Rascunhos de uma pesquisa atoral para documentários híbridos e Outros Textos

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Rejane Arruda (org.)

HÍBRIDOS

rascunhos de uma pesquisa atoral para documentários híbridos e outros textos

Vila Velha SOCA 2021


Híbridos

“Rascunhos de Uma pesquisa atoral Para Documentários Híbridos” e Outros Textos


Viagem em que todos os corpos procuram se despovoar. Suficientemente vasta para permitir procurar em vão. Suficientemente exígua para que toda fuga seja vã (...) Todos então se imobilizam. A viagem talvez termine. Ao fim de alguns segundos, tudo recomeça. Consequência dessa luz para o olho que procura. Consequência para o olho que, deixando de procurar, fita o solo ou se ergue para o longínquo teto onde não pode haver ninguém. (Samuel Beckett)


SUMARIO

APRESENTAÇÃO Rejane Kasting Arruda

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CPÍTULO I: CINEMA HÍBRIDOS: RASCUNHOS DE UMA PESQUISA ATORAL PARA DOCUMENTÁRIOS Rejane Kasting Arruda

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EM BUSCA DO AFETO: MATERIAL EXTRADIEGÉTICO NO JOGO DO ATOR Daniel Monjardim

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EPÍLOGOS DE UM ABRIL Marcella Rocha

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CAPÍTULO II: ARTES VISUAIS LYGIA PAPE E A INTERCONEXÃO ENTRE ARTE E POLÍTICA NA PARTICIPAÇÃO DA EXPOSIÇÃO NOVA OBJETIVIDADE (1967) Erani Ferreira Soares Petruska Toniato Valladares

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ARTE: POTÊNCIA DE DES-ÓRGÃO-NIZAR Maria Eduarda Ramos Gazel Cleilson Teobaldo

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CAPÍTULO III: PALHAÇARIA CHATÔ’S CIRCO ÇHOW: UMA EXPERIMENTAÇÃO VIRTUAL EM PALHAÇARIA. Miguel Levi de Oliveira Lucas

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CAPÍTULO IV: PSICANÁLISE PSICANÁLISE: ENTRE INQUIETAÇÕES EST(ÉTICAS) E CLÍNICAS Miguel Levi de Oliveira Lucas Maria Carolina de Andrade Freitas

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CAPÍTULO V: EDUCAÇÃO O PENSAMENTO SISTÊMICO E A MEDIAÇÃO ESCOLAR: UM NOVO OLHAR SOBRE A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Cleidimar Roberto da Silva Junca Maria Riziane Costa Prates

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CONTRIBUIÇÕES DO PIBID PARA A FORMAÇÃO DOCENTE

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Samantha Pereira Muniz De Almeida Silva Maria Riziane Costa Prates Tatiana dos Reis de Abreu Grampinha Ana Paula Patrocínio Holzmeister


APRESENTAÇÃO

Somos artistas da Cia Poéticas da Cena Contemporânea, engajados na pesquisa e difusão de atividades culturais. Inciamos em 2015 como um grupo registrado no CNPQ 1 sediado na Universidade Vila Velha (UVV) junto ao curso de Artes Cênicas, hoje extinto. Sendo uma Licenciatura, o curso proporcionou-nos uma profícua interface com a Psicologia, Psicanálise e a Educação, através da presença de professores que trabalham esta interface – trazendo amplitude para as nossas articulações, que excedem a questão estética, criativa ou técnica em Arte. Deram aula conosco: Ana Paula Holzmeister, Maria Carolina de Andrade de Freitas, Maria Riziane Prates, Rafael Cláudio Simões, Pablo Ornelas Rosa, Cleilson Teobaldo dos Reis, Dulcimar Pereira, Lara Couto, Erani Barbosa, Marcelo Ferreira, Nieve Matos, Duilio Kuster Cid, Antonio Apolinário, Geovany Luiz Wandekoken, Priscila Campos, Lívia Lima – muitos deles também autores de textos em nossos livros e parceiros na orientação de nossos alunos. Em 2014, quando assumi a coordenação, propus alterações, renovando a aposta na práxis de poéticas contemporâneas. Naquele momento, eram as disciplinas ministradas do avesso: História do Teatro de trás para frente iniciando com o Pós-dramático, afinal era preciso encarar as ambiguidades da linguagem. Arte Contemporânea, que não poderia deixar de estar; e uma dinâmica com professorestutores que previligiava a práxis integrada entre Poéticas da Voz, do Corpo, da Atuação, do Figurino, da Direção, Cenografia, Sonoplastia; em função de atos criativos levados a publico semestralmente através do “Performa-ES” (Abertura de Processo de Criação Cênica), que passou por quatorze edições. Postos em circulação e tematizados em inciação científica e pesquisas institucionais apoiadas pelo CNPQ, UVV e FUNADESP, algumas das obras passaram a repertório da Cia Poéticas e hoje se transformaram em projetos de produção cultural. A investigação sistemática e reinvenção colocam os alunos, artistas-em-formação e hoje profissionais, como parceiros; em diálogo com as novas demandas dos experimentos, pesquisando, desdobrando, escrevendo e publicando. Dentre as pesquisas, “Corpo e Pensamento nos Efeitos de Realidade (e Alucinação): Uma Investigação da Atuação Realista Através do Dispositivo Cênico-Cinematográfico”, que de 2014 a 1

Diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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2020 seguiu junto à disciplina de Atuação para Cinema, de onde desdobramos a sistematização “Seis Registros de Atuação para Cinema”. Hoje, a residência “Híbridos”, desenvolvida com a Andaluz Filmes, se estabelece como um campo e sela novas conclusões, desta vez sobre a corporeidade do ator como elemento rugoso da sua poética, permitindo desdobramentos conceituais no ensaio “Rascunhos de Uma Pesquisa Atoral para Documentários Híbridos”, que abre o livro e que marca, de certa forma, um ponto de virada. Neste livro, estão relatos de Daniel Monjardim e Marcella Rocha. Daniel é ator de Híbridos e Marcella parceira da Andaluz e diretora de “Epílogos de Um Abril”. Em “Em busca do afeto: materiais extracotidianos no jogo do ator” Daniel problematiza o estado alterado, espécie de entrega à fantasia, onde a corporeidade se faz presente, provocado pelo jogo do ator com um objeto extradiegético. Em “Epílogos de Um Abril”, Marcella discute a construção social da realidade no Cinema e o limite entre ficção e realidade nas narrativas audiovisuais através da produção de um documentário sobre os desaparecidos políticos da ditadura civil militar. Nas reflexões no âmbito das Artes Visuais, apresentamos o ensaio crítico-historiográfico de Erani Soares Barbosa e Petruska Toniato Valladares, onde as autoras discorrem sobre a artista brasileira Lygia Pape (1929-2004); e o relato testemunhal de Maria Eduarda Gazel que, orientada por Cleilson Teobaldo, se propõe a “Des-órgão-nizar” com possíveis entre-laços da arte, psicologia e esquizoanálise enquanto ferramentas de fabricação de um Corpo Sem Órgãos. Tambem textemunhal é “Chatô’s Circo Çhow: uma experimentaçao virtual em palhaçaria” de Miguel Levi de Oliveira Lucas, trajeto feito pelo artista em direção ao encontro com a prática de seu palhaço, além das lições tiradas de um processo de direção que tem como objetivo a confecção de um projeto individual com dramaturgia própria. Em “Psicanálise: entre inquietações est(éticas) e clínica”, assinado com Maria Carolina de Andrade Freitas, Miguel articula Psicanálise e Arte, buscando entrelaçar os dois campos a partir de inquietações estéticas e clínicas, vaguear pelas linguagens para, por meio das hiâncias, constituir différence.

No capítulo dedicado à Educação, temos testemunhos oferecidos por Maria Riziane Prates. Com Cleidimar Roberto da Silva Junca, a autora interroga as práticas de mediação no ambiente escolar, propondo a renuncia aos recursos punitivos ao tratar questões de conflito com um novo olhar. Com Larrosa, Alves e Ferraço, além de suas parceiras Samantha Pereira Muniz de Almeida Silva, Tatiana dos Reis de Abreu Grampinha e Ana Paula Patrocínio Holzmeister, faz uso metodológico da pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas como experiência que possibilita a ampliação da produção de docências, tematizando o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID).

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Antes do fim, já tinhamos fundado a Associação Sociedade Cultura e Arte SOCA 2, que hoje organiza a realização de nossos projetos. Assim como a residência “Híbridos”, contemplada pelo Edital de Artes Integradas da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo com recursos da Lei Aldir Blanc, teremos em breve o “Laboratório de Poética Atoral”, possibilitado através do Edital Setorial do Audiovisual, com o objetivo de difundirmos princípios, procedimentos e resultantes com artistas de formações diversas, ampliando perspectivas de trabalho. Fora da universidade, um caminho de amplitude para uma trajetória de pesquisa. Este livro marca o momento em que algo deixa de existir. Mas, a interface entre Artes, Educação e Psicanálise que nos constitui, fortalece a SOCA como locus de encontros, atravessamentos, afetos, descobertas e realização. Tenham uma boa leitura! Sejam Bem Vindos!

Rejane Arruda

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www.socabrasil.org

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CAPÍTULO I: CINEMA


Rascunhos de Uma Pesquisa Atoral para Documentários Híbridos Rejane Kasting Arruda 3

Resumo: A residência “Híbridos” entre a Cia Poéticas da Cena Contemporânea e a Andaluz Filmes, engatilha processos criativos com os atores a partir de procedimentos desenvolvidos pelos dois coletivos marcados pelo hibridismo. Hibridismo entre estéticas documentais e ficcionais; entre as trajetórias com Cinema e Teatro, Filmes de Ficção e Documentário; Jogo e Atuação; Montagem e Processo. A partir da vivência nesta residência, engendrei uma série de reflexões que tocam em questões como: a estética onde o ator está inserido e como ele maneja seu jogo para constituir uma poética que atenda às demandas e inclua princípios necessários as espeficidades de cada uma delas. Em pauta esstá, principalmente, o efeito de real demandado por Cinemas Contemporâneos que não suportam a visualidae da situação de representação, muitas vezes impressa pelo trabalho do ator. Ao invés da representação, o jogo; e tomo como modelar os testemunhos dentro de documentários que proponho chamar de lúdicos, como é o caso de Jogo de Cena de Eduardo Coutinho. Uma exploração sobre o épico e o dramático empresta fundamento à hipótese de que o ator epiciza seu trabalho junto a uma corporeidade que se coloca na poética fílmica e atoral como rugozidade. Palavras-chave: Ator; Poética Atoral; Cinema Híbrido; Documentário; Épico.

A residência “Híbridos” foi iniciada com a Andaluz Filmes em fevereiro de 2021 estruturada com duas oficinas, uma conduzida por esta autora e a outra por Rodrigo Cerqueira e Roberta Fernandes, sócios e propositores do projeto junto a SOCA 4. Rodrigo e Roberta trouxeram a

Doutora, mestra e bacharel em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Trabalha com pesquisa em Artes, com ênfase em Poéticas Contemporânea e a interface entre Criação Artística e Psicanálise. Atriz, diretora, produtora cultural e coordenadora de projetos da Associação Sociedade Cultura e Arte SOCA.

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O projeto foi contemplado pelo Edital Artes Integradas – Residências da Secretaria de Estado da Cultura e recebeu apoio da Lei Aldir Blanc. Ver mais em: https://www.socabrasil.org/híbridos

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experiência com documentários lúdicos (termo que proponho), quando as falas dos “personagens” 5 são trocadas. Assim como em “Jogo de Cena” (2007) de Coutinho 6, em “Se você contar” (2017) Roberta Fernandes propõe um jogo nas entrevistas. No filme de Roberta, as entrevistadas assumem como suas as falas das outras mulheres, provocando a epização das histórias (são de todas elas) - as deslocando do drama individual para a alteraidade capaz de perceber-la como sua; espessando a presença de um coletivo. Rodrigo e Roberta trouxeram o procedimento para a residência com a Poéticas, experimentando-o com os atores Ana Paula Castro, Daniel Monjardim, Mariana Alves e Philippe Emanuel e resultantes podem ser vistas na série “Híbridos: Rascunhos de Uma Poética Atoral para Documentários” 7 Antes desse experimento, houve uma oficina assistida onde introduzi a práxis com os registros cinematográficos 8 (Arruda, 2019) e fala interna. Foram exercitados princípios da atuação sistematizados anteriormente junto a proposição “Se a pandemia estivesse no seu quinto ano”. Outros “mágico se” 9 foram propostos, como “Um de nós é viciado”. Sugestionados por situações fabulares, os atores improvisavam – tendo como regra o uso dos registros e da fala interna 10. Antes do jogo, a escrita livre para aquecimento. Esta residência me proporcionou uma descobreta a partir da qual engendro uma reflexão: o ator em função de estétcias diferentes, em busca de maneiras de epicizar seu trabalho; a corporeidade como rugosidade e possibiliade de epicizando da poética da atuação no Cinema. Discorro sobre algumas diferenças metodológicas e questões que se apresentam especialmente em estéticas fílmicas que não suportam a impressão de uma situação de representação. O insigh sobre a corporeidade como elemento épico apareceu quando Mariana Alves terminou um exercício; a corporeidade evidente; rítmos corporais com certas dinâmicas próprias e singulares; e o olhar típico de quem presentifica a escuta da fala interna 11 -, provocando a interrupção da interpretação sobre o dramático-diegético e deslocamento do interesse para a própria poética do ator. Eu perguntei onde ela manteve a escuta ou a visualização, ou seja, com o que estava jogando. Ela me respondeu: “Nada, eu só estava ali”. Percebi a corporeidade como elemento de estranhamento, 5

Na cultura do Documentário os entrevistados (ou retratados) são nomeados “personagens”.

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O filme está disponível em algumas plataformas de streaming, como o Now e o MUBE.

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Disponível no Canal Youtube da SOCA: https://www.youtube.com/c/socaiassociacaosociedadeculturaearte

Proponho uma sistematização de “registros” com os quais o ator joga para enquadrar-se na linguagem cinematográfica. Ver mais em: ARRUDA, R. K. Seis Registros Para a Atuação em Cinema. In: ARRUDA, R. K. A Arte e/em Processos de Subjetivação. Porto Alegre, Simplíssimo, 2019. 8

Termo utilizada na cultura stanislavskiana de atuaçao, quando o ator precisa ser aproximar e tomar como sua uma situação que é de outro. Experimentei este procedimento no filme “Sem Abrigo” (Leonardo Remor, 2017). Disponível em: https://vimeo.com/153950041 com a senha abrigopass. Acesso em: 25/07/2021.

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Vou explicar do que se trata.

Qualquer imagem acústica onde o ator situa o foco da sua atenção que, então “repousa” sobre ela. Vou desenvolver mais este conceito no decorrer deste ensaio.

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quando encontra o espaço para estar, não tamponada pelas demandas de representação que condicionam uma fala ou um corpo “lisos” 12. Divago neste ensaio sobre premissas, estratégias, evidências e fundamentação. Esta reflexão tem três eixos: a teoria, onde situo conceitos importantes para pensar o trabalho do ator; a questão das estéticas em diferentes linguagens com as quais o ator joga; os procedimentos metodológicos. Durante o texto, vou indicando em nota de rodapé materiais para um porterior aprofundamento das questões. O Aberto e o Fechado para Introduzir o Conceito de Rugosidade Drama em Sarrazac implica: tempo fechado, conflito no desenrrolar deste tempo, linearidade, dialogo. Este “fechado” está em oposição ao “aberto” do épico13, quando entra em jogo uma tridimencionalidade produzida pelo vetor perpendicular que fura a “bolha” do universo diegético 14 (drama) e “sai” em direção a posição de quem está olhando de fora. Esta abertura para uma outra tessitura do espaço-tempo está presente em qualquer contação de história, em qualquer revelação de bastidores, em qualquer narrativa. Quando eu conto, presentifico o eixo de quem escuta; também o meu lugar em relação ao fato narrado. São três tessituras portanto, e três vetores. São três espaçostempo. São três fissuras. O épico é “rugoso”, com dobras, hiatos, rachas. Ao contrário do drama, que é “fechado”, “liso” – ou seja, sem fissuras. Esta ideia fundamenta a teoria do teatro contemporâneo e possíveis hibridismos entre épico e dramático que encontramos, por exemplo, em Sarrazac (2002) 15. Onde começa e termina a tessitura do tempo-espaço onde se encontra Ulisses 16? E a tessitura do tempo-espaço de quem ouve o fato narrado? Ou do narrador, que conta a história? Estes espaços não se cruzam: eu estou em um lugar o narrador em outro e Ulisses na história narrada. São enquadramentos diferentes. Entre um e outro existe um hiato, escuro, inimaginável. Não existem pontos de contato, de suturas. O fato de existir um narrador e uma história ser contada implica que este narrador pode brincar com este outro tempo-espaço, indo e voltando, quebrando-o e juntando os pedaços em outra ordem; procurando pontos para passar de um para o outro. A brincadeira pode ser, então, costurar. Quando faço referência a uma mão (por exemplo, uma mão de um dos personagens) e “me lembro” – associo – outra coisa; quando uma palavra leva a uma outra bem distante que, sem Vou explicar este conceito – as diferenças entre “liso” e “rugoso” estão aqui colocadas em referência ao dramático e o épico. 12

13 Aqui a referência para “épico” é o termo tal como cunhado por Bertolt Brecht para o seu “Teatro Épico” e disseminado na cultura das Artes Teatrais. 14

Aqui quando estamos falando de um universo ficcional.

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Ver mais em: SARRAZAC, J. P. O Futuro do Drama. Porto: Campo das Letras, 2002.

Referência aqui a Odisseia, de Homero: Ulisses, que depois de passar 10 anos na Guerra de Troia, leva mais 17 anos para voltar para casa, passando por muitas aventuras no caminho. Disponível em: https://www.baixelivros.com.br/literaturaestrangeira/odisseia. Acesso em: 25/07/2021. 16

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lógica, se impõe. Trata-se de um “salto” – para uma outra tessitura. O “espaço” entre as duas é ausente (não vemos uma continuidade). O épico é fragmentado, aos saltos. Os pontos de articulação não suturam, apenas possibilitam os saltos. Não existe uma tessitura base “embaixo” de todas as outras para liga-las. Não existe um tecido único formado pelos pontos de cruzamento. Os pontos de cruzamento (as associações que promovem os saltos) estão “soltos”, não fixados. E o que os determina é o instante evanecente. Estes saltos nas histórias provocados por associações seguem a lógica da “livre-associação”. Muitas vezes um salto nos leva a um elemento novo sem sabermos porque. Não há aparentemente uma lógica. Um pé aqui pode lembrar uma imagem de Rejane criança vendo pescador puxar rede. Que lógica impera nestes saltos? De qualquer forma, este é o modus operandi de uma obra Aberta. Saímos de um contexto-tessitura-tempo-espaço e “aparece” outro. A liberdade dos saltos é também a liberdade da fragmentação. Contextos-tessitura-tempo-espaço podem ser completamente diferentes. Mas o que impera uma montagem quando existe a intencionadade da obra? De fazer obra? De criar uma obra? O fato de termos a materialidade do papel, da voz, da cena teatral, da película de um filme ou de imagens fixadas em certa ordem; estas tessituras materiais – é o que chamamos de “escrita”. Ela não impede nossas associações soltas. Mas, se formos olhar para estas tessituras materiais, ela tem pontos de contato. Na tela, um pedaço de imagem encosta no outro; uma letra emenda na outra no papel; um corpo encosta no outro; um movimento encosta em outro; um som encosta em outro. Trata-se de uma ordem fixa. Por isso escrita. Por isso matéria. As sobreposições 17 de um videoarte são da ordem da escrita – foram fixadas. Uma imagem está por cima da outra; um som por cima do outro. E começam as lições de harmonia, melodia ou dodecafonia. Pode-se dizer que uma escrita é cheia de costuras, onde os elementos (os uns) se encavalam ou afrouxam, se sobrepõem ou dividem o espaço. E então vemos onde começa um pedaço (“um”) e onde termina outro (outro “um”); o instante em que se encostam ou se encavalam. Os “pedaços” estão ali “presos”, fixados, grudados naquela superfície material. Não saem mais. O ponto onde suas bordas se tocam é fixado. É é neste ponto que se trabalha algo. Interrompe-se algo para começar outra coisa; existe uma amarração. A passagem é nodosa, áspera, rugoza, evidente (no épico) ou disfarçada, imperceptível (no dramático), formando, apesar da escrita composta por fragmentos, uma ilusão de linearidade. Novamente o: liso e linear, mesmo que seja constituido de pedaços filmados em momentos diversos, enquadramentos e posições de camera diferentes. Mesmo com escrita fragmentada pode-se fabricar um drama, liso e inteiro, fechado na sua lógica “dialogica” – sem abrir-se para outros eixos.

17 Estou me referindo ao recurso de duas imagens sobrepostas que utilizamos muitas vezes no video-arte ou videoperformance.

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O dialogo é um dos elementos-chave deste drama. Isto que chamam “dialógico”, indivíduos em relação, fechados na relação, na “bolha”. Não “cabe” mais ninguém ali, (ou não se denuncia) o eixo de relação com quem os olha; é como se esse outro não existisse. O drama elide outras tessituras. Ele não deixa eu, espectador, penetrá-lo. Os que representam um drama fechado não vão olhar para a plateia ou para a câmera. Se fizerem isso, estarão no reino do épico, estarão “abertos”; construirão um outro vetor – é o que acontece com “Híbridos” (2021), que tematizarei mais tarde, onde se explora a relação com uma diretora conduzindo o jogo de atuação em um experimento investigativo da sua construção. Um diretor que dirige uma cena de atores está nesta posição de outro – de fora. Mas o seu lugar pode ser ignorado; o eixo da relação com este fora elidido. Sujeitos envolvidos em sua relação seguem o seu diálogo (percebe-se que isso acontece também na relação consigo mesmo, pensamento e ambiente, no caso do monólogo ou cena solo). Um joga a palavra para o outro, um rouba a palavra do outro; eles chocam palavras, batem com palavras; soltam no ar – levemente – as palavras; eles puxam as palavras, arrancam, cavam, sopram palavras; socam, trancam, cospem, deslizam, atiram, esgarçam palavras; subdividem, repetem, multiplicam palavras; desdobram, invertem, palavras; trocam palavras; traduzem, da lingua de um para a lingua do outro, do sistema de um para o sistema do outro, do HD de um para o HD do outro, as palavras. Palavras vão e voltam, se acumulam, acabam, se esvaziam, cansam, respiram – neste universo fechado sem que em nenhum momento haja uma interferencia “de fora” ou ruptura na linearidade do jogo que se desenrola no tempo como um tapete. Há uma beleza, pode-se assim dizer no dramático. E outra no épico. Há beleza tanto na linearidade de um jogo quanto na fragmentação – quando o fora rompe, troca, brinca, com um contexto de um tempo-espaço outro, para saltar e voltar, comentar e aterrizar em outro pedaço; e enfiar um elemento de um em outro; deslizar pedaços para lá e cá, mistura-los, condensa-los; coloca-los juntos e se afastar, observar, rir, trazer um quarto e alternar um e outro, um e outro, um e outro (o narrador faz isso). Cada modalidade – épico e dramático – tem a sua própria beleza. A linearidade do drama se organiza com desvios e peripécias, “embolamentos” e soluções; tensões e resoluções. O ponto máximo da tensão, onde parece que não existe uma saída – é neste ponto, que gera angústia – para em seguida vir o desenlace, a solução e o alívio O drama é um jogo que se retroalimenta em torno de um conflito, que aperta e depois desenlaça. Com um único nó, a tal unidade. O drama é nó-único. E isto depende de um roteiro (ou seja de uma montagem intencional, de uma escrita). Pode-se dizer que o espectador experimenta o percurso “como se” fosse vivido linearmente – em uma operação que Stanislavski chamou “empatia” ou “identificação”. O espectador tem vontade de interferir e desata-lo, mas está fora. Barrado, olha e escuta, fingindo ausência; quase sem nem respirar, para não denunciar a sua presença e quebrar o pacto.

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Foi esta posição do espectador que o Século XX se esforçou por mudar de todo jeito. Artaud, Grotowski, Brecht, etc. Onde está o espectador? Ele pode ser um actante da obra? Ele pode ser colocado na posição de um juiz ou perguntarmos para ele como termina esta história mudando o fim conforme sua resposta? Ele pode ser o alvo da violência, quando o provocamos colocando-o no lugar do oprimido, e logo que chegar no espaço vai passar por um corredor polonês 18? Ou podemos enfiar um capuz em sua cabeça para que não enxergue e leva-lo de carro simulando um sequestro, solta-lo em um lugar irreconhecível sem que saiba onde está e coloca-lo em uma situação de extremo desconforto e medo para que sinta na pele o que sentem as pessoas que vivem em meio a guerra na Arábia Saudita 19? Ou podemos perguntar-lhe gentilmente coisas para que fale sua história no meio do espetáculo? Ou podemos chama-lo ao palco para votar se a guerra continua? 20 Simplesmente olhar-lo e cantar uma canção? Ou podemos chama-lo para cantar? Ou podemos toca-lo? Podemos chegar muito perto e falar uma série de verdades na cara dele ou cochichar no ouvido? Entregar-lhe um papel onde está um código e depende dele revela-lo em certo momento? Ou seja, podemos coloca-lo em uma posição de responsabilidade. Estes recursos, épicos – que revelam o eixo da relação com quem está fora, incluindo-o foi tema de uma profícula investigação durante todo o século XX. Grotowski realizava eventos onde o publico entrava no “espetáculo” (não era considerado espetáculo e sim happening), e as fronteiras entre espectadores e atores se diluiam completamente. Uma total diluição do drama no ritual do encontro. Percebeu-se que existem muitas posições onde este “espectador” pode ser colocado. Não em termos espaciais somente, mas em termos subjetivos – ou seja, do que diz respeito a relação com o outro. O espectador entra em relação. No entanto, é uma relação forçada, porque quem detém “as regras do jogo” é o grupo de atores. E então se testa a resistencia ou a abertura para viver experiências deste espectador. Muitas vezes ele é convidado para entrar em cena e encenar um outro final. Este procedimento está associado a um exercício crítico de provocar transformações em situações dadas. Se descobriria assim, que não é preciso se submeter às situações, nós devemos (e somos capazes) de mudá-las. Se associa a escolha da dramaturgia – baseada em conflitos reais do publico ou contradições sociais – como um espelho da injustiça que ele vai mudar, interferindo e propondo outro desenlase. Espera-se assim que chegará em casa e mudará sua vida, porque viu esta possibildidade concreta

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Referência ao espetáculo “Apocalipse 1,11” (Teatro da Vertigem, 2000).

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Espetáculo dirigido por Lucien Bourjeily especialmente para o LIFT Festival 2012, em Londres.

20 Meryhold mantinha uma tribuna aberta, o publico subia em cena para opinar. Ver mais em: ABENSOUR, Gerard. “Vsévolod Meierhold: ou a invenção da encenação”. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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acontecer no Teatro – e devido a sua interferência, escolha e ação21. Nestes casos, é a evidencia do lugar do espectador e seu manejo que “quebra” a linearidade dramática. O que acontece na história da dramaturgia? O dialógico-fechado-liso-dramático é associado ao burguês. Os dramas expressam conflitos que dizem respeito aquele indivíduo e não as contradições sociais (como defencia Brecht) 22, coletivas (épicas). O coro é épico. Por isso o uso recorrente do coro nas encenações contemporâneas. Podemos observar exemplos do uso do coro e da mistura entre o épico e dramático na obra de Nelson Rodrigues 23. Mas é também possível encontrar na pequenez de uma vivência individual, a contradição social. Quando Brecht coloca Mãe Coragem para vender objetos na Guerra, faz questão de mostrar que alimenta a guerra que lhe tira os filhos, e esta é uma contradição, não um conflito. No entanto, quando falamos “dramático”, estamos falando de categoria em oposição ao épico em relação dialética que permite diferentes relações e que enquanto modelo puro é impossível; Szondi 24 o atesta, mostrando elementos épicos no interior do drama de dramaturgos do Seculo XX (desde a virada do XIX) 25. Szondi fala do drama moderno classicista já do ponto de vista da sua impossibilidade. Nesse sentido, chama atenção o fato dessa forma ser definida ali, muitas vezes, por um conjunto de negações, ou seja, por conceitos que apontam para o que o drama não é mais, o que só se torna possível já de fora daquela forma tradicional. (OLIVEIRA, 2014, p. 119).

Esta unidade de tempo-espaço-ação aristotelica, representa, na dramaturgia contemporânea, uma modadalidade em jogo, algo a misturar. Sarrazac defende-o como transbordamento. Em relação a cada obra estudada, poderíamos verificar que o devir rapsódico procede por transbordamentos incessantes. Do dramático pelo épico ou pelo lírico, é claro. Mas, igualmente, no outro sentido, do épico ou do lírico pelo dramático... No entanto, transbordar não significa aniquilar. (SARRAZAC, 2002, p. 103).

A partir desta premissa propomos pensar maneiras de jogar com esta dialética, quando se tem a poética do ator e do filme em relação complementar. E relembrando a quantidade de verbos que fazem alusão às atividades físicas de sujeitos falantes: socar, lançar, soltar, etc (nossa lista de há 21 Referência ao Teatro Fórum, proposiçao de Augusto Boal. Ver mais em: BOAL, A. Teatro do Oprimido e Outra Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1991. 22

Ver mais em: BRECT, Bertolt. Estudos Sobre Teatro. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1978.

Considerado o maior dramaturgo brasileiro. Ver mais em: RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2012.

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SZONDI, P. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2012.

Ele analisa Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck, Hauptmann, e segue percorrendo importantes dramaturgos do Século XX.

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pouco) 26; pensamos que o âmbito da palavra é uma das possibilidades de se jogar, já que o diálogo se estabelece como um elemento chave. Estar em uma Estética Outra ou O Jogo em Nome Próprio Revelado no Documentário Lúdico É importante nos perguntarmos porque é preciso apontar uma borda, um limite, um para fora, “nada a ver” para que uma poética surja. Esta proposição vem perfeitamente de encontro com a cultura de um Cinema Contemporâneo que preza pelo não-dramático; pelo esvaziamento do tempo e desenlaçamento deste tal “nó-único” que vai sendo apertado e tensão que acelera. Tem roteiro não construído em bases dramáticas; mais próximos a representação do cotidiano quando se revela singularidade, ambiguidade e contraidção. Contemporâneamente temos exemplos; e é importante que o ator tenha noção da estética com a qual sua poética precisa entrar em relação. É algo importante a lembrar: o cinema contemporâneo preza algumas vezes inclusive pelo esvaziamento do sentido, propondo relações com o espectador que não a voyerização do “drama bem feito”. Poderíamos citar filmes, mas não queremos entrar na análise destes – apenas considerar esta estética. É preciso ter cuidado ao fazer Cinema Contemporâneo, e se inspirar no esvaziamento do “simples estar” (e não representar). Este quase nada é o lugar onde o ator se coloca e, com um diapasão bastante sensível perceber as próprias reações e ações de bastidor. É como se a camera não estivesse ligada e a tessitura da realidade do set situasse o foco de atenção. Assim, a captura da imagem é mero acidente. Outras vezes podemos resignificar a presença da câmera, em fantasia e imaginação – potencializando o jogo com o externo a partir de certas “leis” da poética atoral. É importante ressaltar que existe uma evidente diferença entre este cinema e a teledramaturgia, que tem demandas próprias de seu meio de produção, como não deixar o publico trocar de canal e correr com a ação para trazer nova informação ou reviravolta na trama; tipificação com acento de melodrama para que uma trama se estabeleça entre peças bem demarcadas no tabuleiro da sociedade: o vilão, a mocinha, a justa, a “safada-sedutora”, o bandido. A atuação na Teledramaturgia exige do ator uma estética específica. Vemos a imobilidade com excesso de dilatação (que expressa tenção e cujo ápice seria o escorrer de lágrimas); vemos trejeitos tipificados e teatralizados (com contorno definido e dilatado); o exagero parodístico. As falas são decoradas dia-a-dia em variações cuja lógica do personagem impera e a surpresa com o percurso descoberto pode ser impressa (contexto do ator) evocando reações do personagem (através do jogo com a verdade do ator).

O que significa a alusão a ação física poderíamos perfeitamente chamar de viewpoint em referencia a práxis proposta por Anne Bogart. Ver mais em: BOGART, A. & LANDAU, T. O Livro dos Viewpoints: O Guia Prático para Viewpoinst e Composição. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2017.

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Ao contrário do que acontece na TV, neste movimento específico, calcado em cotidianidade marcante, jamais a frase decorada terá lugar. Necessitaremos de estratégias para construir interferências e imprimir rugosidades na enunciação. O pensamento em nome próprio pode ser utilizado; com a espessura de sua presença aparecendo para o espectador como uma tessitura enigmática. Muitos cineastas se ancoram no improviso das falas. A oralidade de uma fala decorada, regular e com contornos bem definidos (teatral), que se fecha; pode-se dizer lisa, sem imprecisões, quebras, falhas, impactos, impasses, caroços, hiatos. Estruturada a partir da interpretação de um roteiro, sentido da ação que supostamente o personagem executa ou da fala a partir do que ele supostamente quer. Acreditamos que é preciso perturbar esta produção, furando-a. Viewspoints podem ser utilizados diretamente entrando como regra em foco mas percebemos que também geram teatralidade. Explico: são desenhados. Mesmo que trabalhem as rugosidades, para esta estética não funciona. O que funciona bem no Teatro – produzindo os caroços de uma poética atoral parece não ser o caminho no Cinema. Há algo que precisa ser residual, abrindo lugar para uma corporeidade própria unida à cotidianidade – foi o que concluímos em Híbridos. O não decorar o texto; não creio que seja a saída. Há duas coisas para se pensar, importantes, eu creio. Mesmo não decorando falas, é comum o actante (para não dizer ator, porque acontece com não-atores) imprimir o liso e bem acabado tipico da representação em uma improvisação (por exemplo). O que está em questão é uma noção (equivocada) de representação: armar o sentido e reproduzi-lo na entonação. Por outro lado, o exercício da repetição da ação de decorar, cria uma oralidade fixa e concreta. Sendo mais forte que outros elementos e estando o ator ainda sem as ações construídas, será reproduzida e isto gerará uma artificialidade evidente. Em outra estética tudo bem, mas não nesta. Esta estética se vale de elementos próximos de um documentário direto; a camera capturando ações supostamente reais impressas no cotidiano, tempo-espaço daquela pessoa e vida, oferecendo certas imprecisões, como o saculejar da camera na mão que busca enquadrar a pessoa e muitas vezes a perde; ou o duplo enquadramento quando algo se intromete na frente. Tanto em relação à camera (e supostamente à pessoa que está atrás dela e imprime um olhar mediado) quanto em relação as pessoas filmadas, a impressão (ou efeito) precisa ser “de real”. É construção, resultante do dispositivo que implica a relação entre todos ali, entre as diferentes tessituras de tempo-espaço e a interferência da equipe de filmagem no cotidiano daquelas pessoas, mas de qualquer forma são fundamentos de certa estética que não suporta a evidencia do ato de representação trazido muitas vezes pela fala do ator. Porque sugerir o descarte do improviso? Existe um âmbito da estética, que é a montagem das palavras, esta implica rugosidades que podem ser importantes na linguagem do filme. A improvisação 18


é linear. Pode-se, no entanto, investigar dispositivos, bastante justos e complexos, para retirar o ator do conforto do liso na improvisação. A montagem pode assumir uma função importante, picotando o que até então era linear – para que, justamente, as rugosidades, saltos e nós surjam, e com eles a poética. O que se sugere aqui é trabalhar com a escrita para a memorização de um texto que vai ser descartado – e ficar como residual. Haverá uma seleção (montagem) na hora da primeira fala – já em relação com o outro e a camera ligada. Esta fala se acomodará junto às ações. Esta é uma metodologia que costumo usar, mas ainda assim, ela depende de um dispositivo de jogo que impeça a atualização de uma fala lisa. Ou seja, mesmo não oralizando antes, por estar em situaçao de representação, o ator desenha as falas muitas vezes. É preciso que ele tenha em seu repertório um registro oral com a cotidianidade impressa. De qualquer forma a escrita ativa a corporeidade, o que não elimina o risco desta ser tamponada por uma plasticidade lisa. Há regras de jogo para se imprimir uma ‘fala testemunhal-cotidiana” na atuação? Sim, mas são bastante complexas e reivindicam, muitas vezes, o afeto do alheamento, desistência, esgotamento. Trata-se de uma corporeidade resídual se abrindo como chagas. Trata-se aqui de defender que, com esta poética da atuação o ator pode ser épico, não com o gestus, citação, paródia, lirismo, crítica, viewpoints ou denuncia do eixo da relação com o público, mas na evidência de sua corporeidade. O não representar, e encarar o nada e o não saber; mesmo sabendo o texto, se aventurar na fissura, nesta queda no abismo, se arriscar pelas bordas – esta intencionalidade pode estruturar seu jogo, ou outra coisa que o perturbe (e fure o liso de sua fala). Sem o encapamento do liso, ele vai se segurar na relação com o outro e no espaço entre-dois que se espessa. Nesta espera pelo outro, que inclusive pode ser uma regra de jogo. Quais resíduos de ações primárias implicam este intervalo? Quais treinamos para que apareçam como resíduo aderente a uma corporeidade própria? No filme “Jogo de Cena” (2007), Eduardo Coutinho apresenta atrizes com falas de pessoas comuns como se fossem próprias. Testemunham uma experiência, da mesma maneira que fazem as mulheres que experenciaram de fato o narrado. O diretor coloca ambas no filme, duplicando os depoimentos e confundindo o espectador. Trata-se de corporeidades diferentes; não há um desejo de imitação, mas de apropriação da fala do outro. As atrizes aparecem tematizando seus processos de construção, revelando o que mobilizou, incomodou, emocionou e quais as estratégias para emprestar veracidade às palavras. Fico apaixonada de ver estes testemunhos de um jogo em nome próprio onde o silêncio, momentos preciosos, quase desvios, interferências,onde a corporeidade se revela inteira, vem dos incômodos. A regra de sustentar o jogo impera, e a atriz continua, mesmo com o incômodo ou a questão (em nome próprio). Nestes intervalos o que se vê é uma relação com o outro (o outro Coutinho ou o outro Mulher, ou mesmo o outor Si Mesmo). Esta relação transparece nos gestos, olhar e ações. 19


É revelado um princípio: a presença do pensamento (e uma demanda) que inclui a relaçao com o outro tecida no espaço-tempo dos bastidores: o que ele quer, como respondo a isso (e não o que “eu quero” ou o “personagem”, como na proposição stanislavskiana). As atrizes decoram o texto e produzem uma apropriação; elas tem a imagem da outra mulher presente no jogo, mas se recusam ao ato de representação, de maneira que trabalham com o que chamamos “regra de negação”: “não vou imita-la”. A busca pela compreensão – estar com o sentido aberto e colocar-se diante das surpresas e espantos, também se revela como uma estratégia. Uma interpretação rugosa, com desvios ou incômodos, fissuras e contradições, extraindo o detalhe para situar o foco. Demonstra-se o jogo não só da cena, mas atoral. Uma Questão Metodológica: O Rugoso na Poética da Atuação “Estar professora” foi possibilitado por descobertas pessoais. Diante das dificuldades e articulando pesquisas sistemáticas desenvolvidas no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator da UFES, fui inventando procedimentos. Quando filmei “Medo de Sangue” em 2011 27, pensei: tenho que mostrar isto. “Isto” era: fala interna. As pesquisas tiveram inicio em 2006, por conta de um Mestrado na Escola de Comunicações e Artes. A metodologia consistia na intersecção entre Spolin, Kusnet e Barba, bastante simples de compreender: Spolin com a ênfase no jogo (em nome próprio e frequentemente com não-atores); Barba com a ênfase na fisicalidade e as partituras corporais (de um ator-bailarino); e Kusnet (1992) (stanislavskiano) com a ênfase (na representação do texto dramático pelo ator) na Análise Ativa 28, e construção cênica baseada em partituras, material externo e interno, dentre estes, a fala interna e o uso da escrita como procedimento. Stanislavski, Barba e Spolin foram os três eixos da formação no Bacharelado em Interpretação Teatral 29, com Armando Sergio (Stanislavski), Beth Lopes (Barba), Malu Pupo e Ingrid Koudela (Spolin). Haviam divergências discursivas nos escopos destas abordagens e eu precisava descobrir uma estrutura que unisse logicamente as três – pois ambas eram importantes (como testemunhávamos na práxis). É importante dizer que diferenças discursivas e metodológicas fundam diferenças estéticas; e a articulação entre as três abre, justamente, para novas resoluções.

