra civil – o que causa comoção na plateia. Neste mesmo espetáculo os atores se dirigem ao espectador convocando a sua opinião (idem). São materiais que podemos misturar, não na extração direta de diferentes materiais meyerholdianos, mas na medida em que estão inscritos na cultura e os encontramos contemporaneamente. Mas talvez o principal campo de extração meyerholdiano seja o grotesco, que propunha a partir de estudos dos Caprichos (desenhos) de Goya, Daumier e Callot – figuras que não apenas “incitam a imaginação” (como dizia), mas se instalam nos corpos: criação estranhada (em oposição ao realismo) quando o ator assemelha-se ao bufão.
Materiais propostos por Meyerhold aos atores: Callot, Goya, Daumier
Testemunha-se a função do enquadramento também através da música: “no sentido da restrição, pois a música intervém no tempo e o isolamento numa pequena plataforma restringe o 40
espaço” (ASLAN, 1994, p. 152) – e outros materiais. Segundo Aslan, Meyerhold “restringe a ação com pausas entre as falas, posturas estáticas ou intrusão de pantomimas; subverte o encadeamento, impõe entonações insólitas, com a voz fabricada” (idem). Kirby associa o ator meyerholdiano a uma marionete animada. Percebe-se uma oposição ao corpo mimético realista, onde as noções de naturalidade e cotidianidade estão implicadas. Em “Inspetor Geral” (1926), ele substitui personagens por manequins; utiliza telas alternando a atuação filmada e ao vivo; coloca passagens de outros textos no espetáculo (“Os Jogadores”, “As Almas Mortas” e “As Histórias de S. Petersburgo”, também de Gogol); acrescenta personagens mudas; constrói um coro que não havia; cria figuras episódicas; transforma monólogos em diálogos; coloca o mesmo ator interpretando vários personagens para frustrar as possibilidades de identificação (Abensour, 2011).
O Inspetor Geral (Meyerhold, 1926)
O Corno Magnífico (Meyerhold, 1922)
Outro arranjo paradigmático, podemos encontrar em Artaud. Ao mesmo tempo em que designa a submissão ao texto como “barco fúnebre”, critica a visualidade estéril da mise-en-scene; 41
postula um teatro independente da literatura, apesar de tomar grandes textos como referência de algo que se deve evocar para além da mimese da realidade. O teatro deve possibilitar a “exploração de infinitos deslocamentos interiores” e para isto é necessário se libertar da representação e encontrar a vida: “Reatralizar o teatro e relança-lo na vida” (ARTAUD, 2008, p. 26). É o objetivo de Artaud, se opondo ao naturalismo com suas tendências humanistas. Encantou-se pelo teatro balinês graças a sua “impessoalidade”: Tudo nos atores é impessoal – talvez por se diferenciar radicalmente do naturalismo e sua construção pessoal. Os gestos “respondem a uma espécie de matemática (...) nessa despersonalização sistemática, nessas expressões puramente musculares que são como máscaras sobre o rosto, tudo tem o seu significado, tudo produz o máximo efeito (ARTAUD apud MIRALLES, 1979, p. 45-46)
A vida não está presente na representação do indivíduo em cena (mas em algo que se dá no excesso). O encenador deve: “fixar as imagens que nascerão em nós nuas, excessivas e ir até o extremo destas imagens” (ARTAUD, 1008, p. 27). Ele propunha: um teatro “raro”, que se pode encontrar no circo, mas que, no entanto, diz do espírito (e se estabelece como uma metafísica). O espectador não deve “ir lá para ver, mas para participar” (idem) – experimentar “a angústia metafísica que as cenas representadas provocarão” (ARTAUD apud MIRALLES, 1979, p. 41) ou “a insônia febril, o passo dos corredores, o salto mortal e a potência de uma bofetada” (GLUSBERG, 2007, p. 12) já presentes no futurismo de Marinetti. Teatro como “praga libertadora que desencadeia poderes e possibilidades sombrias” (CARLSON, 1997, p. 381). A peça radiofônica “Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus” (Artaud, 1948) testemunha a pesquisa com a sonoridade: ganidos, gritos, ruídos, alterações radicais de altura e volume – além da visualidade do transe e do ritual; espécie de possessão – vestígios do expressionismo: O isolamento e ampliação do traço em detrimento do todo; o uso da voz para agir sobre o espectador; descargas sonoras e visuais; a palavra ritmicamente articulada; diálogos sem ordem; a presença da poesia e prosa; gestos isolados e estilizados; o corpo flexível e desarticulado do ator; o trabalho com as zonas de tensão, as mãos crispadas, os gestos cortando o espaço; a ideia de coreografia, com batidas de pés, tremores, crispações, projeções da cabeça e dos braços para trás 18
Tal como em “O Dibuk” (Vankhtangov, 1922), há no corpo uma desconstrução do humano: Gritos guturais, guinchos, salmodiar doloroso, musicalidade e uma interpretação gestual com balanço de cabeça e pernas, torso lançado para trás e/ou com as costas arqueadas, gestos
SALLES, Nara. Teatro Expressionista. Portal São Francisco: História do Teatro. Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/historia-do-teatro/teatro-expressionista-3.php (Acesso em 09/06/2019).
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largos e intensificados. Havia uma dança dos mendigos que chamou a atenção por sua força encantatória, um balé grotesco, macabro, com braços que se agitavam como morcego (idem).
E na palavra também há desconstrução; vazão ao jogo do som e ao vazio, hiato vertiginoso quando não se evoca mais um sentido: “Kré É preciso que tudo puc te Kre esteja arrumado puk te pek por um fio li le kre numa ordem pek ti le e fulminante kruk pte” 19
Montagem de “O Rinoceronte” (Ionesco) dirigida por Tadeusz Kantor (1961)
O absurdo da linguagem encontra lugar também “no mais bem sucedido teatro de vanguarda do Século XX” segundo Carlson: “O ‘Absurdo’ tornou-se um lema literário da moda, a que diversos escritores recorreram para classificar o novo drama, a despeito dos protestos dos dramaturgos assim rotulados” (CARLSON, 1997, p. 399). As dramaturgias de Ionesco, Beckett e Adamov foram designadas por Martin Esslin a partir da “literatura do absurdo” que, inspirada no “Mito de Sísifo” (1951) de Camus, tematizava o eterno (e absurdo) recomeçar humano (apesar destes dramaturgos preferem “Teatro da Erosão” ou “Teatro Abstrato”). Puro drama. Antitemático, antiideológico, anti-social-realista, antifilosófico, antipsicologia de boulevard, antiburguês – a redescoberta de um teatro livre” – contra “as convenções aceitas do teatro francês tradicional, a ênfase na palavra, o vínculo de causa e efeito, a tendência ao realismo e o desenvolvimento psicológico do caráter (IONESCO, 1964, p. 216217 apud CARLSON, 1997, p. 400). Trecho de “Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus”. "Il faut que tout soit rangé/ à un poil près/ dans un ordre/ fulminant / Kré puc te/ Kré puk te/ Pek li le/ Kre pek ti le/ e Kruk/ Pte" (KIFFER, 2010, p. 39)
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A visualidade do nonsense aparece, junto a traços do Music Hall e Vaudeville. A influência se estende a Buster Keaton, Charles Chaplin, Irmãos Marx, Joyce e Kafka; propriamente um híbrido, cuja produção de estilo é marcante. Outros dramaturgos são nomeados “absurdos”: Arrabal, Jean Genet, Harold Pinter, Tom Stoppard, Friedhich Dürrenmatt, Edward Albee, Jean Tardieu. O marco inicial desta produção se deve a Beckett (“Esperando Godot”, 1949) e Ionesco (“A Cantora Careca” e “A Lição”, ambos de 1950). Ionesco afirmou que “As Cadeiras” era uma tentativa de “alargar as fronteiras atuais do drama”. Um debate com o campo dramatúrgico então institucionalizado, para instalar outra lógica na construção dramática – propondo uma espécie de abstração que: (...) purifica a ação dramática do que lhe é intrínseco: enredo, características acidentais dos personagens, seus nomes, posição social e contexto histórico, razões aparentes do conflito dramático e todas as justificativas, explicações e lógica do próprio conflito para obter um conflito abstrato sem motivação psicológica (idem).
Uma questão que se abre é a construção do estilo de atuação para as peças do Absurdo – com a estilização do gesto, absorvendo a influência dos mímicos (Jean-Pierre Barrault foi o primeiro a dirigir “O Rinoceronte”). Outra questão é o divórcio entre a palavra e o mundo. A palavra esvaziase; é a linguagem que é absurda. “A Cantora Careca” foi criada a partir de um manual de inglês, com frases do tipo: “Eu não tenho o chapéu do meu vizinho, mas tenho a bengala da minha tia”. A gratuidade é visível – o que a torna cômica. Segundo Ávila, Ionesco “denuncia o absurdo de certa linguagem cotidiana, em que as palavras, demasiado carregadas de significações as mais diversas, perderam o seu valor e passaram a não significar coisa nenhuma” 20. Além do desgaste da linguagem cotidiana, a visualidade das personagens se quebra. Elas se decompõem no suporte de uma voz, uma fala vazia. Ai! As verdades elementares e sábias que eles trocavam, encadeadas umas às outras, tinham se tornado insanas, a linguagem se desarticulara, os personagens se descompuseram; a fala, absurda, se esvaziara de seu conteúdo e tudo terminava por uma briga cujos motivos eram impossíveis de saber, já que meus heróis disparavam não réplicas, nem mesmo pedaços de frases, nem palavras, mas sílabas, consoantes, vogais!... Para mim, tratava-se de um tipo de desmoronamento do real. As palavras tinham se tornado revestimentos sonoros desprovidos de sentido; os personagens também, é claro, esvaziaram-se de sua psicologia e o mundo me aparecia numa luz insólita, talvez em sua verdadeira luz, além das interpretações e de uma causalidade arbitrária (IONESCO, 2006, p. 247-248 apud OLIVEIRA, 2009, p. 05)
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AVILA, Norberto. Sobre o Teatro de Ionesco. Paris, s/d, p. 01. Disponível em: http://www.yumpu.com/pt/document/view/13037077/n-quando-nicolas-bataille-apresentava-a-uma-plateia-quase-a(Acesso em 09/06/2019).
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Aqui a cotidianidade é avessa à construção do drama. Os personagens: (...) não sabem mais ser, eles podem “se tornar” qualquer um, qualquer coisa, uma vez que não sendo, eles são apenas os outros, o mundo do impessoal, eles são intercambiáveis: podese colocar Martin no lugar de Smith e vice-versa, não se notará (idem).
Em “As Cadeiras” um casal de velhos vive numa torre no centro de uma ilha. Preparam uma grande recepção para a qual convidam personalidades. Passam o tempo enfileirando cadeiras para convidados que não virão. Deparamo-nos com o vazio como um fundamento da experiência estética. Ionesco afirma sobre a sua dramaturgia: “é a expressão de uma angústia e de uma interrogação para a qual eu próprio aguardo uma resposta” 21 “Rinoceronte”, no entanto, está atrelado a um sentido: o sentido de uma crítica ao nazismo e a aversão a qualquer tipo de histeria coletiva. As pessoas viram rinoceronte e, tal como nos regimes totalitários, são contagiados e massificados. Resta Bérenger, simbolizando a resistência da condição humana: “A mim é que vocês não pegam! Eu não vos seguirei! Eu não vos compreendo! Continuarei como sou. Sou humano, um ser humano!” Também as peças de Beckett, como “Esperando Godot” (que estreou em Paris em 1952 sob a direção de Roger Blin) e “Fim de Jogo” (que estreia em 1957 no “Royal Court Theatre”), marcaram pela visualidade do vazio. O velho e cego Hamm com seu serviçal Clov (cujo encadeamento foge a qualquer justificativa, se impondo como puro efeito de grafia). Embora a relação entre os dois se estabeleça, já não se sabe se, há três minutos, Clov fez, exatamente, o que está novamente a fazer. Há críticos que pontuam a influência de James Joyce na obra de Beckett. Segundo Badiou “a obra de Beckett se abre para o acaso, para os incidentes e, portanto, para a ideia de sorte” – tal como a de Joyce. “Em ‘O Inominável’ (romance de 1949) lemos: ‘ninguém me obriga, não há ninguém, é um acidente, é um fato’” (BADIOU, 2003 apud AMARANTE, 2009, p. 01). Segundo Amarante: Beckett e Joyce compartilham uma mesma desconfiança para com a linguagem, como se verá à frente. Sendo que essa linguagem, da qual se origina uma fala incessante, tende a gerar, na obra de ambos, personagens obscurecidos pela voz, ou seja, personagens sem corpo (...). Esses personagens, feitos de linguagem, acentuam e traduzem a atmosfera de sonho, de devaneio de suas obras (AMARANTE, 2009, p. 02).
Poderíamos completar: “atmosfera de errância e incerteza”. “Estou no quarto de minha mãe. Sou eu que moro lá agora. Não sei como cheguei lá. Numa ambulância talvez” (idem). 21
AVILA, Norberto. Sobre o Teatro de Ionesco. Paris, s/d, p. 01. Disponível em: http://www.yumpu.com/pt/document/view/13037077/n-quando-nicolas-bataille-apresentava-a-uma-plateia-quase-aAcesso em 09/06/2019.
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Descorporificação: “VLADIMIR: Veja só! Você, aqui, de volta. / ESTRAGON: Estou?”. Segundo Badiou: “Tudo se reduz à voz. Plantado num jarro ou cravado numa cama de hospital, o corpo, cativo, mutilado, agonizante, é apenas o suporte quase perdido de uma fala” (BADIOU, 2003 apud AMARANTE, 2009, p. 05). “Sou de palavras, sou feito de palavras, das palavras dos outros, que outros, e o lugar também, o ar também, as paredes, o chão, o teto, palavras, o universo está todo aqui, comigo, sou o ar, as paredes, o emparedado, tudo cede, tudo se abre, anda a deriva (…)” (idem) A determinação de uma voz enquanto o corpo se dilui é radicalizada na peça de 1973 “Não Eu”: apenas uma boca iluminada em cena. Há fala compulsiva. No entanto, não “do Eu”. A visualidade do Eu se perde. Aqui se chega à concretização de um projeto – e talvez Carlson tenha razão em afirmar que o Teatro do Absurdo é o mais bem sucedido movimento de vanguarda do século XX. Se a história do teatro no século XX se organiza em torno da recusa de um realismo; da visualidade de uma diegese fechada onde indivíduos se encontram implicados em relações intersubjetivas a serem representadas; aqui não há indivíduo; não há “eu” corporificado. O fato de não haver um corpo inteiro é representativo. No entanto, nos diversos movimentos, que primaram por linhas corporais (como a Bauhaus), apesar de o corpo estar presente, extrapola-se a visualidade do Eu – o que nos faz concluir que, em cena, o indivíduo é uma construção, evocação (na qual se pode investir ou não). No caso do drama é nisto que se investe – e na progressão da relação e conflito com o mundo. No caso da poética estranhada é isto que se desmancha. Ao mesmo tempo, Roubine abre a perspectiva de um olhar para a atuação naturalista com o reconhecimento de que também pode estranhar, na medida em que causa a vertigem do olhar – estabelecendo esta, também, como um campo paradigmático para a extração de materiais, que poderão constituir, junto com outros, um jogo de enquadramento (de uma obra que ainda está por vir).
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6. Traços do contemporâneo: autonomia da poética teatral
“A Rússia é o rochedo que propagará a onda da Revolução Mundial”, escreveu Piscator em 1919 (BERTHOLD, 2001, p. 499). O desejo era de revolução. Circunscrevendo uma série de resoluções estéticas, o teatro tinha este superobjetivo 22. O teatro era composto por trabalhadores e este foi também o ideal de Brecht: realizado por quem sustenta a linha de produção e não por artistas segregados. As peças eram realizadas no chão das fábricas. No Proletkult russo, cada fábrica tinha um grupo de teatro. Fazia-se teatro nos “palcos miseráveis, cenários primitivos, fumaça de tabaco e vapor de cerveja” (2001, p. 499-500), em prédios usados para comícios e assembleias em bairros operários de Berlim. Piscator queria a agitação política. O espetáculo chamado Revista do Barulho Vermelho (1924), entre textos seus e de Gasbarra (colaborador), tinha “muita coisa reunida de maneira crua, o texto era despretensioso, mas foi justamente isto que permitiu a intercalação, até o último momento da atualidade” (2001, p. 500), diz ele em “O Teatro Político”. Temas atuais eram utilizados em jornal, revista, colagem, justaposição de números, cenas soltas, colcha de retalhos: “E nós usávamos indiscriminadamente todos os meios possíveis: música, canções, acrobacias, caricaturas, esporte, imagens projetadas, filmes, estatística, cenas interpretadas, discursos” (2001, p. 500) - para certo fim. O que unia as diferenças era o propósito, ou seja, o superobjetivo. Dialogava-se com “os espetáculos dadaístas e sua algazarra, descrita como Klamauk: barulho ensurdecedor ou, ainda, como
22 Encontramos em Knébel uma ideia de superojetivo ampliada; não do personagem ou do ator, mas da obra: a “supertarea del espectáculo” (KNÉBEL, 2002, p. 132)
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quebra provocativa da forma dramática burguesa” (2001, p. 500). A técnica de Piscator ficou conhecida como ação direta: “martelar o leitmotiv político” (2001, p. 500). Artaud por sua vez proclamava algo parecido: “uma teoria do teatro enquanto ação (não mais a ilustração de um texto literário, mas ‘forjado no palco’) com o uso irrestrito de todos os meios teatrais, entregando o palco a um vitalismo eruptivo que transforma a ação cênica num foco de inquietação contagioso” (2001, p. 500). Ao encenar Strindberg, utilizou o texto dramático. O compromisso não era com um procedimento específico (pois alterava o arranjo cênico conforme o que lhe servisse em direção ao propósito do contágio); o teatro precisava “ser vida” e não a representação do texto, mesmo utilizando o texto. O texto dramático é cravado em nova escrita, que é cênica. Para além da “posta em cena” (Pavis, 1999), o texto serve a um teatro que se estabelece como ritual e performance (não como representação). A oscilação entre teatro “de texto” e performativo que encontramos em Artaud está também em Piscator que, em 1926, realizou uma montagem de “Os Salteadores”, de Schiller – “atualizando o texto, vertendo-o em peça politicamente engajada” ao “fazer com que Paul Berdt, no papel de Spielberg, usasse uma máscara de Trótski” (BERTHOLD, 2001, p. 500). Outra “posta em cena” a ser destacada é “Oba! Estamos vivos!”, de Toller, em 1927: “uma montagem altamente técnica onde a parte filmada possuía acentuada função didática”. De acordo com Berthold, “Piscator colheu os últimos rebentos do drama expressionista ao qual se opusera violentamente em 1920 e tentou impregná-los de grande tensão política” (2001, p. 501). Seja com a posta em cena de um texto dramático ou com a colagem em uma revista, os seus propósitos estavam lá. “Apesar de Tudo” (1925) foi um “drama-documentário de massa” “com discursos, impressos, artigos, recortes de jornal, manifestos, folhetos, fotografias e filmes, diálogos impressos, entre personagens históricas e cenários arranjados” (2001, p. 500). Esta ideia da peça-jornal (colunas, reportagens) se deslocou no tempo, pois esteve também presente nos EUA em 1935 com a chamada Living News-paper. E também nos Anos 60, na modalidade de peça-documentário chamada “jornal vivo” (2001, p. 500). “Passagens épicas, episódicas e pedagógicas, jograis, comentários, poemas e inserções musicais constituíam os elementos motores do Jornal Vivo” (2001, p. 502). Piscator teve como ponto de partida o material literário: “As Aventuras do Bravo Soldado Schwejk” adaptado, junto com Brecht, por Gasbarra e Lania. Com “um herói passivo, contínuas trocas de cena e passagens glossantes portadoras de teor satírico” (2001, p. 502), “uniu tantos episódios numa possível continuidade sem costuras com o recurso de uma esteira rolante” (2001, p. 502): “atravessando o palco da esquerda para a direita, em direções opostas” (idem). “Sobre elas ficavam os tipos petrificados da vida política e social na velha Áustria” (2001, p. 502). As marionetes desenhadas por Grosz “davam aos tipos de figuras uma função supercaricaturesca, 48
cômico-clownesca” (2001, p. 502). “Para as cenas de rua em Praga, Piscator usou como fundo um filme feito no local” (2001, p. 502); “renques de árvores copiados de naturezas mortas, desenhados ao longo do palco, como representação de uma estrada infinita” (2001, p. 502). O ator “deu à personagem algo reminiscente do espetáculo de variedades e de Charles Chaplin” (2001, p. 502). Piscator se referia a este estilo como um “novo, matemático gênero de interpretação” (2001, pg. 502). Vemos diferentes pontos de partida em resoluções estéticas circunscritas por um mesmo propósito e um mesmo princípio de trabalho: “intensificar o efeito ao grau máximo, pelo uso de meios extrateatrais”. Seja com texto dramático, material literário ou peça-jornal, a utilização dos meios extrateatrais (como chamava), pode ser tomada como um diapasão, um denominador comum, um elemento-síntese da obra de Piscator. Os trabalhos de Vanguarda deixam um legado para o teatro: o impacto da cena enquanto poética da teatralidade. Artaud falava da ação direta, de seu coupe de théâtre ritual e rítmico, da força da peça cuja ação é desdobrada espacialmente na direção dos quatro pontos cardeais, cindida por paroxismos e depois enfeixada pela luz, e de novo atiçada. Ele considerava o grito o elemento primordial da ação direta, um grito lançado da extremidade da sala de espetáculos e transmitido de boca em boca, num acelerando selvagem (2001, pg. 504).
Pensemos em outros dois casos desta Vanguarda: Living Theatre e Jerzy Grotowski. Os dois são devedores de Artaud, segundo Berthold. O ponto em comum: o “ritual de movimento e gesto” (2001, pg. 504). Também presente a alternância entre o trabalho com o texto dramático e o teatro performativo. Grotowski montou Ionesco e outros. Artaud montou Strindberg e outros. Living Theatre montou Doctor Faustus Lights the Lights (1951) de Gertrude Stein, The Brig (1963) de Kenneth H. Brown, Antigone (1967) de Bertolt Brecht. Nestes casos, o texto é matéria: “O lema é a direção para a ação. O texto, na medida em que é considerado obrigatório, é simplesmente matéria-prima” (2001, pg. 504). Este é um jeito de se pensar o texto dramático que a Vanguarda nos legou: ele é... matéria, superfície. Não é algo a ser representado; “ele é ele”. Ele é superfície e, como tal, jogado em cena com outras matérias. O que se evoca (o que se imagina) do jogo e da química entre as matérias é algo que se dá em escuta (e em interpretação) a posteriori. Ganha-se, então, espaço para interpretar. A matéria-texto é inserida no ritual; ação direta sob o palco – que se estabelece como poética com a junção dos materiais.
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Somos filhos de Brecht Surgia, em certo tempo histórico, um “novo drama”. Se em Piscator, materiais extra-teatrais eram colados para um teatro-jornal, em Brecht, havia a peça, um drama que, no entanto, que era novo. E por que novo? Brecht produziu uma tabela das diferenças entre o teatro épico e o teatro dramático. A sua dramaturgia era épica (não dramática). Épico e dramático reaparecem tal como dois modelos que se opõem. Tanto a dramaturgia quanto a teoria de Brecht são referências – e seguem como uma linha de influência para o teatro contemporâneo pós-dramático. Pensadores alemães diversos se dedicaram à teoria das constantes tensões entre o épico e dramático. Para Szondi, o teatro moderno é produto de diferentes resoluções das tensões entre os dois. Tchecov, Strindberg, Ibsen, não são “dramáticos puros” – são um pouco épicos; contém tensões entre o épico e o dramático. A diversidade das dramaturgias surge como hibridismo entre estes dois polos. Dois polos que Brecht (apud Berthold, 2001, p. 507) explicita da seguinte maneira: Teatro Dramático
Teatro Épico
- o palco personifica um evento
- ele o narra
- envolve o espectador numa ação e
- torna-o um observador, mas
- usa sua atividade
- desperta sua atividade
- possibilita-lhe sentimentos
- exige dele decisões
- transmite-lhe vivencias
- transmite-lhe conhecimento
- o espectador é imerso na ação
- é confrontado com ela
- ela é trabalhada como sugestão
- ela é trabalhada com argumentos
- os sentimentos são preservados como tais
- são levados ao ponto do conhecimento
- o homem é pressuposto como algo conhecido
- o homem é objeto de uma investigação
- o homem é imutável
- o homem se transforma e é transformável
- tensão voltada para o desfecho
- tensão voltada para o processo
- uma cena em função de outra
- cada cena para si
- os acontecimentos desenvolvem-se num curso
- os acontecimentos desenvolvem-se em curvas
linear - natura non facit saltus
- facit saltus
- o mundo como ele é
- o mundo como ele se torna
- o que o homem deve fazer
- o que o homem tem de fazer
- seus instintos
- seus motivos
- o pensamento determina a existência
- a existência social determina o pensamento
Como marxista, Brecht enxergava no homem um produto da sociedade, determinado pelas macroestruturas sociais. Em suas peças ele mostra como o homem poderia ter tido outras escolhas se 50
não sucumbisse a estas determinações, provocando o espectador para que pense em suas próprias escolhas. Ele mostra as contradições. Não os conflitos (como no teatro dramático), mas as contradições da sociedade. Assim, cada cena passa a fazer parte de um “inventário de argumentos”, como diz Berthold; e a “exibição mais objetiva possível de um processo interno contraditório como um todo” (2001, p. 507). Assim, o teatro de Brecht tem caráter “exposicional” e é nisto principalmente que somos herdeiros: a teatralidade exposta, assumida, bem como o processo da sua construção. Os bastidores revelados: homens de macacão para montar o cenário na frente do público; cenas diferentes reveladas ao mesmo tempo; canções como comentários; letreiros para anunciar cenas; imagens projetadas. O ator com a estilização dos gestos mostra que está representando a personagem, e critica as ações da personagem inclusive (se distanciando desta). São os “elementos distanciadores” que definem o palco como épico. A instância narradora surge, se ocupando do outro e de sua história. O ator não “veste” a personagem; o palco não produz a ilusão de que o ator é a personagem ou que aquilo está acontecendo no instante (tal como a “fatia de vida” de Antoine) 23. O palco é construção realizada para alguém com um propósito. Através de materiais extrateatrais (para usar a terminologia de Piscator), o trabalho de Brecht documenta como a fragmentação pode ser utilizada dentro de um teatro de “texto” (de um autor). Foi contaminado por Brecht que o Teatro Pós-dramático (tal como Lehmann teoriza) passou a encenar textos de maneira “desconstruída”: o texto em choque, sendo rompido por outros materiais. A História do Teatro se move através de um jogo de influências. O Teatro Pós-dramático se inspira em Brecht e Brecht tem suas influências. Ele as declara. Ele teria escrito no começo dos anos 30: Do ponto de vista estilístico, o teatro épico não é nada particularmente novo, com seu caráter exposicional e sua ênfase no artístico, ele é aparentado ao antigo asiático. Tais tendências didáticas são evidentes nos mistérios medievais, assim como no drama clássico espanhol e no teatro jesuíta (2001, p. 505).
A estilização do gesto (ou distanciamento) está ligada à influência da arte chinesa. O ator narra o percurso dos personagens, estilizando os gestos. Ele não se traveste; ele é narrador. Para isto, Brecht elabora procedimentos, experimentados nos ensaios, como “mudar as falas para a terceira pessoa e transpô-las para o passado; incluindo as rubricas” (2001, p. 505) e a tipificação: “toda ação representada adquire automaticamente o caráter de um modelo” (2001, p. 505). A ação não é singularizada; não é “de um ser humano específico”, mas de todos que representam aquele tipo. A
Roubine trabalha muito bem esta questão em “Introdução às Grandes Teorias do Teatro” no capítulo “A Mutação Naturalista”.
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ação é histórica; diz da história e não de “um” sujeito; diz de um “tipo de gente” que é determinada socialmente; de um “tipo social” que se repete – como se fôssemos todos fantoches da sociedade. Assim, há “o” operário e “o” patrão se digladiando na luta de classes. Uma redução do humano ao tipo; com a representação deste tipo e/ou seu valor ou função na sociedade; seu valor de “peça” de engrenagem da estrutura social. Assim, segundo Berthold, há em Brecht uma “renuncia à psicologia em favor da exemplaridade” (2001, p. 505). Por isto a preferência por “heróis negativos” (2001, p. 505), exemplares do que não se deve fazer. Mãe Coragem (protagonista da peça homônima) sobrevive do comércio da guerra enquanto perde os seus filhos, um a um. Com esta figura, Brecht “não pretende provocar compaixão, mas promover o conhecimento e a condenação da exploração da guerra” segundo Berthold (2001, p. 507). O caráter didático das peças não excluem o deleite: Com dialética brilhante, Brecht negou, por fim, que pretendesse ‘emigrar do reino do agradável’. Laconicamente, ele admitiu que o caráter didático de seu teatro épico não precisa necessariamente excluir os aspectos burgueses da beleza e da fruição. Fez as pazes entre os irmãos distanciados, “Teatro” e “Diversão” porque “nosso teatro precisa provocar o prazer no conhecimento, organizar a brincadeira, a alegria da mudança da realidade” (2001, p. 510)
O papel de “parceiro especulativo” que o espectador cumpre, para Brecht, indica que a peça está inacabada. Surge o modelo brechtiano de uma “forma aberta”. A peça não se fecha – ela deixa uma questão. Ele pretende que seus incidentes dramatizados sejam compreendidos como situações exibidas de um acidente social, com ações que podem ser prolongadas a vontade. “Sentimonos desapontados, e nos levantamos com desalento quando a cortina se fecha, e nossas perguntas permanecem penduradas no ar” como ele próprio diz no epílogo da peça parábola A Alma Boa de Setsuan (2001, p. 510).
Assim, a questão didática veiculada ao teatro de Brecht não circunscreve um fechamento da obra (como nos ensinamentos moralistas do Iluminismo), pois “a lição é rompida em múltiplas refrações irônicas e conduz o espectador por trechos de rica e áspera poesia” (2001, p. 510). Mas, este procedimento não é novo. A ruptura dramatúrgica da ilusão teatral, a peça dentro da peça, a inserção do discurso direto ao público, o pronunciamento de sentenças críticas ou didáticas e canções sobre temas da época – todos são expedientes que o teatro conheceu e usou por milhares de anos, desde a parabasis da velha comédia ática à canção de Salomão em A Ópera dos Três Vintens. Sob o signo da ironia romântica, o drama extraiu centelhas poéticas do salto entre o infinito e o finito e usou o teatro dentro do teatro para polemizar (2001, p. 510).
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Se estes recursos são antigos, o que de fato diferencia o Teatro Épico de Brecht? A história o constrói como um traço – que vai, com olhar retrospectivo, se definir como “diferente”. O projeto de Brecht inclui as proposições teóricas – para um mundo que precisa se repensar (no pós-guerra). Este vetor, de um olhar retrospectivo sobre a obra de Brecht, dialoga com o passado e atribui valor a um fato de 1797: “um ataque parodístico ao Iluminismo de Berlin, em “O Gato de Botas”, a peça de Ludwig Tieck” (2010, p. 510). Peça de um caráter antiilusionista – que também está presente nos personagens da Commedia dell’Arte – mas deslocados para o “teatro de texto”. O material popular no “teatro erudito de texto” muitas vezes promoveu a sua renovação. (...) forças atemporais, antiilusionsitas, quer em seu próprio nome, como nas famosas montagens de Golgdoni e Gozzi por Max Reinhardt, Vankhtângov ou Strehler, ou ainda como figuras “clownescas” intercambiáveis, despersonalizadas e neutralizadas, como na niilista Esperando Godot, de Samuel Beckett (2001, p 502).
Parceiros no antiilusionismo Na esteira de Brecht, elementos ícones do antiilusionismo – recorrentes na história – circulam em diversas poéticas ou tempos. O antiilusionismo, como um recurso épico, significa a ruptura da ilusão teatral; ruptura daquele mundo fechado dos personagens, representados como mimese da realidade. Aqui, a representação é posta em questão, interrogada. O que se acredita ser real é interrogado. Quando Pirandello coloca o personagem conversando com o autor, evidencia a construção teatral, apresentando outra camada, outra superfície e tessitura de relações. Em “Seis Personagens à Procura de Um Autor” os personagens invadem o palco durante um ensaio. Com este recurso, “Pirandello problematiza as relações entre ser e parecer, e vida e forma” (2001, p. 511). Quando o diretor, no final, manda embora os espectadores, para continuar a ensaiar, atrás das cortinas, “a peça que ainda está por ser feita”, a questão da “verdade” humana remanesce tão aberta quanto a de Brecht no tocante à revisão futura das relações sociais. O esquema formal de Pirandello, o de situar sua ação na moldura de um ensaio teatral, propagou-se em um semnúmero de ecos (2001, p. 511).
O que se introduz em cena para ser representado (no lugar do mundo) é justamente uma representação. Este recurso coloca em questão o “real” (do mundo), pois as fronteiras são borradas, não se sabe mais o que é real e o que não é. É como se tudo se reduzisse a representações. É como se Pirandello dissesse: desconfie do seu olhar. Não se identifique aqui (nem lá fora), é representação! Existem outros dedicados a “desiludir o palco”, como Oscar Wilde, Peter Weiss, Thornton Wilder, Paul Claudel. Há, por exemplo, um “jogo de molduras” na peça de Peter Weiss “A 53
Perseguição e o Assassinato de Jean Paul Marat Representada pelo Grupo de Atores do Hospício de Charenton sob a Direção do Marquês de Sade”: “Já com a natureza de seu título, ele nos dá a conhecer o duplo chão de seu jogo de molduras” (2001, p. 511). Jogo de molduras que gera estranhamento. O teatro no teatro oferece uma oportunidade de apresentar dramaturgicamente o familiar como estranho, empurrando-o para a distância, na acepção brechtiana, dando-lhe uma refração irônica, interpretando-o “epicamente” com o auxílio do diretor, locutor, narrador ou do coro (2001, p. 511).
Segundo Berthold, Wilder seria até mais rigoroso que Brecht quanto ao objetivo de “desiludir” o palco. Prefere um palco inteiramente despido de cenário, arranjando-se com uma mesa e algumas cadeiras que, como nos jogos infantis, servem de carros ou trens. O narrador explica a cena e os acontecimentos, apresenta as personagens co-atuantes e interpreta os incidentes episódicos da vida real, para revela-los como pequenas parábolas do grande curso de toda a existência (2001, p. 512).
Peças de Wilde como “Nossa Cidade e Por um Triz” são citadas para ilustrar estas afirmações. De Paul Claudel, “Cristóvão Colombo”, que traz a figura de um narrador ao lado do palco com um livro aberto, utiliza também projeção e canções em coro. Em “A Sapatilha de Cetim”, o autor utiliza-se de “pantominas, dança e esquetes, interlúdios alegóricos e filosóficos” (2001, p. 513). São procedimentos que percebemos hoje, contemporaneamente, invadindo a cena. A um passo do contemporâneo No teatro contemporâneo estamos na rasteira das reverberações dos tipos de arranjo citados, que instalaram modalidades variadas do que se pôde chamar de autonomia da poética teatral. Piscator, Artaud, Meyerhold, Grotowski, Brecht, Pirandello, Wilder e outros. O movimento de vanguarda americana com vocação para a experimentação; o Teatro do Absurdo; os grupos ativistas dos Anos 60; vanguardas do começo dos anos 20; os trabalhos de Craig; Coupeau; formam a base do que hoje se chama Pós-dramático (ou Teatro Contemporâneo). Passamos por Mnouchkine, Barba, Bausch, Kantor, Wilson até... cairmos nos anos 90. Na virada do Século XX para o XXI, Lehmann invadiu a cena e contaminou a pesquisa da história e da prática teatrais com o seu “Teatro Pósdramático”, enquanto Josette Feral propôs o resgate e aplicação, no campo teatral, do termo
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“performativo” 24. A problematização das pesquisas hoje se dá a partir do viés destas novas práxis (Teatro Pós-dramático ou Teatro Performativo), que procuram reler a história do Teatro de maneira a consolidá-lo como poética própria, autônoma em relação à presença da literatura, bebendo em produções onde as suas bases foram lançadas. No Brasil, tivemos uma série de rupturas para a instauração de um Teatro Moderno, que primaram pela encenação enquanto linguagem, como a montagem de “Vestido de Noiva” dirigida por Ziembinski na década de 40 (considerado o grande marco, com a sua abordagem expressionista e a valorização dos cortes, fragmentação, deformação e desenho abstrato da luz). Temos o Teatro Brasileiro de Comédia (com a experimentação e importação de autores, que possibilitou e fomentou o surgimento de uma dramaturgia nacional forte); o Teatro de Arena nos Anos 60 (com um teor político, entre o realismo e a retomada da paródia, da sátira, do absurdo, do deboche, jornal, distanciamento); temos o Teatro Oficina no final dos 60 e 70; e nos Anos 80, o Teatro “dos grandes diretores” (quando Antunes Filho e Gerald Thomas se juntam a José Celso Martinez Corrêa), na esteira do Teatro de Imagem de Bob Wilson; até chegarmos aos Anos 90, com a proliferação dos teatros de grupo de experimentação de linguagens. Hoje fazem parte deste panorama, no cenário nacional e mundial, grupos e autores que repetem, de uma maneira ou de outra, recursos estéticos fundados durante os movimentos das vanguardas no Século XX. Não se trata de cópia, mas de diálogo e apropriação de princípios e procedimentos de uma cultura cênica, em função de seus próprios propósitos. Como citamos no início, para além das resoluções estéticas específicas (como Piscator se valeu de diferentes arranjos) está um objetivo maior que implica uma ação sobre o mundo.
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O termo performativo foi inicialmente proposto por Austin para a Teoria da Linguagem.
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7. Realismo e vanguardas: uma tensão que faz mover
Na virada do século XIX para o XX surgem novas ciências: sociologia, antropologia, linguística, psicanálise. O homem é visto como um ser determinado culturalmente, socialmente, economicamente, psiquicamente. As superestruturas definem: pensamento, desejo, subjetividade. É preciso estudar através do teatro; expor as mazelas da sociedade, suas estruturas. O teatro, mais uma vez, encontra-se a serviço da construção do conhecimento, tal como acontecera no Iluminismo. Só que, desta vez, a ênfase não está na educação da classe média emergente. Expor os desfavorecidos faz parte do novo projeto cujo objetivo é chocar a burguesia: “A denuncia da ordem social assume cunho revolucionário (...) Tolstói, Górki, Gerhart, Hauptmann descem aos bairros dos oprimidos e humilhados” (BERTHOLD, 2010, p. 451). À questão política, vincula-se uma questão formal. Se no Iluminismo há verso e proza (com Voltaire e Diderot), o Naturalismo não permite acordo e Zola abre guerra contra o “patetismo convencional da declamação petrificada da Comédie Française” (2010, p. 452); se antes a burguesia se afirmava em comédias sentimentais, agora é atacada. O homem em crise. Crise que vai culminar na Primeira Grande Guerra. Guerra que vai por sua vez destituir o projeto naturalista de seu caráter revolucionário, abrindo espaço para as vanguardas. A linguagem coloquial, com o expressionismo se perde no grito; com o simbolismo se perde no som (é a música da fala que ganha valor): “(...) rompeu a linguagem corrente. Êxtase, confissão, protesto explodira, numa condensação frenética da linguagem, em dinâmicas estridentes do som; no grito” (2010, p. 475). O drama expressionista é uma resposta: “(...) denúncia da guerra e suas atrocidades” (2010, p. 475). Uma estética para certa ética. A cena é pictórica: “o palco utilizava todo o potencial de iluminação como um meio de encenação de luz, visualidade cênica, sinal tempestuoso da crise intelectual, emocional e política” (2010, p. 475). 56
No pós-guerra a sensação do absurdo se instaura, um esvaziamento do valor da palavra. O homem perde a fé na ciência. O Teatro do Absurdo tematiza a falta de sentido da linguagem. Por outro lado, “o espírito agressivo se transfere do texto para a encenação” (2010, p. 451) e o propósito de um teatro como transformador da sociedade se reconfigura: “Não quero retratar o mundo, mas muda-lo” diz Brecht – contra o Naturalismo. O teatro épico não vem para dissecar ou investigar a realidade, mas transformá-la. No Naturalismo, existiam dois princípios estabilizadores: a mimese da realidade e a noção de verdade. Seguindo-os, Zola se pôs contra as regras da tragédia clássica por lhe parecerem falsas e artificiais (e contra as “mentiras ridículas” das peças de Alexandre Dumas Filho). Mas, o que fora antes tratado como verdade, no momento seguinte, passa a véu a ser desvelado e alienação a ser superada. Brecht detona a empatia, revela os bastidores, comenta a cena, deixando explícita a realidade cênica contra a ilusão da realidade dramática. Na Russia, “o antiilusionismo de Meierhold não conhecia limites” (2010, p. 495). A verdadeira ruptura é histórica: “Com a Revolução Russa, o teatro assistiu a uma ruptura das mais radicais com a tradição” (2010, p. 495). O que nascera como um projeto político, articulado à ideia de provocação e agressão diante (também) de uma crise (Naturalismo), passa a ser tomado como a tradição com a qual se deve radicalmente romper: “Estava destinada a ter um efeito político numa época de sublevação, quando o palco tinha, como nunca antes, adquirido o direito de ser tópico e agressivo. O teatro naturalista deu o primeiro passo” (2010, p. 495). É importante dimensionar a novidade e o alcance da estética naturalista na época. “Antoine conseguiu mais com esta montagem do que todas as lutas e discussões políticas” (2010, p. 453). Aluno de Taine (com quem aprendeu os princípios do Naturalismo) e ex-figurante da Comédie Française, em 1887, em um quintal da Rua da Passage em Monmartre, Antoine fundou, com atores amadores, o “Teatro Livre”. A dramatização de “Jacques Damour” relato de Zola) foi o primeiro trabalho: “uma daquelas lâmpadas acesas por um gênio ou um maluco, e que um dia será fonte de um novo amanhecer” (2010, p. 453). Encenou autores “sem acesso aos grandes teatros” (Hauptmann, Ibsen, Strindberg, Tolstói na época) e também a primeira geração de naturalistas (Zola, Becque, Goncourt). Em Berlin, a associação teatral “Freie Büchne” (com Otto Brahm e um tributo a Ibsen com “Espectros”) foi criada aos moldes do “Teatro Livre”: “o naturalismo explode no palco alemão” (2010, p. 457). Atores recebem cartas de ameaça. Durante a cena de um trabalho de parto (onde gritos vinham dos bastidores), um médico na plateia se levanta “brandindo um par de fórceps sobre a cabeça” em meio a protestos e aplausos. Hauptmann torna-se “‘o verdadeiro capitão do bando negro dos realistas’, que mostra a vida como ela realmente é, em seu completo horror, que não acrescentava nada, mas tampouco nada subtraía, e merecia o elogio de ser um ‘Ibsen inteiramente desiludido’” (2010, p. 457). Bösche pede aos dramaturgos para terem coragem de “descer às áreas 57
mais sombrias da fome e da pobreza” (2010, p. 455). A luta contra o teatro comercial encontra aliado: “o impulso para o teatro naturalista originou-se no descontentamento crítico com os estereótipos do teatro comercial” (2010, p. 457). Hauptmann e Bösche na Alemanha; Elliot, Priestley, Wesker, Pinter, Bond, Shaw e Grein na Inglaterra,: “O pequeno teatro amador de J. T. Grein, de um dia para o outro tornou-se o centro das atenções” (2010, p. 457). A “Independent Theatre Society” queria “produzir peças avançadas para as quais os grandes teatros permaneciam fechados” (2010, p. 457). “Desviando-se da comédia da Restauração e favorecendo a cozinha e a alcova mostram a vida da classe média dominada pela política e pela resignação” (2010, p. 460). Em 1891, “em rejeição ao teatro comercial e dos astros, da peça de intriga e dos chamados pseudoibsentistas” (2010, p. 459), Shaw publica A Essência do Ibsenismo. Na Irlanda é fundada a Irish Nacional Theatre Society com devoção ao Realismo, onde despontava W. B. Yeats. O Realismo foi uma onda que se propagou, meteórica, ligada à “dramaturgia de acusação”. Mas, apesar de nascer sob a égide da denúncia e crítica social, foi destronado. Algo da forma realista não cabia no mundo que mudara? Ou estariam equivocadas as bases teóricas? O seu discurso fundamental? Realismo e Simbolismo se desenvolveram juntos com uma tensão que habitava a todos. Já em 1890, Paulo Fort volta-se contra o Teatro Livre de Antoine e funda o Teatro de Arte com Lugné-Poë, que diz: “Minha mente confusa oscilava do realismo ao simbolismo e em ambas as mangedouras encontrava pouco alimento” (2010, p. 466-467). Em 1891 o próprio Antoine se declara aberto ao simbolismo de Lugné-Poë. Apesar de recusar-se a montar Maeterlinck, encena, de Ibsen, textos simbolistas: Espectros e O Pato Selvagem. “Paris estava dividida pelo conflito de estilos” (2010, p. 469). Mas, se alguns sustentavam a divisão entre as duas escolas, outros fincavam pé sem perspectiva de negociação. Ubu Rei, a farsa de Alfred Jarry: “outra forma de atuação, entonação da voz e figurinos (que sepultaram a arcaica tradição realista no teatro)” (GLUSBERG, 2007, p. 12). É a marca a que todos se referem para destronar o Naturalismo do status anterior; marco do nascimento das vanguardas, “abrindo estrada do drama simbolista para o surrealista e o Teatro do Absurdo” (2007, p. 12). Artaud se inspira em Jarry. É com este nome que batiza o seu teatro. Lugné-Poë monta Ubu ao fundar o Teatro de Obra montando. “Em 1958 Jean Vilar redescobre Ubu montando-o com grotesco e agressivo jogo de máscaras” (2007, p. 12). São as bases do novo século: não mais o realismo, mas a “transfiguração poética”. A música de Debussy em Pelléas et Mélisande (de Maeterlinck); a coreografia de Nijinsky: a arte do palco deve sugerir outra realidade que não a aparente – seja com os movimentos de Duncan ou com o “turbilhão simbolista” do som e cor de Gabriele d’Annuzio (dramaturgo e poeta italiano), que “vivia da escura e sugestiva melodia da dicção de Eleonora Duse” (idem). Não o realismo, mas a cena interior: “Appia criou espaços para introduzir profundidade e distância; com pesados blocos, cubos e cunhas, 58
transformando-as nas largas superfícies daquilo que chamou ‘cena interior’” (BERTHOLD, 2010, pg. 470) – e com Dalcroze realizou “espaços rítmicos”, contrapontos ópticos ao conceito de direção eurrítmica, esforços de uma “luta pela transcendência metafísica” (2010, pg. 470). A primeira proposição de Coupeau foi manter o palco livre “de qualquer coisa que prejudicasse a presença física do ator” (2010, pg. 470): “O corpo humano está dispensado do empenho de procurar a impressão de realidade, porque ele próprio é realidade” (2010, pg. 470), diz ele. A frase parece ser uma chave para entender o discurso que embasa a construção antirrealista: a premissa de que o corpo é uma realidade. Mesmo de que a realidade é uma realidade (e não um discurso ou que se eximiria da mediação da linguagem para a sua apreensão, como se fosse imanência, inquestionável, concreta ou seja, natural, e não passasse pela mediação do homem ou pensamento que a captura). O corpo humano é dispensado de construir a impressão da realidade porque é realidade, diz Coupeau. No entanto, o efeito que fundamenta o “natural” em cena depende de uma construção para existir –tal como foi postulado por Diderot ainda no Século XVIII. Este é o “paradoxo do comediante”: a realidade não basta; é preciso construir um efeito de realidade (ou a visualidade da realidade não acontece e sim da representação). A realidade é um efeito: de linguagem (não é uma imanência). Antoine e Stanislavski faziam pesquisas com um cenário que garantisse o efeito de realidade ao púbico e atores (cenário este que Coupeau retira) – amadurecendo um estilo onde a cotidianidade está presente também nos corpos (construída). Paradoxalmente, em meio ao cenário realista de Antoine (com portas, janelas, troncos de árvore), a carne crua de “Os Açogueiros” acaba por gerar teatralidade. Com a “quarta parede” (o ator dá costas à plateia) a lei da perspectiva muda: não mais o efeito pictórico frontal mas a posição relativa dos atores, exigida pelo curso da ação” (2010, p. 454). Há uma objetividade tal da realidade cotidiana que, exposta, extrapola o próprio sentido de realidade, se tornando obscena, excessiva, teatral. A necessidade do Realismo de trazer o mundo concreto como mola propulsora da atuação em cena, traz também a perspectiva de que é o meio externo que define o que é um homem (real). A paixão pelos detalhes do mundo externo: detalhes que dariam a garantia do real do homem. Os simbolistas (cuja ênfase recai sobre o cunho espiritual) criticaram Stanislavski por admirar os detalhes do estilo realista dos Meiningen. E quando uma outra crítica também advém, já nos anos sessenta (a pena de Grotowski), a atmosfera da valorização do corpo (em detrimento da palavra) é preponderante: corpo-santo sem a mimese do cotidiano, sem a ilusão de realidade, que se sustenta como veículo do eixo de ligação com um invisível. Na crítica de Grotowski a Stanislavski, recorta-se outro aspecto do “fora”. O “vir de fora” (atribuído anteriormente ao cenário), é deslocado para o corpo: a ação física enquanto fora. O impulso deveria vir “de dentro” (do tecido do corpo-memória, um outro corpo, diferente do corpo mimético). Em detrimento de qualquer uma das duas críticas, 59
Stanislavski não deixou de enfatizar a representatividade do espírito ou “vida interior” (movimentos internos), valorizando a subjetividade, tal como o Simbolismo (apesar de, tal como Antoine, lançar mão da mimese “da realidade”). Sobre Czar Fiodor Ivanovitch encenado com NiemiróvitchDântchenco, diz Berthold: a força do espetáculo se concentrava na “projeção de estados de ânimo, pressentimentos, alusões, matizes de sentimento” (2010, p. 463). Vieram A Gaivota, Tio Vânia, As Três Irmãs, O Jardim das Cerejeiras. Tchékhov se tornava a “pedra de toque” do TAM e Com ele Stanislavski desenvolvia um “refinado estilo impressionista, com uma ilusão ótica e acústica” (idem); enquanto que, com Gorki, envereda pelo “drama de acusação e crítica social” (2010, p. 463): Realismo, segundo Berthold, “externo”: a “plasmação a partir da realidade”. Sanislavski levou seus atores ao mercado Khitrov, num subúrbio de Moscou, onde os vagabundos e marginais costumavam acoitar-se. Eles comeram com essa gente, e Olga Kinipper dividiu um quarto com uma prostituta, a fim de “aclimatar-se” no tipo de vida em que se dava o papel de Natasha. A plasmação a partir da realidade – “representar significa viver” (2010, pg. 470).
Percebe-se uma certa autonomia entre a perspectiva de mimese e a evocação de um “dentro” – que pode se dar ou não mesmo que a mimese aconteça. E pode também se dar ou não no caso da recusa da mimese. Conclui-se que se trata de uma outra visualidade, que se adensa ou não conforme é evocada pela cena. Percebe-se também como os discursos se misturam. Ora a defesa de um interno, ora a paixão revelada de um externo mimético no caso de Stanislavski. Dos simbolistas, recebe a crítica de “subestimar a capacidade da imaginação”, a ênfase não deveria estar na evocação de um contexto social, mas no jogo com a sonoridade da palavra e o desenho do corpo, que evocam imagens sem formar uma unidade mimética, sugerindo uma atmosfera de estranheza. A unidade é um ideário do Classicismo, que a arte moderna se encarregou de quebrar. Mallarmé era referencia e Valéry, para quem “a palavra precisava recuperar, da música, aquilo que lhe pertencia de direito” (2010, p. 466). A imaginação deveria estar livre para os saltos (e não determinada por um contexto único, ancorada na realidade). Aqui está um discurso que justificaria a fragmentação no pós-dramático. Poderíamos nos perguntar quando se voltou contra o Realismo e se há erro de premissa: partir da ideia de que a realidade é coesa. Se tomássemos a realidade como esfacelada, imagens sincopadas, o Realismo poderia se tornar uma das modalidades de um projeto que enaltece a fragmentação? O que é a unidade senão apenas uma imagem dentre outras capaz de articular-se? Uma curva que se articula aos fragmentos? Moldura? Esta imaginação, reivindicada pelos simbolistas, significava o “caminho ‘de dentro’, assim como os românticos haviam procurado pelo ‘caminho para dentro’” (2010, p. 466). Baudelaire falava da realidade como uma “floresta de símbolos”: “O visível era uma dispensa de imagens e símbolos” (2010, p. 466). A realidade, se 60
pudesse ser figurada por uma superfície, a ser recomposta e recortada, de maneira a servir como campo de extração para fragmentos que assumem certo valor (na teoria de Baudelaire) de símbolos, mudaria algo em relação ao projeto realista? Seria destronado ou apenas mais uma modalidade (diferente entre outras) de vanguarda? Mas poesia e música são considerados pilares contra uma mimese da realidade, retrato, objetividade. A afirmação destas diferenças alimentava a tensão entre os dois polos – formando um vão, onde os autores dançavam: “Tchékhov, na fronteira entre o naturalismo e o simbolismo, reconhecia o perigo, para a arte e para a vida, representado pelo escapismo para o leito dissoluto dos sonhos, de uma jornada para o nada dos estados emocionais, no qual o Tintagiles de Maeterlinck se perde” (2010, p. 466). Os relatos de Stanislavski publicados a partir de 1934 não fazem jus à crítica à falta de imaginação, dado o teor testemunhado de seu enaltecimento. As críticas de Brecht à identificação são melhor fundamentadas. A oposição à identificação com o indivíduo cujo conflito o espectador acompanha (o personagem) está também em Meyerhold e Craig (com o seu Supermarionete): era necessário construir um corpo pensado como grafia. “Em seus desenhos, ele tratava as figuras no palco e seus movimentos como correspondentes do todo gráfico” (2010, p. 470) – e não natural ou mimético. Grafia, linha, gesto limpo, fizeram parte do ideário da composição simbolista (Craig o chamou “gesto justo”). Fascinava-o “converter linhas patéticas e místicas sobre o destino humano em luz e espaço, para espiritualizar o realismo cênico” (2010, p. 471) – ora com cortinas coloridas, ora com feixes de luz (que se tornariam um traço do teatro expressionista); com seus biombos, que “emprestavam a luz aberturas cambiantes” (2010, p. 471); máscara, objeto que “poderia pretender vestir-se de uma beleza cadavérica exalando ao mesmo tempo um espírito de vida” (2010, p. 471). Parece ter sido a representação mais lúcida do que pretendia para o seu Supermarionete. Na Russia, invade-se a realidade, que paradoxalmente se configura como modalidade de quebra da ilusão da realidade; quebra da unidade. A questão que se abre é colocar o povo na cena. Abre-se a tribuna. O espectador comenta a ação. Meyerhold declara que “o objetivo do teatro não é ‘apresentar uma obra de arte acabada, mas tornar o espectador co-criador do drama’”. Para a ruptura da identificação, Meyerhold cria a biomecânica. A sua visualidade lembra o ballet moderno, com os vetores e oposições dos movimentos dos membros, as torções do tronco, quedas, as explosões. A biomecânica dialoga com as danças orientais, africanas e com o charleston nos EUA. Os atores treinavam as coreografias. “A dinâmica da máquina, a mecanização da vida, o princípio funcional do autômato” de Craig está também em Meyerhold: “Para o ator isso significava um staccato de montagens verbais acusticamente condicionadas, um movimento de marionete elevado ao nível acrobático e a redução da própria pessoa a uma engrenagem bem azeitada do ‘teatro sintético’” (2010, p. 471). Algo como desumanização, desubjetivação, é enaltecido – em oposição ao “antigo 61
humanismo burguês” de Stanislavski. É possível observar o princípio da absorção dos movimentos da Biomecânica através das imagens de O Inspetor Geral de 1926: o ator parece realmente um boneco; o trabalho do coro traz a visualidade de um grupo de bonecos agindo juntos. Meyerhold investia na técnica, pois acreditava que “a ideologia se afirma em obra de arte somente quando está acompanhada de um elevado nível de tecnologia (técnica)” (MEYERHOLD, 1992, p. 283). Assim, “a biomecânica pressupunha a presença de uma ideologia que a sustentasse por referências históricas, estéticas e filosóficas” (GRIGOLO, 2007, p. 40). Ele pedia aos atores para estudarem os quadros de Callor, Goya (Os Caprichos) e Daumier para “abrir a imaginação” e investia na atmosfera de estranheza, pois assim conseguia quebrar a identificação. Para o cenário, investiu em Tatlin e Kandinsky. Tatlin assinou o cenário de “As Auroras” (1920), com formas geométricas, semicírculos, cubos, cones e um triângulo de lata no alto do palco com uma grande asa dobrada. Os atores ficavam dispostos nas escadarias (que desciam do palco à plateia) e no fosso, extrapolando a área da cena. Quando montou A Casa de Bonecas de Ibsen, adicionou o subtítulo Como uma Mulher Preferiu a Independência e o Trabalho ao Veneno da Familia Burguesa. O cenário, de entulho, gerava um efeito de ironia e estranhamento quando Helmer falava de “sua confortável sala com lareira”. Por ocasião de O Corno Magnífico, de 1922 escreve: “a bufonaria é revolucionária” – defendendo os bufões, o teatro de rua, as acrobacias, os números de palhaço, a pretrushka (teatro de marionetes russo), a Commedia dell’arte. A obra de Meyerhold dialoga com o futurismo de Marinetti, que postulava “cantar o amor ao perigo, o hábito pela energia e pelo destemor, e exaltar a ação agressiva, a insônia febril, o passo dos corredores, o salto mortal e a potência de uma bofetada” (GLUSBERG, 2007, p. 12). Mas a sua ironia, paródia, abstração, não serviam ao partido comunista, que determinara o Realismo Socialista a sua estética. Em 1938 fecharam o seu teatro, considerado um desvio dos propósitos da Revolução e em 1940 Meyerhold foi condenado e decapitado. Foi proibida a circulação de suas publicações na Russia até 1955; apenas em 1968 parte delas é publicada. Pode-se dizer que são duas as vertentes do Naturalismo: um teatro influenciado pela sociologia “revela fria e imparcialmente os loci da crise através da pesquisa científica” (2010, p. 452) – e o outro influenciado pela psicanálise. A obra de Freud e o postulado de que o Homem é determinado por pulsões (trieb) advindas do inconsciente trazem, para a cena teatral, a valorização de espécie de território escondido, “dentro” que também está na literatura. Tolstói e Dostoiévski, com as suas narrativas cheias de descrições de estados psíquicos e os realistas franceses Balzac, Flaubert e Stendhal são seus representantes. Já para Arno Holz, a fantasia deveria ser banida. Neste caso, o Naturalismo está em radical oposição ao Romantismo – como fantasia e arrebatamento (e presença de algo que se move no “dentro” que o Simbolismo vai novamente valorizar). A História nos desafia a construir uma linearidade e uma sucessão dos movimentos. Na medida em que algo é 62
institucionalizado, logo é destituído do seu lugar de novo, perdendo seu status. Por outro lado, tratase de rupturas e oposições cujos elementos circulam (vão e voltam) e de tensões dentro do mesmo tempo histórico (ou de um mesmo movimento estético). Se existem tensões e profundas diferenças dentro do mesmo movimento e mesmo tempo histórico, como as estéticas conseguem se organizar em torno de algo que as valida como tal? Existe um arsenal teórico fundamental que as sustenta, por exemplo, a realidade como verdade ou a realidade como velamento. O que muda, arriscaríamos, são os seus discursos. São estes que, assolapados pela falência do seu antecessor, sustentam um novo pensamento estético – e então novos projetos passam a vingar em sua diferença discursiva (e sua variante cênica, pois são muitas as diferenças). O que uniu as vanguardas foi o discurso antimimético e anti-realista. Pode-se dizer que o que operou na falência do Realismo foi a ideia de realidade, que mudou. Esta passou a véu que esconde uma verdade – ao invés da verdade a ser investigada (dos naturalistas ligados a Zola). As vanguardas estabeleceram que a poética cênica precisa ir além da denotação da realidade mimética – o que amedrontava a burguesia ou qualquer instância de poder: era algo vago, impreciso e de cunho espiritualizante no caso do Simbolismo; a alusão à morte ou ao pesadelo, a denúncia da desumanização, no caso do Expressionismo; o jogo entre o claro e escuro, que recorta uma imagem e lhe retira a unidade. O cênico aponta as sombras; o que não se pode ver através do véu da realidade mesmo ao utilizar-se, tal como Meyerhold, da tribuna e coletividade massificada, junto à gozação, paródia, abstração, teatralidade. São elementos que aparecem no teatro engajado quando se descompromete do natural ou da verossimilhança. A poética da festa e da feira se estabelece também como um distanciamento. As vanguardas aparecem como poéticas da reinvenção de arranjos entre visualidades que se chocam. Percebe-se tendências opostas também dentro das vanguardas, pois são múltiplas as possibilidades. Mas todas apontam a um mais além que não é a estabilidade e clareza do mimetismo. Há algo de obscuro e sem saída que chama ao espectador a necessidade de uma resposta. Esta ode à responsabilidade do sujeito sobre o que vê, a responsabilidade do seu próprio olhar e pensamento quando se está mais além da claridade de uma imagem unificada que se pode investigar e chamar de verdade.
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8. A teatralidade como um choque entre visualidades
No desenrolar da cena teatral no Século XX nos deparamos com uma clássica oposição. Por um lado, temos uma plasticidade estranhada. Uma plasticidade que se encontra, em projetos estéticos diversos, sustentada por materiais diferentes: seja uma forte presença da abstração, uma poética da precisão, o extracotidiano, experimentos com a sonoridade ou uma poética da dijunção quando a palavra evoca algo que não se articula ao que o corpo evoca (como muitas vezes faz Bob Wilson). De uma forma ou outra, são projetos que articulam um discurso anti-realista; contra a visualidade de uma suposta realidade que estaria representada (ou mimetizada quando circunscrita a ações por sua vez evocadas por um texto dramático), apesar de implicar operações de extração e montagem. Queremos trabalhar uma perspectiva da fragmentação desta visualidade, a fim de tomá-la como material no jogo do que seria teatral. Por exemplo, o que se chamou de “resignificação de um objeto”: um procedimento comum, utilizado para a criação de uma poética cênica. O seu efeito estaria na diferença entre a visualidade de um contexto e de outro; entre a visualidade do contexto onde o objeto estava inscrito e a visualidade das relações que a cena evoca, de maneira a inscrevê-lo em um lugar que não é o dele. Uma vassoura quando enquadrada na visualidade de certa relação é um homem. Poderíamos dizer que a visualidade da relação com o homem enquadra o objeto vassoura. O objeto é extraído da visualidade de uma realidade e posto na visualidade de uma relação, que o enquadra como outra coisa, causando um efeito de teatralidade. Esta é a hipótese: a realidade como superfície (visual) da qual se extrai pedaços. Objetos, fatos, imagens são passíveis de extração e enquadramento ao se inscreverem na visualidade da cena, que por sua vez está bordeada por um olhar e constituída por ele. Efeitos de teatralidade poderiam advir também da abstração de um desenho que oferece ao corpo o estatuto de extracotidiano, quando em choque com o olhar do espectador, que tenta 64
enquadrá-lo na visualidade de ações. Por um instante, se consegue produzir um enquadramento para o abstrato, mas este se dilui; não se sustenta por muito tempo nos desdobramentos do eixo horizontal da cena. Vemos isto nos espetáculos de Pina Bausch, por exemplo. Um flash, um fragmento da visualidade de uma situação que se dilui. Seriam as tentativas de enquadre pelo espectador que provocam o efeito de teatralidade. Isto na medida em que o encaixe é sempre inapropriado, pois a plasticidade corporal está para além da ação com a qual o espectador tenta enquadrá-la. Visualidades são relativamente autônomas e podem ser recortadas, para se por, lado a lado, por contraste ou diluição, gerando efeitos de teatralidade. Relações inscritas na visualidade de uma realidade só se sustentariam enquanto desmembradas, para se unir a outras no olhar. De maneira que uma realidade sem fissuras, inteiriça e tomada enquanto fato a ser representado não seria possível. Mas os Naturalistas queriam o teatro como uma prova, como garantia de uma verdade supostamente científica e reproduzível sobre a realidade. Apesar disto, não escaparam dos efeitos da teatralidade quando, por exemplo, um Antoine coloca carne na cena. E no trabalho do ator? Na atuação realista? Poderíamos dizer também que, apesar de não se investir numa poética do desenho, da precisão ou da abstração, implicaria o choque? A visualidade de uma atuação realista implica certos significantes, como: imprecisão, intimidade, cotidianidade (um corpo ordinário, apesar dos traços particulares). Seria este corpo, que não imprime a plasticidade de um tratamento extracotidiano capaz de evocar efeitos de teatralidade quando participa de um jogo de enquadramento? No cinema, muitas vezes, a atuação realista depende de uma diluição da visualidade do ato de representar. O “como se fosse” (realidade) é determinante e o ator não pode participar do jogo como nota dissonante. Ele precisa se misturar à visualidade da diegese. Qualquer técnica é disfarçada, qualquer visualidade do ato de representar é mal visto. O que muitas vezes se estranha é o enquadramento cinematográfico, que pode denunciar a plasticidade de um olhar da câmera (e também do espectador). Já o ator é objeto banalizado no discurso fílmico. Como se partíssemos de cores pálidas para pouco a pouco despontar as fissuras, brechas de desarmonia (um estranhamento desponta no horizonte quando tudo parece normal). Acredito em uma possível retomada da inscrição de uma cotidianidade do corpo na cena teatral, de maneira que se choque com as imagens evocadas por palavras de um texto dramático, implicando a visualidade do olhar (do espectador e do próprio ator) para o que não se adéqua; o que escapa do enquadramento oferecido pelas ações; um diferente, que o ator encena e desponta quando algo impregnado na tessitura corporal ganha luz: a luz do olhar que o observa (e que se choca). Na atuação realista o “como se fosse” não estaria bem próximo de fazer vacilar uma realidade quando se trata de ocupar o seu lugar? Substituída no dispositivo, tratada pela cena que a 65
coloca em perspectiva. Não se trata da deformação ou da violência, da abstração ou do ritual, do objeto enquadrado como outra coisa; não se trata do extracotidiano de Meyherold, Brecht, Appia, Grotowski, Simbolistas, Barba ou Decroux. Conta-se com a visualidade enigmática de um pensamento que aparece como estranho quando inscrito em um corpo que se dilui na visualidade da diegese. No cinema, Bazin postulou que uma “verdade” poderia ser revelada através do plano sequencia. As ações deveriam ser capturadas no tempo real para que uma espécie de brilho aparecesse: algo impossível de se ver a olho nu, mas que a película imprime. Segundo ele, não deveria haver montagem para não falsear aquele instante. No entanto, a montagem se estabelece quando se trata do que se pode e do que não se pode ver, já que houve a extração de um pedaço. A continuidade do olhar é limitadada pelas bordas de um enquadramento cinematográfico. Este brilho que Bazin queria não seria o brilho do olhar do espectador cuja visualidade é de repente capturada pelo recorte cinematográfico? Tal como se daria na cena teatral: o enquadramento do olhar se torna evidente. O Naturalismo no teatro buscava revelar uma verdade sobre a vida: mostra-la sem falsear. As ferramentas clássicas pareciam-lhe falsas, pois a unidade de tempo e ação não seria própria da realidade. O compromisso estava no registro, no documento. No entanto, forja-se uma espécie de estética da crueza – sem aquela frontalidade dos gestos, grandiloquentes, com os quais os atores evidenciavam a visualidade da sua relação com a plateia. Busca-se diluir a presença do espectador, que passa a olhar através de uma quarta parede transparente e se torna voyeur (ou cientista). O realismo esconde a visualidade do olhar do espectador, que não pode interferir para que a verdade se revele. Muito próximo ao que Bazin propõe na sua apologia ao plano sequencia. A intenção do projeto naturalista de trazer a realidade à cena, por um lado implica o choque entre pedaços (como a carne) diante de uma recomposição. Por outro, implica o choque entre o que se esconde e o que é mostrado. Uma verdade das relações sociais passa a ser olhada e a suposta aparência (ou a superficialidade que estaria ofuscando esta verdade). Trata-se de colocá-la fora: fora do olhar. A noção de desvelamento implica choque entre visualidades. A visualidade da aparência ofusca e o que é revelado e nada mais é senão outra imagem. Um teatro realista, que implicaria a mimese, torna-se uma espécie de signo de um paradigma que desmoronou: a inteireza da realidade. Assim, no decorrer do século XX, o discurso anti-realista validou diferentes projetos estéticos. E a teoria do pós-dramático, um dos pilares da cena contemporânea, veio a contribuir para a estruturação de um campo conceitual para uma poética cênica que se recusa à representação do suposto universo fechado oferecido por um texto dramático. No entanto, podemos abrir a perspectiva 66
de um caráter fragmentado deste suposto universo inteiriço. Não se trata somente de substituir os termos: representação por visualidade. Mas de inscrever o dramático em outro discurso. No século XX, a fragmentação, a ruptura, o estranhamento, foram definitivos para a oposição à representação deste suposto universo fechado (que um texto dramático evocaria, com personagens, diálogos e situação). Seria preciso criar outros discursos que sustentem a fragmentação como princípio também do dramático? Como estrutural para os efeitos da teatralidade independente da modalidade do jogo? Evocar uma visualidade familiar (de uma realidade) não seria explorar o estranhamento do olhar sobre ela? Não se poderia explorar o choque da visualidade deste olhar que constrói um enquadramento e gera efeitos por implicar a inadequação? Não se produz algo de estranho, advindo da inadequação de uma escrita cênica à visualidade evocada pelas palavras do texto? Como se o estranhamento fosse destino, fosse estrutura, qualidade inerente da poética cênica? O discurso contra o figurativo, a representação ou a mimese, ao se instalar no senso comum, torna-se passível de desconfiança. Quando a palavra de ordem passa a ser não-drama, não-mimese, não-representação, não-sentido, os termos geram consequência. Nós que estamos próximos à pesquisa prática na academia, talvez possamos perceber o quanto a apologia a certa imanência do objeto, muitas vezes, nos impede de encenar (a apologia ao objeto que não representa, não significa, não determina o olhar e seria sensorial, aberto). Mas, ao contrário, poderia haver no dramático, mesmo com o sentido da ação implicado, uma singularidade do enquadre oferecido pelo espectador? Não seria este olhar que oferece à cena o seu estatuto? Mesmo que engendre imagens articulando ações com a visualidade da diegese? Visualidade que implica o fragmento, pois, mais que circunscrita a uma série de associações (que evocam o que se convencionou chamar universo fechado), a imagem da ação é apenas uma das coisas que o espectador olha. Outras visualidades implicam uma rede de fragmentos dispersos que ele junta. Quando o pós-dramático defende que não se pode juntar, que a dijunção é a lei, trata-se de produzir poética. No entanto, isto pode ser tomado como uma estrutura da cena e não como um fundamento para a posição anti-dramática. Reconhecemos que a operação que advém do pósdramático não é fora do sentido: há enquadramento. Ao mesmo tempo em que, no dramático, o enquadramento pode se romper (conforme o que o discurso cênico evoca de novo e o que o espectador produz). Também pode se romper quando se choca com a poética da cena, que conta com um corpo. O choque entre o que estaria fora das bordas desde corpo e o que é evocado como dentro (o pensamento) implica efeito de teatralidade. Não basta inscrever a cotidianidade; é preciso inscrever o pensamento, que se torna enigmático e passa por sucessivas tentativas de enquadre por parte do espectador. 67
A teoria do pós-dramático trouxe categorias para uma modalidade de análise que se concentrava na teoria da significação e em uma abordagem semiótica. Agora, trazendo para o debate as categorias da visualidade e enquadramento, não seria o caso de percebermos que uma representação só existe em função de uma bateria de significantes específica, e que engendra associações particulares para cada sujeito a partir do choque com visualidades complexas e dissonantes? Em certo momento, em palestra de Feral na Universidade de São Paulo, escutei que o conceito de arte está morto. Seria o caso de utilizar-se da noção de poética? Para Jakobson o discurso poético é aquele que faz vacilar a referência: “A supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua” (JAKOBSON, 2007, p. 100). Haveria uma poética que, implicando a visualidade da realidade a faz vacilar? Talvez a cotidianidade do corpo articulada à visualidade do pensamento (implicada no projeto de atuação realista) somente ao fazer vacilar aquilo que representa (um indivíduo) alcançaria o estatuto de poético. Nas seguidas críticas ao realismo encontramos um alvo: o ator, que ofuscaria as outras visualidades graças a sua compulsão pelo exagero. O pós-dramático o eximiu desta culpa quando enquadrou o seu excesso como plasticidade da cena. Mas na atuação realista, a exacerbação da plasticidade corporal pode ofuscar outras visualidades: da ação e do pensamento. Seria melhor ser simples, em um corpo cotidiano enquadrado por ações que palavras evocam. Esta tríade “pensamento, cotidiano e ação” seria como que um arranjo para certo tipo de atuação, articulando significantes como comum e humano. Do choque da visualidade do olhar sobre o corpo ordinário, sujo, impreciso e impregnado de pessoalidade do ator, se extrai um resto (que produz poética por não encontrar lugar, fazendo vacilar “a referência” como diz Jakobson)? Referência que não é mais que certa visualidade? Mas, será que para além dos objetos estéticos, não estaria implicada uma ética da edificação de um saber sobre o sujeito? Categorias como fragmentação, diferença, deslizamento, descentramento, presença. Como se a cena pós-dramática servisse à teoria do sujeito contemporâneo. Será que não seria preciso construir o discurso do dramático que articule as questões do sujeito? Fundamentar a cena como uma reverberação de um saber. Segundo Lacan, se enlaçar a um discurso é um ato. Um ato no sentido de que não é mais possível voltar atrás. Talvez o enlaçamento no discurso contemporâneo implique que não se possa mais voltar ao discurso da representação do qual o dramático foi feito signo. Não seria a fidelização ao sujeito contemporâneo que inscreve a poética pós-dramática em uma perspectiva históricodesenvolvimentista – como se estivesse à frente de outras? 68
Trata-se aqui de implicar a obra como racionalidade. Ela porta uma razão. Não de ser, justificada quando se articula à edificação discursiva. Mas ela porta um saber (ou um saber que não se sabe, como diz Lacan). Por que a poética dramática foi destituída do saber sobre o sujeito? Porque o sujeito não é um indivíduo inteiro dedicado a relações intersubjetivas. É como se, ao colocar em questão o indivíduo, ela se eximisse do propósito de falar de um sujeito: não inteiro, fragmentado, dividido, descentrado, estranhado, sem lugar, que apareceria na tessitura pós-dramática (na própria forma da sua tessitura). Qual seria a ética do dramático? Talvez, fazer vacilar. E fazer vacilar justamente a visualidade do indivíduo, na medida em que isto alucina, que é pura visualidade – e se choca com o olhar que a enquadra, colocando-a, também, em questão. A ética do pós-dramático, que implica predominantemente uma recusa de um universo fechado (onde os indivíduos estão implicados em relações intersubjetivas a serem representadas) – e que se solidifica em oposição ao dramático – ironicamente deslocou a relação intersubjetiva o espectador, trazendo o conflito para o eixo extraficcional: chocar o espectador; colocá-lo em questão, colocar a visualidade de suas identificações em questão, mostrar-lhe o processo de construção da obra, etc. A performatividade como oposta à representação, na qual o drama estaria implicado: esta é a tese consolidada contemporaneamente. Não cabe aqui realizar uma digressão para mapear suas origens e problematiza-la. Basta testemunhar que novos pesquisadores a assumem como discurso. Ou seja, é uma tese que vem sendo desdobrada nas pesquisas contemporâneas. O teatro tradicional trabalha com a ideia de manutenção de um universo fictício fechado. É um tipo de representação cênica com uma realidade emoldurada, encerrada em leis próprias e com uma lógica interna entre os elementos. Esse enquadramento fictício ignora a ideia de que o teatro é um "processo in actu". O teatro tem como especificidade o fato de que é a um só tempo processo material e signo, prática real e significante. Os produtos materiais da cultura são usados como signos estéticos no teatro, e isto é o que torna possível um "para além da interpretação" e a "estética da irrupção do real" A partir dos anos 70, diversas manifestações da arte teatral empreenderam uma revolução na "representação dramática imitativa" e propuseram um teatro para além dos limites do significado, da cópia e do ordenamento centrado no logos. O novo teatro não é mais visto como lugar do simulacro, da ilustração da ação, da duplicação de outra realidade; nele, "o real passa a ter o mesmo valor do fictício" (BOND, 2010, p. 01).
Tal como se encontra inscrito neste discurso (de acordo com a tese de que representa um universo fechado através da mimese), o dramático é um desvalor. Situado como superado, ele deixa de ser problematizado, ficando a encargo de um mercado que o banaliza, quando apenas repete padrões (sem a reflexão que determina a montagem teatral como uma práxis). O que, para nós, apenas reafirma a necessidade de uma nova teoria do drama, a fim de articulá-lo a um discurso que o apresente como um campo de debate das questões do sujeito contemporâneo (como acontece com o 69
pós-dramático), o retirando do âmbito das significações e o inserindo como uma das modalidades possíveis do choque entre visualidades. Acredito que certa racionalidade da arte porta implicações do saber sobre o sujeito; e que esta poética que nos antecede (a cênica) articula este saber e implica, tanto no artista quanto no espectador, a pulsão do saber. Uma pulsão que, sendo pulsão é corpo. Acredito que o estranhamento da alucinação da visualidade de um cotidiano mimético (evocada com o drama intersubjetivo), deixe escapar a evidência do olhar que a enquadra – apontando para as bordas de um quadro, na medida em que, para além dele, tem apenas o vazio. Vazio que a imagem tampona e que o jogo poético faz vacilar quando trabalha na chave do “como se” (fosse real). A teatralidade evidencia que não é. E no realismo, esta deve advir de cada imagem que se evoca e choca com a outra, por fim rompendo, perfurando as bordas de um enquadre que insiste em ser báscula – em balizar certa estabilidade (certas determinações com as quais se está acostumado, mas que não se sustentam, por estarem fora do campo da poética). Talvez, ao invés de dividir o campo teatral entre dramático e pós-dramático, poderíamos dividi-lo entre o poético e aquele que não conseguiu este estatuto. Mas isto não seria eximir-se de uma perspectiva histórica da encenação? Afinal o que é poético em cada momento histórico? De qualquer maneira, cada momento implica um discurso para validar o que é poético. O pós-dramático implica um campo no discurso. E não é mais possível dele se afastar. Parece que ele dá a voz a uma espécie de sem lugar do sujeito, quando este é especularizado como fragmentação. O discurso da multiplicidade e fragmentação valida uma não articulação da qual o efeito de sujeito depende. De forma a tentar fugir da inteireza das relações de sentido. No entanto, se cai na inteireza de relações imaginárias nas quais o espectador (este que se pretende provocar, chocar) faz parte: um indivíduo em risco. Leia-se “drama”, pois, acaso não se deixa transparecer a posição dramática em que o espectador se encontra? Cabe ao teatro o papel de, por meio de uma estética do risco, lidar com afetos extremos, que sempre incluem a possibilidade da dolorosa quebra do tabu. Essa quebra ocorre quando os espectadores são expostos ao problema de reagir àquilo que se passa diante deles de modo que não mais exista a distância segura que parece garantir a diferença estética entre a sala e o palco. Justamente essa realidade do teatro, o fato que ele pode brincar com tais limites, o predestina a atos e ações nos quais não se formula uma realidade “ética” ou mesmo uma tese ética; antes, surge uma situação na qual o espectador é confrontado com o medo abissal, com a vergonha e também com a irrupção da agressividade (LEHMANN, 1999, p. 427).
Talvez exista também no dramático um caminho de fazer vacilar aquele que olha: potencializando choques entre as visualidades que este produz para evidenciar o que há de fragmento na suposta unidade do mundo representado. Afinal, não se pode tomar o funcionamento da 70
linguagem (a fragmentação e os deslizamentos do significante) desarticulando-a da unicidade de uma imagem que vela o vazio que por trás se insinua, seja no campo do “como se (o ator fosse o personagem)” ou no drama do “é” (o espectador) do pós-dramático. Como se com a sucessão de choques, em certo instante, quase sem querer, a imagem se quebrasse e revelasse que por trás há um espaço de ausência.
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PARTE III INTERROGANDO O ARRANJO DRAMÁTICO-REALISTA: POR UM TEATRO PERFORMATIVO
9. Performando a teatralidade no jogo de enquadramentos, repensando a tessitura do dramático
A plasticidade da cena e poética corporal autônomas (em detrimento da linguagem) são atribuídas, em grande parte, a Artaud. No entanto, pode-se postular que Artaud queria para o corpo eum estatuto de linguagem; ou seja, da fragmentação (que, com a palavra, se testemunha) produzindo um efeito do que escapa a sua leitura e interpretação – propriamente o efeito poético (se pensarmos na poética como “figuração do objeto a”, apontando para o espaço de suspensão da linguagem, vazio, de fissura, silêncio). 25 O conceito de objeto a nos ajuda a assumir uma concepção contemporânea de poética cênica, sem, no entanto, excluir o dramático – tomando-o também como modalidade possível, inclusive apontando o que existe de performativo (e metonímico) em sua construção. O termo objeto a é conceituado por Lacan como “objeto sem imagem” e utilizado por autores de orientação lacaniana para determinar o estatuto da poética enquanto tal. A arte aparece como “figuração deste objeto a”, implicando um lugar de falha da linguagem, ausência, silêncio. A arte aponta para a borda, um limite das formas, revelando o aspecto aberto da obra – que, estruturalmente, permite uma série de interpretações e deslizamentos do sentido. Artaud não lutava exatamente contra o uso da fala (apesar de seu projeto o ter preconizado), mas contra uma palavra que estaria ao nível da comunicação. Ele diz: “(...) uma vez que o sentido 25
Proposto por Lacan e utilizando por outros autores de orientação lacaniana, como Christian Dunker para uma Filosofia da Arte, o objeto a é um objeto sem imagem cuja figuração determina o estatuto da obra como tal. Dunker organiza como figura do objeto a: a anamorfose, a deformação, o estranhamento, a despersonalização, a problematização dos limites da forma. Ver em: DUNKER, Christian. A Imagem entre o Olho e o Olhar. In: Sobre Arte e Psicanálise. São Paulo, Ed. Escuta, 2006, v.1, p 14-29.
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claro não é tudo, mas sim a música da palavra, que fala diretamente ao inconsciente” (Artaud, 1999, p.140). Percebe-se que Artaud confere ao corpo um estatuto de linguagem, denotando a sua condição de despedaçamento: o corpo como algo que se pode fragmentar e refazer, remontar. “(...) verão meu corpo atual / voar em pedaços / e se juntar sob dez mil aspectos notórios / um novo corpo” 26, diz na transmissão radiofônica “Para Acabar com o Juízo de Deus”. A fragmentação é propriamente o que se pode testemunhar na fala: um encadeamento de fonemas, que se arrebenta e refaz, provocando-se efeitos de suspensão, apontando-se para um espaço dede fissura e silêncio – propriamente o efeito poético. Artaud queria um engajamento corporal do espectador no ato cênico. Assim, tornaram-no precursor do teatro performativo. Artaud preconizava outras modalidades de enquadramento para a ação cênica – advindos do jogo com o som, a luz, os espaços e uma densidade corporal que deveria ser dotada de poderes mágicos, atingindo “regiões ricas e fecundas da sensibilidade”. O seu alvo era propriamente um “teatro psicológico”, ou seja, a palavra evocando o drama do indivíduo com a clareza da visualidade de um universo diegético. A questão é como demonstrar o que há de performativo também no trabalho da cena com o texto dramático, desveiculando-o de uma ideia de representação. Mesmo que, em certa medida, trabalhe-se com a linearidade e a mimese, seria possível que o seu “jogo de enquadramentos” implique este “a” – e a performatividade do olhar nos deslocamentos metonímicos seja engendrada quando o espectador se depara com o gesto (da obra) apontando para as bordas de de uma “nãoforma”, objeto sem imagem, não inscrição significante. Ao apontar para o funcionamento da poética cênica como uma sucessão de movimentos metonímicos, Ferál se refere, especialmente, às obras performativas ou ao que chamamos, com Lehmann, Teatro Pós-Dramático. Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instá- veis, fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma refe- rência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimé- tica. O performer instala a ambigüidade de sig- nificações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem (FERAL, 2008, p. 203-204)
Se a questão é demonstrar que a performatividade do olhar também pode estar situada no trabalho da cena com o texto dramático, é preciso abrir mão do conceito de representação. Assim, propomos o “jogo de enquadramento” em suplência à noção de “signo”, exatamente para 26
Trecho retirado de transmissão radiofônica intitulada "PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS" - realizada por Artaud junto a Roger Blin, Marie Cesarès e Paule Thévenin em 1948. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gYe3Fjmen0o (Acesso em 09/06/2019). Tradução nossa.
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postularmos a ação diegética como uma forma de enquadramento (e não de signo). Esta função (enquadramento) diz respeito ao que tem bordas e oferece limites. A referencia primeira é o enquadramento cinematográfico, que estabelece limites para tudo o que está situado dentro dele. Da mesma maneira, o desenho corporal, com a sua plasticidade (capacidade de transformação) também é um enquadramento (por implicar limites para os efeitos de incidência, afecção que se passa dentro de suas bordas). E também a visualidade 27 da diegese (dramática ou épica) que, com as suas bordas, circunscreve as relações entre personagens (que, por sua vez, ganham sentido dentro dos seus limites). Assim, temos diferentes modalidades de enquadramento e um jogo de diferenças e defasagens entre eles. Também o olhar do espectador se revela como um enquadramento, pois, com seus limites e bordas (com os limites e bordas da visualidade do seu próprio mundo), situa (enquadra) a obra. Segundo Lehmann, a função do Teatro Pós-dramático seria provocar outras percepções no espectador (o que se configura como ato político), provocando-o, desafiando-o e, até mesmo, agredindo-o, constrangendo-o. Lehmann articula a performance ao terrorismo – devido a sua vocação de interferir na realidade social. Outra modalidade de “cena performativa” é quando o contexto de produção da obra é colocado em questão. Percebe-se variantes no sentido da palavra “performativo”, também utilizada como interferência nas relações entre palco e plateia. Pode-se pensar o performativo a partir de três vertentes, portanto: a.) o que coloca em questão a relação espectador-cena; b.) o que coloca em questão o ato vivo (em detrimento do ato de representação); c.) o que, como figura do objeto a, escapa à linguagem e resiste aos efeitos de significação, promovendo certa opacidade e o deslizamento do sentido através de um processo metonímico. Pavis aponta para uma perspectiva de mistura do que pode ser performativo e o que é encenação. Tomando como encenação um sistema de efeitos de significação mais ou menos sob o controle do encenador, como uma obra relativamente fechada, ele chega a forjar o termo performise para um leque de variações entre um extremo e outro (o que seria performance “pura” e o que seria encenação “pura”). Digamos que, ao “escutarmos” uma cena, a escutamos de diferentes maneiras: isto é estrutural. É claro que eu posso associar “coisas” a partir de uma cena, ou seja, ter uma escuta e o meu colega, ao lado, ter outra. Se aumentamos as diferenças entre os enquadramentos, abrimos “fissuras” e, consequentemente, possibilidades de ligações produzidas por cada espectador (com os sucessivos deslocamentos metonímicos do seu olhar). Estas diferenças entre os enquadramentos, nós chamamos teatralidade: tratamos a teatralidade como um “choque entre os enquadramentos”. 27
Entende-se “visualidade” como “a propriedade do objeto dar-se a ver” ou, propriamente, como “o que se pode ver”.
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A performatividade seria justo o que vem para romper esta escuta e instalar um espaço de indeterminação, que se revela como “opacidade”; ela estabelece o que resiste à leitura – e, assim, o olhar do espectador “performa”. A performatividade é o que se pode fazer do vazio que se abre graças à teatralidade (graças ao choque). Assim, em um trabalho performativo com o dramático, não existe uma visualidade ficcional a anteriori a ser representada (de maneira a fazê-la coincidir com o enquadramento cênico, para conferir, ao significante escutado, o estatuto de ação). Trata-se de colocar o contexto da relação com o espectador em jogo através de um choque entre enquadramentos, na medida em que a plasticidade corporal é um enquadramento e a visualidade da ação dramática é outro. Pode-se dizer que, no Teatro Performativo, há momentos em que a angústia se estabelece pela falta de leitura (que não há o que escutar): o espectador para de associar e de deslocar as cadeias significantes. Ele se depara com uma exacerbação do estranhamento e da contradição; e também com a falta de sentido do ato: “Afinal o que eu estou fazendo aqui e que sentido tem isto?” Esta espécie de “práxis do silêncio” vem em resposta à utopia semiótica: uma palavra ou gesto “significam”. Este pensamento foi formalizado nos anos 60 (segundo Pavis), mas já estava posto na forma como se encenava os textos – e é contra esta forma, propriamente, que Artaud fundamentou seu projeto (chamando-a de “comunicação”). Com o aparecimento da semiologia, no fim dos anos de 1960, houve a tendência a conceberse a encenação como um sistema de sentido, um conjunto coerente, uma obra legível ou descritível para a linguística, decodificável signo a signo, tal como para a encenação clássica de um Copeau (PAVIS, 2010, p. 48)
Utilizamos o termo “utopia semiótica” por entender (junto à psicanálise) que a linguagem (seja cênica ou outra) não está fundamentada nas relações diretas entre significantes e significados. A estrutura da linguagem é fundamentada em duas operações: metáfora (condensação) e metonímia (deslocamento). Relações diretas entre significantes e significados não seriam possíveis, pois “o significante não significa”, mas se remete a outro significante, gerando deslocamentos que, por sua vez, possibilitam metáforas, a condensação (provisória) de elementos deslocados. O “significado” é “barrado” e se expressa como lugar vazio, implicando o desejo enquanto resto metonímico e a afânise do sujeito (desaparecimentos e aparecimentos sucessivos). O sujeito em Lacan é dividido, provisório e ambíguo, nunca imanente e fixo. Pensamos que o efeito poético (de um espetáculo dramático, Teatro Físico ou Performativo, Poema Verbal, Artes Plásticas ou Midiática) conta com deslizamentos metonímicos, metáforas provisórias, espaço de desejo e múltiplas tentativas de interpretação, sendo que algo foge à 76
designação, algo “impossível” de se dizer 28; e que este efeito é estrutural de qualquer poesia, fazendo também parte daquelas que contam com a utilização da fala e da linearidade. Pensamos no “impossível” como estrutura da poesia da cena. Assim, a teoria do Pós-dramático vem como resposta a uma utopia de tradução de qualquer obra em signos. Mais do que uma modalidade teatral, o Pósdramático coloca em questão a necessidade da elaboração de uma nova teoria da cena. A escuta das cadeias significantes pode, nas entrelinhas, evocar algo contrário do que se escuta a partir de cada uma delas, pois advém do choque entre os enquadramentos, cada qual com sua plasticidade. A plasticidade 29 da ação da personagem é uma camada, com certa tessitura de associações que implicam certos limites e lógica. Mas é apenas um delasa. Outra tessitura implica outra plasticidade (visualidade que se transforma): a do olhar do espectador sobre as impressões da cena. O pensamento do espectador, tecido no eixo extra-ficcional, ganha densidade. À produção cênica, está justaposta a cena do seu olhar. Das fissuras entre as duas se extrai, também, teatralidade. Segundo Pavis, a “escritura teatral ligada a uma prática significante” entrou em crise nos anos sessenta: O apogeu da encenação como escritura cênica nos anos de 1960 coincidiu com o começo de sua crise: ela se transformou num sistema muito fechado, muito ligado a um autor, a um estilo e um método de atuação, muito associado à ideia de “ler o teatro” 30. A estrutura do espetáculo é batizada de “prática significante” 31 (PAVIS, 2010, p. 49)
Testemunha-se a importância de se pensar sobre as operações que uma “prática significante” implica. Como bem explica Nadiá Ferreira: A estrutura do significante se caracteriza pela articulação e pela introdução da diferença que funda os diferentes. Uma série de conseqüências é produzida: 1. o privilégio do significante em detrimento do significado; 2. o significante é puro non sense e não tem relação com o significado, o que equivale a dizer que o significante não significa nada ou pode significar qualquer coisa; 3. a oposição entre significante e significado marcada pela barra coloca o significável submetido ao significante; 4. o que faz parte da própria estrutura do significante é a conexão com outros significantes formando uma cadeia; 5. só pode haver articulação entre os significantes porque eles podem ser reduzidos a puros elementos diferenciais; 6. a organização dos significantes se faz através de duas operações, que são as mesmas da linguagem: condensação (Verdichtung) e deslocamento (Verschiebung), cujos efeitos são a metáfora e a metonímia (FERREIRA, 2002, p. 01)
Aqui pode-se articular também a noção de sublime “que, como bem disse Lyotard, sempre teima em se esquivar como um impossível da formalização” (FERNANDES, 2010, p. 38). 29 O termo “plasticidade” está sendo utilizado como propriedade de transformação de um enquadramento. A “visualidade” (o que se pode ver) da ação da personagem é uma modalidade de enquadramento e tem a sua plasticidade. 30 O autor faz referência ao livro de Anne Ubersfeld (Tradução brasileira: Para Ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005). 31 O autor faz referência às proposições de Julia Kristeva. 28
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A ilusão deste discurso (que Pavis relaciona ao “ler o teatro” e chama de “fechado”) em crise reside em um suposto emparelhamento das relações entre significantes e significados. Leitura e interpretação se dão por constantes deslizamentos (metonímia), deixando um resto (metonímico) resistente aos múltiplos efeitos de significação; uma espécie de falha que implica o topos necessário para que se estabeleça as relações de desejo (para haver desejo é necessária a falta). O desejo está implicado no ato de escuta onde sempre escapa algo. Este é propriamente o modo operacional da linguagem e de um sistema de leitura (quer dramático, quer não-dramático ou pós-dramático). Assim, o termo “prática significante” poderia muito bem estar relacionado à prática da leitura da encenação, sem que esta esteja veiculada a qualquer tentativa de significação. Mas, trata-se de outra teoria, diferente da semiologia do gesto ou da palavra. Foi contra relações unívocas entre gesto e significado que os movimentos a partir dos anos setenta se estabeleceram, entre eles o pós-dramático e as teorias da performance como gênero. Abordaram-se então os textos, e a seguir os espetáculos, de maneira bastante diferente. Esta mudança de perspectiva veio em proveito da prática teatral, na medida em que se dispunha a rever todas as noções da dramaturgia: o personagem, a cena, o sentido, o sujeito que percebe e a finalidade do teatro. Nessa atmosfera de crise da retomada em questão, a performance tornou-se uma forma de contestar o teatro e sua concepção literária, julgada muito logocêntrica, mas também uma maneira de ultrapassar uma semiologia preocupada demais com a leitura dos signos e da encenação (Pavis, 2010, p. 49).