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Medo de Sangue (Luciano Coelho, 2011).

Perspectiva de analisar o texto dramático alternando leituras e procedimento de improvisação com o ator em ação em cena – sendo que os sucessivos experimentos vão alterando a interpretação deste texto ao longo do processo, trazendo novos elementos. Ver mais em: DAGOSTINI, N. Stanislavski e o método de análise ativa: A criação do diretor e do ator. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2018. 28

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Terminei o bacharelado em Interpretação Teatral na Escola de Comunidações e Artes da USP em 2000.

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A evidencia da fala interna está em Kusnet, mas quando articulo com Spolin eu a amplio para “regra de jogo” repetida para si mesmo. Ou seja, fala interna é imagem acústica situando o foco de atenção. Não só o pensamento do personagem (como em Kusnet), mas também “Eu te odeio”, levando em conta uma “substituição” (Hagen, 2007) 30 ou “1, 2, 3, 4, 5” (a contagem demonstra ser uma excelente fala interna). Kusnet me levou a outros stanislavskianos: Hagen, Adler, Knebel e o próprio Stanislavski que, diga-se de passagem é uma literatura muito gostosa de se ler. Mas o olhar que recorta os seus trabalhos, também extraia o que era importante na articulação proposta. Ou seja, a mitificação foi deixada de lado; e volta a assombrar apenas quando um aluno diz “fui tomado pelo personagem; senti o personagem”. A ideia de personagem como ente (ser), eu a deixei de lado. O personagem é efeito; efeito da montagem. Assumi, spolianamente, o jogo, cujas consequencias são fundamentais. Se o ator joga com um “quem” imediatamente percebemos que isto não basta. Tampouco a ideia stanislavskiana de que o ator encarna personagens. Oconceito de personagem não está apenas ligado à “representação”; o que parece ser uma questão é a incorporação e o prazer que se tem quando se sente incorporado. Mas incorporado pelo quê? Incorporação é um termo que Stanislavski utiliza e me parece que está ligado a um prazer de deixar-se levar por algo que se dá via corporal (e não via intencionalidade), atribuida a uma alteridade (no caso, o persoangem). Parece-me que a linguagem verbal (incorporar palavras) e visual (incorporar imagens) tem a ver com isso, mas principalmente, a fantasia que elas evocam, ligada ao corpo e a libido. Mesmo em um personagem sem texto deve-se escrever subtextos – lembrando do exemplo de Kusnet. Escrever antes de entrar para improvisar “preenche” com uma série de estímulos e vibraçoes que fazem o ator agir “sem pensar” (ou, movido a desejo ou, poderíamos dizer, “perder a cabeça”). Pode-se dizer então de que se trata de incorporar desejos e, diante destes, o testemunho do lugar do outro pode causar extrema timidez. Kusnet em “Ator e Método” testemunha um trabalho infindável de construção verbal do subtexto. Esta tesssitura verbal criada pelo próprio ator carrega a experiência com uma corporeidade no “cavucar” de associações, não apenas nas memórias, mas nas fantasias. Não se trata de memória emotiva, portanto, mas de fantasia. Fantasia do “eu” (em nome próprio) circunstanciado pela situação imaginária. De modo que posso dizer que improvisar é realizar desejos e é assim que o ator se mantém quente, entregue e corpóreo.

Escutar o barulho da broca do dentista pode ser uma substituição possíel para um personagem diante de algo terrificante. Se funciona para o ator, vale.

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A escrita do subtexto aciona elementos contraditórios. Podemos dizer que a linguagem é tessitura com desvios e não haveria porque não acionar contradições. Podem nos levar a uma imagem “x” – esta que se desdobra e continua se reconstruindo, feita de fragmentos em montagem. Podemos dizer que este estado é um meio-lugar entre o sonho e a vigília, e que o ator se coloca à merce destas construções – e as realiza. Digamos que são rugosas, pois podemos interferir e transforma-las. O que acontece com a escrita, é uma profunda necessidade do ator abandonar esta rede. É bastante óbvio que não se pode segurar em foco dois cadernos inteiros de anotações. De maneira que Kusnet propunha a redução do monólogo interior. O ator escrevia e ia reduzindo, reduzindo, reduzindo, até ficar com uma palavra (pequena) para manter no foco na hora de entrar em cena – o que testemunha a necessidade não só da imagem (“visualização”), mas da escuta. Kusnet operava a lógica do personagem para selecionar fragmentos, promover deslocamentos, provocar inversões, encaxa-los em uma linha de ação contínua. Stanislavski inventa perguntas operadas pela ideia de objetivo, para interferir e provocar mudanças e desdobramentos. As construções vão se desdobrando, passando do geral ao detalhe, o que testemunha a necessidade de situar o foco de atenção; inventa um gatilho de deslocamento (que torna possível se colocar no lugar do outro) chamado “mágico se”. Se acontece x, depois acontece y, depois z, depois v e eu me vejo na situação h. Isso funciona e é operado com a linguagem. A fantasia é construída com a linguagem. Os stanislvaskianos operam com a extração de um objetivo lógico, uma linha de ação lógica – para que esta entre em jogo. Parece-me que isto faz sentido, porque o que não colou é jogado fora e se faz resíduo – continuando sua incidência íntima em segredo. Estes elementos residuais do processo deixam suas marcas. Mas penso que o exercício da escrita que aciona a corporeidade e o desejo solto, mais próximo do “delírio do subtexto” (Nomacce, 3013) 31, seja mais eficiente para o despertar da corporeidade. Trata-se de uma espécie de escrita livre grata aos surrealistas – operada por livre associação. De maneira que são modalidades. É possível defender mais uma que outra? O delírio do subtexto trás corporeidade e deixa a fantasia livre (não podemos esquecer que o ator está suceptível a uma série de sugestões que o texto-roteiro trouxe). A lógica ajuda a extração de certos elementos para situar o foco – na medida em que operam a extração de falas interna e “mágicos se”32. Talvez os dois procedimentos sejam importantes. Quando extraem um elemento só e o reduzem para uma palavara

Em 2013 etrevistei Gilda Nomacce e outras atrizes de cinema de São Paulo (Clarissa Kiste, Mariana Loureiro) a respeito de seus métodos de trabalho. Gilda fala do “delírio do subtexto” também em suas oficinas.

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O “se mágico” é colocar-se na situação-dada, respondendo “o que faria eu nesta situação”. Ver mais em: DAGOSTINI, N. Stanislavski e o método de análise ativa: A criação do diretor e do ator. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2018. Quando apliquei para filmar “Sem Abrigo” eu o decupei em muitas etapas: O que faria se fosse demitida, se meu pai falecesse e descobrissemos uma dívida, se tivessemos que vender a casa e minha mãe tivesse uma crise fosse internada, meu irmão sumisse no mundo e eu ficasse sem casa, sem dinheiro, fosse para a rua, começasse a dormir nos cantos..... Esta sequencia foi me levando a me ver em situação sem precisar representar. 32

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apenas, encontram algo bem concreto para situar a escuta e estabilizar o foco. Mas penso que se este elemento estiver enquadrado no contexto da pessoa que joga, ele é mais forte. Stanislavski inventa elementos diferentes (só o objetivo não basta). Tem-se por exemplo “a contra ação” e a própria partitura (extremamente cotidiana puramente física) é um “outro elemento” em relação – que constitui rugosidades. Pode-se dizer que a ação física cotidiana atrapalha e atrasa a fala, provocando hiatos. Tem também os “círculos de atenção” – uma atenção sobre o ambiente que começa ampla e vai sendo reduzida para cada vez mais próximo de si mesmo. Adler propõe a descrição (verbal) para trabalhar a relação com o ambiente e treinar o olhar a se apoiar nas coisas que enxergamos – se distrair com elas. Mas se estão lá porque é preciso descrevelas? As palavras criam um trilho, um caminho, uma decupagem para o olhar. Adler também ensinava usar uma ação física para desviar o foco da atenção que estaria concentrado na emoção ou na fala. A brincadeira com o foco pode criar uma distração bem vinda, uma ação de perder-se. O foco se divide entre materiais que se alternam e deslocam. São regras, que ocupam provisoriamente o lugar da fala interna e o abandonam, mantendo-se em seguida “fora” – como testemunharam os atores nos jogos de “Híbridos”. O momento em que “não se pensa” e “sai naturalmente, sem esforço”. Pode-se dizer que existe uma dialética entre manter a escuta de uma imagem acústica e a ação de larga-la. Quem trabalha com cinema sabe que muitas vezes vêem demandas como “dois centimetros para lá”. A regra (instancia verbal) pode estar presentificada na imagem acústica “Dois centímetros para lá”, que se mantém em escuta cumprindo a função de fala interna sem que o ator perceba. A corporeidade surge. É importante perceber que existe a função da imagem acústica no foco, mas que esta pode sair de foco para dar lugar a outra (ou, ainda, dividir o foco com outra). É importante perceber duas operações: pode-se abandonar algo que está no foco para trocar por outro; e o que é abandonado pode se manter presente na ausência, depois que cedeu seu lugar. Portanto, construir para esquecer. De qualquer forma, consideramos a evidência da incidencia da palavra sobre o corpo, ativando uma corporeidade “organica” (usando o termo proposto por Grotowski). É um termo que de certa forma nos ajuda por fazer alusão à orgãos, trazendo a ideia de que a escrita envolve o organismo, a temperatura e a libido, produzindo impulsos de ação e também um imaginario, construções fantasísticas onde o ator se coloca no “lugar de”, sente as vivências deste lugar em sua intimidade (a escrita é um exercício de vivência íntimo). Ou seja, as palavras são as pás para remover as terras de corporeidades alimentadas por imagens. E dizer que é “o personagem” talvez seja uma forma de se esquivar da responsabilidade do próprio desejo ou prazer na fantasia. Mas fantasiar é um direito. O mesmo se dá na estética teatral, apenas a plastica corporal é outra. São outras regras para a construção do corpo, que precisa estar extremamente dilatado. O estranhamento que se imprime no 23


teatro, pode-se imprimir no cinema com outras regras. Aí está a poética do ator: a corporeidade e a plasticidade –nodosa, apontando a borda de um vazio, um limite da linguagem, um “...”, que nos deixa mudo. É ali que o ator precisa chegar, nesta mudez – jogando com elementos específicos das estéticas onde atua. O termo “figura”, ao invés de “personagem”, proposto contemporâneamente, é extreamente grato, por se tratar de forma múltipla, coral (Braga, 2009), cenica, plastica e performativa, que provaca efeitos de estranhamento. Esta figura situa um lugar para a corporeidade que o ator encena. Pode-se dizer isso. A um tempo atrás conceituei ator como “encenador de incidências”, hoje situo-o como um encenador de corporeidades – estas provocadas pela incidência de certa fantasia. E, se no sonho temos direito, em cena também. Pois não falamos apenas de nós através da atuação – falamos do humano que há em nós, e naquele que nos vê – mas isso depende da epicização.

Apontamentos Sobre A Rugosidade na Pesquisa da Cia Poéticas com o Teatro O jogo como é aplicado a partir do Fichário de Spolin (2000), com um “quem, onde e o que”, tem resultantes diversas das que exercitamos. Quando se trata de “quem” é provável que se trabalhe com a tipificação: a mãe, a mãe estressada (mesmo se for um quem composto), o ladrão, o padre, o jovem rebelde, etc. Um “quem spoliando” induz à tipificação. Isso não acarreta juizo de valor. Inclusive pecebe-se o quanto está próxima dos gestus promovidos por Brecht (1978) – quando o padre ou a mãe, ou o padrão, o empregado, imprimem um gesto determinado socialmente, signo de sua função social. Vale lembrar também das proposições de Anne Bogart (2011) sobre o esteriótipo, propondo o seu uso vivo. Quando o ator “joga com um personagem”, esta outra categoria, diferente do “quem” (inclusive Spolin é contra “representar personagens”) troca o tipo por um indivíduo, desconstruindo qualquer gesto que o coloque como ser determinado socialmente, assumindo o jogo em outra estética e aproximando-se do que Stanislavski defendia: cada personagem é um indivíduo único. É importante que ao tor perceba que ele está em relação complementar com a estética demandada pelo diretor, filme e cultura cinematográfica (ou teatral) onde está situado. É importante também dizer que trabalhar com o tipo não é lançar mão de uma singularidade. Apenas o tipo e o gestus estão como regra de jogo, alicerce de uma estética específica, ainda que cada um resolva este jogo de forma diferente e, mesmo na reprodução de formas, restará algo singular de sua corporeidade atualizada nas resultantes. No entanto, como estratégia de jogo, no Cinema Contemporâneo, abrimos mão de qualquer quem e de qualquer personagem. Mesmo que no roteiro tenha um; mesmo que o diretor se refira a ele. Porque se estamos atuando em uma estética que não suporta a impressão da situação de representação, 24


não se pode representar. Construção de “quens” podem não entrar em jogo, podem não ser utilizadas; contruções de presonagens, idem. Apesar de que, seja jogando com o “quem” tipificado, com o “persoangem” ou qualquer outro estímulo, o ator estará “em nome próprio” de qualquer forma, porque é da estrutura do jogo: ele o é em nome próprio e jamais deixará de haver um ator (sujeito) em jogo. Estrategicamente, no entanto, em cinemas que não suportam a ação de representaçao denunciada pela presença do gesto de representar, abrimos mão do jogo com o persoangem e nos concentramos na tessitura real de nossa situação de jogo e como reagimos a ela. Em “Veto a Voz” (2018) 33 tinhamos regras de fala. Este jogo de improvisação gerou falas elaboradas. Os princípios que regiam ainscrição do corpo eram próximos ao naturalismo (o espaço inclusive era íntimo, as pessoas junto a nós no palco) e a fala, ao incorporar elementos aleatórios, causou estranhamento, o que aproximou o trabalho de uma espécie de “Teatro do Absurdo” 34. Mais do que expor os materiais do “Veto a Voz” (que não vem ao caso agora), quero mostrar que a fala pode ser o agente que dispara outras tessituras quando se está em um drama – criando uma linguagem da obra a partir da resistência destes elementos aderirem ao “liso” do dramático. É especialmente por “não caberem” no tecido dramático, que formam “nós” ou buracos, irregularidades, rugosidades, próteses, fissuras, desencaixes, na escrita da cena. Rugozidades nas falas também podem ser constituídas no jogo de montagem da tessitura do roteiro (voltando ao caso do emprobecimento das falas espontaneias em improvisações lineares). Utlizamos também regras de corpo, o registro do Naturalismo (Arruda, 2019) 35 aliado ao performativo, a partir da absorção de resultantes do “Treinamento de Ações Primárias”. A segunda regra era utilizar o reperório de ações físicas constituído e este era bastante aleatório. Ações primárias (Arruda, 2019) são viewpoints (Bogart & Laudau, 2017); são como ações físicas barbianas (Barba utiliza-se de lançar, empurrar, puxar); ou como as ações de Laban: deslizar, sacudir. Estão no contexto de jogo; na tessitura do tempo-espaço de quem joga; implicam uma forma corporal, um movimento específico, certa dinâmica e qualidade, que se estabelece como elemento extradiegético (não pertence ao universo narrado e vivido pelos atores “como se” fossem os personagens). O ator não usa sacudir ou socar para repersentar a raiva. Ao contrário, ele provoca a aderência destas ações, absorvidas na diagese enquanto elemento heterogêneo, costuras – tornando a escrita do corpo-em-cena rugosa. Estas ações físicas primárias funcionam como escrita portanto. Quando absorvidas na ficção (incluidas na lógica das relações intersubjetivas, ganhando sentido através desta), ainda restará algo de 33 Foram apresentados dois work in progress deste trabalho: na Mostra OFF de Teatro de Grupo (2017) e na 6ª Abertura de Processos de Criação Cênicas, Teatro Municipal Vila Velha (2016). Ver mais em: https://www.socabrasil.org/vetoavoz 34

Ver sobre Teatro do Absurdo em: CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: Unesp, 1997.

35 Ver mais sobre o registro do Naturalismo para o ator em: ARRUDA, R. K. Seis Registros Para a Atuação em Cinema. In: ARRUDA, R. K. A Arte e/em Processos de Subjetivação. Porto Alegre, Simplíssimo, 2019.

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sua forma que resiste, e é aí que a poética é construída: com isto que estranha. Algo que aponta para este contexto do jogo; para o performar. E ao abrir uma fissura ou criar rugozidades no liso, apontam também para o seu limite, para um “nada” da linguagem (porque não há sutura com outros tempoespaço). É importante lembrar da proposição de José Miguel Wisnick (2002); que a linguagem se constrói das relações entre sentido e não sentido. É preciso o sentido e também o não sentido. É a relação entre os dois que gera linguagem. Pode-se dizer que pensar a obra apenas em termos do que ela diz ou significa – tentando traduzir um tempo-espaço para o outro tempo-espaço; ou que sentido ela tem para o artista e as pessoas, é um equívoco.

Bibliografia: ARRUDA, R. K. Seis Registros Para a Atuação em Cinema. In: ARRUDA, R. K. A Arte e/em Processos de Subjetivação. Porto Alegre, Simplíssimo, 2019. ARRUDA, R.K. Da Poética do Ator: Teatro & Cinema. Porto Alegre, Simplíssimo, 2019. ARRUDA, R. K. Seis Registros Para a Atuação em Cinema. In: ARRUDA, R. K. A Arte e/em Processos de Subjetivação. Porto Alegre, Simplíssimo, 2019. BOAL, A. Teatro do Oprimido e Outra Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1991. BOGART, Anne. A Preparação do Diretor. Rio de Janeiro: Ed. Martins Fontes, 2011 BOGART, A. & LANDAU, T. O Livro dos Viewpoints: O Guia Prático para Viewpoinst e Composição. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2017 BRAGA, Bya. Ator de prova: questões para uma ação-física coral. Anais da V Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. São Paulo, 2009. BRECHT, B. Estudos Sobre Teatro. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1978. CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: Unesp, 1997. DAGOSTINI, N. Stanislavski e o método de análise ativa: A criação do diretor e do ator. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2018. HAGEN, Uta. Técnica para o Ator: A Arte da Interpretação Ética. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2007. KUSNET, E. Ator e Método. São Paulo, Ed. Hucitec, 1992 OLIVEIRA, M. F. C. Do sentido da tragédia à tragédia do sentido: a filosofia e a ruína do drama. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Filosofia, 2014. RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2012. SPOLIN, V. Jogos Teatrais: O Fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva, 2000. SZONDI, P. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2012. WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. São Paulo, Ed. Schwarcz, 2002. 26


Em Busca do Afeto: Material Extradiegético no Jogo do Ator Daniel Monjardim36

Resumo: Neste presente estudo exploramos e sistematizamos os elementos extradiegéticos e o seu impacto no campo associativo e psicofísico do ator. Como essas reverberações internas e também externas podem afetar o jogo do ator e como ele pode manejar esses elementos para gerar poética da atuação. Palavras-chave: Elementos Extradiegéticos, Afeto, Jogo, Instante, Associação.

Por meio da minha atuação no mercado de Artes Cênicas do Espirito Santo, nestes últimos quatro anos, tive experiência no audiovisual, com os curtas-metragens “2 Sobre 1” (Matheus Muniz, 2019), “O Fruto Proibido (Gustavo Frossard e Yago de Vargas, 2019), “Jazigo” (Tadeu Vieira, 2020) e no longa-metragem “Os Primeiros Soldados” (Rodrigo de Oliveira, 2020). Percebi que a atuação para cinema necessita de um “voo mais interno”. O que quero dizer com isso? É necessário atingir “camadas mais profundas” do “emocional do ator”. São necessários estímulos, que podem advir das mais diversas formas; por meio da música, monólogos interiores (Kusnet, 1992), materiais visuais e condições externas. Durante uma diária de filmagem, podem acontecer as mais diversas situações. Em todos os sets, me deparei com adversidades e coisas inesperadas que pude utilizar a meu favor em uma cena. Em “2 sobre 1” gravamos no topo da comunidade de Nazareth e no dia anterior eu tinha saído e bebido muito. O sol estava muito forte e o clima estava abafado. Tínhamos marcado a filmagem para bem cedo. Meu corpo estava exaurido do dia anterior e tivemos que subir muitos lances de escadaria e ladeiras. Cheguei extremamente cansado. A combinação de calor e cansaço resultou em um aspecto “meio jogado” para o meu personagem. Reparei nisso Licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha, membro da Associação Sociedade Cultura e Arte SOCA e dos coletivos: Cia Poéticas da Cena Contemporânea, Companhia de Teatro da UFES, Cia de Teatro Urgente e produtora de audiovisual Checkmath. Ator, músico e professor de Artes Cênicas, modelo e produtor cultural. Email: danielmonjardim@hotmail.com 36

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apenas mais para frente, ao ver a resultante: o “contexto extradiegético” acabou por determinar uma característica marcante do personagem no filme. Em “Jazigo” (Tadeu Vieira, 2020), eu raptava uma criança (bebê) e a jogava de uma ponte. A cena foi gravada com um drone. Por eu não ter muita experiência com crianças de colo, fiquei nervoso. Eu tinha que atravessar algumas ruas, tinha que correr com a criança na ponte; eu não sabia nem segurar ele direito. Depois de várias tomadas, eu estava com muito medo de tropeçar e deixar o bebê cair. Esse misto de nervosismo e medo acabaram por alterar o meu fluxo de corrida e tencionar a minha expressão, o que trouxe um tom interessante e acabou por revelar o que eu próprio não sabia sobre o personagem. Outro relato de bastidor do mesmo filme, aconteceu com a atriz Layla Erlacher Novaes. No começo do filme, ela andava sobre o viaduto “Caramuru”, no centro de Vitória, à noite. Ela estava sendo espreitada pelo meu personagem. Estávamos eu, Layla, Tadeu (o diretor do filme) e Ramon, fotógrafo. Ramon estava auxiliando com as demais necessidades da produção. Estávamos receosos de ser assaltados naquele lugar. Esse medo estava nitidamente estampado no rosto de Layla e era justamente o que a cena pedia. Isso mostra que o ator tem que estar aberto a estímulos, esses que podem advir das mais diversas formas. Para o ator de cinema, isso se torna ainda mais necessário, pois diferente da atuação para o teatro, mais corporal, dilatada e desenhada, a atuação para cinema bebe na maioria das vezes do Naturalismo (principalmente quando se trata de um certo cinema contemporâneo que demanda do ator uma atuação realista). Assim, uma tentativa forçada de representação pode gerar uma atuação sem credibilidade. Por isso, a necessidade de estar aberto a esses estímulos. Uma mistura acontece, então: o jogo do ator com o outro, o estímulo e o material interno que o ator trabalha para a cena. A combinação de todos os fatores gera, então, a resultante vista na cena.

EXPERIMENTO #1 No dia primeiro de abril iniciei um laboratório-solo com o objetivo de investigar a linguagem da atuação em um novo curta-metragem, que nomeei “Tentação”. O contexto de criação implica a pandemia do Covid-19 e uma tentativa solitária de produção de linguagem audiovisual. O experimento contou com a orientação de Duílio Kuster na disciplina de “Práticas de Direção e Encenação I” e de Rejane Arruda em “Estágio Supervisionado em 28


Artes Cênicas IV”. Neste laboratório, em diálogo com teóricos que me auxiliam no caminhar (entre eles Kusnet, Bogart e Arruda) e partindo utilização do “objeto extradiegético” (elemento dos bastidores, extraficcional), dediquei-me a uma produção a partir da “primeira instalação”. O ator de cinema deve fugir ao máximo da ideia de representação. Segundo Kusnet (1982), o ator trabalha em duas instâncias: primeira e segunda instalação. A “primeira instalação” é o contexto próprio do ator, as suas vivências e aspectos emotivos de sua personalidade, além de todo e qualquer material que não esteja a princípio inserido no contexto diegético. Contexto diegético, chamado por Kusnet, de “segunda instalação”: o contexto ficção, da fábula utilizada pelo roteirista e transmitida no filme como universo da personagem. Em uma atuação realista, o ator traz, para o set, as suas vivências e estímulos (internos e externos). O contexto da personagem só existe no filme. Este contexto, o espectador vê na tela associado àquela realidade, ali, apresentada por uma série de estímulos e associações pessoais trazidas pelo ator. A “segunda instalação” seria, então, segundo Kusnet, uma resultante da primeira. “O ator atua em nome próprio, o que permite criar um “efeito de personagem” (ARRUDA, 2019, pg.113). Assim, para “efeitos de representação” de um personagem, o ator abandona essa ideia de representação e parte para uma série de vivências oriundas de seu próprio universo pessoal, um verdadeiro mergulho em si. Além dos estímulos internos (substituição, fala interna, memória emotiva, monólogo interior, música interna, imagem interna), o ator também é atravessado por estímulos externos do set, chamados, aqui, de “objetos extradiegéticos”. “O ator, na atuação realista, precisa lidar com certa instabilidade ou o efeito de realidade não acontece.” (ARRUDA, 2019, pg. 112). Segundo Arruda (2019), para o ator chegar em um registro de atuação realista é necessário um “elemento atrapalhador”. Esse elemento causaria uma desestabilização do material interno, causando, então, esse “efeito de realismo” em seu texto. Ela fala da relação com o outro; do jogo do outro ator em relação aos estímulos internos e como a relação com o outro pode lhe atravessar e causar novos estímulos, sensações e afetos diferentes. Todo ato criativo implica um salto no vazio. O salto tem que ocorrer no momento certo e, no entanto, o momento para o salto nunca é predeterminado. No meio do

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salto, não há garantias. O salto pode muitas vezes provocar um enorme desconforto. O desconforto é um parceiro do ato criativo – um colaborador-chave. Se seu trabalho não o deixa suficientemente desconfortável, é muito provável que ninguém venha a ser tocado por ele. (BOGART, 2011, pg.115)

Em cena, o ator tem que estar aberto a estes estímulos. Esse salto no vazio, que o ator dá ao entrar em cena, é o momento chave. É nesse instante que o ator (e seu arranjo interno) se põe em estado de vulnerabilidade (Arruda, 2014), para que elementos extradiegéticos exerçam interferências em sua atuação. Isso pode ocorrer de diversas formas. Para uma das cenas de “Tentação” em função da investigação sobre o elemento extradiegético, escolhi um elemento extracotidiano que me afetaria em cena 37. A este material estou chamando “objeto extradiegético primário”, isto porque é possível que outros elementos extracotidianos se introduzam no jogo a partir da suscebilidade que o objeto primário causa. Primeiro, gravei uma cena sem a utilização do objeto extradiegético primário, apenas com elementos internos. Meu personagem está em um quarto escuro, iluminação azul, enquadrado em plano médio. A escuridão não permite que nada seja visto além dele. A cena foi gravada a tarde, quase ao anoitecer, então foi possível ver parte do ombro e um pouco do peito. O personagem está em uma espécie de loucura, entre o riso e o choro, por conta das situações vividas em um período de distanciamento social, em período de surto de COVID19. A resultante dessa primeira gravação foi boa, por conta do uso de materiais internos, mas senti dificuldades ao rir. Acho que rir sem ter vontade é muito difícil e, no momento, não consegui encontrar nada que me motivasse o riso. Essa sensação de desconforto por não alcançar o riso não foi de todo ruim e trouxe um tom desejado. Acabei ficando satisfeito ao ver o resultado, mas sentia que eu poderia ir mais. Na segunda tentativa, utilizei o material extradiegético primário. Era madrugada, o enquadramento era o mesmo, mas a luz dessa vez só permitia ver metade do meu rosto. O objeto altera os sentidos, de modo que fiquei mais suscetível aos estímulos. Naquele momento em que me vi sozinho, no escuro, com apenas metade de meu rosto em azul na câmera, me senti assustado e comecei a cena. Senti meus olhos lacrimejando. Parecia que não estava sozinho naquele local escuro. Eu imaginava que um rosto ia surgir por de trás do meu ombro e aquele sentimento me causava arrepios na espinha. Comecei a chorar e, então, a tentar o 37 É importante frisar que o objeto extradiegético-primário é uma função. Esta pode ser exercita por modalidades diversas de objetos. Trata-se de comprovar a função independende de qual objeto o ator escolhas. Para este laboratório em específico o objeto utilizado foi o Tetra-hidrocanabinol.

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riso. Dessa vez, ele fluiu de uma forma mais orgânica, pois eu estava em um estado de relaxamento apesar do medo que eu estava sentindo. A minha figura chorando e rindo no escuro, apresentando certa insanidade mental, me assustou, de modo que comecei a tremer também. Percebi que, durante a cena, a medida em que eu me afastava da câmera e da luz, a escuridão ia me engolindo. O efeito disso me causou mais medo. Minha imaginação estava mais fluida. Eu estava jogando com os estímulos que o set de gravação provocava. Em um certo momento, olhei para um canto escuro do quarto. Imaginei naquele canto uma forma grotesca, um monstro. Na medida em que ia imaginando, fui capaz de ir visualizando. Quase pude sentir a presença dele junto a mim naquele local. Fui tomado de um sentimento de medo e impotência e me debulhei em lágrimas. A segunda cena gravada teve um resultado melhor que a primeira. O uso de material interno e a presença do “material atrapalhador” (Arruda, 2019) ajudaram a causar um efeito naturalista interessante. Mas o uso do objeto extradiegético primário no segundo vídeo, junto à série de afetos que me foram causados pelos estímulos, também extradiegéticos, encontrados no set, causaram-me certa visceralidade e organicidade - na medida em que sentia cada estímulo à flor da pele. É importante para o ator de cinema que brinque com esses estímulos e que seja afetado. O ator deve estar sempre aberto a proposições externas.

EXPERIMENTO #2 Utilizei o mesmo objeto extradiegético primário em “Tentação”. Junto dele decidi usar a música como um segundo objeto extradiegético. A música é um material potente na criação de afeto. Por meio dela podemos fazer associações e assim gerar material interno. O que a música acrescenta a um texto, a uma mensagem? E na interpretação de um ator em uma história? Um elemento importantíssimo, em particular: a emoção. Os códigos emotivos permitem não apenas receber uma mensagem, decodificá-la, mas interiorizá-la, fazê-la própria, fixa-la na memória. (COLOGGI, 2017, pg.1)

Preparei o set, ajustei a iluminação, uma mescla de luz azul com vermelha, posicionei a câmera e botei a música para tocar. Para divisão de foco (Spolin, 2015), acendi um cigarro branco. Estabeleci um foco para meu olhar e comecei a fumar um cigarro ouvindo 31


a música “The Lonely Shepherd” (James Last, 1977), trilha sonora de “Kill Bill: Vol 1” (Quentin Tarantino, 2003). Sempre gostei dessa música, então, sabia que iria me causar algum tipo de reação. Não demorou muito e as falas internas começaram a se manifestar. Com elas, a emoção. “No Cinema tudo o que se exige é a verdade daquele estado do espírito do momento.” (TARKOVSKI, 1984, pg. 179) Para o ator de cinema, é necessário vivenciar suas emoções, a busca pelo afeto se torna o objetivo e para que esse objetivo se cumpra, é preciso se deixar atravessar. O ator deve manejar estímulos para que seja afetado. O ator atua, age, afeta um espaço-tempo constantemente recriado gerando principalmente, além de percepções macroscópicas musculares e de movimento, sensações microscópicas afetivas e que a atuação é ao mesmo tempo um fluxo coerente de sentido vinculado a um fluxo incoerente (ou não), mas microperceptivo e de atualizações e virtualizações que territorializam sensações. (FISCHER, 2015, pg. 28)

Segundo Fischer (2015) o ator ocupa um lugar no espaço-tempo situado em um instante. E, nesse instante, ele está suscetível a sensações e estímulos que despertam memórias afetivas. A própria presença e a materialidade em si do corpo do ator em cena já geram o afeto. O ator é vivo, o fluxo de micros sensações vem e vai, toma rumos inesperados, se atualiza, vai embora, volta de outra forma. Uma outra experiência que tive em “Tentação”, foi durante a cena de um ritual feito pelo protagonista Alice. Nessa cena, testei novos elementos extradiegéticos: o calor do fogo, o vento, barulhos do set, e a produção de afeto advinda deles. A cena foi gravada em local externo. Eu estava sem camisa, com o intuito de sentir frio. Era madrugada e estava ventando muito. Peguei uma pequena panela de barro e a enchi com álcool, papel e folhas secas de bambu. Ajustei a luz azul, a câmera e “taquei fogo” na panela de barro. Fiquei um bom tempo olhando para a chama queimando na panela, brinquei com a mão de uma forma que parecia que eu controlava a chama, fui sentindo o calor e a sensação que proporcionava ao meu corpo, fui tecendo associações. Em um determinado momento, percebi que a chama estava se apagando. Dentro da lógica do filme, aquilo era o fim para o meu personagem. O ritual não tinha dado certo e ele estava exposto às maldades do demônio Balzac. Na primeira instalação, contexto no qual eu estava vivendo naquele momento, tive uma associação similar ao contexto ficcional. O fogo estava se apagando e eu estava começando a sentir frio. Associei 32


isso a esperança e o frio à destruição de todos os meus sonhos. O calor estava indo embora, o aconchego também e, com ele, vinha um sentimento ruim de frio, um frio desolador. De repente, me vi pensando em tudo que me deixava triste. Durante esse processo, vi a emoção vindo e se acumulando dentro de mim, me vi chorando compulsivamente. Os pensamentos se atualizavam o tempo todo, novos materiais iam e vinham e me afetavam. Nesse estado em que me encontrava, decidi explorar mais os materiais que me rondeavam no set. Peguei na mão as cinzas e mostrei para a câmera. Isso me motivou a chorar mais ainda, porque o fogo havia apagado. O vento vinha e eu me tremia todo. Isso me trazia desespero, pois era a associação que eu tinha feito. Durante essa experiência, experimentei objetos extradiegéticos que eu havia programado, mas, durante a gravação, ocorreu de eu ser atravessado por outros objetos, dos quais eu não havia programado. Chamei-os de objetos extradiegéticos indiretos. Eles me afetaram em conjunto: os objetos primários e secundários. Eram barulhos que vinham do nada, como o ranger e bater de portas, barulhos no mato, latidos de cachorro, uma goteira pingando atrás de mim e que me molhava, sons de televisão do vizinho e músicas de uma festa que estava rolando em uma residência no meu bairro, todos esses objetos me afetaram e me fizeram criar associações diversas que me mantiveram vivo em cena. O instante existe na medida em que o indivíduo experimenta uma sensação imediata e tangível. Essa sensação é tão intensa, tão fortemente sentida, que esvaece assim que é sentida pela primeira vez. A experiência da sensação forte articula a possibilidade de um instante tanto por meio de uma intensidade de sensação que comunica presença imediata quanto por meio da diminuição de intensidade pela qual o instante contrasta com o instante menos intenso que o sucede. (CHARNEY, 2001, pg. 386)

De acordo com Charney (2001) é no instante que o afeto e a vivacidade do ator se efetivam. Por mais que o ator se aproprie de técnicas diversas, se a produção de afeto não se der no instante, o trabalho se esvazia. “Essa forma de experiência determinada no e pelo instante, seria um acontecimento que impactaria primeiramente os sentidos, por meio do afeto, para depois trazer a consciência dele.” (FISCHER, 2015, pg. 117) Durante o instante em que o ator é afetado, ele entra em uma espécie de transe. Primeiro se sente, é atravessado; depois o afeto é decodificado e se criam as associações, que se atualizam constantemente, pois o material interno é vivo e inconstante. 33


Nossa capacidade imagética embora esteja diretamente relacionada ao psíquico, ocorre dentro do nosso corpo a partir de "gatilhos de acesso" que são criados pelos participantes ao longo dos processos, como, por exemplo, a utilização de fotografias e imagens acerca do tema a ser trabalhado. A pesquisa individual para embasamento acerca do personagem que está surgindo, a maquiagem que cria um novo rosto, ou o figurino nos levam a um tempo outro. Objetos cênicos e adereços que fazem reverberar sensações no ator também são gatilhos. Tudo isso são formas de acesso a uma transformação que resulta em uma consciência dilatada, que por sua vez toca o nosso corpo físico e o faz chegar a outros mundos. (FERNANDES, 2019, pg. 12-13)

O ator nessa espécie de transe estaria, então, vivenciando a segunda instalação? Não, o transe alcançado a partir desses gatilhos, objetos extradiegéticos evocam associações na primeira instalação. Tentar vivenciar a segunda instalação seria mimetizar afetos e não realmente vivenciá-los. Para que seja estabelecida uma conexão é necessário que se sinta afetado, isso só irá ocorrer se a situação dramática dialogar com seu universo pessoal. Os objetos extradiegéticos causam sensações no ator, cabe ao ator manejar essas sensações e criar suas associações.