O conceito de teatralidade enquanto choque entre enquadramentos nos permite retomar a ideia de prática significante na medida em que os deslizamentos metonímicos produzem visualidades outras que não estão no palco – por associações múltiplas. Estas visualidades não implicam uma inteireza (elas têm falhas, buracos), mas um espírito investigativo por parte do espectador; uma espécie de engajamento. É nas fissuras entre uma visualidade e outra que o efeito de teatralidade é construído. A visualidade da ficção (evocada na escuta de significantes) é diferente da plasticidade do corpo em cena; e é diferente da visualidade do mundo do espectador “posto na cena do seu olhar”. É pela diferença (choque) entre um e outro, que a teatralidade é forjada. O mesmo se dá quando um objeto é enquadrado na ficção (sendo nesta inscrito como um significante): resta algo da sua forma que não está enquadrado pela diegese. Uma vassoura, por exemplo, pode “evocar” um personagem, o que gera um efeito de teatralidade (ou a “teatralização” da vassoura) graças à diferença (choque) entre vassoura e personagem. A performatividade, por sua vez, implicaria a incerteza e a indeterminação – ou seja, quando o significante não encontra enquadramento. O significante, por princípio, é diferença, ou seja, ele precisa se remeter a outro significante para que uma cadeia seja engendrada. Na 78
performance, isto pode se romper e o espectador se vê implicado: no engendramento da própria situação a partir da qual é convocado à ação ou na ausência dos efeitos de significação (o que o leva diretamente à falência da linguagem). Aqui, podemos articular a ideia de “fala disforme, gesto avesso, cena assimétrica e disjuntiva, colagem estranha” (Fernandes, 2010, p. 38) de Renato Cohen. Em certo momento do seu livro “O Teatro Pós-dramático”, Lehmann se apoia Lyotard para exemplificar um teatro que, justamente por se afastar da representação, estaria além do drama – ou seja, o drama aparece “colado” à teoria da representação (a ideia que prevalece sobre o drama é a de que a cena representa as ações de um texto). Lyotard fala aqui de uma ideia de teatro diferenciada, da qual se deve partir caso se queira pensar um teatro além do drama, o qual é chamado de “teatro energético”. Não seria um teatro de significado, mas das “forças, intensidades, afetos em sua presença”. Diante dos coros falados de Einar Schleef marcando em direção ao público, por exemplo, quem não vê o “energético” mas procura por signos, por “representação”, encerra o cênico no modelo da cópia, da ação e assim do “drama” (LEHMANN, 1999, p. 58)
É preciso desatrelar o Teatro Dramático de uma teoria do signo, que por sua vez reduz as ações físicas a signos das ações dramáticas do texto que as antecede. Porque, estruturamente, a linguagem não se organiza em signos, mas em deslizamentos metonímicos. Introduzindo o conceito de enquadramento, o dramático se revela como modalidade de jogo de enquadramento específica do Teatro Performativo. No Pós-dramático, outra modalidade. Enquadramentos relativamente estáveis (como a fábula e a visualidade da realidade), são descartados. Prevalece o que o espectador não consegue enquadrar e que o perturba, pois está fora do reconhecimento habitual. Lança-se mão da indeterminação do enquadramento – e isto define uma modalidade de teatro diferente do dramático. No entanto, o Teatro Dramático pode, ainda assim, em detrimento de uma teoria do signo, veicular “forças, intensidades e afetos em sua presença” (já que não é representação). Mesmo que um dos enquadramentos em jogo seja a linearidade de uma diegese, o texto falado é um material que entrará em choque (e em jogo) com uma série de outros. Ao elidir os enquadramentos lineares e diegéticos do discurso cênico, o Teatro Performativo joga com certa opacidade: “Na maior parte das vezes não há personagens psicologicamente elaborados nem individualizados em um contexto cênico coerente (como em Kantor), mas apenas figuras que agem como emblemas incompreensíveis” (WILSON, 199, p. 130-131) “Quando o conceito de ação se dissolve de tal maneira em favor de um acontecimento de metamorfose contínua, o espaço da ação aparece como uma paisagem continuamente modificada por variações de luz, por objetos e formas que surgem e desaparecem” (idem, p. 133) 79
Sem fábula linear, sem evocar a permanência de personagens e conflitos que se desenvolveriam em cadeias articuladas, no Pós-dramático, o que passa a prevalecer é a estrutura de enunciação com materiais justapostos, constituída de cadeias relativamente autônomas, que não se articulam de maneira sintagmática. Silvia Fernandes, uma das estudiosas do Teatro Pós-dramático no Brasil destaca diferentes procedimentos: (...) a economia dos elementos cênicos, em processos de repetição e ênfase na duração ou no ascetismo dos espaços vazios de Jan Fabre e do Théâtre du Radeau; (...) as encenações depuradas de Antunes Filho e Márcio Aurélio, que privilegiam o silêncio, o vazio e a redução minimalista dos gestos e dos movimentos, cria elipses a serem preenchidas pelo espectador; (...) a multiplicação dos dados de enunciação cênica, que resulta em espetáculos sobrecarregados de objetos, acessórios e inscrições, cuja densidade desconcertante chega a desorientar o público, como acontece nas encenações de Frank Castorf. (FERNANDESs, 2010, p. 55)
Percebe-se o jogo entre visualidades e sonoridades. Estas são plásticas, ou seja, se transformam. “A música se transforma em uma espécie de dramaturgia sonora” (idem, p. 55). Ao mesmo tempo, “este texto musical também pode ser composto da melodia das falas dos atores, de timbres e acentos diversificados”. Lança-se mão de sobreposições. As fissuras entre diferentes plasticidades não articulam necessariamente uma escuta, ou a escuta não produz uma cadeia (ela se rompe): a sua articulação é opaca. Algo se insinua como enigma na tradição performativa. Já no Teatro Dramático, tanto a plasticidade do corpo quanto a visualidade da ficção articulam um mesmo significante: o nome da ação (o verbo-de-ação) que se pode escutar. Apesar de algo da plasticidade corporal restar (e resistir) à ação (porque é pura materialidade), o verbo-de-ação, enquanto ação dramática será inscrito na fábula – e, ao mesmo tempo, em cena. Percebe-se uma articulação (e não a disjunção). Segundo Fernandes, Lehmann utiliza o termo “teatro concreto” para se referir à plasticidade corporal: “ao imediatismo dos corpos humanos, das matérias e das formas” pós-dramáticas. O termo, ele empresta de Kandinsky – o que nos remete diretamente ao que, da plástica corporal, é abstração, forma, cor, qualidade palpável. Reverberando este pensamento, Fernandes cita as “estruturas formais de movimento e luz do teatro de Jan Fabre” (Fernandes, 2010, p. 57). A abstração (do corpo) seria um modo de ultrapassar a esfera da representação dramática – segundo Lehmann – ou seja, daquela visualidade figurativa de um corpo inscrito na “realidade” cotidiana diegética. Assim, aponta-se para um mundo de formas geométricas ou para uma poética da deformação, tal como as Artes Plásticas fizeram na passagem do figurativo para o abstrato.
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Performatividade e teatralidade no campo da formação de atores Dependendo de quais procedimentos utilizamos, os atores podem acentuar a performatividade e a teatralidade na construção de ações físicas para um trabalho com o texto dramático. Quando Grotowski, Burnier ou Stanislavski dão exemplos de ações físicas, engendram um contexto de relações onde o conceito de ação se inscreve. Mas é possível desmembrar este conceito: a ação dramática (veiculada à diegese); a ação física (plasticidade corporal que veicula, provisoriamente, a diegese e se articula à visualidade de um pensamento, intencionalidade ou impulso); a ação interna (veiculada à visualidade do pensamento ou intencionalidade e que pode ser trabalhada em oposição à ação externa); a ação externa (quando a plasticidade corporal está desvinculada da ação interna). Este desmembramento nos ajuda em certos procedimentos. Ao utilizarmos um Teatro Performativo de Bausch como um campo possível da extração de movimentos (carregados de abstração) para inscreve-los em contextos diegéticos (fornecidos por um texto dramático) e, assim, transforma-los (em ações físicas), algo da sua performatividade permanece – e algo de teatralidade surge. Por que não representar a diegese? Por que trazer materiais abstratos de outro contexto para chocar a sua forma contra a forma da ação dramática? Se a forma do corpo resultante (ação física) não cabe totalmente dentro dos limites da plasticidade da ação dramática, evidencia-se a teatralidade: choque – e também a performatividade (já que algo opaco força o espectador a performar o seu olhar para enquadrar a forma do corpo). E por fazer aparecer “a lida” do ator com o jogo desta construção no instante-já, o seu performar mantém-se vivo a cada vez que esta cena for repetida. O ato de provocar a absorção da forma no instante-já implica algo da forma que escapa à escuta da ação, apresentando-se como opacidade, enigma, mistério (e poética); performatividade. Este é um caminho para operarmos os conceitos de performatividade e teatralidade no trabalho com o texto dramático. O Teatro Pós-dramático pode ser utilizado como um campo de extração de imagens para a mimese corporal. No entanto, existem outros. A visualidade do cotidiano, por exemplo, quando utilizada como material, implica pura plasticidade – e entra em choque (servindo até mesmo de oposição às ações dramáticas). Provoca-se, portanto, a teatralidade. As questões da performatividade e da teatralidade se inscrevem em função de um jogo onde a forma utilizada como material, ao se inscrever em cena (em tensão com outras), produz uma resultante. Esta resultante, por sua vez, possui algo (um pedaço) que resta e está “a mais”, excede a ação dramática, não entra na cadeia da escuta dos significantes – apontando para um “não lido”, “não dito”, efeito de “materialidade pura”, resistência, opacidade, indeterminação. 81
De maneira que se pode utilizar fontes de extração diversas, desde o cotidiano, fatos da vida pessoal, partituras físicas abstratas advindas de treinamentos corporais, descrições de corpo extraídas da literatura, cinema, etc. Desde que fixados e colocados em relação com outros materiais, fabricarão a ação física de maneira inesperada, impensada – o que denota uma estrutura no trabalho do ator: a imagem-suporte do jogo de criação não é o que o espectador lê, vê e escuta. A sua escuta depende das resultantes do jogo – ou seja, de uma inscrição nova (outra). Esta é uma estrutura evidenciada em relatos de Grotwoski, quando conta que Cieslak, para “O Principe Constante”, utilizou uma imagem da sua vida pessoal (o toque apaixonado na adolescência) para gerar a excitabilidade corporal de um sacrifício religioso (situação escutada pelo espectador). Grotowski relata, não sem certa surpresa, a perspectiva de um ator utilizar, como material, algo totalmente diferente do que o espectador lê. Ou seja, a visualidade da inscrição do corpo em cena evoca “outra coisa” – diferente daquela que o ator utilizou como material. Esta operação torna evidente o jogo dos choques e encontros entre materiais advindos de campos diferentes. De maneira que a essência da prática com as ações físicas está em brincar com a perspectiva da performatividade e da teatralidade causada por estes choques. No que se refere ao texto dramático como um possível campo de extração de materiais, postulamos que é preciso superar o princípio da representação e provocar choques e encontros entre enquadramentos diferentes. Esta seria uma espécie de saída para o trabalho com o material “palavra” (extraído da peça teatral ou da literatura). Propõe-se que ações produzidas com este material textual não sejam tomadas como “significados”, mas modalidades de enquadramento. A ação é um enquadramento que participa da lógica da poética cênica porque existem outros que dela se diferenciam. Assim, o jogo é fazer aparecer e desaparecer algo em função de uma série de diferenças e defasagens. Acredita-se que materiais advogados por Stanislavski (considerando-o uma espécie de pai da teoria do ator dramático) não precisam ser abandonados quando o princípio é o performativo. Como formações internas, eles ocupam o ator, fornecendo sustentação para o trabalho plástico do corpo, enquanto o jogo de enquadramentos implica defasagens. No entanto, é necessária uma revisão da teoria do ator dramático. Foi possível defender, por exemplo, que a fala é consequência do movimento interno (objetivo, intenção ou ação interna). Stanislavski sustentou a proposição do ator “descobrir o que o personagem quer e pensa” para imprimir a verdade na fala. Ao analisarmos esta operação, percebemos que se trata de uma construção, pois o ator nomeia um objetivo, intenção ou ação interna, ou seja, cria material que antecede a fala; instala, na cadeia do texto, um material novo. Assim, constitui o “efeito” de movimento interno. Consideramos que o ator pode escolher a modalidade de jogo: predeterminar o material, instalando-o de maneira 82
intencional ou constitui-lo em improviso no instante-já da cena. Em ambos os casos, deparamo-nos com o performativo. Mesmo quando se joga com o material pré-deteminado, não se sabe seus efeitos no instante-já. Trata-se de provocar um efeito (da fala como consequência de movimento interno), quando o foco está em constitui-lo no interior de um jogo que implica uma série de defasagens.
A fala externa e o material interno que a antecede
Assim, a fala é utilizada como segundo elemento na cadeia. Antes, vem a ação física, com a qual, imediatamente, entra em relação. O ator inscreve a ação física antes da fala. A fala aparece, para o espectador, como consequência da ação interna que a antecedeu. Isto é um “efeito” (é uma construção de um enquadramento); e é necessária a instalação de um material para produzi-lo. Outro enquadramento que o ator dramático produz em cena é a relação com o próprio pensamento, utilizado como um “lugar” (um espaço para onde se pode olhar). Assim, ele se afirma como enquadramento contemporâneo. Encontramos, por exemplo, a instrução “olhar para os pensamentos” em um relato de Galizia sobre a criação de “A Vida e a Época de Joseph Stalin” (de Robert Wilson, em 1976). Esta instrução estabiliza o foco de atenção (do ator) em certo lugar (ou em certa procura deste lugar). Pode-se dizer que “olhar para o pensamento” é uma tentativa de estabelecer um enquadramento “interno”. De acordo com Galizia, Wilson pedia para que os atores olhassem para o pensamento para “evitar a representação”. Da mesma forma, na poética de uma atuação dramático-realista, é utilizada a relação com o pensamento próprio. Evoca-se a cotidianidade, para diluir o efeito de representação. Evita-se a atualização de um desenho corporal que possa vir a indicar a ideia da representação (que se torne 83
índice do ato de representar). Pois, se o ator utiliza apenas a palavra externa – deixando-a reverberar (sem qualquer filtro ou oposição que um enquadramento interno instalaria) – acaba por acusar a sua situação de representação. A visualidade da representação torna-se evidente quando o ator não constrói um “antes” (material interno) para a fala ser construída como um efeito. A visualidade do pensamento (ou a ação interna), por se tratar de outro enquadramento, oferece resistência e cria um jogo de oposição. Na teoria de Lehmann sobre o Pós-dramático, Wilson é um dos diretores modelares. Mas também Knébel (representante de uma teoria do dramático) propõe que o ator atue pensando. São utilizadas associações com a própria vida, para que o ator crie laços entre a memória corporal e os enquadramentos externos. Em textos de próprio punho estão construções (visuais e acústicas) que não dizem respeito ao universo diegético, mas se apresentam como outro enquadramento. O ator se utiliza dos seus pensamentos, porque estes incidem sobre ele e pressionam o enquadramento externo, dilatando-o. A tessitura corporal atualiza as reverberações da história de vida, afeto e memória daquele corpo-sujeito-ator. O ator também se apropria da sua própria situação de jogo e cria ações físicas a partir de suas sensações reais – por sua vez enquadradas (situadas) no contexto ficcional (da personagem). O deslocamento da ação (do contexto do ator para o contexto diegético) é performativo, pois implica saltos, defasagens e a produção no instante-já. Em nome da personagem, a ação interna é situada em outro contexto: o da ficção – o que se dá como efeito metonímico (um deslocamento). Sabe-se que a dramaturgia contemporânea dispõe muito pouco de tessituras dialógicas e que o material narrativo torna-se um forte aliado, entrando em relação de tensão com o dramático. Trata-se de extrapolar o presente para (“brechtianamente”) fazer aparecer outro tempo (o tempo passado, narrado). De maneira que a relação entre dois tempos (presente e passado) deixe entrever a visualidade do olhar e do pensamento de quem narra – a relação do narrador com o fato narrado. Neste caso, a distância entre duas cenas (narrada e vivida) produz uma “poética do pensamento” – e também a teatralidade. Estas operações testemunham que a poética da ação atoral não é constituída a partir de um enquadramento específico, mas de vários. Graças às defasagens entre estes enquadramentos, surge um espaço novo, de articulações e disjunções, que se pode dizer poético – na medida que produz uma lógica: a lógica de trabalhar diferenças, a lógica propriamente daquela encenação. Existem poéticas que não se utilizam da plasticidade da ficção, mas abusam da plasticidade do som ou da abstração do movimento (privilegiam outras modalidades de enquadramento); existem outras onde a plasticidade do corpo se desprende totalmente da visualidade das ações (evocadas de outras maneiras); a pintura do corpo evoca associações que podem articular uma fabula ou dela se 84
distanciar, implicando outras camadas; o corpo pode ou não evocar uma ação para enquadra-lo. A parte da plasticidade corporal que não se encontra dentro do enquadramento da ação, pode-se dizer que estranha (o mesmo com a sonoridade da voz e a palavra). Pode-se trabalhar as formas corporais ou movimentos cênicos sem qualquer relação de representação de um texto, mesmo que este esteja presente. A articulação acontecerá com a absorção de um enquadramento no outro, revelando uma lógica de uma poética que se descobre em processo, performando. A imagem do corpo é inscrita na cadeia da ficção e entra em relação com a palavra (também situada nesta cadeia), dando vazão a outros vetores de associação. O corpo tem a própria plasticidade (é um enquadramento diferente da diegese que o abraça), tal como a voz e a estrutura formal da palavra. A ficção onde se situa a ação dramática é uma modalidade de enquadramento apenas (com plasticidade própria). Como “diferença”, a plasticidade do corpo, da voz, da fala e da ficção, podem se articular ou não, gerando mais ou menos estranhamento. Para que uma poética da cena (e da atuação) surja, é preciso instalar uma lógica da articulação entre estes enquadres; lógica própria que se estabelece como poética autônoma. Assim podemos sustentar que, ao se trabalhar com o texto dramático, o trabalho do ator implica o performativo (ou seja, o inacabado, o processual, a tessitura instantânea quando o ato é realizado na carne viva), escapando à elaboração semiótica. A noção de jogo de enquadramentos aponta para visualidades em choque, com defasagem, articulação, disjunção, etc. E funciona como um instrumental quando se propõe o texto dramático como um dos campos de extração de materiais, permitindo que o ator se desvencilhe do arcabouço teórico da teoria da significação e representação.
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10. Modalidades de jogo em um dispositivo complexo: ainda o texto
Por um lado a poética da cena se afirmou na medida em que não retratava mais “a realidade”, mas a inventava. Inventava outra cena, carregada de abstrações, onde fragmentos se chocam para fazer aparecer fissuras, que acabam por convocar uma interpretação do espectador – para que um sentido advenha. Este é um discurso em função de certa liberdade do pensamento, que reverbera as ideias de “obra aberta” de Eco e de “multiplicidade do sentido” de Barthes. A visualidade cênica se afirma como autônoma não só em relação à realidade, mas em relação à unidade dramática. E apesar da heterogeneidade entre “drama” e “realidade”, pois o fragmento (um recorte) da visualidade da realidade quando mimetizada, não tem a curva do drama, os movimentos anti-realistas e anti-dramáticos coincidiram e ofereceram, às estéticas pós-dramáticas, a base: Artaud quando problematiza o teatro enquanto ação sobre o publico “a ponto de fazê-lo gritar”; Grotowski quando propõe o ato total e o ator santo, rompendo com a cotidianidade; Barba com a defesa do extracotidiano (o máximo esforço de energia, o jogo de oposições e os equilíbrios precários do “corpoem-vida”); Meyerhold quando afirma a abstração, o retorno ao teatro de feira, à acrobacia, a paródia, a crítica, a tribuna; Brecht com a explicitação do artifício nos recursos épicos; a performance, em defesa do ato vivenciado em nome próprio, desafiando os limites da inserção deste ato no tecido social. Após o rechaço à mimese da realidade, o fragmento de real, quando aparece no Pósdramático, deve ser tomado como um fragmento heterogêneo deste campo poético, que, por sua vez, 86
suporta diferentes resoluções. E, após o rechaço do dramático (enquanto tecido de representações a partir da escrita da cena produzida a anteriori por um autor) sua presença também só pode ser tomada como um procedimento heterogênio. Jean-Pierre Sarrazac é um dos autores que questionam Lehmann, postulando um “futuro” tanto para o drama quanto para o exercício dramatúrgico ligado à pulsão rapsódica. Quando postula o “futuro do drama”, Sarrazac está se referindo ao “dramático” em oposição ao épico e lírico, a partir da dicotomia apontada por Szondi (onde o épico supera o dramático). Mas a resposta a Szondi serve, também, de certa forma (embora não de forma completa), a Lehmann, quando traz, para o âmbito do exercício dramatúrgico, princípios da não unidade, fragmentação e hibridismo, mesmo quando o dramático está presente. Szondi analisa dramaturgias do Século XX: Ibsen, Tchecov, Strindberg, Brecht, outros, apontando como, em cada uma, o dramático não dá mais conta das representações sociais, de maneira que as dramaturgias acabam por ceder à configuração épica. Frente à ideia de superação do dramático pelo épico, Sarrazac defende o dramático, enquanto gênero que compõe com os outros, reaparecendo, persistindo, incidindo, vazando, deformando, explodindo as bordas do épico e do lírico. Ele propõe o “drama-monstro” – situado no hibridismo entre os gêneros em função da “voz” que chama de “rapsódica” (e que nasce desta dramaturgia). O drama, enquanto gênero diferente do épico e do lírico, é fundamentado em ações dialógicas, vivenciadas no presente, a partir de um conflito que se desenvolve, chega ao seu ápice e se resolve. São relações dialógicas: eu diante de você; um personagem diante do outro; uma subjetividade agindo sobre a outra. Já o épico suporta a heterogeneidade dos fragmentos: dois tempos diferentes juntos; duas cenas justapostas, os bastidores revelados, um personagem que se confunde com outro, um personagem duplicado, uma realidade paralela, a narratividade dentro de uma fala, a estilização denunciando o artifício, qualquer elemento que revela “ser uma construção para o outro” (ser teatro), rompendo com a empatia (com a ilusão de que aquela cena é real) e já se configura o épico; uma voz que fala com a plateia, denunciando que ali tem plateia, que se constrói algo para um terceiro que olha, e estamos no reino do épico (não mais do dramático). Na dramaturgia-monstro, relações orientadas por conflitos intersubjetivos dialógicos, transbordam as malhas do jogo fragmentado do épico, formado pelas sobreposições, sobras, fissuras. São configurações diversas que surgem de inúmeras possibilidades de combinações e quebras entre épico, lírico e dramático, em função da linguagem cênica que suporta, também, para Sarrazac, o âmbito interpessoal. Quanto ao lírico, surge a visualidade da expressão de uma subjetividade que se endereça ao outro (publico) e está “em relação consigo mesma” de maneira relativamente autônoma em relação a qualquer contexto diegético. Não existe uma contextualização dramática para a 87
expressão desta voz; o seu pano de fundo é o contexto humano (autônomo em relação a elementos diegéticos específicos de um drama). Quando este lírico se mistura ao dramático (em uma relação de hibridismo), surge uma voz privada implicada como fragmento heterogêneo (na estrutura do texto dramático), pois não se encadeia com o resto (e deste independe o desenrolar do drama). A dramaturgia-monstro de Sarrazac é a dramaturgia contemporânea híbrida. A sua defesa e presença implica também certo espaço para a produção e uso do texto no Teatro Pós-dramático. Frente à crise, não só do dramático enquanto gênero, mas da existência e presença do texto enquanto material que antecipa a cena, Sarrazac postula um destino e um futuro para o exercício dramatúrgico. Neste ponto de vista, deixa-se de falar em “pós-dramático” como a superação do dramático. O Teatro Pós-dramático surge como um campo de investigação de princípios de trabalho que superam não o dramático, mas a representação. O texto dramático pode ser utilizado, mas não representado; ele não pode ser o elemento determinante, que tem um estatuto diferente dos outros. O texto é um dos materiais de um dispositivo de criação complexo, onde as diferentes modalidades de materiais (como corpo, luz, som, movimento, cenário, figurino, vídeos, espaço, objeto, ação física) se tencionam. Tencionam-se, formando uma tessitura de dobras, sobras, desvios, resíduos, atualizações, reverberações e consequências em múltiplas direções. Quando colocamos que a questão de Sarrazac é não desautorizar a escrita dramática (como se fosse um procedimento superado ou a ser superado), mas produzir textos de forma híbrida (que se pode chamar de “monstros”) surge, imediatamente, certa dramaturgia como paradigmática. Nesta, pode-se destacar Heiner Müller, Sarah Kane, Maurice Novarina e outros cujos textos são fragmentados e não afirmam uma unidade de ação, lugar, tempo, diálogo ou personagem – sendo que os fragmentos se mantem heterogêneos uns em relação aos outros. No entanto, a escolha pela dramaturgia pós-dramática (de uma Kane, Müller ou Koltés) não nos exime de encararmos o problema das relações entre cena e texto – ou seja, o problema da não representação, não determinação, não antecipação da cena pelo texto. Se formos fieis ao princípio de que a palavra não é representada pela cena, mesmo na lida com um texto pós-dramático isto não deve acontecer. O texto deve se manter como um material dentro de um dispositivo complexo de relações; nele não está dado o caminho da encenação. Seja utilizando um texto pó-dramático, material literário (extraído da literatura) ou um texto dramático (como material de uma encenação pós-dramática), é preciso partir de outra ideia. É preciso partir de materiais outros, que não as ações ou visualidades (fragmentadas ou não) evocadas pelas palavras de um texto. E de onde se parte? O Século XX foi marcado pela trajetória da consolidação da poética cênica em relação à literatura dramática. Foram dois “gritos de alforria”: em relação à mimese e em relação à representação das ações que uma literatura dramática evocada em leitura. A escuta se desloca do 88
texto para a cena (para escrita cênica). A cena é uma “escritura” e é nesta que a escuta deve pousar (enquanto a literatura é ali situada como um material). Não se representa o texto (nem mesmo o pósdramático) e tampouco “a realidade”, cujo estatuto é duvidoso, pois está atrelada ao discurso que a recorta. São paradigmas que o Século XX constituiu e que nos exigem uma posição em relação aos procedimentos para a instalação do texto dramático em cena e para a investigação de uma atuação realista poética (enquanto fragmento heterogêneo do Pós-dramático). A questão, a partir deste contexto de debates, pode ser colocada da seguinte forma: como postular os “deslizamentos de sentido” (que Feral investiga no Teatro Performativo) também em teatros que se valem do texto dramático ou pós-dramático? Como fazer, do texto dramático ou pósdramático, um dos materiais performativos? E como a atuação realista se apresenta como material na cena pós-dramática que se vale do texto dramatúrgico? Lehmann cita exemplos da utilização do texto dramático na cena pós-dramática, evidenciando a disjunção entre o texto e a cena – ou entre a palavra e a plasticidade visual e corporal. O texto aparece como pura materialidade (ou como pura sonoridade), não evocando as ações diegéticas junto ao corpo (e no jogo de suas relações). Trata-se de duas camadas diferentes que, separadas, coexistem, sem se penetrarem e sem evocarem uma mesma diegética (não partilham as ações e não produzem o mesmo material ficcional). Neste caso, a pergunta muda: como trabalhar com o texto dramático ou pós-dramático no jogo das relações da linguagem cênica contemporânea sem cair na representação, mas, tampouco, na disjunção total entre a palavra e a plasticidade corporal, vocal ou cênica? A ode à pura sonoridade é uma saída possível diante da não determinação do texto sobre a cena, no entanto, é também abrir mão da visualidade de ações evocadas nas entre-linhas das palavras. Destas que se pode, com Danan (2012), serem chamadas de “moleculares”. Seria possível trabalhar um texto sem “dijuntá-lo” totalmente da plasticidade cênica e, ao mesmo tempo, sem escravizar-se a sua representação ou determinação? Quando tratado como material justaposto e independente da plasticidade da cena, as malhas do texto permanecem fechadas. Como abrir as malhas das palavras para o jogo com o corpo? Para que outros materiais, elaborados em processo, com estas se encontrem, se choquem, se esbarrem, se tencionem, formando vetores? O que seriam “malhas fechadas” das palavras? Som. Sem a visualidade da ação no entresons, as palavras tornam-se opacas. Stanislavski diz que explorar um texto é como iluminar um quarto escuro. A visualidade diegética diz respeito ao prazer do ver, do olhar algo (a ação) que se ilumina; diz respeito à fantasia do sujeito que recebe (lê, escuta, interpreta) uma cena. É isto que se pretende – e a atuação naturalista se porta como um instrumento heterogêneo (frente aos demais): 89
produzir uma visualidade que se comunga, a partir da relação entre o corpo e a palavra. Isto na medida em que as malhas das palavras se abram para a instalação do corpo sem que este represente as palavras. Do jogo entre os dois, evoca-se ações heterogêneas, que se contradizem, tencionam, condensam, deslizam, desviam, formando linhas de força diferentes no mesmo dispositivo, confundindo a diegese, borrando-a, desafiando-a (desafiando os limites de sua forma e a fragmentando). Acreditamos ser possível jogar o texto em um dispositivo complexo, para criar ações como “outra coisa”, em sua diferença no instante-já, porque efeito da escritura cênica; porque efeito do jogo; criar a escuta em arranjo com a palavra de forma mais ou menos fragmentada, na medida em que esta também se rompe e se refaz. O que postulamos é a perspectiva de abrir as malhas do texto dramático através do jogo com o aleatório, regras que organizam a relação com o espaço, tempo, objetos, materialidade cênica, para capturar a vida e o desequilíbrio do ator no interior deste jogo, produzindo uma ação plástica e ao mesmo tempo viva, que pode dilatar a ficção, desafiando a sua forma e dilatando também os seus limites. Isto na medida em que, sem querer, o jogo evoca ações impensadas anteriormente na leitura do texto. Ao mesmo tempo em que se abre um espaço para a acomodação da palavra no corpo da cena, resta algo do corpo enquanto linguagem autônoma, de onde se recorta significantes. Na medida em que a palavra, articulada com a materialidade cênica, produz passos-de-sentido, abre-se, ao espectador, a dimensão da ficção dilatada (e não representativa da interpretação a anteriori realizada sobre o texto). Trata-se de manter, portanto, em improviso, dentro de um dispositivo complexo de jogo, as relações, para que ações (diegéticas) sejam evocadas nas entrelinhas das “cadeias de escuta”, sem a intencionalidade do ator, cujo foco está na poética (e não na representação do texto). É preciso ver em que termos este jogo se dá, qual a sua estrutura, quais as modalidades possíveis. As vanguardas deixaram rastros no Teatro Contemporâneo, vociferando contra o realismo (e contra a demanda de uma mimese do real), a favor da liberdade de recriar as imagens, trabalhando com a deformação, o grafismo ou com a expressão exacerbada de um “interior” (Expressionismo), “além” (Simbolismo), “inconsciente” (Surrealismo). Apostou-se em alterações do tempo e do espaço; repetições, projeções, interrupções, quebras; na relação com o espectador e na revelação dos bastidores; na visualidade da festa, do ritual, do transe, da crítica, paródia, cinismo; na fragmentação, no não-sentido, no absurdo. Estes rastros estão presentes em estilos de atuação que, contemporaneamente, não se encontram puros, mas “em vestígio” (também de seu campo discursivo). Podemos trilhar a influência de Grotowski e certo “ator santo” que se utiliza de partituras físicas para criar “margens sólidas” e, assim, dar vazão aos efeitos das “baterias psíquicas”; podemos 90
observar o ator-bailarino de Barba, com a sua ode à precisão e à dilatação corporal, bem como a sua ojeriza ao “fetiche do sentido”; podemos encontrar as marcas de um “ator-marionete” craiguiano, com o “gesto justo” (como também vemos em Wilson e Kantor); e também observar os resquícios das exacerbações do afeto de que postulava Artaud; a marca do ator romântico, arrebatado; ou do ator brechtiano, com seus desenhos estilizados e a composição tipificada, para mostrar determinações sociais; e, ainda, o estilo do ator acrobático e paródico (meyerholdiano). E podemos observar, no Teatro Contemporâneo, dentre todos estes vestígios, a demanda por certa desconstrução de qualquer abordagem formal, para que a simplicidade, a cotidianidade e o efeito de realidade apareçam como estética – o que é bastante próximo dos projetos de Antoine e Stanislavski. Ou de outros, que tomam a atuação realista como um efeito de uma construção, com forma e lógica específicas, que acabou encontrando, no cinema, o seu reduto, mas entra na cena teatral contemporânea, como elemento heterogênio, através do choque quando a imagem do ator é projetada ou em outras configurações. Existem teatros pós-dramáticos que projetam improvisos realizados nos bastidores; existem “n” formas de introdução da atuação realista (esta que constrói um efeito de realidade) na cena teatral contemporânea. Mas estamos propondo, ainda, o uso do texto como material no dispositivo, quando a poética da atuação realista está em questão e a solução é encontrar uma via pelo hibridismo, como caminho para desafiar as suas formas.
Atuação realista: um elemento heterogêneo no dispositivo pós-dramático Mesmo a partir do seu “Método de Ações Físicas” (partir das partituras físicas, ou seja, do elemento plástico-corporal), Stanislavski nunca deixou de aplicar os apoios internos, pois era preciso que o ator transformasse a ação física (externa) em psicofísica. E isto se dava com o uso de procedimentos verbais e visuais. Com uma intensa verbalização (construindo o subtexto através de perguntas e respostas), o ator coloca um imaginário e simbólico (sua linguagem) em ação, implicando o seu desejo em uma criação onde o corpo precisa estar pulsionalmente convocado. A visão de Stanislavski ter “mudado de método” – passando a trabalhar “a partir do externo” ganha ênfase a partir do texto de Grotowski chamado “Resposta a Stanislavski”, onde defende um caminho “de dentro para fora” (em detrimento do suposto “de fora para dentro” que estaria sendo postulado por Stanislavski no Método de Ações Físicas). Já Barba e Meyerhold (com a defesa de que “todo fora implica um dentro”), fazem uma crítica aos procedimentos de verbalização de Stanislavski,
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tomando-os como “psicologismo”, por produzirem a psicologia ou “o interior” e, ainda “o espírito” ou “alma” de um personagem. Problematizado e contestado a partir das novas teorias do sujeito, que o desarticulam da instância entificada de um “eu”, o “personagem” é execrado pelas metodologias de composição atoral. Surge o “ator-performer”, que joga em nome próprio e não representa um personagem. Seria preciso resgatar, portanto, o pensamento de Stanislavski sobre princípios do actante (e não sobre a representação da personagem) e foi o que Barba, de certa forma fez, quando relacionou (em sua Antropologia Teatral) o Método de Ações Físicas a uma série de trabalhos atorais fundamentados em técnicas orientais. No entanto, o que Barba articula é o que existe de abstração em Stanislavski, procurando, no Método de Ações Físicas, suas determinações de ritmo, dinâmica, repetição, corporeidade. Barba, em momento algum, problematiza a produção verbal não enunciada (escondida) do ator, tampouco a dilatação através do envolvimento afetivo em uma fantasia (a qual, diga-se de passagem, a instância “personagem” serve). A partir deste debate, postulamos o arranjo e a composição: entre ficcionalização e contexto do ator; entre dito e não dito; entre dentro e fora; entre imagem, corpo e palavra. Para esta ideia funcionar, toma-se “o dentro” não como “a emoção” (como os seus críticos e o próprio Stanislavski muitas vezes se referem), mas como elementos de visualização e escuta. Imagens (visuais e acústicas) ocultas são elementos em jogo; concretos o suficiente para situarem o foco de atenção do ator enquanto se improvisa ou compõe “o fora”. A questão é qual arranjo sustenta uma poética da atuação realista de forma performativa. Não “o realismo”, mas, a atuação realista servindo ao jogo de enquadramento pós-dramático, quando este convoca um efeito de realidade (“como se” fosse real). Sem o cenário mimético (como se dá no realismo), mas, ainda, com a visualidade de uma “relação entre-dois” e com conflitos circunstanciados por um cotidiano. São visualidades que podem ser justapostas a outras, como projeções, chegando-se à deformação e abstração, graças à utilização de recursos contemporâneos. A “fatia de vida” que, no palco italiano causava empatia e ilusão é jogada em cena para ser desnaturalizada em dispositivos não-naturalistas e não-miméticos (que denunciam a sua construção ou seja a sua teatralidade). Quando a projeção estranha, ou a disposição em arena ou em corredores, a sobreposição de vozes, a coralidade, sonorização da voz (quando se utiliza também de elementos épicos e líricos). Testemunha-se o “efeito de realidade”, que é também um efeito de secura, crueza e implica, da parte do ator, uma técnica anti-romântica, assim como a construção detalhada (ao contrário do arrebatamento e da inspiração); um impacto específico, cruel. O Realismo se 92
fundamenta no desejo de deslocar o olhar, de se forçar uma mirada 32. Esta atuação deve ser tomada enquanto poética na medida em que implica certo “efeito de alucinação”: pois é como se o espectador, diante do efeito de realidade, desconfiasse do próprio olhar – o que implica uma modalidade de resolução poética específica. O teatro não é mais apenas o lugar de uma ilusão mais ou menos “perfeita”. Torna-se um espaço de alucinação. O espectador acredita que está deixando o real na porta do teatro. O real o alcança no cerne do espetáculo e o lança na deliciosa confusão de uma percepção sem referencias estáveis (ROUBINE, 2003, p. 115)
O uso hoje que se faz da atuação naturalista evidentemente não é o mesmo que se fez no final do Século XIX.. A visualidade da cotidianidade se mantém, no entanto, como “um dos” enquadramentos; material do qual depende certo efeito, demandado ao ator. Sendo que é necessário se consolidar um discurso e compreender os princípios da construção deste estilo específico de atuação. Neste caso, é preciso trabalhar: a cotidianidade, a relação com o outro, a visualidade do pensamento e o efeito de realidade. E quais os procedimentos? Qual orientação? Como se dá o jogo com o planejamento, a forma, o inesperado, o improviso? Como manejar tensões entre improvisação e partiturização? Como imprimir a cotidianidade sem perder a dilatação? Possíveis saídas, proposições. Se o sentido da fala depende do contexto onde está inscrita e se a cena é outra escrita, com inúmeras outras linhas de ação, que produzirão um contexto, precisa-se ainda criar a cena para interpretar a fala e, para inserir a fala em cena (escutar um sentido), têm-se um jogo, que é performativo. As proposições de Austin sobre os atos de fala abrem um caminho para se pensar não 32
O “Realismo” ou “Naturalismo”32 começou como um projeto político. Antoine, ex-figurante da Comédie Française e aluno de Taine32, chamou a atenção em 1887 ao fundar, com um grupo de amadores (em um quintal da Rua da “Passage”, em Monmartre) o “Teatro Livre” (BERTHOLD, 2004, p. 453). Este foi o início do Realismo no Teatro Francês. Com vertente contestatória, as montagens de Antoine causavam comoção32 e geravam fortes reações na plateia. Hauptmann tornou-se “‘o verdadeiro capitão do bando negro dos realistas’ que mostra a vida como ela realmente é, em seu completo horror, que não acrescentava nada, mas tampouco nada subtraía’” (idem). Ao montar o que foi chamado de “dramaturgias de acusação”, os naturalistas tentavam fazer ver o que não estava sendo visto: as mazelas sociais. O principal alvo era o teatro de estilo clássico, romântico ou melodramático, com seus golpes de efeito, e o teatro comercial, representado pelo Teatro de Boulevard, com seus estereótipos: “O impulso para o teatro naturalista originouse no descontentamento crítico com os estereótipos do teatro comercial” – invadido pela “peça de sala de visita, a comédia de costumes e a adulação dos clássicos” (idem, pg. 459). Com Antoine montou-se autores “que não tinham acesso aos grandes teatros” (como Hauptmann, Ibsen, Strindberg, Tolstói) – além da primeira geração (Zola, Becque, Goncourt). Em “Revolução na Literatura” Bösche pedia aos dramaturgos para terem coragem de: “descer às áreas mais sombrias da fome e da pobreza” (idem, p. 455). O Naturalismo se espalhou pela Europa: com Hauptmann e Bösche na Alemanha; com Elliot, Priestley, Wesker, Pinter, Bond, Shaw e Grein na Inglaterra; na Irlanda, com a Irish Nacional Theatre Society – até chegar aos EUA.
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só a recusa, mas a impossibilidade mesmo de se representar um texto dramático. O ponto central da concepção de Austin e sua principal contribuição à filosofia da linguagem parece-me ser a idéia de que a linguagem deve ser tratada essencialmente como uma forma de ação e não de representação da realidade. O significado de uma sentença não pode ser estabelecido através da análise de seus elementos constituintes, da contribuição do sentido e da referência de seus elementos constituintes, da contribuição do sentido e da referência das partes ao todo da sentença, como quer a tradição inspirada em Frege, Russell e Moore, mas, ao contrário, são as condições de uso da sentença que determinam seu significado. Na verdade, o conceito mesmo de significado se dissolve, dando lugar a uma concepção de linguagem como um complexo que envolve elementos do contexto, convenções de uso e intenções dos falantes. As condições de realização do ato de fala apresentadas por Austin (…) explicitam exatamente estas características: a investigação filosófica da linguagem deve realizar-se com base não em uma teoria do significado mas em uma teoria da ação (MARCONDES, 1990, pg. 11).
A visualidade das ações dramáticas dependem das relações extra-texto que o ator suporta e também dos outros elementos cênicos; significantes que os atores trazem consigo, impregnados no corpo, imagem, voz, visualidade do pensamento, relações, ações físicas, tensões, apropriações do jogo, resoluções de problema, movimentação, ritmo, relação com o espaço e o olhar do outro, etc. Isto tudo em relação fornece sentidos provisórios, que se diluem e deslizam. A apropriação de detalhes de um contexto extra-texto traz e produz, na relação com o texto, a visualidade de ações que vão imprimir um contexto para este. Assim, tem-se um jogo de colocar palavras em cena para só depois interpretá-las. É inevitável a formalização da fantasia, interpretação, identificação, desejo, quando se lê e memoriza um texto, para que este entre em cena. Sim, existe a visualidade que o ator traz como material interno. Este enquadramento, no entanto, não coincide com o externo. O enquadramento interno é um lugar (da estrutura do trabalho atoral) diferente do enquadramento externo oferecido pelo olhar do espectador (de fora), que, com os significantes que escuta (e que o ator não se dá conta porque não está vendo), jogando, produz. O enquadramento interno é diferente do enquadramento externo; é um material de estímulo, de engajamento pulsional que não precisa ser utilizado como báscula para o foco ou o recorte de ações físicas. Porque pode entrar como residual, auxiliar – e o foco do ator manter-se em outros lugares (regras de jogo por exemplo). Este arranjo, que conta com regras de jogo e encontros ao acaso, funciona com uma orientação para a atuação dramático-realista. É possível participar de possíveis misturas em possíveis experiências singulares. Ainda se pensa nas bordas deste arranjo quando se joga com o hibridismo e pode-se misturar pontualmente um gesto dilatado que estranha ou uma aceleração rítmica ou a coincidência de ações que causam o efeito de abstração e embaralham ou atrapalham a leitura do espectador, causando ruídos (e consequentemente poética). É possível colocar elementos do texto 94
dramático em jogo sem que se realize a mimese da visualidade que este evocaria em leitura. Não se trata da mise-en-scene ou da posta em cena do drama, mas de utilizar os diálogos (ou mesmo as rubricas, se podem ser ditas), como um dos vetores do dispositivo, que vai se unir, absorver ou se opor a outros. É uma questão de se perceber a visualidade das relações entre a palavra e a dimensão corporal que surge e, também, dilatá-la – para que as “sobras” (abstração corporal e vocal) se inscrevam como linguagem autônoma, daquele espetáculo em específico. A orientação é sempre utilizar o acaso dos encontros. Quebra-se a linha reta entre a visualidade da diegese e a criação de ações físicas. No trabalho performativo, a ação física (enquanto ação também diegética) é resultante do jogo com os resíduos da elaboração interna; e sujeita às defasagens do jogo de enquadramentos e atualizações. Isto, na medida em que o passo-do-sentido se dá junto às fraturas entre o texto e a escritura cênica – nos jogos de enquadramento. Ao mesmo tempo, se produz, entre texto e relações corporais, a visualidade do contexto diegético, que pode por sua vez suscitar a fantasia do espectador – de forma menos ou mais fragmentada. A fala pode ser percebida, no seu aspecto mais amplo, como ação sobre sujeitos – mas não apenas através da oralidade. O corpo veicula enunciação na medida em que fala, que os silêncios falam, que certa expressividade do ator fala. A música vocal fala; o timbre e certa ação veiculada à voz do ator. Percebe-se as três linhas. Na prática, se colocamos diferentes falas internas 33 subjacentes a uma mesma fala externa, esta vem impregnada de uma música diferente e, consequentemente, de ações diferentes: ação provocada pela junção entre a fala interna (que altera a música da voz), a fala externa (que também é ação) e a ação corporal. A ação, dramática, que implica a relação com o outro (ou mesmo a ação que poderíamos chamar performativa ou estranhada, que implica a quebra da quarta parede e a relação com o outro-espectador), vem impregnada de diferentes ações conforme o uso de diferentes falas internas, músicas ou ritmos da voz e materiais abstratos (linhas) para o corpo. A diferença entre a música da voz (como linha) e as palavras, pode chegar ao extremo de provocar uma colisão, ou uma dijunção entre estas – assim como se pode também fazer entre o corpo e a palavra. A ação (interna) é produzida de maneira a implicar a presença de um contexto onde esta se justifica e faz sentido. E é oferecida (enquanto leitura para o espectador) pela música da voz. A ação externa, implicada na palavra dita, está também a implicar este contexto e, além deste, o próprio contexto da oposição entre externo e interno, dito e não dito – que ganha lógica e sentido. Assim, o 33
Imagem acústica que ecoa em escuta silenciosa (material interno de apoio, oculto). O termo vem de Eugênio Kusnet, presente na sua obra como “pensamento de personagem”, oriundo de uma redução do monólogo interior. Ampliamos para toda e qualquer imagem acústica, mesmo as produzidas no contexto de jogo do ator (e não no contexto diegético).
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contexto da oposição entre ação interna e a ação externa, implicada na fala enunciada, está posto no dispositivo. A fala como outra ação, diferente da ação vocal – atrelada à ideia de dissimulação de um interno (ou de uma verdade suposta). Esta seria uma possível modalidade de impressão da fala externa como ação descolada da ação interna: a oposição. Esta modalidade está em Kusnet e produz um efeito de “contradição do personagem” 34. Mas é possível também uma modalidade de descolamento dos elementos que entram no dispositivo, funcionando como vetores distintos, sem que estejam articulados por uma relação de oposição (e sim de composição). A fala, constituindo uma linha melódica abstrata e de onde se captura passos-de-sentido, na medida em que uma “junção ao acaso” com a palavra permita a escuta de uma ação. Assim, uma ordem se destaca em meio ao ruído, formando um sistema de efeitos de sentidos provisórios. Há a possibilidade da fala interna fazer alusão à ação, construir pontos de contato entre a linha melódica e a fala externa. Mas isto não se dá o tempo todo e sim de forma a construir uma lógica, um mecanismo regular do recorte do sentido em meio à abstração (que forma uma poética específica). Esta ideia altera a orientação para a construção de uma partitura vocal. E entramos na mesma questão que colocamos para o corpo: existe uma área onde se atualiza registros sem a intencionalidade, no calor do jogo; existe a perspectiva de se jogar com regras que definem a presença de elementos formais aleatórios, para que a posteriori a sua presença seja apropriada na diegese, e suporte o enquadramento de uma fantasia (do eu no mundo e em relação). Foi na mesma época das proposições de Austin que o “Método de Ações Físicas” (stanislavskiano) foi elaborado, reconstituído a partir da sua memória dos processos de criação cênica vivenciados no passado. Segundo Knébel, neste método conta com a “análise ativa” ou “com pernas” – o texto sendo escutado em cena. Stanislavski abandona os longos “trabalhos de mesa” e parte para o corpo no espaço, estabelecendo um vai-e-vém entre escuta da cena e do texto, análise que chamou “ativa” em detrimento do termo análise “de texto”. O “Método de Ações Físicas” entra como um procedimento para a constituição de partituras físicas, onde o ator se coloca em relação com o espaço, constituindo uma série de ações físicas (um enquadramento plástico-corporal) antes de utilizar a fala. O que a Análise Ativa testemunha é que jogando o corpo partiturizado antes de falar, cria-se o contexto onde aquela fala terá lugar. Jamais o corpo vai representar a fala; o corpo vai dar um lugar para a fala. A visualdidade do contexto advirá das relações entre eles: o corpo com o espaço-tempo e dos corpos entre si – para a fala “bagunçar”, tencionar ou completar (estas relações), comportando-se, de qualquer maneira, como fragmento 34
Ver mais em KUSNET, E. Ator e Método. São Paulo: Ed. Hucitec, 2003.