EXPERIMENTO #3 Foi notado a partir de uma experiência em um projeto, Híbridos (Roberta Fernandes, em pós produção), uma residência artística entre a Cia Poéticas e a produtora Andaluz Filmes, resultantes interessantes de interação entre a poética de interpretação e os elementos extradiegéticos. Em uma determinada diária de gravação deste projeto, em um exercício de improvisação proposto por Rejane Arruda, foi me indicado fazer uma cena em que o elemento central fosse meu personagem estar fazendo o uso de drogas, esse para mim não era um tema forte o bastante para em questões de sustentação de cena, na qual a resultante interativa com os outros atores, era só em relação a meu personagem largar o uso de cocaína, de ter roubado dinheiro e de ter que ir para a reabilitação, a jogada chave para a mudança desse panorama de cena foi jogar o elemento DEPRESSÃO, esse elemento novo foi essencial para que fosse adicionada mais uma camada a cena, onde essa, me possibilitaria tomar novos rumos e eu pudesse por meio do contexto montado acessar mais profundamente o meu interior. Nós enfatizamos a realidade interior. E essa foi a característica particular do nosso trabalho que excitou a todos: a força das intensidades emocionais, as erupções quase

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vulcânicas. [...] Usamos as ações. Usamos as circunstâncias dadas. Usamos todo o procedimento. (GARFIELD, 1980, p. 34) Stanislávski elabora então a ideia de que o ator pode e deve viver o papel não com os sentimentos alheios, mas com seus próprios. Justamente com a ajuda de sua própria memória afetiva o ator ressuscitaria dentro de si as vivências, necessárias para determinada cena e vividas por ele em circunstâncias semelhantes em sua própria vida. (VÁSSINA e LABAKI, 2016, p. 110).

O ator no momento da cena ao utilizar memória afetiva deve dialogar com seu próprio contexto. Naquele dia, eu havia passado por duas experiencias estressantes antes da gravação, problemas com a família e problemas no trabalho, vamos pensar nesses dois casos ocorridos como possíveis elementos externos a cena; Ao mudar o objeto de conflito da cena para DEPRESSÃO, pude acessar mais facilmente gatilhos que dialogavam com a minha memória afetiva, pois já tive depressão. O ator “não pode fugir de si mesmo”, pois todo o material de criação que ele dispõe sempre estará em sua própria vivência, ou seja, em suas próprias emoções. Diferentemente de um escritor, um compositor ou um pintor, o material de trabalho do ator é o próprio ator: “O instrumento do ator [...] é ele mesmo; trabalha com as mesmas áreas emocionais que usa na sua vida real. [...] O ator é tanto o artista quanto o instrumento. Em outras palavras, violinista e violino a um só tempo. (STRASBERG, 1990, p. 152).

Não existe personagem, existe o ator vivenciando experiências análogas ao papel, “mas esses sentimentos pertencem ao ator mesmo, e não à personagem que foi criada pelo poeta.” (VÁSSINA e LABAKI, 2016, p. 310). Acredito que esses dois fatores (os casos ocorridos) que aqui vou estar chamando de Objeto Extradiegético Primário, foram facilitadores para que a memória afetiva pudesse ser alcançada de uma forma mais potente, a situação de estresse causada pelo Objeto Extradiegético Primário (o contexto), gerou resíduo interno que esteve presente em toda a gravação, mas que em algum momento pré-modulado por mim, eclodiu na cena, me afetando e facilitando com que os gatilhos trabalhados por mim penetrassem camadas mais profundas do meu interno. “Strasberg, então, parte dessa premissa e subdivide a memória em duas partes: a memória sensorial (ligada aos sentidos) e a memória afetiva (relacionada à emoção propriamente dita).” (GREVE, 2018, pg. 44). O Objeto Extradiegético Primário atuaria nesse campo da memória sensorial, afetando os sentidos e criando essas micro reverberações no corpo do ator, pensando em

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experimentos anteriores onde o Objeto Extradiegético Primário foi o THC, concluímos que dentro da sistematização proposta por mim, esse elemento primário teria sempre essa função de expansão sensorial, a grosso modo com a finalidade de aumentar o canal perceptivo e potencializar afetos, isso pode ser programado ou não e pode acontecer de diversos modos, seja por meio de: uma substancia, algum acontecimento no contexto real do ator (do dia, do mês, de anos), estado físico (como exaustão, fome, frio) e etc. No meu caso naquela diária o meu Objeto primário foi espontâneo, mas poderia ter sido modulado como foi em Pele (Rejane Arruda, 2019). Em um dos ensaios desse espetáculo, eu não estava conseguindo chegar na energia necessária para uma cena de briga e isso estava empacando o ensaio; Para que eu conseguisse chegar no estado de espírito necessário para aquela cena Rejane modulou uma situação para me colocar em pressão, para que surtisse efeito em mim ela trouxe coisas do meu contexto de vida, e do contexto do momento, a sensação de desconforto gerada pela pressão causada pelo dispositivo de Rejane atravessou meu corpo e me fez acessar mais facilmente a minha memória afetiva, me pondo em um estado de raiva que era necessário para a cena. Por “registro” entendo um arranjo corporal específico, que se apresenta como matriz (Bunier, 2001) no jogo do ator. Os registros que trabalhamos com atores são: Naturalismo, Sujeira, Excesso, Performatividade, Teatralidade e Imobilidade, este último dividido em Neutralidade, Emoção com contenção e Inumano. Estes registros são estudados a partir de referências para, primeiramente serem experimentados de forma pura e, em um segundo momento, alternados e hibridizados. (ARRUDA, 2019, pág. 139)

Essa hibridização dos registros com outras técnicas gera efeitos interessantes na corporeidade do ator em cena. No momento daquela cena do projeto “Híbridos” brinquei com a alternância dos registros; o efeito causado pelo Objeto Extradiegético Primário me fez acessar camadas mais viscerais da minha memória afetiva, que em hibridização com outras técnicas como “contar até 10 na cena repetidamente”, gerou esses efeitos interessantes para a performance. A divisão de Foco (Spolin, 2015) causada pelo ato de alternar os registros e ter que focar nessa escuta durante a cena, gerou esse efeito de naturalidade, rompendo com o ato de representação e cadenciando o afeto gerado pelo Objeto Extradiegético Primário.

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Considerações Provisórias Nesse estudo explorei a relação do ator com os elementos externos do set. A metodologia é experimentar diversos elementos ditos extradiegéticos em cena e ver como se dá a produção de afeto, linguagem dentro de uma poética da atuação. Depois de trabalhar com diversos objetos, eu concluo que o ator quando em cena, está sujeito no instante a ser atravessado pelo afeto que pode advir de um ou mais elementos extradiegéticos previamente trabalhados ou de forma espontânea. Até esse ponto, pude concluir que os objetos extradiegéticos são importantes aliados na produção de afeto, linguagem e poética da atuação, durante a cena. Proponho o termo “objeto extradiegético primário” para a praxis atoral por perceber que é operacionalizador e potencializador de procedimentos. Referências ARRUDA, R. K. Da Poética do Ator: Teatro e Cinema. Porto Alegre: Simplíssimo, 2019. BOGART, A. A Preparação do Diretor. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2011. KUSNET, E. Ator e Método. São Paulo: Ed. Hucitec, 1992. GARFIELD, D. A player’s place. New York: Macmillan Publishing, 1980. VÁSSINA, E & LABAKI, Ar. Stanislávski: vida, obra e Sistema. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. STRASBERG, L. Um sonho de paixão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. HODGE, A. Actor Training. Londres: Taylor & Francis Ltd, 2010 ARRUDA, R. K. Arte e/em processos de subjetivação. Vila Velha: SOCA, 2019. CHARNEY, L. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001. COLOGGI, D. Música e Teatro, Comunicação e Emoção. 2017?. FERNANDES, L. I. A. O jogo ritual e os estados alterados de consciência. 2019. 27 f. TCC (Licenciatura em Teatro) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Natal, 2019. FISCHER, R. D. Uma poética entre o cinema e o teatro: reflexões sobre a presença e a atuação cênica na obra de John Cassavetes. 2015. 212 f., il. Tese (Doutorado em Artes) — Universidade de Brasília, Brasília, 2015. TARKOVSKI, A. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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“Epílogos de Um Abril”: Cinema, Realidade e Memória Marcella Amorim Rocha 38

Resumo: O presente trabalho discute a construção social da realidade no Cinema e o limite entre ficção e realidade nas narrativas audiovisuais através da produção de um documentário sobre os desaparecidos políticos da ditadura civil militar que ocorreu no Brasil no período de 1964 a 1985. O produto permitiu uma discussão sobre as narrativas construídas através de memórias traumáticas e como esses relatos podem colaborar na construção da história de um país. Palavras-Chave: Documentário; Cinema; Ditadura Militar; Memória.

Epílogos de um Abril é um curta-metragem (21’) que conta a história de três desaparecidos políticos e suas militâncias na ditadura militar que aconteceu no Brasil de 1964 a 1985. O filme tem como objetivo humanizar os relatos dos desaparecidos políticos no período da ditadura militar brasileira por meio de uma narrativa ficcional. O filme procura priorizar as histórias dos personagens em relação a ideologias políticas, ressignificando o período e aqueles que militaram contra o regime, além de permitir reflexões que fogem do lugar comum – como tirar a credibilidade dos militantes tidos como subversivos. Dessa maneira, o curta apresenta uma visão dos relatos dos desaparecidos políticos que valoriza as memórias marginais e das minorias que resistiram naquele período. Para isso, as escolhas estéticas e narrativas procuraram aproximar o espectador do personagem a fim de gerar empatia. Em suma, o presente trabalho visa discutir a construção da realidade na narrativa ficcional do audiovisual tentando compreender em que medida e de qual modo as ficções

Formada em jornalismo pela Universidade de Vila Velha, dirigiu o curta "Epílogos de um Abril" em 2017 como trabalho de conclusão de curso. Desde então trabalha com audiovisual na produtora Andaluz Filmes, em específico com a realização de documentários - principalmente com roteiro, fotografia e montagem. Email: marcella.amorim.rocha@gmail.com

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podem contar sobre a realidade da vida cotidiana de um determinado período e contexto. Neste ponto nos embatemos com o desafio de estabelecer um contrato entre obra e espectador, para tornar o filme crível, e ao mesmo tempo abrir mão de recursos como a verossimilhança e o apagamento das marcas de mediação. A escolha do nome se deu depois do décimo primeiro dia de gravação. Ao perceber todo material até então coletado, foi possível refletir a respeito da história e quais caminhos se pretendiam trilhar no processo de finalização. A palavra epílogo, segundo o dicionário Michaelis 39, significa: 1. Conclusão da ação de uma obra literária (romance, poema, discurso etc.); 2. Em uma narrativa, peça teatral etc., capítulo ou cena que faz uma rápida menção a fatos posteriores à ação para completar-lhe o sentido; 3. POR EXT Resumo ou parte final de um fato; desfecho, fim, remate. A ideia é apresentar essas histórias como uma voz que, por representar uma minoria, se calou nos anos de regime e ainda se cala por causa de um contexto de impunidade e falta de informação a respeito do período. Dessa maneira, o filme se apresenta como uma chance daqueles que guardam memórias subterrâneas de concluir o período histórico retratado, de apresentar ao público o que pode ter acontecido depois que suas vítimas foram dadas como desaparecidas, de ressignificar a ideia de muitos acerca de militantes; mostrar uma versão que confronta a memória oficial, apresentando assim, um novo desfecho possível. Uma outra via. Mostrando que esses indivíduos eram mais do que suas ideologias político-partidárias. Eram seres humanos. Por fim, “de um abril” alude e representa o primeiro de abril de 1964, dia no qual o golpe foi concretizado e instaurou o conflituoso capítulo para a democracia brasileira que ainda perduraria por vinte e um “abris”. Para a construção do filme e de sua estrutura narrativa, foi realizado um trabalho de pesquisa não só para construir todo o cenário social, político e cultural, mas – principalmente – para aproximar o audiovisual dos relatos de pessoas que foram vítimas diretas do regime. A mensagem compreende que, tão importante quanto esses aspectos mais descritivos da sociedade, é a humanização daqueles que decidiram lutar pelo o que acreditavam. Por meio de relatos coletados em entrevistas com profissionais da imprensa capixaba na época da ditadura pelo projeto de pesquisa Relatos Ausentes, no livro “68 a geração que queria mudar o mundo: relatos”, realizado pela Comissão da Anistia, e no site

39 Disponível em < http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ep%C3%ADlogo/ > . Acessado em 17 de setembro de 2017.

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www.desaparecidospoliticos.org.br, desenvolvido pelo Centro de Documentação Eremias Delizoicov e pela Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, o filme pôde estruturar sua narrativa não trazendo as histórias selecionadas na íntegra, mas criando outras histórias baseadas nestas. Dessa maneira, o produto não se prendeu em contar o que realmente aconteceu; mas o que poderia ter acontecido a uma pessoa que viveu o período trazendo um olhar para o ser humano ao invés de defender ou criticar seus feitos ideológicos e políticos para causar empatia. As possibilidades oferecidas pela linguagem cinematográfica permitiram a construção de um produto voltado à memória e à fragmentação, próprias de episódios marcantes. Por essa razão, a sequência dos acontecimentos não é fiel a uma cronologia. O discurso assume um tom de confissão e o embate psicológico ganha formato numa tentativa de mostrar reações internas que permanecem escondidas e silenciadas. A escolha de um produto audiovisual para transmitir a mensagem, adotando a estética do cinema, se deu pela capacidade que este meio tem de passar a sensação de se estar assistindo diretamente a um espetáculo quase real, com um ar de realidade. Desta maneira, a estética fílmica permite um processo perceptivo e afetivo de participação do espectador que ao assistir o produto o corrobora sua credibilidade pela impressão de realidade do mesmo (METZ, 2007, p. 16-17). Já que, segundo Turner (1997, p. 81), dentro de um filme existe inúmeras relações específicas estabelecidas entre o filme e o contexto, tanto textual como social, no qual ele é visto. De certa forma, a maneira como vivenciamos a vida cotidiana, o que Berger e Luckmann (1995, p. 38) chamam de “estado total de vigília”, permite que esta seja considerada como normal, ordenada, parâmetro para julgar uma atitude como natural; a realidade tida como realidade predominante por excelência. Nessa realidade existem fatores que a transformam em crível e real, fatores que a constroem e a identificam. Estes fatores – como linguagem, o contraponto com o outro, o tempo e o espaço serão abordados mais adiante neste trabalho – existem e estão estabelecidos antes mesmo dos sujeitos e vão continuar existindo mesmo depois deles. Contudo, como são fenômenos e fatores que dependem de contextualizações e interpretações, é possível afirmar a existência de realidades. Até porque, para a realidade da vida cotidiana ser parâmetro, ela precisa estar em comparação com alguma outra realidade. Em contrapartida, esta outra realidade não precisa pertencer, necessariamente, ao mundo físico externo; ela pode ser elemento de uma realidade subjetiva 40


interior. O contato com diferentes esferas da realidade traz ao sujeito novas tensões de natureza diversa. Minha consciência por conseguinte é capaz de mover-se através de diferentes esferas da realidade. Dito de outro modo, tenho consciência de que o mundo consiste em múltiplas realidades. Quando passo de uma realidade a outra experimento a transição como uma espécie de choque (BERGER; LUCKMANN, 1995, p. 38).

No âmbito cinematográfico, o cinema pode ser compreendido como um conjunto de linguagens e práticas sociais. Neste quesito, a linguagem tem a função não de rotular, mas de ajudar a construir e entender a realidade uma vez que precisamos dela para que possamos fazer parte da cultura que nos cerca; adquirir senso de identidade pessoal e internalizar valores (TURNER, 1997). Outro fator da realidade da vida cotidiana – que também pode se transpor ao cinema – é a ideia que os autores chamam de “aqui e agora”, os focos da experiência diária. A vida cotidiana se organiza em torno do “aqui” do corpo e do “agora” do presente. O tempo e o espaço que o indivíduo se encontra são os pontos mais reais de sua consciência, é a parcela da vida cotidiana passível de manipulação. Contudo, a realidade da vida cotidiana não se restringe simplesmente ao imediato. Através da linguagem, de seus símbolos e signos, é possível aproximar o sujeito de “aquis e agoras” que já passaram – tanto espacial quanto temporalmente, o que explica a historicidade da vida cotidiana. É a temporalidade que ordena a consciência dos indivíduos. Estes se enxergam no tempo que lhes é acessível em relação a um tempo que já passou ou que há de vir. Nele, a realidade se faz contínua e finita porque “o tempo já existia antes de meu nascimento e continuará a existir depois que morrer. O conhecimento da minha morte inevitável torna este tempo finito para mim” (BERGER; LUCKMANN, 1995, p. 45, grifo dos autores). Na esfera da Arte, podemos reconhecer o cinema como um veículo de representações que uma sociedade dá de si mesma através de narrativas e significados; ou, como uma prática social tanto para quem o produz quanto para quem assiste (TURNER, 1997). Além disso, Marc Vernet (1995) afirma que o cinema é capaz de reproduzir os sistemas de representações e articulações sociais de tal modo que os personagens de uma determinada trama podem ser considerados representações não somente de um período do cinema como também de um período da sociedade. 41


O cinema existe pela realidade e para os atores sociais da realidade mesmo que haja traços de ficcionalidade. É importante ressaltar que esta não é só uma realidade compreendida como o hoje uma vez que o cinema não obedece a leis do mundo exterior, e sim às leis da mente e, dentro da mente, o passado e o futuro se entrelaçam com o presente (MUNSTERBEG, 2008, p. 38). O DOCUMENTAL E A FICÇÃO Os limites entre o que é documental e o que é ficcional formam uma linha tênue e turva. Ao problematizar os processos de produção e criação do filme, esse limite se torna cada vez mais abstrato e distante. Jorge Furtado (2005, p. 99) exemplifica esta problemática da seguinte maneira: Se Lumière, fascinado pela “magnifica impressão da vida real” provocada por sua invenção, buscou representar “naturalmente” a realidade observada ou encenada, Mèliès, ao contrário procurou logo criar, através do cinema, uma nova realidade, filha da mágica e da poesia.

Epílogos de um Abril caminha entre dois paralelos. Por um lado, a tentativa de apresentar o período da ditadura militar no Brasil através de relatos reais elaborados em relatos ficcionais, exige do espectador o aceitar o mundo do filme como plausível, como possível de acontecer. Se o espectador não aceitasse os eventos descritos como críveis e possíveis, o filme em si perderia sua relevância e função. Por outro lado, no âmbito da não ficção, é fundamental compreender que os eventos narrados são reais uma vez que, antes de qualquer coisa, falam de pessoas reais e episódios de suas vidas. De toda forma, o filme se apresenta como uma possibilidade de registro, a possibilidade do documentário como memória coletiva; No dilema do crer e não crer:

Um filme de ficção que se faz passar por documentário continua sendo uma ficção, e seu efeito só surge quando essa revelação – cedo ou tarde – emerge. Já o documentário não pode querer se passar por ficção e ainda assim permanecer documentário (COMOLLI apud GUIMARÃES, 2011, p. 70).

Assim, para o espectador que normalmente já reflete sobre a obra numa relação de crença e dúvida, o trabalho de assistir a uma obra assumidamente ficcional que pretende 42


discutir uma realidade histórica seria ainda mais desafiador uma vez que, este passaria a se questionar se tudo o que ele assistiu até agora, e tomou como ficção, é na verdade, parte de algo que vai além. Outra discussão proveniente dessa dicotomia é a ideia de representação. Para Furtado (2005, p. 109), o documentário representa uma vida, o registro da vida, como se aquilo acontecesse independentemente da presença da câmera. Porém, como o autor explica, a presença da câmera “ao filmar o real” já transforma aquela realidade retratada transformandoa em algo que não necessariamente aconteça daquela forma sem a presença do documentarista. Assim, se é possível questionar o filme de ficção se os eventos aconteceram realmente daquela maneira, ou se determinada narrativa é plausível, este questionamento também pode ser feito ao cinema documental. Logo é possível perceber o caráter ficcional no cinema de não-ficção – aquele que utiliza elementos e atores “puramente reais”. É nesta ambivalência que o filme proposto constrói suas bases. Tomando como exemplo a chegada do trem na estação e a saída da fábrica de Lumière, Furtado (2005, p. 108) explica que a subjetividade e a ferramenta de construir estão no posicionamento da câmera e a escolha do momento que o filme começou a rodar. Desta maneira, ele levanta o questionamento: “Quanto de “encenação” há naquela imagem? A dúvida pouco importa: Lumière logo descobriu que poderia “encenar” a realidade, com atores e ações previamente combinadas”. Assim, Furtado (2005) conclui que ficção e documentário, no cinema, são gêmeos bivitelinos, perspectiva também adotada pelo presente trabalho. EPÍLOGOS DE UM ABRIL: DO CONCEITO À MONTAGEM A narrativa do filme se origina na compilação e adaptação de relatos orais e escritos, de vítimas diretas da ditadura militar no Brasil e, principalmente, de dados de desaparecidos políticos. Essas histórias não serão transportadas à tela de forma instantânea e literal. A união de enredo e imagem faz da peça cinematográfica um caminho para contar a história da humanidade indo além de formas do mundo exterior como espaço, tempo e casualidade e fazem com que os acontecimentos se moldem ao mundo interior, atenção, memória, imaginação e emoção. (MUNSTERBERG apud ANDREW, 2002, p. 34).

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A escolha de construir a narrativa de um período social abrangente a partir da coleta de depoimentos referentes à memorias individuais se dá pela compreensão de que a memória se constrói no embate com o outro. Segundo Maurice Halbwachs (2006, p. 69), cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Além de determinar este conceito, Halbawchs (2006) explica que as memórias estão sempre em relação aos contextos sociais. Assim, todas as lembranças, inclusive as pessoais, “se explicam pelas mudanças que se produzem em nossas relações com diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto”. Esta capacidade do cinema de transpor experiências traumáticas e a mente de um individuo à tela, que será fundamental para a elaboração da narrativa, quebra a fronteira do real e do imaginário – que para Turner (1997, p. 111) é o cerne da experiência do cinema. Além de recorrer a registros históricos e de personalidades vítimas do período, o documentário contou com as subjetividades e interpretações da responsável pela elaboração do filme acerca da realidade brasileira no regime militar. Como Turner (1997, p. 58) explica, os ângulos da câmera são capazes de identificar o ponto de vista de um personagem. Mas é importante frisar que tais ângulos são determinados pelo diretor do filme. Todas as escolhas do filme passam por esta figura, inclusive a elaboração narrativa. O intuito do produto não é abordar o que de fato aconteceu com essas pessoas, mas sim contar o que poderia ter acontecido. O que nas décadas de 1960 a 1980 era entendível como possível de acontecer. Até porque, não é plausível dizer com precisão o que ocorreu uma vez que o roteiro é baseado em relatos de memórias que são manifestadas de forma fragmentada. Logo, a intenção do filme é se apoiar nessas múltiplas realidades e reconstruí-las para dar voz a discursos interpretados como discursos da minoria, daqueles que não eram os detentores do poder no regime e viviam à margem dos padrões da sociedade da época, a fim de que, como dito anteriormente, possam existir debates acerca do assunto e para que o assunto possa ser documentado e, quem sabe, gerar um olhar mais empático. Essas memórias subterrâneas, discursos de culturas de minorias dominadas, se opõem à “memória oficial”, como explica Pollack (1989, p. 4). Ainda segundo o autor, a memória que será enquadrada se alimenta daquilo que é fornecido pela história. Dessa maneira, aquilo que lembramos, e a forma como lembramos, é originado naquilo que é mais difundido socialmente – o que reforça fronteiras sociais. Portanto, “o que está em jogo na 44


memória é também o sentido da identidade individual e do grupo” (POLLACK, 1989, p. 10). Esse posicionamento confirma a ideia de Coimbra (2011) exposta anteriormente. Considerando o ato da memória, o lembrar e o esquecer, como manifestações políticas, faz-se necessário que o filme, em alguma medida, também se posicione. O cinema enquanto ferramenta comunicacional permite isso. As possibilidades oferecidas pela linguagem cinematográfica – compreendendo que as técnicas cinematográficas são ferramentas para levar o espectador a uma experiência profunda tanto na atmosfera quanto na ação do filme através de transformações de tempo e espaço, movimentos de câmera, diferentes ângulos até a experiência cinematográfica adquirir um caráter afetivo (MORIN, 2008, p.164) - permitem a construção de um filme voltado à memória e à fragmentação que o trauma propõe no contexto de episódios marcantes; e que este se sustente através de um discurso visto como “não oficial”. Antes mesmo do processo de produção do projeto acontecer, foi necessário entender qual história seria contada e como seria contada. Dessa forma, para a elaboração de um roteiro conciso e compromissado com o período a ser retratado, o primeiro passo foi realizar uma pesquisa bibliográfica que pôde contextualizar a sociedade brasileira das décadas de 1960 a 1980. Para estabelecer um panorama sobre a sociedade brasileira no período do regime militar, as principais obras que serviram como base são as de Ronaldo Costa Couto (1999), Boris Fausto (1999), Elio Gaspari (2004) e Marcelo Ridenti (2000), autores que se dedicam a pesquisar sobre o assunto em questão. O material bibliográfico reunido permitiu construir a estrutura que serviram como embasamento para a inserção dos personagens principais. Mas antes de se propor a contar a história desses personagens foi necessário saber quem eles são já que “o personagem é o fundamento essencial de seu roteiro. E o coração, alma e sistema nervoso de sua história” (FIELD, 2001, p. 27). Para a construção dos três personagens principais, foi desenvolvida uma pesquisa de caráter biográfico. O método biográfico proporcionou à autora a possibilidade de mergulhar no passado, no íntimo do indivíduo a ser retratado. Como Gobbi (2014) defende, este método é uma possibilidade de renovar o presente mostrando experiências válidas. Desta forma, a experimentação humana se torna a principal referência. É importante ressaltar que cada personagem é, na verdade, composto por inúmeras pessoas desaparecidas naquele período e, como tal, estão impossibilitadas de narrarem as próprias histórias. 45


O trabalho aqui apresentado se apoiou, majoritariamente, em fontes primárias sendo elas: o livro “68 a geração que queria mudar o mundo: relatos”, realizado pela Comissão da Anistia que reúne depoimentos e casos de indivíduos que viveram na época ditatorial e participaram de alguma resistência; o site www.desaparecidospoliticos.org.br, desenvolvido pelo Centro de Documentação Eremias Delizoicov, que armazena fichas de desaparecidos políticos e aponta seus nomes, idades, ocupações, filiações partidárias, data de desaparecimento e coleta de documentos, registros, leis ou notícia sobre esses indivíduos, entre outras informações e entrevistas realizadas pelo grupo de pesquisa Relatos Ausentes com profissionais da imprensa capixaba no período. Nesta, a partir de relatos individuais, as histórias foram reunidas formando outra história diferente. Assim, um acontecimento que pertenceu a determinado indivíduo, somado a outro acontecimento de um indivíduo diferente compuseram a história de um dos personagens da série. As histórias fictícias nascem de histórias reais para que sejam verossímeis e possam ser críveis. Dessa forma, foram sintetizados relatos reais para a construção de três personagens ficcionais porque, como Vera Lucía Follain de Figueiredo (2009) explica: “Em meio à guerra de relatos, toma-se partido daquele que parte do indivíduo comum, não porque seja mais fiel aos fatos, mas porque tem a marca pessoal, constituindo um esforço voltado para a construção da memória, da identidade e do sentido”. Antes de representar pessoas, esses personagens representam memórias. Toda ação que acontece e é descrita nasce, prioritariamente, na cabeça e nas lembranças destes personagens. Assim, o filme conta com quatro personagens principais que, além de contarem suas próprias histórias, também contam histórias e ocorridos de terceiros. Como Furtado (2005, p. 109) defende, “um personagem é uma simplificação, uma concentração de ações e palavras que o define no interesse da narrativa”. Entendendo a produção aqui proposta como um híbrido ficção x documental, é possível se basear na explicação de que “na ficção, esta simplificação é feita em pareceria e cumplicidade com o ator” (FURTADO, 2005, p. 109) – uma vez que os atores foram dirigidos em certos momentos e tiveram seus locais de fala previamente determinados por um relato construído. Já na afirmação de que “no documentário, quase inevitavelmente, a simplificação se estabelece sem que o ator tenha plena consciência” (FURTADO, 2005, p. 109) uma vez que os jovens atores eram livres para ressignificar e interpretar o texto de forma livre, priorizando ou descartando episódios que os

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foram entregues. Assim, recriando a história do personagem que, em um primeiro momento, era apenas de autoria da diretora. Carmen Sobrinho Martins: Mãe de Eduardo Sobrinho Martins que espera notícias do filho desde novembro de 1971. Desde que seu filho se engajou na militância política, a casa de Carmen foi invadida e ficou sob vigilância de órgãos de segurança. Em 1981, seu esposo, militar reformado, encontrou um dossiê chamado “Inimigo Interno” que continha uma foto de Eduardo com um “X” vermelho. Carmen milita no movimento “Tortura nunca mais” e em 26/09/1990 prestou depoimento para a Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Maria Barcellos de Azevedo Pereira (Dora): Dora, como era chamada depois que entrou para clandestinidade, era adolescente quando o golpe foi instaurado. Seu pai, médico por formação, foi levado pela polícia e desapareceu depois de ajudar uma amiga da família e seu namorado que foram pedir socorro depois de serem alvejados por causa de suas atuações no Partido Comunista. No final da década de 1960, passa a atuar como jornalista tanto em redações da grande imprensa, quanto militando em jornais alternativos. Na manifestação pela morte do Edson Luís, a foto de Dora saiu na capa do jornal O Globo depois de subir nas escadas da Assembleia Legislativa e gritar “Recuso-me a ter filhos para serem assassinados pela ditadura”. Depois do AI-5, entra para a clandestinidade e em 1969 é presa e torturada. Seu nome estava na lista dos setenta presos políticos libertados com o sequestro do embaixador suíço. Tentou exílio no Chile, e depois de certo tempo, foi para o México, mas só conseguindo se estabilizar em Berlim. Antônio Silva: Estudante universitário que militava pelo Movimento Estudantil e fazia parte da União Nacional dos Estudantes (UNE) desde 1962. No início de 1968, conhece Cecília, que seria sua companheira nos próximos anos, e sua atuação na militância não é mais prioridade. Com o anúncio do AI-5, Antônio se desfez de todo material que poderia ser considerado subversivo. Mesmo com cautela para evitar maiores transtornos, sua ligação com um dos líderes do movimento, Prates, faz com que seu nome seja alvo da polícia. Embora já não fizesse mais parte do movimento, a polícia leva Cecília presa para que Antônio pudesse entregar seus antigos companheiros. As três histórias foram divididas cronologicamente de maneira que fosse possível contar o dia da instauração do regime até o desaparecimento destes personagens. A história se concretiza através dos relatos desses personagens e que são contados por quatro jovens atores através de suas percepções. A intenção é fazer com que o ator recrie com seu próprio corpo e 47


atuação aquilo que ele está descrevendo como se seu personagem estivesse vivendo mais uma vez o trauma descrito. Assim, o processo de roteirização se finalizou no tom e na significação que o ator concedeu ao seu personagem possibilitando a construção de um roteiro conjunto. Compreendendo que memórias não são palpáveis e podem se apresentar de maneira fragmentada, o filme trabalhou com a ideia de lacunas. O filme em si representa um exercício de memória, o ato de lembrar e esquecer. Essa característica se manifesta no ir e voltar da narrativa, na imprecisão de datas importantes na vida dos personagens e de lembranças que não correspondem com o período. Por exemplo, Antônio, personagem interpretado por Vitor Camilo, conta que esperava a namorada Cecília para os dois irem ao cinema assistir “2001: Uma Odisseia no Espaço”. O filme do diretor Stanley Kubrick estreou no Brasil em abril de 1968, meses antes da instauração do AI-5, ato que levou Antônio a se desfazer de seus livros. Dessa maneira, o filme que o casal iria ver não poderia ser o de Kubrick. O cenário utilizado foi o palco do Cineteatro da Universidade Vila Velha que, descaracterizado como tal, estava com paredes e chão em preto. A intenção de utilizar um palco, com o mínimo de elementos presentes, é justamente seu espaço que permite uma boa circulação e aproveitamento dos atores. Como em Dogville

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(2004), de Lars Von Trier 41.

Desta forma, é exigida do espectador uma imersão na história para que seja função dele preencher esses espaços vazios uma vez que, como já defendido por Metz (2008, p. 406), é no embate com o outro que o processo fílmico é finalizado entendendo que sem o espectador não há razão para o filme existir. Para a construção da narrativa algumas cenas – principalmente aquelas que narram sobre memórias pessoais e o estado psicológico dos personagens – foram dirigidas e, enfim, encenadas já que a estética do cinema permite analogias à imaginação, ao mundo das ideias e a quebra da relação passado, futuro e presente uma vez que o cinema corresponde também às leis da mente (MUNSTERBERG, 2008, p. 38). O objetivo das escolhas que formam a narrativa do filme é mostrar que mesmo que o assunto – os desaparecidos políticos da ditadura militar - tenha de fato acontecido, que os relatos sejam críveis e que os efeitos do regime para a sociedade atual estejam presentes, o filme em si não é real. O intuito é chegar ao limite da relação ficção x realidade. A quebra da O filme conta a história de Grace, uma moça que se refugia em Montanhas Rochosas para fugir de um grupo de gângsters. O diretor escolhe contar a história de Grace de dentro de um galpão, no qual não há cenário realista. Apenas marcações no chão definem os espaços como casas e ruas. Algumas referências são incompletas como: não há portas ou janelas, cuja a abertura é evidenciada pelo áudio e pela interpretação dos atores.

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quarta parede e o recurso do jump-cut 42 irão ser ferramentas uteis para anular a ilusão de real (Barthes, 2004) oferecida pela linguagem cinematográfica assim como no já citado Dogville. Algumas produções foram utilizados como referências para as escolhas estéticas. De Hoje (2013), da Tatá Amaral,

a ideia de projeções no decorrer da cena para expor

informações que são essenciais para os personagens; a relação do indivíduo com a memória traumática e o modo como esses eventos não acabam quando o período ditatorial termina e o modo como essas lembranças preenchem lacunas no dia a dia. A escolha da projeção se concretizou de forma mais notória no relato de Maria Barcellos sobre a tortura. Compreendendo o episódio como marcante e de relevância não apenas na história da personagem, mas no período em si, as projeções se apresentaram como uma maneira de simular a tortura de forma que não fosse completamente gráfica, mas simbólica, metafórica. Como as escamas da cobra sobre a pele da atriz e utilização de luz e tinta roxa em alusão as salas de tortura que eram conhecidas como sala roxa. Em concordância com essa ideia,

Spellbound (1945), de Alfred Hitchcock,

referência a inserção de cenas de caráter psicológico em um sentido mais metafórico e a aparição dos momentos traumáticos que influenciam na vida dos personagens de forma recorrente. Ainda sobre esses aspectos mais abstratos, e corroborando com a ideia do simbolismo, o filme Strike (1925), do diretor Sergei Eisenstein, apresenta a inserção de cenas rápidas que trazem informações ideológicas para o contexto exposto. Outro filme que influenciou de modo mais marcante na construção narrativa é Casting JonBenet (2017), de Kitty Green. A tentativa de construir a história através de um teste de elenco e, como consequência, a partir de relatos dos atores; a liberdade de intercruzar ensaios e momentos em estúdio com cenas dirigidas. Essa possibilidade de construir a narrativa sobre determinado assunto a partir de relatos de terceiros está presente também em Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Outro filme que referencia a construção é Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho (2007), que, como explica Consuelo Lins e Cláudia Mesquita (2011, p. 80), é um filme que exibe variações na forma de atuar e “leva o espectador a compreender a arte de representar como algo instável, inseguro e exposto a riscos”. Assim, graças à capacidade da ficção de criar a verossimilhança, é possível afirma que para uma performance conseguir convencer o espectador ao ponto do mesmo crer naquilo que está sendo apresentado, esta deve imprimir o efeito de verdade através do corpo com mecanismos 42 Jump-cut é “um corte que quebra a continuidade do tempo, pulando de uma parte da ação para outra que é obviamente separada da primeira por um intervalo de tempo” (DANCYGER, 2007, p. 504).