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heterogêneo. A ilusão da operação de representação é a ilusão de uma suposta harmonia entre as ações da fala e do corpo. De qualquer forma, percebe-se os traços da atuação realista que podem ser definidos enquanto tal: a ação circunstanciada por um “quem, onde, o quê” (inserida em contexto diegético), a cotidianidade, a visualidade do pensamento, o enquadramento pela relação (com o outro, o si mesmo, o próprio contexto), de maneira a aparecer um “eu circunstanciado”. A noção ontológica está como base da atuação realista – ou podemos dizer “a fantasia do ser” – e que reaparece, ressurge e adquire novamente valor no Teatro Pós-dramático quando esta é, justamente, posta em questão, fragmentada, duplicada, deformada, relativizada, desjubjetivada, diluída, abstraída, etc. Pode-se dizer que o Pós-dramático, com seus enquadramentos que fragmentam a fantasia do ser, apontam para um lugar de enigma, explicitando-a, desnaturalizando-a. Assim, uma poética da atuação realista contemporânea comporta a relação com outros enquadramentos para que possa receber este estatuto. Por exemplo, um cenário realizado de maneira minimalista, produz outras visualidades que não estão no texto dramático utilizado como material. Se, por exemplo, para a montagem de “Navalha na Carne” (de Plinio Marcos), ao invés de um quarto de cortiço, utiliza-se apenas uma cadeira iluminada a pino por uma gambiarra. Este enquadramento pode evocar os dispositivos de tortura utilizados na época da ditadura (outra visualidade). A agilidade e dinâmica dos movimentos produzidos com regras de jogo, princípio da construção de uma linguagem gestual autônoma performativa, gera um excedente formal no que diz respeito às relações espaço-temporais (e entre os atores) que extrapola as resoluções dramáticas. Assim, o sentido do “eu circunstanciado” pela ação (implicando relação com o outro diegético e a expectativa de um depois) nasce em jogo (a posteriori a partir de associações livres). A palavra do texto é então utilizada como auxiliar deste jogo, sem que pré-determine o sentido da ação – construído como resultante. É um problema da atuação realista a necessidade de dilatação de acordo com o espaço da encenação. A opção por espaços intimistas traz a perspectiva de menor dilatação. No caso de um palco grande, impõe-se uma perspectiva de uma dilatação maior. São tênues os limites ou as bordas entre o que seria estilizar a atuação, com a ênfase no desenho (corporal) que se denuncia enquanto tal (anulando o efeito de realidade). Uma opção seria levar os espectadores para a área da cena, limitando a plateia a poucas pessoas, preservando o espaço intimista mesmo em teatros grandes. Esta resolução reverbera o desejo de se quebrar com a disposição do palco italiano (realizando o espetáculo em semi-arena), um dos dogmas do realismo. Mas a ênfase no desenho dos gestos não seria a única estratégia para a conquista da dilatação. Mal desenhada, “suja” (no sentido da imprecisão) e enquadrando o corpo através da 97
relação com o outro e a cotidianidade, a explosiva “ação sobre o outro”, implica, também, um corpo dilatado. São as cenas de diálogos intimistas que tendem a ser “engolidas” pela dimensão espacial, junto à perspectiva da voz sumir (e da atuação “não chegar à plateia”). Se o teatro exige um corpo vibrátil e dilatado, como mantê-lo durante uma ação intimista ou inação (quando não se utiliza da explosão da “ação sobre o outro” e tampouco da ênfase no desenho ou da tipificação)? Nossa resposta vem em defesa do treinamento extra-cotidiano, que deixa resíduos de abstração, mesmo quando se trabalha a cotidianidade (e certa tipificação, que se alterna e traz a perspectiva de se retornar ao “eu circunstanciado”). Trata-se de um equilíbrio entre várias operações. A atualização das deformações corporais e traços abstratos, registrados com os treinamentos extracotidianos, apresenta-se como saída para dilatar a atuação naturalista – na medida em que estes entram como resíduos na poética de um corpo imóvel ou permeado de cotidianidade. Seria diferente utilizarmos o princípio da estilização do gesto (anulando o efeito de realidade ao denunciar a construção cênica). O treinamento extra-cotidiano funciona como borrão, resíduo, corporeidade – enquanto registros típicos do realismo prevalecem no enquadramento externo. Assim, oscila-se entre a abstração e a cotidianidade; ou a tipificação e a cotidianidade. Também postulamos a presença de um “elemento atrapalhador”, um material que “bagunça” a partitura cênica, desestabilizando o ator (e causando a dilatação). O elemento atrapalhador torna-se, assim, um dos operadores da construção poética da atuação realista. A construção dramática através do diálogo, por sustentar uma relação com o tempo (e o desenrolar de sucessão de ações que causam expectativa), situa o trabalho de atuação em certo enquadramento, tencionando-o. Isto também dilata a presença do ator. A precisão não do desenho dos gestos, mas do desenho das ações dramáticas também dilata. No entanto, o corpo veicula ações em uma linha paralela às ações da fala. O que se vê é, novamente, as relações de desenho espaciais abstratas tomando forma na medida em que enquadradas pela diegese que surge na hora. Se estamos tratando de uma diegese dilatada por certa curva dramática, esta contribui para a dilatação das ações físicas inscritas nestas linhas, nos seus espaços, nas suas “entre-linhas”. Percebe-se aqui, também, um jogo entre drama e os princípios da construção da atuação realista. Percebe-se, entre o drama e a poética da atuação realista, duas operações divergentes: uma é o fragmento da visualidade de uma realidade diegética que não se encontra na curva do drama e esvazia o seu sentido (e o sentido do tempo inclusive); outra é o drama enquanto dilatador dos corpos na poética da atuação realista que necessita de dilatação. No ponto em que a visualidade da progressão dramática se encontra com as ações físicas, esta lhes serve como dilatadora. Isto se dá em momentos específicos e não como princípio totalizante. Este é tomado como um princípio entre outros em um dispositivo complexo onde o jogo de enquadramentos impera. 98
11. Elemento atrapalhador e outros princípios: a performatividade na poética dramático-realista
Princípios Sausurre postula dois eixos da linguagem: o vertical, composto por elementos mínimos (diferenciais) empilhados, é responsável pela operação da metáfora; e o horizontal, composto por elementos mínimos (diferenciais) sequenciados, responsável pela operação da metonímia. Na psicanálise freudiana, condensações e metonímias são as operações que sustentam formações inconscientes, por exemplo, a formação das imagens oníricas. Condensação enquanto síntese, sobreposição, substituição (metáfora) dos elementos; metonímia enquanto deslocamento destes materiais isoláveis e diferenciais, que podem ser desde um fonema, sílaba, palavra a uma frase, por dentro de um sistema onde outros significantes atuam. Quando falamos “linguagem”, não se trata de relações diretas entre significantes (forma das palavras) e significados (o seu conteúdo). Trata-se desta outra concepção de linguagem, que Lacan leva em conta para, juntando Freud com Saussurre, postular “o inconsciente estruturado como uma linguagem”. E, embora nem toda linguagem seja uma estruturação do inconsciente, estamos tomando este mesmo aforismo em analogia e como premissa de uma poética cena. Ficaria: “A poética da cena é estruturada como uma linguagem”.
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Dito isto, como o corpo pode se transformar na tela de onde se extrai um significante, que se junta a outro, para que um efeito de linguagem surja? Como se dá a escuta do corpo enquanto instância de um dizer? Estamos considerando este dizer sem articulá-lo a um dito. Levamos em conta que a poética aponta para um espaço de ausência de significação, através de formações instáveis que, em montagem, podem dar, à escuta, sentidos provisórios. Toma-se o Jogo Teatral como princípio absoluto de qualquer criação cênica. De maneira que esta é sustentada por “regras” – onde o foco (de atenção) do ator se situa e através das quais se regula tempo e espaço (para que uma poética da cena surja). Explicamos também o que tomamos como “poética”: na relação entre ordem e caos, surge uma forma onde algo escapa ao dito (não é possível dizer tudo, não é possível se compreender tudo e é então que a poética surge). Este conceito está fundamentado no pensamento lacaniano, com a noção de obra de arte enquanto “figuração do objeto a” – um objeto sem imagem, que não suporta designações e, assim, se comporta como “causa de desejo”. A obra de arte afeta o espectador justamente por figurar algo que não se consegue traduzir (em palavras), mas que funciona como causa de seu desejo. Entre corpo e enunciação de fala Se, por exemplo, elegemos a seguinte “regra de jogo” (Spolin, 1979) para estruturar uma improvisação teatral: “reagir, com o corpo, às palavras”. Durante o jogo com a regra “reagir, com o corpo, às palavras” a produção corporal não segue a lógica da resposta aos ditos das falas (como era esperado). Na verdade, trata-se da reação “ao ato de falar” (independente do que se fala). Interrogase o que o corpo (com as suas pequenas explosões, durante as reações ao ato de fala), atualiza. Como se dá o recorte das formas? Trata-se de “uma reação” em seguida, em sequencia – ou seja, de um brevíssimo instante depois. Preenchendo o espaço “vago” na cadeia de sucessão das falas, as formas corporais instalamse nos instantes de silêncio, defasagem, salto entre uma frase e outra (como se, nestes instantes, a fala cedesse o bastão ao corpo). Produzidas como reação instantânea (sem a intencionalidade do ator), estão impregnadas da memória corporal. Não se tratando da lógica de uma reação ao dito, os desenhos do corpo são aleatórios em relação ao que se falou. O jogo de escuta entre desenho corporal e palavra se dá ao acaso, portanto. Impera certa dose de abstração e, por outro lado, de sentido, quando se consegue capturar um. Pode-se dizer também que o que está em questão é um corpo “imaginário”, imagem unificada com a qual o sujeito se identifica como um “eu”, mas que é também um corpo-linguagem, estilhaçado e compartimentado pelo verbo: braço, perna, pescoço, ângulo, leve, solto, pesado, tenso. 100
E pode-se pensar, ainda, neste “verbo”, que estrutura este corpo, não como linguagem, mas como alingua . Para a psicanálise, a subjetividade é estruturada em três ordens: Simbólico, Real e Imaginário. Estas ordens se articulam. O “eu” diz respeito à ordem do Imaginário, assim como o corpo especular que podemos ver como nosso. Mas existe o corpo tecido de linguagem (o corpo da ordem do Simbólico) – e é neste sentido que a palavra consegue atuar no corpo (porque ele é também Simbólico). E existe ainda o que do corpo é “Real”, ou seja, indizível. Para a psicanálise, o Real é o indizível, o que não se inscreve na linguagem. O corpo da ordem do Real é pulsional e depósito de “gozo”. “Gozo” enquanto conceito (lacaniano), que implica repetição e excesso (de prazer). O corpo “real” (gozante) é um depósito dos “cacos” da alingua. Alingua como o que, do verbo, não forma linguagem. Se a linguagem é um sistema (organizado), com significantes que se condensam (se juntam) e deslizam (no eixo horizontal), construindo dizeres, a alingua é a parte do verbo que não diz nada, mas é “música”, é “lalação”. São sons que não se organizam, que sobraram à linguagem, mas fazem corpo (Real), do qual o sujeito goza. Vislumbrando que algo do corpo não se ajusta à linguagem, mas é depósito para os efeitos da alingua, dizemos que este corpo, atualizado nas entre-linhas das falas, é também aquele que suporta uma teia de relações com o verbo enquanto suporte de um não-dito. Assim, no exercício da reação corporal (à palavra), está implicado o não-dizer. Está implicado o sentido (do eu), mas também o não-dito que faz a poética acontecer. Seria possível que o jogo da produção aleatória entre fala e corpo fosse realizado sem se alternar os tempos (da fala e do corpo)? Supomos que a presença conjunta limite o corpo, pois o seu desenho, neste caso, tenderia a ser absorvido no enquadramento da fala. Existe, na História do Teatro, uma luta clássica entre a palavra e o corpo. Quando ambos determinam organizações do tempo-espaço, competem entre si. A fala também ocupa uma forma corporal para a sua enunciação. Assim, o ato da fala tende a absorver um desenho de corpo estranho a esta, limitando-o à própria incidência. A fala suscita imagens e evoca situações, constituindo um “enquadramento diegético”: a fábula (a ficção evocada). Se o desenho do corpo é aleatório (está fora desta diegese), tende a ser absorvido (diluído). No caso da coincidência do tempo entre a produção corporal e a enunciação da fala, o ator tenta regular a primeira de maneira que faça jus a segunda. Já quando a regra de jogo é a alternância, o desenho prima pela abstração: uma espécie de “derrapagem” que as formas aleatórias são capazes de dar na palavra, quando aparecem como “reação” (e não como representação). Quando não é absorvido pela fala, porque acontece em outro tempo (logo em seguida ou instantes antes), a 101
produção corporal pode conter atualizações cujo desenho se revela abstrato. Algo da forma corporal pode ser recortada ao acaso, não se limitando ao sentido imaginário do dito e produzindo amplitude para os “passos-de-sentido”. “Passo-de-sentido” é um termo de Lacan. Ele brinca com o francês “pas du sense”, onde o pas é “não”, mas também pode ser “passo”. Quando, na cena da relação entre palavra e corpo, captura-se um sentido, tem-se “um salto”, um “passo”. “Pula-se” para o contexto ficcional (cria-se de repente o enquadramento diegético). Mas, ainda assim, algo escapa deste enquadramento, pois a plasticidade corporal associa outras coisas também (não só o que é enquadrado na ficção) – ou, ainda, sobra algo que resiste a este enquadramento e mantém-se opaco. Manejo do tempo A poética corporal é fundada no manejo das relações espaço-temporais. Basta dizer para o ator “Mais lento!” que o seu corpo, enquanto tela, se refaz; e outros significantes são escutados; outra escrita de afetos é atualizada. Basta utilizar uma regulagem do tempo como (por exemplo) a seguinte sequencia: “Câmera-lenta, explosão, desvio da direção do movimento seguido de pausa abrupta”. Percebe-se um breve intervalo (onde se situa o “passo”) entre: a inscrição do corpo em cena e o que as formas evocam na escuta e no olhar do sujeito (que imagina ações provisórias). A performatividade da poética surge neste intervalo. O espectador se coloca diante de algo que ainda não estabeleceu um sentido, mas que apresenta uma lógica ou uma regulagem qualquer, conduzindo-o a pensar que a cena fala “para ele”. Neste sentido o teatro é ritual: todos olham para um ponto, onde algo ainda não sabido pode advir. Um dizer sem o dito traz a expectativa da produção de uma “fala outra” (onde o sentido se sustenta). Assim, as abstrações ritmadas possuem um dizer (sem um dito). Em que momento se dá o “passo-desentido”? Em que momento advém o “eu circunstanciado” por uma ficção? Em que momento produzimos um imaginário calcado pelas relações do eu com o mundo (figurativo)? Em que momento produzimos fantasias que suportam a presença do “eu” e do “outro” em relação? Montagem ficcional Para chegarmos, durante o improviso cênico, à figura de um eu circunstanciado, precisamos de um insight: “ver” relações intersubjetivas, identificar-se. Isto se dá com a extração de um significante, o seu deslocamento (metonímia) e a montagem (condensação) com outros, formando uma imagem (um quadro, uma paisagem interna). O olhar desenha a ação (que é pura fantasia do “eu 102
no mundo”). Pode-se dizer que temos uma “cena corporal performativa” porque o olhar “performa” sobre o corpo, extraindo significantes da imagem corporal, juntando-os e criando a ficção do eu circunstanciado. Quando o Teatro Pós-dramático sustenta, não um universo diegético intacto, mas fragmentado e múltiplo, produz espaços abertos (e a perspectiva do sujeito incluir o seu desejo nesta escuta). Mas são necessários caminhos para esta escuta (caminhos de deslizamento e junção dos significantes). Não como um corpo representativo de histórias, como em Decroux e a Mímica Corporal Dramática . Estamos mais para Lecoq que, com o seu conceito de “corpo poético”, testemunha que o ponto de partida está na aleatoriedade das formas (mesmo quando, paradoxalmente, se pretende o corpo figurativo). Quando Lecoq propõe um estímulo como “água” e o ator tenta, com o corpo, representar a água, a forma produzida resta à imagem da água (obviamente não é possível que o corpo se transforme na imagem da água). É extraindo um significante da imagem da água (por exemplo, “fluido”) que o ator se move (de forma fluida), imitando a água. Assim, a fim de figurar a água, ele produz outra coisa, da qual o espectador também extrai um significante. O ator acaba por imprimir algo que serve para a construção de uma poética justamente na medida em que o espectador não extrai “água”, mas outra coisa. Ao deparar-se com a imagem do corpo, o espectador engendra outra cadeia de efeitos imaginários em sua montagem. Metonímia e condensação são operações-base destas montagens, que sempre deixam “algo” escapar, não inscrevendo tudo. É quando se aponta para este limite (esta falência do dizer) que o efeito de obra (de arte) é produzido. Letra e linguagem O que o corpo imprime do grafismo da imagem “água”, no encontro com a sua própria materialidade, resulta em uma forma de onde o espectador extrai outro significante para engendrar a própria fantasia. E a forma da imagem do corpo que restou impressa em cena (como se a cena fosse uma folha de papel), seria o quê? Uma grafia? Uma letra? Coreografia? A opacidade da “letra”, inscrita no papel em branco, serve de analogia para a imagem corporal. Porque o que se extrai na escuta é a imagem acústica. Da mesma forma que a escrita no papel é outra coisa que não a linguagem imagem: a imagem acústica “a” é diferente da grafia “a”. A letra sobra, resta à linguagem (ao significante extraído). Este é um dos princípios para se trabalhar a composição corporal: do corpo enquanto letra (impresso na cena) se extrai significantes (linguagem) para a composição imaginária (no olhar do espectador). É neste sentido que o olhar do espectador performa e podemos dizer que a composição 103
corporal é performativa. É assim, o “passo”, o “quase”, o “meio” (sentido) – e a poética. Tal como diz José Miguel Wisnik (1999), a música acontece na relação entre o som e o ruído. A “letra corporal” seria, por analogia, o ruído: a sobra, a mancha, o que não se organizou na escuta, o que resistiu. Há tantas marcas de um corpo que sobram à apreensão imaginária da “água”. Mas entre os ruídos, é necessário um recorte preciso para invadir o olhar do espectador. Para que o passo-dosentido aconteça (e um contexto de ações se apresente para depois ser diluído), é necessária a precisa extração do significante. Há o momento da “não-leitura” (espera, suspensão, devir) e do insight. Trata-se de um processo metonímico, de extração, com o olhar, de algo que se insinua por entre as marcas; e de síntese (condensação), quando o espectador, além de extrair, junta o que escutou com outros significantes, para desenhar o enquadramento (a imagem onde, na sua própria imaginação, um sentido aparece). Da ação primária ao eu circunstanciado O procedimento “Corpus Subject Investigation” foi desenvolvido na Universidade Vila Velha e é aplicado na disciplina “Poéticas do Corpo”, ministrada pela autora no curso de Artes Cênicas. Neste procedimento, o passo-de-sentido se dá a partir da abstração do movimento, seguida da extração do significante, que produz o sentido da ação (e do “eu circunstanciado”) quando deslocado para certo contexto imaginário. Partimos de formas plástico-corporais aleatórias. As formas são construídas com o que chamamos de “ações primárias”; verbos como: “deslizar”, “socar”, “cortar”, “pegar”, “largar”, “torcer”, “furar” . As ações físicas resultantes guardam alta dose de abstração, apesar de passíveis de serem articuladas a um eu circunstanciado. A compreensão de um “eu circunstanciado” é engendrada após a inscrição do corpo em cena, através de cadeia associativa. Esta cadeia associativa é constituída por livre-associação, ao acaso, e conta com os encontros entre visualidade dos materiais que o espectador dispõe (na sua própria relação com o mundo e seu repertório de vida ou, ainda, pactuados com uma cultura) e o que se dá em cena. Os materiais do espectador são evocados pelas formas corporais. Por exemplo, a atriz está “brincando” com a ação primária “socar”. A mão vai e volta diante da boca. De repente, associamos a ação (circunstanciada) de “escovar os dentes”. Em um segundo momento, a atriz traz um batom e troca a ação de escovar os dentes pela ação de pintar, de forma grotesca, a boca. Dois sentidos de ação, duas montagens passíveis de serem produzidas a partir da mesma ação primária. 104
A ação primária não se reduz à representação de uma ação ou de outra. A ação primária ainda não está circunstanciada, é aleatória. Boa dose de abstração é mantida no enquadramento plástico-corporal quando este tem início com a ação primária (algo de abstrato, de ruído, que excede a representação da ação de passar batom ou de outra qualquer que se possa articular). A imagem do corpo, carregada de marcas, é impressa. Desta se recorta o significante (ação) que implica um “eu circunstanciado” (passando o batom), engendrado no tecido social, através de uma fantasia que articula outros significantes e imagens (na cadeia associativa particular de cada espectador). O instante da “compreensão da ação” é o instante da extração de um significante que se desloca para junto de outras imagens, construindo um contexto, produzido por identificação (porque o espectador se coloca nestas imagens, lembrando de si ou de algo do seu mundo, identificando a ação). O estatuto do movimento corporal é alterado neste instante, passando à “ação física”. Este instante envolve o prazer (de olhar). O próprio olhar interpretativo é evidenciado; uma espécie de “olho, logo existo”; pensamento esperando (entretido na busca), engendrando, em movimento, in loco, mexendo com os afetos. A questão da imagem vocal A palavra se configura como uma linha de ação diferente da linha de ação do corpo e, também, da textura da voz. Do que é impresso, em cena, em forma de som (imagem vocal), pode ser extraída a ação vocal, compondo uma terceira linha. Mais um enquadramento para compor a fantasia de um “eu circunstanciado”. Também com o desenho vocal é possível criar arestas, desvios e justaposições, que se insinuam e se diluem; para que o espaço aberto entre as escutas suscite diferentes interpretações e preserve a ordem do indizível (sem, no entanto, se tornar hermético). Estamos falando aqui de uma espécie de “coreografia (ou movimento) vocal”, onde a abstração das linhas também está presente. A voz (em jogo) torna-se instrumento para oferecer ao espectador a perspectiva de “escutas” (no plural). O trabalho com regras de jogo é amplo e abre possibilidades de experimentação. Da mesma forma que ações primárias são utilizadas para produzir abstração corporal, pode-se organizar também uma produção vocal aleatória. São ações primárias para a voz que entram como regra de jogo; propriamente view points (Bogart, 2011), orientações vetoriais, como “rápido”, “pesado”, “saltando”, “formas geométricas”, etc. 105
Assim, torna-se possível que enquadramentos espaço-temporais (abstratos) produzidos pelas regas de jogo, articulem outras ações, “sem querer” (por encontro e acaso) – ampliando o imaginário sobre o texto (dilatando-o). No enquadramento espaço-temporal (criado com regras de jogo), surge o universo diegético (do personagem). Quanto ao jogo com a palavra advinda de um texto, evita-se o exercício de decorar oralmente, para que a ação vocal seja produzida em jogo, incorporando as reações e a relação com o outro. Para isto, utiliza-se, em jogo, fragmentos do texto memorizados com a repetição da escrita.. A Memorização Através da Escrita provoca associações, substituições , afetos, impulsos de ação e fantasias. Mas estas permanecem livres de qualquer vínculo com a imagem vocal que seria antecipada pela oralização (ato de decorar). Durante a escrita há escuta interna de imagem vocal, que, no entanto, permanece em potência e será moldada apenas quando a fala for anunciada, no contexto das relações em cena, no momento do improviso. A borda de uma ontologia Cada jogo tem a sua regra de proibição. No futebol, por exemplo, a mão na bola é proibida. Para se produzir o efeito de realidade no Teatro, a representação da ação que se lê na palavra é proibida. Qualquer material (desenho corporal ou ação vocal) entra, em relação com a palavra, gerando uma terceira coisa, relativamente instável, que se captura na hora. Isto acontece com a imagem corporal, com a imagem vocal e com as relações espaciais e temporais. Em experimento com “Navalha na Carne” , em improviso com as regras, estando em jogo o que compreendemos da relação entre os personagens, aproveitando-se de uma produção “aberta” de impulsos que a Memorização Através da Escrita
constitui, a ação tensiona o enquadramento
abstrato. Quando surge o “passo-do-sentido” (instante em que as ações são constituídas), a aleatoreidade das relações espaciais é absorvida. O que era apenas desenho gráfico ganha o sentido de ação. Esta ação é engendrada fora da intencionalidade do ator (cuja atenção está concentrada nas regras de jogo). Os elementos diegéticos advindos da fantasia (produzidos na Memorização Através da Escrita) são auxiliares e residuais. A tessitura da poética dá lugar ao não-sentido da estrutura espaçotemporal (criada por uma regra de jogo aleatória), que passa a ter sentido na diegese (quando absorvido por esta). É deste jogo que surge a poética de uma performatividade das ações. Trata-se de um sentido “não-todo”; uma borda entre a abstração e a figuração (poética). Contempla-se os limites da forma dos enquadramentos e aponta-se para um lugar onde a forma da 106
ficção não está presente. Esbarra-se no limite da forma da ficção, nos limites da ontologia dos seres e das suas ações ou pensamentos. Trabalhar esta borda é um princípio da construção de um efeito de realidade poético, quando se parte de relações puramente espaciais . O enquadramento interno do ator (suas imagens, relações, fantasias) funciona como “absorvedor” (agente de absorção) da abstração das relações espaciais. O enquadramento externo (relações espaciais aleatórias) é absorvido no enquadramento interno, ganhando sentido (na medida em que uma fantasia situa as imagens e dá vazão aos afetos), sendo borrado, entortado, diluído, transformado (para evocar aquelas ações). Graças à pressão do enquadramento interno, o enquadramento externo (aleatório) se transforma (muda de forma). O enquadramento interno é absorvedor e dilatador ao mesmo tempo. Organizando o ator internamente, permite que este se sustente no tempo e no espaço da cena, por mais aleatórias que sejam as regras de jogo. Exemplos de regras de jogo “A cadeira nunca deve estar vazia, por exemplo, utilizada na montagem de “Navalha na Carne”, é uma regra aleatória. Não se sabe que relações ficcionais aparecerão a partir das trocas de lugar, ou das ações de pegar, sentar, largar a cadeira, quando estes movimentos encontram as palavras lançadas no ar. Já tínhamos constituído uma perspectiva imaginária com visualidade e afetos durante a Memorização Através da Escrita (repetimos o texto até o ponto de conseguir escrevê-lo sem olhar). Durante o improviso, no entanto, o foco do ator se mantém na regra que organiza os corpos em torno do objeto “cadeira”, enquanto lidamos com o outro, relação pela primeira vez experimentada. A coreografia com a cadeira contorna, desenha, fornece bordas à dinâmica das ações físicas, que surgem nas entrelinhas do texto dito, com uma boa dose de abstração e pontos de entrelaçamento no enquadramento diegético. A cadeira acabou por se revelar um instrumento de: a.) agressão (Vado empurra Neusa e, com a cadeira, a pressiona contra a parede; b.) proteção (Neusa tira, com ímpeto, a cadeira da mão de Vado e a deposita com força no chão para em seguida sentar-se); c.) disputa (Vado vai atrás de Neusa e tira-lhe a cadeira das mãos; d.) figuração (Vado faz a cadeira de “mulheres” para provocar Neusa); e.) sedução (Neusa senta-se sensual). Pode-se jogar com duas, três, quatro regras a um só tempo. Outras regras utilizadas com “Navalha na Carne” foram: sempre uma dupla e um sozinho (sendo que a dupla deve ser trocada a cada três frases); cada um em uma ponta da sala (em relação de oposição); em algum momento um tem que tocar a orelha do outro; não podemos desencostar da cadeira; cada um deve se contaminar 107
pelo ritmo do outro; cada um deve trabalhar o ritmo em oposição ao ritmo do outro; andar em círculos e parar agachado (e depois repetir). A regra “sempre uma dupla sozinho” organiza um dispositivo onde deve prevalecer a alternância das posições espaciais: 2 e 1 em alternância. A cada três frases, deveríamos alterar a dupla. O jogo gerou vetores de movimento (gráfico, desenho, abstração) absorvidos na diegese. Em certo momento, um ator junto a outro (Vado espancava Veludo). Ao falar três frases o primeiro deveria se afastar. A regra de jogo gerou um vetor oposto à ação da personagem e ao ceder a este vetor (e, na medida em que este foi absorvido na diegese), criou-se uma contra-ação: Vado une-se a Neusa (que estava separada deles devido a regra), olha Veludo e, depois de algumas frases, vai “novamente para cima” (bater nele). A partir de um grafismo aleatório (e na medida em que a articulação com a diegese é produzida em improviso), a ação foi desenhada. O que era grafismo ganhou estatuto de ação. Os atores “preenchem” o espaço das entre-linhas dos desenhos gráficos (produzidos por uma regra de jogo) com o sentido da relação com o outro. A diferença conceitual entre “ação dramática” e “ação física” torna-se instrumental. A ação dramática está inscrita no universo diegético, que implica a relação com o outro (o eu circunstanciado). Quando nomeada, constitui-se como “verbo-de-ação”. O enquadramento espaçotemporal (a plasticidade cênica) pode apresentar-se como puro movimento, sem ter relação alguma com esta ação dramática. A ação física é a junção entre os dois: movimento mais ação dramática. A ação física concretiza-se com a absorção da plasticidade espaço-temporal na ação dramática. A ação física é a síntese da ação dramática com o enquadramento espaço-temporal. O jogo abre o espaço para a contingência dos encontros entre espaço-tempo cênico e ação dramática. Assim, descobre-se ações físicas, dilatando o imaginário (sentido) sobre a ficção. A fricção A Memorização Através da Escrita não dá conta da embocadura do texto, da fluência da fala e sua dinâmica. O procedimento é realizado para outros fins, como: evitar a formatação da oralidade do “decorado” antes de se ir para a cena, constituição das ações vocais junto às intempéries das ações físicas, gerar material residual, despertar a memória corporal (com seus afetos), produzir substituições, transformar os sentidos, criar fala interna. No entanto, em um momento seguinte, a repetição da oralidade junto às ações físicas já constituídas no improviso é necessária, para que a dinâmica da cena flua. Para recuperar a partitura cênica constituída nos improviso (que foram filmados) criamos as “falas internas do corpo”. A incidência da fala interna dilata a ação física, devolvendo-lhe a vida. 108
Também serve de apoio interno, situando o foco de atenção enquanto reproduzimos o desenho corporal. Assim, recolocamos as ações físicas em cena, definindo uma partitura física (fixa). Assim, repetimos as ações físicas junto às falas d texto, que ainda escapavam, “friccionando-as”. Existe uma dimensão superficial nesta “fricção”. A superfície da cena implica a relação plástica entre os atores: a sobreposição ou alternância das vozes, tempos de espera, contatos, rupturas, alternâncias de movimento. É como se o espaço tridimensional (que se abre a partir das falas e visualização internas) sumisse. A superfície da cena, friccionada, esquenta tanto, que não dá tempo para o ator concentrar o seu foco de atenção em materiais de abertura deste “interno” – outro eixo, transversal ao da cena. A superfície lateja. É possível que o ator a rompa, dedicando-se a “resolver o problema” do foco no material interno. Isto pode se dar paralelamente às ações físicas e vocais ou rompendo-as e abrindo tempos de silêncio (pausas, desaceleração, defasagem). O que normalmente acontece é: estes materiais internos são elaborados “no calor do momento” em nome próprio. Não se trata de material diegético e sim do ator pensando “coisas” em nome próprio enquanto as ações físicas “fervem” (o pensamento do personagem se configura como uma camada residual neste momento). Este “estado de explosão” acontece com a repetição das “fricções” (das falas junto às ações físicas). É como acender uma fogueira com dois tocos de madeira. É preciso raspar várias vezes até conseguir a faísca que vai queimar a madeira e gerar a chama. O princípio de construção de uma superfície explosiva através da fricção não desautoriza ou desvaloriza a constituição de falas internas e visualização, que se mantem residuais. Este princípio revela-se como um vetor em oposição à fricção, causando rupturas na tessitura da cena e justaposições – abrindo um eixo tridimensional, gerando profundidade e constituindo enigma. Tratase, novamente, de um “jogo do ator”, em um dispositivo complexo, com vetores que se relacionam de forma não harmônica (os procedimentos são heterogêneos entre si). Cotidianidade e tipificação Na montagem de “Navalha na Carne”, a presença da cotidianidade foi utilizada como uma regra de jogo: abrir a porta como sempre faço e sentar no sofá. A cotidianidade, como regra, não se circunscreve à representação daquela personagem, mas à construção de uma poética específica do corpo, que se vale de um conjunto de princípios: a substituição repentina da fala interna pela externa (para produzir a ilusão de que a palavra é formulada na hora), a divisão de foco, as escanções de tempo e sobreposição ou atrito de vozes, a enunciação oscilante, as variações de volume e de velocidade, a imprecisão e indeterminação da forma corporal. 109
Outras regras utilizadas (ao mesmo tempo, deixando o jogo mais complexo) foram: “produzir monólogo interior durante a cena” e “toda vez que houver silêncio ir até a janela”. Estas regras imprimem a visualidade do pensamento – revelada como espaço enigmático onde se passam imagens vetadas ao publico. Utilizamos, ainda, a incidência de materiais residuais, produzidos antes de entrar em cena, descrevendo (pela escrita) programas supostamente vivenciados (a personagem Neusa Sueli é uma prostituta). Utilizei substituições (Hagen, 2007), imaginando programas com pessoas com as quais tive qualquer tipo de relação profissional e pelas quais eu sentia uma espécie de repulsa (no que diz respeito à estranheza dos corpos, o dente manchado, suor, cabelo desgranhado). Para entrar em cena, mais uma substituição: a fala interna “Eu tenho que mudar de vida, eu não aguento mais”. É possível uma articulação com a personagem (que supostamente estava cansada). O ponto de partida não é a representação do cansaço de Neusa Sueli, no entanto, mas a criação de um suporte interno com a mesma lógica. O processo começou com a ênfase no registro realista até que necessitamos da tipificação (da “puta velha”), para dilatar. O que produzi jogando com “bandida”: um “quem” (Spolin, 2008), que absorve desenhos corporais produzidos em práticas pré-expressivas, que por sua vez, tencionam a produção da cotidianidade. A forma tipificada constitui-se também como uma “máscara corporal”. Mas não se trata da representação da prostituta e sim da absorção de registros produzidos anteriormente com o “Campo de Visão” . Estes registros são atualizados através do jogo com “bandida” ou outro material. Assim, ao entrar em cena com o foco na fala interna “preciso mudar de vida”, o andar se modificou (passou por uma tipificação). Os repertórios corporais, quando encontram a visualidade ficcional, “vazam”, transbordam. Isto na medida em que funcionam como auxiliares para as ações produzidas. Assim, instauramos, a cada ensaio, a dinâmica do “Campo de Visão”, após a Memorização Através da Escrita e antes de entrarmos em jogo com o texto. O Campo de Visão se vale dos enquadramentos internos constituídos durante a memorização, que dizem respeito à fantasia sobre as personagens, suas ações e os pensamentos. Outra modalidade de treinamento desenvolvida na Universidade Vila Velha a partir de proposições de Javier Dalte é o que nomeamos como “Ação Sobre o Outro”. A ênfase recai em ações que invadem o corpo do outro, retirando-lhe de sua “zona de conforto”, desafiando os limites da relação entre-dois. As ações físicas resultantes foram visivelmente atravessadas pelo imaginário das relações Vado-Neusa, Vado-Veludo, Veludo-Neusa. Com o Campo de Visão e ainda sem o filtro das falas, um visível “laboratório de formas”: exacerbação plástico-corporal; excesso e deformação. 110
Estas formas são filtradas (ou diluídas) devido à utilização proposital de fala interna, quando se coloca em jogo a própria ideia de realismo. Os registros são recuperados através de desvios, de traições, de desafios à forma realista. As formas adquiridas em treinamento extracotidiano resultam armazenadas, soltas, prontas a serem acomodadas no jogo com o texto, apesar da ênfase não estar mais na plástica corporal, mas na plástica das relações. Força-se a movimentação para que esta se acomode no fluxo das relações, nos “entre-dois”. Sem contrapor emoção e razão, ou forma e realismo, pois o realismo tem a própria forma (os corpos precisam estar imbuídos da cotidianidade) - mesmo em jogo com a tipificação e o estranhamento que advém da relação entre diegese e cena. O pensamento do personagem precisa aparecer como uma das tessituras, camadas, superfícies da cena. Ao invés de dicotomias como “emoção versus razão” e “emoção versus forma”, ou “realismo versus formalismo”, propomos: “enquadramento na relação com o outro” versus “enquadramento na plasticidade corporal”. Trata-se de um jogo com enquadramentos diferentes em oposição, o que cria tensão e resolução em cena. O enquadramento (organização) plástico corporal “joga” com o enquadramento pela relação com o outro, que também tem a sua forma, os seus limites e as suas perspectivas de dilatação. Um pensamento não dito “Navalha na Carne” tem início com Vado aguardando a prostituta Neusa Sueli para saber o que foi feito do “tutu” que ela deveria ter deixado (como todo dia). Sem saber que foi Veludo (o arrumador dos quartos do cortiço) que pegou o dinheiro, Neusa não entende do que o homem fala e leva uma surra. O caso é solucionado quando Veludo, sob tortura, confessa. Mas ainda depois o conflito se adensa, chegando à agressão psicológica e coação. Na leitura do texto, somos levados a pensar que “a bronca” (para usar uma palavra do vocabulário que Plinio Marcos) de Sueli é por ciúmes. Com a presença de Veludo no quarto do casal, acontecem duas inversões: Neusa e Vado se tornam cúmplices e, depois, Vado torna-se cúmplice de Veludo, deixando Neusa incomodada. A partir do jogo com regras, o trabalho de dilatação imaginária evocou o que Ryngaert chama de “implícito” do texto: o interesse de Vado em cafetinar garotos, já que a “puta velha” não dá mais dinheiro como antes. Este suposto pensamento de Vado em momento algum é explicitado no texto. Este enquadramento apareceu quando os atores foram receptores da visualidade das ações impregnadas na vivência do jogo. O insight levou à criação de ações internas, que se desdobraram, sustentando a erupção do afeto a partir de certa lógica, trazendo a visualidade deste (outro) mundo: 111
um pensamento escondido, um não-dito do personagem, (aproximando-nos da atuação naturalista e dramática). O pensamento do personagem foi construído com a “dilatação imaginária”, quando as frases reverberaram em escuta fora de cena: “Você pensa que eu não percebi a sua jogada com o Veludo?” (Neusa Sueli) e “O que você gosta mais, de maconha ou de moleque?” (Vado). A palavra “moleque” ecoou durante a rememoração da vivência do jogo, com a visualidade das ações físicas diante dos nossos olhos (exercitando a escuta sobre as cena e não sobre o texto literário). A vivência (rememorada) da cena em encontro com as falas, e o insight: “Ele está pensando em cafetinar os meninos! Isto que deixa ela com ódio”. Este insight poderia ter vindo em qualquer momento: no meio da rua ou no ponto de ônibus, acordando, conversando, mas veio na Memorização Através da Escrita . O “moleque” (não “jovem” ou “peguete”, mas “moleque”) trouxe, no seu enlace, uma cadeia de significantes: menino, criança, menor, Querô . Antes deste insight, que partiu do deslocamento da palavra “moleque”, as frases não tinham valor para a atriz (“Eu tenho é moral”; “Só sei que você me embrulhou o estômago”, “Só não sou é de bacanal”). Veludo paga crianças para ser tocado; Vado se interessa em cafetiná-los: foi esta a fantasia que conseguiu enlaçar pulsionalmente a atriz, afim de deixar-se levar pela “ação sobre o outro” e borrar os enquadramentos advindos das regras de jogo, produzindo o “efeito de realidade”. A ideia de que Vado pensa em cafetinar garotos é um enquadramento. E é capaz de absorver a aleatoriedade das partituras físicas (criadas com regras de jogo), dilatando-as em função do afeto gerado (a partir desta lógica e olhar). O afeto bagunça as relações espaciais organizadas com as regras. O ódio é sustentado com a fala interna: “Ele pensa em cafetinar os meninos!!!”. A energia é canalizada para a “ação sobre o outro”, dilatando o enquadramento plástico-corporal advindo; excedendo-o, deformando-o, desafiando os limites da sua forma. Assim, atua-se “nas bordas” entre caos e ordem, na borda dos enquadramentos, que se tornam instáveis. Elemento atrapalhador “Vamos brincar de destruir esta partitura?” A regra de jogo passou a ser: “Não executar a partitura”. Nós nos colocávamos em relação a sua visualidade e fazíamos outra coisa. A partitura passou à camada residual. Isto fez parte de um momento, até percebermos a força do elemento “atrapalhador”: no caso, a exacerbação da violência. O foco passou a se concentrar em pontos de agressão e defesa, reações abruptas, o detalhe do corpo do parceiro, a sensação. Trata-se de um desestabilizador do arranjo. O ator, na atuação realista, precisa lidar com certa instabilidade ou o efeito de realidade não acontece. 112
Todo ato criativo implica um salto no vazio. O salto tem de ocorrer no momento certo e, no entanto, o momento para o salto nunca é predeterminado. No meio do salto, não há garantias. O salto pode muitas vezes provocar um enorme desconforto. O desconforto é um parceiro do ato criativo – um colaborador-chave. Se seu trabalho não o deixa suficientemente desconfortável, é muito provável que ninguém venha a ser tocado por ele” (BOGART, 2011, pg 115).
Novamente, o principio: o ator atua em nome próprio, o que o permite criar um “efeito de personagem”. Graças a um pacto firmado desde o início, o espectador situa a produção cênica no contexto diegético. De acordo com Kusnet (1982), a “primeira instalação” (contexto do ator) evoca a “segunda instalação” (contexto do personagem). A reação é tomada como produção da personagem. Esta é uma possível maneira de conceituar “o personagem”: enquanto enquadramento produzido pelo espectador. Não mais o corpo-máscara (a plasticidade corporal), mas a visualidade que se evoca na “ação sobre o outro”, na relação com o outro. O personagem só se configura nesta relação. Contamos com o enquadramento da “visualidade da relação” e de como esta afeta o ator. O princípio da apropriação do próprio contexto é avassalador. É ali que está a verdade do ator, mas, às vezes, é difícil os atores compreenderem, porque vai contra a sua necessidade de representar e se sentir “outro”. O conceito de “corpo-máscara” é interessante, pois traz a alusão à alteridade. No entanto, é produto (resultante) de um arranjo complexo (e ao mesmo tempo um dos materiais). É preciso abandoná-lo às vezes e se tornar vulnerável a outros fatores. É preciso pô-lo em jogo, para um ato de improvisação sempre novo. O mesmo acontece com a partitura física já formatada: ela entra em jogo; é um material (e não um “encapamento único”); assim, não deve estar presente sem fissuras. O mesmo com um “personagem”: é um “quem”, é um dos materiais; como figuração de outra subjetividade, é um dos materiais apenas. Sempre vai estar lá o ator, em nome próprio, jogando e, também, com o desajeito e as sensações novas dentro do próprio contexto. De início, ela parecia desajeitada e sem sofisticação, mas logo ficou visível que ela era, de fato, uma cantora de verdade. O ato de cantar, a intensidade do som que emanava do corpo dela aumentava sua vulnerabilidade. Sua própria timidez a desconcertava e ela parecia ligeiramente envergonhada. Se a pessoa não for “tocada” pelo ímpeto daquilo que é expresso através dela, então, como observou Gertrude Stein a respeito de Oakland, Califórnia, “não tem lá lá”. Talvez Judy Garland levantasse os braços no que se tornou sua imagem emblemática por causa de sua sensação de vergonha. Desse momento em diante, cantores e drag queens passaram a imitar o movimento exato dos braços dela em absoluta adoração (idem, pg. 116)
Bogart fala sobre “atravessamento” e “vulnerabilidade”. A “vergonha” é um “elemento atrapalhador”. Algo soa como o princípio-base: “Esteja preparado para se sentir desconfortável” 113
(idem, pg. 117). Ela contextualiza a origem da palavra “vergonha”, que está ligada à ideia de “barra”: A palavra embarassment, desconforto, surgiu na língua inglesa em 1672 e deriva do francês embarasser, que quer dizer enredar, obstruir ou incomodar; atrapalhar; impedir, tornar difícil ou intrincado; complicar. Em português, barra, é uma barra ou uma obstrução (idem).
O “elemento atrapalhador” é algo fora do controle, que não dominamos – e nos deixa vulnerável. Seja a violência em “Navalha na Carne” ou a timidez típica dos iniciantes, este elemento faz parte da estrutura do trabalho criativo; “puxa” o foco de atenção, gerando a divisão (instância teorizada por Spolin) com os outros elementos. Isto causa tensão, exige esforço, que traz energia e dilatação – desde que não se saia de cena, não se interrompa o fluxo do estar em cena. Quando você luta contra algo que está fora do seu alcance, se vê envolvido naquilo que ainda não domina. O desconforto é um mestre. O bom ator corre o risco de se sentir desconfortável o tempo todo. Não há nada mais emocionante do que ensaiar com um ator que está disposto a pisar em território desconfortável. A insegurança mantém as linhas tensas. Se você tenta evitar sentir-se desconfortável com o que faz, não vai acontecer nada, porque o território permanence seguro e não é exposto. O desconforto geral brilho, relaça a personalidade (..) A sensação de desconforto é um bom sinal porque significa que você está entrando em contato com o momento de maneira plena, aberto aos novos sentimentos que esse momento vai gerar (idem, pg 118).
A “função do não saber” se revela; a necessidade de deixar um espaço para a impressão, em cena, do próprio contexto de não saber: isto é um ato poético. Depois de atuar em uma peça durante um ano inteiro, Vanessa Redgrave se deu conta de que havia partes do espetáculo que ela simplesmente não sabia como fazer; portanto, resolveu deixar esse não saber aparecer enquanto ela o descobria (…) Aconteceu que esses momentos se revelaram absolutamente fascinates. Imagino que a força de ela não saber atravessou a noite. Acredito que ela se sentiu mais exposta, mais vulnerável e, provavelmente, mais presente e alerta (idem, pg. 119)
Também existe o princípio da partiturização (de “saber o que fazer”, pois a partitura está programada). Também ser preciso na execução, como um jogador de basquete visualiza a trajetória da bola um instante antes de jogá-la, no ângulo e com força necessária para encachapa-la na cesta (porque sabe o que fazer). Este também é um principio, em jogo, em oposição. A “política do E” nos propõe lidar com princípios opostos sendo que um não anula o outro (eles se tencionam e podemos alterná-los ou misturá-los). A nossa resposta para o problema da performatividade e dos efeitos de realidade na poética dramático-realista é: partir da abstração, absorvendo a aleatoriedade do enquadramento abstrato (constituído pelo jogo de regras) na ação sobre o outro; com o auxilio de materiais residuais e a divisão de foco com a fala interna (enquanto resíduo ou em escuta); e uma espécie de hibridismo 114
entre a cotidianidade e a tipificação (quando se mantém o treinamento extra-cotidiano). O “elemento atrapalhador” tende a destruir o arranjo, “desmanchar o castelinho”, a provocar o caos. Ele arrasta tudo para outra direção; bagunça o que estava ordenado e causa a reação imediata, viva. Ele reestrutura o jogo.
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12. Por uma poética da atuação realista estranhada
No que diz respeito à produção atoral, o estranhamento foi conquistado, durante as vanguardas do Século XX, com recursos como: o gesto-justo craiguiano, a estilização e o distanciamento brechtiano, a abstração do movimento em Barba, a mecanização em Meyerhold (recurso que no cinema está em Bresson). No entanto, a atuação naturalista ou realista também pode estranhar. Com a figura do vazio, por exemplo, quando há exacerbação da cotidianidade. O cotidiano mata a progressão dramática, é algo esvaziado de sentido. Nos filmes de Lucrécia Martel, por exemplo, o tempo é dilatado de maneira a situar o vazio de pessoas que estão juntas sem qualquer motivação ou movimento em direção a algo. Trata-se de uma questão formal. Por não haver a progressão dramática, o tempo para. Existe um esvaziamento do sentido do tempo. A representação dramática se dilui a ponto de acharmos que estamos vendo um documentário: a câmera se escondeu e flagrou os passos improvisados das pessoas que ali vivem. Mas é ficção, em um dispositivo que se presta a desafiar a crença no que se está vendo: “Será verdade?” Como, diz Roubine (2003), de tão real, alucina. A psicanálise traz uma noção de poética como trabalho de uma borda entre o real e o sentido. O conceito de “real” como “indisível”, limite da linguagem; como um impossível, para lá da borda da linguagem fornecendo existência. Teorizar o real e a poesia implica lidar com a angústia da folha em branco tão transbordante de presenças e de desejo para, no depois, constatar certa ordem de ausências que se corporificou com as palavras, com o que não pôde ser dito nem estar ali e com o que restou fora no de-dentro elaborado. Esse jogo tenso e pendulante entre dizer e apagar no dito, entre presença e falta, entre tentativa de preenchimento e vazio, aponta um trabalho nas fronteiras e bordas (ABRAHÃO SOUSA, 2017, p. 1-2).
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Consideramos que é para esta impossibilidade de se dizer (e de se fazer existir) que a arte aponta ao “estranhar”, trabalhando entre os enquadramentos e bordando-os. Seguindo em analogia, podemos dizer que os cortes que compõem os enquadramentos cênicos, os seus vãos e vazios, flagram um espaço “de real”, para o qual o limite deste jogo aponta (e seria este apontar o tal “efeito poético”). Por isso, a ideia de partir de fragmentos e juntá-los; criar os pedaços e juntá-los; criar as camadas, trocar coisas de lugar; para que, na composição final, se desenhe a borda onde “o real” (no sentido de “impossível de dizer”) apareça enquanto perspectiva. Não nos são distantes a anamorfose, o informe, a deformação, o excesso, o vazio, o desafio aos limites da forma, a desubjetivação, a descrença no olhar, utilizadas quando psicanalistas lacanianos articulam a arte à figuração do objeto a: objeto sem imagem, sem inscrição na linguagem, que não se pega, não se nomeia, não se vê; um “não-lugar”; borda que se descola, para onde a arte é capaz de apontar. Lançamos as bases para um laboratório: para ser poética, é preciso figurar o “objeto a”. E nos deparamos com a perspectiva de os atores apontarem para este limite, ao manejarem os arranjos compostos por registros e materiais, de forma a provocar o estranhamento. A escanção do tempo e a cotidianidade, quando levadas a certo limite, estranham (e investimos no fato do naturalismo estranhar com a figura do vazio). Mas o manejo das escanções do tempo é uma modalidade apenas. O ator pode imprimir a visualidade do pensamento, utilizando-se da divisão de foco (Spolin, 2015) com uma atividade cotidiana (que o distrai), enquanto foca na “fala interna” (verbo oculto em escuta). O movimento das reverberações da fala interna faz dos olhos uma espécie de janela; a borda de um espaço abstrato onde se situa o pensamento; “dentro enigmático”, que o espectador não vê direito. As bordas dos olhos do ator permitem um investimento do olhar do espectador em um espaço outro, fissura na espacialidade da cena. Percebe-se a visualidade do pensamento apontando para um limte. Este registro (da atuação naturalista) pode ser invadido pela imobilidade. Neste caso, trazemos outro estranhamento, desafiando a cotidianidade. A imobilidade, quando chega a certo limite, gera um efeito de “inumano”: o homem-máquina, o morto-vivo, o fantasma. Esta figura de “desubjetivação” também é um recurso com o qual se joga para desafiar as formas da atuação realista e apontar para um hibridismo (a experimentação das diferentes gradações entre um registro e outro). O excesso também é uma figura utilizada, seja de movimento ou afeto. No cinema (e estamos pensando aqui em recursos do Cinema Contemporâneo), conforme a estética do filme, ao se movimentar, o ator desafia a câmera a se ajustar para enquadrá-lo. Por segundos, o desenho do 117
quadro se perde, a imagem borra, gerando um efeito de caos para, em seguida, voltar a se estabilizar, provocando saltos no olhar do espectador, que se resitua a partir do novo enquadramento. Esta modalidade aproxima a captura da imagem também de uma estética do documentário. Mas vai além, quando se investe na instabilidade do olhar. Este jogo depende do excesso de movimentos do ator; depende do ator. A palavra “registro” denota algo que (registrado) retorna no corpo. Sem querer ou intencionalmente, a atuação implica algo impregnado na memória, em um espaço corporal de atualização de experiências e realização de formas, que surgem como auxiliares no jogo. Estas formas ocupam o espaço corporal, preenchem o tecido dentro das bordas, muitas vezes se opondo ao enquadramento fílmico. Estes registros funcionam como matrizes (Burnier, 2001) que, se o ator treinar, retornam. O ator brinca com estes registros. São eles que constróem a poética. É possível alternar “a imobilidade” com “o excesso”. Forma-se um vocabulário, que serve para desafiar os limites da forma da atuação realista. Existem limites para a utilização de cada registro. Os limites são tênues e, por vezes, declaradamente rompidos. E quando se volta a uma espécie de naturalismo “primário”, digamos assim, onde a presença da câmera é disfarçada, trata-se de conquistar o assombro causado pelo vertiginoso “efeito de realidade”. A cena “torna-se um espaço de alucinação. O espectador acredita que está deixando o real na porta do teatro. O real o alcança no cerne do espetáculo e o lança na deliciosa confusão de uma percepção sem referencias estáveis” (ROUBINE, 2003, p. 115) Encontramos, em Bogart (2011) a produção verbal não enunciada do ator (fala interna, subtexto, subpartitura) tomada como um “desvio” (do “foco”) – não em função de uma representação, mas simplesmente para ocupar o foco de atenção, para que “o resto” (o caminho da criação) aconteça. Diz Bogart que Stanislavsky “descobriu métodos para ocupar o lobo frontal do cérebro” e “deve ter compreendido que para entrar no paraíso é preciso ir pela porta dos fundos” (Bogart, 2011, p.129). Stanislavsky inventou mecanismos úteis de distração (a porta dos fundos) para que você tire a si próprio do caminho a fim de obter espontaneidade e naturalidade (paraíso) no palco. A esses desvios úteis ele atribuiu nomes como “determinadas circunstâncias”, “motivação”, “justificação”, “o mágico se”, “objetivos e superobjetivos” etc (idem).
É digno de nota: a responsável pela disseminação do método do Viewpoints trata os procedimentos de verbalização stanislavskianos como “fabricação de desvios” e não “construção psicológica” (ou “psicologismo”), como são usualmente (e pejorativamente) tratados no Teatro Contemporâneo. De certa forma, ela autoriza procedimentos que implicam um enquadramento através da diegese (do personagem), mas, antes de tudo, são elementos em jogo que criam desvios (e 118
não “psicologismo”). Seria preciso estudar os efeitos de cada modalidade proposta por Stanislavski, revisando os termos à luz do pensamento contemporâneo. O “mágico se”, por exemplo, implica uma elaboração verbal que constrói uma fantasia possível sobre si. O ator produz condições para um “eu circunstanciado” ao invés de dedicar-se ao ato de representação (o que o levaria a imprimir os seus indícios e matando o realismo). Com a construção de um “mágico se”, ao invés de representar, o ator se deixa levar por certa lógica, que se desenvolve imaginariamente, até chegar a evocar a situação da personagem. Com o princípio do desvio do foco, Bogart testemunha também uma articulação dos procedimentos de verbalização stanislavskianos com Spolin. Ele se concentra em negociar o artifício - o tamanho do palco, a marcação, o texto, os figurinos, as luzes - até o ponto em que a mente consciente - que está de tocaia para nos tornar pequenos - fica ocupada com alguma outra coisa de modo que a espontaneidade e a naturalidade podem chegar sem ser impedidas (idem, p. 130)
Testemunha-se, também, a presença de um “elemento desestabilizador”: “Não se pode criar em estado de equilíbrio. O desequilíbrio produz uma dificuldade que é sempre interessante no palco” (idem, p. 131). O elemento desestabilizador pode vir de si mesmo, quando, sem querer, o ator faz algo inesperado, que contradiz todo o combinado; quando erra. Segundo Bogart, é preciso criar com isto: os erros e acidentes são produtivos; eles são “achados”. Normalmente, quando algo dá errado, nós recuamos. Queremos reavaliar. Será que esse impulso pode ser invertido? Será que podemos aceitar de bom grado a energia de um acontecimento inesperado? No momento em que as coisas começam a dar errado, será que podemos penetrar no evento em vez de nos esquivarmos dele? (idem, p 132)
A autora propõe uma articulação com Freud. As coisas sempre saem erradas. É comum acontecer o que você não planejou. Sigmund Freud sugeriu que não existe acidente. Será que o acidente pode ser um sinal? Será que ele está chamando a nossa atenção? O acidente contém energia - a energia de formas não controladas (idem, p 132)
O contexto de jogo se impõe com novos elementos, avassaladores, perturbadores do arranjo anterior. Neste momento, o que estava estruturado passa a resíduo; as suas marcas são como humus, memoria, eco, passado. O que impera, no foco (e no jogo de enquadre), passa a ser outra coisa. Assim, o jogo entre construir e destruir é posto em questão. O ator muitas vezes tem a ilusão de que o processo de criação se dará em linha reta, em uma única direção e na medida em que vai colocando “tijolinho por tijolinho” no arranjo, mas a obra se constrói com os cacos, desvios, subversões e pulsões, destruições (esta força que talvez possamos relacionar com o que Artaud chamou de “vida” 119
e que estamos procurando fundamentar na presença de elementos perturbadores e resíduos). O arranjo anterior torna-se o elemento perturbador da proposição atual “façam outra coisa”; registrado na memoria corporal aparece através de seu eco, reconfigurado, reabsorvido.
Evidências da atuação naturalista no cinema: a questão do impulso para a fala e a produção intencional de imagens internas A fala interna é algo que causa estranheza, assim como a Memorização Através da Escrita 35. O suporte no erro e no esquecimento, o jogo com a divisão de foco, o improviso com a sensação do vazio ( “em nome próprio” em cena), soam estranhos para o ator que quer “interpretar personagens”. No entanto, se representarmos, imprimimos a visualidade de uma representação. Esta é a questão de partida, que diz respeito à demanda do Cinema Contemporâneo pela naturalidade, efeito de realidade: “não representar” é o primeiro ponto. Assim, futuramente, o ator se “deixará levar” por um arranjo mais complexo do que apenas um dos elementos isolados (o imaginário formado a respeito do personagem, que extraiu da leitura de um roteiro ou da fala de um diretor). Exige-se, dos atores, a espontaneidade ou “naturalidade”; algo que imprima que as ações, falas, decisões, estão sendo realizadas no instante-já (e não partiturizadas). O “efeito de impulso” é provocado pela troca (jogo, que o ator maneja) entre os materiais. É no instante em que algo se intromete, diferente do que anteriormente ali estava (ocupando a sua escuta), que o efeito de impulso acontece. Seja “fora” ou “dentro”, instantâneo ou planejado, é esta outra coisa que se intromete a responsável por um novo impulso. Mesmo no interior de uma partitura organizada, é no instante da troca entre as ações físicas, que a inscrição da nova ação gera o “efeito de impulso”. De maneira que a ação física não é consequência do impulso, mas causa. A perspectiva do ator registrar uma forma para ser instalada não mais pela reprodução intencional, mas pela memória corporal (que a atualiza independente da intencionalidade), denota a organicidade desta partitura física. É da mesma forma que manejamos a troca entre fala interna e externa: para causar o efeito de impulso na fala. Se desviarmos o foco de atenção para uma frase que não será dita bem no instante anterior em que a externa aparecer, esta se inscreverá como impulso (pois em substituição à primeira). Assim, produz-se um desvio. O impulso é um mecanismo de troca. A fala externa é construída como impulso, porque o foco (o olhar e a escuta) sofreu um desvio e a esta retornou. Mas este mecanismo exige certo esforço – e é este investimento de energia que implica
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Procedimento de escrever o texto até memorizar para não se antecipar uma imagem vocal antes de ir para a cena.
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a fala no cinema (ou na atuação realista) como extra-cotidiana (Barba, 1994) mesmo que tenha a forma cotidiana. Não é apenas o impulso que torna uma fala realista. Esta precisa estar impregnada de cotidianidade. Trata-se de uma resolução formal específica: “quebrada”, com repetições de fonemas, os “encumpridamentos” das vogais, acelerações, ritmo inconstante, irregular. A fala cotidiania é irregular. Romper com a regularidade rítmica passa a ser “regra de jogo” para produzir o efeito de fala cotidiana (e de atuação realista). Tudo é jogo e toda proposição proferida em nome próprio para a construção desta estética é uma instrução de jogo. A presença de um registro pode ser uma instrução de jogo em foco. O que se denuncia é a complexidade deste jogo, com várias divisões de foco. Mas, aos poucos, não se pensa mais nos elementos constituintes e o registro passa a ser “natural”, porque atualizado pela área de vulnerabilidade (através da memória corporal) onde foi marcado (e não mais através da intencionalidade). A visualização kusnetiana pode ser relida a partir do conceito de “mente dilatada” de Barba (1995). O ator deve provocar um jogo com as imagens internas, desenvolvendo-as em saltos, como se fossem peripécias. No entanto, a proposição barbiana (coincidente com a de Meyerhold, frequentemente repetida), de que há uma ligação entre “mente e corpo” e que um corpo dilatado implica uma mente dilatada, pode levar à compreensão de que basta realizar a ação física para dilatar “a mente” (ou a imaginação). Só que, na atuação realista, é preciso provocar a imagem interna, produzir o “enquadramento interno”. O “enquadramento interno” situa o ator em relação a um material de estímulo oculto cuja presença o permite improvisar com o externo (mesmo que tenha uma partitura). A estrutura deste trabalho se sustenta com três lugares: a.) o que internamente o ator produz, de propósito, antecipadamente (são pensamentos, falas internas e visualizações) e o que ele associa no instante (o que pode ser feito em nome próprio); b.) o que ele “escreve” na cena, com o seu corpo e voz (a materialidade da presença é letra, conjunto de traços, registros que vão implicar uma escuta múltipla); c.) o que o espectador escuta e vê. Estes três lugares não coincidem. Por isso, a ideia de expressão “de dentro para fora” é equivocada. O “dentro” (o que só o ator vê e escuta) e o “fora” (que está aparente para o espectador e faz parte da escrita cênica) são lugares diferentes da estrutura, que se sustentam com certa autonomia. O que acontece é que os atores acabam por designar como “dentro” a atualização dos registros, com a sua grafia de afetos e ecos, no “interior” da tessitura da memória corporal. Ao trazer de volta uma grafia de afetos, o corpo atualiza marcas. Estas formas “aparecem” sem que o ator pense em desenha-las – parecendo vir “de dentro”. Existe um “deixar-se levar” por estas atualizações, que, muitas vezes, são associadas ao impulso “de dentro para fora”. Mas, mesmo trazendo de volta um 121
registro (e o impulso de sua forma) através do interior da tessitura corporal, o enquadramento plástico-corporal “fora” (as bordas do corpo) pode veicular outro desenho. Ou seja, existe um “dentro” do corpo pulsante, mas não necessariamente esta grafia vai determinar o “fora”, que depende da resultante do jogo com outros vetores. O que o corpo atualiza neste suposto “dentro” é apenas um dos materiais, heterogêneo em relação a outros, que estão presentes em um jogo de tensões. O desenho externo é moldado através de um jogo de absorções entre os enquadramentos. Conforme a música, a relação com o outro, o pensamento, os limites espaciais, temporais, a resultante será uma ou outra. Dizer que se trata de um impulso “de dentro para fora” é ignorar os outros “dentros” e os outros “foras” em jogo. Existe um jogo entre as reverberações de todos estes materiais e suas incidências, e uma resultante formal sempre nova. Ao ler (escutar) o que o corpo atualiza, pode-se tanto associar algo novo, quanto manter o pensamento anterior, que se desdobra ao permanecer. Existem camadas de pensamentos. Podemos pensar coisas diferentes ao mesmo tempo. Por isso, a noção de “empilhamento” é bem vinda. Um enquadramento cênico pode evocar, para o espectador, certo pensamento, mesmo que os materiais que o ator guarda ocultos sejam outros. Existe um “desentendimento estrutural” (ou “diferença estrutural”) entre o enquadramento interno atoral e o enquadramento produzido pelo espectador (a sua escuta e olhar). Isto dá liberdade para o ator produzir visualizações e escutas alucinadas, desconectadas ou ao bel prazer. Pode-se manter a linha “do pensamento do personagem” enquanto material residual (com o seu eco e sua incidência já trabalhada) enquanto se constrói novo pensamento em nome próprio, como reação ao jogo e ao outro. As combinações são múltiplas. Barba (1995) produz a definição de “mente dilatada” através de uma analogia com as transformações de uma história popular. A fábula se transforma cada vez que é contada. Da mesma maneira, o ator desdobra, completa a imagem interna a cada vez que precisa utiliza-la. Enquanto isso, paralelo ao trabalho interno de sustentação de imagens e produção de trocas com falas internas para imprimir a espontaneidade na fala, a poética do corpo se estabelece com certa autonomia. A partir dos estudos da performatividade de Austin, com a proposição de que “falar é fazer”, pode-se dizer que, quando o ator está em cena, existem, no mínimo, duas linhas-de-ação: a da fala e a do corpo. Se falar é fazer, existe a linha-de-ação da fala; e se, em cena, podemos imprimir ações físicas que independem da fala, existe também a linha-de-ação inscrita através das formas do corpo. Enquanto espectadores, escutamos as duas: uma linha veiculada ao corpo e outra à fala. A premissa da prática laboratorial do ator com a enunciação de uma fala é o jogo de múltiplas escutas destas duas linhas e suas relações. Há uma perspectiva de se confundir, se atrapalhar na escuta; de se cair no caos ou não conseguir escutar; e de se escutar coisas opostas ao mesmo tempo; de se recortar 122
sentidos contraditórios. A relação entre as linhas implica o devir do sentido na construção da poética (fruto da relação entre caos e ordem, escuridão e recorte, ruído e som). Assim, desvinculamos a ação física da mimese do texto, tal como normalmente é vista na cultura dramática. Uma das acusações ao trabalho com o texto é que a cena implicaria a mimese ou representação da diegese fechada capturada na leitura de uma dramaturgia de autor. A proposição de duas linhas de ação, cujas relações implicam sentidos móveis, traz a perspectiva do ator (mesmo ao agir com a fala advinda do texto dramático), desarticular o trabalho corporal da sua representação, conferindo-lhe autonomia. Isto significa dar luz a um jogo de encaixes de visualidades diferentes que se tencionam. O trabalho com o texto dramático é sustentado pelo jogo de enquadramentos, tal como o trabalho com o pós-dramático. Se as fronteiras entre estes são borradas em função da unidade imaginária (da diegese, onde o ator está veiculado à ideia de personagem), isto quer dizer, não há uma diferença estrutural, mas de modalidade de jogo, onde as regras são outras. Enquanto, no pósdramático, a regra é abrir a fissura entre as camadas, no dramático é aproximá-las para disfarçar o corte que estabelece as diferenças. A dilatação no teatro dramático A poética corporal realista no Teatro encontra um problema: é preciso dilatar (Barba, 1995). Quanto maior o espaço (é questão de tamanho e acústica), mais se exige que dilate. Mas a dilatação, enquanto instrução de jogo, não é suficiente. Não adianta colocar no jogo: “Dilata!”. Em 2016 apresentamos “Quem Tem Medo de Plinio Marcos?” no Teatro Carlos Gomes, em Vitória 36. Os atores não estavam acostumados com um espaço tão grande (mas com salas multiuso e pequenos anfiteatros). Analisando os momentos em que um mínimo de dilação aconteceu, percebese a tipificação e a “ação sobre o outro”. “Ação sobre o outro” é um conceito que criamos a partir de proposições de Javier Daulte 37, formalizando um treinamento. A ênfase está no enquadramento através da relação entre os atores, independente do enquadramento plástico-corporal (forma do corpo). Contrapomos estes dois tipos de enquadramento: o desenho (ou movimento) do corpo e a relação com o outro. Pode-se jogar com os dois, explorando os limites, bordas e criando o hibridismo. Na “Ação Sobre o Outro” o que se privilegia, provoca, interroga, exacerba, é a relação. Os atores são inicialmente dispostos em duas filas, frente a frente. A cada palma do instrutor de jogo, um a um se aproxima daquele que está na sua frente e realiza uma “ação” sobre ele, invadindo o seu O espetáculo é formado por fragmentos da dramaturgia de Plinio Marcos: “Querô”, “Barrela”, “Mancha Rocha”, “Abajur Lilás”, “Quando as Máquinas Param”. 37 Diretor e dramaturgo argentino. 36
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espaço corporal. Na segunda palma é o ator afetado que atua; e na terceira palma, os dois juntos improvisam, a fim de testar os limites da relação que surge (desenvolvendo as ações e desdobrandoas). Parte-se para uma série de variações a fim de exacerbar (dilatar) os limites da relação com o outro. Em algumas atuações de “Quem Tem Medo de Plinio Marcos?” foi esta “ação sobre o outro”, em outros, foi a tipificação que funcionou como alicerce da dilatação. A dilatação também pode encontrar suporte na visualidade do tipo social, que oferece enquadramento às ações físicas e à presença do corpo, impedindo, ao mesmo tempo, que penda para uma resolução formal abstrata. Mas seria esta uma atuação realista? Não estaria mais perto de uma poética brechtiana, com o seu distanciamento crítico? Este é um dos limites: a borda que permite o naturalismo “encostar” na atuação épica, quando se dilata o desenho do corpo, trazendo, para a cena, a visualidade de um tipo social. Isto pode acontecer com um texto de Plinio Marcos, Tchekhov ou outros autores. Em leituras dramáticas realizadas na universidade, percebemos claramente o jogo de oscilação entre a cotidianidade e a tipificação, quando um desenho bem definido (no que diz respeito à voz e corpo) alude à visualidade do tipo, com uma série de ações características e comportamentos a este relacionados. Em oposição à contenção e à cotidianidade, a tipificação tem gradações. Um dos atores conseguiu, em “Barrela”, a dilatação em uma das atuações mais realistas da peça: ambígua e contida. A relação com o outro entrou em jogo, neste caso, articulada a certa “ideia de depois”: uma espécie de suspensão (no tempo dramático); um hiato recheado por tensões que geravam o suspense. O enquadramento através da relação com o outro e a expectativa da próxima ação (o enquadramento dramático), filtraram a tipificação. Houve acordo entre os dois enquadramentos. Já no fragmento encenado de “Querô, Uma Reportagem Maldita”, não foi trabalhada esta suspensão. O tempo da ficção era continuo e, neste caso, a expectativa do depois foi instalada com a presença de uma arma (e a reviravolta quando Querô a rouba e ameaça Tainha). Aqui percebemos que a diegese ofereceu enquadramento. É como se o ator, ao servir a uma ficção bem delineada, dilatasse a sua própria corporeidade. O que impera em “Barrela” é uma modalidade de suspense, da qual já falou Hitchcock: a expectativa (lenta) de que algo está por vir (em contraponto à surpresa abrupta, da outra modalidade ao qual pertence “Querô”). No caso de “Querô”, o roubo repentino da arma “pega de surpresa” o espectador. No caso de “Barrela”, a iminência de uma explosão vai pouco a pouco sendo construída e antecipada. Nos dois casos, há manejo do tempo, mas de um tempo ficcional. Não se trata do ator fazer os gestos lentos ou rápidos, mas do desenrolar das ações inscritas na diegese, que saltam ou se estendem. Se isto tiver construído, o ator dedica-se à cotidianidade sem medo da “desdilatação”. 124
Assim, o realismo poderia estar, também, relacionado aquele fragmento delimitado da diegese que se configura como dramático – como uma curva no tempo. Resquícios de um treinamento extra-cotidiano Enquanto estávamos montando “Quem Tem Medo de Plinio Marcos?”, alguns atores treinavam “Campo de Visão” 38 em função de uma outra montagem. Este treinamento extra-cotidiano promoveu a dilatação. No “Campo de Visão”, o que se prioriza é uma intensa produção formal extracotidiana, o máximo da dilatação. As formas criadas no treinamento ficaram impressas na memória corporal destes atores, gerando resíduos que, sem querer, foram atualizados na cena de “Barrela”, pressionando as bordas do corpo por sua vez imbuídas da cotidianidade (enquadramento realista). É como se houvesse duas bordas, uma pressionando a outra. O tecido da memória corporal se define como borda interna e a cotidianidade (de “Barrela”) como borda externa. Em cena, aparece o desenho de um corpo impregnado de cotidianidade e imobilidade (os atores jogavam com as duas) mais o resíduo do repertório extra-cotidiano (extravasamento), dilatando, borrando o externo. Mais ou menos como no desenho abaixo, dois enquadramentos justapostos.
A extra-cotidianidade como resíduo e a cotidianidade como enquadre
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Procedimento sistematizado por Marcelo Mazzaratto na UNICAMP que trabalha a plasticidade corporal.
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São como dois territórios: o de dentro empurra o de fora (dilatando-o). O de dentro é o corpo atualizando o que está recentemente marcado – como praga, traço, peste (involuntário). Treina-se para marcar. Assim, o ator tem o que atualizar (que não seja a sua “desdilatação cotidiana”), mesmo na atuação realista impregnada de cotidianidade. Contrói-se, assim, uma cotidianidade “dilatada”. Este é um ponto chave: a necessidade do treinamento extra-cotidiano para uma boa atuação realista no Teatro. Diante da demanda da dilatação, é necessário treinar um repertório de formas estranhas, para que estas pressionem o corpo enquanto a cotidianidade funciona como regra de jogo. O efeito de real na ação sobre o outro Durante a “ação sobre o outro”, o que acontece com a borda extra-cotidiana adquirida com o treinamento do “Campo de Visão”? O Campo de Visão imprime vetores, abre caminhos para a ação sobre o outro; constitui, no corpo, uma plasticidade que permite a ação sobre o outro dilatar. O corpo é “rasgado”, para viver caminhos “sujamente”. Se a ação sobre o outro exige um salto, uma torção, o corpo possui este caminho, que se encontra diluído, manchado, abismado, subvertido, costurado. Vê-se a função do treinamento extra-cotidiano nos dois casos: tanto na cotidianidadeimobilidade quanto na ação sobre o outro. Acontece uma perspectiva de entrelaçamento estético, invasão mútua (extra-cotidiano e cotidianidade). A partitura cênica de “Barrela” foi criada com regras de jogo (desviando-nos da representação do texto), que organizam espaços: um dos atores sempre deitado enquanto os outros permanecem de pé; um sempre em um lado da cena, enquanto outros estão no outro por oposição. As regras determinam uma organização espacial que, por sua vez, é diluída, na medida em que a ação sobre o outro começa a imperar. As relações espaciais são absorvidas pela lógica dos enquadramentos internos e pela força das substituições (Hagen, 2007). Paralelamente à montagem (improviso com regras de jogo e texto memorizado pela escrita) 39, os atores escrevem monólogos interiores e trabalham fantasias, dilatando o enquadramento interno (para “sujar” as bordas externas organizadas pelas regras de jogo). Os materiais internos, produzindo resíduos, também auxiliam a dilatação da ação sobre o outro. As regras de jogo se mantém, marcadas na partitura da cena (apesar de residuais), na medida em que outros materiais entram no arranjo. A ação sobre o outro se comporta como um vetor oposto à regra da organização espacial. Estes dois materiais alternam, disputam, entram em acordo. Às 39
O procedimento Memorização Através da Escrita (Khan, 2009) é utilizado.
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vezes o ator, ocupado com a ação sobre o outro, esquece a organização espacial. Depois, lembra e retorna à regra. Isto dá movimento para a atuação, organicidade, vida, pois uma sucessão de trocas é inscrita como cadeia de impulsos. Neste sentido, o treinamento da ação sobre o outro também ajuda na atuação realista. Os resíduos deste treinamento não entram em cena propositadamente, mas a invadem, sem a intencionalidade (estimulados pelos materiais ficcionais e os enquadramentos internos). Diante da necessidade de improvisar, o ator treinado na ação sobre o outro responde rápido, borrando as marcações criadas pelas regras de jogo. A ação sobre o outro deforma a harmonia do jogo espacial. Ela produz o informe e o caótico. E considerando esta relação de borda entre forma e informe como um “desafio aos limites da forma” (Dunker, 2006) – e a inscrição do informe como uma figuração do “objeto a” – podemos dizer que a ação sobre o outro produz poética. Tendendo a romper as formas, romper as regras que estruturam espaço e tempo, a ação sobre o outro funciona como um elemento desestruturador, atrapalhador, perturbador. Os atores trabalham com um excesso (passam dos limites), que também se modaliza como figuração do “a” 40. A relação espaço-temporal organizada tende a se romper através do caos que a ação sobre o outro imprime. A ação sobre o outro tende a extrapolar os limites organizacionais; é ruptura, é desestabilizadora. Pode-se até mesmo dizer que não é exatamente a “relação com o outro” que impera, mas a destruição desta relação. Ao mesmo tempo, existe um “reconhecer-se como personagem” e os atores (estimulados pela ideia de encarnação de uma alteridade) dizem: “Vem do outro!”; “Não fui eu”. Os atores tendem a se enxergar como “personagem” quando a força advém da cena, do jogo (e não é voluntária): a atualização de um excesso de afeto, por exemplo. Eles associam esta irrupção que os dessitua como advinda “de outro” (personagem). Então, aparecem proposições como: “o personagem me levou”, “vivi o personagem”, “fui tomado pelo personagem”. Eles dizem: “Não sei o que me deu”, “não era eu”. Estas proposições testemunham a não intencionalidade da irrupção de um excesso (de afeto). O outro é alvo da força de uma ação desmedida; o outro é alvo de um excesso. É aí que o efeito de realidade se dá, aliado à dilatação e ao caos. Aqui, não se trata da dilatação limpa e bem desenhada (como na estética de Barba); aqui se trata de uma “dilatação-descarrego”, que está mais
Uma das modalidades de figuração do objeto a é o excesso. As outras são: o vazio, o informe, a anamorfose, os desafios aos limites da forma, a desjubjetivação.
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para Artaud. O ator precisa estar aberto para vivencia-la como experiência, no sentido do atravessamento. É como o “vôo no escuro” de Bogart (2011) e é preciso coragem para lançar-se. Revisando os termos Em parte, o efeito de realidade na atuação está veiculado à relação com o outro como enquadramento que situa a produção atoral e a justifica. Poderíamos relacionar este efeito com a ideia de “organicidade”, tradicionalmente utilizada na práxis teatral. Organicidade veiculada a materiais ocultos, que suportam a dilatação da tessitura corporal, atingindo uma “zona de vulnerabilidade” ao acionar grafias de afeto (que por sua vez são enquadradas pela relação com o outro). A “organicidade” tem a ver com a propriedade do ator se autoprovocar, produzindo enquadramentos internos e substituições (Hagen, 2007), deixando-se levar por atualizações de registros impregnados no corpo. Assim, pode-se estar formal e orgânico ao mesmo tempo, denunciando a condição de “obreiro” e desmanchando o efeito da realidade mimética (mesmo no realismo). Há um manejo das relações formais na medida em que se joga com instruções de jogo, produção interna e atualizações (de registros e afetos). Organicidade, verdade, espontaneidade, naturalidade, vida, dilatação, absorção, são termos que precisam ser problematizados, pois carregam uma espécie de “visão turva”. Fala-se de “verdade” contrapondo-a ao exercício formal, que estaria na ordem do “falso”. Mas a verdade consegue-se com um artifício. O par de opostos “verdade e mentira” não é operacional; e a noção de “verdade” muitas vezes vem com este brinde. Colocamos o “efeito de realidade” na ordem da construção do enquadramento pela relação com o outro (mesmo que este outro seja “si próprio” quando se está sozinho em cena); “organicidade” como o acordar da grafia dos afetos; “espontaneidade” como da ordem da resolução de problemas em jogo a partir da divisão de foco e do manejo de um arranjo que implica esta resolução (que, por surgir em cena, aparece como espontânea); a “naturalidade” como algo que se produz com a divisão de foco e a impressão da cotidianidade; a “vida” como pulsão que borra os enquadramentos, os pressiona, por implicar a sua destruição (ou seja, a vida “bagunça” o enquadramento, a pulsão é maior do que os pactos anteriormente nomeados, a vida como subversão da partitura). Todas estas instâncias, que estão na ordem do que seria nomeado como um ideal de uma atuação “viva, orgânica, verdadeira”, dependem de um dispositivo de jogo artificial. A “verdade”, nesta revisão de termos, estaria relacionada com a produção do efeito estético. Pode-se ser “frio”; pode-se, inclusive, estar sem tônus ou densidade, e ter “verdade”. Pode-se até não estar enlaçado 128
pulsionalmente e ter verdade. Se o jogo de enquadramentos apontar para um “a”, conforme a modalidade que se contrói e suas particularidades, se tem verdade. A “verdade” da poética estaria implicada neste “a” para o qual se aponta. A diegese está neste jogo. Sabe-se que é um elemento de estímulo: a personagem. Não paro de me surpreender com o encanto dos atores por esta instância. Chega-se à ideia de se transformar (“nele”): uma fantasia pulsante, que também traz a vida. Este campo imaginário constitui-se como possível sentido estar em cena: “ser outro” (a operação da incorporação de uma alteridade que, de certa forma, liberta o ator “de si mesmo”). Trabalhar esta instância pode ser, portanto, produtivo se, no entanto, a “regra de jogo”, que circunscreve o arranjo, não ficar esquecida. É preciso brincar com o diegético, refazê-lo, reolha-lo, recompô-lo, destruí-lo, reconstruí-lo, conforme as demandas de uma poética. Existe um jogo entre poética e diegese. Conforme a necessidade refaz-se o diegético, que, inclusive, pode ser inscrito aos pedaços. Pode-se imaginar qualquer coisa em um fragmento de cena que (no cinema) se filma fora de ordem, por exemplo. Os materiais internos em substituição (Hagen, 2007) inscrevem poderosos efeitos. Eles “trazem”, “puxam” a libido (ou, como se diz no Teatro, “o orgânico”). Trata-se de enlaçamento libidinoso, pulsional, a ponto do ator dizer: Não consegui parar”. Aqui, ao contrário da diegese (personagem) são os materiais da própria vida do ator que o impulsionam a extrapolar os limites da intencionalidade e sentir-se “como outro” – por estar lidando com algo no limite do “fora do controle”. Trata-se de pensar quais elementos internos se quer utilizar: se os produzidos com a fantasia da encarnação da personagem ou com a vivência em nome próprio utilizada em segredo e travestida de ação diegética. Vislumbra-se como horizonte, o hibridismo.
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PARTE IV ATOR, CINEMA, ESTRANHAMENTO
13. Figuras de uma poética do ator no cinema
Problema de partida A hipótese de partida é que a atuação se caracteriza como poética, na medida em que figura o “objeto a”. Encontramos o conceito de “objeto a” em teóricos de orientação lacaniana, como Regnault, Ranciere, Milner, Baudiou, Safatle, Dunker. Trata-se de um objeto sem imagem, que nos remete a um lugar de não inscrição na linguagem; uma falta, um vazio. Este conceito adquire extrema importância na teoria e na prática psicanalítica e é formalizado, em um primeiro momento, por Lacan, em seus “Escritos”, no texto “Subversão do sujeito e dialética do desejo” (1960), e posteriormente em “O Seminário, Livro 10: A Angústia”: “[...] esse objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo” (LACAN, 1960, p. 170). O objeto a é um objeto “do qual não se tem ideia” (LACAN, 1974, p. 53). Este objeto estruturalmente está relacionado à presença do sujeito como desejante: Ora, ele [o objeto a] é justamente o que resiste a qualquer assimilação à função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o que, na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, como aquilo que se perde para a significantização [signifiantisation]. Ora, é justamente esse dejeto, essa queda, o que resiste à significantização, que se revela constituir o fundamento como tal do sujeito desejante (…). (LACAN, 1962-1963/2005, p. 193)
Ele é propriamente a “causa” do desejo no sujeito. 131
Direi que o objeto a não deve ser situado em coisa alguma que seja análoga à intencionalidade de uma noese. Na intencionalidade do desejo, esse objeto deve ser concebido como a causa do desejo. Para retomar minha metáfora de há pouco, o objeto está atrás do desejo. (LACAN, 1962, p. 114-115)
Seria apontando para este objeto que a cena se estabelece como poética, abrindo espaço para a instauração do desejo de decifração no espectador, por implicar a sua condição de sujeito da falta. Sendo a obra figurada como objeto causa do desejo (objeto a), diante do deparar-se com este objeto, o espectador se depara também com o desejo de um “si mesmo que falta” por não haver “o” significante que represente a sua singularidade. A cena seria, portanto, também, uma figuração do sujeito enquanto falta. Segundo Dunker, a arte aponta para o “objeto a”, através de figuras, organizadas por ele no artigo “Entre o Olho e o Olhar: Arte e Psicanálise” (2010). Dunker destaca como figuras do “objeto a”: o excesso (inevitavelmente evidenciando que nada basta e, assim, apontando para o espaço estrutural da falta); a anamorfose (o deslocamento do olhar para um ponto, a partir do qual se passa a ver algo que antes não se podia ver de outros pontos); a deformação e o informe (que colocam em questão os limites da forma, apontando para uma borda, um limite, onde se depara com o vazio); o estranhamento 41, a despersonalização e a descrença no olhar (espécie de “não acredito no que vejo”). Estas são as figuras organizadas por Dunker. A nossa hipótese é que estas também estão presentes no ator de cinema quando, por exemplo, a dimensão do rosto em primeiro plano o deforma ou quando os encontros entre pedaços do corpo e o quadro produzem estranhamento. Percebe-se uma poética da imagem na medida em que o ator aparece como forma estranhada. Em certas poéticas fílmicas, a presença do ator inscreve a ideia de “boneco” ou “máquina” – como em “Mouchette” (1967) e “Pickpocket” (1959), de Bresson. “Nada de atores. (Nada de direção de atores). Nada de papéis. (Nada de estudo de papéis). Nada de posta em cena. Mas o emprego de modelos, tomados da vida. SER (modelos) no lugar de PARECER (atores)”, disse Bresson, em “Notas Sobre o Cinematógrafo” (1979, p. 10). Por não suportar o vínculo com a representação que o ator imprime, Bresson opta por não atores, aos quais chama “modelos”, com profissões e características específicas. Com o preceito “Modelos: Movimento de fora para dentro. Atores: movimento de dentro para fora”, trabalha os gestos perfeitamente coreografados – o que faz jus ao seu amor à precisão: “Controlar a precisão. Ser eu mesmo um veículo da precisão” (idem, p. 09).
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No sentido freudiano: um “estranho-íntimo”, algo que é reconhecível e não é ao mesmo tempo. 132
Fundamentada na precisão coreográfica, a poética da atuação acaba por imprimir uma articulação com o universo diegético: a rigidez da professora de piano de Mouchette e as consequências que esta traz às crianças, desubjetivando-as, tornando-as objetos (bonecos) de um sistema rígido de educação, calcado na autoridade obsessiva; ou, ainda, o domínio do ofício no caso da profissão do protagonista de “Pickpocket”: batedor de carteira. Nos dois casos, o filme imprime um automatismo no gestual dos personagens – que o fazem “sem a intenção”, “sem pensar”: “A teus modelos: ‘Não penses o que dizes, não penses o que fazes’. E também: ‘Não penses no que dizes, não penses no que fazes’” (idem, p. 21). “Suprime radicalmente as intenções em teus modelos” (idem). Este automatismo gestual poderia ser articulado à supermarionete proposta por Craig ou à biomecânica meyerholdiana, ambas engendrando a ideia de máquina ou boneco. No entanto, apesar da ênfase na precisão da coreografia corporal (“sem intenção”), demandada por Bresson, é possível perceber a sua busca pela visualidade de algo enigmático “dentro”. Não a construção do personagem cujo pensamento o ator evidenciaria (se o representasse), mas, algo que se passa em nome próprio e o modelo tenta esconder: “O importante não é que me mostrem, mas que me escondam e, sobretudo, aquilo que não se suspeita que está neles” (idem, p. 11). A abordagem de Bresson cria uma espécie de estética do vazio no trabalho de atuação. Tratase de um “nada” que no cinema contemporâneo se demanda também dos atores. Talvez, possamos falar nisto como um material apontando para o lugar do objeto a? Esta seria uma possível modalidade de figuração do “a” específica da atuação? Quando se faz alusão a um espaço enigmático que Bresson quer imprimir, se aponta também para a fratura, vazio, hiância, limite da forma do pensamento, limite do que se recorta? Bresson não queria a visualidade de uma “construção” subjetiva do ator. Ele associa o “ser ator” a meios de reprodução do teatro, em detrimento da “criação” no cinematógrafo. Para ele, existem “dois tipos de cinema: os que empregam os recursos do teatro (atores, posta em cena, etc.) e utilizam da câmera para reproduzi-los; e os que empregam os meios do cinematógrafo e se utilizam da câmera para criar” (idem, p. 11). Ele associa a figura do ator ao “terrível costume do teatro” (idem, p. 12), e contrapõe a ideia de representação (simbolizada pelo “teatro” e pelo “ator”) à ideia de “criação de uma escritura”: “O cinematógrafo é uma escritura com imagens e sons” (idem), advogando para si o direito de recusar-se a reproduzir. Um filme não pode ser um espetáculo, porque um espetáculo exige a presença em carne e osso. Porém, como teatro fotografado o cinema pode ser a reprodução fotográfica de um espetáculo. Contudo, a reprodução fotográfica de um espetáculo é comparável à reprodução fotográfica de uma tela ou de uma escultura. Mas a reprodução fotográfica do São João
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Batista de Donatello ou de A Moça do Brinco de Pérola, de Vermeer, não tem nem o poder, nem o valor, nem a precisão desta escultura ou desta tela. Não as cria. Não cria nada. (idem)
Ao invés do ator “representar” (dar o espetáculo), é preciso colocar-se vulnerável à relação com a direção que o desenha – enquanto algo no seu interno é capturado como enigma: “Entre eles e eu, trocas telepáticas, adivinhação” (idem, p. 11). Ou seja, um dos princípios que se pode extrair das proposições bressonianas para o trabalho da atuação no cinema é que este é constituído na sua relação com o dispositivo de captação da imagem, sob a demanda de uma direção. O ator que não abdica do ato de representar “está no cinematógrafo como em um país estranho. Não fala a língua” (idem, p. 13). Qual será a língua do cinematógrafo? Para Bresson não se trata de naturalidade, mas de natureza. Por mais que o ator treine técnicas para o efeito naturalidade acontecer (e poderíamos elencar algumas, como a troca da fala interna pela externa para a fala advir como impulso, a visualidade do pensamento, a cotidianidade e divisão de foco, a escansão do tempo ou sobreposição de falas, a imprecisão e oscilação da oralidade), lhe faltará, ainda, a natureza. O trejeito do Naturalismo, para Bresson, é falso: “Nada mais falso em um filme que esse tom natural do teatro que imita a vida e imprime sentimentos estudados” (idem, p. 14). O que tem o modelo que o ator não tem? Parece que ele está falando de um afeto real, que se passa em nome próprio, na relação do atuante com o dispositivo – à margem da interpretação da personagem e representação de “seus afetos”. O estudo do sentimento, do gesto e da intenção da fala pelo ator é, para Bresson, absurdo: “Encontrar o gesto mais natural ou uma melhor maneira de falar em detrimento de outra, é absurdo, não tem sentido no cinematógrafo” (idem). Em outras poéticas, o traço da expressividade do ator, certa estilização quando a intenção da construção é dada a ver, está veiculada ao “efeito de teatral” ou teatralidade (o teatral como uma construção que se dá a ver) – como em “A Paixão de Joana D’arc”, de Dreyer (1921). O surgimento da poética naturalista vem justamente lutar contra a visualidade evidente de uma situação de representação, inscrita na atuação romântica e melodramática, mas recuperada por outra via no Simbolismo e no Expressionismo. A ênfase na construção formal, a visualidade da intenção da forma, denota um efeito de “teatral” como artifício. O traço de exagero é aceito como uma poética e se pode pensar, mais uma vez, em uma modalidade específica de figuração do “objeto a”: o excesso de afeto como algo que transborda a forma, apontando, portanto, para a sua borda e seus limites. Em outras poéticas, ainda, nos deparamos com a afirmação do estranhamento (brechtiano) 42 no cinema – 42
O estranhamento ou distanciamento implica um choque entre visualidades diferentes; uma relação de montagem que gera pensamento. O termo, desenvolvido por Bertolt Brecht, norteou sua práxis teatral e serviu de baliza para formulações teóricas no Século XX, desembocando no que Lehmann formalizou como Teatro Pós-dramático.
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como em “Uma Mulher é uma Mulher” (Godard, 1961) 43. Estes são traços em função de certo estilo e não à revelia. Testemunha-se que se trata de poéticas diferentes e que os signos veiculados à atuação dependem de arranjos específicos. Uma estética da atuação bressoniana, quando seguida por cineastas contemporâneos como Bruno Drumont, comporta-se como um terreno fértil para perfilar signos da despersonalização. Enquanto no campo da poética cênica de Meyerhold, Craig, Decroux, Kantor ou Wilson, esta estaria fatalmente veiculada aos signos de uma exacerbação da teatralidade, no campo cinematográfico, soa em oposição ao “terrível costume do teatro” (vide proposições de Bresson mencionadas). É importante perceber a presença massacrante da crítica sobre certo suposto “teatral” no cinema contemporâneo, seja em uma estética ou em outra e, especialmente, quando se demanda a atuação naturalista. Kusnet, na entoada de Stanislavski, escreveu que o ator não deve representar, mas, viver (1992): o ator deve imprimir a visualidade da vida “real” e não a visualidade da representação (cara a teatrólogos como Meyerhold, Barba, Grotowski, Wilson, Decroux, Kantor, Craig, Wilson e tantos outros cuja poética acusa e necessita da estilização, denotando a construção cênica em seu discurso). Mas, da atuação naturalista, a visualidade do artifício deve ser banida, pois o espectador deve esquecer-se que está diante de um ator. Se pensarmos na demanda de uma atuação naturalista contemporânea, que conta com a diluição dos efeitos de teatralidade, poder-se-ia dizer que é da tentativa de representação da personagem que o teatral advém, ou melhor, da tentativa do ator representar a sua interpretação da personagem. Ao representar a sua interpretação, o ator teatraliza (denota uma construção). E se tenta imprimir o afeto para “preencher” esta forma (que representa a sua interpretação da personagem), cai na poética do Melodrama (contra qual o Naturalismo luta). E aproximando-se do melodrama (em detrimento da neutralidade), o ator gera a repulsa em cineastas que explicitamente demandam a não representação: “Nada de tom, nada de intenção. No cinema, o ator deve contentar-se em dizer o texto. Renunciar a mostrar que já o compreendeu. Nada representar” (MONOD apud NACCACHE, 2012, p. 73). O entendimento da atuação como representação está muitas vezes na bagagem do ator e o conduz ao esforço de compreensão das ações de um roteiro (para representá-las). Fiando-se em um imaginário assertivo sobre a personagem (e no discurso sobre a diegese), ele corre o risco de reduzir a criação à tentativa de validação da sua hipótese sobre a personagem que se esforça por representar, abrindo mão da criação da escritura, ou seja, da cena passível de diferentes escutas, tessitura poética 43
Tomamos como exemplo o momento onde os dois protagonistas olham para a câmera e cumprimentam quem estaria os olhando (o espectador), trazendo para a cena a visualidade de um eixo extra diegético.
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que aponta para os limites da imagem, “a”, ponto de vazio onde se suspende a interpretação – responsável pela experiência estética. Segundo a nossa hipótese, para conquistar o estatuto de arte, o trabalho do ator deve operar a produção deste objeto sem imagem ou inscrição na linguagem, apontando para o limite (da forma, do quadro, do humano) e estranhando, “anamorfoseando”, etc. – dependendo da poética fílmica onde está enquadrado. Assim, seria preciso ver como as figuras deste “a” se constituem também quando o efeito de realidade alucina (atuação naturalista). Levando-se em conta as demandas da atuação contemporânea, esbarramos na ideia de que se pode fazer alusão ao espaço do “a”, através também de outras figuras, como “um pequeno insignificante” que a anteriori não representaria nada e poderia ser jogado fora; espécie de prótese, de “a mais” que ganha brilho na tessitura fílmica. Com este “a” seria possível estranhar em atuações onde a espontaneidade e naturalidade são exaltadas. Atribuímos a importância deste problema à demanda do cinema contemporâneo emergente pela atuação naturalista – de maneira a exigir que o ator dilua a teatralidade, ou seja, a visualidade do seu ato. Assim, acredita-se que o “a” pode se dar também em corpos “sujos” de pessoalidade e cotidianidade.
O ator como poética (e não como representação) A imagem de “Fausto” (Sokurov, 2011) abaixo evidencia a inscrição do ator na poética do quadro (cinematográfico). O tratamento da cor alude à composição plástica e o sujeito-ator é impresso como desenho, que por sua vez estranha por sua perspectiva de morto-vivo, de pinturacoisa-viva. Mas, quando se assume o ar documental, com a câmera solta e quase sem luz, como na cena de “Uma Mulher sob Influência” (Cassavetes, 1974), onde Peter Falk fala ao telefone? O ator também é desenho, em jogo com os limites do quadro, estourando-o a cada instante ao provocar os movimentos da câmera. Os vetores do movimento dos impulsos do ator (como coisa viva implicada na poética fílmica) criam oposição às bordas do enquadre fílmico. A poética se realiza a partir das relações entre ator e quadro, na medida em que o limite das bordas (forma) do segundo é posto em questão.
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“Faust” (Sokurov, 2011)
“Uma Mulher sob Influência” (Cassavetes, 1974)
Em outros dois exemplos – “Gritos e Sussurros” (Bergman, 1972) e “O Deserto Vermelho” (Antonioni, 1964) – vemos a inscrição do ator como pintura enquadrada por objetos ou anteparos que o velam: a porta em “Gritos e Sussurros” e a neblina em “O Deserto Vermelho”.