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como os gestos, a entonação, o ritmo da fala, nas modulações da voz, intensidade e velocidade que são expostos por aquele que narra (GUIMARÃES, 2011, p. 76). Após a roteirização, o foco centrou-se na produção. Atores, locação, objetos cênicos, equipamentos a serem utilizados, figurino e ensaios e todos os detalhes de quesito prático serão ajustados. Chris Rodrigues (2007) explica que é na produção onde as condições e todos os elementos necessários para que o filme exista são criados. A primeira preocupação foi fechar o time de atores. Assim, os testes de elenco foram agendados e o espaço a ser utilizado foi decidido. O palco escolhido foi do Cineteatro da Universidade Vila Velha e uma vez decidido, as datas foram agendadas. Quando os atores foram selecionados, a autora conversou sobre o projeto com cada um deles de forma individual explicando detalhes mais sutis, o tema, as referências audiovisuais utilizadas em todo projeto e decisões acerca do figurino. Ficou decidido que quando eles se apresentavam como atores para um teste de elenco, a roupa era a critério deles. Porém, nas entrevistas estruturadas, seriam utilizados figurinos que remetessem à década de 1970, mas que fossem sóbrias e discretas. Rodrigues (2007, p. 67) ainda defende que a produção de um filme também incluiu a filmagem em si – desde as preocupações fotográficas quanto a captação de som – já que a produção implica em tudo aquilo que envolve fazer um filme. Compreendendo a Ditadura Militar como um importante marco na história do país, o filme propôs trazer impressões sobre o regime, além das impressões da autora. Para isso, a fim de apresentar os impactos do período até os dias atuais, foi proposto aos atores o exercício da improvisação e da construção do personagem frisando o papel do ator como co-autor da narrativa; como indivíduo que também tem considerações e percepções acerca do tema. Desta forma, os atores puderam construir também o personagem a partir de suas impressões sobre o mesmo através de diferentes exercícios. O intuito era que o personagem se tornasse conhecido pelo ator e que isso facilitasse o processo de improvisação em alguma medida. Para isso, foi entregue aos atores a história base de cada personagem. Além de interpretarem o relato escrito na íntegra, eles puderam interpretar o texto a partir de suas perspectivas sobre a história em questão como se fosse um teste de elenco. Por fim, e para agregar valor ao exercício de improvisação, os atores deram entrevistas como se fossem os próprios personagens a serem entrevistados na década de 1970. Com isso, é possível valorizar a questão do ator emprestar seu corpo ao personagem. Os 50


atores responderam perguntas sobre a ditadura militar, seus efeitos e possíveis consequências, como se fossem os próprios personagens. O enquadramento utilizado para as entrevista com apenas o entrevistado no quadro tenta trazer a ideia de uma vastidão de relatos que estão ali, mas que ainda não foram contados e por isso permanecem vazios, em silêncio. A escolha dos enquadramentos e dos ângulos teve relação com a tentativa de aproximar o espectador da história contada. Por isso, foram utilizadas câmeras subjetivas (aquela que assume o ponto de vista do personagem), close-ups (plano fechado na cabeça e ombros). Alguns movimentos de câmera perdem a estabilidade ou se apresentam em espreitas para passar a ideia de que a câmera não deveria estar ali; representam a pergunta “o quanto eu posso filmar?”. O enquadramento que também representa essa ideia é a câmera de apoio da entrevista da Dora. Projeções de imagens sobre o personagem para tentar reproduzir suas ilusões e memórias; assim como jogo de luz e sombra na tentativa de ocultar certos elementos e expressões. Além de trabalhar com a ideia daquilo que pode ser revelado e da dualidade que a sombra pode trazer, por exemplo: a câmera principal e aberta utilizada no exercício de palco da atriz que interpretava a Dora. Há uma sombra que corta o palco formando um quadrado, do lado de dentro a sombra da atriz está presa, mas a voz que enuncia o discurso está livre. Pudovkin (2008, p. 64) defende o simbolismo como método capaz de introduzir um conceito abstrato de uma forma que evita o uso do letreiro; movimentos pouco estabilizados que representem toda a confusão e agitação proposta na cena. A narrativa também contará com flashbacks, ou seja, determinado evento que aconteceu antes da cena que segue. Como Deleuze explica (2009, p. 65), o flashback retrata acontecimentos que só são possíveis de serem contados no passado. É importante ressaltar que, embora os personagens contem suas histórias, eles inserem em seu discurso histórias de terceiros – de amigos, conhecidos e outras vítimas. Em algum momento, essas histórias se cruzam. É possível tomar a história de Eduardo Sobrinho Martins como exemplo. O personagem caracteriza os desaparecidos políticos de forma mais fiel porque ele é o indivíduo que tem sua história contada por outro, por uma terceira pessoa. Embora ele seja fundamental na narrativa, sua participação está na memória de alguém e não necessariamente na sua presença de forma direta. Para compor essa narrativa, recursos sonoros foram utilizados como referências de memória, como o barulho corrente da água que era usada como método de tortura, ou como 51


referências metafóricas: os passarinhos que cantam de forma livre enquanto os personagens estão em um contexto de prisão. É importante ressaltar que a captação desses sons foi feita de forma orgânica e local. Assim, o único efeito artificial inserido na pós-produção foi o da arma engatilhando. A fim de ratificar a ideia de fragmentação da memória, a edição contou com a inserção de cenas rápidas – as cenas nas quais foram utilizadas as projeções, por exemplo – método inspirado no filme Clube da Luta (1999). O diretor, David Fincher, para ilustrar os lapsos psicológicos do personagem principal, utiliza-se de imagens que ocupam a tela com pouca duração, trazendo a impressão de que existe um frame falso. Essas cenas tem o intuito de mostrar a confusão psicológica acarretada pelo trauma e tentam mostrar o que o personagem está pensando enquanto fala. A montagem é paralela entre a memória do indivíduo, os ensaios e a entrevista sem estabelecer necessariamente nenhum padrão. Será neste processo que o filme se construirá já que ele não é sobre eventos do passado ou percepções do hoje, mas sobre uma experiência que só poderá ser vivenciada a partir da montagem fílmica. Assim, a pergunta norteadora será: o que a montagem fílmica pode oferecer para a experiência cinematográfica? Como Tarkovsky (1998) explica, o processo de montagem perturba a noção de tempo, criando algo novo. Dessa distorção do tempo surge a expressão rítmica do filme e essas decisões que constituem a finalização do filme devem ser tomadas de forma prudente, deve nascer de uma necessidade já que No momento em que se viola o processo orgânico das transações, a ênfase sobre a montagem (que o diretor deseja ocultar) começa a se impor; ela se expõe à vista, salta aos olhos. Se a velocidade do tempo for reduzida ou acelerada artificialmente, e não em resposta a um desenvolvimento endógeno, se a mudança de ritmo estiver equivocada, o resultado será falso e óbvio (TARKOVSKY, 1998, p. 144).

A relevância do processo de montagem para o produto em si é tamanha uma vez que é neste momento que o filme é lapidado. Neste momento é possível reescrever toda narrativa a partir do material coletado e perceber qual caminho este material está tomando; é momento de deixar que o material fale por si mesmo. Rabiger (2005) defende a edição como uma segunda oportunidade de dirigir o filme. Algumas escolhas da montagem permitiram passar a mensagem de que, embora essas histórias sejam reais, o que o espectador assiste é apenas um filme. Existe em diversos momentos a tentativa de revelar o dispositivo: ao mostrar a câmera no palco gravando a cena, ao inserir o recurso da palma como uma marcação de que o ator estava pronto para começar,

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ao mostrar o ator passando o texto ou quando a diretora adverte duas moças que está tendo uma gravação naquele momento. Assim, quando o espectador adota a ideia do filme e se tem o momento da diegese, ele é lembrado de que aquilo é apenas um filme. Foi na montagem que a narrativa enfim se concretizou com mais precisão. Por exemplo: a escolha de cortes bruscos e secos, como quando a personagem Dora se suicida traz a ideia de um fim ríspido, inesperado, repentino; ou a inserção da pergunta sobre o trabalhar no jornal em tempos de censura logo após uma fala de alto teor emocional de uma mãe que espera a volta do filho, representando como a nossa sociedade trata o assunto de desaparecidos políticos. Sabemos de sua existência, mas continuamos nossas vidas e trabalho sem lidar com essa questão, ou seja, prosseguimos de forma muitas vezes insensível. Sem imputar a esses relatos a importância e o respeito devido. CONSIDERAÇÕES FINAIS No processo de produzir “Epílogos de um abril” foi perceptível que dentro de um único filme existem inúmeras chances de contar uma história. A história tem a sua primeira chance de ser contada na fase da pesquisa, roteirização e produção. Mas ao entregar o texto para o ator, a história se refaz em interpretações e novas perspectivas e através das escolhas que cabem à direção do filme, esse se refaz em uma nova narrativa. Um novo relato. Mas é na montagem que a história a ser contada é finalmente decidida. É na montagem que o filme é dirigido mais uma vez a partir de um material bruto que, ao ser lapidado, pode se desdobrar em diferentes e inusitadas narrativas que não existiam antes da pós-produção. Quantas histórias existiram dentro de um filme até que se chegasse à história que finalmente foi contada? Foi na pós-produção que “Epílogos de abril” passou a falar enquanto filme, enquanto narrativa e tomar forma por si mesmo, possibilitando ao espectador um resultado que ainda não era conhecido na fase inicial da roteirização. Se no começo do projeto a intenção era dar voz a minorias e a discursos que se encontram à margem da sociedade, por meio da pesquisa e ao fazer o documentário, entendeu-se que essas vozes já existem. Não é necessário concedê-las a esses grupos, pois eles já se apropriaram de seus discursos. É necessário tornar essas vozes conhecidas, visíveis. Assim, como futura jornalista, compreendemos que não é necessário dar voz e sim prover visibilidade. 53


Na teoria, o jornalismo tem o papel social de trazer à comunidade essas vozes que se escondem, de causar empatia entre grupos distintos por meio das narrativas do real. Contudo, foi possível perceber que, por muitas vezes, a ficção dá mais conta da realidade do que o próprio registro do real. Como reviver as memórias, como contar as histórias de desaparecidos políticos se não é possível entrevistá-los pelas formas tradicionais que o jornalismo estrutura? Compreendemos que narrar o real vai além do jornalismo e suas estruturas, formas e discursos impostos. A ficcionalidade carrega em si mais traços do real do que apenas o fato. Para existir, ela engloba o fato, o contexto, as marcas pessoais, as marcas da memória e das interpretações. Se compreendermos o jornalista como o responsável por contar histórias, por trabalhar com narrativas e o jornalismo como a instituição que traz a tona realidades e discursos muitas vezes abafados e contidos, é necessário repensar esse fazer. Dessa forma é fundamental se desprender de paradigmas e amarras da práxis jornalística e considerar outras opções, levando sempre em conta qual é a melhor forma de valorizar o conteúdo da mensagem. Compreendendo que o objetivo é compartilhar a mensagem, talvez seja necessário repensar estruturas, conceitos e moldes impostos pela prática jornalística, a fim de humanizar as narrativas. Referências ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro, RJ: J. Zahar, 2002. BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. COIMBRA, Cecília. Gênero, militância, tortura. In FERRER, Eliete (Org.). 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2011. COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura: Brasil: 1964-1985. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1999 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense. 2009. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 7. ed. São Paulo: EDUSP, 1999. FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2001. FOLLAIN de Figueiredo, Vera Lucía, Encenação da realidade: fim ou apogeu da ficção? Matrizes [en linea] 2009, 3 (Agosto – Dezembro). Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=143012785008. Acesso em 17 de setembro de 2017. FURTADO, Jorge. O sujeito (extra)ordinário. In MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (Org.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, c2005. 54


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CAPÍTULO II: ARTES VISUAIS


Lygia Pape e a interconexão entre arte e política na participação da exposição Nova Objetividade (1967)

Eraní Ferreira Soares 43 Petruska Toniato Valladares 44

Resumo: O presente artigo faz parte da pesquisa sobre a artista plástica brasileira Lygia Pape (19292004). A intenção é mostrar que seus trabalhos possibilitam várias narrativas, dentre elas, uma consonância com o contexto artístico e político-social, pois, a exposição Nova Objetividade (1967) ocorreu durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Naquela época, os artistas viveram situações-limite e, por isso, transformaram seus trabalhos em experiências críticas, tirando o espectador da contemplação passiva e promovendo a reconfiguração do discurso artístico brasileiro. Palavras-chave: Arte. Linguagem. Lygia Pape. Nova Objetividade. Política.

Lygia Pape e a coletiva Opinião 65 A participação da artista plástica Lygia Pape (1929-2004) na exposição Nova Objetividade (1967) serve como eixo norteador para o desenvolvimento deste artigo. Apesar de ser uma das principais representantes do Neoconcretismo no Brasil em seu período e ser reconhecida internacionalmente, Lygia Pape é pouco conhecida pelos brasileiros. A artista mantém a atemporalidade em seus trabalhos, pois segundo Pape (1969, p. 31): “Nunca faço um trabalho relacionado a uma época, mas, sim, a uma forma própria de conhecimento”. Nos primeiros anos da década de 1960, quando os movimentos artísticos experimentais despontavam no país, o Brasil iniciou

43 Mestranda em Artes , pela Universidade Federal do Espírito Santos,possui graduação em Educação Artística/Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997) e Curso de Pós- Graduação Lato-sensu- Especialização em abordagens contemporâneas em Arte- Educação, 1999. Atualmente é professor na rede estadual de ensino, e Parecerista de projetos culturais na prefeitura de Vila Velha. Foi professor na Universidade Vila Velha até 2020, atuando nos cursos de Design de Produto, Design de Moda e Artes Cênicas, ministrando as disciplina de História do Design, História da moda, figurino, semiótica, e produtora de conteúdos EAD. 44 Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Espírito Santo (2017). Tem experiência na área de Moda, com ênfase em arte. Graduada em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (2000), e em Criação e Gestão de Negócios da Moda pela Universidade Vila Velha (2009) e Pós-graduada em Produção de Moda pela Universidade Vila Velha (2010). Atua como professora na área de moda, com competência para ministrar as seguintes disciplinas: Estamparia artesanal e industrial, Design de superfície, Visual Merchandising e Vitrinismo, Composição - Forma e Cor, Pesquisa comportamental e de tendência, Produção de Moda, Metodologia de projeto, História da arte e História da Indumentária e da moda.

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um período delicado da sua história, com um golpe militar, conforme ressalta a historiadora Marília Andrés Ribeiro: [...] após a tomada do poder pelos militares, em 1964, e a desarticulação das esquerdas populistas, os artistas e os intelectuais iniciaram uma série de protestos contra o governo militar, formando focos de resistência ao regime autoritário nas universidades, nos teatros, nos museus, nas editoras ditas progressistas, na imprensa nanica e nas ruas das cidades, o que proporcionou a criação de uma ‘cultura alternativa de esquerda’ (RIBEIRO, 1997, p. 67).

Apesar do momento social e político conturbado em que o país se encontrava, iniciava-se um período de rica produção e discussão na busca de uma arte genuinamente nacional. Conforme o professor Paulo Roberto de Oliveira Reis: “a crise do objeto e do conceito moderno de arte trazida pela Arte Pop abria a possibilidade de novas pesquisas artísticas no país, dentro de um contexto social e político específico” (REIS, 2006, p. 185). Entre 12 de agosto e 12 de setembro de 1965, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sediou a exposição Opinião 65, que foi considerada a primeira manifestação coletiva nas artes plásticas brasileiras depois do Golpe de 1964. Esta exposição provocou uma reflexão profunda sobre o contexto artístico brasileiro apontando caminhos para a construção de uma vanguarda nacional. Apresentando o trabalho de jovens artistas brasileiros, latino-americanos e europeus, teve caráter político ao instigar os artistas a opinarem sobre a nova situação política brasileira e em paralelo com a própria situação social da arte. Foi na coletiva Opinião 65, apresentada por Ceres Franco, que Hélio Oiticica apresentou Parangolés 45 pela primeira vez, proposta processual baseada na ação coletiva e na participação do espectador. Essa obra de Hélio Oiticica foi o resultado de suas experiências em trabalhos com a comunidade da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Considerada pelo artista como a "totalidade-obra", apresenta a fusão de cores, estruturas, danças, palavras, fotografias e músicas que são reveladas através dos movimentos performáticos de quem veste o parangolés. A exposição também marcou a expulsão de Hélio Oiticica, após apresentar, em um espaço institucional, um happening: Inauguração de Parangolé. A performance surge como reivindicação do desejo da construção de uma arte tanto experimental quanto participativa, promovendo uma reconfiguração no discurso artístico brasileiro, especialmente por instituir um novo padrão de linguagem.

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Ver mais em: https://www.escritoriodearte.com/artista/helio-oiticica. Acesso em: 07 jul. 2021.

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Fig. 1: Parangolés - 1965. Fonte: https://mam.rio/historia/parangole-em-opiniao-65/ Acesso em 05/03/2021.

Ainda segundo Ribeiro (1997, p.73): O Parangolés marcou, ainda, a transição de Oiticica do Neoconcretismo para a Nova Objetividade, explorando a experiência da cor e da luz no espaço ambiental, através do movimento das roupas coloridas usadas pelas passistas da Escola de samba da Mangueira.

A exposição foi um marco de ruptura que deu início a uma nova fase no cenário artístico cultural do país, com exposições coletivas, performances e discussões sobre a produção artística brasileira. Se Opinião 65 marcou o início da ação coletiva dos artistas da nova geração, Proposta 65 abriu espaço para discussão, entre artistas e críticos, sobre o Realismo no Brasil. A exposição e os debates articulados por Waldemar Cordeiro realizaram-se na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, e congregaram uma mostra de jovens artistas que atuavam no eixo Rio/São Paulo. Na ocasião, foi publicado um catálogo com textos críticos de Ângelo de Aquino, Clarival Prado Valadares, Hélio Oiticica, Jorge Mautner, Mona Gorovitz, Pedro Escosteguy, Rubens Martins, Sérgio Ferro, Mário Schenberg e Waldemar Cordeiro. Esse documento é fundamental para a compreensão do debate sobre o Novo Realismo brasileiro. Sérgio Ferro proclamava a pintura nova, que se contrapunha à pintura abstrata informal e se abria às múltiplas possibilidades conceituais, plásticas e comunicativas sugeridas pela Pop Art e pelo novo realismo. O discurso de Waldemar Cordeiro sobre o nível da cultura de massa recorria à nova linguagem visual instaurada pelo Modernismo, adaptando-

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a às necessidades surgidas com o desenvolvimento tecnológico e a comunicação de massa (RIBEIRO, 1997, p.73).

Os artistas que aderiram à nova figuração e ao realismo se difundiram no cenário internacional, principalmente entre os norte-americanos. Os membros do grupo tinham em comum o apreço pelo figurativismo, e eram contrários ao abstracionismo e às suas vertentes geométricas e informais que se projetavam mundialmente. Nesse momento Lygia Pape, mesmo com a dissolução do grupo neoconcreto em 1963, continuou mantendo contato com vários artistas, entre eles Hélio Oiticica, apesar de estar mais voltada para outras produções, como cinema e design gráfico. Até que em janeiro de 1967, Lygia Pape, juntamente com outros dezessete integrantes, assina o texto coletivo Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda. Conhecido como um manifesto dos interesses de um grupo de artistas perante a arte nacional produzida no momento. O documento defendia a liberdade de criação, o emprego de uma nova linguagem e a análise crítica da realidade, centrada no problema da relação da vanguarda com a conjuntura brasileira. Sobre o texto, Reis discorre (2006, p. 224): A ‘Declaração de princípios básicos da vanguarda’, publicada em janeiro de 1967, representou uma importante tomada de posição dos artistas e críticos em relação ao seu fazer artístico e em sintonia com o contexto político, social e cultural brasileiro. Texto coletivo que se assemelhava a um manifesto [...]. Composta por oito itens a ‘declaração’ questionou posições hegemônicas da crítica cultural estabelecida sob uma orientação ideológica do CPC ou aquela mais avessa a um conceito de arte experimental. O conceito de vanguarda expresso nesse documento procurou ser o mais aberto e complexo possível. Não se propunha o nacionalismo como diretriz, mas acentuava-se que a criação artística estava ligada ao lugar onde era produzida.

A Exposição Nova Objetividade em 1967 Esses eventos foram importantes porque forneciam o que havia de mais atual na produção brasileira, fomentando um ambiente de pesquisa propício para viabilizar a Nova Objetividade Brasileira, em abril de 1967, no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro.

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Fig. 2: Nova Objetividade Brasileira.

A Nova Objetividade Brasileira é um termo que denominou a geração de artistas plásticos da nova vanguarda, que atuou no eixo Rio/São Paulo no final dos anos de 1960. Mas refere-se, especificamente, à exposição coletiva desses artistas, realizada no MAM do Rio de Janeiro, em abril de 1967 (RIBEIRO,1997, p. 77). A mostra Nova Objetividade designava um novo direcionamento da visão do artista e do público, dissipando as dualidades construídas entre experimentação artística e participação. Também vale ressaltar que esses movimentos ressignificaram e trouxeram uma nova contextualização das propostas das primeiras vanguardas dentro de outro panorama histórico, mostrando o que a Nova Objetividade fez, nos anos de 1960, da vanguarda antropofágica de 1920, conforme menciona Ribeiro (1997, p. 73): A exposição, que congregou artistas brasileiros de várias regiões, sintetizou as propostas das neovanguardas e tornou-se um marco na afirmação de uma nova arte genuinamente brasileira. No catálogo ficaram registradas as formulações de Oiticica, explicitando o ideário dessa nova vanguarda no documento denominado Esquema Geral da Nova Objetividade. Nesse documento, Oiticica salienta os seguintes pontos: vontade construtiva de herança concretista e neoconcretista; superação das categorias tradicionais das artes plásticas; tendência para o objeto; abandono do esteticismo formalista em favor de uma abordagem semântica voltada para os problemas éticos, políticos e sociais; emergência das questões da antiarte; e organização de manifestações coletivas abertas à participação do público [grifo nosso]. 46

Com a exposição Nova Objetividade, não resta dúvidas de que foram traçadas novas propostas acerca do fazer artístico, ampliando as formas de expressão na arte, de trabalhos que desmitificavam a função de só contemplar, mas de dialogar com o espectador, como ressalta Reis (2006, p. 45): 46 Ver mais em: Marília Andrés Ribeiro. Reflexão sobre a arte brasileira nos anos de 1960-70. Revista Porto Arte, v. 19, n. 33, Porto Alegre, novembro, 2012.

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A exposição solidificou os termos de um projeto de vanguarda para o país através da reformulação do conceito estrutural da obra de arte, de seu espaço social de ação e da relação da arte com o público. A obra, não mais definida nos termos tradicionais da linguagem da pintura, da escultura ou desenho, por exemplo, receberia a denominação de objeto.

Foi com a exposição Nova objetividade que Lygia Pape voltou em 1967; e retornou com outro olhar, pois a artista, como sempre, mencionava que não fazia seus trabalhos para vender - além de que, até 1960, não havia um mercado de artes e poucos vendiam - mas sim pelo prazer de trabalhar. Percebe-se que a artista se deixava seguir no mesmo fluxo sua vida pessoal com o fazer artístico, na construção do seu eu, no sentido de como atrelou o seu trabalho a sua relação com o cotidiano. As produções da artista demonstram a sua coragem e irreverência diante de um contexto em que o seu trabalho nem sempre fora visto com naturalidade, afinal sempre priorizou por liberdade em suas experimentações na busca do novo, passando suas ideias não somente pelo discurso formal, mas pela epiderme, pelos sentidos. Nos trabalhos da artista ela denunciava questões pertinentes ao período da ditadura militar e, mesmo quando Lygia Pape dizia não ser militante, reverberava essas problemáticas através de seus trabalhos, num momento em que a censura no Brasil atingia seu auge. Os trabalhos dos artistas dessa época provocavam a curiosidade dos espectadores e alguns documentaram a reação dos transeuntes. “A criatividade intuitiva cede lugar a uma conscientização dolorosa da situação política do país. E, numa busca do controle racional de sua expressão, os artistas procuram um novo caminho na arte conceitual” (MATTAR, 2003, p. 38). Isso também pode se observar quando ela participa da exposição Nova Objetividade, em 1967, com a obra Caixa de Baratas. Segundo a própria artista, foi um alerta à obra de arte institucionalizada.

Fig. 3: Caixa de Baratas. 1967. Itaú Cultural. São Paulo. Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14846/caixa-de-baratas Acesso em: 19 de Mar. 2021.

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No período da década de 1960, os artistas se posicionavam mais e utilizavam seus trabalhos para protestar, como podemos ver no relato de Lygia: Em 1967 retomei as artes plásticas com outro tipo de trabalho, lidando então com coisas vivas, e não sei até onde a influência do cinema atuou nisso. A Caixa de Baratas e Caixa de Formigas foram apresentadas pela primeira vez em 1967, na exposição Nova Objetividade no MAM (MATTAR, 2003, p. 71, grifo nosso).

Percebe-se que a artista pretende chamar atenção para a obra de arte pelo processo de elaboração do trabalho, por isso, a escolha das baratas, como a própria artista diz: “bem grandes e graúdas”. Se hoje, ao pensarmos em baratas, remetemo-nos a algo que causa nojo e repulsa, na década de 1960, foi uma forma de denunciar os acontecimentos marcantes relacionados ao que estava acontecendo no cenário nacional e internacional. Conforme observa Fernanda Pequeno (2017, p. 154), em seu artigo Abjeção e erotismo como procedimentos críticos em trabalhos pós-neoconcretos de Lygia Pape. O autor declarou que: No texto “Artur Barrio: historicizando Situações e Experiências, apresentado na sessão temática, “A obra de arte e a escrita da história: entre memória, corpo e violência”, dentro do XXXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, realizado na Unicamp em 2016, apontamos como no Brasil, o abjeto tomou conotações políticas evidentes e que, durante a ditadura militar, foi uma estratégia crítica para lidar com a realidade, indicando questões políticas, subjetivas e artísticas (tanto no que se refere à produção quanto à sua apreensão pelo espectador, mercadológica ou institucional).

Na exposição Caixa de Baratas, podemos observar como Lygia Pape não se preocupava em seguir normas. A artista não queria fazer um trabalho convencional como outros artistas e nem estava preocupada com premiações, mas sim em chamar atenção para questões relacionadas ao mercado de arte e à política vigente. No mesmo ano da exposição Nova objetividade o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebeu uma grande verba para compra de obras de artes e convidou vários artistas para apresentarem seus trabalhos. Lygia Pape levou sua Caixa de Baratas, mesmo sabendo que não seria premiada. Com a exposição, o que me interessava era mostrar a coisa viva, já que penso em arte e vida como parcelas que se misturam, sendo o meu maior empenho o de me entranhar na vida em termos de arte. Por isso nunca me interessei muito em fazer uma exposição, no sentido convencional de reunir trabalhos no interior de um museu ou galeria. A arte prefiro o ato de experimentar a arte, ou a vida (DOSSIÊ, 2004, p. 108).

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Marcel Duchamp e o readymade A Caixa de Baratas era uma caixa que tinha cerca de trinta por quarenta centímetros, com dez centímetros de altura; era de acrílico e tinha o fundo espelhado, que inicialmente, remetia à leitura crítica da obra de arte morta dos museus. Esse conceito de arte morta dos museus remete a Marcel Duchamp (1887-1968) e ao princípio do readymade que do ponto de vista da arte contemporânea é fundamental. Duchamp, artista francês dadaísta, é reconhecido como o criador do conceito readymade: objetos industrializados que, retirados de seu contexto cotidiano e utilitário, transformamse em obras de arte. Isso ocorre a partir do momento em que eles são inseridos em museus e galerias. Nesse sentido, segundo Archer: Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que definia a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos. [...] Duchamp inventara o termo ‘readymade’ para descrever os objetos fabricados em série que ele escolhia, comprava e, a seguir, designava como obras de arte (ARCHER, 2012, p. 3).

O seu readymade mais famoso foi chamado de A Fonte, um urinol de porcelana, exposto em Nova York em 1917; foi considerado uma afronta ao que seria uma obra de arte, mas mudou completamente a trajetória da arte moderna. A Fonte pode ter sido rejeitada pela sociedade, porém outras pessoas argumentaram que, por ser apresentada por um artista em uma exibição, ganhou outro significado.

Fig. 4: Marcel Duchamp. A Fonte, 1917.

Fonte: https://www.acervosvirtuais.com.br/layout/museuvirtualdearte/images/full/09.jpg

Acesso em 23/03/2021.

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Marcel Duchamp, com seu readymade foi e sempre será referência para artistas e críticos atuais por ironizar o regime de arte, como Lygia Pape fez com sua Caixa de Baratas. Marcel Duchamp na exposição, questionando a arte morta dos museus ao desfigurar espaços habituais e, ao mesmo tempo, levantar outros pontos de vista nos espaços institucionais. A importância de A Fonte de Marcel Duchamp tornou possível a leitura da obra Caixa das Baratas de Lygia Pape, na exposição Nova Objetividade que, segundo Freire (2006, p. 36): Na rota aberta por Marcel Duchamp no começo do século XX, em especial nos anos de 1960 e 1970, são significativos os gestos de artistas contra as instituições, por exemplo, interrogando o sistema de arte em que a estrutura dos Salões desde o século XVII ocupa lugar privilegiado e se mantém apesar de abalos ao longo da história.

Com efeito, Duchamp despertou uma relação com os objetos e com o espectador, definindo como obras de arte objetos improváveis escolhidos pelo artista. Duchamp previu: “o fim da atividade artística não é a obra, mas a liberdade. A obra é o caminho e nada mais” (DUCHAMP apud PAZ, 2002, p. 64). A caixa de Baratas de Lygia Pape deixa claro o que a artista sempre afirmava em entrevistas, que quando fazia seus trabalhos não pensava em vender. Sempre anárquica (MATTAR, 2003), como era chamada por algumas pessoas, dizia que nunca se sentiu obrigada a produzir nem mostrar todos seus trabalhos. Lygia manteve essa postura durante toda sua trajetória artística. Também vale ressaltar que a criação da Caixa de Baratas foi uma forma de expressar sua maneira de ver o mundo sem abdicar de sua liberdade de produzir arte. Sua inserção no design gráfico e programação visual seria uma forma de garantia financeira para se manter e produzir sem preocupações com financiamentos. Muitos artistas ao longo de suas carreiras tiveram que optar por outras atividades em paralelo a suas produções ou mesmo deixar seus projetos por questões de sobrevivência, o que não aconteceu com Lygia Pape. A artista, em muitos momentos, preferia não vender nada, fazer coisas de expressão a se adequar ao mercado de artes vigente. Analisando o contexto histórico das décadas de 1960, o cenário artístico brasileiro era de experimentalismo, pois os artistas tinham comprometimento político, algo característico do período. A identificação estética de Lygia Pape com o experimentalismo foi afirmada por Guy Brett em Brasil Experimental: Arte/Vida, no texto A lógica da Teia (2005, p. 141): Em 1969, Hélio Oiticica caracterizou a obra de Lygia Pape como uma arte da experimentação. Com uma frase extraordinária, descreveu a artista como uma “semente permanentemente aberta”. Permanentemente, porque ela tem gerado continuamente novas ideias, tem investigado diferentes problemas e tem tomado

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iniciativas renovadoras, em vez de se acomodar a um estilo claramente reconhecível que estabelecesse sua identidade (e carreira) como artista plástica.

Conclusão Lygia Pape é considerada uma das principais artistas brasileiras pelo grau de experimentação atingido em sua singular produção e pela constante mutação de suas obras, que podiam ser percebidas em trabalhos de diferentes linguagens. A artista, ao longo de sua carreira, passou pela ditadura militar. Em 1973, foi presa e torturada, episódio do qual não gostava de falar, pois poderia ser entendida como oportunista, não se deixou intimidar e nem utilizou esse fato para se promover, mas sim para continuar utilizando a arte como uma forma de se posicionar. Arte e política se interconectaram em vários momentos na história das produções artísticas brasileiras. O desejo pela liberdade de expressão através de discursos e ações de artistas militantes foram particularmente marcantes no período da ditadura militar brasileira, quando os artistas se expressavam contra o autoritarismo imposto fomentando à cultura através da construção de uma inovadora (e questionadora) ordem estética e social. A tomada de posição frente às questões que emergiam no período, por parte de grandes exponentes da arte nacional, serviu de motivação para a busca de novas perspectivas artísticas, marcando fortemente a relação entre arte e política nos anos 1960. A descoberta de uma linguagem própria, através de suas experimentações artísticas, especialmente a partir da década de 1960, com seu envolvimento consciente com o contexto cultural e político do país coloca Lygia Pape como grande nome da arte brasileira. Seu trabalho questionador na exposição Nova Objetividade, foi de suma importância para a arte brasileira na década de 1960, estimulada pelo contexto político e cultural no qual o país estava inserido, desvencilha a arte do contexto estético puramente visual, através de obras que atuam diretamente na percepção do espectador, a fim de questionar o conformismo cultural, político, social e ético imposto pela ditadura militar, estimulando a análise crítica da realidade. Referências ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. BRETT, Guy. Brasil Experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Livraria, 2005. “Dossiê Lygia Pape Homenagem.” In: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da EBA, UFRJ, 2004. FREIRE, Cristina. Arte Conceitual. Rio de Janeiro, 2006. MATTAR, Denise. Lygia Pape: intrinsecamente anarquista. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. 66


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Arte: potência de Des-órgão-nizar

Maria Eduarda Ramos Gazel 47 Cleilson Teobaldo 48

Resumo: Esta produção dialoga possíveis entre-laços da arte, psicologia e esquizoanálise enquanto ferramentas de fabricação de um Corpo Sem Órgãos, ou seja: de um corpo revolucionário. Para desenvolvê-lo mergulhei em leituras com Artaud; Deleuze e Guattari; Nietzsche; Rolnik, dentre tantos outros. Para além destas leituras assisti a filmes; ouvi músicas; estudei História da Arte; li poesias; vivenciei a diferença; dialoguei com pessoas diversas, e coloquei meu corpo enquanto ferramenta de experimentar e experienciar essa proposta à luz do método cartográfico, permitindo então fazer do processo de produção a própria criação. Dessa forma chegamos não a um resultado, mas a um prelúdio da minha possibilidade de re-sistir enquanto psicóloga e engendrar estéticas outras para uma klínica em promoção da vida. Palavras-chaves: arte, esquizoanálise, corpo sem órgãos, loucura, klínica

A revolução acontece na desordem Encontrei numa anotação de férias no meu caderninho: O termo ‘corpo sem órgãos’ tem me prendido a atenção. Ouvi que um corpo sem órgãos tem órgãos, mas não necessariamente segue a organização de utilização desses órgãos. Posso usar a pele para cheirar e os olhos para saborear. Saudade tem cheiro de amarelo, meu cabelo tem sabor de céu. Posso usar os olhos para pintar e meus ouvidos atentam-se ao cheiro de manhã. A arte me permite isso 49.

O expandir-se e multiplicar-se de um corpo-objeto não binário e não necessariamente feito a servir. De que forma é possível expandir um corpo à transmutar uma f(ô)rma préestabelecida e experienciar a estranheza? Recordo um poema de Viviane Mosé (1997, p.55), que Nayan - amigo que ganhei pela graduação - sempre lê para mim: “Um segundo desdobramento para Maria”. Me reconheço nessa menina Maria quando diz: 47 Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Vila Velha/UVV. Rua Comissário José Dantas de Melo, 21. Boa Vista, Vila Velha – ES. CEP 29102.770. E-mail:ariaedramosg@gmail.com

Professor do Curso de Psicologia da Universidade Vila Velha/UVV. Rua Comissário José Dantas de Melo, 21. Boa Vista, Vila Velha – ES. CEP 29102.770. E-mail: cleilson.reis@uvv.br. 48

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Caderno de notas da autora, 2020.

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Ninguém sabe o que aconteceu com ela aquele dia, nem ela. O fato é que desandou a dizer coisas tortas. Tinha por hábito mudar o nome das coisas. Chamava rio de ruído, passarinho de notícia, e fim de tarde precipício. Manoela, sua vizinha, era saudade. E locomotiva, pássaro ancorado em chão. Dia para ela era olho, e noite sensação. (...) Maria às vezes ficava dias calada, escutando, ela dizia, depois ensinava coisas, como guardar ossos dos mortos bem juntinhos, enrolados em um pano, dentro de uma cesta de palha. A palavra voltaria, um dia, a dar carne aos ossos. (...) Dizem que um dia parou de falar. Ninguém nunca mais ouviu uma palavra sair de sua boca. (...) E morreu.Outros, no entanto, contam que aos poucos foi criando raízes nos pés e asas nas mãos. Nem havia completado onze anos quando, numa tarde, se rebentou em duas: da cintura pra baixo virou árvore e da cintura pra cima passarinho. (MOSÉ, 1997, p. 13)

Numa experiência pessoal, compreendo a arte - também - enquanto ferramenta de vivenciar o que seria a desorganização dos órgãos, ou como diz minha grande amiga Marina: “transformar o dedo em pincel”. O Corpo Sem Órgãos (CsO) propõe um corpo esquizo que desfaz moldes prontos e costura suas próprias roupas, para que caibam perfeitamente em seu corpo singular. Assim como o artista e o louco, são corpos que se lançam e se laçam - se entre-laçam -. Corpos que propõem-se a vestir a loucura e andar com ela por aí: a ponto de por vezes não saber se a loucura é uma roupa que se vestiu ou se é a própria pele. Como propõe Deleuze em O Anti-Édipo: “(...) O passeio do esquizofrênico é um modelo melhor do que o do neurótico deitado no divã.” (GUATTARI & DELEUZE, p. 12, 1972) Enquanto penso esse tema perpasso muitos questionamentos, e vejo a produção de um corpo-arte-fato como potência para romper a lógica capitalística, uma vez que visto a esquizofrenia enquanto revolucionária. E como aguça Deleuze, não que o revolucionário seja esquizo, no entanto “[...] há um processo de desterritorialização que a revolução impede de virar esquizofrenia, e assim dois pólos: a paranóia capitalista, e de outro a esquizofrenia revolucionária.” (DELEUZE, 2013, p.36) Mas, “O que é a loucura?” É A Grande Questão, da qual não encontro resposta que abarque todas as possibilidades de existência dentro desta palavra. Há a loucura vista pelo senso comum, há a loucura vista de dentro de um louco, e há ainda a loucura tantas vezes perversa de uma psiquiatria clássica, que na história da loucura deixa uma ruptura abrupta e sangrenta. Que docilizou corpos, estuprou subjetividades, violentou e matou. E há, por vezes, determinada romantização da loucura, - e com romantização quero dizer um afloreamento que deturpa a experiência - por parte de uma sociedade sádica, que fetichiza a produção de corpos esquizofrênicos para a satisfação de prazeres individuais egóicos- usando do corpo do outro. Fetiche como algo que controla e molda corpos para gozar de seus fluxos aprisionados, atribuindo-lhes sentidos, dizendo-lhes como deve ser. 69


Enquanto artista, sinto que o sistema espera de mim um processo de produção cada vez mais “doloroso” para que tenha valor (ou preço?), para que seja considerado digno de ser chamado “obra”. O contexto capitalístico-cristã pede que sacrifiquemo-nos em prol de uma “benção”. É necessário abster os desejos do corpo para alcançar o “reino dos céus”, e com isso: criando outras formas de aprisionamentos para o corpo do artista, que lhe tem a “loucura” - disfarçada de sofrimento -, imposta como única via possível de acesso a criações dignas de chamarem-se “obras”. E em todo aprisionamento há sofrimento, ainda que ultrajado de liberdade. É necessário sublimar: há uma linha muito fina que distingue um corpo revolucionário - que se desconstrói para re-construir - de um corpo que ruína-se, fazendo assim o caminho inverso ao proposto pelo CsO, - tornando-se dócil -: escravo de si. O artista, de frente a uma sociedade que clama “Faça aquilo que não tenho coragem de fazer, seja louco!” impõe ao corpo uma estética de processo criativo, um modus criare idealizante que pode favorecer o aprisionamento desses corpos. O artista, do ponto de vista do espectador, pode ser assistido como um louco por talvez romper uma estética esperada, ou por vezes, por se propor experimentar e se expressar de forma outra que aquele espectador não se propõe. O que é estranho atrai olhos curiosos. Quanto mais dramático, melhor! Cazuza clama: “Canibais de nós mesmos, antes que a terra nos coma. Cem gramas, sem dramas.” (Barão Vermelho, 1984) Enquanto em outra proposta de ver, questiono-me até onde o artista pode, por vezes, se

inserir

num

processo

de

destruição,

que

se

difere

do

processo

de

desconstrução/reconstrução - como propõe o CsO -, para atender às demandas cada vez mais sedentas da sociedade, que vibra ao assistir o sofrimento e ver o sangue escorrer... O absurdo leva a plateia “à loucura”!