“O Deserto Vermelho” (Antonioni, 1964)
“Gritos e Sussurros” (Bergman, 1972)
Percebe-se um jogo entre o olhar do espectador e o velamento de parte do corpo (que fica de fora); um apontar para uma borda do olhar: o que não se pode ver. Como se o olhar tivesse brincando com o que cai para fora, o que se esconde, é elidido, velado, retirado. Este “algo” pode ser também o lugar do pensamento: espécie de “fora” que o buraco dos olhos situam.
“Pickpocket” (Bresson, 1959)
Juliette Binoche, em “A Liberdade é Azul” (Kieslowski, 1993)
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No exemplo de Pickpocket (Bresson, 1959), temos a atriz Marika Green em uma espécie de resignação à imobilidade, deixando entrever a visualidade do pensamento. Este pensar pode, através da interpretação do espectador, ser introduzido a posteriori, na diegese, como pensar do personagem (apesar de enigmático, ele é suposto, adivinhado, na medida em que se coloca algo de si) tamponando-se o vazio da janela daquele olhar. Também sobre Juliette Binoche, em “A Liberdade é Azul” (Kieslowski, 1993), podemos dizer que algo vaza dos olhos, e se torna vivo, na medida em que se testemunha algum movimento interno. Algo se passa fora do campo de visão do espectador, neste fora que o buraco dos olhos situa. Concretamente, para o ator, pode ser uma imagem acústica ou visual segredada (voz que canta escondida e com a qual ele se encanta em segredo). O paradigma do desenho vivo está posto. Quando se trata de imobilidade ou movimento estranhados, enquadra-se um desenho cuja visualidade pode implicar a escuta de significantes como “mortificado” ou “nada”. Na dialética entre a morte e a vida, o trabalho do ator é construído implicando a memória corporal, esta tessitura de afetos que dilata o desenho, deformando-o, sujando-o – para imprimir o vivo (apesar do morto). Bresson lutava contra a “sujeira” do ator. No entanto, com as repetições dos vários takes, deveria ver a vida reluzir de repente, em um brilho que fazia “reviver o cadáver” (na metáfora de Leterrier). A dimensão física desse trabalho avoluma-se com a exigência motivada pelo grande número de takes, que procuram captar o que só se deixa ver quando o ator se liberta de toda a tentação de investimento da personagem; e que esperam, segundo François Leterrier (Fontaine, em Fugiu um Condenado à Morte), “a expressão certa por acaso, como o médico debruçado sobre o moribundo espera a centelha de vida que diga que nem tudo está perdido” (NACCACHE, 2012, p. 73)
Em outras poéticas, o ator irrompe a carne encharcada de um excesso de afeto (lembrando que o excesso é uma das figuras do objeto a) e, neste caso, é preciso a erupção. Em outras, bastaria a tentativa forçada de se emocionar: caricatura, deboche, citação e artificialidade, caros a certos filmes. Seria necessário estudar caso a caso como a ideia de figura do “a” se articula em diferentes composições (neste caso, com a explicitação da artificialidade). Mas, existem aquelas poéticas onde é preciso secar para o brilho irromper de uma escuta escondida. A visualidade (plástica) do ator evoca o mundo ficcional, no entanto, não há um a anteriori “personagem” para se representar, pois a personagem é construída em montagem, evocada em pedaços no olhar do espectador, tal como um
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Frankenstein: tessitura de retalhos (significantes). Se a evocação 44 depende da escuta e convoca a interpretação do espectador, é preciso marcar elementos específicos da poética onde o ator joga.
Emma Thompson e Dustin Hoffman, em “Tinha que Ser Você” (Joel Hopkins, 2009)
Nadine Nortier, em “Mouchette” (Bresson, 1967)
O jogo do efeito de realidade na atuação naturalista conta com a “cotidianidade”, elemento específico desta escola (ou estilo) que deve se dar de maneira autônoma. O que quero dizer é que, para compor uma “personagem real”, é preciso se ater a elementos da cotidianidade ao invés do esforço em representar a hipótese da interpretação sobre a personagem (sob o risco de fugir da poética naturalista). Os gestos “sujos” (imbuídos de pessoalidade), de Emma Thompson, em “Tinha que Ser Você” (Joel Hopkins, 2009), inscrevem uma poética de certa forma autônoma à ficção: a impressão de cotidianidade. A posteriori, pode-se ler: “ela é displicente” (por exemplo). Esta seria uma interpretação produzida pelo olhar do espectador. No entanto, se a atriz se esforçar para representar que a personagem é displicente, sairá do naturalismo e cairá na tipificação (contrária a esta poética). A cotidianidade de Thompson evoca algo poético para que a posteriori o espectador o interprete. É preciso deixar “o vácuo aberto”. Há um jogo de evocações aos pedaços também nesta poética específica. Se os gestos mecanicizados, esvaziados, desubjetivados, podem evocar uma leitura de personagem “mortificada, subjulgada ao destino” (por exemplo), a atuação naturalista pode veicular outros significantes, como “simples, comum” ou “humano”, interpretados pelo espectador conforme seu discurso, construção e desejo. Em Amor e Morte (1967), Nadine Nortier é pura presença, mantida sob apertada vigilância por uma câmara que lhe proíbe qualquer efeito inoportuno. O seu corpo ambíguo, até na corrida desprovido de leveza adolescente, é regido por uma força superior: cada ação (não cantar, cantar, cuidar da mãe, atirar com terra às colegas) está separada de qualquer impulso, subtraída de qualquer iniciativa. Emudecida pela ação, mas privada do direito de reação, ela torna-se objeto inerte sob a fúria da professora que, para lhe arrancar uma nota certa, encosta-lhe rudemente o ouvido ao teclado do piano; a voz que então se eleva, límpida, é,
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Ranciere propõe “representar” com o sentido de “evocar”.
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como tudo o resto, imprevisível, mas a sensação de novidade logo se desfaz sob o efeito da repetição. (NACCACHE, 2012, p. 74)
Percebe-se que ambas as poéticas exigem do ator que deixe um espaço aberto, para que o espectador o tampone com a sua interpretação. Acreditamos que este seja um caminho para se pensar a poética da atuação realista na relação com a figura do objeto a: provocação do olhar, que precisa ser reelaborado, “anamorfoseado”, para ver algo que, de um outro ponto de vista, não poderia ser visto (a provocação de um deslocamento do olhar do espectador na medida em que o ator é capaz de apontar para o vazio). Um “pequeno a mais” no “a” na atuação realista Naccache separa a presença do ator como pintura da presença de um “humano” – ao qual os diretores muitas vezes se opõem. Parece que, estruturalmente, a evocação do humano é algo diferente da plasticidade (seja imóvel ou móvel). O humano pode ser criado com a evocação da diegese (onde se situa a personagem com a qual o espectador se identifica) e a escuta de certos significantes. Parece que é preciso uma negociação, ou relação de equilíbrio com a plasticidade “fria” e “morta” da tela. “Frio e morto” criados também com a cotidianidade por esta implicar o automatismo. Equilíbrio que necessita, no entanto, ainda, da “naturalidade”, que por sua vez depende da presença de um “insignificante”: Como em todos os campos estéticos, o natural é, feitas as contas, o cúmulo da arte; é um estilo, seguramente, baseado em competências técnicas, gestuais, vocais, que exigem a maior precisão. Os grandes atores naturais, que falam, mexem e agem de maneira infinitamente mais agradável que o comum dos mortais, dão sentido ao insignificante, simplificam o extraordinário. (NACCACHE, 2012, p. 52)
A significação já não tem importância, mas sim este mínimo, este pequeno que brilha. Assim, surge uma produção (poética) do corpo naturalista fundamentada no que não tem razão de ser: aquele “a mais” que não precisava, um “nadinha”.
Henrique Neme, em oficina de Direção de Atores, na Academia Internacional de Cinema
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Uma brincadeira com a caneta transformada em aviãozinho; tensão nos lábios e bochechas gordas com certo olhar curioso: o que ganha a cena é o estilo, espécie de resíduo, que dá brilho. É a brincadeira com a luvinha de Brando, em “Sindicato de Ladrões” (Kazan, 1954) ou as rápidas piscadelas de Anna Karina, em “Uma Mulher é uma Mulher” (Godard, 1961). É neste sentido que o ator investe na construção de “um pequeno”.
“Sindicato de Ladrões” (Kazan, 1954)
Anna Karina, em “Uma Mulher é uma Mulher” (Godard, 1961)
“É quando o ator acha que não fez nada que eu fico satisfeito” (STERNBERG apud NACCACHE, 2012, p.71). Sternberg, Hitchcock, Bresson, Pasolini: Naccache situa o ator como material da direção. “Quanto ao ator de cinema, é uma fabricação sintática, que se pode desfigurar com a luz, trair com a montagem, e a quem o cineasta pode a seu bel-prazer modificar o rosto e a voz” (NACCACHE, 2012, p. 70). O ator é plástico. Sobre Marlene Dietrich, em “A Imperatriz Vermelha” (Sternberg, 1934), diz: A pele e o olhar de Marlene são puro receptáculo de luz. Um plano muito grande aprisionalhe o rosto nas paredes do enquadramento, reduzindo-lhe a representação aos únicos movimentos que o cineasta não pode impedir: os batimentos das pálpebras, o grau de abertura dos olhos, e a respiração que lhe ergue o véu numa palpitação imperceptível. (NACCACHE, 2012, p. 71)
Mas, esta poética da imobilidade não quer dizer que a estrutura do trabalho do ator não esteja presente e que este ator não esteja trabalhando materiais (ocultos) – ou a sua incidência – para sustentar a relação com limites tão estreitos. Não quer dizer que não haja ator vivo para evocar mortificação. Mesmo enquadrado pela imobilidade obsessiva (que serve à poética de um cineasta) – princípio que se encontra em Hitchcock (“os melhores atores são os eficazes mesmo quando não fazem nada”) – é importante reconhecer a presença de materiais acústicos dos quais o ator lança mão (nem que seja a voz da direção rememorada). Isto para que se transmita uma perspectiva de manejo 141
do jogo de composição e atuação – de construção de uma poética da atuação no cinema. “Não fazer nada”, no enquadramento plástico-corporal imóvel (desenho do corpo), não quer dizer que não se utilize da alternância de materiais na escuta e no olhar, evocando, assim, o “atrás dos olhos”. Apatia, aprisionamento e desubjetivação demandados: é por estar com algo “preso aos ouvidos” que se pode evocá-los. A atenção na escuta desfoca o olhar (perde-se o foco na imagem). Existe a construção que o diretor não se dá conta e que é trabalho do ator (pois este escuta e olha algo). O olhar e a escuta, como função, estão no jogo de sustentação do seu tempo (do tempo atoral) em cena. No que se refere à poética da atuação, além da visualidade de algo que “se passa atrás dos olhos”, há o que “aparece”, cresce, no corporal, nas entrelinhas das palavras, e que dá brilho à cena: há produção de formas. A perspectiva que se abre: evocar a ação (que surge na diegese) depois da forma (do ator). Isto implica um efeito de anamorfose, pois estabelece o deslocamento do olhar para se enxergar algo depois; inclusão a posteriori “do pequeno”, na poética da narrativa. Se, como ator, eu produzo algo (seja um desenho na imobilidade ou um “pequeno a mais”) é “só depois” que o espectador pode inseri-lo na lógica da ficção, interpretá-lo e oferecer um olhar a ele, enquadrando-o (um olhar deslocado de onde estava quando não podia dar sentido a este elemento).
Efeito de alucinação: a desconfiança do próprio olhar Vamos agora para as técnicas do ator; para os procedimentos velados; para o que o diretor e o espectador não vêm; e que, elidido do discurso cinematográfico, suporta a inscrição da sua presença como elemento da poética. O “não fazer nada” só pode estar sustentado por escuta e visualidade fabricadas no seu contexto em substituição à diegese, operação que Uta Hagen testemunha. É preciso apoio para “não fazer nada” no dispositivo de atuação, ou evocar a subjetividade da personagem viva e sucessivas ações internas. Tanto na evocação da morte (boneco, modelo, máquina) quanto do humano vivo (enquadrado na relação com o diegético) há produção atoral subjacente que Hagen chama “substituição”. Na escola stanislavskiana, através do conjunto de procedimentos nos EUA reconhecido como “Método”, a poética da atuação imprime a evocação de um cotidiano diegético. Os materiais que o ator utiliza para gerar um efeito de personagem são conduzidos por intensa elaboração verbal e visual (através de descrições). O ator produz material extratexto falado. Assim, não representa o texto que está no roteiro, mas constrói materiais para a criação de uma cadeia de ações que entra em relação com este, acrescenta algo que produz uma terceira coisa. Se não for assim, paradoxalmente, por não usar o mecanismo cotidiano de pensar uma coisa e dizer outra, a fala surgirá teatralizada e imprimirá a situação de representação. Para produzir o efeito de inscrição no 142
cotidiano, as ações são criadas a partir de impulsos que advém de materiais ocultos – em escuta ou visuais. Estes podem estar em foco durante toda a permanência do ator no dispositivo; ou ter marcado antes o seu corpo (de impulsos para ações) não estando mais em escuta. Ao mecanismo de situar no foco de atenção em algo que advém da própria história de vida para produzir uma catarata (sequência) de ações internas, Uta Hagen chama “substituição”. Temos que fazer essa transferência, essa descoberta do personagem, dentro de nós, por uma série contínua e sobreposta de substituições, a partir de nossas próprias experiências e lembranças, pelo uso da extensão imaginativa das realidades, e colocá-las no lugar da ficção da peça. (HAGEN, 2007, p. 51-52)
São elementos elididos do discurso fílmico e manejados pelo ator para que a sua presença imprima um espaço de defasagem entre interno e externo (novamente espaço vazio e enigmático para o qual se aponta e exige decifração). O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. (BONDIA, 2002, p. 21)
O corpo detém a tessitura de memória impregnada de linguagem na medida em que somos transpassados por palavras. Assim, é também com palavras que o ator aciona sua tessitura corporal e marca lugares de impulsos internos que o ajudam a sustentar sua presença, preparando o que em cena soará como natural. Conforme a palavra que utiliza subjacente em “substituição” (HAGEN, 2007), provoca ação – e a relação destas ações com a fala gera uma terceira coisa: a visualidade de um espaço. Apesar dos exemplos não dimensionarem a força que têm sobre determinado ator (graças a sua singularidade), vale a pena citá-los, pois testemunham o mecanismo da substituição. Manuela deve reagir com profunda vergonha e humilhação. A atriz não conseguia tornar esse momento significativo. Nem a roupa nem a atriz no papel da professora pareciam importar muito para ela. Por acaso, eu lhe sugeri uma estimulante substituição para a professora e a camisa. Eu disse: “E se Lynn Fontainne tivesse nas mãos calcinhas manchadas e as mostrasse a você?” A atriz ficou vermelha como pimentão, arrancou a camisa das mãos de Fräulein Von Bernberg e a escondeu freneticamente atrás de si. (HAGEN, 2007, p. 52)
“E se Lynn Fontainne tivesse nas mãos calcinhas manchadas e as mostrasse a você?”: a fala entra no foco de atenção da atriz, produzindo a ação “envergonhar-se”. Assim, espontaneidade (e naturalidade) são efeitos de uma construção, de um manejo da estrutura do trabalho. Assim, se
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produz uma realidade que alucina, causando descrença do olhar por parecer real, por emprestar o “efeito de real” para aquilo que sabemos que é artifício. Uso a substituição para ‘fazer crer’ no sentido literal para me fazer acreditar no tempo e no lugar que me rodeiam, nas forças condicionantes, em meu novo personagem e em minha relação com os demais personagens, para me colocar na ação espontânea imediata (...) (HAGEN, 2007, p. 52-53)
Do informe à forma (da ação) Passa-se por impasses e questões bem definidas – que retornam: “Em cena, o ator precisa escutar a fala interna?” Pode-se arriscar: “Não”, pois é criada para consolidar os impulsos (estes que fragmentam a linha contínua do roteiro e da fala externa), e se estes já estão impregnados na memória, não é necessário situá-la novamente na escuta em cena”. Fica mais ou menos claro que a fala interna é como uma mosca, que pousa na pele e voa, deixando o lugar marcado (a sensação das suas “patinhas”). Passa, marca um lugar de ruptura (da cadeia contínua do texto) e vai embora, deixando-o vazio para que o ator o preencha com a nova produção: a inscrição, em cena, de ação. Em certos momentos é realmente isto. Mas, em outros, é preciso escutar imagens acústicas inventadas na hora. Qual a necessidade de se produzir antes falas internas se vamos trocá-las? O resíduo da anterior se faz presente na tessitura do corpo. Material de um arranjo complexo, serve para deslocar (estrada de materiais em sucessão) até que se chegue àquela que sustentará a escuta em cena. É inevitável abandonar uns para outros terem lugar. O movimento de procurar falas internas em cena imita o mecanismo do pensamento na vida, de palavra em palavra, onde não existe um antes a ser expresso, pois é no passo a passo do titubeio (ou na certeza de uma obsessão) que é construído.
Juliane Pimenta, em cena com texto de “O Filho da Noiva” (Juan José Campanella, 2001)
Juliane Pimenta, em cena com texto de “O Filho da Noiva” (Juan José Campanella, 2001).
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O trabalho com a atriz Juliane Pimenta trouxe um desdobramento do uso de fala interna. A atriz partira da interpretação da personagem. As escolhas imprimiram a representação, com a reafirmação da dor, a angústia das carências que a personagem estaria sentindo. Começamos a trabalhar o contexto da Juliane: se havia errado na receita do bolo ou esquecido onde colocou as chaves, a atriz incluía este texto nas falas internas, interrompendo o fluxo do texto-dado (roteiro) com “distrações”. Houve uma espécie de descolamento: as falas internas implicaram um contraponto ao drama da personagem. A atriz situou, em escuta, também uma música, que dividiu o seu foco de atenção, assim como o movimento dos dedos das suas mãos, criando sucessivas escansões (espaços) no tempo da fala (espaços preenchidos com a visualidade do seu pensamento impressa pela escuta da música) e pequeninas ações. A impressão de que a fala vai surgindo espontânea adveio com o novo arranjo. Cantarolar em silêncio é um modo eficiente de ser valer do manejo deste lugar de escuta interna. A música vem em substituição à fala quando o ator tem dificuldade de criar palavras. No segundo momento, esta canção pode virar demanda: “Eu quero isso”, “Cala a boca”, “Mas por quê?”, “Tá certo então”. Neste lugar, onde a música interna se situa, pode-se imprimir o eco de “Por que não? Me diz!”: a fala interna como demanda sobre o outro (uma das modalidades possíveis). E, ao alternar falas internas diferentes, criam-se ações que se revezam – uma funcionando como o contraponto da outra. Quando detalhamos a fala interna (uma para cada frase externo-falada) ou as sequenciamos para um momento de silêncio, surgem trocas e impulsos sequenciados. Torna-se possível assim construir movimento interno, impresso no filme através do ator, espaço vazio que se mexe à espera de decifração. A fala cotidiana não é regular, mas de ritmo quebrado cheia de descompassos – causando um instante pela espera da síntese. As ações surgem deste “mar” de subtexto, em meio às ondas. Trata-se de dilatar ou interrogar limites da forma, pois dentro de um informe se provoca a aparição da forma da ação. O ator situa na escuta o material que o espectador não vê (interno) para provocar a tessitura corporal que atualiza vibrações preenchendo o enquadramento plástico-corporal na medida em que a relação com o outro está em jogo. Assim, cria a ilusão da sua “verdade” em cena. No momento em que palavra ou ação se oferecem ao olhar, aparecem como espontâneas porque se trata de troca repentina, salto, revezamento imprimindo impulsos. O material interno produz descolamento do apoio que estaria no externo e a impressão de que este é espontâneo, inventado na hora (pois estamos livres para variar o tempo de enunciação e as trocas entre interno e externo, focando em um material e lançando um outro no espaço descoberto). O mimético cotidiano necessita deste efeito. A presença de impulso, aliada à cotidianidade que 145
circunscreve o “natural” da atuação naturalista, permite um efeito de alucinação (como uma das figuras do “a”) e a descrença no olhar. Elencam-se materiais com os quais o ator pode trabalhar a cotidianidade – e construir o efeito de “natural” se estes outros (troca, impulso) também se inscreverem: a distração com o corpo; a distração com o corpo do outro; a distração com o ambiente; as variações do movimento do olhar; as variações dos movimentos da boca; a variação do volume da voz (baixo, sussurrado); divisão da frase (escansão, aceleração); construção da música da fala; respiração; tempo-ritmo; atividades cotidianas. Estes materiais são “externos” por implicar o desenho das bordas do corpo ou da voz (o que aparece para o espectador). O ator divide o foco de atenção entre estes e aqueles internos. Assim, está apoiado “nas duas pernas” e pode sustentar o tempo de sua permanência no quadro. A inscrição de um dos materiais serve como contra-impulso (oposição) à inscrição de outro. A ilusão de espontaneidade é criada em cada nova inscrição de novo material na cena do corpo, com pequenas variações que se pode extrair quando existe apoio oculto – imperceptíveis apoios: na imagem interna; na fala interna; na música interna. Quando o externo não está imbuído da cotidianidade, mas da imobilidade (plasticidade mórbida), a presença de material pode implicar efeito de vida (movimento) apesar da mortificação. Conquista-se equilíbrio: um pouco de humanidade na casca estática mascarada; efeito de obra que tematiza a forma e seus limites (mesmo a forma do humano e seus limites). A irrupção do afeto como figura do excesso e a subversão como princípio No início de “Stalker” (Tarkovski, 1979), a cena em que a mulher se deixa cair é perturbadora. Descontroladas, as lágrimas caem do rosto contorcido de dor: o homem chora. O foco do ator não poderia estar na tentativa de chorar, mas no segurar a emoção que irrompe descontrolada. Tomamos a análise da “Memória Emotiva”, termo advindo de Stanislavski, que gera impasses, transmitido como falência, pois o teatrólogo teria revisado a perspectiva do apoio na emoção. No entanto, não se trata de focar na emoção, mas, na associação escondida, na medida em que se opera por substituição: “Memória emotiva ou lembrança emotiva trata do problema de encontrar uma substituição para provocar a explosão de lágrimas, o grito de terror, o ataque de riso, etc.” (HAGEN, 2007, p. 68).
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Alisa Frejndlikn, em “Stalker” (Tarkovski, 1979)
Aleksandr Kajdanovsky, em “Stalker” (Tarkovski, 1979)
O material pode ser produzido nos bastidores, no contexto do dispositivo (e fora da diegese) para que o ator dele se aproprie (algo que sem querer apareceu e serve). Na filmagem de “Aquele Querido Mês de Agosto” (Miguel Gomes, 2008), para a atriz “cair na risada” (ação que, no filme, imprime verdade e, ao mesmo tempo, estranha, evocando contradição), alguém faz sinais atrás da câmera: bobagens. 45
Lynn Carlin, em “Faces” (Cassavetes, 1968)
Sónia Bandeira, em “Aquele Querido Mês de Agosto” (Miguel Gomes, 2008)
É neste sentido que o ator se utiliza de material do próprio contexto: a memória emotiva está no contexto da experiência. A ação é inscrita na ficção e escutada, lida, interpretada, pelo espectador, “como se fosse” da personagem: um jogo de evocação a partir da “situação de set” (onde vive a atriz). Seja rememorando ou trazendo para o manejo algo dos bastidores, trata-se da apropriação do próprio contexto para se autoprovocar. Suspende-se a representação quando se desafia o ator a investir na verdade da sua atuação – em ato. É preciso marcar que cada processo é ato de ruptura com o antecedente, no sentido que os psicanalistas dão a palavra: “ruptura, intervalo não antecipável” (DUNKER, 2006, p. 33).
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Fala de Miguel Gomes, em workshop ministrado em Curitiba, dentro do projeto “Ficção Viva”, em 2013.
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Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se rápida, eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada, ainda que quisesse faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... (ASSIS, 1997, p. 56 apud DUNKER, 2006, p. 33)
Ao comentar a passagem de Machado de Assis, Dunker diz: O ato atordoa seus agentes pela interrupção que produz do gesto. Há uma descontinuidade – o sujeito fica preso a esse instante ritmicamente descrito por Machado. O ato marca de forma clara e irreversível um antes e um depois. (DUNKER, 2006, p. 34)
Ato-descontinuidade. Não é possível prever. Não é possível planejar a ruptura necessária (com cadeias anteriores e um modo lógico de organização) no momento da criação. Um novo tempo e espaço – que implica a relação com o set, direção, si mesmo – exige o salto no vazio. Nova produção a partir de uma experiência que põe em xeque a segurança já adquirida, o imaginário já constituído – e qualquer relação de domínio. Em psicanálise, o conceito de ato está ligado a algo que “não se queria fazer”, uma falha (ato falho); uma encenação (acting out), mas como se fosse outro a fazer; um “não estava em mim, não me reconheço no que fiz (...) não era isso que eu queria fazer” (DUNKER, 2006, p. 33). Este algo que se dá a revelia – como se o sujeito não escolhesse (não foi ele que fez): é neste sentido que o ato é não antecipável. Quando se vê, já fez. O estado cênico tem a ver com isto também. Mas seria hipocrisia deixar o ator no abismo de seus processos; sem orientação. A orientação é: o enlaçamento verbo-corpo; tecer linguagem para constituir experiência, quando algo ultrapassa esta linguagem e é Real (indizível); a perspectiva de acionar as fantasias, eleger focos, escrever para fazer voltar ecos. Ainda assim, algo que não é em linha reta; é preciso deslize, escorregadela; erros, acasos e incerteza; o passo torto, manco. É preciso um jogo de entortamentos, para se segurar na tessitura da poética atoral. Assim, seria possível, para além dos efeitos advindos de uma estética do excesso (de afeto) ou da despersonalização; pra além da caricatura, deboche, citação e artificialidade caros a certos filmes; para além do desenho-vivo posto como estrutural; imprimir, em se tratando da atuação naturalista, uma figuração do “objeto a”, através de um “pequeno insignificante”. Seria possível investir na evocação da ação a posteriori, quando o corpo produz nas entrelinhas das palavras, e na cotidianidade, que se apresenta como vácuo de interpretação, pois registro específico de determinada estética que independe do universo diegético. E também investir no próprio contexto de jogo e nos materiais de substituição para evocar a presença de um espaço “dentro” que, paradoxalmente, fica “fora” do discurso fílmico – preservando um lugar de fratura. Seria possível provocar a anamorfose no olhar do espectador quando se preserva estes espaços e é preciso lutar por eles para que, na 148
poética fílmica contemporânea que demanda o naturalismo da atuação do ator, este possa encontrar o seu lugar.
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14. O ator no contexto da direção cinematográfica: atuação como território de estranhamento
O corpo/imagem encontra-se inscrito em um território de estranhamento. Estranhamento primeiramente no sentido comum do verbo “estranhar”, mas também em alusão ao termo cunhado por Bertolt Brecht, quando o ato de atuar é revelado e, reconhecido, implica a visualidade inscrita como poética da cena. Em outras palavras, que a atuação depende de algo que escapa à diegese e, advindo como estranho, ganha sentido ao inscrever-se na poética do filme. Um sentido que é político, pois se investe no que não está dado como certo, pondo em cheque o que seria natural. De maneira que, quando se trata de uma atuação realista, a própria inscrição do ator na visualidade do cotidiano diegético deve estranhar. Estranhem o que não for estranho Tomem por inexplicável o habitual Sintam-se perplexos ante o cotidiano Façam sempre perguntas Caso seja necessário Comecem por aquilo que é mais comum Para que nada seja considerado imutável Nada, absolutamente nada. Nunca digam: isso é natural (BRECHT, 1990, p 129)
Quando falamos de diegese estamos nos referindo à ficção, tal como define Aumont em referência ao uso do termo por Soriau. Esta diegese, que aparece, no campo da teoria contemporânea articulada a noção de representação.
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Para Souriau, os “fatos diegéticos” são aqueles relativos à história representada na tela, relativos à apresentação em projeção diante dos espectadores. É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme apresenta, tudo o que essa ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira (AUMONT & MICHEL, 2003, p 79)
Também podemos evocar aqui, outro conceito, que é o “efeito do real”, como o que Brecht, justamente, queria quebrar. O efeito de real designa o fato de que, na base de um efeito de realidade o espectador induz um “juízo de existência” sobre as figuras da representação e lhes confere um referente no real; dito de outro modo, ele não acredita que o que ele vê seja o próprio real (não é uma teoria da ilusão), mas sim que o que ele vê existiu no real. Para Jean-Pierre Oudart (que retoma conscientemente ou não teses de Michel Foucault), esse vínculo entre efeito de realidade e efeito de real é característico da representação ocidental pós-renascentista, que sempre quis submeter a representação analógica a uma perspectiva realista (AUMONT & MICHEL, 2003, p 92).
No que diz respeito à atuação, Brecht cunhou o termo “estranhamento” em referência à estilização dos gestos, mas também à presença da crítica – ou seja, à visualidade do olhar do próprio ator que representa a personagem. Aparece, em cena, a visualidade do pensamento de um ator criticando a personagem. É como se o ator dissesse: sou eu aqui (não a personagem) e não estou de acordo com o que esta faz, pois entendo que está agindo por uma determinação social; com o meu gesto, eu digo isto a vocês; por isto, olho diretamente para vocês; exagero os gestos e os construo de maneira a não simplesmente mimetizar ações, mas também estranha-las, colocá-las em questão, desituá-las, retira-las da diegese, deslocá-las para um discurso que é meu. Trata-se, classicamente, da oposição à atuação naturalista quando esta é dada como registro de um real sem pô-lo em questão (de um real “natural”), tal como pode ser atribuída à Stanislavski (com a sua crença na revelação de uma essência do homem) ou Antoine, quando este tenta fazer do teatro o documento do mundo “tal como é”, reverberando o projeto cientificista de Zola. Ao contrário, a obra teatral de Brecht está marcada “pelo niilismo anárquico e pelo cinismo” (MONTAGNARI, 2010, p 9) Com o folclore, as ações populares, os corais, cenas justapostas ou a estilização do texto, Brecht procura evocar a visualidade de um olhar, de um pensamento. Na atuação, o efeito de distanciamento implica que, enquanto o ator inscreve as ações da personagem, outra cadeia é lida pelo espectador. A visualidade de uma representação aparece, enquanto que, em Stanislavski, esta se encontra disfarçada e escondida – para que o ator evoque o “como se” fosse o personagem. Para muitos, o projeto de Stanislavski de evocar, através da atuação naturalista (ou realista), com a mimese de uma cotidianidade do corpo, o “como se” fosse real, implicaria a diluição do olhar do espectador; um colamento na diegese por empatia (identificação), reforçando, assim, padrões 151
burgueses. Já a obra de Brecht seria “convite ao deboche (sexo, charuto, álccol, ópio) e um desafio à moral burguesa” (MONTAGNARI, 2010, p. 9). No entanto, podemos perceber que, no cinema, uma atuação realista pode estar implicada em uma poética que sublinha a visualidade do olhar do espectador através da mise-em-scene, enquadramento e movimento da câmera, bem como dos cortes. No cinema, podemos perceber indícios da visualidade de um contexto do ator inscrita na poética do filme. Por exemplo, em “Viver a Vida” de Jean-Luc Godard, por mais cotidianidade que Anna Karina imprima através do seu desenho corporal, olhar, respiração e gestos, há distanciamento e a visualidade da presença do espectador é evocada quando a atriz olha (ou quase olha) para a câmera. Ou, para citar um exemplo brasileiro, quando, em “Bang Bang”, de Andrea Tonacci (1971), Paulo Cesar Pereio repete um mesmo diálogo por diversas vezes na mesa do bar, misturando a visualidade da representação a um universo diegético fragmentado, apesar da cotidianidade da construção corporal da atriz, que se torna, então, performativa. - Oi. - Oi. (...) Tá bom? - Porque você falou “tá bom”? Eu só falei “oi”! 46
O que quero demonstrar é que, enquanto no teatro de Brecht é necessário uma plasticidade exacerbada do corpo (ou, como diz Barba, “extra-cotidiana”) para que o deboche, a crítica, a visualidade do olhar e o pensamento sejam impressos, no cinema, o ator pode se valer da montagem e mise-en-scene onde se inscreve para, justamente, potencializando a cotidianidade da atuação, estranhar. Deparamo-nos com a perspectiva de uma revisão do papel da atuação naturalista: não de forma a dizer que o mundo burguês é natural, mas como potencia de estranhamento deste mundo. No caso de Bang Bang a visualidade do contexto do ator aparece na medida em que está também criticando a parceira de cena. Na repetição do diálogo entra a música e o barulho do transito se sobrepõe às falas; a câmera passeia de um lado para o outro, reforçando a visualidade de uma construção que vem a primeiro plano, como espécie de laboratório de linguagem, na medida em que os elementos da cena estranham a diegese. Enquanto isto, a “naturalidade” dos gestos da atriz contribui para que o estranhamento se configure – porque há algo em cena que está deslocado do seu habitual apesar de ser reconhecido como tal. No teatro, não apenas o projeto de Bertolt Brecht implicou oposição à atuação realista, mas também Meyerhold, Craig, Decroux, Grotowski, Barba, tomaram a atuação como território que 46
Trecho de diálogo em “Bang Bang” de Andrea Tonacci.
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evoca diferentes camadas textuais. Craig e Meyerhold preconizaram o uso de traços gratuitos e abstratos do desenho corporal para sugerir uma dimensão que se pretende espiritual e para além das aparências (de uma imitação da realidade). Este paradigma do teatro simbolista, burilado desde o começo do Século XX, implicava uma de-subjetivação da atuação para que a interpretação do ator não interferisse na poética do texto. Um projeto que lembra o choque entre o que se daria como inscrição humana no cotidiano diegético e a mecanização dos gestos postulada por Robert Bresson. Em um filme como “Mouchette” (1967), o corpo evoca significantes que podem ganhar sentido na diegese (como a mortificação dos indivíduos frente às relações de poder, por exemplo), mas também, que, por outro lado, ganham sentido em alusão à presença do boneco como poética da cena, de maneira que o ator é coisificado, como postulava Kantor ou Craig. Assim, a visualidade das ações dramáticas implica o sentido na diegese, no entanto, para além desta, está uma poética que aproximaria a atuação das artes plásticas ou da dança. Mas, se por um lado, percebemos estas duas vertentes como paradigmáticas de uma teoria da atuação (a estilizada e a realista), por outro lado, os limites entre elas se diluem quando estabelecemos a articulação com a poética fílmica. Por um lado, temos a perspectiva desta espécie de estranhamento assumido quando é a visualidade do desenho do corpo que estranha. Por outro lado, encontramos a ilusão da naturalidade do corpo comum e cotidiano, das ações advindas como impulsos em função da inscrição em relações intersubjetivas – ou seja, da atuação que implica o disfarce da representação para que o corpo possa ser tomado como objeto da captura do olhar (e o estranhamento possa advir da identificação deste olhar). Trata-se, portanto, de duas modalidades para que o estranhamento se configure. E, neste caso, podemos tomar a propriedade do ator estranhar, no bojo de uma atuação naturalista, como um valor para a crítica manejar. Em “A Separação” de Asghar Farhadi (2011), os atores que representam o pai, a empregada, a filha, a mãe, o avô, estão inscritos como personagens em um cotidiano da diegese. Qualquer visualidade de um ato de representar é perdida. Encontramos um protótipo de como a atuação realista serve ao filme na medida em que não se denuncia como representação, mas aparece como mimese da realidade. Apesar da oposição contra esta mimese (construída na história da encenação teatral e que, a cada movimento, traz a estilização como um valor), no que diz respeito ao cinema contemporâneo, esconder a visualidade da representação (de maneira que os significantes escutados através do corpo estejam articulados à diegese) é servir ao filme – filme que se torna político no seu valor de denúncia. No entanto, neste caso, onde estaria a implicação poética deste tipo de atuação? Neste caso haveria também uma poética da atuação ou quando o ator cumpre a mimese do habitual é somente a poética do filme (a qual esta serve) que se constitui? 153
Seria preciso aqui investigar um pouco o conceito de poético. Para Jakobson, por exemplo, “toda mensagem poética é como um discurso citado que não oblitera a referência, mas a torna ambígua”. A ambiguidade é tal como “um corolário obrigatório da poesia”, de maneira que esta “encontra correspondência num remetente cindido, num destinatário e numa referência cindidos” (JAKOBSON, 2010, p 150). A noção de poética postulada por Jakbson nos serve na medida em que a atuação realista implica justamente a ambiguidade. Ela torna ambíguo o corpo cotidiano inscrito na diegese por ser do ator e também da personagem evocada: construída, efeito. Ela torna ambígua a verdade das ações inscritas na atuação por saber-se se tratar de construção que, no entanto, perde sua visualidade para dar lugar ao “como se”. A forma mimética, neste caso, em seu efeito de “natural”, implica também um efeito de fissura entre duas visualidades que se chocam (a visualidade do contexto de produção da obra e o efeito diegético que produz) – abrindo ao espectador espaço para a sua produção na medida em que este choque produz enigma. Assim, a poética da atuação naturalista colocaria em cheque a clássica oposição “verdade e mentira” tanto quanto um poema de Pessoa que diz: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente” (PESSOA, 1972: 164). É construção e experiência; é verdade e mentira ao mesmo tempo. Enquanto poética, trata-se de uma construção para falar da verdade que não se pode dizer (para parafrasear Lacan): “Digo sempre a verdade. Não toda... pois, dizê-la toda, não se consegue... Dizêla toda é impossível, materialmente... faltam as palavras. É justamente por esse impossível... que a verdade toca o Real.” (LACAN, 1973). Assim, a performance do ator, ao evocar a cotidianidade de um corpo “real”, a coloca em cheque, fazendo “vacilar a referência” como diz Jakobson e constituindo um efeito de poética. E colocar este corpo em cheque seria um projeto que se pode dizer com Brecht político por não tomálo como natural, por acusá-lo como construção. Isto para além do fato que temos este corpo como objeto de enquadre e corte – bem como a visualidade do olhar da câmera (evidenciado no seu movimento, variações, duração e angulações) que garante a inscrição do ator em uma relação estranhada. E para além do fato que, na medida em que as ações dos atores implicam a adequação à diegese, entram em relação de tensão com a perspectiva de que algo possa dali escapar (e estranhar) quando o significante escutado não se inscreve mais em um encadeamento linear ou lógico. De maneira que, mesmo perdendo de vista a situação de representação, pode-se colocar em jogo, em cheque, em questão, as ações da diegese. Um trabalho como o de Marlon Brando em “Sindicato de Ladrões”, de Elia Kazan (1954) é paradigmático de uma atuação a la Actors Studio, onde os traços do corpo inscrevem a relação com o espaço ficcional e o outro da diegese. Mexendo na luvinha de Eva Marie Saint, Brando evoca a 154
visualidade de um indivíduo inscrito em relações intersubjetivas; uma visualidade densa o suficiente para que se possa dizer: universo diegético “fechado”. Teóricos do teatro contemporâneo, como Hanz-Ties Lehmann e Josette Féral, fazem frequentemente alusão à representação de um “universo ficcional fechado” em oposição à performatividade. Esta ideia está hoje disseminada nos estudos acadêmicos teatrais. Trata-se de um campo de investigação cujo debate se amplia hoje na academia. O teatro tradicional trabalha com a ideia da manutenção de um universo fictício fechado. É um tipo de representação cênica com uma realidade emoldurada, encerrada em leis próprias e com uma lógica interna entre os elementos. Esse enquadramento fictício ignora a ideia de que o teatro é um “processo in actu”. O teatro tem como especificidade o fato de que é a um só tempo processo material e signo, prática real e significante. Os produtos materiais da cultura são usados como signos estéticos no teatro, e isto é o que torna possível um “para além da interpretação” e a “estética da irrupção do real” A partir dos anos 70, diversas manifestações da arte teatral empreenderam uma revolução na “representação dramática imitativa” e propuseram um teatro para além dos limites do significado, da cópia e do ordenamento centrado no logus2. O novo teatro não é mais visto como lugar do simulacro, da ilustração da ação, da duplicação de outra realidade; nele, “o real passa a ter o mesmo valor do fictício” (BOND, 2010, p 01).
Retomando a atuação de Brando em “Sindicato de Ladrões” (Elia Kazan, 1954) – quando esta implica justamente a clássica representação de um universo diegético fechado que o teatro pósdramático opõe ao “processo in actu” – podemos dizer que há performatividade? Tal como define Josette Féral a performatividade se constitui através do olhar do espectador: “O espectador, longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa” (FERAL, 2008, p 202). Pergunto-me se a performatividade não implica uma estrutura da relação do espectador com a obra (mais que uma modalidade desta relação em detrimento da outra que seria a representação tal como é posto na teoria teatral). De maneira que haveria diferentes arranjos entre uma possível escuta de significantes evocando a diegese (como “universo fechado”) e a performatividade do olhar do espectador. Em “O Espelho” de Andrei Tarkovsky (1975), nós vemos a atriz Margarita Terékhova coçando o olho de maneira a diluir a visualidade do contexto de uma atriz representando (procedimento da atuação naturalista) graças a uma relação de intimidade com o corpo que independe da diegese. Em “Os Idiotas” de Lars Von Trier (1997), as ações dos bastidores são ficcionalizadas (evocam uma diegese na montagem). O filme se estrutura como um registro do processo da criação dos personagens (“os idiotas”). Os atores se dedicam a aprender como representar estes “idiotas”. As ações inscritas neste processo de construção são capturadas e montadas em função de um filme que conta também com a voz over do diretor comentando estes processos. O pensamento do ator pode implicar o mistério, se situando fora da diegese mesmo que o 155
espectador faça o exercício de articulá-lo ao percurso da personagem – tal como vemos em filmes de Krzysztof Kieslowsky como “A Dupla Vida de Veronique”, “A Liberdade é Azul”, “A Igualdade é Branca” ou “A Fraternidade é Vermelha”. Ou, ainda, quando a atuação encontra-se sustentada por uma combinação entre densidade e imobilidade (como em certas atuações de Barbara Stanwyck, por exemplo) estes elementos são emprestados à diegese na medida em que lidos como a personalidade da personagem: “poderosa”, “misteriosa”. Por fim, o rosto dos atores pode imprimir efeitos de estranhamento, comportando algo a mais que atrapalhe a constituição da diegese e fazendo girar uma cadeia de associações durante o empenho do espectador em criar um lugar para aquele material que escapou às suas identificações. Poderíamos dizer, portanto, que a cena do corpo é implicada como uma escrita, cujos significantes o espectador escuta, e que conta com a performatividade do seu olhar quando este estranha também uma obra atoral. De maneira que a complexa composição de significantes escutados na atuação podem se deslocar apara uma diegese ou abrir nela fissuras de desentendimento. No cinema, graças a estas operações, há potência na uma cotidianidade do corpo, que se revela justamente quando o paradigma da atuação naturalista pode ser utilizado para estranhar. A cena da teoria teatral no século XX lutou contra o projeto de atuação realista. Mas, especialmente no cinema, esta modalidade de atuação se configura como poética na medida em que, entre esta e a diegese, algo se dá como diferença, abrindo espaço para substituições em um eixo vertical de possíveis e não se configurando apenas como “a” representação daquela ação ficcional. De maneira que o princípio de uma montagem entre visualidades distintas se encontra presente. Um jogo que implica relações de sentido e deslizamentos, mas também a performatividade do olhar do espectador que não consegue capturar o sentido do que fica de fora (o que dinamiza a sua relação com a obra). Espera-se que esta hipótese se fortaleça e, com ela, a perspectiva de uma crítica da atuação que contemple a construção deste jogo.