Lisbon Revisited “NÃO: Não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos?

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Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus! Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. (...)“ (Campos - Pessoa com o heterônimo, 1923)

É aqui onde proponho um olhar para a arte enquanto ferramenta de criar para si um Corpo Sem Órgãos: um corpo revolucionário. Que não é escravizado, e também não se escraviza. Um corpo que utiliza das frestas e rupturas como passagem. Trata-se da construção de um corpo pleno e intenso, de resistência para o desejo, que só é possível depois da desconstrução do corpo que foi criado para ser-vir. O corpo do artista é revolucionário quando se mantém vivo diante um sistema que pede seu suor e sangue, sua intensidade esgotante: seu esvaziamento. O corpo do artista é revolucionário quando utiliza da arte para adentrar o sistema e romper as estéticas morais sem que percebam; quando utiliza da arte para gritar, - ainda que um grito mudo - e não se afogar em seus próprios fluxos, possibilitando a criação de outras realidades; conectando corpos que desejam se libertar das prisões do sistema. “A liberdade do artista foi sempre “individual”, mas a verdadeira liberdade só pode ser coletiva. Uma liberdade ciente da realidade social, que derrube as fronteiras da estética.”, disse Lina Bo Bardi (Lima, 2021, p.13). O artista se faz um corpo revolucionário quando recusa o esvaziamento imposto como única via possível de criação, e se recusa a injetar em seus corpos a destruição para acesso a louquificação50 esperada pelos pseudo críticos da arte, e cria sua própria forma de re-existência, sua esquizofrenia revolucionária, seu próprio devir-louco que não necessariamente sofre, é triste, depressivo, denso, e por isso cria coisas magníficas. O artista é revolucionário quando ele pode ser triste, pode ser depressivo, pode ser denso, e também pode ser alegre, pode ser feliz, pode ser sarcástico, pode ser leve, e ver potências criacionais em todos os fluxos. 50

Palavra inventada para descrever o sentimento de volta e meia perguntar-me “sou triste o bastante para ser artista?” advinda pela demanda do mercado artístico - podendo se estender a outros movimentos louquificatórios -.

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Corpografia: corpo arte-fato investigativo Vida atenta por ouvidos sempre dispersos que ressoam vazios, como tudo o que aqui proponho: desconstruir é desvelar o oculto. (BATISTA, 2018, p. 235)

Para desenvolver esse trabalho precisei de um tempo para antes, perceber a noção de desterritorialização perpassar meu corpo, me propondo a criar para mim um CsO. Só assim me foi possível falar sobre. Acredito fazer parte do que Deleuze e Guattari (1972) chamam de “método cartográfico”, o que propõe o observar do processo de construção, para além de prender-se a um objetivo. “Consiste numa aposta na experimentação do pensamento, um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com isso não se abre mão do rigor, mas esse é ressignificado.” (BARROS ET AL., 2020, p. 10; SOARES & HUR, 2017) Arrisco-me a chamar então de corpografia, o método que utilizo para essa produção, que é colocar o pensamento junto a meu corpo enquanto ferramentas de produção, e paralelamente de experimentação; desconstrução e reconstrução; que me possibilita sentir as sensações e exprimir delas todas as potências criadoras. Busco dar sentido aos movimentos que produzem intensidades, de modo que desconstruo outras construções, criando relação entre a perda e possibilidade de criar novos sentidos, ou “dar língua para afetos que pedem passagem” (ROLNIK, 1989), abrindo espaço para “expressar afetos contemporâneos”, onde tornaram-se obsoletos (SOARES & HUR, 2017, p.3-4). Assim como na criação de uma pintura, há detalhes no processo que são, por vezes, mais ricos que o objeto final de criação. Como o misturar da tinta na paleta; o feixe de luz que invade a parede do ateliê numa tarde qualquer e cria outras possibilidades sobre a tela; ou ainda a tinta que derrama no chão e cria uma mancha tão bonita que precisa permanecer ali. Fazer do processo, a obra. Ou seja: fazer da caminhada a própria produção. Manoel de Barros descreve em "Pintura": Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. O que sempre faço nem seja uma aplicação de estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada procurado. É achado mesmo. Como se andasse num brejo e desse no sapo. Acho que é defeito de nascença isso. Igual como a gente nasce de quatro olhares ou de quatro orelhas. Um dia tentei desenhar as formas da Manhã sem lápis. Já pensou? Por primeiro havia

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que humanizar a Manhã. Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as coisas. Porém humanizar o tempo! Uma parte do tempo? Era dose. Entretanto eu tentei. Pintei sem lápis a Manhã de pernas abertas para o Sol. A manhã era mulher e estava de pernas abertas para o Sol. Na ocasião eu aprendera em Vieira (Padre Antônio, 1604, Lisboa) eu aprendera que as imagens pintadas com palavras eram para se ver de ouvir. Então seria o caso de se ouvir a frase pra se enxergar a Manhã de pernas abertas? Estava humanizada essa beleza de tempo. E com os seus passarinhos, e as águas e o Sol a fecundar o trecho. Arrisquei fazer isso com a Manhã, na cega. Depois que meu avô me ensinou que eu pintara a imagem erótica da Manhã. Isso fora. (BARROS, 2006, p.54).

Recordo-me da dificuldade em iniciar a produção deste texto, e em uma das conversas com Cleilson - um grande intercessor dessa produção -, mencionei a incapacidade de escrever por estar vivenciando a experiência da criação de um CsO - é difícil falar de um processo enquanto o vivencio -. Mais tarde vim a entender que a produção de um CsO está sempre em movimento, em intensidades diversas. Trata-se de experimentação. A proposta desta metodologia é fabricar o instante do encontro dos movimentos do pesquisador com os movimentos do território de pesquisa, o que torna o objeto final produzido, algo secundário. Pensando nessa perspectiva cartográfica, Kastrup (2007) aponta quatro variantes na atenção baseada no método de Deleuze e Guattari (1972), que são: o Rastreio, o Toque, o Pouso e o Reconhecimento Atento. O Rastreio situa as pistas de um cenário; o Toque engendra as forças dos possíveis atravessamentos e afetações; o Pouso inicia a criação de território, e o Reconhecimento Atento possibilita o atravessar singular em movimento. A autora chama ainda de política cognitiva um tipo de atenção ou atitude não consciente, que se dá no conhecimento com o mundo e consigo. Ressalta o compreender o mundo enquanto fornecedor de informações prontas para serem aprendidas, e retoma James (1890/1945) - citado por Kastrup (2007) - que reconhece a flutuação da consciência e da atenção quando propõe o conceito de fluxo do pensamento. Compara o fluxo do pensamento ao voo de um pássaro, que desenha no céu em movimentos contínuos, e pára de tempos em tempos em determinados lugares. Voos e pousos diferem na velocidade da mudança, e o pouso é entendido como pouso no movimento, diferente de um pouso do movimento. Voos e pousos possibilitando ritmos ao pensamento e a atenção (KASTRUP, 2007). Aqui o desejo consiste exatamente em apresentar e explorar o processo de produção muito mais do que estabelecer um fim último a ser alcançado, permitindo criar meu próprio

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território de descoberta. Fazer do corpo “terra-tório de passagem” 51. Assim, a finalidade deste trabalho é destrinchar possíveis criações de um CsO através da arte, na descoberta de como fazer-se um corpo revolucionário e não sucumbir ao desejo da sociedade capitalística 52. Afinal, a construção de um CsO não se dá em delírio total, ele também é obra do pensamento. A obra se dará pelo caminho, enquanto utilizo meu corpo-arte-fato para experienciar de forma ativa, respeitando meus voos e pousos.

De olho fechado pra ver melhor

“Eu tô te explicando Prá te confundir Eu tô te confundindo Prá te esclarecer Tô iluminado Prá poder cegar Tô ficando cego Prá poder guiar” (Zé, 1976)

Quando ouvi pela primeira vez “corpo sem órgãos”, não sabia do que se tratava, me imaginei uma imensa massa de gelatina, onde podia sentir as intensidades todas numa massa de matéria não fragmentada. Como criar para mim um corpo sem órgãos? Como transmutar-me em massa gelatinosa capaz de sentir os atravessamentos sem uma organização que rompe os devires? O CsO, é reativado por Deleuze e Guattari (1972) em sua obra, mas à priori expressado por Antonin Artaud (1972), quando em “Pra Acabar com o julgamento de Deus” declara guerra aos órgãos. Faz-se necessária a compreensão do CsO enquanto modus de produção de existência e singularidade, não podendo ser compreendido enquanto conceito ou noção, mas um conjunto de práticas (DELEUZE, 2013). Para criação de um CsO é necessário a ruptura do corpo dócil, criado para servir aos poderes. Por isso, quando Artaud declara guerra aos órgãos, declara guerra ao organismo, à organização sistemática dos órgãos que 51

Como Fortunato (2021) se refere a seu corpo em “O corpo é uma encruzilhada”

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A caracterização da sociedade como capitalística refere-se ao que Felix Guattari e Suely Rolnik (1996) atribuíram como um determinado modo de produção da subjetividade contemporânea pautada na economia do desejo, em uma certa produção serializada da subjetividade e do desejo, utilizando-se das mesmas estratégias comuns à lógica capitalista: controle, ordem, padronização da existência e sujeição de indivíduos.

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aprisiona os devires, podendo ser compreendido como um “grito orgânico” à liberdade e à vida! Trata-se de uma rebelião do próprio ser (SCHÖPKE, 2017). Estando atento e forte às linhas de fuga, que tantas vezes transformam-se em linhas de morte. Quando observamos o corpo contemporâneo, nos aparece uma noção de corpo ativo e potente como uma instância inalcançável, fecundada por receitas em busca de “salvações” para o corpo orgânico. Vivenciamos uma sociedade suscetível à práticas conservadoras que homogeneizam e estratificam toda e qualquer diferença. Nesse sentido pode-se pensar o corpo contemporâneo como encarcerado por práticas que capturam os sentidos através da sociedade, da família, das religiões e da cultura, extraindo dos corpos suas diferenças e multiplicidades (SOARES & HUR, 2017). "[...] Fico eu sufocado; e não sei que ação é essa [...] até sufocarem em mim a ideia de um corpo [...] Me aprisionavam ao meu corpo e contra meu corpo e foi então que eu fiz tudo explodir porque no meu corpo não se toca nunca [...]" (ARTAUD, 1983 citado por Soares & Hur, 2017)

Em sua obra Artaud (1983) - citado por Soares & Hur, 2017 ( p.4) - coloca em pauta três camadas de grande encargo para a promoção de corpos encarcerados: a ideia de consciência/razão que sobrepõe o corpo; a existência de alma/espírito que condena as potencialidades do corpo, e a guerra entre corpo e organismo (SOARES & HUR, 2017). Destrinchemos um pouco mais sobre esses encargos. Em compatibilidade a Espinosa, Artaud critica a compreensão cartesiana que coloca o sujeito enquanto ser duo: razão/consciência, dizendo de um sujeito livre; e de outro corpo, que diz de um sujeito perecível às fatalidades da natureza. Sendo possível compreender a consciência como apaziguadora de angústia por habitarmos um corpo perecível e limitado, ao agarramo-nos a ideia de reconhecimento apenas daquilo que é pensado. Contrariando o discurso científico/instrumental, o poeta fala da importância da “criação espontânea”, e o quão deficiente lhe é a explicação meramente racional da realidade (SOARES & HUR, 2017).

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A crítica de Artaud aos dualismos se estende aos campos metafísicos/religiosos, que separa o homem do corpo quando lança a ideia de alma, em concordância com o que Nietzsche (2008) afirma em O Anticristo: [...] Nem a moralidade nem a religião tem qualquer contato com a realidade. O cristianismo oferece apenas causas puramente imaginárias (“Deus”, “alma”, “ego”,”espírito”,”livre-arbítrio” -ou mesmo “não livre”) e efeitos puramente imaginários (“pecado”, “salvação”, "graça", “castigo”, “perdão dos pecados”); (...) uma psicologia imaginária (incompreensão de si mesmo, incompreensão dos sentidos gerais do agradável e desagradável…) (...) uma teologia imaginária (o “reino de Deus”, o “juízo final”, a “vida eterna”). (...) O conjunto daquele fictício mundo tem sua origem no ódio ao natural (ao real!), e não é mais que a evidência de um profundo mal-estar em presença da realidade… [...] (NIETZSCHE, 2008, p.27)

Ou seja, no contexto cristã-religioso aprendemos a negar e sacrificar o desejo de nossos “corpos pecaminosos” como sacrifício para alcançar o sagrado lugar ao céu, e assim, retiramos do corpo a potência de fluir onde habita. Artaud (1983) citado por Schöpke (2017), compreende o organismo como o funcionamento das coisas - O juízo de Deus -. Acredita que o corpo é inserido no contexto em que vive com formas e funções pré-estabelecidas, de forma a mecanizá-lo, torná-lo organismo, e organizado vem a ser um adversário, invés de uma potência. À medida que se organiza sofre uma automatização da vida, que rebaixa os desejos como potência de existir e fluir no mundo em que vivemos (SOARES & HUR, 2017). Artaud, como colocado por Deleuze e Guattari “conhecia os perigos da desestratificação demasiado brutal, imprudente.” (SCHÖPKE, 2017, p.7). É necessário um rebaixamento da moral, e constante questionamento da realidade em que estamos inseridos, para que as intensidades perpassem por todo o corpo de forma ética que para Espinosa, é saber escolher o que fortalece e o que enfraquece o corpo -. Não se trata de destruição da ordem, para além disso: trata-se de chegar ao próprio cerne da produção de corpo, para rearranjá-los em novas conexões, produzir a si mesmo. (SCHÖPKE, 2017). Os órgãos são portas para efetuarmos os desejos, mas o sentir coabita nossos corpos antes dos órgãos, e o organismo propõe uma organização neurótica e rígida de sentires. (...) E também aqui imaginamos coisa melhor: (...) negamos que qualquer coisa possa ser feita perfeitamente enquanto for feita conscientemente. O “puro espírito” não passa de pura estupidez: trai o sistema nervoso e os sentidos, o chamado ‘invólucro mortal’ e o resto é um erro de cálculo -apenas isso! (NIETZSCHE, 2008).

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Figura 1: Apagamento Cera de vela sobre páginas do livro “O que é Loucura?” 55 cm x 15, 2cm

Na imagem, obra autoral nomeada “Apagamento”. Como na cartografia, o percurso dá-se de forma orgânica, assim como em meu fazer artístico. Acendi uma vela verde sobre o livro e no outro dia vi que o pigmento da vela desceu, criando uma sequência de manchas nas próximas cinco páginas do livro. As manchas grifam palavras organicamente e vão diminuindo, o que me dá sensação de Apagamento, - que é o que a sociedade solicitou, e a psiquiatria clássica se pôs ao (des)serviço de fazer: apagar cada um daqueles que não eram neuróticos o suficiente para viverem aos enquadros da sociedade capitalística -. Ou como chamados por Artaud (1970) - Alienados Autênticos -,

É um homem que preferiu ficar louco, no sentido em que socialmente isto é entendido, do que trair uma certa ideia superior de honra humana. É assim que a sociedade faz estrangular em seus asilos todos aqueles de que quis se livrar ou se defender, por terem se recusado a ser seus cúmplices em certas sujeiras. Porque alienado é também um homem que a sociedade não quis ouvir (...) (ARTAUD, 1970, p.4)

A última mancha se dá na orelha de um personagem desenhado por um dos “esquizofrênicos” que teve sua história apagada, e mais uma vez me lembra a história de Van Gogh, que decepou sua própria orelha, e como bem colocado por Artaud: não suicidou-se, foi suicidado pela sociedade. [...] Van Gogh não morreu por causa de uma definida condição delirante, mas por ter chegado a ser corporalmente o campo de batalha de um problema [...] introduziu-se

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no seu corpo essa sociedade absolvida, consagrada, santificada e possuída, apagou nele a consciência sobrenatural que acabava de adquirir, como uma inundação de corvos negros nas fibras de sua árvore interna, submergiu-o numa última onda, e, tomando seu lugar, o matou. (ARTAUD, 1970, p. 13)

O autor diz que ainda hoje, assim como Van Gogh, somos suicidados pela sociedade. E acredita que não há outro tipo de revolução possível que não com o corpo. Considera que através do corpo é possível gritar o grito de revolta contra o mal que nos acontece. E eu, acredito que através da arte nosso corpo ecoe esse grito de revolta para não mais aplaudirmos de pé a morte dos devires, das diferenças, das intensidades e do nosso - potente “pecaminoso” desejo (SOARES & HUR, 2017). O problema dá-se quando perde-se o movimento de desterritorialização e reterritorialização, e não se produz um corpo ativo. Diria que toda pintura precisa de moldura, não necessariamente de madeira robusta, mas ao menos uma margem às extremidades da folha, que seja, ou ela se dissipa. No entanto, se a moldura for demasiada grosseira, a pintura perde a intenção. Ou seja: “Toda vida precisa de contornos e limites, ou ela própria se esvai. No entanto, se ela é excessivamente contida e limitada, ela perde sua vitalidade e movimento, e é aí que a morte se instala.” (SCHÖPKE, 2017, p. 288). A produção de um CsO não se trata de um convite à loucura e à depravação, diz de uma reinvenção da vida e produção de singularidade, produção de si, criação de corpo pleno.

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Figura 2: Não é louco quem quer Sangue sobre páginas do livro “O que é Loucura?” 30,6cm x 22cm

Na imagem obra autoral de título: “Não é louco quem quer”, um corte em análise. O trabalho consiste em monotipias de chaves de ferro com sangue sobre páginas do livro “O que é Loucura?”, de Frayze-Pereira (1993). Ganhei esse livro depois de faxinar a biblioteca da primeira instituição onde fiz estágio durante a graduação em psicologia, e sempre me captura as marcações nas páginas. Crio possibilidades de ser para um alguém que deixou suas impressões em grifos e pequenas anotações nas páginas amarelas deste livro velho. Agora também deixo as minhas impressões, e nessa tentativa desordenada de marcar a ferro e sangue - ou seja, a ferro duas vezes -, também acabo por grif(t)ar palavras. As chaves ganhei de um tio distante - sempre ganho velharias e esquisitices da família que contribuem para minhas coleções -, são chaves pesadas, e muito antigas. Penso o que essas chaves viraram. Que portas, janelas, ou talvez correntes elas abriram e fecharam, e que cargas 79


históricas trazem. Utilizei sangue, material orgânico, que muda de cor com o passar dos dias, me propondo a pensar o tempo enquanto acompanho a mudança do vermelho vivo pro amarronzado. Os rastros de sangue deixado pelos manicômios e pela psiquiatria clássica na história da loucura, que propunha um olhar classificatório, demarcador de sujeitos e subjetividades, à la alienista, de Machado de Assis, e que nunca vão se apagar. São vestígios de uma história marcada por violência, dor e subjetivação. Quantos corpos-potências foram destruídos nesse massacre por também não corresponderem a uma determinada lógica? Recordo-me de um trecho belíssimo do longa metragem A Febre do Rato (2011), de Cláudio de Assis, onde Zizo - poeta e anarquista inconformado - declara ao Dia da Independência do Brasil: Hoje, no dia da independência, proponho a liberdade. A liberdade e o direito ao erro. Proponho a liberdade e o direito a paz, para pedir, além de teto e comida, anarquia e sexo. (...) Somos anarquistas sim, e estamos aqui porque até a anarquia precisa de tradição, queremos o direito de errar. Direito de errar! Direito de poesia! Não há mal maior quando o mundo não precisa de amor. (...) Precisamos de um não, um não que seja um sim, não há mal maior quando a vontade se impõe a força. Tome poesia pra esse mundo, precisamos é de amor, não de armas, não há mal maior do que a vida, não há mal maior de que esse mundo abismo, abismo mundo. Não há mal maior do que a mentira. Não há! Pra salvar as possibilidades, um acordo que de tão livre não precise ser respeitado. Por sinal, nesse acordo o respeito desaparece por não ser necessário. A palavra vai dar lugar a amizade e não existirá a ideia do ontem e nem a angústia do amanhã e a culpa do presente será diluída nos atos inconsequentes, será igual pra todos. Igual pra rola, igual pro cu, igual pra boceta. (GUIDOTTI, 2016, p. 9)

Não nos deixemos enganar: a desconstrução aqui nada tem a ver com destruição. Apesar de ambas tratarem de algo que rui, penso que na primeira existe a presença de um corpo ativo no processo de ruptura, enquanto na segunda o processo ocorre de forma reativa. É importante diferenciar a produção ativa de desconstrução, de uma destruição niilista (SOARES & HUR, 2017). Trata-se de um corpo em constante processo de desterritorialização e reterritorialização para viver o pensamento revolucionário. No processo de desconstrução e reconstrução, alguns corpos se extraviaram para a zona da destruição, por isso coloquemos em linhas claras: aqui o proposto é pensar a desconstrução como um movimento implicado e implicante do corpo que desconstrói, ou seja, uma desconstrução ativa na fazedura, diferente do corpo que é desconstruído. Implica na responsabilização pelo que se constrói no lugar, pelo que se produz de possibilidade em meio à desconstrução. Por isso desterritorialização e reterritorialização são processos conectados e indissociados. 80


Para suprir a demanda do “ser artista” habitando um corpo contemporâneo, vemo-nos por vezes fadados a carregar o peso da loucura, da depressão, da tristeza no corpo. Por essa razão, menciono a questão trazida por Deleuze e Guattari: “Será que é possível captar a potência da droga sem se drogar, sem se produzir como um farrapo humano?” (DELEUZE, 2013, p. 75) E eu questiono: É possível dar um beijo na boca da loucura e não levá-la para casa? É possível ser artista, beber direto da fonte e permanecer em um corpo pleno? É possível elevar nossas intensidades à potências máximas - não só para nos expressarmos -, mas por vezes para chacoalhar uma sociedade que goza através do outro em seus lugares confortáveis na platéia da vida, enquanto o artista se lança e vive o corpo revolucionário, e se coloca em posição de voyeur para a sociedade capitalística que tenta docilizar seus corpos por meio de si próprios? “(...) Será que é possível fazer movimentos de desterritorialização ou, simplesmente experimentar novas potências e intensidades sem precisar ser um drogado, um louco ou um pervertido? Como se abrir pra fora sem se perder no caos?” (SCHÖPKE, 2017, p. 288) É um infeliz e recorrente contexto em que o artista extravia seu corpo para a zona da destruição. E o que encoraja tal destruição? Seria uma visão muito cartesiana responsabilizar apenas uma esfera. A destruição do corpo do artista pode advir de um adensamento de coisas que envolvem sua existência: suas experiências, o contexto em que está inserido, sua história, seus desejos, suas relações, dentre tantas. Mas quero dizer, num contexto contemporâneo social, onde vivenciamos uma lógica capitalística-cristã, que impõe aos corpos dos artistas que alcancem níveis extraordinários das sensações e as exprimam poeticamente. Em busca da “loucura revolucionária”, por vezes, o corpo do artista escorrega e cai na loucura que aprisiona, que fabrica uma máquina produtora de consumidores passivos. Um corpo que realiza todos os desejos é um corpo escravizado, embora em outro viés do capitalismo, que de alguma forma habita ainda um lugar de apoderação. Por isso o pensamento deve ser vigilante, não se pode dormir demais, nem entrar em demasiado delírio. Como canta fortemente Elis Regina: Atenção! Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso (...) É preciso estar atento e forte “Atenção! Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso (...) É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte... (GIL & VELOSO, 1968)

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Deleuze e Guattari pedem atenção para o valor da prudência na construção de um CsO, visto que sem prudência - ou sabedoria - não cria-se um corpo pleno e revolucionário. Prudência no sentido do agir pensado, saber usar doses, compreender quando se avança quando se recua. O corpo não pode se ver desconectado do pensamento, toda experimentação de corpo é também uma experimentação do pensamento. E o pensamento advém de uma coesão de forças, bem como o corpo. Não se deixe enganar, entretanto: um corpo partido entre o Eu e consciência, é um corpo da moral, o CsO é outra produção (SCHÖPKE, 2017). Lembro da declaração de Rolnik (1966) ao participar da proposta “Baba Antropofágica" de Lygia Clark em 1994, e descreve como sentiu-se: (...) O corpo sem órgãos é esta matéria aformal de fluxos/babas, que experimentei num plano totalmente distinto daquele onde se delineia minha forma, tanto objetiva quanto subjetiva. Eu disse matéria "aformal" e não "informe", porque o que vivi ali não foi simplesmente uma ausência ou indefinição de minha forma, mas sim um além da forma. Um plano habitado por uma fervilhante agitação de fluxos de saliva, de linhas, de bocas, de mãos, em movimentos de atração e repulsa, produzindo constelações - uma pletora de vida onde um feixe desconhecido de sensações foi germinando, impossível de ser expresso na forma em que eu me reconhecia. Foi quando me estranhei: algo em mim deixara de fazer sentido. Só fui me apaziguar quando senti ganhando consistência um novo corpo, um novo eu, encarnação daquelas sensações produzidas pela mistura dos fluxos/baba. (ROLNIK, 1996, p. 75)

“Pássaros e leões nos habitam”, diz Lygia - são nosso corpo-bicho. Corpo vibrátil, sensível aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos ambientais que nos atravessam. Corpo-ovo, no qual germinam estados intensivos desconhecidos provocados pelas novas composições que os fluxos, passeando para cá e para lá, vão fazendo e desfazendo. De tempos em tempos, avoluma-se a tal ponto a germinação que o corpo não consegue mais expressar-se em sua atual figura. É o desassossego: o bicho grasna, esperneia e acaba sendo sacrificado; sua forma tornou-se mortalha. Se nos deixarmos tomar, é o começo de outro corpo que nasce imediatamente após a morte (ROLNIK, 2015). Reticenciar Vi-me em conflito: me compreendi enquanto artista - que foi um intenso processo de compreensão que ser artista muitas vezes diz mais sobre o modo de criação de existência, do que de produção de fato -, e vendo chegar perto o título de “psicóloga” me questionei se caibo nessa psicologia, que por tantas vezes também funciona como fábrica de sujeitos, indivíduos e

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estruturas. Por entre as leituras esquizoanalíticas, vi frestas e rupturas que permitiram um pouco de luz entrar. Por isso, considero este ponto não o final conclusivo de meu trabalho, mas justamente o contrário: o começo, a abertura, a porta de entrada, a fresta a ser arregaçada. Não se pode ser completamente reativo ou completamente ativo. É sobre ser atravessado e agenciar os atravessamentos, fazer deles potências e não destruição. Não tratase de um corpo desesperado por realizar desejos e da produção de perversões, apologias às drogas e delírios sexuais. Só se produz um CsO se entramos em guerrilha com os poderes interiorizados em nós, que vivemos por reproduzir sem questionar. Nessa guerra, se faz fundamental produzir um corpo pensante, que pensa inclusive nos desejos, e que possa criar novas possibilidades de produção, de existência, de vida. Contrário ao que podem pensar, um corpo desesperado por prazer não é um corpo que vivencia os desejos em potência máxima. Em geral lhes falta o desejo, que se esvazia na busca sedenta por um objeto que lhes foi roubado - o próprio desejo. Nietzsche resume: “A mãe da devassidão não é a alegria, mas a ausência de alegria.” (SCHÖPKE, 2017, p. 301) É necessário ver o corpo enquanto máquina de guerra, potente e criadora. Trata-se da criação de um devir inumano (...) que não quer dizer tornar-se animal (até porque isso já somos). Trata-se antes de desfazer-se da ordem humana no corpo para encontrar nossas próprias zonas de intensidade, nossos grupos, ou seja, as populações e espécies que nos habitam. Só assim é possível alcançar a criação de um CsO pleno e revolucionário. (SCHÖPKE, 2017, p. 290)

Durante a vida escutei muito que “vivo no mundo da lua” ou que “preciso ser mais realista”, e me pergunto: que realidade é essa? É possível haver uma realidade em comum a todos os corpos? Fernando Pessoa disse que “(...) reconhecer a realidade como uma forma de ilusão, e a ilusão como uma forma de realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil.” (Pessoa, 2019¸ p. 90) “Fiquei louca”, - como muito já ouvi - por me recusar a viver uma realidade inventada por outrem para mim, ao invés de me permitir criar as minhas próprias? considerando obviamente todo meu contexto de inserção -. Tudo em nós se apresenta corrompido, primeiro por uma moral transcende que torna a própria razão refém (e também um instrumento privilegiado) deste desejo de proteção e segurança máximos. E segundo, pelo niilismo que decorre do adoecimento da própria vida que tornou servil (...) É preciso que o CsO seja uma resposta ao corpo que grita, à vida que não pode mais, ou seja, que ele represente a libertação da vida que foi encurralada em nós desde a mais terrena infância, e não a sua destruição. (SCHÖPKE, 2017, p.301)

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No fim agradeço o olhar de estranheza advindo de quem vive um corpo reativo aprisionado pelo sistema ou pelo organismo. O diferente é sempre visto com estranheza, e esses olhares me confirmam que meu corpo se propõe num movimento contrário. Como bem colocado por Trindade (2017): “Sonhar com a média ponderada é consagrar-se a mediocridade!” E me recuso a sucumbir! Deve ter algo a ver com a quantidade de vezes que ouvi “Lindo Balão Azul” quando criança: (...) Eu vivo sempre no mundo da lua Tenho alma de artista Sou um gênio sonhador E romântica... (Arantes, 1996)

Todo corpo tem potencial para ser “gênio” - nem gosto dessa palavra apesar de ter um gato de nome Aladin 53 -, precisamos nos libertar das amarras e dar vasão aos nossos fluxos, implicando a eles as potências máximas, mantendo sempre o pensamento ativo para que permanecemos um corpo pleno e sobretudo revolucionário! “Há em todo demente um gênio incompreendido, cuja ideia de luzia na cabeça provocou medo, e que só no delírio pode encontrar uma saída para os estrangulamentos que a vida lhe prepara.” Artaud (1970). Entendo por gênio então alguém que em seus delírios encontra brechas e possíveis 54 para ventilar. Para que entre ar e com isso: movimento, vida, possibilidades de existência e criação de si. Começa então, meu trabalho de arregaçar essas frestas e deixar clarear o espaço escuro, com isso quero dizer: começo agora o trabalho de criar para mim, e para minha proposta klínica um CsO, uma clínica que não é Consultório. Fazer de meu corpo máquina de guerra em prol da vida, da multiplicidade, da multiplicação dos afetos, e em benefício da alegria. A angústia em não saber como traçar algo que me possibilitasse perpassar a arte e a psicologia clínica sem parâmetros, técnicas e análises já pré-estabelecidas - acredito na arteterapia e sua potência, mas ainda não se tratava disso -, chego ao delírio possível do “Ateliê Experimental” ; ou “Klínica Ateliê”, - ou palavras outras que deixo em aberto brechas para que cheguem - onde proponho desenvolver minha klínica dentro do meu ateliê, 53 54

Personagem da Disney, “gênio” que mora na lâmpada mágica. “[...] um pouco de possível senão eu sufoco…” Deleuze sobre Foucault.

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utilizando a arte e a esquizoanálise enquanto ferramentas de produção. Guimarães Rosa usa sempre palavras certeiras: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é no meio da travessia.” (Rosa, 2019, p.46) Em minha proposta, ainda sem nome, de experimentações psico-filosóficas-artísticas, quero que o cliente tenha liberdade para escolher onde sentar, ou ficar em pé, ou deitar... Ocupar o espaço usando o corpo de forma ativa. Desejo criar um espaço de troca, onde o tempo também não necessariamente é medido por hora e minutos, mas por intensidades. E compreendo que esta pode ser alcançada em minutos, horas, anos ou dias, de forma orgânica ao construirmos relações singulares. Por acreditar que a linguagem não dá conta de todas as demandas, desejo um espaço múltiplo que abarque todas as formas criação e produção de existência. Desejo romper a estética clínica no que diz respeito à organização do consultório - esse nome por si só -, a forma pré-estabelecida no espaço, onde o cliente tem definido onde deve se posicionar, e de forma reativa ocupa seu espaço, pois creio que dessa forma, estaria corroborando com o espaço criado pelos padres 55. Aposto na existência, que é também apostar na vida. (...) Produzir a própria existência a partir de operações que se realizam na mais pura imanência e potência do ser. Sim, a construção de um corpo sem órgãos é uma questão de potência de vida e, fora de qualquer aspecto moral, significa simplismente: criar um corpo mais forte, mais resistente e mais alegre para a própria vida. (SCHÖPKE, 2017, p. 304)

Por fim, gostaria de deixar uma provocação.O processo de escrita me foi um desafio contrário ao que propõe meu trabalho. Levando em conta as diversas formas de expressão, critico aqui a invalidação das outras tantas e super validação da escrita como única via possível de comunicação “formal” 56. Veja bem, frizemos: não existe uma oposição à escrita, pois essa particularmente me ocupa um lugar de muita valia, me oponho aqui a validação única da escrita enquanto forma de expressão formalizada.

55 56

Como os psicanalistas foram referidos por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo (1972) Ou diria “moralmente correta” ?