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15. A criação do corpo em articulação com a estética fílmica: Modalidades de agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator
Nossa hipótese é que o agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator não se circunscreve à representação da diegese. Tecida por imagens, esta se apresenta como uma modalidade de construção plástica junto a outras, como, por exemplo, a plástica do corpo. A imagem de Lilian Gish em “The Wind” (Sjöstrom, 1928) – em meio ao imenso cabelo e misturada aos gestos – implica uma plasticidade emaranhada a certos significantes (ordem da linguagem). Mas se, por um lado, as suas formas se instalam como signos articulados a ação dramática, por outro, restam ao sentido da ação. E nos deparamos, assim, com um jogo calcado nas ambiguidades e substituições dos significantes, que, por sua vez, circulam em torno de um núcleo resistente: o que o espectador não consegue capturar. O semblante de Gish é erigido pela tensão: as linhas do rosto abruptamente se abrem para o que o marcou (o medo do vento, do homem); o olhar, ora encontra-se decomposto nos objetos, alienígena (de modo que a atriz perde a conotação de humana), ora repousa delicadamente sobre as imagens do mundo. Em leitura, surge a cadeia: desconfiança, desalento, timidez, tristeza – implicando também o não dito em torno do qual circulam estes significantes, pois uma leitura não dá conta da grafia do corpo. O pêndulo entre os minúsculos gestos e uma espécie de abscesso (os olhos abandonam o corpo mortificado): é a especificidade de sua produção corporal que credencia a atriz como agente da estética do filme. Trata-se de um agenciamento que podemos perceber também em “Uma Mulher sobre Influência” (Cassavetes, 1974), com Gena Rowlands. A produção corporal se inscreve no universo diegético ao evocar ações articuladas, neste caso, a uma questão (que se apresenta como porta de entrada): Mabel é mãe, é esposa, é dona de casa, mas, Mabel é também louca? 157
Mantendo-nos suspensos entre o não e o sim, tecemos uma cadeia de apostas; e um dos pontos de incidência do trabalho de Rowlands é a construção do sentido das ações de Mabel – evocado através dos seus gestos, que deixam, por sua vez, entrever a ambiguidade da sua construção. Isto na medida em que significantes são inscritos no discurso fílmico – e rearranjados a cada instante. Quando conseguimos juntá-los e ler o sentido de uma ação, para além da plasticidade implicada, está aquela “espécie de região destampada” por onde a vida se intromete insuportável: o ponto onde incide a angústia. E a maestria da atriz está no escriturar despudorado deste afeto no corpo. O agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator depende, assim, da articulação entre três ordens: o que escutamos no ato de leitura (interpretação), que depende da “linguagem” (os significantes) e a partir do qual tecemos “uma plástica” (imagem, sentido); e “o que não capturamos” (provocando a angústia ou o espanto diante da produção no corpo). Rowlands é despudorada no deixar-se levar pelos excessos e jeitões. E assim, podemos ler: Mabel. Mabel é louca! Vemos o sentido da loucura de Mabel nas “birutices da carne de Rowlands”. O agenciamento estaria nesta passagem. É possível detalha-la: do trejeito (da irrupção na carne) ao sentido da ação que brota, dandonos a chance de pensar: “O que é isso?” E ver, ainda, surgir “outra coisa”, tornando-nos testemunhas da ambiguidade do que escutamos do discurso fílmico: “Ah! Mabel olha dentro da boca do homem que canta à mesa! Mabel quer ver como o som é produzido! Não vai beijá-lo, mas, por um instante, eu pensei isto, eu vi isto!” Há um jogo de substituições, que começa com o não sentido do gesto, passa pelo duplo-sentido (são duas coisas ao mesmo tempo) e cai na unidade do sentido. Bem antes do proferir da fala da atriz, estes materiais são evocados pelo corpo; e se substituem no discurso fílmico. Através de um “jeitão” ou estilo que não tem, previamente, um sentido - e por onde se aventura, ao deixar irromper o afeto (a partir de palavras implicadas “no seu jogo”, nos bastidores, na estrutura da sua prática) - o ator dedica-se a um trabalho do qual o discurso fílmico é efeito. “Não existe personagem e agora vamos jogar”: a preocupação do mestre russo Constantin Stanislavski era que os atores articulassem a sua produção à diegese. Lançando mão de subtextos, monólogos interior, situações paralelas, memória emotiva, esquemas de ações-físicas (ou seja, com o seu próprio material), ele deveria emprestar vida à personagem. Eugênio Kusnet evidencia esta operação quando diz que o ator evoca a “segunda instalação” (ficção) com a “primeira instalação” (o seu contexto). Ou seja, o ator ficcionaliza as suas ações. Abre-se a porta, então, para a formulação de modalidades específicas deste jogo. A apropriação da situação de representação para evocar a diegese está presente em “O Grande Chefe” (Lars Von Trier, 2006). O ator Jens Albinus utiliza-se da dinâmica de bastidor que é 158
tematizada no filme. A articulação com a diegese implica uma semântica do preenchimento do tempo entre gestos e falas na medida em que estes se articulam aos cortes e aos enquadramentos. O filme começa com Kristopher (Jens Albinus) memorizando a fala “Eu sou o presidente da empresa”. Ele interpreta um ator contratado para representar “o grande chefe” (Svend), um personagem fictício, criado pelo verdadeiro dono da empresa: Ravn (Peter Gantzler). Ravn manteve “o grande chefe” virtual (falando por email com os funcionários) até que, a fim de vender a sua empresa, necessitou da presença física do “grande chefe” (e neste momento, contrata Kristopher). Escolhas instantâneas estão implicadas no percurso de Kristopher. A operação empresta um caráter de “não cálculo” às ações da personagem Svend. Por exemplo, ao necessitar revelar o seu nome completo sem, no entanto, possuir a informação: “Vocês podem me chamar de Kristopher” (ele assume o seu próprio nome). “E por que nós lhe chamaríamos de Kristopher?”, diz o funcionário, “o seu nome é Svend E.” Kristopher improvisa: “Isso mesmo, o meu nome é Svend”. E o funcionário: “E o que significa o E?” Ele não sabe dizer. Precisaria, então, inventar o sobrenome do “grande chefe” em um momento de improviso. A borda entre o personagem Svend e o ator Kristopher ganha contorno no filme de Lars Von Trier, explicitando um jogo que geralmente é velado. Se os atores têm informações diversas, se há algo que um sabe e o outro não, quando isto irrompe, a reação é “no próprio contexto”. Flagrada, evoca a ação ficcional e é “como se” o personagem agisse. Ou seja, a plasticidade de um “real” é desenhada a partir das relações sociais onde, de fato, o sujeito-ator está inserido. Assim, a atuação parece “natural” (termo problemático, já que se trata, propriamente, da construção de um jogo). O brilho da cena em que Kristopher se encontra o comprador deve-se ao seu mau humor e à contrariedade diante fala do outro: “Eu sou o presidente da empresa” (o comprador diz, justamente, o que ele havia decorado para dizer). Se a espontaneidade da surpresa implica o desconhecimento de Jens Albinus ou se o ator de Trier sabia do roteiro e joga com o desconhecimento “de Kristopher”, não temos como saber. Mas, de qualquer maneira, para o comprador da firma (que nada sabe da farsa) aquela é a reação “de Svend” (o personagem inventado) – e não de Kristopher (o ator contratado). Lars Von Trier potencializa os “momentos de não saber” de Kristopher (por exemplo, quando ele precisa falar de informática, um assunto sobre o qual nada sabe). Uma sucessão de ações aparece articulada aos cortes: Kristopher está sentado; um corte e aparece em pé; outro e está novamente sentado. Ele observa a reação dos funcionários, balança a cabeça, respira, pensa, espera. Uma semântica de ações costura o tempo entre as falas, significativas a partir da situação-dada. O procedimento faz aparecer esta outra cadeia (de ações), articulada a um pensamento interno do personagem, não dito – que sustenta a construção corporal, tomando o tempo e o espaço. O corpo, 159
quando lido, diz coisas que não estão na fala dos atores. Os arroubos de “pseudo-irritação” se desenham, na diegese, como uma estratégia para disfarçar este “não saber”; e alcançam a dimensão do cômico quando Kristopher desfia a série de adjetivos: “Estão horríveis, estão um xixi, estão uma lavagem de porco” (referindo-se aos números da empresa). O silêncio é estendido, abrindo espaços para o que o ator faz. Na última cena, esta escansão ganha o estatuto de paródia quando Kristopher brinca de adiar, a cada instante, a assinatura do contrato (chegando a “fazer aviãozinho” com a caneta). Ele sacode a bochecha, como os atores costumam fazer antes de entrar em cena, e pede silêncio ao recinto: “Não ouço direito o personagem. Quais são seus valores morais? Assinaria ou não a venda? Eu não tenho a menor pista. Há simpatias e antipatias guerreando” (e aponta o dedo para o ar, como se escutasse o seu pensamento). Em certos momentos, esta escansão implica o transbordamento da emoção, por exemplo, quando Ravn diz a Kristopher: “Subjulgue-os!” (a fala encharcada de voracidade e energia). Em outros momentos (por exemplo, quando Kristopher apanha do funcionário), o tempo é esvaziado de emoção. Há um pêndulo entre as explosões e o vazio emocional - a partir do qual podemos ler o que não é dito pelo personagem (e sim pelo filme ou pelo ator). Aparece uma semântica da atuação, já que, tanto os tempos de distanciamento, relaxamento, distensão e distração, quanto os de “tomação emocional”, se dão a ler. O ator, inscrito na linguagem e encenando os efeitos que, no corpo, esta produz, veicula, na obra, algo excedente. Com o efeito do que escapa ao discurso fílmico, ele agencia o jogo de ambiguidades na construção do sentido. Isto, na medida em que o seu trabalho se estabelece como ruptura. Colocando o discurso sempre em cheque, a cada instante, o ator o produz como devir, instável. Já Ema Thompson em “Tinha que ser Você” (Joel Hopkins, 2009) evoca a plástica de uma cotidianidade articulada a certa representação da realidade (evocada no discurso fílmico). A leitura da ação foge ao controle da atriz. O agenciamento da poética não está na criação da narrativa ou no sistema de representações, mas na formalização corporal - que estabelece a ideia de autenticidade, de pessoa única e humana, imersa no aprisionamento do seu cotidiano, do seu destino, de sua vida. Algo na tessitura do corpo de Thompson evoca um “eu comigo” permeado de estranhamento, deste tal “reconhecer-se de novo e de novo”. E, se este se inscreve como material de um discurso fílmico é porque a atriz está perfeitamente inscrita em certa poética que implica a plasticidade do cotidiano. O agenciamento da linguagem cinematográfica aparece na medida em que a atriz se inscreve em certa poética que o antecede. Mas há um “algo a mais” que a película captura e está posto no corpo através da irrupção do afeto. Este “algo a mais” opera uma espécie de brilho que fascina o espectador. Podemos dizer que 160
“Tinha que ser você” trata de uma filha, solteirona, que vive uma relação viciada com a mãe, pois está sempre a colocando a par da sua rotina e encontros. Esta seria uma interpretação, mas pouco importa a hipótese de uma sinopse, e sim o que é tecido no corpo da atriz a partir da irrupção do afeto em torno destes significantes. Isto na medida em que, como dissemos, a atriz se inscreve na poética que a antecede e se sustenta através da presença de uma plasticidade do cotidiano. A primeira cena se passa na cozinha. Thompson brilha com o coloquialismo da fala e gesto, que não é rompido nem mesmo no conflito com a mãe. Ou seja, o conflito é evocado dentro da plasticidade de um cotidiano, sustentada pelo coloquialismo de Thompson. Uma farpa de cá e outra de lá, as duas se abraçam. A cena termina com a mãe dizendo “Eu sou horrível” sem, no entanto, sublinhar o drama. O abraço está permeado de cansaço, déjà vu, repetição. A suspensão de uma cadeia de ações (na diegese) implica um “deixar rolar o tempo” (no contexto da recepção) enquanto as substituições operam uma tentativa de leitura. A partir de um gesto simples (como ler com a cabeça apoiada na janela do ônibus) imaginamos sobre o encontro, substituindo as imagens em recepção. Na ação seguinte, Kate cumprimenta o homem, tira o casaco, bebe. De repente, novamente a suspensão destas ações com o sorriso: a captura do afeto. O seu corpo não é sustentado pela descrição formal (detalhamento do desenho das suas bordas), mas o improviso articula signos: o jeito de sentar, sem as pernas cruzadas ou qualquer outra denotação de feminilidade, um despojamento lido por nós (introduzidos que estamos nas cadeias da ficção). Quando fala ao telefone, um displicente gesto de coçar o nariz; mexe na bolsa ao conversar com a amiga. Há música nos gestos, revezamento, ritmo, bem como na voz, cuja embocadura implica imprecisão e vulnerabilidade - deixando-se quebrar, irregular, instável. O deparar-se com o enigma do outro está posto no corpo seja com o desajeito, a timidez, o constrangimento, a precipitação, a alegria, a esperança, a decepção, o cansaço, a tentativa forçada da relação, o abandono. Seja qual cadeia escutamos, há um afeto posto no corpo que suspende o gesto. Está aí o “estar diante de si e reconhecer-se de novo e de novo” que, no trabalho do ator, implica um agenciamento na medida em que esta suspensão se inscreve na diegese: com os olhos preenchidos de pensamento (para, por fim, brotar o esgar do choro), lá está Kate sentada na tampa da privada. Algo parecido está posto em Margarita Kherékova de “O Espelho” (Tarkovski, 1975): o bailado do corpo imprime certa displicência em relação à presença da câmera; uma “sujeira” cotidiana é levada ao extremo, fazendo com que a leitura de uma “atriz representando” seja totalmente diluída (o que prontamente reverbera a tese de Tarkovski de que o ator deve viver ao invés de representar). A atriz é flagrada alheia à câmera, cujo olhar invade seus gestos displicentes. Há uma espécie de desprezo. Um “corpo sujo” oferece resistência à leitura da situação de representação, ou 161
melhor, à inscrição, no discurso, de que ali está a atriz representando um papel. A “sujeira cotidiana” cumpre o papel de resistência à leitura da elaboração formal (apesar desta, obviamente, estar presente). A atriz esfrega os olhos, massageia a testa. Não “dona do tempo“ (pois quem o esculpe é o diretor), mas “escrava da espera”: pela fala cujo insight ainda veio ou pelo “corta!” (que finalizará aquele plano). O “viver o momento” (e o amor à instantaneidade da revelação de uma incidência viva) depende do jeito do ator lidar com esta espera. Poderíamos dizer que a docilidade com a qual Kherékova submete o seu corpo à “sujeira” do cotidiano se limita a momentos sem o texto. Poderíamos pensar que a fala planejada a amarraria em uma cadeia artificialmente preparada (indo contra a suposta vertigem do “não sei o que vai acontecer”). No entanto, o despojamento do seu “corpo sujo” se intensifica na conversa com o marido (uma cena difícil com um longo texto). Há uma situação ficcional – “circunstâncias dramáticas” (Tarkovski, 1998) – e certos significantes em jogo. No entanto, é o corpo que, impregnado desta “cotidianidade suja”, se revela como a verdade de um jogo extremamente elaborado. É a dedicação profunda a pequenas e insignificantes “coisas fora do script” que respondem ao “o ator tem de existir com autenticidade” de Tarkovski. Isto na medida em que a atriz se impregna de certo bailado entre as partes do corpo que deixa capturar: mão com testa, dedos com olho, braço com rosto. A atriz deixa à mostra o cocuruto desfocado, coça os olhos com o dedo mindinho, estala a língua, enquanto dispara palavras que atingem o alvo sem muito alarde: “O que quer da sua mãe? E ela quer te ver como uma criança outra vez?”. Observamos o manejar de um jogo de enquadramentos plásticos (corpo, fala), com o qual o ator agencia o que, da linguagem, está para além da ficção: “uma das” plásticas possíveis deste jogo. Na hipótese de Tarkovski, o ator vive. Se a personagem surge na montagem (e não cabe ao ator compreender o roteiro), poderíamos dizer que o que o ator vive é “a situação de representação” com a qual, por analogia, evoca e cria a verossimilhança na ficção. São modalidades de agenciamento fundamentadas no corpo como suporte de um excesso. Excesso que se inscreve no discurso fílmico, evocando a diegese e se estabelecendo como material do filme na medida em que há articulação entre o que escapa (e promove a instabilidade do discurso) e o que capturamos em leitura. O ator maneja um jogo de substituições dos significantes implicados na poética que o antecede. O que resta deste jogo retorna como o seu estilo. De maneira que o seu agenciamento, mais do que representar a narrativa, implica a articulação destas três ordens: sentido, linguagem e estilo.
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16. Um fora do quadro: o que brilha no rosto?
O debate sobre o rosto passa por questões da poética cinematográfica. Há os que dizem que o cinema deveria capturar uma “chispa de vida” (esta é a expressão de Bazin) – um brilho posto na realidade. Esta seria a função de um plano sequencia: sem a montagem, sem corte, capturar uma verdade de um discurso que em ultima instância seria de Deus. Mas há também os que, com um plano sequencia, acabam denunciando a presença de um olhar que enquadra e, neste caso, de uma autoria. Por outro lado, a impressão de realidade pode ser perfeitamente produzida pelo trabalho de decupagem. Os saltos do olhar que a alternância dos planos implica ficam tão adaptados à lógica da ação que não se percebe uma construção. E há, ainda, os que acham que o cinema deveria filmar imagens com um valor de metáfora, que revelariam mais do que as da realidade (pois esta seria de aparências). Por fim, há os que defendem que o cinema é um discurso, seja realizando um efeito ou outro. Como o rosto se articula a este debate? O que me interessa, particularmente, é a ideia de uma “chispa de vida”. De uma “impressão” que “brilha” em um rosto que em última instância é de cor; é pintado.
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Anna Magnani em “Roma Cidade Aberta” (de Roberto Rossellini, 1945).
No filme em P&B podemos observar as cores – em diferenças que vão entre o preto e o branco, passando por variações de cinza, que desenham os contornos e criam os volumes. O diretor de fotografia conta com uma complexa rede de fontes e tipos de luz, posicionadas em lugares diferentes: são luzes de ataque, compensação, rebatedores, contraluz, que se equilibram. Eu não vou entrar na questão técnica do jogo da luz. O que importa é a evidência de que é complexo e de que vemos a cor e não a luz. O diretor de fotografia posiciona cuidadosamente um projetor para criar um pontinho branco nos olhos da Anna Magnani – em “Roma Cidade Aberta” (de Roberto Rossellini, 1945). E vemos o pontinho de cor branca, não a luz que está em relação de instantaneidade com a cor que eclodiu na tela. Com este dispositivo, o diretor de fotografia inventa variações.
Bibi Anderson e Liv Ulmann em “Persona” (Ingmar Bergmann, 1966)
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O rosto todo preto, como na imagem de “Persona” (Ingmar Bergman, 1966) ou apenas parte do rosto em preto, como na imagem de “Faces” (John Cassavetes, 1968).
Imagem extraída de um frame de “Faces” (John Cassavetes, 1968).
Na imagem acima é possível perceber que o fotógrafo também compõe com o enquadramento e os movimentos dos atores, que podem fazer sombra (esta sombra é provocada por um movimento de um ator).
Lynn Carlin em “Faces” (John Cassavetes, 1968)
Conforme a posição do rosto, o próprio volume serve de obstáculo à luz, criando uma sombra que eclode em forma da cor preta. Os raios vêm de fora, mas não os vemos percorrer o quadro até chegar ao rosto da atriz Lynn Carlin – “Faces” (John Cassavetes, 1968). Eu já ouvi diretores chamarem este tipo de luz de “dramática” – como se ela fosse um tanto quanto teatral – como se denunciasse uma construção.
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Lynn Carlin em “Faces” (John Cassavetes, 1968).
Mas conforme o jogo, as combinações, da luz, pode-se criar uma pintura sem tanto contraste e com forte “impressão de realidade”, como nesta imagem (novamente) de Lynn Carlin em “Faces” (John Cassavetes, 1968). A impressão de realidade aqui se faz presente com a luz, mas, também, com o estilo da atuação. Da mesma maneira que a pintura pode romper com a impressão de realidade e denunciar uma construção, também a atuação. Como em Chaplin. Então, o que estou querendo trabalhar como o “brilho de uma impressão de vida no rosto” não é necessariamente uma impressão “de realidade” (embora uma impressão de realidade possa brilhar). É uma impressão que depende da atualização de reverberações (ou ecos) de certos materiais – que estão em relação de instantaneidade com a impressão de vida da mesma maneira que a luz está em relação de instantaneidade com a cor. São materiais circunscritos em um imaginário do ator (em outra cena que ele vive e que não está no filme). Para Epstein (cineasta da vanguarda francesa no começo do Século XX) o rosto deveria ser uma “geometria febril”, uma “superfície de fendas” por onde escorrem “cataratas de eletricidade” (são os termos dele): uma espécie de “teatro da pele”.
“A Queda da Casa de Usher” (Jean Epstein, 1928)
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Então a função do primeiro plano seria uma penetração nesta pele, uma penetração que permitiria “todas as intimidades”. Mas esta é uma modalidade apenas de construção do rosto. Há filmes no Cinema Noir, por exemplo, em que o rosto não se mexe: é uma superfície parada, plana, sem os enervamentos do “teatro da pele” que defende Epstein.
Barbara Stanwyck em “Pacto de Sangue” (Billy Wilder, 1944)
Como Barbara Stanwyck em “Pacto de Sangue” (Billy Wilder, 1944): na farmácia, falando com o personagem do Fred MacMurray: impávida, sem um movimento. Conforme a poética, mudase a concepção do rosto. No entanto, este rosto imóvel pode imprimir o brilho de um instante em que a gente flagra a impressão de que algo se instalou e trouxe a vida: uma “impressão de vida” na pintura, na máscara. Que causa fascínio exatamente porque se trata de uma pintura. Uma chispa; a marca de um instante que o olhar captura. Ao invés do “teatro da pele” teríamos a figura da “casa”: na janela, uma luz acesa. Como duas modalidades: o instante em que a máscara ganha vida ou o prolongamento dos efeitos das reverberações de certos materiais no tempo imprimindo um teatro da pele. Então, existiria um dispositivo de atuação – onde materiais estariam em relação de instantaneidade com a impressão de vida no rosto; todo um dispositivo que também se encontra elidido, tal como o dispositivo da luz. O brilho viria das marcas deste dispositivo capturadas pelo olhar. Dispositivo que conta com certos materiais. Com qualquer material que reverbere e sustente uma impressão de vida. Um dispositivo que conta com a instabilidade dos efeitos destes materiais. Porque se trata de fontes diferentes que se arranjam – e há uma contingência nestes encontros e reverberações.
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Para exemplificar, além de alguns rápidos momentos clássicos da filmografia, eu trouxe a experiência de atrizes contemporâneas: Gilda Nomacce em “Jiboia” 47 (Rafael Lessa, 2011); Clarissa Kiste e Mariana Loureiro em “Carmo” 48 (Murilo Pasta, 2008) e esta que vos fala em “Medo de Sangue” 49 (Luciano Coelho, 2011). Os exemplos são variados e o que me interessa é evidenciar duas importantes funções que sustentam este dispositivo: a voz e o olhar. O ator pode, por exemplo, atualizar a voz do diretor de fotografia que pediu para ele se ajustar ao foco no instante “x” da cena que será filmada. Este é um exemplo da Gilda. Então, enquanto o plano está sendo rodado, chega o instante “x” e ela se posiciona no foco. Existe a atualização da reverberação de uma voz. É neste sentido que algo se intromete. Só que se trata de compor com outras reverberações, com outros ecos – como a luz tem outras fontes. Então outra fonte pode ser uma experiência da vida da atriz que implica uma visualidade “x” do seu corpo e toda uma complexa rede de relações que ela revive, que ecoam. Com esta outra cena diante dos olhos – não aquela que o diretor pinta no quadro (pois esta ainda não está construída) – a atriz vai atualizar uma série de reverberações. E é neste sentido que uma imagem reverbera. Além disso, ela pode transformar a imagem em voz quando, por exemplo, descreve os efeitos destas reverberações em um texto (que cria para si mesma). No momento da filmagem, estas reverberações são atualizadas como precipitação. Então, o brilho da sua instalação causa surpresa também para a atriz.
Gilda Nomacce em “Jiboia” (Rafael Lessa, 2011) Curta-metragem de Rafael Lessa, “Jiboia” foi exibido em festivais internacionais em Tel Aviv, Turim, Praga, Berlin, Copenhagen e no Brasil (Mostra Tiradentes e o Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro); e premiado no Festival de Cinema da Universidade Columbia, no II Festival Internacional Lume de Cinema, no Festival Internacional de Curtas de São Paulo, no Canal Brasil e no Festival Mix Brasil. 48 Co-produção Espanha-Brasil-Polônia dirigida por Murilo Pasta, “Carmo Hit The Road” foi selecionado para o Festival de Sundance, além de ganhar o Prêmio do Público de Melhor Filme Brasileiro na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2009). Foi lançado em diversos países e selecionado para festivais internacionais, incluindo Los Angeles, Seattle, Londres, Praga, Guadalajara, Newport Beach, Varsóvia, Zurique, Lodz, Gdynia e Moscou. 49 Curta-metragem de Luciano Coelho, “Medo de Sangue” teve a sua estreia internacional no Brooklyn Film Festival em Nova York e seguiu carreira nos festivais: II Festival Internacional LUME de Cinema; Florianópolis Audiovisual Mercosul; Festival Internacional de Curtometrages del Uruguai; Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. 47
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Outro exemplo. Gilda fala de uma frase que ela cria e usa quando vai pra cena. Uma frase que implica uma relação com este “ela” da ficção – e reverbera efeitos que acabam trazendo algo singular para a sua atuação. Efeitos que se precipitam; aparecem como uma chispa quando o olhar os captura. Mas a voz que só o ator escuta, pode ser configurada, também, como uma cadeia complexa de substituições: um pedaço para cada ação. É um exemplo da prática da Clarissa Kiste. Uma palavra para cada instante de nova impressão que o olhar captura. Uma sucessão de substituições em uma cadeia subjacente. O que Stanislavski chamou “subtexto”.
Clarissa Kiste em “Carmo” (Murilo Pasta, 2008)
Uma fala subjacente para cada instante de impressão enquanto outra participa da cena, do enquadramento. Uma fala que implica o imaginário da atriz e como as suas imagens reverberam e estão circunscritas por um texto próprio. A impressão de vida depende desta imaginação e também de uma cena que é do bastidor, onde o ator está em nome próprio na relação com as demandas da direção – da sua poética. Antonioni dizia que era “o diretor quem deveria decidir a pose, os gestos e os movimentos dos atores; e também a entonação do diálogo” (Antonioni, 1961). Então, neste caso a voz subjacente, o subtexto que o ator atualiza está circunscrito na relação com o diretor naquele instante presente. Há poéticas que, ao contrário, contam com a imprecisão dos pequenos gestos (a mão sobre a pele, coçar os olhos), uma impressão de intimidade com o rosto. Margaritha Terekhova faz isto em “O Espelho” (Andrei Tarkovsky, 1975) e de forma que reverbera a máxima do diretor: “o ator deve viver e não representar” – que faz eco junto a outros materiais. Há todo um texto de bastidor, uma estratégia – que faz eco. O ator não recebe o roteiro, não estabelece qualquer articulação entre o fragmento filmado e a unidade do filme. E seja lá o que acontece de acidente, de erro, inesperado, pode ser introduzido na cena que o diretor monta.
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Margaritha Terekhova em “O Espelho” (Andrei Tarkovsky, 1975)
Já Antonioni dizia que era preciso que o ator se equivocasse e o diretor incluísse os erros no filme – porque, segundo ele, era a coisa mais espontânea que se tem pra oferecer (Antonioni, 1961). Renoir também estava atrás do mistério e da singularidade da relação entre ator e ficção. O filme estaria a “ver o enigma da atuação” (Nachache, 2005) – que segundo ele, “mais do que por um conjunto de instruções” é sustentado “por um elo oculto entre cineasta e ator, ora cúmplices, ora adversários” (idem, 2005). Já Bresson antagonizava com qualquer manifestação no rosto. Era preciso que este fosse construído como um autômato, protegido de qualquer pensamento. Qualquer intencionalidade era detestável (idem, 2005). Então, ele pedia uma coreografia de baixar e levantar os olhos e a sonoridade da voz monocórdica. Mas, ainda assim, esperava por algo que poderia se precipitar sem querer “como o médico debruçado sobre o moribundo espera uma centelha de vida”, diz François Leterrir (idem, 2005). Dirigir passava a ser “um ato de roubo do que o ator deixa escapar”.
Marika Green em “Pickpocket” (Robert Bresson, 1959)
Voltando aos exemplos contemporâneos, o ator pode olhar para a cena que ele imagina estar sendo filmada, porém, recortando-a. Mariana, por exemplo, olha para o ritmo dos movimentos do 170
corpo, dos gestos, dos olhos, da fala. Ou, ainda para a visualidade do quadro onde ela se situa na cena – enquanto as reverberações da ficção que interpreta com as próprias palavras ecoam.
Mariana Loureiro em “Carmo” (Murilo Pasta, 2009)
O ator pode olhar também para uma montagem que ele inventa, substituindo os materiais da ficção por outros. Uma outra cena – que reverbera no rosto, em relação de instantaneidade com a impressão de vida. Foi como trabalhei em “Medo de Sangue” (Luciano Coelho, 2011) – além de usar um trabalho detalhado desta voz que se encontra elidida criando um outro texto.
Rejane Arruda em “Medo de Sangue” (Luciano Coelho, 2011)
Percebendo que a luz se encontra elidida na cor e que existe um dispositivo de atuação elidido na impressão de vida – o que isto articula da questão com a qual comecei? Falei de plano sequencia, de criação de imagens metafóricas, da instabilidade no enquadramento que denuncia uma autoria, da perspectiva da decupagem disfarçar os saltos do olhar para uma impressão de realidade; do cinema como discurso em última instância. O rosto aparece como um lugar de atravessamentos, de reverberações, de efeitos, lugar onde se pode capturar uma impressão de vida que faz brilhar. Mas 171
ele está determinado por uma cena que é outro que constrói. A experiência de um semblante como efeito do enquadramento de outro – apesar da impressão de vida ser sustentada pelo dispositivo da atuação. Se formos a Cassavetes, ele fala que o estilo dele é sorte, é acidente. Porque o que ele quer é capturar este brilho de impressão de vida no rosto: “Somos escravos dos atores, perseguimos o que eles fazem”, ele diz (Cassavetes, 1994). No entanto, no caso de Cassavetes, as reverberações tendem a romper com o enquadramento – criando um jogo que brilha; que acaba por imprimir esta chispa da experiência estética. Então, a questão do brilho se desloca para a relação do rosto com o enquadramento.
Lynn Carlin com John Marley em “Faces” (John Cassavetes, 1968)
Há a questão da superfície do quadro pintado pela luz, da impressão de vida que eclode do dispositivo de atuação e do enquadramento que lhe oferece os limites. Há um brilho que depende de uma relação entre as bordas do quadro e o que a impressão de vida atualiza. Nesta relação, o que brilha em última instância? Pode ser a presença de um fora do quadro. Mas também um estilo que eclode – como efeito destas relações.
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17. Diversidade no campo da direção de atores: uma estrutura da prática da atuação para a orientação de cineastas em formação
Faz parte da linguagem o engano e os desdobramentos do que se escuta em interpretação. Faz parte desta relação o inesperado e, muitas vezes, o diretor se depara com a necessidade de inserir, experimentar, materiais. O processo é por princípio dinâmico e movediço. E por isso o que apresentamos é a perspectiva de um diretor manejar, junto ao ator, certos princípios do seu ofício. De maneira que começamos por expor uma estrutura do trabalho que pode orientar a invenção de uma prática. Prática que será construída no passo a passo da experiência, na medida em que se joga com referências e procedimentos passíveis de transmissão. Sobre as referências, implicam muitas vezes proposições contraditórias – ou, ainda, uma tentativa de validar fórmulas, receitas, cuja garantia de sucesso não se concretiza. Ou seja, é preciso um manejo, uma apropriação das referências, de maneira a experimentar e constituir o seu próprio estilo. O fato de nos deparamos com uma série de contradições implica que cada diretor encontrará, na sua prática, uma possível resposta. O que se pretende é certa inscrição na cultura cinematográfica, na medida em que debatemos questões desta cultura e temos a prática para respondê-las. Uma estrutura do trabalho do ator A palavra “estrutura” está aqui situada como conjunto de funções articuladas. São funções que podem ser exercidas por diferentes materiais. Por exemplo, a função do foco. O foco de atenção do ator pode estar concentrado em um material ou em outro. Por exemplo, uma frase que escuta: “fale mais devagar” (ou qualquer coisa do tipo). O foco de atenção pode também estar situado em 173
uma frase que o ator não está ouvindo naquele momento, mas está escutando no silencio, ou seja, está rememorando. O ator é capaz de atualizar uma escuta silenciosa: “mais devagar”, por exemplo – situando a sua atenção – enquanto o foco se divide com a leitura das resultantes cênicas, esta inscrição do seu corpo em cena ou, como dizemos no meio teatral, a ação física. O ator lê a ação física que produz – associando e se estimulando ou não na produção de novas ações físicas 50. O ator encontra-se, vulnerável, também, às reverberações antigas. Materiais que já marcaram a memória corporal e cujos ecos são, então, provocados pelo material em foco e atualizados. O ator exercita uma escuta do que atualiza, quase como se o seu corpo fosse um órgão independente da vontade; como se fosse levado por um tecido de reverberações, uma sucessão de precipitações, uma série de pequenos impulsos. O manejo desta área implica que as reverberações de certos materiais podem ser marcadas, treinadas, fortalecidas, para ali retornar. Implica também que, conforme o material que se introduz no foco, estas reverberações se acomodam de certa maneira ou de outra – e são organizadas de certa maneira ou de outra. Procedimentos para uma direção de atores Enquadrar é organizar no tempo e no espaço os efeitos das reverberações dos materiais no corpo do ator. Quando um diretor pede para o ator fazer algo (“falar mais baixo”, “andar daqui até ali” ou qualquer coisa deste tipo), está enquadrando. Quando pede para que o ator fique imóvel, porque o plano está fechado, ele está determinando certa organização no tempo e no espaço. Mas o diretor pode, também, se colocar em função dos movimentos do ator. Inverte-se a posição. Agora, os movimentos do ator moldam os da câmera. O enquadramento espaço-temporal é criado pela plasticidade do corpo. Na história do cinema existem os que defendem uma decupagem rigorosamente planejada e os que defendem o enquadramento descoberto em improviso. Cassavetes fala que não cria um estilo, mas sai em busca da verdade do ator privilegiando a segunda modalidade de jogo: movimentos da câmera e movimentos dos atores se articulam. Em uma aula de direção de atores, por um lado o aluno precisa descobrir como estruturar modalidades de improvisação (para que o ator se mexa em cena e defina certos movimentos de câmera). Mas, por outro, precisa também exercitar certa “voz de enquadramento”, quando marca a cena para o ator. Há um jogo onde estas duas modalidades de jogo (partir dos movimentos do ator ou da câmera) podem opor-se ou conjugar. E isto faz parte da estrutura da prática do cinema.
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O termo ação física vem da tradição stanislavskiana, passando pelos trabalhos de Grotowski e Eugênio Barba com diferentes abordagens
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Quando falamos de improvisação está implicada a função da incidência dos materiais – na medida em que reverberam na memória corporal do ator. A diegese funciona como um campo de extração destes materiais. O ator ativa a função do olhar (o que vê em imaginação) para atribuir à cena uma visualidade ficcional que o estimula: “Ela está sozinha esperando por ele”; “Será que ele vai gostar de mim?”. E improvisa com isto. Se o ator tem um texto fixo ou se o texto será construído durante o trabalho com o diretor, esta também é uma questão que se coloca. Há diretores, como Mike Leigh, que constroem as falas e ações da personagem na investigação junto aos atores. Há outros que sequer suportam que o ator modifique uma palavra da fala do texto. Considerando que enquadrar é organizar tempo e espaço, um texto falado está implicado também como uma modalidade de enquadramento. Por um lado trata-se de evocar imagens que circunscrevem uma ficção (mesmo implicando rupturas, contradições, associações simultâneas, saltos). E que, portanto, organizam um tempo-espaço: o tempo-espaço desta ficção. Por outro lado, as palavras enquadram enquanto som, quando exigem um tempo para a sua enunciação. São enquadramentos que se conjugam. Quando se trata de roteiro pronto, certas palavras precisam ser presentificadas na memória corporal: a sua reverberação (a maneira como acorda os ecos da tessitura do corpo). Uma questão se coloca: como apropriar-se do texto dado pelo autor? Como transformar palavras em impulso corporal? Um dos procedimentos que se transmite é a Memorização Através da Escrita, que implica a constituição de impulsos para a fala ainda sem, ainda a fixação do som (pois este enquadramento será descoberto durante as ações, em improviso). O som da fala decorada é, assim, evitado; a música da fala, esta espécie de capsula (de bloco sonoro) que não se aconchega na ação. O ator descobre o som da voz em improviso, junto ao outro, em ação. Cria-se a ilusão de naturalidade na medida em que jogamos, também, com uma sonoridade da fala cotidiana, com as suas imprecisões e escansões. Depara-se com uma necessidade de um enlaçamento entre o ator e o universo ficcional. De maneira que transmitimos algumas estratégias, por exemplo, a produção do pensamento da personagem realizado em nome próprio. Diferentes atores enlaçam-se de maneiras diferentes a uma mesma diegese. Stanislavski monta estratégias, como as situações paralelas. O pensamento do personagem (criado pelo ator) implica um anel, um laço, entre a situação ficcional e uma situação da sua própria vida (que traz os ecos da memória corporal e a potência do engajamento). Outra estratégia é fazer perguntas, fazer o ator falar: “Por que faz isto? Por que se levanta neste momento?” O ator produz fala: material para enlaçar-se. Outro procedimento, que exemplifica a incidência da fala inventada, é a construção do passado da personagem. Esta construção implica um material visual e acústico que, por sua vez, provoca os ecos da sua vivência corporal, fazendo-o disponível a sua verdade (facilmente capturada pelo olhar). 175
A ficcionalização dos bastidores também é um dos procedimentos: o repertório dos bastidores é impresso na cena. Há muitas histórias no cinema onde se testemunha que não foi uma ficção a propulsora de resultantes, mas algo do contexto do ator – como uma sandália apertada ou a necessidade de adaptar-se à luz (adaptando-se a sua posição à luz o ator pode descobrir uma ação que passa a implicar sentido). Compreende-se que materiais fora do domínio da ficção são bem vindos, pois implicam efeitos inesperados. Outro tipo de procedimento, bastante peculiar, é escrever uma carta endereçada, por um personagem, a outro. Este procedimento, criado por Eugênio Kusnet, implica uma maneira pessoal do ator se enlaçar à ficção. Por fim, fazer o ator dançar, cantar, correr; fazer exercícios físicos (o próprio cansaço entra em jogo): são espécies de aquecimentos que carregam a potência de um material novo (e pode mudar as resultantes de toda uma cadeia já elaborada). O mesmo se dá com a relação no espaço: mudando-se o espaço, um novo enquadramento se instala e outras resultantes. O diretor é convocado a marcar a cena. Através de indicações físicas simples, a sua voz entra como um estímulo para que o ator produza. A forma corporal designada (uma espécie de narração do desenho do corpo ou das atividades) implica uma escuta e instala ações que não foram anteriormente visualizadas. Percebe-se que se necessita de repertório para o exercício da marcação. E vamos para a história do cinema, atrás de referências de cenas análogas a que se está trabalhando: Marlon Brando em “Sindicato dos Ladrões” brinca com a luvinha de Eva Marie Sant; Laura Morante em “O Quarto do Filho” brinca com um colar que estava na mesa de cabeceira enquanto conversa com o marido (Nani Moretti). Margarita Terékhova em “O Espelho” coçando o olho com os punhos fechados imprime uma espécie de “sujeira” do corpo cotidiano. Trata-se de simular displicência em relação à situação de representação. Mas o diretor pode, também, partir de uma abstração corporal, para que esta seja transformada em ações quando se junta à situação ficcional. Movimentos de dança (ou a mimese de figuras das artes plásticas, por exemplo) são incorporados na ficção quando o seu desenho é diluído 51. Ou, ainda, pode-se tirar proveito das contra ações: quando o ator precisa inscrever impulsos, primeiro instala o impulso da ação oposta. Ao mesmo tempo, estimula-se a criação de “instruções de jogo” (são metáforas). Por exemplo, o “jogar fora” a fala de um texto. Quando se pede ao ator que “jogue fora” a palavra, que “a cuspa”, está se criando metáfora que entra no jogo, situando um foco e implicando resultantes. A instrução
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Maria Knébel, discípula de Stanislavski, teorizou “a justificação da forma”: começa-se com o gesto abstrato que o ator “justifica”. Esta “justificativa” implica a transformação da forma inicial para uma nova, que pode ser lida como ação da personagem. Este exercício implica insights. No encontro entre o traço abstrato do movimento e outros materiais pode se dar a criação de ações inesperadas.
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“não fazer nada” pode implicar uma ambiguidade que interessa ao diretor. Quais metáforas o diretor pode criar para estimular o ator? É neste complexo manejo de materiais que o jovem diretor exercita-se no campo da Direção de Atores; quando ambos, diretor e atores, dedicam-se à exploração das potencialidades criativas em função da poética fílmica onde os segundos passam a se inscrever. Trata-se de um jogo, onde as visualidades da ficção e da vida do ator são tomadas como campos de extração de materiais e provocam reverberações – enquanto os enquadramentos se estabelecem: palavra (ou não), gesto (em movimento ou não), os movimentos dos planos, a montagem, a ficção evocada (para que o espectador escute certas ações e as interprete). O estilo de Direção de Atores precisa ser descoberto na prática, de maneira que o jovem diretor possa encontrar uma poética enquanto dirige. O ator tem parte ativa neste jogo e a direção deve maneja-lo através da voz, com o apoio de procedimentos transmissíveis que vão explorar o potencial criativo de cada ator.
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PARTE V ESPECTADOR, ESTÉTICA, RECEPÇÃO
18. Ruptura e deslocamento: o espectador em ato
A proposta é refletir sobre uma posição “dividida” do espectador; trabalhando a hipótese de que no teatro pós-brechtiano estaria posta uma convocação ao ato. Para isto, lança-se mão da noção de ato como o que não tem retorno e o simbólico como tessitura de relações sociais inscritas na linguagem. O ato implicaria ruptura; mudança radical da posição do sujeito na tessitura destas relações. A partir desta hipótese, pretende-se pensar a fragmentação do espaço e as modificações nas relações entre espectador e cena como modalidades desta convocação ao ato. “O ato evidencia uma fratura na razão” (TORRES, 2010: 22). Esta proposição diverge da ideia de modificação do mundo como escolha consciente. Sabe-se que Brecht não queria retratar a realidade, mas transformá-la. No entanto, não se trata de apresentar ao espectador uma tese para convencê-lo a agir. Não seria tarefa do teatro ditar uma conduta ou comportamento. Se fazer teatro não é convencer alguém a modificar a forma de agir, como o ato se dá? Como a experiência teatral convoca o sujeito ao ato, rompendo a tessitura de sustentação das relações sociais que o mantém alienado (digamos assim)? Existe uma segunda proposição, que é a do ato implicado no simbólico – articulado aos pactos, acordos, atribuições, relação com a lei (tudo o que se dá pela via da linguagem e implica a posição do sujeito no mundo). No entanto, este ato toca alguma coisa do Real. Real (lacaniano), que se dá enquanto “encontro faltoso”. Em se tratando do que do ato toca o Real, o sujeito está fora. Isto para que, no instante seguinte, possa se resignificar e também ao ato. O ato está entre o simbólico (onde o sujeito se inscreve enquanto efeito) e o real (que a pulsão toca), no sentido de que algo o ultrapassa. Trata-se de reconhecer que, estruturalmente, algo escapa. Este é o ato. 179
Trata-se também da noção freudiana de ato-falho, como o que não se antecipa: desrazão. O “engano como a verdade possível do encontro do sujeito com o real” (idem: 148). O ato implica estes dois registros: o real faltoso e o deslocamento no simbólico. De maneira que se trataria de encontrar a fissura desta rede simbólica onde a falha se aloja, reconhecendo que o espectador não é somente um indivíduo racional e dominador das suas ações, mas um sujeito dividido entre a inscrição na linguagem e o real inapreensível que a pulsão circunda (e o faz falhar). Entre o que o determina como sujeito e a falha, ele se divide. Viria de um deslize, então, a perspectiva de encontrar um novo buraco para alojar-se na teia social, tencionandoa. Como o teatro agiria neste ponto de encontro entre real e simbólico, transformando o mundo do indivíduo que está implicado como sujeito? Não seria em um ponto de engano que o teatro pode provocar um ato? E o deslocamento deste sujeito para outro lugar na própria história? Ao passar para o discurso pós-dramático, percebe-se que é a relação com o espectador que se quer mudar. O cerne não está na operacionalidade da cena como autônoma em relação à literatura dramática (proposição que se burilou desde o final do Século XIX e acompanhou o projeto das vanguardas determinando a cena como escritura e não como representação). O que está em questão é a demanda em relação à posição do espectador. Quebrou-se o espaço e se modificou esta relação, como se vê em Grotowski (em certo momento abordando o espectador como alguém dentro da diegese e inscrevendo-o, por exemplo, como participante de um júri a qual os atores se reportavam para forçar a determinação de sua posição). Ou no dadaísmo, que radicalizou a relação com o espectador em termos de agressão e choque. Este contexto, dos atores em relação direta com o espectador, sem a mediação da diegese (ou representação) se chamou “presença”: aquilo que, segundo Medeiros, Heidegger entende como “o que coloca em jogo o seu próprio ser” (MEDEIROS, 2011: 23). A experiência viva de ambos (ator e espectador) em uma situação de risco poderia chamar o espectador ao ato enquanto coloca em cheque a visualidade da sua realidade e das suas identificações imaginárias (como defende a teoria da performance de Glusberg). Ou, ainda, para citar o encenador brasileiro contemporâneo Roberto Alvim: é necessário “furar o espectador”. Mas em nenhum momento deixou-se de questionar se estas novas relações realmente produzem atos. Quando falamos em anti-mimético, a questão da ruptura com o espaço está colocada, pois a visualidade da relação com o espectador é exposta (ao invés da mimese da diegese numa vitrine). Brecht jogou muito bem com o choque entre as visualidades: a do ator e a da personagem; a dos tipos sociais e a de um indivíduo singular; a visualidade da situação no tempo presente e da situação no tempo passado; das relações evocadas pelas canções e das relações evocadas pela cena; a 180
do olhar do dominador e a visualidade do olhar do dominado; ou de situações retratadas ao mesmo tempo; ou a visualidade que o comentário evoca em oposição àquela que a cena evoca; a dos bastidores e a da diegese; a visualidade do que faz o personagem e do que faria o ator (ou o espectador); a visualidade da festa e do teatro oriental, que colocam o enigma da sua escrita e nos distanciam (deslocam, tiram) de nossas relações habituais. Se dermos um salto para Jakobson, encontramos a noção de poético como o que faz vacilar a referência; a mensagem poética endereçada a um receptor cindido. Poderíamos supor este efeito também no mimético: na visualidade da realidade que se sustente imaginariamente. Uma cena construída de maneira linear (dizendo assim para opô-la ao projeto de Brecht) não faria também vacilar o referente? Não poderia causar a vertigem ou o susto? Se pensarmos no projeto realista cientificista de Antoine (com Zola), o que se pretendeu foi uma realidade mimetizada fielmente para colocar o mundo diante dos olhos e estudá-lo. No entanto, o que se acabou por criar foi uma cena estranhada – deslocando o espectador das suas relações habituais com as representações (como é o caso da carne de açougue quando colocada na cena de Antoine). Ou seja, no mimético o choque também se dá. Choque que se daria enquanto alucinação diante da atuação naturalista quando esta alcança o estatuto de uma poética, fazendo vacilar a referência e causando a vertigem. Voltando a Brecht, ele insistiu na não oposição entre racionalidade e emoção. Melhor, o distanciamento não desimplica a paixão ou o enlaçamento pela via da pulsão. Brecht sabia disto e defendeu o teatro como enlaçamento afetivo e crítico, como lugar de saber e diversão ao mesmo tempo. O seu teatro desautoriza a clássica oposição “racional versus emocional” que parece ser uma espécie de herança de Diderot ou de uma oposição kantiana entre razão e paixão. Parece que o teatro toca em um saber e ao mesmo tempo enlaça o sujeito pelo seu pathos; pelo que lhe é pulsional e apesar de articulado à linguagem (e ao pensamento) toca no para além da razão. Dizendo de outra forma, a escolha entre “representação mimética ou performatividade” (ao se reivindicar a presença ao invés da representação) e entre “razão ou paixão” (quando se parte da dicotomia) não determina uma escolha pelo ato. Haveria a perspectiva do teatro como construção de uma posição em deslocamento para que, neste “pra lá e pra cá”, de um corte a outro, algo possa, sem querer (e não por convencimento ou determinação) claudicar? Como se sucessivos deslocamentos implicassem um desencontro? E convocasse a re-tessitura das relações sociais, porque algo a partir da experiência e do dispositivo teatral faltou? É como se a necessidade de resignificar a própria posição na tessitura das relações viesse do desajuste proporcionado pela experiência teatral, como se se tirasse uma peça do lugar e por acaso, erro ou falha – ou por impulso como se costuma dizer (como o que escapa) – o sujeito 181
reconfigurasse o todo? E é neste sentido que o teatro se faria político? O espectador seria criador não apenas do pensar, mas da ruptura de um mundo através do que lhe escapou (de um erro). Este é um horizonte apenas. Tratar-se-ia de abrir a perspectiva de que algo na produção teatral se dê para nós enquanto ato falho. O que colocaria o dispositivo teatral como fundamental para que a experiência de deslizamento ocorra. Por um lado, não se trata de um conteúdo da obra, mas de como o dispositivo mexe com o sujeito. Isto nos leva novamente a questão espacial. As quebras do espaço determinariam uma espécie de qualitativo deste dispositivo? Quando Freud coloca o analisando de costas para o analista, ele mexe no espaço. Tirando o sujeito do habitual ele traz um novo estatuto para a relação, que se altera por esconder o rosto. De maneira que faria parte da construção de um dispositivo a experiência da fragmentação do espaço. Mas, temos também um exemplo como o de Pina Bausch, que lança mão do palco italiano, provocando ainda assim o choque quando, da colcha de abstração salpica, através de associações, efeitos de diegese instantâneos que, no entanto, não se sustentam e se diluem o tempo todo (apontando a falha e a inapropriação do imaginário). O que sustenta a poética de uma Pina Bausch a princípio não é a quebra do espaço físico, mas da imagem que poderia advir como ação (dramática). Poderíamos nos arriscar a dizer que a quebra da visualidade é estrutural, até no mimético, quando a carne em cena nos remete a outra visualidade que não a da cena, mas a do cotidiano do espectador, que vacila. Talvez, mais do que a modificação objetiva da relação espacial o que abra a perspectiva do ato é a não eficiência da unicidade das relações imaginárias. Haveria esta constante estrutural da relação espectador-cena, graças à alternância do olhar e o deslocamento por fissuras neste imaginário que, na modalidade brechtiana é constituído de certa maneira e em outras modalidades de outra. Por haver resíduo que não se inscreve nas relações imaginárias, este deverá ser elaborado em ato. Ato que produz o novo. O ato adviria da necessidade do espectador resignificar este resíduo que o enlaçamento no ritual e no dispositivo cênico produziu. Enlaçamento como uma experiência de corpo, na medida em que é nele que se aloja o afeto ao mesmo tempo em que é nele que o pensamento se enlaça. Não seria este um caminho para pensarmos o ato como uma estrutura independente de modalidades de apresentação do dispositivo? Ou ainda o dispositivo, enquanto suporte do ato, dependeria deste qualitativo apresentado pelas quebras do espaço?
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19. A indeterminação como figura da poética fílmica
Ao deparar-me com o conceito de “figura” exposto por Eliana Borges Pereira Leite a partir dos estudos de Auerbach, vi nascer uma perspectiva interessante de teorização, que complementa a ideia de falha no discurso, quando esta se revela, propriamente, como um lugar de infiltração do pulsional 52. Leite propõe articulações entre a “figura” de Auerbach e a “figurabilidade” como recurso da elaboração onírica de Freud. Estas ajudam a postular o caráter onírico das imagens fílmicas que, soltas, escapam, mais ou menos do contexto, tornando-se aptas a suscitar rumos novos de associações, gerando ambiguidade – ou opacidade – e convocando o espectador a colocar de algo si. Estaria implicado um processo de “figuração flutuante” – que algumas vezes paralisa, provocando a angústia de uma falta de escuta. Não se trata de atribuir um significado `a imagem, pois a condição aberta da obra convoca a multiplicidade dos sentidos e a plasticidade da recepção. Cada um produz com o próprio olhar e, ainda assim, provisoriamente, valorando a imagem sem justificá-la ou reduzila a sua determinação – mesmo que o “preenchimento” esteja relacionado à verdade pulsional de um sujeito. Dizer que a imagem afeta o corpo é atribuir-lhe um mecanismo pulsional e, por isso, nos interessa, também, o uso que Lacan faz do termo “valor”. Segundo Green (2009), o conceito já se encontrava em Sausurre 53 em oposição a significado – cabendo a Lacan articula-lo à pulsão. O conceito desenvolvido por Lacan para determinar o objeto pulsional consiste em um resto exteriorizado incompreensível que é o correlato direto do vazio que define o sujeito como pura atividade simbólica. Esse resto se manifesta no universo psíquico justamente como um 52
De pulsão, tal como a partir do termo trieb é trabalhanda na psicanálise, enquanto força alheia ao processo decisório do sujeito. 53 Pai da linguística estrutural e criador da teoria do signo.
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objeto suprassensível, como puro valor. Lacan situa a substancialização da indeterminação inerente ao valor, que é a face significante irredutível à significação, como o fundamento simbólico das pulsões (Cardoso, 2001)
É na opacidade que reside o valor pulsional da imagem, portanto. Investindo na figuração, atuamos também com a pulsão, na medida em que se deixa escapar o que não é significantizado. Para exemplificar o funcionamento da “figura”, Leite apresenta um percurso (que aqui resumimos). A figura Figura tem a mesma raiz de effigie: forma plástica, veiculada a um caráter vivo e dinâmico, incompleto e lúdico. No último século antes de Cristo, adquire um sentido de aparência externa e contorno, estendido também à forma “das palavras”. No grego, o termo que mais se aproxima é schema, referindo-se ao modelo perceptivo da “ideia” e, também, à “aparência externa”. Sem dissolver o sentido plástico original, o termo é matizado como forma gramatical, retórica, lógica, matemática, musical e coreográfica. Em Lucrécio, além de imprimir as possíveis nuances da figura plástica à geométrica, auditiva e verbal, transita, também, de “modelo” para “cópia”, em referência a “películas que se desprendem das coisas e flutuam no ar, como imagens” – o que, segundo Leite, possibilita o uso da palavra no sentido de “visão de sonho” e “imagem da fantasia”. Em Quintiliano, é veiculado à teoria da linguagem: “uma forma de discurso que se desvia do seu uso normal”. O uso das palavras em sentido não literal ou indireto é classificado como “linguagem figurada”, “alusão velada, em suas diversas formas, destinada a expressar ou insinuar algo sem dizê-lo”. No mundo cristão, vem acompanhada do que Auerbach chama de “preenchimento”. Tertuliano se refere a Josué como “figura de Jesus”. “Jesus” é o preenchimento que o torna possível enquanto “figura”. A interpretação de “Josué” à luz da ocorrência de “Jesus” incide sobre a sua existência e os seus dizeres: “Se destruíres teu povo, com ele destróis igualmente a mim por inteiro” diz Moisés (Êxodo 32: 32), “prefigurando” as palavras de Cristo “o bom pastor dá sua vida pelo rebanho” (João 10: 12). O primeiro acontecimento está oculto até que o segundo o revela e o realiza. Segundo Leite, entre o preenchimento e a figura haveria uma relação de verdade que se faz carne ou história. Acrescenta-se mais um sentido, portanto, que é o da historia ou littera: sentido literal ou acontecimento. “Figura” torna-se o termo intermediário entre a história e a verdade. Em Santo Agostinho, assume também o sentido de realidade histórica que, revelada pelo preenchimento, é substituída por uma promessa. Os personagens judaicos são entendidos como figuras do nascimento de Cristo, que é seu preenchimento. Este, por sua vez, prenuncia o fim do mudo e o Juízo Final: último preenchimento. Para Auerbach, a articulação entre os dois é uma “operação do espírito”. Segundo Leite, sendo 184
interpretação da história, a figura é necessariamente produto de culturas mais antigas, carregadas de sua própria memória, que pode organizar uma tradição interpretativa mais complexa do que o mito ou o símbolo. A história de qualquer época tem o caráter de figura encoberta e está aberta à interpretação, sem possuir a autosuficiencia do fato consumado, mas garantida pelo preenchimento futuro. Da mesma forma, na recepção fílmica, convoca-se um preenchimento. Assim, ela será a verdade de um sujeito que, com as próprias figuras, atribuirá valor à imagem. O filme guarda em si a expectativa do cumprimento desta promessa. Aposta-se e um preenchimento futuro para que a poética se torne perceptível: a “figura” assume o sentido de “concretização, fazer aparecer, fazer acontecer”. Na psicanálise, “o verbo darstellen assume o sentido de “figurar”: dar forma captável – operando uma função de mediação na qual algo que ainda se encontra ininteligível para um destinatário é constituído em uma forma que pode se presentificar em um meio interpessoal e inteligível aos sentidos. Realiza-se uma mediação, colocando algo ainda não constituído e singular numa dimensão comum, um meio sensível, no qual adquire uma forma captável” (Leite, 2001). Darstellung (figura) não pode ser confundido com “representação”, pois não tem as mesmas acepções: delegação e procuração (no sentido em que o advogado representa o cliente); símbolo e emblema (no sentido em que a cruz representa a fé cristã); atribuição de valor ou significado (no sentido de que o fato representa muito na vida de alguém)”. Por sua vez, a representação não inclui as conotações específicas de presentificação, constituição e exteriorização, nem a ênfase na apreensão por um outro, contida na figura. Segundo Leite, “a natureza alucinatória da darstellung é o que a distingue da vorstellung: ideia, imagem mental constituída, despojada de sensações e disponível, em um maior ou menor grau, à evocação. A darstellung como constituição de uma forma apreensível para si mesmo é pouco comum e pressupõe o próprio sujeito como um “outro interno” e destinatário. É precisamente neste sentido singular, ou seja, numa exceção ao uso coloquial, que Freud emprega a palavra para referir-se à produção de uma forma que presentifique, para o próprio sonhador, a satisfação de um desejo (Leite, 2001). O trabalho de tornar apreensível o conteúdo do sonho consiste em transformá-lo em uma imagem sensorial, recorrendo à percepção e sensações, mas principalmente à visualidade. É esta a dificuldade que se coloca à elaboração onírica: a tarefa de transformar ideias abstratas em imagens plásticas capazes de figurar (Leite, 2001). Mezan (1985) analisa a relação da psicanálise com as vanguardas na virada do século XIX para o XX, pautadas na ruptura de códigos expressivos herdados das tradições renascentista, barroca e clássica –, explodindo ou dissolvendo a crença na naturalidade dos meios familiares de expressão 185
do real. Desde o Renascimento vinha-se transmitindo códigos, cuja naturalização entra em crise na virada do século e é pelas peculiaridades de seu método, que a psicanálise se mostra sólida e complementar às criações culturais que lhe são contemporâneas (Leite, 2001). A forma habitual de falar e se comunicar é profundamente modificada pelas regras da situação psicanalítica. Na associação livre, vínculos lógicos do pensamento são suspensos. A situação analítica é assimilada ao paradigma do sonho, pois nela operam os mesmos recursos da elaboração onírica (Leite, 2001). Freud busca demonstrar não apenas a existência de uma atividade mental inconsciente, mas também que tal atividade produz efeitos plenos de sentido, ainda que regidos por uma causalidade mais complexa e menos linear do que a aceitável pela ciência da época (Leite, 2001). A sobredeterminação, a simultanedidade e a sobreposição são características dos acontecimentos psíquicos. Insere-se um processo de interiorização do olhar, pelo qual as imagens visuais transpõem os limites do espaço do visível e tornam-se elementos de um espaço psíquico (Leite, 2001). A psicanálise deu lugar à escuta e revelou conexões antes desconhecidas entre a linguagem e o corpo, causando profundas mudanças nas noções até então em vigor a respeito de um e de outro. (...) Incompletude, provisoriedade e abertura a novas interpretações e criações são características do método figural que se encontram também ativas no método psicanalítico (Leite, 2001). As imagens fílmicas Da mesma forma que a produção onírica, as imagens fílmicas são pautadas pela indeterminação e se constituem como figuras. O trabalho da imagem fílmica seria figurar algo que permanece indeterminado até que a forma do preenchimento o faça existir, fugindo à lógica racional e possibilitando a infiltração pulsional. Utilizando os termos de Barthes, ao atuar no studium convoca-se o punctum – e é a partir deste que aquele se revela como figura delirante. São imagens que invadem o discurso, fornecendo-lhe algo de não significantizável, que adquire valor. Assim, a plasticidade das figuras valoradas pelo espectador conferem certa forma, materialidade transitória ao que era indeterminação. Na produção fílmica, a posição do olhar do espectador é posta em questão, na medida em que é dele que se espera uma resposta: a produção da figura que preencha (e faça outra existir) Assim, a imagem fílmica poética cede espaço ao reconhecimento de uma produção imagética que não se organiza na linearidade e causalidade. Parafraseando Leite, “o que ‘pode ser’, o virtual, tem lugar nas entrelinhas das imagens” – na medida em que convoca o sujeito. O espectador dará forma (parafraseando Leite) ao “não pensado”, através de imagens, sensíveis a este não-pensado e as irrupções do que ainda não dispõe de forma de presença. 186
A natureza virtual do espaço psíquico em que se instalam o sonho e a situação analítica permite ainda pensar nas figuras que aí se formam como efeitos de transformações nas quais também o novo pode se inscrever. Um vazio figural pode corresponder às lacunas deixadas pelo que, como no sonho, recai no esquecimento e que será o caso de reconstruir. Pode ser também o espaço em branco – o papel diante do poeta, a tela diante do pintor – à espera do que não chegou a se instalar no espaço psíquico e ainda não pode, portanto, ser sequer sonhado (Leite, 2001)
Segundo Leite (2001), Freud fala da perspectiva de um “vazio figural ou de uma paralisação do movimento das figuras”. Da mesma forma podemos dizer, que a obra fílmica é uma passada de bastão. Ela foi até ali – e se pôs a espera do que o espectador vai movimentar para que saia da paralisia (forma final, aberta a sua ação). Pode-se falar de uma escuta que, “flutuante, desperta imagens que passam a mover-se num espaço de natureza virtual, como o do sonho, e assim emprestam forma ao desconhecido, ao que permanecia, até então, invisível e suspenso entre as palavras” (Leite, 2001). “Os Famosos e os Duendes da Morte” (Esmir Filho, 2009) é recheado por imagens oníricas – que se apresentam como enigma e em oposição a certa realidade reconhecível do protagonista. Através do corte para outro suporte, textura, luz, enquadramento, atuação, situação, estas imagens se repetem com variações durante o filme, até invadirem o cotidiano do protagonista. Sem que isto se revele como possível, os personagens da imagem-poética se relacionam, tocam, olham, beijam, passam a existir para o protagonista. Estas imagens são ameaçadoras graças a seu estranhamento. Por exemplo, quando a moça aparece com um saco plástico na cabeça e, em volta do seu pescoço, estão as mãos do rapaz que sorri, olhando para a câmera. Ela também sorri. Segue uma voz over 54: “Menino sem nome conheceu a garota sem pernas. Ela não tinha pernas. Mas mesmo assim, não precisava de ninguém para ir embora”. É o pensamento o protagonista, que está a escrever; um jovem do interior do Rio Grande do Sul, entediado, que mora com a mãe e tem o desejo de ir ao show do Bob Dylan. Apesar de jogar com a indeterminação do estatuto das imagens poéticas, o filme apresenta-nos uma realidade clara: o cotidiano do protagonista, a relação com o seu melhor amigo, a recusa em dirigir a palavra à mãe, em visitar o pai tal como ela pede, em participar da festa da comunidade. O que capturamos está dentro do habitual; as relações são familiares e até mesmo o fato do rapaz ser mais sensível do que o resto das pessoas a sua volta. O que se revela como elemento flutuante, nos convocando a figurar em um espaço de virtualidade, são estes personagens fantasmas ou “duendes da morte” (se formos fazer alusão ao título). Já em “Fando Y Lis” (Jodorowsky, 1968) a opacidade das ações se faz presente o tempo inteiro. Traça-se um tênue contexto, advindo da peça de Fernando Arrabal que, no entanto, não 54
Quando não vemos o personagem, mas escutamos a sua voz.
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circunscreve de maneira definitiva as imagens: a moça comendo flor de maneira casual; os desenhos da mitologias que não reconheço; a voz over que promete Tar junto à felicidade eterna; a aranha queimando espetada em um graveto; a conversa entre o menino e o adulto sobre o que fazer com a falta; Fando levando Lis até as ruínas; uma mulher que não pode andar cantando com voz doce e infantil; homens e mulheres, entre os destroços, tocam, fumam, bebem, acariciam, comem; com roupas elegantes, conversam e não parecem perceber que o piano pega fogo. Não é preciso narrar a recepção do filme inteiro, mas perceber que, o que, no Teatro, chamamos de imagens “performativas” está aqui. Até mesmo a figura do piano, que aparece no Palermo 55 de Pina Bausch: seis pianistas, enquanto a mulher, sentada de pernas cruzadas, permanece com o rosto coberto por um pano preto. São imagens onde “as coisas não se encaixam” – como no sonho, que é feito de deslocamento e condensação, segundo Freud. Materiais são deslocados de outros contextos e a sua coexistência em uma imagem onírica implica a condensação. É evidente que, no que resta ao jogo do dizer, nos deparamos com algo pulsional – como se houvesse uma verdade escondida que eu não consigo escutar. Por mais que atribua algo a estas ações, por mais que eu figure (novas figuras), o que me resta é o afeto do que não posso significantizar (o que me paralisa e acho belo, genial, raro, marcante). Há contradição entre as imagens e o contexto – há um desencaixe. Há subversão. Vejo Fando Y Lis chegarem. Leite fala de ver um virtual que estaria nas entrelinhas. A angústia por não saber “o que o filme quer me dizer” é a mesma diante de um sonho de onde não consigo extrair um sentido claro. Efigie, plasticidade, abertura. Percorro as imagens, sedenta por um sentido. A menina pequena no mundo do teatro; no mundo dos adultos, que avançam sobre ela enquanto muitos ovos são esmagados. Ela grita e os adultos se divertem. Lis chora porque caçoam da sua paralisia nas pernas. Fando vendado e as mulheres brincam com ele; depois lhe dão dinheiro. Lembro que ofereceram dinheiro também para a menina; e do boneco-marionete com os fios cortados que estava sendo varrido. Tudo faz sentido agora. Um sentido que talvez eu não possa verbalizar, mas que sinto “nas entrelinhas”, a partir de relações que consegui tecer – com as minhas próprias figuras. O que me obriga a construir uma posição diante da sentença “embutida” nas imagens que escuto em minha solidão. Pode-se dizer que a escrita fílmica de Jodorowsky, em meio à indeterminação do sentido, me forçou a produzir – e que outro sujeito produziria outro discurso e outros significantes circulariam até formarem figuras.
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Disponível em: Pina Bausch Palermo Palermo servizio di Annarita Cristo. L’Aquilone – Rai 1 – 19/01/1990. https://www.youtube.com/watch?v=4D4S6yh7mK8 (Acesso em: 09/06/2019).
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20. Pedro Costa: "revolutio" na tessitura "real"
Com Lacan podemos dizer que a ficção e a verdade se embaralham na medida em que “a verdade tem estrutura de ficção” (Lacan, 2008) e a fantasia é um enquadre a partir do qual o sujeito, na medida em que, tecido por linguagem, surge como um efeito de falta-a-ser ; falta de inscrição, impossível especularização que, segundo os lacanianos, a arte aponta – através de certas figuras. Uma delas é o estranhamento, a outra o vazio. Postulamos aqui com Costa, uma certa figura do terrível. Costa compreende que o cinema fecha a porta para o espectador. E esta porta fechada é indício, também, de um insuportável de se ver: “Penso que o que Mizoguchi quis dizer nessa sequência final foi: ‘A partir daqui este filme não é mais possível, vai se tornar tão insuportável que talvez não haja mesmo um filme’” (idem, pg. 150). “Depois de fechada a porta, um filme não é mais possível. É terrível, então, não entre. É uma porta fechada para você” (idem). Assim, seria possível postular que, mais que a figura do vazio, a cinematografia de Costa situa a figura de um insuportável, vetado a nós. Trata-se de um corte que, segundo ele, “nos torna (nós espectadores) ausência”. Há outra ausência no filme, e essa ausência é você. No entanto, Ossos termina exatamente como o filme Street of shame (Akasen chitai, 1956), de Mizoguchi: há uma jovem que cerra a porta e lhe contempla, e a porta é fechada sobre você. Isso quer dizer que você não pode entrar no filme. A partir desse ponto lhe é vedada a entrada. Ou, de outro modo, é melhor que você não entre no filme, nesse mundo (idem, pg. 149).
Mas talvez neste corte (ausência) o sujeito possa ser convocado. Este sujeito que “exsiste” (sem ser) – constituído deste efeito (de corte). Talvez seja nisto que a experiência estética se configura, ao “apontar para o lugar da falta” – defendida por Costa: Grifth foi o primeiro a
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compreender e a trabalhar com a ideia de que o cinema é uma arte que alcança seu paroxismo com a ideia da falta, com a ideia do cinema como uma arte da ausência” (COSTA, 2007, pg. 148-14). Se o estranhamento, o excesso, a tematização dos limites do quadro, a anamorfose, são figuras que apontam para um “lugar da falta” (elevando, então, a obra fílmica, ao estatuto de arte), assim também se daria com uma figura do terrível que, apesar da porta fechada (ou para o que está como efeito desta), o filme generosamente dá a ver. O que Costa fala de “Ossos” vale também para “No Quarto da Vanda” (Pedro Costa, 2000): uma espécie de familiar e estranho atuando juntos, postos em uma expressão estética que por sua vez advém da mistura entre o documentário e a ficção. Ossos é um filme que vem de coisas muito familiares, coisas que você pode facilmente reconhecer. Vem de Chaplin, dos melodramas do princípio do cinema: um garoto com uma criança que não tem o que comer, a rua, carros velozes, pão, uma prostituta, uma cozinha, tudo isso que era o cinema no seu princípio. Mesmo assim, tende fortemente ao documentário, porque feito com não atores, pessoas que estão muito próximas daquilo que representam. O garoto é realmente pobre; a dona de casa, uma dona de casa; a vizinhança é uma vizinhança real. Não estamos num estúdio, porém, mesmo com o desejo de ser algo próximo ao documentário, é, contudo, a ficção o que sustenta, o que o salva, enfim (idem, pg. 150-151).
“No Quarto de Vanda” traz o contexto de uma comunidade do bairro de Fontainhas na periferia de Lisboa, que está sendo demolido. O filme torna-se um objeto privilegiado para um estudo dos efeitos de estranhamento, característicos da poética na fronteira entre o documentário e a ficção. Em Costa este hibridismo se dá em função “de revelar o que não está justo”: “(...) Para mim a função primeira do cinema é nos fazer perceber que alguma coisa não está justa. Não há aqui distinção entre ficção e documentário” (COSTA, 2007, pg. 147) . O bairro onde filmei – no limite de Lisboa, no subúrbio, chama-se ‘Estrela da África’, é o nome crioulo do bairro que existe há trinta anos e foi construído por portugueses pobres. Depois da ‘revolução’, todos os africanos que vinham de Cabo Verde, de Angola, de Moçambique o reconstruíram tijolo por tijolo, com cimento, à imagem dos bairros africanos ou marroquinos, como um labirinto. Há até mesmo um pequeno mercado dentro. Mas, em meu filme, este bairro é mais ‘sentido’ do que mostrado: mais que um bairro crioulo, africano, cabo-verdiano, é antes uma ideia abstrata de um bairro de Lisboa (COSTA apud LEMIÈRE, 2008, pg. 55).
O filme trata de personagens reais. Segundo Bárbara Barroso, foi a própria Vanda Duarte que, depois da filmagem de “Ossos” (1997), desafiou Pedro Costa “a fazer um filme em que estes atores não-profissionais passassem a ser eles próprios” (BARROSO, 2008, pg. 153). Há outros testemunhos.
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E um dia ele bateu à porta do quarto de Vanda e pediu licença para entrar, com uma câmara de vídeo, um tripé e três reflectores de esferovite . Durante dois anos (1998 e 1999) viveu nas Fontainhas, nas ruas das Fontainhas, na casa de Vanda e de algumas pessoas mais, no quarto de Vanda. Foram esses dois anos que o bairro foi arrasado (...). Filmou 120 horas, com umas dezenas de moradores de que ficamos a conhecer, por nome ou alcunhas, vinte e seis. Depois aproveitou 170 minutos (Oliveira, 2010) .
É a partir de Vanda e daquela comunidade que o filme surge. Mais do que o elemento narrativo ou dramático, o filme se vale da força do espaço e das pessoas: “Ao começar a pensar num filme seja sempre a pensar a partir de alguém, real, um rosto, uma maneira de andar, um sítio, mais do que uma história” (COSTA in MOUTINHO, 2005: 29 apud BARROSO, 2008, pg. 153). E, neste espaço, encontramos o jogo de ver coisas que não se reconhece, que estranham. Está em jogo o choque. Costa faz valer sua crítica à empatia do ficcional. Trata-se de operar com o estranhamento. Ficção no cinema é exatamente isto: você ver a si mesmo numa tela. Você não vê nada mais, não vê o filme, não vê o trabalho, não vê pessoas que fazem coisas, você vê a si mesmo, e toda Hollywood se baseia nisso. É muito raro hoje que um espectador assista a um bom filme, está sempre a ver a si mesmo, a ver o que deseja ver. Ele realmente assiste a um filme quando este não permite que ele entre, quando há uma porta que lhe diz: “Não entre”. O espectador só assiste a um filme se algo na tela resiste a ele. Se ele pode reconhecer tudo, vai se projetar no filme, então não poderá mais ver as coisas. Se ele assiste a uma história de amor, verá sua própria história de amor. Não sou o único a dizer que é muito difícil ver um filme, mas quando digo “ver” é realmente ver. E isso não é uma piada, pois você pensa que vê filmes, mas você não vê filmes, você vê a si mesmo. Parece estranho, mas posso assegurar que é exatamente isso o que acontece (idem, pg.151).
Em Lacan o sujeito é um “fora” que se dá com o efeito de borda, de enquadre. A total empatia, a coincidência na identificação de um “eu”, não causa este efeito. A homologia com o cinema é grata. Talvez possamos pensar que o mundo não escape de algo que está posto em certas ficções. Como as tragédias gregas, que trabalham o estranhamento do olhar sobre, por exemplo, alguém que arranca os olhos por descobrir que matou o pai e casou-se com a mãe. Penso em casos como o filho assassinando o pai, e no “terrível cotidiano” – terrível o suficiente para articular a secura de um vazio à certa “realidade”. O terrível está no tecido do mundo – e se uma hora Pedro Costa nos fecha a porta, ele antes no-lo dá a ver, na medida em que lhe tira pedaços e monta, construindo um efeito que podemos dizer de sujeito (falta-a-ser) quando algo se produz nas entrecoisas, entre-linhas, entre-quadros, entre “foras e dentros”. O “princípio do terrível” é o que nos mostra “No Quarto da Vanda” sem alarde: nas falas banais, nos comentários sem ênfase. Choca-se a banalidade das falas e a apatia das personagens com “a realidade que fala”: o mundo está caindo. O terrível se anuncia não pela evidência da destruição, mas por sua beleza. É o que estranha. A importância que o jogo entre claro e escuro e as cores, que
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nascem da escuridão em pedaços muito vivos, de vermelho, verde, azul, rosa, laranja, (sempre em contraste um com os outros) aponta é um gozo deste olhar, o que é ainda mais assustador. Além da saturação das cores, do contra-luz, que faz das figuras fantasmas, da multiplicidade dos quadros em um mesmo quadro, do enquadramento enviesado que deixa o mundo meio torno (sempre com o ponto de fuga em diagonal), além dos rostos que nos assustam quando se avolumam de dentro da escuridão, Pedro Costa se vale do recurso das vozes fora do quadro. Muitas vezes, um personagem está fora enquanto dois estão dentro. A voz que invade a tela: não se sabe de onde vem; não se sabe de quem vem; pouco se sabe do que falam – de maneira a forçar-nos a capturar, em meio aos murmúrios, a narrativa que contam, para tentarmos formar um pedaço de imagem que se encontra fora dali, no passado. São comentários ou depoimentos resignados sobre aquela realidade. Resignação que se vê terrível. Espera-se o tempo da revolta, que não vem. Espera-se, no silêncio, entre os murmúrios, barulhos de pássaros, barulhos da rua e o guindaste que avança sobre as casas; as discussões que também não se completam, os gritos de Vanda que não são gritos, os palavrões que grudaram nas bocas. O filme nos dá mais tempo para olhar do que o necessário. Nada é necessário. Ele trabalha com a pulsão, com a satisfação escópica. Podemos olhar à vontade. Mais e mais. Mais tempo para o olhar. Esperamos e olhamos. A nossa posição passiva é algo que faz interrogar. É a relação conosco que está em cheque na medida em que assumimos a posição disfarçada de uma presença (a da câmera) ausência. E por instantes, em certo momento onde se vê Vanda sozinha, cantando, assobiando, falando (sozinha) temos a impressão de que ela encena para nós. O problema da encenação aparece no discurso de Costa. Perdeu-se o primeiro gesto, esse primeiro ato de amor – era, então, um ato de amor, mas também de censura –, que tinha a força de um primeiro olhar. Então, eles dirigiram os trabalhadores, disseram: ‘Você, à esquerda; você, à direita... você, você pode sorrir levemente, e você também... você, siga com sua mulher até ali...’ Era a mise-en-scène (idem, pg. 148).
Costa opõe mise-em-scène a documento; à vida seguindo o seu rumo sem a interferência do encenador. Mas parece que, neste filme, os personagens de si próprios são mestres em ações encenadas quando evidenciam a cenicidade do cotidiano. Cotidiano encenado naturalisticamente – encenando-se “real” (sem denunciar qualquer tipo de construção a não ser através do corte e da câmera-montagem). Há o estranhamento da poética das cores e sons, mas também da condição da presença-ausência da câmera do cineasta (lugar que também assumimos). Talvez a relação com este lugar de “ser ou não ser” da câmera, esta ambiguidade, também tenha algo de terrível, pois está nos
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coagindo a testemunhar sem fazer nada – nos convocando ao ato na medida em que gera a angústia embalada pela beleza. E se este terrível também na dramaturgia e nas tragédias de todos os tempos, nas tragédias dos nossos tempos, há como documentá-lo, seja na modalidade “verdade” ou na modalidade “ficção” (com estrutura de verdade) sem que nada altere a sua força, parece-me, ainda, que a fórmula “fatos reais” reforça o incômodo do olhar. É nesta ideia de depositá-lo (o olhar) na tessitura de um mundo outro (que não o meu), mas que “foi” (ou seja, a imagem é fantasmagórica), o que incita ainda mais o estranhamento. Estranhamento que, nas elaborações de Dunker a partir de Lacan se constitui como uma das figuras do objeto a, objeto sem imagem ou inscrição, implicado na experiência estética que para ele aponta . Objeto ligado a um “efeito de Real” – onde o insuportável é uma das figuras –, o que convoca o sujeito (falta-a-ser), instância construída no vão entre coisas, entre o ver e o não ver. Parece ser este o efeito do filme: algo que nos convoca como sujeito de um ato na medida em que nossa posição nos inquieta. O desejo do autor faz diferença quando quer testemunhar algo que não pode ser esquecido: “Não são histórias de amor, são inquietações. Alguém usou uma câmera buscando refletir, pensar e questionar. Para mim, há nesse gesto, nesse desejo – o gesto de se fazer um filme ou uma fotografia, ou um vídeo –, algo muito forte, que nos diz: ‘Não esqueça’” (idem, pg. 147). Há um investimento em quem vê: “sei que há uma porta fechada que nos deixa a pensar” (idem, pg. 150). É preciso dar a devida importância à poética que o filme forja: a luz recortada, buracos de cor enquadrados pela escuridão, a saturação das cores, o eixo enviesado, a justaposição dos quadros, a contraluz construindo corpos dos quais pouco ou nada se vê. O rosto marcante é o de Vanda; às vezes, a mãe, a irmã ou outro personagem esporádico que se destaca. Mas a estética que o filme impõe é a da fantasmagoria quando “não se vê direito”, o que nos desafia a interrogar o estatuto de uma realidade que se pesca através da experiência estética, construindo o efeito de sujeito na medida em que sempre algo falta; em que as suas bordas são dobradas e multiplicam-se, quando cada território é formado por quadros irregulares. O recorte muito fechado dos rostos que se insinuam nas sombras implica uma estetização que podemos rastrear nas artes plásticas. A beleza contrasta com a dureza do tema: as duas meninas trancadas no quarto se drogando – mas também este é um excesso que aponta o lugar da falta, exponenciando o efeito estético. Digamos que Costa encontrou um objeto para o olhar quando também espanta o jeito de das meninas se tratarem entre si, marcado pela agressividade. Temos um corte para o quarto do menino: a mãe passando pomada em suas nádegas tal como se fosse um bebê enquanto escutamos as vozes das irmãs. A posição que o menino está é a 193
mesma de um livro grosso e amarelo (catálogo telefônico) onde acabamos de ver Vanda preparando a droga. Em seguida o corte para a rua. Novamente os caixotes, o gato e o jogo de luz entrecortada. Os pedaços de entulho caindo do teto. Vanda entra pela porta verde: apenas uma porta verde no fundo preto. A câmera fixa e discreta. Em seguida, outro verde, com musgo e pichação. Um buraco na parede cria um duplo enquadre: de nada, enquadre da escuridão. Os claros se sucedem um a um no escuro. Um homem pequeno passa pelo beco; um vão ao fundo encontra-se iluminado e vira vermelho. Vozes cotidianas. “Quer alface?” Os entulhos alaranjados, em diversas saturações, em contraste com o verde da parede e o degradè de marrons. É belo. Neste quadro estão seres viventes em seus cotidianos como se não nos vissem. Nada neles parece evidenciar a situação de representação (só estão lá em seu mundo) e isto também choca, trazendo para a experiência uma espécie de descrença no olhar. A força do rosto magro e os olhos quase estrábicos da mulher que simplesmente fuma cigarro, vestida de vermelho. A simplicidade choca com a beleza. Quando finalmente este jogo cessa, dá-se lugar a outro, com a proliferação dos objetos cotidianos em cima da mesa: canecas, potes, coisas que não detectamos e fazem o olhar se perder; um balde mais ao fundo, mais ao fundo um espelho. A soleira destruída da porta. Um homem troca as coisas de lugar e sai pela janela. Estranhamento novamente. O quadro permanece: uma garrafa, o encosto de uma cadeira. O homem retorna, pela janela, trazendo uma prateleira para um pequeno móvel que está ao canto. O aproveitamento dos restos. E o mesmo lugar é mostrado de outro ângulo. Ou não é o mesmo lugar? “Nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser casas ou ruínas de casa, ou restos de casa, ou caminhos entre casas. Relentos ou abrigos. Mas fora ou dentro quase nunca se está certo, quase nunca é certo” (Oliveira, 2010). O filme joga com a espera. Esperar para ver o que eles vão fazer. Voltar para as meninas – uma espécie de imagem mítica? Uma delas desfiando um pano e enrolando o fio. Em contraste com a banalidade e a “porcaria” presente na fala. O “foda-se” o tempo todo ocupando o espaço do verbo. Uma fala também viciada que contrasta novamente com a beleza quando há um dégradé de marrons que a luz faz brilhar, muito viva, em contraste com o preto. Um rápido plano de uma criança jogada em um canto, brincando com a própria fala: “nhá, nhá” – que o cineasta não se detém muito tempo. É um plano rápido. Em seguida, outro cômodo. O sofá com grandes quadriculados de cor laranja. A parede bem filmada de perto. É possível ver a textura e as marcas. Uma voz que entra em off com um homem totalmente em contraluz. Voz fora de quadro. Os homens com a cabeça cortada. Os desenhos da sombra na parede. A perspectiva da rua novamente. E retorna para os espaços recortados. Não se evidencia a perspectiva do onde – não se sabe se é o quarto ao lado, a casa ao lado. São espaços; geometrias. Um rápido quadro com um homem de costas. O desenho sinuoso do 194
enquadramento de um muro quebrado. E novas caixas, entulhos. Caixas de verduras. Uma televisão ligada bem ao fundo. O escuro de onde os objetos e pessoas emergem aos pedaços, com seus ângulos estranhos que, do ponto de vista da câmera parecem tortos. “Isto é uma antiguidade ô otária” – Vanda para a mãe. Não se pode ver o que é. Nada na fala, nos diálogos, assume um valor, uma importância qualquer em relação a qualquer protótipo de drama. A ficção que o filme constrói se firma no estar apenas. Não há construção de encadeamento de tensões ou relaxamentos, mas uma sucessão de pedaços, alguns melódicos, com suas variações que se rompem facilmente e poderiam ser montados de outra forma. A ordem dos quadros não revela qualquer linearidade dramática. Cada quadro sobrevive por si e não depende do outro. Como os espaços, são justapostos. Como em uma galeria, se vai e volta entre os espaços, em uma repetição infinita. Sem sentido, ou seja, sem direção (às cegas, sem saber o que se busca com o olhar, sem saber o porquê daquele registro). Dois homens conversam quase no escuro. As vozes são monótonas e a fala é constituída (improvisada) no momento. As vozes são calmas e há a escansão do tempo. Como uma flora, uma fauna, um zoológico, o filme nos apresenta versões daquela vida. Há vacilo na fala entrecortada, acelerações, exatamente tal qual na “vida real”, comum. Há algo de proximidade, portanto, de reconhecimento também. Eles comentam alguma passagem de sua vida e citam “o pai da Vanda” fazendo-nos um pouco íntimos desta personagem que agora já conhecemos, antes de retornarmos ao seu quarto, onde tosse, exatamente como na cena de abertura do filme. Volta-se ao mesmo lugar. Novamente é esta galeria que espiamos. Como um prédio em miniatura, que poderíamos ter nas mãos e brincar de olhar pelos vãos dos espaços. Vanda desta vez canta “Eu estou com frio” e assovia. Falando sozinha parece nos dar uma vaga noção de que sabe que estamos a olhá-la. Mas neste caso não se incomoda. Oferecendo a sua miséria sem tipo algum de pudor. Este tempo para o olhar que o cineasta nos dá (ela fica um bom tempo assoviando e nós olhando). Sem propósito. Apenas pelo prazer de olhar. Esta espécie de generosidade de deixar olhar a miséria, a banalidade, o simples estar. Algo que existe e não sabíamos. Este deparar-se com o estranho, com o novo. É algo que envolve a pulsão. O saber que existe “isto”. A silhueta agora no escuro. E a luz de repente ilumina o rosto da mãe em outro cômodo, que substitui o quarto de Vanda sem nenhum tipo de preparação. Um salto – corte seco. E novamente os tons de azul da parede descascada, misturada ao verde (o verde da alface, também), o laranja da abóbora. Corta para um personagem que mexe, com as mãos, em cima da mesa; não vemos direito o que faz. Parece não olhar as mãos. Parece cego. E se levanta cambaleante. Figura estranha. Porta e janela abertas com dois pontos de fuga para o olhar. 195
A câmera nunca é central, sempre um pouco de lado, criando a perspectiva em diagonal e entortando suavemente o quadro. Vanda aparece entre as verduras, sentada no chão, imóvel. Toda de preto, os cabelos compridos, o rosto desenhado como uma caricatura, o nariz grande, o queixo comprido. Ela entra em uma mercearia de azulejos coloridos, onde uma fresta de luz se insinua no chão e o resto é penumbra. Ela se senta e outras pessoas entram: mais sombras. Corta para um beco com um ponto de fuga claro bem acima do quadro; e, em seguida, para uma parede rosa com muitas “pessoas-sombra”. E para outro beco; a textura das paredes, a irregularidade dos volumes. Vanda passa. Sua roupa preta a esconde. O rosto se insinua solitário. Há uma música ao fundo. O jogo se mantém conforme o filme avança até que: um homem dá marteladas na pilastra grossa, de onde sai uma árvore e vemos os restos de uma fonte. Vanda está de costas. As mãos preparando o papel laminado para em seguida ascender o isqueiro que se sobressai à penumbra, assim como alguns objetos em cima da cama. Depois de um tempo ela sai. O barulho da demolição fica ainda mais forte. Entra no quarto uma criança. A irmã de Vanda a aproxima de si. A criança resmunga e brinca com um pedaço de papel enquanto o som da demolição aumenta. Corta para fora: a textura das paredes, um tronco de árvore, barulho de vozes. Chega alguém, se apoia no tronco, sai. O tronco se mantém em quadro e as vozes fora de quadro. Sem humanos. Até que passa alguém e sai. No escuro, ouvimos a primeira música (de trilha composta) de todo o filme. O quadro escuro banhado de som e melancolia. Postula-se que o sujeito de Landa, posto como falta, ganha lugar em uma poética quando esta aponta para o inespecularizável, inimaginável, terrível, traumático, barra – de não inscrição na linguagem. E “na falta de uma tradução em palavras, o sujeito passa ao ato” (OLIVEIRA, 2004, pg. 15). Este filme é o ato de Costa. Alguns enfatizam o ato enquanto revolucionário. “Ora, não é de espantar que Lacan entenda precisamente como passagem ao ato a ação revolucionária” (idem). Ação revolucionaria como ato: ato que a palavra não dá conta gera uma transformação na tessitura simbólica (e social). Depois do ato, não é mais possível ser como antes. Incitado pela falta na linguagem o sujeito passa ao ato. O filme, fechando-nos a porta ou com o trabalho das bordas e do estranhamento, oferece a provocação de assistirmos um lançar-se ao ato. E nos convoca. O filme não se configura como revolucionário em si, mas provocador, na medida em que o que provoca é uma experiência estética que coloca o espectador o seu vazio e o convoca. Não a ilustração do vazio ou o esvaziamento do sentido (como vemos em algumas obras validadas sob o signo do contemporâneo), mas o vazio enquanto figura do “a” – desta falta constitutiva, que é efeito da linguagem e que se precipita em ato (que “ata”). 196
Estaria implicada a perspectiva das pequenas revoluções que o ato reverbera na tessitura social, pois significantizado no segundo momento – rompendo e costurando, refazendo as malhas do simbólico (ou seja, o mundo), entrando nas cadeias das trocas. Não no sentido de minimizar o terrível – que enquanto efeito é constitutivo –, mas no sentido de deslocá-lo para um impossível. Não o representando, mas tocando-o, com este ato que reconstrói o significante. Não se trata de um ideal. Para onde isso vai não se sabe. Há certa responsabilidade do sujeito, no entanto, que “ata” para voltar a olhar-se do vazio do qual é efeito constitutivo. Se não se trata de ideal ou consciência, o que se conquista neste deslocamento? Que mundo adviria da “revolutio na tessitura real”? Se a porta continua fechada e não podemos fazer como Alice, para passar pelo buraco da fechadura; nem somos baratas para passar nas frestas da soleira, talvez nos tornemos a porta; entre aqui e lá abraçados pelos tijolos.
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Considerações Finais
A necessidade de sistematização, teorização, conceituação, formalização de procedimentos está ligada a certa posição de saber algo para se transmitir ao outro. Este saber é problemático na medida em que ele não é estanque. E na medida em que algo sempre escapa da teoria que se propõe. No entanto, o caminho da formalização é necessário e ponto de partida para as contingências. É em tensão com a sistematização que o próprio dispositivo da prática entra em crise e propõe, como solução, novos vetores. O discurso contemporâneo, fundamentado em autores como Deleuze, Derridá, Barthes, Guatarri, Foucault, Lacan (e o que diz respeito as especificidades de cada área artística, com seus teóricos e postulados) é uma orientação. Não há como criar hoje sem pensar em devir, fragmentação, multiplicidade, diferença, obra aberta. Trata-se do valor de uma orientação discursiva para que se contracene e se descubra variantes, desdobramentos e novas hipóteses – deslocando a teoria, quebrando, juntando, brincando, montando de outra forma e, novamente, singularizando-a a partir de um contexto e experiência específica. O discurso contemporâneo diz de um sujeito específico, forjado em função de demandas históricas de reconhecimento de si. A obra-fragmento, a obra-falta, a obra que desafia o olhar por não dar a ver tudo (ou por dar a ver demais e assim ofuscar), a obra poluída ou fraturada, a obra suja de pessoalidade, a obra suja de citações, de erotismo, de sobreposições – diz do sujeito contemporâneo. Há um reconhecimento, do artista enquanto sujeito contemporâneo que também “é” em sua obra. Ela (a obra) não é dele (sujeito), mas ela “é ele”. Ou ele é dela (da obra), na medida em que ela é mais verdadeira do que ele próprio; na medida em que ela o marca – o nomeia, o registra, o autoriza. A pensar, falar para o mundo, se colocar, se despir. A obra é não filha, mas mãe de um sujeito. O caminho da criação torna-se um caminho do existir. A obra guarda algo de real. De um real do processo, dos afetos e das relações, de um real que vem do mundo sobre mim e me castra. As tensões, que surgem entre desejar e estar no mundo, fazem da obra uma resultante da castração. Um ato de ruptura com o projeto inicial, um ato de subversão das próprias regras de jogo, um colamento no que se apresenta como contingente e fora do controle. Tudo isto faz parte da condução do 198
processo onde nos perdemos para nos reinventar. De maneira que a criação muitas vezes exige um giro sobre si mesmo, um desencapamento, um promiscuir-se de si. Somos povoados por fantasmas. O fantasma da história, o fantasma do meu pai, da minha mãe, o fantasma da minha irmã, do meu irmão, o fantasma da fama, do sucesso, o fantasma da sobrevivência, do ganhar dinheiro, do morar, do comer, o fantasma da universidade, do bar, das roupas, dos filósofos, dos teóricos, das novelas, das músicas, dos filmes. Somos povoados e não limpos ou livres. É em meio a esta fantasmagoria que é preciso circunscrever um campo de ação, os limites e bordas de uma ação, impedir os atravessamentos intrusos, ser firme no que diz respeito aos cortes e às referencias. Existe muita coisa tola no mundo, e existe a hora de se vergar sobre o valor de algo para então desdobrá-lo. A que a produção do conhecimento em arte pode responder? O que uma vida a caminho da construção de saberes pode responder a não ser de forma singularizada? Não há nada pior do que a padronização das formas, a neutralização do sujeito e do seu desejo quando tudo é homogêneo, sem contrastes, sem diferenças. O caminho da produção de conhecimento na arte é traçado na medida em que o artista singulariza o seu trabalho. Através do diálogo com o mundo ele pode recolher pedaços da experiência e extrair valores para o outro. O diálogo com modelos, escolas, estilos, movimentos é um antídoto à padronização, porque estes são vários e se tira um pedaço de cada. É agindo sobre o mundo, falando, retroagindo, impulsionando coisas do mundo e recebendo dele os tentáculos, ásperos, agudos ou macios, que se constrói um trabalho. Há buracos, farpas, faltas, sedes. Há ausências, provocações, interrogações. A própria resistência à técnica faz do sujeito um artista, pois a partir de sua dificuldade cria-se caminhos; singulares. Na arte, o que era defeito torna-se qualidade, pois oportunidade para singularizar. Na arte, o que era diferença torna-se estilo; o que era falha, desajeito, torna-se ouro. A construção do saber é in loco, in vitro,”in carne”. A teoria – que é o ato de ver algo – aqui não serve, pois se vai às cegas, arriscando-se sempre. Sendo assim, conclui-se que as formas e caminhos para a construção do conhecimento em arte não são previsíveis ou dominantes. Resta ao sujeito apropriar-se de pedaços e regurgita-los para construir a sua assinatura. Tatear, sentir, cheirar, perceber os sinais – e elaborar, na repetição dos próprios erros, o caminho do sucesso. Encontramos na obra “A Interpretação dos Sonhos” (Freud, 1900), que o sonho condensa elemento da vida cotidiana. A produção onírica é analisada em seus deslocamentos, para se chegar ao significante que dá voz a uma fantasia. Esta produção tem a ver com a realização de um desejo (do sujeito). Se pensarmos retroativamente o trilho que os elementos significantes percorreram até chegar aquela imagem produzida pelo trabalho do sonho, tem-se, então, uma cadeia, que Lacan chamou “cadeia significante”. O trilho de associações que (em um processo de análise) o sujeito produz, entre a formação onírica e o contexto de onde os elementos foram deslocados, implicando199
se, a si próprio, nesta cadeia significante, como um reflexo das suas entrelinhas. Assim, o sujeito, aparece como produção (sempre nova e provisória) – e não como algo fixo ou imanente. Opera-se esta cadeia por meio da livre-associação (falar o que lhe vier à cabeça) e, também, por conta de questões introduzidas, na relação analista-analisando, cuja demanda é: “fale mais”. O deslocamento, percorrido no sentido inverso – a partir de saltos e construções móveis – consta em produzir novos significantes (elementos) que, inseridos no sistema psíquico, ampliam o território da linguagem e, também, as perspectivas do olhar de um sujeito, que reconstrói sua história e condição. Se este movimento é obstruído teríamos o sintoma, que é o congelamento da cadeia – ou de um pedaço dela. Um congelamento em uma formação – que, no entanto, é realizada no corpo do sujeito acordado. O sintoma como condensação, metáfora que fixa o gozo. Penso, assim, na arte, enquanto sintoma, um acontecimento de corpo: metáfora presa, congelada. No caso, esta metáfora encontra um lugar na carne, na vida do artista e o prende na condição sintomática. É como viver “realmente” o sonho (ou o pesadelo de onde não se pode sair). No sonho, quando existe a condensação, esta é a união de significantes: vários pedaços aglutinados – ou de coisas trocadas, deslocadas; coisas no lugar de outras; pessoas no lugar de outras; pessoas no lugar errado, em substituição a outras (operações metonímicas e metafóricas). Se o sintoma é uma metáfora congelada – e metáfora é a condensação de pedaços que substitui algo – o que está sendo substituído? Uma parcela de gozo perdida por sermos “seres feitos de linguagem”. Singularidade radical, em nossa diferença em relação a todos os outros. Nós não podemos significar a nós mesmos. Uma forma de articular as cadeias da linguagem com este “buraco” na sua tessitura, pulsional, resto perdido de gozo, é a arte enquanto sintoma. O sintoma, como corporal, na medida em que o corpo é o lugar onde se goza. A produção sintomática vem como suplência de um impossível – dizer impossível e saber impossível sobre o sujeito. O sintoma faz o sujeito dizer a si mesmo: “eu não sei de mim”, “eu não sei o porquê faço” (assim como o vício). O sintoma vem em suplência a um saber recalcado, situando-o como negatividade: eu “não” sei (de mim). O sintoma enquanto operação simbólica, ligado à ordem de um real sem voz (e sem linguagem). O vício-sintoma-metáfora-CIFRA representa esta “não-voz” quando assume o seu lugar – desorganização maldita e insuportável de um sujeito sem nome e sem rosto, que não se reconhece nos objetos do mundo porque é singularidade radical. E vai se reconhecer na “sua” obra. Se existe uma metáfora, portanto, ela está cifrada. E, ainda, de alguma forma, no Corpo: “O meu corpo vai” e não “eu”, “não fui eu que fiz” (dizem os atores). O sintoma (e a arte como sintoma) situa a relação do sujeito com este impossível, substituindo o lugar da falha estrutural da linguagem (que mantém o sujeito móvel e dividido) pela metáfora que o fixa a um gozo petrificado. “Ocupa-se” 200
o lugar do vazio estrutural, dando “sentido” à vida – de um sujeito que passa a viver para a arte. Com a arte, este sujeito pulsional, ao qual a linguagem não basta, acaba por constituir, com o próprio corpo, um significante para representa-lo: é caco, é sobra, é inundação – na medida em que a obra é o resíduo do processo. Assim, aparece como o signo (como “o que representa algo para um sujeito”) se si. Não se trata de reformular a linguagem apenas, portanto, mas de fazer parte da violência de uma experiência de afeto – que é o estar em cena ou produzir cena. Afeto, fantasia, memória, substituição – um novo reconhecer-se, diante de um dispositivo artificial que produz poética e que depende da produção metafórica (e metonímica) nova. Tanto Brecht quanto Spolin, Meyerhold, lutaram por um teatro de todos, feito por todos, no chão das fábricas, nas escolas, com as crianças, os jovens, os velhos, os cegos, os surdos. O cidadão é responsável pela produção dos bens culturais (e não consumidor). Assume assim, a responsabilidade da produção de um pensamento sobre os sujeitos, metafórica, problemática, metonímica, poética, sintomática – onde as falhas tem lugar, onde o corpo tem lugar, onde nossa radicalidade e singularidade tem lugar. Freud já dizia que ensinar é uma profissão impossível. Depende do sujeito e dos caminhos não retilíneos de sua relação e produção com o outro, das contingências do seu tempo e grafia de afetos, associações e constituição metonímica e metafórica. Ao contrário da informação, que não afeta, passa, a experiência atravessa e coloca o sujeito em uma posição de deixar-se levar pelas palavras que se constrói em relação, com o que existe de falha, conflito e transformação. Mas se educar uma pessoa é impossível, seria possível (podemos talvez apostar nisto) ofertar-lhe uma experiência – artística, ou mesmo pedagógica – que envolva afetos, contingência e permita a singularidade para que se constitua como fonte de deslocamentos e metáforas novas.
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