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CAPÍTULO III: PALHAÇARIA


Chatô’s Circo Çhow: uma experimentação virtual em palhaçaria

Miguel Levi de Oliveira Lucas 57

Resumo: A senda do palhaço é múltipla e particular. O palhaço pessoal é um caminho solitário, mas também um caminho solidário. Na constituição do espetáculo Chatô’s Circo Çhow, realizado no primeiro semestre de 2020, em parceria com a diretora e palhaça Clara López, experimenta-se o despertar de uma prática, onde tudo que acontece é inédito. Através da pesquisa, dos ensaios e das reflexões, percorre-se o trajeto feito pelo artista em direção ao encontro com a prática de seu palhaço, além das lições tiradas de um processo de direção que tem como objetivo a confecção de um projeto individual com dramaturgia própria. Palavras-chaves: Palhaçaria; Processo Criativo; Arte; Teatro

Diário reflexivo de um palhaço iniciante em tempos de pandemia

1. O PALHAÇO E O ESPELHO Existe uma semelhança entre o processo de escrita e catar feijão. Era o que dizia o poeta João Cabral de Melo Neto. Porém, ao contrário do catar feijão, em que se tira a pedra, na escrita o processo é o inverso. Retira-se o que boia, guarda-se o que afunda, (MELO NETO, 2020). Esse afundamento das palavras, das experiências aponta, pelo menos para mim, uma certa preciosidade daquela vivência que a justifica enquanto objeto de escrita. Ao mesmo tempo, trabalhar com pedras é sempre uma tarefa árdua e complicada. Para esculpilas, colocando-as no papel, paga-se um preço. A começar pelo fato de que muito material será descartado, não será aproveitável no entalhe do texto, segundo que o entalhe é feito à unha, custa as mãos daqueles que o fazem. Quando se escreve, sangra-se. O processo criativo em palhaçaria que proponho compartilhar é também uma escrita. Ou, e aqui faço uma aposta, um processo de escritura. Sigo as trilhas deixadas por Puccetti (2008) de que o palhaço é algo pessoal, intransferível e extremamente custoso para ser 57

Palhaço e discente do 10º Período de Psicologia da UEMG-Divinópolis. E-mail: miguelevol@gmail.com

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realizado. Quando se compõem em palhaçaria, seja o texto dramatúrgico, a partitura corporal, as energias que envolvem o espetáculo, paga-se um preço. É o preço comum à toda criação. Como diria Lacan (1962-1963/2005) é preciso deixar ali a sua libra de carne. Assim, optarei não por um avançar cronológico, mas por estabelecer uma narrativa mais temática, tratando de certos aspectos em primazia de outros. Se trata, além de um didatismo, de uma aposta de que essa construção permita melhorar a visão sobre o processo. Ao invés de fragmentar os aspectos, reuniremos eles em tópicos comuns que permitem uma jornada mais organizada. A constituição e criação do espetáculo Chatô’s Circo Çhow sucedeu-se no ano de 2020 pouco após meu retorno do curso da “Menor Máscara do Mundo Palhaça/Palhaço” ministrada por Ésio Magalhães, do Barracão Teatro. Havia sido uma experiência, no mínimo, frustrante. Eu adoecera durante a jornada até Campinas, não me recuperando totalmente, o que, em termos de corpo, me atrapalhou um bocado. Ao mesmo tempo, durante as atividades do curso, não conseguia me encontrar enquanto praticante, tinha medo, achava a experiência ao mesmo tempo que maravilhosa, apavorante. Estar em um lugar com atores/palhaços selecionados com um mestre de tamanho renome era algo muito grave para mim, jovem artista do interior de Minas Gerais. Em essência, das várias ressonâncias que o curso teve em mim, fora a de que o palhaço, acima de tudo, por mais doloroso que seja, deve ser divertido. É preciso deleitar-se com suas não-conquistas existenciais. Um desafio. Necessário, porém. De modo que, embora tenha sido um curso muito difícil para mim, fora muito proveitoso e deu bons resultados. Uma outra ressonância do curso foi o contato que estabeleci com a diretora equatoriana Clara López, da companhia Teatro del Camino. Havia feito uma oficina com ela em 2019, buscando aprofundar certos aspectos do esboço que eu tinha de meu palhaço. Através de uma certa amizade e conexão artística, coisa que acho fundamental para o (des)envolvimento de qualquer trabalho. Após a oficina de 2020, entrei em contato com Clara para que fizéssemos um trabalho de criação de palhaçaria voltada para a rua. Até aquele momento, não sonhávamos com pandemia e com a triste realidade que se aplacaria, a do fechamento da rua. Contato feito, partimos para o processo. Foram características propostas por Clara e por mim acolhidas, que trabalhássemos com duas coisas em mente: seria um processo de cocriação, não apenas direção. E que buscaríamos, de nosso jeito, estabelecer uma dramaturgia palhacística própria, traço importante dos trabalhos desenvolvidos pelo Teatro del Camino. 90


Os encontros aconteceram, a princípio, no final de semana. A primeira vez, fora presencial, no começo de março de 2020, mas a segunda já se tornara online. Proposta pensada por nós dois, com o objetivo de não parar o que já havia sido desenvolvido até ali. A arte, por si, não para. Os artistas, talvez. Mas após reflexões, chegamos a conclusão que parar o trabalho ali seria prejudicial não somente para o processo, mas para nós também. A bem da verdade, carecia eu de uma certa rodagem, era minha primeira vez trabalhando sozinho e praticamente não tinha muita experiência de cena. Havia um roteiro prévio, escrito com base em números comuns da palhaçaria. Eram esses, o dos pratos de equilibrismo, de bolinhas de malabares e um número envolvendo saltos acrobáticos com uma pulga imaginária. Não havia, ali naquelas cenas, um trabalho mais elaborado. A coisa estava bem crua. Mas como diz o palhaço Chacovachi (2015), não existe regra na rua, os números não são de ninguém. Logicamente, existe uma ética. Você pode copiar números, desde que não os apresente no mesmo lugar de quem você os copiou. Os números ali serviram como estopins que através do trabalho foram se modificando e se tornando genuinamente do palhaço que os apresentava. Nesse encontro presencial, que aconteceu em um sábado e domingo de março, mapeamos como as coisas estavam comigo e meu palhaço. Essa prática, a da palhaçaria, exige uma certa constância, é preciso que se pratique a entrada no estado, sua permanência ali. Como eu tinha pouca experiência, isso se apresentava como um desafio. Porém, nas primeiras rodagens do que era o esqueleto dramatúrgico do espetáculo, percebemos que havia ali um desejo em cena, uma vontade de estar palhaço. Através dessas experimentações foi possível mapear aspectos das personalidades de Chatô, dando direção para o trabalho de criação do ator e da diretora. Esses aspectos que aparecem, quase nunca são intencionais, pelo menos no começo. Mas com o olhar observador de quem busca, é possível torná-los intencionais, pois muito comumente são eles que tornam o palhaço risível e único. Puccetti (2008) dirá que o palhaço se dá através da relação com o público e que o riso acontece à partir disso, e não anteriormente. Que é através da exposição de si que é possível fazer graça. Esses aspectos nem sempre são negativos, mas são características, trejeitos que quando se apresentam através do corpo do palhaço, de sua ação, se tornam cômicos. Justamente porque nos levam para dentro de sua lógica. Não se trata de uma praticidade. O palhaço não é, quase nunca, prático. Pelo contrário, é puro desejo. Faz aquilo que bem entende do jeito que pensa ser o melhor. Como define Puccetti (2008, p.122): “o palhaço não 91


tem uma forma fixa e definida, ele é um conjunto de impulsos vivos e pulsantes, prontos a se transformarem em ação no espaço e no tempo.” Assim, enquanto fazíamos nossas experimentações cênicas de criação, encontrávamos, muito espaçadamente, maneiras do palhaço de lidar com o imprevisto. Lidar com aquilo que não estava dentro de um texto formalizado. Dessas maneiras saíam as características que foram se apontando como aspectos importantes a serem levadas em conta na hora de produzir um texto dramatúrgico mais formalizado. A charlatanice, por exemplo, é um lócus muito comum na palhaçaria brasileira. Ela brinca com o imaginário do vendedor ambulante, daquelas pessoas que abriam rodas nas praças para vender tônicos, cremes e todo o tipo de coisa. Lembro que certa vez, na minha cidade, paramos no centro da cidade eu e minha mãe, para assistirmos uma dessas cenas. Como nossa cidade é de médio porte, mas ainda muito interiorana, artistas e vendedores como esses não são tão comuns. Assistimos a apresentação e eu queria, porque fora convencido, comprar o creme milagroso que curava todo tipo de problema. Obviamente minha mãe não deixou e voltei para casa chorando. Entretanto, o vendedor/artista que se apresentava ali me entregara uma coisa muita mais poderosa. Eu saía daquela experiência cativado pela oratória, pela maneira de falar daquele homem. Que sabe que seu produto não funciona como ele pinta, que sabe que as pessoas também sabem que não funciona daquele jeito, mas que sabe o que está à venda não é o produto, mas a sua apresentação. E que as vezes até compartilha isso com a plateia. Ninguém ali é enganado, todos pactuam algo, algo da experiência cênica de rua. De alguma forma era isso que eu queria comprar, mesmo sem saber na época. Eram as falas e feitos que aquele homem narrava, não sua pomada. Sempre achei essa coisa do palhaço charlatão, mágico de araque, muito engraçada. Penso eu que era um sinal, uma identificação de algo que era meu. Tanto é que surgiu nos trabalhos com Clara. Ao mesmo tempo surgia um aspecto, não necessariamente oposto, mas que ia em outra direção. O nome Chatô não é sem motivo. Diz de um significante que me acompanha desde a adolescência. Em meus grupos de amigos, sempre ouvia um: “nossa, mas você é chato, hein?” não era uma ofensa, porque eram sempre ditos de maneira brincante. A verdade é que me agradava ocupar uma posição de instigador, de contrário. De modo que sempre colocava as nossas discussões e relações em posições dialéticas. Não se trata de um

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chato de galochas, daquele que espalha rodas. É mais pra um chato de estimação, aquele que é bom com todo mundo, mas mais de duas horas de convívio diário cansa. Então embora essa outra característica não seja oposta, claramente se encontra em outra posição, outra parte do espectro da personalidade do palhaço. E não há nenhum problema nisso, porque se o palhaço é a representação de características daquele que o faz, ele é em sua integralidade diverso, não é necessariamente uma coisa só ou outra. Não se enquadra o palhaço, (PUCCETTI, 2008). Até porque isso é tolher dele a possibilidade de explorar outros caminhos. Que levam a outras paragens, as vezes nem sempre imaginadas, mas que sempre estiveram abertas enquanto possibilidade. Por isso quando encontramos no Chatô o uso de frases de autoajuda para tentar convencer quem lhe assiste, não estranhei. São aspectos da minha maneira de ver o mundo, minha lógica. Quando uso dessas frases motivacionais não é porque creio nelas, mas porque as acho cômicas. É, pessoalmente, uma sátira a esse tipo de discurso. Encontrei aspectos como o “exótico” expressão que uso todas as vezes que tento estabelecer algo como de fora, diferente, mas sempre cômico. O exótico de Chatô na verdade é o mais comum da minha essência. Diz, talvez, de um não-lugar de si, de não se encaixar totalmente. Sensação que é comum a todos, mas que se mostra matéria-prima para a produção e construção de um palhaço. Assim como minhas vontades e referências culturais. Usamos no espetáculo, principalmente, músicas de origem judaica, cigana e árabe. Essas referências estão ligadas a culturas que admiro e gosto, como também se relacionam com aspectos do meu humor. Na época pesquisava à fundo o humor judaico em paralelo com a psicanálise, para a escrita do meu trabalho de conclusão de curso. Que de uma maneira ou outra, reflete na construção cênica. Principalmente por ser um humor mais intelectualizado, que muito me agrada, bem como a música que também admiro. Bem como a cultura cigana que, embora tenha as problemáticas de sua representação, constitui um certo imaginário das pessoas no que concerne ao artista de rua. Não só isso, mas também por características físicas, como o cabelo grande e a barba, decidimos explorar esse aspecto em relação a construção dos aspectos visuais do espetáculo. O último aspecto é uma característica que se mescla entre o palhaço e o atuante. Tratase de um certo gosto pelo humor mais intelectualizado. Aquele que transcorre pela fala e faz graça pelo non-sense ou por uma questão de lógica, ou até com a ironia. Esse último aspecto foi explorado de uma maneira bem natural, à medida que as partes cômicas iam aparecendo 93


nos ensaios de criação, de modo que não foi algo realmente pensado, mas simplesmente surgiu pelas características que tenho. O trabalho do palhaço é, acima de tudo, um trabalho autobiográfico, por mais que se atravesse por outros caminhos, é uma escrita cênica de si.

2. APRENDIZAGENS Como compartilhar aprendizados técnicos, teóricos sobre a palhaçaria de uma forma que reflitam não somente a informação, mas a maneira como o conhecimento se decanta naquele que o aprende? Tentarei aqui alcançar alguma coisa, não sendo exatamente nem um completo relato detalhado do que discutíamos, conversávamos e fazíamos, mas a seleção do que dessa experiência causou algum tipo de ressoamento em mim. A começar pelo começo, os aquecimentos. Durante minhas jornadas por oficinas, percebi o quanto a ativação corporal era para mim importante. Gostava do esforço, do suor, de estar em um estado de fronteira, entre o que a obediência do corpo e a obediência ao corpo. Burnier (2009) em seus estudos apontou a importância do corpo para o ator, mas também para o palhaço. Tendo ele como marco importante da palhaçaria no Brasil, muitos mestres de palhaçaria utilizam-se dessa técnica. Não sendo diferente, Clara tendo experiências com Puccetti e outros mestres, tratamos de trabalhar com esse meio de acesso ao palhaço. Rodei, saltei e dancei por horas. Dessa experimentação, encontrávamos movimentos, tendências, maneiras de se portar no mundo que dizem de uma certa “dança pessoal”. Esse trabalho de expurgar as energias superficiais para alcançar aspectos mais profundos é um dos pontos trabalhados no A arte de ator do Burnier (2009). Em consonância com essas anotações e sistematização dos meus movimentos, Clara adicionou o aspecto de equilíbrio e desequilíbrio que nos leva, de uma maneira bem sagaz, para um caminho do palhaço. Que é, por essência, alguém que se encontra sempre nessa linha seja porque suas pernas fraquejam de cansaço, porque seus sapatos são grandes demais. O fato é que o palhaço, enquanto esse ser que se apresenta tem em sua constituição simbólica essa característica. E ao estimularmos isso em todos os níveis de trabalho (inferior, médio e superior), temos uma conexão que se concretiza, metamorfoseada em corpo. Quando entramos em contato com esse corpo desequilibrado podemos olhar para os arredores com um outro olhar. O olhar de quem é torto, não se encaixa e cai. Para mim um dos maiores vexames que alguém pode passar é cair na rua, em frente a pessoas desconhecidas. O palhaço é justamente aquele que cai, se levanta e olha para as pessoas

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dizendo: “putz, tropecei” compartilhando com todos os seus embaraços. A partir desse olhar, entramos em seu universo, em sua lógica. Cada palhaço vive a sua fantasia, seu mundo mágico e inconsciente, onde as coisas acontecem de acordo com essa lógica constitutiva. Assim, o palhaço pode ser um exímio mágico em seu universo, mas quando confrontado com a realidade – e é daí que surge a graça – percebe-se que ele não é tão bom assim, mesmo que não perceba. E se percebe, joga com isso do seu jeito, maliciosamente ou estapafurdiamente. E estando em seu universo, que é compartilhado não somente pelas suas atitudes, mas pela cena que ele monta, seja no palco, na rua, na praça ou no hospital, cada objeto ali deve, pelo menos assim trabalhamos, ter algum sentido, um significado que o conecte com esse mundo interno daquele que representa. Porque são essas coisas somadas, a atitude, o figurino e a cenografia, que vão conduzir o público, lenta e cuidadosamente para partilhar dessa experiência. O palhaço é, entre várias coisas, um ser que gera empatia. É através da identificação do próprio ridículo no palhaço, como aponta Libar (2008) que o público ri. Essa perspectiva de partilha foi importante para a constituição do espetáculo. Pois me ensinava que eu não estava sozinho em cena, estava em cena juntamente com o público. O que não quer dizer que todo o espetáculo fosse participativo, enquanto um recurso, a participação do público deve ser bem pensada ou acaba enfarando as pessoas, fazendo com que elas se afastem, quando na verdade o que se quer é justamente o oposto, quer que elas se aproximem cada vez. O que em tempos de pandemia e pós-pandemia é um problema e uma revolução. Ao pensar o espetáculo, o artista deveria ter em mente – e aqui relembro, que aponto apenas a minha visão enquanto experimentante das artes cênicas e da palhaçaria, que não existe necessariamente uma regra, mas convenções. A que optei, em parceria com a diretora, foi essa – as sensações que gostaria de experimentar junto com o público, o que ele quer levar. Se a arte cômica é um fazer que necessita de ritmo, ou timing, o excesso de números participativos acaba gerando um tempo morto, visto que cada pessoa reage de um jeito e é preciso ter isso em mente quando constrói-se um espetáculo. Então, esse compartilhamento vai além das sensações. A grande maioria das coisas é partilhado. As vitórias e as derrotas. Tudo isso é escancarado ao público, porque embora não se trate de efetivar a participação do público ativamente a todo número, trata de passivamente, construir o espetáculo com eles. E é com o público que se constrói o ritmo do espetáculo, conduzido pelo palhaço. E é precisamente nesse ponto que entra a importância da pausa. Pausa na ação? Não, mas a pausa que existe entre o 1 e o 2 e depois entre o 2 e o 3. Ritmo é 95


fazer as coisas certas no tempo certo, o que não é feito somente na piada, mas em toda a construção da cena. Ao manter o ritmo na construção da cena, vai se ensinando ao público sobre aquele momento, domesticando-se o riso, até que o afeto culmine em gargalhada geral ou aplausos. O que me leva a outro aspecto importante aprendido naqueles dias. De que o teatro de rua exige do artista um tempo mais concentrado, de modo que ele seja preciso. Trabalhe e construa com o público de maneira clara e rápida, mantendo a tensão e a atenção do público. Na rua é importante ser didático. Ser esclarecedor na rua é uma questão de sobrevivência. São aspectos do espaço que interferem e afetam a criação. É preciso manter o interesse das pessoas em você, já que existem diversos competidores como os vendedores de comida, os brinquedos, o próprio acelerar da vida cotidiana. Basicamente tudo. É preciso manter o público próximo, em uma bolha cênica que faça com que a sua concentração esteja ali, no centro da cena, não nos arredores. Porém, não se trata de uma proximidade física. Ficar próximo demais do público as vezes pode assustar. Como Freud (1919/1976) aponta no seu texto O Estranho de uma certa infamiliaridade existente em algumas experiências. Coloco o palhaço um pouco nesse balaio. É como se, ao se aproximar, perdesse o encanto criado, o pacto feito, e rompesse com alguma espécie de combinado. Assim como deve se evitar confrontações com o público. Aprendi isso tanto nas experiências com Clara, como também no curso que fiz com Ésio Magalhães, do Barracão Teatro. Violência não tem graça. Assim, ao colocar-se em antítese com todo o público, cria-se uma barreira, não um ponto de contato. O artista que decide trilhar o caminho do teatro de rua precisa estar ciente que não será um caminho fácil e que é preciso ter fé no seu fazer. Não é uma questão de mística, mas de acreditar no mundo do palhaço que ali foi criado. Ao acreditar na potência desse universo criado, cria-se nele a possibilidade de que outras pessoas também acreditem. O encantamento do público só é possível através do encantamento do palhaço sobre si mesmo, seu mundo, sua existência. Do jeito que ela é, com seus defeitos e qualidades risíveis. Para que essa crença seja tangível ao público é preciso se conectar com ele, através da ascensão ao estado de palhaço, que gera, devido a sua natureza, a empatia que nos conecta naquele círculo místico que é a roda feita pelo artista. Assim, tendo já estabelecida a sua fé no seu trabalho, o artista pode usar de vários recursos para se conectar com as pessoas que assistem aquela figura meio estranha, que não montou seu espaço, que ainda não se 96


apresentou formalmente. Assim, utilizamos da música enquanto um chamado para as pessoas à roda. Através de cantigas populares recuperadas do cancioneiro do Vale, como Gente que vem de Lisboa, Beira mar novo, e outras músicas como Flor, minha Flor também de caráter popular, mas tornada conhecida pelo grupo Galpão, criou-se um começo de espetáculo. Onde através das canções cantadas e tocadas, em meio a montagem do cenário e espaço cênico, entre trocas de olhares e acenos durante a troca de figurino, e maquiagem artista e públicos se tornam cúmplices de um mesmo fenômeno, o espetáculo de rua que vai acontecer ali.

3. MONTAGEM DE CENA, DESMONTAGEM DE SI Nesse pedaço do texto tentarei remontar de uma maneira mais linear, seguindo o roteiro do espetáculo, as descobertas que tivemos e as decisões que tomamos que nos colocam a estrutura do espetáculo ao fim do processo criativo. Não chegamos no fim do espetáculo ao fim do processo, visto que o espetáculo se cria com o público, se modifica com ele e nunca é o mesmo quando apresentado mais de uma vez. O que é de se considerar é que tendo o espetáculo se constituído durante o ano de 2020, até o momento não conheceu uma experiência concreta e inteira de contato com o público. Houveram experimentações curtas na modalidade online e na modalidade presencial drive-in, mas não permitiram elas uma interação totalmente relevante para considerar que o espetáculo fora posto à prova. A princípio escolhemos imagens corporais que poderiam ser feitas durante um breve período de alongamentos. Pensando que já existem certos olhares, meio de lado para a figura que aparece na praça carregando suas coisas, parcialmente maquiado, com roupas chamativas e instrumentos musicais. Dali partimos para a necessidade de ativação compartilhada anteriormente e que permeia todo o trabalho. Optou-se pelo uso da corda de pular para a realização desse ativamento. Assim, junto ao exercício, somaram-se certas peripécias, truques de corda, retirados de treinamentos de boxeadores e do próprio exercício de pular corda com acrobacias. Após esse momento, conta-se que pessoas estarão olhando interessadas. Em comunicação com elas, avisa-se que haverá um espetáculo e que precisamos juntar pessoas para que ele aconteça. Seguindo a divisão de espetáculo proposta pelo palhaço Chacovachi (2015) após essa pré-convocatória, acontece a chamada convocatória e farsa de começo. Tocam-se as músicas, arma-se o espaço cênico, troca-se de figurino, o que por si só já é um 97


ato cômico, até que se consiga, estando pronto, começar o espetáculo. Nesse momento em especial, o palhaço se apresenta, apresenta o espetáculo, chama as pessoas e diz que irá apresentar o espetáculo, mas é preciso ensaiá-lo. A abertura, aponta Chacovachi (2015) é um momento crucial de conexão. Ela dita, de alguma forma, a energia que permeará o resto do espetáculo, por isso, é importante fazê-la de modo enérgico, chamando a plateia para perto de si e aproveitando da energia deles para chamar outros passantes que possam se interessar pela apresentação. Durante essa farsa de começo o palhaço ensaia com a plateia o início do espetáculo. Há aí, claramente um engano, o espetáculo já começou, mas está em seu aquecimento. Assim, na experiência que tive durante a apresentação realizada de maneira drive-in, pude testar um pouco essa construção que fizemos. No roteiro digo que apresentarei o artista e o espetáculo e na deixa certa a plateia deve ir à loucura. Divido o público em três partes, ensaio com cada uma separadamente e depois fazemos “pra valer”. A experiência com os carros foi extremamente interessante. Embora estivesse mais distante das pessoas, ao substituirmos os aplausos e gritos por piscadas de farol e buzinas, preenchemos um espaço que em outra circunstância ficaria vazio. Por mais que seja possível fazer algo de maneira online, não existe nada capaz de substituir a presença física, mesmo que seja ela distanciada. A profusão de barulhos de buzinas, mesclados com as luzes e com os gritos das pessoas e os meus gerou aquela cumplicidade, que se manteve durante o resto da apresentação. Criando a conexão, mesmo que fragilizada pela distância, necessária para que houvesse uma comunicação. Eu estava ali em intensão e em intenção, juntamente com o público. Naquele momento divide-se também, através do texto, a responsabilidade com o público. É preciso plateia para que o espetáculo aconteça, mas assim como também é preciso que a plateia seja ativa, participe, esteja na mesma direção. Direção apontada e seguida pelo artista.

4. UMA COMÉDIA EM TRÊS NÚMEROS O primeiro número é o que comumente é chamado de “número de virtuose” onde o artista apresentará uma de suas diversas habilidades. No caso, a habilidade escolhida foi o equilibrismo através dos chamados pratos chineses. Esse número e a estrutura seguida inicialmente por ele é de comum uso dos artistas circenses e de rua, já vi pelo menos dois palhaços utilizarem, sendo eles o palhaço Viralata, mais conhecido como Rodrigo Robleño e

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o palhaço Zabobrim, também conhecido como Ésio Magalhães. É um equipamento simples e sua técnica consiste em basicamente colocar o prato para girar em cima de um palito de madeira. A comicidade desse número, para além da dramaturgia, está ligada à sua escolha. Quando decidi utilizar os pratos, não sabia manejá-los. O que rendeu além de várias trapalhadas, uma dificuldade para constituir a dramaturgia, pois os pratos simplesmente não obedecem àqueles que não lhes são íntimos. Assim, durante todo o processo até o culminar do espetáculo, fiz um treinamento paralelo com o equipamento. O palhaço, por mais que mostre uma inabilidade com os instrumentos, na verdade deve ser extremamente hábil. O que se mostra, na verdade não é uma inabilidade real, mas uma brincadeira. Finge-se não saber, mas se sabe. É preciso um treinamento do ator, da máscara séria em qualquer habilidade que o palhaço se propõe. Depois que dominada a sua intenção, sua técnica, passa-se a utilizá-la no estado de energia do palhaço, o que também demanda mais treinamento. Começamos o número brincando com imagens, utilizando-se da frase solta por mim em um dos ensaios “circo é imaginação” apelo ao público que use sua imaginação enquanto crio imagens de situações, objetos e animais com os palitos. Partindo da esgrima, atravessando para tocar bateria, transfigurando-se em borboleta até culminar no encontro entre um palito e um prato. A partir daqui se estabelece uma relação de desafio, de habilidade. Como se aquela atividade fosse extremamente difícil. O que não deixa de ser meia verdade. Assim, realiza-se os truques de virtuose, lançando o prato para cima e fazendo-o cair em cima do palito sem parar de girar. Resgatamos novamente um clássico clichê do teatro de rua e do circo ao dizer que sempre “no circo gostamos de desafio, por isso faremos algo mais difícil” acrescentando então outro palito, para realizar trocas de prato entre palitos. Após a empreitada, acrescentamos outro prato. E realizamos o que é, tanto para palhaço quanto para ator, a parte mais desafiante do número, quando acontece o lançamento e troca de lugar dos dois pratos. Finalizando com essa apoteose, encerramos enquanto estamos ganhando. E partimos para o segundo número. No segundo número exploramos os aspectos visuais, musicais e culturais do imaginário sobre a cultura árabe – evitando, obviamente, cair em algum tipo de clichê que reproduzisse algum tipo de opressão. Pelo contrário, acentua-se as semelhanças dos absurdos acontecidos no oriente médio com os absurdos acontecidos aqui – através da utilização da

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cultura do faquirismo, criamos um número. Esse sim, com referências da internet e outros artistas, mas com texto e soluções cênicas nossas. É, dos números, o mais autoral e original. Esse segundo número foi chamado de “O Faquir” ou número do Faquir. E aproveita esse tipo de figura que ficou muito popular nos meados do século XIX e XX, quando havia uma certa visão de misticismo envolta nas tradições culturais do Oriente-médio. Brincando com esse imaginário, tentamos reimaginar o que seria um palhaço que é também faquir. Procuramos instrumentos que poderiam ser interessantes de se usar, passamos pelo uso de meia calça e agulhas, mas não funcionou. Quando se trata de rua, as coisas precisam ser visíveis. Até que certo dia, enquanto arrumava algumas coisas no varal de casa, comecei a brincar com os pregadores. Percebi que esse utensílio, além de representar uma certa reflexão sobre o trabalho, por ser um instrumento que temos comumente em casa e pode ser usado por qualquer um, reflete também o estado em que o mundo se encontrava, com todos dentro de casa, precisando arranjar modos criativos para as coisas. Em essência, jogamos o olhar do palhaço sobre os afazeres cotidianos e encontramos diversas possibilidades de brincadeiras. É possível encontrar no cotidiano várias coisas que se ressignificam na mão do palhaço. E a ressignificação é um dos maiores recursos da palhaçaria, é através da imaginação que é possível criar. O jogo com os pregadores começou explorando as potencialidades do corpo, onde eles poderiam ser colocados de modo que causassem espanto e riso. Chegamos após um tempo experimentando nos pregadores presos na barba e no rosto, caminhamos para as mãos e chegamos por fim nos mamilos. Ao longo de todo o número a comicidade é feita através do inesperado, principalmente na utilização dos pregadores. Isso se dá principalmente porque a atmosfera do número é construída em cima de uma certa sacralidade. O palhaço apresenta o ambiente, o orientemédio, como um lugar místico, quente e perigoso. Sempre acrescentando comentários sobre as teocracias de lá, as ditaduras e fazendo paralelos com a realidade brasileira. Os pregadores são anunciados o tempo todo, com um misto de mistério e alerta, enquanto “Instrumentos mortais” que serão apresentados ao público. Após a utilização dos prendedores – e essa parte do espetáculo é mais voltada para a interação do corpo do artista com os objetos – utiliza-se um último recurso de assombramento e absurdo. Uma língua falsa, que é perfurada por uma enorme agulha. No jogo, prende-se a agulha na língua e quando se tenta retirá-la, a língua sai junto.

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O absurdo e o ridículo caminham lado a lado nesse número e acho que faz parte das perspectivas que tenho para o humor. O tempo todo brinca-se com a ideia de veracidade dos atos do palhaço. O Chatô’s Circo Çhow trabalha muito com essas ideias, do charlatanismo às avessas. Às avessas justamente porque faz-se questão de mostrar para o público isso, embora não pareça. A comicidade da dramaturgia se encontra nesse desvelamento do palhaço. Quando mostramos ao público que estamos “tentando” enganá-lo, ele se diverte, pois enxerga as tentativas já fracassadas do palhaço de passar-lhes a perna. Finda-se o segundo número desnudo da parte de cima da roupa, com mamilos no rosto, na mão esquerda e nos mamilos. Embora não tenha sido pensado para representar alguma coisa, essa cena para mim é, no mínimo, interessante. Não deixa de ser uma metáfora do espetáculo e daquilo que sentimos enquanto realizamos um processo criativo. É doloroso como os pregadores no rosto e nos mamilos, é expositivo como tirar a roupa, mas termina gerando alguma coisa de encantamento, de fascinação. Tanto para quem faz, como para quem assiste. Embora o número do faquir seja muito ligado ao corpo, ele carrega também a oralidade tão tradicional do palhaço brasileiro, (CASTRO, 2005). O que mescla as diversas aprendizagens que tive ao longo de 2019 como também todo o processo de construção com a Clara. Do faquir, caminhamos para um momento em que aviso novamente sobre o chapéu e que haverá mais um terceiro número. É uma retomada de um roteiro mais tradicional de palhaços. O número que envolve uma pulga amestrada. Além de uma retomada de um clássico, é também uma outra oportunidade. Explorar outros aspectos e culturas. O Chatô’s Circo Çhow enquanto um tradicional espetáculo de um homem só traduz o imaginário do artista viajante que precisa fazer de tudo para ganhar seu sustento. Nessa parte específica optamos por explorar um pouco mais o aspecto da cultura cigana, principalmente porque me interessava estudar um pouco mais sobre isso e explorar o imaginário que temos pelo Brasil. Também nas pesquisas encontrei diversos “circos de pulgas” de diversos artistas que trabalham esse mote de maneira muito genial, bem como descobri toda a história que envolve essa tradição, as pulgas amestradas reais e sua consequente extinção após a melhora de condições de vida das pessoas. Sabemos hoje que quase não existem mais espécies de pulgas de humanos, por isso optamos por uma pulga amestrada imaginária. A interação se dá principalmente com o palhaço e com uma sacola, que torna mais clara a interação do palhaço em cena com a pulga. 101


Seguindo as táticas propostas por Chacovachi (2015) mantemos o terceiro número como um cunho mais participativo, dependendo mais da interação da plateia. Na rua, ao menos me parece, ao mesmo tempo que se depende do público, é muito perigoso contar com ele. Por isso deve se ter cautela ao utilizar o recurso da interação enquanto um carro chefe de umespetáculo. No caso, há as interações iniciais da pulga com o palhaço, até que se passa para a necessidade de um voluntário, que segurará a pulga, que se chama Cleiton, para fazer um lançamento acrobático da plateia em direção ao centro do espaço cênico e cair na sacola. Cleiton não obedece aos sinais dados por seu parceiro e salta antes do combinado, bem como salta e foge, parando em alguma outra pessoa da plateia. Essa interação da plateia foi toda pensada para quando retomássemos as atividades em rua, coisa que ainda não aconteceu. Porém, na apresentação feita no festival drive-in que realizei, pude experimentar um pouco do número, verificar seus tempos, suas graças. É verdade, que não foi uma experiência ideal, mas já é matéria suficiente para pensar. A coisa em si, funciona e é engraçada, mas funciona justamente por ser a última parte a ser trabalhada dentro da estrutura do espetáculo. Porque já tem a plateia consigo em seu mundo imaginativo. O palhaço, mesmo que posto enquanto um charlatão, já tem a simpatia da plateia e consegue, ao menos em teoria, conduzir o imaginário coletivo para seu universo. De modo que todos se divertem, mesmo sabendo que a pulga não existe, mesmo sabendo que o drama do palhaço é exagerado. Só o é assim, porque o palhaço é assim. Seu mundo é aquele. Sua realidade também é aquela e com a plateia isso só se amplia, uma espécie de avanço da energia que cria esse mundo. Ele existe através do palhaço, mas também através da plateia, visto que os números cômicos de palhaço geralmente pedem a inserção do público no mundo do palhaço. A problemática desse número é que sua adaptação para uma apresentação virtual, pelo menos na estrutura em que foi criado, seria bem improvável. E talvez não funcionasse, sendo necessárias modificações em sua estrutura fundamental, retirando as interações com a plateia. A questão do espetáculo é que ele foi pensado enquanto um trabalho para a rua e assim fizemos questão de manter, na esperança de que seria possível voltar aos trabalhos de rua o quanto antes. Não voltamos. Mas seguimos tentando apresentar as partes do espetáculo que são adaptáveis ao virtual. O que não é, segue guardado. Esperando sua hora de retorno, junto comigo. Como diz o personagem Beckett na obra Beckett y Godot de Radrigan (2009, p.25):

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Beckett : Esto fue un teatro, el lugar donde una vez se originó la revuelta. Volverá a serlo. Ellos lo saben. Y esperan. Godot : ¿Los fantasmas? Beckett : Los actores. Están acostumbrados a esperar, no cejarán, no pueden. Se han exiliado en oscuros oficios de sobrevivencia, pero saben que en algún lugar ha nacido, o nacerá pronto, alguien que volverá a tocar el corazón de sus semejantes y las ruinosas salas volverán a florecer, siempre ha sido así... 58

Esperamos para que o espetáculo e o processo continuem. Embora o processo comece na pandemia, e esta dure mais do que deveria, me parece uma insistência política em apostar na volta do uso da rua, do espaço público. É importante apostar que após todo o caos que vivemos, poderemos contar com o público nas praças. Que tanto ele quanto nós, artistas, precisaremos dessa troca. E desses encontros criaremos outras possibilidades, alegrias e novas formas de resistência. Ser alegre no mundo de hoje, tão violento e carrancudo, é um dos maiores atos de resistência. Pelo menos é o que tenho aprendido com o palhaço.

5. UM BOM PALHAÇO NÃO CHORA Os números e trabalhos aqui descritos em termos temporais, acumulam algo em torno de 35 minutos. O chapéu, que é o fechamento do espetáculo dura ali em torno de seus 7 minutos. E das partes que desenvolvemos, eu e Clara, é uma das partes que mais tenho carinho e prazer em fazer. A primeira delas é por mostrar esse palhaço que quer receber dinheiro – o que eu acho engraçado e divertido – mas que também muda de tom, deixa escapar o seu ar mais poético. O que tentamos construir é um discurso cativante, emocionado que tem também como função explicar o momento do chapéu para o público da minha cidade, que não é acostumado com esse tipo de abordagem dos artistas. De uma certa forma, explicamos o porquê de se utilizar o chapéu, porque isso é uma tradição e como isso é importante para o artista. Penso eu que o ato de passar o chapéu representa muitas coisas. Representa um ato de confiança (ou loucura) do artista em seu público e em seu próprio trabalho. Esse aspecto, para mim, é o mais marcante na construção dessa parte do texto. Houve aqui um processo de elaboração do “ser palhaço” ou “estar Tradução livre: Beckett: Isto foi um teatro, o lugar de onde uma vez se originou a revolta. Voltará a sê-lo. Eles sabem. E esperam Godot: Os fantasmas? Beckett: Os atores. Estão acostumados a esperar, mas não pararam, não podem. Se exilaram em escuros trabalhos de sobrevivência, porém sabem que em algum lugar nasceu, ou nascerá, alguém que voltará a tocar os corações de seus semelhantes e as salas arruinadas voltarão a florescer, sempre tem sido assim... 58

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palhaço”. Considero que a criação do Chatô’s Circo Çhow foi uma etapa da minha jornada em que eu me autorizava a encontrar o nariz vermelho. É por isso que no discurso do chapéu me remeto a tradições antigas, resgato o imaginário dos artistas de rua, que sempre estão de chapéu, que viajam pelo mundo. É como se, nesse discurso, houvesse um pedido. Pedido de uma benção daqueles que vieram antes. E ainda é um ponto em que digo, olhem, sou um artista de rua, sou um palhaço. Seja para a plateia – maior testemunha daquilo que se encarna ali em frente, desde a colocação da maquiagem, o figurino – ou seja para mim mesmo. Me utilizo da música de Alceu Valença em homenagem a Chacrinha para fazer minha saída. Ao cantar que um bom palhaço não chora Alceu nos lembra que o palhaço é, também, um símbolo de resistência. É alguém que insiste no riso quando toda a perspectiva o levaria a chorar. Não é um riso de alienação, de quem se recusa a enxergar a realidade, mas de alguém que a enxerga e que apesar disso, continua insistindo na potência criadora e empática do riso. Freud (1927/1974) define o humor de maneira bem certeira ao dizer que ele é rebelde, não resignado. E fazer uma peça, mesmo que sem nenhum objetivo explícito de política, torna-se um ato político a medida que ela é pensada para ser feita na rua, em praça pública. Esses versos de Alceu e o encerramento do espetáculo como um todo, para além da necessidade de levantar recursos financeiros, é uma mensagem do autor para si mesmo e para os outros. De que há ali um germinar de um artista, de uma resistência. De alguém que insiste em apostar na poética, no riso. Esse espetáculo é um ato de aposta, de ousadia, não enquanto um feito narcisista, longe disso. Mas existe um abismo entre o fazer artístico amador e o fazer que caminha para um certo profissionalismo. E não somente entre qualidades do material, mas da maneira com que se enxerga o que sai do final do processo criativo. Posso não ser palhaço o tempo inteiro, mas quando sou inteiro, sou palhaço. É ali, naquele estado que enxergo que a senda de um circo show itinerante é a minha senda, não por destino, mas por escolha.

Referêcias BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica a representação / Luís Otávio Burnier – 2ª ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. CHACHOVACHI, Fernando Cavarozzi. Manual y guia del payaso callejero. La Plata: Yanantuoni, Javier Miguel, 2015. 104


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CAPÍTULO IV: PSICANÁLISE


Psicanálise: entre inquietações est(éticas) e clínicas Miguel Levi de Oliveira Lucas 59 Maria Carolina de Andrade Freitas 60 Resumo: Andar por campos afora. Entrelaçar Psicanálise e arte, a partir das inquietações estéticas e clínicas. Vaguear pelas linguagens para, por meio das hiâncias, constituir différence. Estilizar o pensamento em obra de arte aberta e êxtima, estrangeira. Relações da Psicanálise com a estética, pensamento imanente da arte, como um presente fora de si, que acessa campos e domínios. Uma revolução molecular? Uma revolução poética, estética, político-clínica? Entrecruzamentos. Transformação. Acontecimento. Esteticidades de um inconsciente transmutado em obra de arte, inacabada, que convoca o analista-artista em mover-se eticamente em testemunho impossível. Palavras-Chave: Psicanálise, Estética, Obra de arte, Clínica.

Se seguirmos as figuras ímpares da psicanálise, como Freud e Lacan, perceberemos que eles andaram muito mais fora de seus campos do que dentro. O que a princípio se apresenta como um paradoxo, e de fato o é, é também totalmente explicável. Freud, enquanto neurologista, interessava-se por arqueologia, escultura e literatura como aponta Gay (2012). Simultaneamente se interessou por hipnose e pela histeria e assim começou a constituir o que hoje é a psicanálise. Ao mesmo tempo, em diversos textos da sua carreira se dedicava à outras temáticas que lhe interessavam, com temas mais culturais e antropológicos. Com Jacques Lacan, a mesma coisa, utilizava-se de diversos outros conhecimentos, como a linguística a princípio e a matemática, em seu fim para desenvolver seu pensamento. O próprio Lacan, como aponta Rivera (2005) no início de sua carreira como médico e pretenso analista, fora mais reconhecido nos cafés parisienses onde florescia o surrealismo, do que no próprio meio médico. Porém, apesar de lerem textos de outros campos e se dedicarem a estudá-los e entendê-los, tudo o que produziam apontava para um único lugar: a psicanálise. Esse é um caminho proposto tanto por Freud, quanto posteriormente por Lacan, de um movimento psicanalítico que trabalhe mais fora de si do que dentro. Se a análise clínica 59 Discente do 10º Período de Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG/ Divinópolis. Contato: miguelevol@gmail.com 60 Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG/ Divinópolis. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Contato: maria.freitas@uemg.br

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acontece mais fora de sessão, em suas hiâncias, do que nos quarenta minutos tradicionais, porque a constituição da psicanálise se daria de forma diferente? Propor uma guinada para fora, para o estrangeiro, para o éxtimo, é nada mais que seguir os passos daqueles que inauguraram os discursos psicanalíticos. Não com a intenção de começar algo novo, não se tem essa pretensão, mas a de contribuir para uma prática da psicanálise que seja diferente, não-ortodoxa talvez, mas que tem em seu fundamento o espírito livre que é proposto pelos grandes psicanalistas, que não tinham intenção de serem grandes, mas sim de fazer seu próprio caminho dentro da sua terapêutica. A psicanálise é feita muito mais fora de si do que dentro. O que justificaria uma incursão por outras paragens, mesmo que não uma viagem necessariamente inédita, mas talvez com outros objetivos. Objetivamos com esse ensaio esmiuçar o que já vem sendo apontado por alguns pensadores de dentro e de fora da psicanálise, mas que enxergam nela um diálogo muito rico e válido com a estética.

Assim, tentaremos entender um pouco mais das afirmações de

Rancière (2009) sobre o quanto a revolução da estética possibilitou a Freud a criação do inconsciente, associando-as a outras questões que contribuem para a hipótese proposta pelo pensador francês. Bem como também pretendemos refletir sobre a clínica psicanalítica e suas relações com a estética. Enquanto um exercício do pensamento, o ensaio se mostra como um excelente instrumento. Além disso, utilizar-se de uma forma de escrita que pode ser considerada mais livre e até mesmo mais literária, condiz com o estudo da estética. Pensar que Freud foi um pensador fora de seu contexto, não nos parece correto. Muito menos considerar que sua obra rompe com tudo que havia até então. Pelo contrário, como aponta (Kon, 2014, p. 31): “a obra freudiana é única, mas dialoga com outras contribuições de sua época, e constitui, nesse diálogo, o espírito de sua época.” Ainda assim rompe com uma sucessão de acontecimentos ditos clássicos, o que denota seu caráter subversivo e seu aspecto revolucionário, ao mesmo tempo que continua uma outra série de mudanças que sucediam em sua época e região. De fato, a chamada Viena fin-de-siècle fora um polo extremamente importante para a modernidade e não é possível pensar que um momento tão efervescente não afetasse Freud, (KON, 2014). Embora haja uma certa controvérsia em torno do quanto o meio em que Freud estava inserido, essa Viena à beira da modernidade, acreditamos como fazem Rancière (2009) ao apontar as mudanças no pensamento até a inauguração do inconsciente freudiano, bem como faz Mezan (1982) apud Kon (2014) ao salientar que a psicanálise é fruto daquilo que Freud 108


era. Um judeu em um mundo cada vez mais antissemita, um médico pobre em uma sociedade meio aburguesada, meio aristocrática e um cientista em um período que o que imperava era o respeito aos artistas. Por mais que Freud não se identificasse com esse mundo, e ele realmente deixa isso claro em várias de suas cartas, como também ao analisarmos suas produções sobre o seu período. Ele fala, majoritariamente, de artistas de tempos já passados, como Michelângelo, Shakespeare, Leonardo da Vinci, E.T.A. Hoffmann e quase não comenta sobre os artistas contemporâneos, inclusive dizendo em uma carta a Pfister 61 que se considerava um desses “pequenos-burgueses” que não conseguia entender muito de arte. Não nos parece ser possível de separar o autor de seu contexto, onde questões sobre o eu, as mudanças da modernidade e da própria sociedade vienense eram tão pujantes. O que Jacques Rancière (2009, p. 13) propõe é que para além do contexto da época de Freud, havia também todo um desenvolvimento dentro do pensamento sobre a estética que culmina nos anos de 1900. Ou seja, além do contexto da Viena, o surgimento da Psicanálise estaria também além da clínica da histeria: o pensamento freudiano do inconsciente só é possível com base nesse regime do pensamento da arte e da ideia do pensamento que lhe é imanente. Ou ainda, o pensamento freudiano, para além de qualquer classicismo das referências artísticas de Freud, só se torna possível com base na revolução que opera a passagem do domínio das artes do reino da poética para o da estética.

Ou seja, de que é somente com a constituição da estética enquanto um pensamento da arte – proposição que surge com Schelling, dos Irmãos Schlegel ou de Hegel, (RANCIÈRE, 2009) – que se estabelece como uma ideia paradoxal, essa do conhecimento confuso, de um pensamento presente fora de si. Assim, Rancière (2009) nos diz que a estética não é um novo nome para dizer da arte, mas que é um de seus campos, um de seus domínios. Rompe-se, de certa forma, com a lógica positivista de enxergar as produções humanas. Ora, ao que Freud estabelece que os pormenores são mais importantes que o grande enunciado, têm-se aí um achado. A grande regra freudiana de que não existem "detalhes" desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética (Rancière, 2009, p. 36).

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Sigmund Freud, correspondências de amor e Outras Cartas (1982)

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É nesse ponto que se encontra a grande ruptura freudiana, a de romper com um classicismo e entrar em consonância com essa nova ideia do pensamento no não-pensamento que tanto se apresentava à época. Quando Freud utiliza-se da literatura e de outros tipos de arte para dizer do Inconsciente, ele não os utiliza como material, mas como testemunhas, como afirma Rancière (2009) de que havia algo obscuro, algo escondido na maneira de pensar do ser humano. Freud publica em 1900 a sua A Interpretação do Sonho como paradigma do Inconsciente. Ora, Kundera (1985, p.64) dirá: “Esses sonhos eram eloquentes, mas, além disso, eram belos. Esse é um aspecto que escapou a Freud na sua teoria dos sonhos. O sonho não é apenas uma comunicação (às vezes uma comunicação codificada), é também uma atividade estética”. Não pretendemos nos ater à afirmação de Kundera de que a questão estética dos sonhos escapou a Freud, talvez tenha de fato escapado, ou talvez existisse na época a necessidade de estabelecer a questão do conteúdo que o sonho trazia, para depois dizer da forma. O que nos importa nessa afirmação é justamente apontar o quão em contato estava o surgimento da psicanálise com as questões estéticas, ou seja, com atividades que tangenciam ou até mesmo se apresentam como questões da arte. Fica claro que o inconsciente estético e o inconsciente psicanalítico são, afinal, dois conceitos diferentes, mas que de toda forma possuem seus encontros e caminham juntos em certos momentos. A relação de Freud com as artes e a maneira com que opta para interpretá-la é muito diferente da subversão que há na criação do seu inconsciente. A bem da verdade, o que faz Freud ao analisar as obras de arte é entrar dentro da visão representativa da arte, justamente o tipo de pensamento que ele havia rompido, segue na ideia de que ao observar os detalhes, percebe os traços de algo que está escondido (RANCIÈRE, 2009) ao invés de enxergá-lo como algo do indizível que se expressa ali. A psicanálise começa em Freud, mas não termina nele. Como todo grande pensador, os pensamentos freudianos são abertos, polissêmicos. Esses tipos de escritos carregam consigo todos os tipos de feridas. Essas feridas abertas como propõe Birman (2019) dão a possibilidade que aquele que lê os textos psicanalíticos se aproprie deles e crie a partir e com eles outros pontos e enodamentos que contribuam para a psicanálise. Quando se fala das relações possíveis entre a Psicanálise e as artes, visto que são elas os objetos da do modo de pensamento da estética, é preciso ter em mente algumas coisas. A primeira delas é que não se trata de utilizar-se da obra de arte para fazer um diagnóstico do artista ou para validar algum conceito. Como Rancière (2009) nos lembra, as obras não são 110


provas, são testemunhas. Esse reducionismo, como aponta Kon (2012) não só assassina a arte enquanto uma produtora de um tipo diferente de linguagem que produz, ao seu modo, conhecimento, como também mata a Psicanálise em sua recepção e fecundação. Mais ainda, acaba de vez com a possibilidade de haver ali uma dupla fecundação, em que esses dois campos, mesmo que diferentes, e nem sempre convergentes, possam dialogar. Em termos pessoais, a relação de Freud com a arte era bem particular. Rivera (2005) aponta que curiosamente Freud não falava tanto da arte de sua época. Suas análises se dirigiam, de fato a alguns autores de sua época, mas também se voltava mais para os clássicos do renascimento. A verdade é que Freud não gostava muito da arte que estava surgindo depois dos anos de 1900. Embora houvesse ali uma troca muito profícua para ambas as partes. A deglutição, realizada pelos artistas no geral, da Psicanálise não agradava ao velho vienense. Mas ao mesmo tempo, Freud nunca deixou de estudar, ser afetado e relacionar-se com a arte. Mostrando que por mais que não seja possível um discurso unificado, porque arte e Psicanálise produzem conhecimentos diferentes, são discursos ora dissonantes, ora consonantes, é possível que juntos causem uma estranha melodia, capaz de incomodar e agradar o ouvido ao mesmo tempo. Partindo do entendimento proposto por Kosovski (2016) de que se trata de conceber a interseção, os meios e pontos que se juntam, desses discursos, é possível tirar algo da relação Psicanálise e arte. Mesmo que seja preciso entender que por serem distintos, não é possível esperar continuidade em suas contribuições e entroncamentos. Um caminho sem saída, ainda é um caminho e dele se tira algo, mesmo que seja a noção de por onde não se é possível ir. Guatarri (1992 citado por Caiafa, 2000) aponta que a arte é como um campo criador. Um fluxo que se encadeia com outros. De acordo com Caiafa (2000, p. 69) “... o campo da arte e do pensamento se apoia e passa por singularidades de todos os tipos e procedências”. A natureza paradoxal do pensamento estético, daquele que sabe e que não sabe simultaneamente. (Ranciére, 2009), coincide não somente com o paradoxismo do inconsciente freudiano, mas também com a sociedade atual. Prensada entre o narcisismo e a multiplicidade, como apontou Laureano (2012). Essa sociedade é uma continuação da lógica que surgiu no século XX, que transcorreu na pressa das inovações, em que se seguem invenções sucessivas que vão se substituindo rapidamente (Caiafa, 2000). E a verdade é que todo processo criativo, criador demanda tempo. Existem certas histórias, certos textos que demoram para fazer efeito. Assim como o processo da criação de uma obra. Esse tempo, esse 111


espaço de reflexão, é perdido quando se entra em um contexto produtivo. O que só torna mais relevante uma discussão que caminhe no sentido oposto, que aposte na criação enquanto uma força de transformação desse contexto (Caiafa, 2000). Ao pensarmos as relações possíveis entre a Psicanálise e a estética, obviamente temse a arte no meio. Retomamos novamente a proposição de Rancière (2009) de que ao se utilizar das coisas da arte através da estética é possível contribuir com a Psicanálise também. Não é uma apropriação do discurso, mas de uma navegação entre os conceitos, seus afluentes. Como nos lembra Kosvoski (2016) esses extravios que vem das incursões psicanalíticas em volta da arte e da criação acabam criando algumas distorções. Distorções estas que não apenas diminuem a Psicanálise, transformando-a em uma analisadora da obra e do artista, uma espécie de psicobiografia. Contudo, criam-se também desvios importantes que caminham em direção à práxis analítica. A possibilidade de diálogo entre Psicanálise e estética é uma aposta em um fazer psicanalítico criativo, como aponta Kon (2012) trata-se de um fazer que seja reflexivo, contrapondo aquela visão arqueológica da Psicanálise. Em que se propunha alcançar uma grande verdade sobre o ser, enterrada nas camadas e mais camadas frutos do recalcamento, que enterrava algo no fundo. Ter em mente que a Psicanálise é um dos espaços que permite criar um ambiente para um tipo de criação é importante. Como nos lembra Caiafa (2000) para além da singularidade da escritura da história de cada sujeito, existe também um tempo de processamento. Como nas obras de arte. Essa possibilidade criativa não deve ser uma imposição do analista sobre o analisante. Ainda com Caiafa (2000) é possível exercer a criação não enquanto um ato único, mas como um processo. Processo que envolve singularidades, acontecimentos. Algo muito semelhante com a análise, que não é um acontecimento, mas é também um processo. Como se sabe, o percurso é muito mais do segundo do que do primeiro. Freud mesmo advertia. Segundo (Kosovski, 2016, p. 452): Freud recorrentemente faz aos analistas em relação a importância de se desfazer de suas aspirações para com seus pacientes. Isto porque, no afã de que seu analisando se torne mais criativo, inventivo ou fecundo, este pode reeditar na transferência o mesmo impasse que se coloca entre o sujeito e o supereu, agora encarnado nas exigências do psicanalista.

Pensar os desdobramentos que as contribuições da estética podem trazer para uma prática clínica psicanalítica que enxergue o processo do sujeito como um caminho a ser 112


desenhado e não como um sítio arqueológico a ser desenterrado, por mais que haja um certo desenterrar, é permitir que a Psicanálise seja mais livre e menos taxativa nas suas definições. Logicamente não se trata de uma regra, visto que cada caso se constitui como único, mas talvez de uma certa orientação. Daí a necessidade de apresentar toda a relação da Psicanálise de Freud com o contexto estético. Se nos voltarmos para as formações do inconsciente apontados por Freud e por Lacan, poderemos perceber que temos algo relevante. Por exemplo, o sonho, por si só já é uma experiência estética, como falou Kundera (1985) em A insustentável leveza do ser, mas os outros também. Como também defende Gombrich (1984) apud Namba (2016) que ao analisar os chistes, Freud leva em conta algo extremamente importante para a arte. O chiste se dá através de dois pressupostos, o sentido e a forma. Assim, também é um fenômeno estético, porque através dele é possível pensar a coisa da arte que se manifesta ali. Embora Freud se interesse, evidentemente, pelo conteúdo, ele não descarta a forma como algo importante. Sendo bastante ousados, porque não pensar também no ato falho, dizer uma coisa quando se queria dizer outra como um fenômeno também estético, de jogo de palavras? Nos parece também possível. Partindo disso, percebemos que o Inconsciente é estético, mesmo não sendo o mesmo apontado por Rancière. A prática do analista é mergulhada nas esteticidades do inconsciente do analisante. A grande questão que se apresenta para nós no momento é de pensar a clínica psicanalítica enquanto uma prática estética, seja pelo analisante ou pelo analista. O que há ali de coisa da arte. Se levarmos em consideração os sonhos, os chistes, os atos falhos, já temos algo bastante encorpado para começarmos uma discussão. Não tentaremos abrangê-los aqui, não acreditamos que caiba. Todavia, se pensarmos em um outro conceito estabelecido por Freud (1905/1977), o humor, podemos pensar em implicações mais interessantes que nos levam para o caminho que nos endereçamos. Não pretendemos esgotar a temática do humor, muito menos aprofundá-la, mas tomála como um paradigma. Por dois motivos, é um conceito que se aproxima da experiência estética, mas também se aproxima da questão da ética, coisa importante para psicanálise, principalmente depois de Lacan em seu Seminário 7. O humor é trabalhado na obra de Freud em dois momentos. O primeiro, em 1905 no livro dos chistes. O segundo em 1927, em um pequeno texto intitulado O Humor. Como aponta Slavutzky (2014) é muito comum na sociedade ocidental se retirar o humor da gama de assuntos dignos de nota ou de estudo. Ele não é levado à sério como deveria. Freud (1927/1974) o define como rebelde. O humor é, 113


como nos lembra Morais (2008), uma vitória do desejo sobre a realidade. Ao dar endereçamento ao desejo, contornando os obstáculos, o humor se estabelece como, além de uma prática estética, uma prática ética. E isso é relevante em análise. Acreditamos, assim como Slavutzky (2014) que o humor é um ótimo sinalizador dos efeitos, éticos e estéticos, de que a análise tem seus efeitos no paciente que se apresenta ali. Rir de si próprio é algo que exige tempo e paciência. Como lembra Kupermann (2003, p. 222): A verdade de uma interpretação (ou, em sentido ampliado, de qualquer intervenção analítica) não pertence exclusivamente ao patrimônio psíquico do analista, mas é o produto de um acontecimento estético que se dá na relação transferencial e que pode ser avaliado por seus efeitos reais e concretos sobre o psiquismo do analisando.

Assim através da relação do humor com a clínica psicanalítica, podemos aproximar a estética da ética psicanalítica e nos endereçarmos para a problemática descrita anteriormente. A da prática clínica enquanto uma prática estética. Se partirmos de algumas provocações feitas por Badiou (2004) em sua por uma estética da cura analítica, encontraremos alguns pontos interessantes. A começar, de que é possível pensar o processo analítico enquanto um processo estético. Por quê? A análise se trata, como sustenta o autor, em organizar uma forma. Através do tratamento de um desaparecimento de um encontro, o trauma, que serve para encobrir o desparecimento verdadeiro, o do objeto a sai algo da análise. Não é, como afirma Badiou (2004), um resultado negativo. O que há é uma criação afirmativa. E essa criação não é algo que surja naturalmente, é preciso um labor sobre ela. E sendo artificial, podemos utilizarmo-nos da estética, já que se trata da criação de uma forma. Seria possível, então, pensar que quando se trata da clínica encontra-se sempre com uma oportunidade reencenação, de criação? Temos aí quase que em senso comum o trabalho do ator, de reviver determinadas cenas, mas acima de tudo, não apenas interpretá-las ou reproduzi-las, mas criar em cima disso. Através da lógica da repetição é possível reviver e recriar as coisas. Trata-se, sobretudo, de uma reorganização formal e artificial. Pensando assim é possível dizer que na concretização de um avanço analítico, existe algo de uma estética da criação. Badiou (2004, p. 242) dirá: “Uma análise absolutamente bem sucedida seria absolutamente uma obra de arte, uma obra de arte inteiramente subjetiva. E com isso vou deixá-los, na esperança de que vocês sejam todos grandes artistas”.

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CAPÍTULO V: EDUCAÇÃO


O pensamento sistêmico e a mediação escolar: um novo olhar sobre a resolução de conflitos Cleidimar Roberto da Silva Junca 62 Maria Riziane Costa Prates 63

Resumo: Este texto objetiva apontar as correlações entre o novo paradigma da ciência, fundamentado no pensamento sistêmico, e as práticas da mediação no ambiente escolar. Usa a intercessão teórica e metodológica de Maturana, Morin, dentre outros, para apontar alguns caminhos percorridos entre a Revolução Científica do século XX, o pensamento sistêmico e a mediação escolar. Evidencia conceitos produzidos em meio à revolução paradigmática. Agir em função de um paradigma, nem sempre é perceptível por sujeitos em uma determinada sociedade. Sendo assim, tratar questões de conflito e violência no contexto escolar, renunciando aos recursos punitivos é um grande desafio. Um novo olhar sobre a resolução de conflitos é necessário, enquanto mudança e como ato corajoso de busca por novos paradigmas, que melhor respondam aos anseios de sujeitos em uma determinada sociedade. Não há certeza sobre novas formas de fazer, mas, sempre que houver o entendimento de que aquilo que é vigente, já não serve mais, a busca por outros modos de fazer, é imprescindível. Conclui, destacando a nova forma de entender e conduzir o conflito, assim como o olhar prospectivo que esse novo paradigma lança sobre ele. Palavras-chave: Mediação escolar; Conflito; Paradigma; Pensamento sistêmico

Introdução Este artigo tem como objetivo apontar as correlações entre o novo paradigma da ciência, fundamentado no pensamento sistêmico, e as práticas da mediação, em especial no Mestra em Segurança Pública -UVV, possui graduação em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-Graduação em História das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora de História e Coordenadora pela Prefeitura Municipal de Vila Velha. Aluna do curso de direito na Universidade Vila Velha (UVV) e mediadora judicial.

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Doutora em educação, Mestrado, Especialização e Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora da Universidade Vila Velha na graduação em pedagogia, Professora do Mestrado em Segurança Pública (UVV). É professora da Educação Infantil no município da Serra, atuando no assessoramento da equipe da Gerência de Educação Infantil (GEI-SEDU-Serra). E-mail: rizianeprates1@gmail.com 63

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ambiente escolar. Usa a intercessão teórica e metodológica de Humberto Maturana, Maria José Esteves de Vasconcellos e Edgar Morin, para apontar alguns caminhos percorridos entre a Revolução Científica do século XX, o pensamento sistêmico e a mediação escolar. Compreende que uma escrita e indagação paradigmática e sobre contextos de mediação de conflitos na escola, pode ajudar professores, pesquisadores, em quaisquer áreas do conhecimento, seja nas artes, na pedagogia e demais estudos a indagarem a produção científica. Para tanto, evidencia conceitos essenciais que circulam o tema e a história produzida em meio à revolução paradigmática. Agir em função de um paradigma, nem sempre é perceptível por sujeitos em uma determinada sociedade, do mesmo modo, conduzir ações e sentimentos em iminência é da ordem do impossível. Sendo assim, tratar questões de conflito, indisciplina e violência no contexto escolar, renunciando aos recursos punitivos é um grande desafio, enquanto transformação dos modos como entramos em relação com os contextos educativos. Pensamentos e atitudes novas ou ações diferenciadas encontram sempre muita resistência. Um novo olhar sobre a resolução de conflitos é necessário, enquanto mudança e como ato corajoso de busca por novos paradigmas, que melhor respondam aos anseios de sujeitos em uma determinada sociedade. O século XX vem concebendo uma série de revoluções científicas e tais mudanças engendraram outras tantas em diversas áreas, lançando um novo olhar sobre as questões essenciais da humanidade. Segundo Kuhn64 (1998, p.125), “[...] consideramos revoluções científicas aqueles episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior”. De um mundo concebido pelo determinado, medido e entendido racionalmente /racionalizado, avançamos rumo à possibilidade e entropia. O Princípio da Incerteza de

Físico norte-americano (1922 – 1996) que trouxe um “olhar histórico” sobre a ciência. Foi importante na medida em que estabeleceu teorias que desconstruíam o paradigma objetivista da ciência. Thomas Kuhn desencadeou questões sobre qual o lugar que a ciência ocupa na sociedade. 64

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Heisenberg 65 revela a necessidade de pensarmos diferente e avançarmos no modo como conhecemos o conhecimento 66. Um novo paradigma surge superando o entendimento seccionado, fragmentado e linear, corroborando para uma visão integral de mundo, ao mesmo tempo em que convida o ser humano, ao protagonismo e à implicação, uma vez que concebidos como elementos de um mesmo sistema, somos coautores e corresponsáveis em nossas ações. Este artigo tem como objetivo apontar as correlações entre o novo paradigma da ciência, fundamentado no pensamento sistêmico e as práticas da mediação, em especial no ambiente escolar. Para tanto, buscamos inicialmente a compreensão de conceitos essenciais que circulam o tema e a história que evidencia a revolução paradigmática. Destacaremos a nova forma de entender e conduzir o conflito, assim como o olhar prospectivo que esse novo paradigma lança sobre o mesmo. O artigo trata de questões teóricas e conceituais, acerca da Revolução Paradigmática da ciência e sua promoção na nova forma de compreender a realidade e as relações interpessoais nas sociedades ocidentais, em especial no ambiente escolar. O caminho que percorreremos para a análise desse tema passa por três fases distintas e que se aditam, partindo da conceituação de temas que estão no âmago da compreensão: primeiramente falaremos do pensamento sistêmico, o entendimento da revolução científica do século XX e o próprio sentido dado ao que adotaremos enquanto paradigma. Neste contexto adotaremos importantes obras do biólogo chileno Humberto Maturana 67, Maria José Esteves de Vasconcellos 68 e Edgar Morin. 69, as quais se interporão durante todo o artigo, compondo

Tal princípio rompe com a ideia de Isaac Newton que dispõe sobre a previsibilidade no comportamento das partículas a partir de leis claras. Ao contrário, Werner Heisenberg , nos diz que há uma confusão na natureza, estabelecendo dessa forma um limite fundamental para o que podemos saber sobre o comportamento das partículas, ou seja, não se pode conhecer com precisão tal como era concebida anteriormente, a posição ou o momento (e, portanto, a velocidade) de uma partículas. 65

Referente ao primeiro capítulo da obra A Árvore do Conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano de Humberto Maturana e Francisco Varela que diz Conhecendo o Conhecer.

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Humberto Maturana, ao abordar o pensamento sistêmico trouxe uma nova abordagem quando questionou o papel do observador frente ao seu objeto de pesquisa e quando reconheceu a inevitabilidade da formulação objetiva sobre o mundo e sobre o observador como parte deste mundo. Tal abordagem inovou-se a partir deste estudioso uma vez que a fez cientificamente, até então essas questões eram reservadas à filosofia.

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68 Maria José Esteves Vasconcelos, cuja tese de mestrado acabou por se transformar em uma das principais obras referencial para a compreensão do pensamento sistêmico, conseguiu organizar os principais temas obras relacionados à Revolução Científica e a mudança de paradigma, os quais são essenciais para a compreensão deste tema, uma vez que a autora estabelece diversas pontes entre o conhecimento sistêmico e sua aplicação nas diversas áreas do conhecimento. 69 Edgar Morin nos orienta nas correlações entre as teorias do pensamento sistêmico e educação. Este autor nos dá os referenciais teóricos que nos guiarão para a análise essencial do artigo no que se refere às práticas na educação.

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nosso referencial teórico e indicando o caminho percorrido entre a Revolução Científica do sec. XX, pensamento sistêmico e mediação escolar. Em uma segunda fase, serão analisadas as obras de autores que discorrem sobre mediação escolar e como tais obras, a luz do novo paradigma da ciência, contribuem com as práticas da mediação, em especial nos temas recorrentes à teoria do conflito. Na terceira fase, a partir das práticas de mediação no interior das escolas, discorreremos sobre sua contribuição no entendimento e condução do conflito, como forma de prevenção da violência. Pois, tanto na educação quanto no conjunto da sociedade, a forma disjuntiva no entendimento da realidade manifesta-se através da substituição da palavra. Entendemos que a violência se constitui quando a palavra não é possível: tem-se neste momento a negação da condição humana. O resgate do direito à palavra, da oportunidade de expressão e reivindicação pelos sujeitos que se alcança a reversão da violência, por meio da criação de espaços coletivos de discussão, de espaços democráticos e dialógicos (GUIMARÃES, 2004). A vereda do conhecimento sistêmico O novo paradigma da ciência, elaborado a partir do pensamento sistêmico, começa a se destacar a partir da segunda metade do século XX. Por sua vez, a mediação de conflitos, guardando coerência com os novos paradigmas, tem seus primeiros núcleos formalizados na década de 1970 nos Estados Unidos. A partir de então, expande-se para países da América e Europa. As práticas alternativas de resolução de conflito no ambiente escolar descortinam uma série de novos conceitos e noções nem sempre muito bem conhecidos ou utilizados de forma adequada ao que se propõe. Tratar o conflito fora da disjunção “ou – ou” implica em uma mudança significativa nos costumes, valores e práticas usuais do corpo pedagógico escolar e que para muitos autores se inserem no pensamento sistêmico, ou complexo. No próprio campo do direito, nas ações judiciais e extrajudiciais, a mediação como forma alternativa de resolução de conflitos é algo inovador e, ao mesmo tempo, desafiante. Dentre os muros da escola não poderia ser diferente.

Em face desse desafio,

propositor de novas ações e de novas formas de se relacionar com o outro é que a mediação,

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sendo aplicada na escola ou nos meios jurídicos, sempre vem acompanhada de um princípio paradigmático. Segundo Vasconcellos (2002), empregamos a noção de paradigma para nos referir ao entendimento que fazemos acerca daquilo que nos rodeia: como vemos e percebemos o mundo e como isso se concretiza através de regras de convivência. Para Morin, (2011), os paradigmas se apresentam como princípios “ocultos” que controlam a forma como se procedem nossos discursos, ou seja, estabelecem a lógica como entendemos o mundo e como o reproduzimos para o mundo. Eles comandam a forma na qual selecionamos os dados e como os classificamos em significativos ou não, tudo isso de forma inconsciente. A mudança de paradigma é difícil e lenta, mas ao mesmo tempo revolucionária, uma vez que rompe com toda uma estrutura de ideias. Vasconcelos (2002, p.35) complementa: Conscientizarmo-nos de nosso paradigma – e questioná-lo – requer esforço e não é um processo fácil. Ao contrário, é quase sempre um processo doloroso. Diante dos questionamentos, as pessoas costumam sentir-se confusas, como se tivessem levado uma martelada na cabeça ou como se estivessem de cabeça para baixo.

Conscientizar-se da mudança exige vivência e práticas empíricas da realidade. O limite do paradigma atual deve ser explorado em seu máximo através das experiências. Segundo os biólogos chilenos, Maturana e Varela (1995, p.260): Nossas visões do mundo e de nós mesmos não conservam registros de suas origens. [...] Daí que tenhamos tantos renomados “pontos cegos” cognitivos, que não vejamos que não vemos, que não percebemos que ignoramos. Só quando alguma interação nos tira do óbvio – por exemplo, aos sermos bruscamente transportados a um meio cultural diferente – e nos permitimos refletir – é que nos damos conta da imensa quantidade de relações que tomamos como garantidas.

O sentido de paradigma no qual insere as práticas da medição correlaciona ao processo que levou ao novo paradigma da ciência. A historicidade das revoluções científicas converge-se àquelas que mudaram a nossa forma de organizar a sociedade. Segundo Vasconcelos (2002), a nossa sociedade vê-se em meio de dois paradigmas: o paradigma Cartesiano ou Newtoniano 70 e novo paradigma que tem como escopo o

70 Esteves Vasconcellos, destaca que nem todos os autores são unânimes quando se trata do antigo paradigma. Jeremy Riflin (Rifkin e Howard 1980), Fritjof Capara (1992) e Ivan Domingues (1992) são alguns dos exemplos que a autora destaca em seu livro.

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pensamento Sistêmico. Sendo assim, o novo é visto como “terra estranha” enquanto que o antigo demonstra claramente não ser capaz de explicar muitas de nossas inquietações. Uma das principais demonstrações da presença do paradigma newtoniano/cartesiano é a classificação entre aquilo que é ciência daquilo que não é. A defesa pela especialização, da lógica no processo, a necessidade da racionalidade, de leis para explicarem a economia, a separação do sujeito e do objeto são exemplos que evidenciam este paradigma. Entretanto, [...] “a maior parte dos cientistas ainda não fez a grande descoberta científica de que a ciência não é totalmente científica” (MORIN, 1983, apud VASCONCELOS, 2002, p.46). Vasconcellos (2002) destaca que os três eixos centrais do novo paradigma da ciência – complexidade, instabilidade e intersubjetividade, foram tratados em três congressos interdisciplinares. Em 1984 na França, Colóquio Internacional de Cérisy com tema sobre a complexidade teve como título: As Teorias da Complexidade. Em 1983 também na França, abrangendo a instabilidade o Colóquio Internacional de Cérsy adotou: A Auto – Organização da Física à Política como título, e; em 1997, no Brasil, no Simpósio Internacional de Belo Horizonte, cujo título foi: Autopoiese: Biologia, Cognição, Linguagem e Sociedade; analisou a intersubjetividade. Foi na Antiguidade Clássica com a descoberta do logos, que encontramos o primeiro grande salto no desenvolvimento do pensamento científico.

“A emergência dessa

racionalidade ou pensamento racional [...] marca um ponto de não-retorno, ou um salto qualitativo na história do pensamento ocidental” (VASCONCELLOS, 2002, p.53). Talles (624-562 a.C.), Anaximandro (611-546 a.C.) e Anaxímenes (586-525 a.C.) são, respectivamente, representantes de três momentos importantes no salto do mito ao logos: o empirista, o idealista e o realistas. Mais tarde, Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) consolidaram a descoberta do logos. O conhecimento fundamento pelo mito não deverá ser levado em consideração, entendido como motivo de ignorância. Percebemos a primeira disjunção: mito/razão. Instala-se uma forma própria da ciência e da filosofia. Sendo assim, o conhecimento científico, assim como o filosófico, é mediado pela razão (VASCONCELLOS, 2002). Será, no entanto, na Idade Moderna, que ocorrerá a separação entre a filosofia e a ciência. Esta cisão decorre, em parte, da matematização da experiência. Tendo o seu início com Francis Bacon (1561 – 1626), precursor da filosofia empírico-positivista, passando por Galileu – Galilei (1564 -1642), responsável pela física não-contemplativa, René Descartes 122


(1596 – 1650), precursor da secessão entre cultura humanista e cultura científica e pai do racionalismo, introduziu o método da dúvida e Isaac Newton (1642 – 1727), com o qual a ciência passou a se construir em torno das ciências da natureza, ou seja, a física empírica torna-se a referência da ciência. O homem já não faz parte da natureza (VASCONCELLOS, 2002). Por último, não menos importante, destacamos Augusto Comte (1798 – 1857), o qual fundou a escola positivista e, entre muitas outras coisas, estabeleceu o pensamento humano dividido em três fases: a teológica, a metafísica e a positivista.

Esta última busca o

conhecimento através da observação e da experiência, formulando leis que regem os fenômenos que cercam a humanidade. A escola positivista de Comte se configura pela exigência da objetividade e impessoalidade no papel do pesquisador. O paradigma tradicional apresenta pelo menos três características marcantes: a simplicidade, a estabilidade e a objetividade. A simplicidade é marcada pela especialização, pelo fracionamento e linearidade das causas. Busca-se compreender o complexo através da sua simplificação.

A disjunção “ou – ou” é consequência desses fatores que trazem a

necessidade excessiva de classificação e análises estanques. Com a estabilidade advém a previsibilidade dos acontecimentos e a estagnação das explicações dos fenômenos humanos. O mundo obedece a uma regra, bastando à aplicação de métodos eficazes para alcançar a sua compreensão. A experimentação, em situações artificializadas, busca desmembrar o fato, torná-lo simples, compreensível e racional. A quantificação, através do uso da matemática, será entendida como fator crucial para a qualificação da produção científica. A estabilidade ainda trará duas outras importantes características para o paradigma tradicional: o determinismo e reversibilidade. A presunção de que um fato está ligado ao outro anterior e que o mesmo pode ser desfeito percorrendo o caminho contrário será de suma importância para compreendermos a preeminência atual deste entendimento nas questões do atual Sistema Judiciário brasileiro. A objetividade é uma das características mais marcantes do paradigma tradicional, uma vez que ela defende que o propósito da ciência é descobrir a verdade e para tanto se faz necessária à separação entre o pesquisador e o seu objeto de pesquisa: neutralidade e afastamento. Morin (2011, p.54) conclui que: [..] neste sentido, a metodologia científica era reducionista e quantitativa. Reducionista, já que era preciso chegar às unidades elementares não decomponíveis,

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as quais só podiam ser circunscritas clara e distintamente; quantitativista, já que essas unidades descontinuas podiam servir de base a todas as computações. A lógica do Ocidente era uma lógica homeostática, destinada a manter o equilíbrio do discurso pela expulsão da contradição e do erro; ela controlava ou guiava todos os desenvolvimentos do pensamento, mas ela própria se colocava, com todo evidência, com impossibilitada de desenvolvimento. A epistemologia, de repente, desempenhava sempre o papel verificador do aduaneiro, ou proibidor do policial.

Vasconcellos (2002) enfatiza que, quanto mais próximas do “ser homem”, mais difícil foi para a ciência se caracterizar segundo esses três elementos – simplicidade, objetividade e estabilidade. As tidas ciências humanas encontraram profundas dificuldades em adotar qualquer um dos três. Já as ciências biológicas só tiveram facilidade quanto ao critério da objetividade, enquanto que aquelas relacionadas à física não tiveram qualquer obstáculo. O pensamento sistêmico como novo paradigma da ciência desconstrói o paradigma anterior.

Vasconcellos (2002) enfatiza o avanço necessário para tal descolamento

epistemológico.

A complexidade, a instabilidade e intersubjetividade substituem os

pressupostos tradicionais da simplicidade, estabilidade e objetividade. O trabalho do cientista admite a multiplicidade de versões da realidade. Os cientistas chilenos Francisco Varela e Humberto Matura, no livro A Árvore do Conhecimento, destacam dois aforismos centrais que identificam a intersubjetividade da pesquisa ao novo paradigma da ciência. Tal circularidade, tal encadeamento entre ação e experiência, tal inseparabilidade entre ser uma maneira particular e como o mundo nos parece ser, indica que todo ato de conhecer produz um mundo. Essa característica do conhecer será invariavelmente nosso problema, nosso ponto de partida e a linha mestra de tudo o que apresentamos nas páginas seguintes. Tudo isso pode se condensado no aforismo: Todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer (MATURANA; VARELA, 1995, p.68, grifo nosso).

Mais adiante os autores destacam o segundo aforismo: É muito importante não esquecermos que a circularidade entre a ação e experiência também se aplica ao que estamos fazendo aqui e agora e tem consequências fundamentais, [...]. Tal ponto não deve ser esquecido nunca, e para tanto resumiremos tudo o que foi dito num segundo aforismo que devemos ter em mente ao longo deste livro: Tudo que é dito, é dito por alguém. Toda reflexão produz um mundo. Sendo assim, é uma ação humana realizada por alguém em particular, num lugar particular. (MATURANA; VARELA, 1995, p.60, grifo nosso).

Pensar sistematicamente é pensar a complexidade, a instabilidade e a intersubjetividade. Entender o fenômeno através da sua complexidade é ser capaz de entendê124


lo no seu contexto, é ampliar o foco sobre sua observação e reconhecer a teia que interliga recursivamente as relações presentes. É entendê-lo na sua instabilidade, reconhecer a sua indeterminação e imprevisibilidade. Ser capaz de perceber um mundo que não é posto, mas que está sempre se reinventando, se refazendo.

Por fim, reconhecer a participação na

realidade com que está trabalhando. Fazendo parte do sistema que atua na perspectiva da coconstrução das soluções. A mediação na teia do sistema O conflito, sob a luz do paradigma tradicional é visto como antagônico, como algo que traz divergência e fim dos relacionamentos, e, portanto, tem sido avaliado com conotações negativas. Contudo, o novo paradigma remodela essa perspectiva concebendo os conflitos dentro de postura transformadora e recursal. Briquet (2016, p.48) evidencia as possibilidades do conflito, pois [...] “é visto como um meio, uma oportunidade de reconstrução das estórias de conflito e um motor propulsor de energia criativa e a mediação é um dos processos alternativos usados para tal fim”. Importante se coloca também o entendimento de Lederach (2012, p.35), segundo o qual: Transformação de conflitos é visualizar e reagir às enchentes e vazantes do conflito social como oportunidades vivificantes de criar processos de mudanças construtivos, que reduzam a violência e aumentem a justiça nas interações diretas e nas estruturas sociais, e que respondam aos problemas da vida real dos relacionamentos humanos.

Segundo Almeida (2014) a mediação estabelece estreitos laços com o pensamento sistêmico, pois os conflitantes experimentam na prática, durante a sessão de mediação, o movimento oscilatório dos dois paradigmas vigentes. O paradigma da adversarialidade e o da colaboração se encontram e dialogam durante um processo de mediação. O pensamento sistêmico veio ampliar nossa visão sobre os eventos e sobre o mundo em que vivemos, constituindo-se, na contemporaneidade, pilar para todas as ciências. Entende o mundo como um sistema: o que significa percebê-lo como um todo integrado, composto de diferentes elementos interdependentes que interferem uns nos ouros, em maior ou menor proporção (ALMEIDA, 2014, p.137).

Da mesma forma Vasconcelos (2017, p.39) afirma que: A mediação de conflitos e as práticas restaurativas devem ser aplicações do novo paradigma da ciência, na condução dos conflitos. Portanto, a compreensão desse novo paradigma, a partir do pensamento sistêmico, é de grande importância na formação de mediadores de conflitos. E como a mediação de conflitos está

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relacionada aos procedimentos que validam sentimentos na linguagem de coconstrução de decisões, cuidamos de uma hermenêutica que integra compreensão, interpretação e decisão.

Os conflitos trazidos para uma sessão de mediação devem ser entendidos de maneira a qual se permita que o foco se estabeleça nas relações e não no indivíduo. Deixando claro que o indivíduo e toda a singularidade que comporta não desaparece e nem se torna menos importante. “Contextualizar é reintegrar o objeto no contexto, ou seja, é vê-lo existindo no sistema” (VASCONCELLOS, 2002, p. 112). Sales (2007, p.28) exemplifica: Tirar o foco de si mesmo e colocá-lo no todo (família, empresa, vizinhança) é fundamental para facilitar a compreensão da responsabilidade de cada um para a solução do problema. Busca-se aqui a percepção de relação existente entre os atos individuais e o seu resultado na relação com um todo.

A intersubjetividade é destacada também por Almeida (2014) ao destacar o segundo elemento que entrelaça o novo paradigma à mediação: que é o cuidado pautado na análise multifatorial e em ações multifocais. Sendo assim, a compreensão do conflito deve superar a causalidade linear e reconhecer a imprevisibilidade dos fatos e, ao mesmo tempo, perceber que tal pressuposto demanda mais cuidado durante a atuação. Neste mesmo sentido Sales (2007) defende que a mediação tem seu foco mirado na responsabilidade impedindo o determinismo causado pela noção de culpa. Vasconcellos (2017, p.53) destaca que: A medição de conflitos, enquanto trato intersubjetivo, transdisciplinar (sensitivo/emotivo/cognitivo), método empírico em sua interdisciplinaridade, vai facilitar o encontro de soluções consensuadas, legítimas, mas que precisam ser compreendidas, interpretadas e decididas no âmbito de um sistema jurídico necessariamente democrático.

O “princípio da complementariedade” é evidenciado pelo terceiro ponto destacado por Almeida (2014) confirmando a interdependência entre os atores de um conflito. A colaboração, ao contrário da competição é um dos princípios notórios da mediação. Além disso, a autora identifica aquilo que Maturana e Varela (1995) ressaltaram como os dois aforismos centrais de livro: “cada ator é sujeito e objeto de sua própria ação, o que importa em administrar os benefícios e as consequências dos próprios atos e decisões” (ALMEIDA, 2014, p.138). A mediação de conflitos faz emergir a necessidade de uma visão acerca da resolução de conflitos, para além da daquela disjuntiva do “ou-ou”, em que prevalece a dicotomia do 126


“ganha ou perde”. A nova dialética insere-se num ambiente de complementariedade “e-e”, em que os desencontros (ordem/caos) convertem-se e realimentam a tese-antítese (VASCONCELOS, 2017). O quarto elemento que Almeida (2014, p.138) destaca é do multifatorialidade. Segundo a autora, “[...] é preciso considerar o ambiente do desentendimento – entorno físico e humano - e dimensionar sua participação na construção do conflito e na sua resolução”. Percebe-se o novo paradigma da ciência pautado no pensamento sistêmico uma vez que se admite a análise do objeto em sua complexidade, diferentemente do paradigma cartesiano que defendia a separação do objeto de seu contexto, o fracionamento e a especialização para estudá-lo. O quinto ponto destacado por Almeida trata do protagonismo. É o ponto da auto implicação do homem no sistema, sendo assim: uma das maiores contribuições que o pensamento sistêmico oferece ao homem é o convite ao protagonismo e à auto implicação; como elementos de um mesmo sistema, somo coautores e corresponsáveis pelo que nos proporcionamos e pelo que proporcionamos ao outro vivenciar; como estou contribuindo para o que ocorre comigo e com o outro é pergunta indispensável para mediandos e para mediadores – a auto implicação convida à corresponsabilidade (ALMEIDA, 2014 p.139).

Por último, Almeida (2014) salienta a diversidade do mundo sistêmico, compreendendo

que

os

distintos

temas,

interagem

através

da

possibilidade

da

complementariedade. Por uma visão sistêmica do conflito no ambiente escolar Segundo Maturana e Varela (1995, p.264), [...] “no cerne das dificuldades do homem moderno está seu desconhecimento do conhecer”. A escola é um daqueles espaços sociais que pela sua função formativa, tanto moral quanto na transmissão de conhecimentos e a forma como os atores da instituição interagem, é um terreno fértil para o surgimento de inúmeros conflitos relativos ao papel da autoridade e a disciplina, que tem sido tratado de maneira exclusivamente punitiva quando não com a policialização do ambiente escolar (SANTOS; GOMIDE, 2014). Segundo Lederach (2012), os conflitos fazem parte da existência humana e se apresentam de uma forma natural em nossa sociedade, na medida em que sempre existe uma diversidade de percepções, de interesses e objetivos. Os conflitos não são necessariamente 127


violentos (na medida em que as pessoas respeitam as diferenças umas das outras) nem mesmo negativos. Negar o conflito, por si só, consiste em uma forma de violência, uma vez que implica em negar a diferença, a possibilidade do contrário, do divergente. Trabalhar as situações de conflitos significa promover ou facilitar a sua percepção, bem como compreender a multiplicidade de fatores e ajudar os alunos a construírem modos de abordar e resolver suas diferenças sem violência. Neste contexto entende-se que: O desafio não é eliminar conflitos, mas transformá-los. É mudar o modo como lidamos com nossas diferenças – em vez de conflitos antagônicos e destrutivos, solução de problemas de forma conjunta e pragmática. Não devemos subestimar a dificuldade tarefa, que, no entanto, é o que há de mais urgente no mundo de hoje (FISHER; PATTON; URY, 2014, p.13).

A especialização que fecha em si mesma, decorrente do paradigma tradicional faz parte da organização curricular da maioria das escolas do Brasil. Cada professor é especializado em uma área do conhecimento a qual se traduz em disciplinas distribuídas em quadros de horários semanais e estanques. Segundo Morin (2017, p.13): Há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro, realidades ou problemas cada vez mais poli disciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.

Da mesma forma, a escola tem sua estrutura física e organização das diversas áreas de apoio distribuídas em departamentos com funções bem definidas.

As relações

interpessoais são conduzidas seguindo os mesmos critérios que levou à compartimentação do estudo científico. Assim, os conflitos são tratados por setores que seguem o regimento institucional, onde são enumerados suas competências e limites.

Brigas, discussões

exacerbadas ou qualquer outra situação que tire a paz da escola e atrapalhe a aula são encaminhadas para o setor da coordenação disciplinar. O conceito utilizado de paz, utilizados pelos educadores condiz com este entendimento, pois está relacionado à estabilidade e ordem. A forma como se percebem os conflitos e conduzem suas soluções se dão através das regras de convivências que ocultamente são estabelecidas pelo paradigma tradicional. Materialmente, essas regras de convivência se dão através uma codificação de normas e punições, geralmente seguindo os mesmos dispositivos jurídicos positivistas lineares inseridos no princípio da reversibilidade. Maturana e Varela (1995, p.262) nos tranquilizam dizendo que: 128


O conhecimento do conhecimento compromete. Compromete-nos a tomar uma atitude de permanente vigilância contra a tentação da certeza, a reconhecer que nossas certezas não são provas da verdade, como se o mundo que cada um de nós vê fosse o mundo, e não um mundo, que produzimos com outros. Compromete-nos porque, ao saber que sabemos, não podemos negar o que sabemos.

Quando um aluno é encaminhado à coordenação busca-se o fato e a causa imediata daquilo que o desencadeou. A solução do problema se dá através do caminho reverso ao ocorrido, podendo ser desde um simples pedido de desculpas até a imposição de compensações. Como prevenção usa-se a punição exemplar que obedece a uma escala de acordo com o grau do conflito: o aluno pode levar uma simples advertência verbal, suspensão, ou até mesmo uma transferência escolar nos casos mais graves seguindo esse sistema. Esses critérios variam de acordo com cada instituição ou são regulamentados pelos Conselhos de Educação do município, ou mesmo pelo Estado. Num caminho diverso deste apresentado, de acordo com as práticas da mediação em acordo com o pensamento sistêmico, o conflito não é o mesmo que violência e, portanto, não devem ser prevenidos, o que se deve prevenir é a forma violenta de resolvê-los. Sobre esse ponto, interessante a colocação de Guimarães (2004, p.03) quando diz que: A violência, tanto na educação como no conjunto da sociedade, constitui-se como uma forma de expressão dos que não têm acesso à palavra [...]. Quando a palavra não é possível, a violência se afirma e a condição humana é negada. Nesse sentido, a reversão e a alternativa à violência passam pelo resgate e devolução do direito à palavra, pela oportunidade de expressão das necessidades e reinvindicações dos sujeitos, pela criação de espaços coletivos de discussão, pela sadia busca do dissenso e da diferença, enfim, pela mudança das relações educacionais, ainda estruturadas no mandar e obedecer, para uma forma mais democrática e dialógica.

Atribuir culpa, faz parte de uma lógica que busca a objetividade na compreensão dos conflitos, que, se não é incompatível nas relações humanas, pode ser considerada insuficiente para resolver os conflitos e evitar a violência dentro das escolas. Almeida (2014) traz uma verdadeira Caixa de ferramentas 71 onde apresenta técnicas para possibilitar ao mediador conduzir um conflito de sua fase inicial disjuntiva, do ganha ou perde, para o ganha-ganha, transformando relatos negativos ou acusações em preocupações, em necessidades desatendidas ou em valores de interesse comum.

Tânia Almeida intitulou seu livro como “Caixa de Ferramentas em mediação: aportes práticos e teóricos”, constituindo-se uma das mais importantes obras para todos aqueles que pretendem ser mediadores.

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Considerações finais Agir de acordo com um paradigma nem sempre é perceptível por um sujeito em uma determinada sociedade, da mesma forma a ideia de que, uma nova forma de conduzir nossas ações e sentimentos em iminência, também não é fácil de ser mensurada. Tratar questões de conflito, indisciplina e violência no contexto escolar por parte dos educadores abrindo mão dos recursos punitivos é um grande desafio. Pensamentos e atitudes novas ou ações diferenciadas encontram sempre muita resistência. Quem se propõe a buscar de um novo paradigma é corajoso, pois não há certeza sobre a nova forma de fazer, mas tão somente o entendimento de que aquilo que é vigente, já não serve. Os métodos atuais que punem situações de conflito e violência nas escolas já não dão conta do contexto complexo que se faz cada vez mais presente. Da mesma forma que a negação da existência de conflitos também não se sustenta. Deve-se encarar a incerteza como algo que nos move. A revolução científica nos fez conceber o conhecimento de forma diversa daquele compreendido anteriormente. No interior das escolas, o modelo punitivo na resolução de conflitos e no trato da violência precisa ser superado, porém, assim como ocorrera na ciência, em que a mudança explodiu por onde o paradigma era mais forte, essa mudança paradigmática no trato das relações interpessoais nas escolas deve partir do interior de cada um.

A mediação escolar, através de suas práticas, delineadas pelos seus princípios,

proporciona essa revolução interna em cada indivíduo que participa das sessões de mediação ou que tenha contato com suas ferramentas. Não há certeza sobre novas formas de fazer, mas, sempre que houver o entendimento de que aquilo que é vigente, já não serve mais, a busca por outros modos de fazer, é imprescindível. Referências ALMEIDA, Tania. (2014). Caixa de ferramentas em mediação: aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dash. BRIQUET, Enia Cecilia. (2016). Manual de mediação: teoria e prática na formação do mediador. Petrópolis, RJ: Vozes. FISHER, R; PATTON, B; URY, W. (2014). Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazer concessões. Rio de Janeiro: Solomon. GUIMARÃES, Marcelo Rezende. (2004). Educação para a paz: sentidos e dilemas. Caxias: EDUCS. 130


KUHN, Tomas, S. (1998). A estrutura das Revoluções Científicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva. LEDERACH, John Paul. (2012). Transformação de Conflitos. São Paulo: Palas Athena. MATURANA R., Humberto; VARELA G., Francisco. (1995). A Árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas, SP. Editorial Psy II. MORIN, Edgar. (2017). A Cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 23 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. _____________. (2011). Introdução ao pensamento complexo. 4. ed. Porto Alegre: Sulina. _____________. (1983). O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Publicações Europa América. SALES, Lília Maia de Morais. (2007). Mediação de Conflitos: Família, Escola e Comunidade. Florianópolis: Conceito Editorial. SANTOS, Mayta L. dos, GOMIDE, Paula I. Cunha. (2014). Justiça Restaurativa na Escola: Aplicação e Avaliação do Programa. Curitiba: Jaruá Editora. VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. (2017). Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5ªed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Método. VASCONCELOS, Maria José Esteves. (2002). Pensamento Sistêmico – o novo paradigma da ciência. Campinas: Paipirus.

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Contribuições do PIBID para a formação docente Samantha Pereira Muniz De Almeida Silva 72 Maria Riziane Costa Prates 73 Tatiana dos Reis de Abreu Grampinha 74 Ana Paula Patrocínio Holzmeister 75

Resumo: Este texto apresenta experiências vividas no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à docência- PIBID, em uma Unidade Municipal de Educação Infantil de Vila Velha-ES. O PIBID tem como objetivo principal a elevação da qualidade da formação inicial de professores nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre ensino superior e educação básica. Com Larrosa, Alves, Ferraço, dentre outros, faz uso metodológico da pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas como experiência que possibilita a ampliação da produção de docências outras. Conclui apontando a necessidade de investimento em programas que contribuam para uma formação docente mais atrelada à realidade social, visando transformá -la. Palavras-Chave: PIBID. Experiências. Docência .

PIBID e indagações... 72

Graduada em pedagogia pela Universidade Vila Velha. E-mail: samanthapereiramuniz@gmail.com

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Graduada em pedagogia pela Universidade Vila Velha. E-mail: tati.grampinha@gmail.com

Doutora em educação, Mestrado, Especialização e Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora da Universidade Vila Velha na graduação em pedagogia, Professora do Mestrado em Segurança Pública (UVV). É professora da Educação Infantil no município da Serra, atuando no assessoramento da equipe da Gerência de Educação Infantil (GEI-SEDU-Serra). E-mail: rizianeprates1@gmail.com 73

Doutora em educação. Professora da Universidade Vila Velha e coordenadora do curso de graduação em pedagogia (UVV). É professora da Educação Infantil no município de Vitória. E-mail: ana.holzmeister@uvv.br 75

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Este texto apresenta narrativas de dois trabalhos de conclusão de curso - TCC na graduação em pedagogia da Universidade Vila Velha, tecidos no ano de 2021, a partir das experimentações no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à docência - PIBID 20182020, em uma Unidade Municipal de Educação Infantil de Vila Velha – ES, com intervenções aprendentes de múltiplas linguagens com as crianças e professoras, nas composições com estudantes das graduações em pedagogia, artes cênicas e educação física da Universidade Vila Velha. O PIBID é um Programa Federal que tem como objetivo, a integração da formação inicial dos cursos de licenciatura no ensino superior, com a educação básica, nas redes públicas de ensino, pela valorização docente e ampliação das práticas e enfrentamentos dos desafios que propõem o âmbito escolar. Os futuros professores são inseridos em escolas públicas como estagiários pesquisadores bolsistas, para conhecerem as situações inerentes ao cotidiano educacional, no sentido de propor ações de intervenção pedagógica interdisciplinar. O programa oferece bolsas de iniciação à docência aos alunos de cursos presenciais que se dediquem ao estágio nas escolas públicas e que, quando graduados, se comprometam com o exercício do magistério na rede pública. O objetivo é antecipar o vínculo entre os futuros mestres e as salas de aula da rede pública. Com essa iniciativa, o Pibid faz uma articulação entre a educação superior (por meio das licenciaturas), a escola e os sistemas estaduais e municipais (BRASIL, 2018, p.1).

Ao entrarmos no Programa, algumas questões nos instigaram: Essa iniciativa tem a funcionalidade de melhoria na educação e incentivo à carreira do pesquisador? O projeto fará diferença em nossa formação docente? Como as práticas são tecidas na escola com as crianças enquanto movimento de experiência que pode provocar rupturas em nosso modo de pensar e fazer educação? O que tem feito a gente entrar em relação com a educação de uma maneira diferente? Para responder a tais questões, o presente texto narra experiências vividas em um Centro de Educação Infantil da rede pública municipal de Vila Velha – ES, mostrando a importância da pesquisa na formação docente, e os desafios experimentados entre crianças, pesquisadores e professores, com a aposta no trabalho com as múltiplas linguagens como potência na educação infantil. Dos planos de aula à experiência de docências... 133


O movimento formativo vivido no PIBID, teve muitos desafios experimentados no cotidiano escolar, envolvendo a elaboração de planos de aula, a relação entre professores e crianças, o conhecimento do espaço da escola, pelas vivências diferentes a cada dia. A escola em que foi desenvolvida esse projeto, fica no município de Vila-Velha. No início houve um estranhamento da escola, pois eles ainda não entendiam o papel do PIBID e qual era a nossa função na escola, mas com o tempo as relações foram sendo produzidas e as pesquisas tecidas como experiência, compreendendo com Larrosa (2002), que a experiência é aquilo que nos passa, que nos acontece, que nos toca. Estávamos organizados em grupos, os cursos que estavam selecionados eram a pedagogia, a educação física e as artes cênicas. Os grupos foram organizados tentando misturar e contemplar os três cursos, para um trabalho coletivo. A partir dessas experiências pudemos observar como a escola funciona, como os professores ministram as aulas, como nossa orientadora abordava as crianças e como ela se preocupava para que todos participassem das aulas. Observávamos atentos ao modo como a professora fazia seus planos de aula, o que foi, para nós, um grande desafio.

Imagem 1: professora da UMEI estabelecendo combinados com as crianças

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Os primeiros movimentos foram de observação das aulas de educação física. Em uma aula de luta, a professora delimitou um espaço, um campo de disputa, colocou uma bola entre duas crianças e elas, sem levantar a bola do chão, tiveram que empurrar a bola até o limite oposto para ganhar a disputa, e cada um teria que defender seu campo com força e outras variações do jogo e lutas baseadas no filme Kung fu Panda que ela tinha exibido para as crianças antes de começar essas aulas. A professora sempre levava algo para conceituar o porquê de estarem fazendo aquilo naquela aula, de modo que fizesse sentido para as crianças e através disso ela trabalhava também conceitos de ética, respeito ao próximo, amizade, sempre no final das lutas, os participantes se cumprimentavam em um aperto de mão, sinalizando com a cabeça o respeito ao seu oponente, ensinando assim, que apesar de ter perdido a disputa continuariam amigos. Algumas crianças não sabiam lidar muito bem com o sentimento de perda, algumas choravam, outras não queriam brincar mais, mas a professora contornava a situação e fazia de alguma forma com que todos fossem vencedores, ao menos uma vez. Deleuze comenta: ‘Nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem: ‘faça comigo’ e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo’. A relação ensino-aprendizagem depende de um mestre que não se furte de sua condição de aprendiz (KASTRUP, 2001, p.24).

Assim, fomos encaminhados às tessituras das práticas na escola que nos levaram a encantamentos e também questionamentos quanto ao seu funcionamento, indagando como podemos desengessar modos de fazer educação, modos de dar aula e habitar os corredores da escola de forma que não sejam só corredores, explorar todos os espaços, até os mais improváveis. A entrada na escola, como estudantes pesquisadoras, sob a orientação das nossas professoras coordenadoras da Universidade, foi tecida, como experiência singular em nossa formação acadêmica. Inicialmente, o estranhamento, os medos...depois...o envolvimento no processo e as alegrias das tessituras com o cotidiano escolar.

Trabalhar com o cotidiano e se preocupar como aí se tecem em redes os conhecimentos, significa, ao contrário, escolher entre as várias teorias à disposição e muitas vezes usar várias, bem como entendê-las não como apoio e verdade, mas como limites, pois permitem

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ir só até um ponto, que não foi atingido, até aqui pelo menos, afirmando a criatividade no cotidiano (ALVES,2001, p.5).

O PIBID oportunizou um mergulho no cotidiano escolar, como aponta Alves (2001), enquanto tentativa de decifrar os pergaminhos e caminhos formativos, em que não é possível ficar no raso da imensidão do mundo escolar, mas lançar-se à imensidão profunda do oceanoescola 76, com sua diversidade, suas relações, pleiteando possíveis transformações pela busca de aprendizagem.

Ora, agenciar transformações, resistir perpassam pela experimentação de outras maneiras de fazer, pela invenção de novos modos de aprender. Experimentar a escola inventivamente se torna, assim, possibilidade de aprender com alegria pela potência da busca, pela sensibilidade dos encontros e pela diferença da composição com os espaços, tempos e coletivos nas vivências experimentadas (PRATES, 2020, p.134).

Para transformar, aprender, compreender é preciso mergulhar nos cotidianos. Não há possibilidades de ficar indiferente ao que acontece nos espaçostempos da escola, é preciso sentir, correr o risco de ser afetado positiva ou negativamente, lançar-se para além do planejado, ser surpreendido pelo inesperado. O cotidiano nos reserva novidades, e “uma coisa é certa, o que existe é uma incessante experimentação” (PRATES, 2020, p.135). Através do que se percebe nos cotidianos, é importante tentar compreender esses acontecimentos, sem categorizar e classificar com regras rígidas e limitadas, pois o que buscamos é superar as barreiras das limitações. Quando tudo acontece fora do que foi planejado, não significa que tenha dado tudo errado, mas que aconteceu algo novo, que não estava planejado ou pré-determinado. A nossa busca era, assim, por experimentações na escola enquanto possibilidades que vão além do esperado, das ideias e planejamentos fixos ou teorias como verdades absolutas, pois o que buscávamos eram práticas e metodologias de aprendizagem que alargassem os nossos caminhos, para além do já posto, já sabido, para aprender a aprender e a aprender a ensinar.

Com Alves (2002), juntamos as palavras, como maneira de superar as dicotomias e atribuir novos sentidos e forças ao termo produzido.

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As aulas planejadas pelas professoras na escola, continham momentos de brincadeiras regionais, e momentos com atividades em sala de aula, sempre uma encaixando na outra, um dia era desenho, histórias sobre a região, outro dia era atividade mais prática, com experimentação da brincadeira proposta e a representação dos instrumentos musicais a partir de desenhos. A cada aula, fazíamos um plano de aula, ele era uma previsão do que iríamos fazer com alguns objetivos e sequências. Esse plano era composto pelo tema da aula, os objetivos de aprendizagem e as alternativas para desenvolvimento das atividades com as crianças. As professoras sempre solicitavam que organizássemos uma atividade prática e uma atividade teórica. Importante salientar que compreendemos com Corazza (2012, p.236) que: Uma aula é, desde sempre, feita de clichês-dados. Se o professor quiser que a sua aula seja instigante, interessante e, mesmo, sua – em outras palavras, se desejar realizar uma aula singular –, não vai planejar, preparar e desenvolver a aula, como se ela estivesse vazia; tampouco vai se restringir à tarefa de, tãosomente, prever objetivos, conteúdos, atividades, recursos, avaliação.

Nesse movimento, por entre as vivências das aulas na escola e os estudos na Universidade, para além dos planos em si, desejávamos uma atuação na docência como convocação da experiência que, segundo Larrosa (2002, p.26) “É aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação”. Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação. Para nós, a opinião, como a informação, converteu-se em um imperativo (LARROSA,2002. p.22).

Movidos pelas experiências nesse fazer pesquisa, pela “tentativa de fazer proliferar vozes, produzir habitação [...] inventar novos modos de composição com as crianças e com os professores” (PRATES, 2020, p.132), traçamos saídas como experimentações de aulas diferentes, oportunizando “modos outros de experimentar a escola, tentativa de reexistência e resistência de um coletivo” (PRATES, 2020, p.133). A potência das múltiplas linguagens e a Formação docente...

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O nosso desafio foi criar, junto às professoras da escola, aulas desafiadoras, em que as crianças pudessem experimentar metodologias e aprendizagens inusitadas. Como tínhamos no grupo, estudantes de pedagogia, educação física e artes cênicas, montávamos aulas com atividades corporais, artísticas e pedagógicas. As múltiplas linguagens permitem explorar o currículo de forma que os elementos colocados em estudo se comunicam. O foco deixa de ser somente a leitura e a escrita e passa a ser a exploração sem limites de todas as potencialidades de aprendizagem. Compreendemos que as crianças, enquanto sujeitos históricos e produtores de cultura, se constituem nas brincadeiras e no contexto social em que estão inseridas, experimentando sensações, cheiros, cores, sons, texturas, formas, bem como traçando linhas de vida ao subir, descer, cantar, dançar, ouvir, sentir, etc. Um modo de estar no mundo é constituído por relações e práticas diárias vivenciadas, e é através dessas práticas, nas brincadeiras, no lúdico, nas invencionices, nas relações com o outro que a criança se constitui, se expressa e conhece o mundo. Crianças brincam individual e coletivamente, e neste ato experimentam e descobrem a vida que pulsa em diferentes ritmos a partir das linguagens com as quais aprendem a relacionar-se com os outros. [...] Como contrapor-se aos espaços cerceadores das capacidades criativas das crianças? Como incentivá-las a explorar os ambientes e expressarem-se com palavras, gestos, danças, desenhos, teatro, música sem recriminar o choro e o aparente excesso de movimentos (GOBBI, 2010, p.1).

E assim, junto às professoras, algumas atividades foram tecidas em nosso movimento de sujeitos aprendizes, pesquisadores. Nosso primeiro planejamento foi sistematizado pelo projeto baseado na história do Magico de Oz, tema indicado pela professora da escola, nos primeiros seis meses do PIBID, de agosto a dezembro de 2018. Colocar as ideias no papel foi o primeiro passo, depois para colocá-las em pratica é que foi o desafio.

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Imagem 2: Teatro “O mágico de Oz” produzido pelos estagiários do PIBID/ Imagem 3: Registro de uma criança a partir do teatro

A proposição de atividades a partir de múltiplas linguagens, oportunizou experimentações não somente das crianças, mas das professoras aprendizes, enquanto aulas que obrigaram a sair de um modo estático de docência, enraizado por décadas na educação, como aponta Silva (2001); um tipo de educação que tem base na Teoria Tradicional, sem a preocupação com reflexões mais radicais sobre os arranjos educacionais vigentes e as formas de produção do conhecimento. Nossas aulas eram sempre em algum espaço amplo da escola, proporcionando um processo de experimentação de diferentes possibilidades de aprendizagem. Nas experiências tecidas junto às crianças, narrar os cotidianos, pela conversa, trocas de informações, ensinamentos, histórias e vivências corporais, compunham as nossas aulas. A cada resposta de uma criança, uma dúvida, um questionamento para uma nova leitura da brincadeira. Em outro momento, junto às professoras, contribuímos nas atividades do projeto “O menino Maluquinho”, a partir do livro de Ziraldo. Fizemos a leitura da história com as crianças sobre o menino maluquinho e a professora maluquinha. Nosso grupo de estudantes pesquisadores, resolveu produzir um teatro para apresentação na escola, a partir da história. Selecionamos os pontos que chamaram a atenção das crianças na contação da história e acrescentamos outros. A colega das artes cênicas colaborou com a escrita da peça de teatral, e a pedagogia e educação física trouxeram elementos pedagógicos e corporais para o enredo.

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Imagem 4: Encenação do teatro o Menino Maluquinho vai ao Egito

O teatro, como linguagem artística, funcionou como força para abertura afetiva para o lúdico, a fantasia, um convite para explorar a imaginação e a coletividade de ideias e fluxos de vida. O teatro é um acontecimento de cultura, envolve ricos processos de criação de todos os envolvidos, diria ainda mais, daqueles que participam não somente da encenação, mas dos que assistem as peças, sejam quais forem e como acontecerem, independentemente de sua faixa etária. (GOBBI, 2010, p. 15)

A exploração das múltiplas linguagens na educação infantil, pode contribuir para uma maior expressão das crianças. Em uma das intervenções foram utilizados dois contos, em que as crianças puderam recontar encenando, e isso foi marcante, pois as crianças puderam vivenciar a história sendo os personagens, expressando seus modos de se colocar no mundo, pela fala, pelo canto, pela dança, pela pintura, pela interação com a literatura, a poesia, a música e a invenção.

Imagem 5: Pintura coletiva Menino Maluquinho / Imagem 6: Pintura em Xilogravura a partir do projeto Literatura de Cordel

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Imagem 7: Contação de histórias O Rei Cacto e a Princesa Suculenta com encenação feita pelas crianças / Imagem 8: Intervenção feita com as crianças após a contação onde foi-lhes apresentado várias mudas de cactos e suculentas e depois feito o plantio.

As professoras nos orientavam a explorar cada vez mais o corpo, o movimento e possibilidades das crianças, apontando a necessidade de oportunizarmos espaços, tempos e brincadeiras que possam dar abertura para diferentes expressões e aprendizagens. Assim, a partir da história do menino maluquinho, junto com as professoras de educação física da escola, elaboramos um exercício de crossfit com escalada numa rede de cordas, experimentações com slackline, etc.

Imagem 9: Slackline – Circuito na UMEI – 2019

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Tínhamos o desafio de pesquisar o novo, para produzir conhecimento com as crianças, através da brincadeira. Uma brincadeira tomada como linguagem desafiadora apontada pelas crianças nos cotidianos da escola. Compreendemos com Ferraço (2007, p.78) que: qualquer tentativa de análise, discussão, pesquisa ou estudo com o cotidiano só se legitima, só se sustenta como possibilidade de algo pertinente, algo que tem sentido para a vida cotidiana, se acontecer com as pessoas que praticam esse cotidiano e, sobretudo, a partir de questões e/ou temas que se colocam como pertinentes às redes cotidianas.

Assim, em meio às redes tecidas no cotidiano escolar, as atividades foram sendo produzidas com as crianças, enquanto desafios apontados por estudantes de pedagogia, educação física e artes cênicas em formação expansiva.

Imagem 10 e 11: Crianças no circuito na UMEI-2019

Descobrimos em nossas docências e intervenções, com as crianças e as demais professoras da escola, potenciais que ultrapassam o já posto. A cada projeto, um novo desafio e experimentações de aulas diferentes e dinâmicas, envolvendo músicas, brincadeiras, contação de história, teatro, múltiplas linguagens. Um trabalho de indagação dos modos de fazer educação, modos de dar aula e habitar os corredores da escola de forma que não sejam só corredores, mas espaços e tempos de ampliação das aprendizagens, pela exploração de todos os espaços, até os mais improváveis. As múltiplas linguagens oportunizam às crianças modos de expressão pelas brincadeiras, música, dança, criação de histórias, teatro, possibilitando uma prática 142


pedagógica mais coletiva e inventiva. Toda essa experimentação constitui-se como elemento que ajuda os estudantes e futuros professores, a problematizarem suas docências a todo tempo, no encontro desafiador com a possibilidade de fazer o novo, de ser outros, com movimentos que podem contribuir para uma educação mais sensível, inventiva e transformadora. Como pausas no deserto ou encontros ilógicos; devires imperceptíveis, experimentações, energias ou silêncios de transformação se propagam nas relações entre professores e crianças, (de) formando seus modos de docência, infância, aprendizagem, inventando nos espaços e tempos da escola, a partir dos encontros como acontecimento; outros mundos, formas diferenciais de experimentar a grupalidade e os movimentos curriculares como atividade micropolítica que conjuga uma vida e os traçados afetivos de suas imanências (PRATES, 2018, p. 82).

A invenção de outros mundos, apontados por parte, remete a pensar a força dos encontros entre professores, crianças, futuros professores e as políticas públicas de formação docente, que se efetivam em Programas como o PIBID, em que oportunidades são arremessadas e transformadas em novas possibilidades de produção e transformação de si.

Os ziguezagues da docência... O encontro com as crianças e professoras na educação infantil, oportunizou-nos movimentos de produção docente em que no espaço da escola, tínhamos a professora orientadora e junto a ela, observávamos aulas e traçávamos planejamentos para intervenção com as crianças. Concomitante a essa metodologia na escola, tínhamos na Universidade, encontros para planejamento das ações na escola e tentativas de estudo e escrita mais acadêmica. Com o tempo, a partir das vivências tecidas no estudo, pesquisa e experimentação na escola, começamos a produzir os nossos projetos de intervenção com as crianças, atuando inteiramente como docentes, pela primeira vez. Criamos um projeto interdisciplinar nas composições entre trios e duplas, entre os estudantes de pedagogia, educação física e artes cênicas, que foi trabalhado durante o ano de 2019 na UMEI com as crianças. A orientadora, pediu que ficássemos em turmas diferentes para que conhecêssemos as crianças e a turma como um todo, para uma intervenção a partir do que as crianças demandassem. Adentramos a turma do 5F. O primeiro contato foi desafiador, era a nossa primeira aula como professoras, pesquisadoras. 143


Nosso projeto era sobre sons e brincadeiras regionais do Brasil, nós levávamos muitas brincadeiras e sons que as crianças não conheciam. A partir do momento que você traz outras culturas, tudo vira novidade, e o nosso objetivo era que as crianças pudessem brincar e apreciar cada som, aprender coisas novas, e sons diferentes. A cada aula era passada uma brincadeira ou atividade pedagógica.

Imagem 12: Crianças brincando no pátio da UMEI - 2019

A cada aula, novas abordagens, novas questões. Tínhamos medo de errar, mas, ao mesmo tempo, esse medo ajudou-nos a ir, aos poucos, entrando em relação com as crianças, seus desejos, seus medos também. Antes de começar as aulas, criávamos sempre um plano de aula, mostrávamos a nossa orientadora para que ela contribuísse, a partir desse movimento. Pegávamos os materiais e nos preparávamos para começar a nossa aula. Como aponta Corazza (2012, p.237), “O professor necessita fazer um trabalho de maior relevância, que pertence à aula, mas precede o ato de dar a aula: trabalho preparatório, ‘invisível e silencioso, e, entretanto, muito intenso’, pelo qual o ato da aula é um a posteriori em relação a esse mesmo trabalho”. As nossas intervenções eram realizadas no PIBID, durante as aulas de uma professora de Educação Física, daí o nosso investimento em atividades mais brincantes e corporais, pela exploração de múltiplas linguagens.

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Imagem 13: Crianças brincando no refeitório da UMEI- 2019

As aulas aconteciam no refeitório. Na escola não tínhamos quadra de esportes, aproveitávamos todos os espaços da escola, o que, de certo modo era potente, pois todos os espaços constituíam-se como espaços de aprendizagem e espaços de aulas. A turma era diversa, com crianças autistas, crianças com síndrome de down. Todas as crianças participavam da aula e das atividades propostas. A partir dos nossos projetos de intervenção, junto com as crianças, íamos redesenhando os planos de aula, objetivando ampliar a oportunidade de aprendizagem. Assim, no desejo de conhecer o instrumento musical casaca, oriundo das terras capixabas, iniciamos nossas conversas. A casaca e a produção de uma aula... O primeiro movimento foi de desenho, cada um desenhou a casaca do seu jeito, usando sua imaginação e criatividade. Depois o manuseio, a experimentação, o toque, o som, a melodia e seus desdobramentos.

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Imagem 14: Instrumento Casaca/ Imagem 15: Crianças tocando casaca na UMEI- 2019

A corrida, os circuitos e banhos de mangueira, a criação de brinquedos... Em uma outra aula, no refeitório, planejamos junto às crianças, uma atividade de corrida, compreendendo com Kastrup (2001, p.19) que “[...] a ação motora, por si só, não substitui o privilégio da sensibilidade como origem da aprendizagem, esta será antes de tudo uma aprendizagem da sensibilidade”. Uma das crianças autistas tinha medo de correr, a outra não gostava de fazer as atividades pedagógicas em sala de aula. Nessa aula, a menina que tinha medo de correr, participou da aula, correndo junto com as outras crianças. Seguramos na sua mão. A criança que não gostava de fazer atividade em sala, participou ativamente. Com o tempo a criança autista foi participando das aulas.

Imagem 16: Crianças brincando no refeitório da UMEI-2019

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Assim, o projeto oportunizou diferentes traçados, ziguezagues das docências, como movimento que obriga a (de) formar o tempo, a visão de aula, escola, planejamento, para compor em encontros como experiência. Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera (LARROSA, 2002, p.23).

Foram ziguezagues delineados pela aposta em encontros brincantes que, a partir da experimentação de múltiplas linguagens, oportuniza aprendizagens. “A criança não nasce sabendo brincar, é nessa relação com os outros que ela vai constituindo esse entendimento, e assim começa a compreender o brincar como forma de linguagem” (LOMENSO; VINCI DE MORAES, 2012, p.5). Assim, a aposta em circuitos, brincadeiras e produção de brinquedos.

Imagens 17 e 18: Circuito no gramado / Imagem 19: Banho de mangueira na Umei-2019

Nesse movimento de intervenções, produzimos aulas em que, experimentávamos circuitos junto às professoras de educação física, propúnhamos uma brincadeira regional, contribuindo com o projeto da escola, em uma tentativa de invenção com as crianças de novas tessituras do cotidiano escolar. Produzimos petecas com areia, sacola, tnt, e pedras bem pequenas; sendo que, em outros momentos, brincávamos no pátio com essas petecas produzidas. Nessa tessitura produzimos juntos, dois bois feitos de caixa de papelão, representando a cultura de uma das regiões do Brasil. Todos os brinquedos confeccionados pelas crianças, do jeito delas. Outro aspecto a ser destacado tem por objetivo descaracterizar a ideia de redes de fazeressaberes como algo que acontece no cotidiano, como uma dada característica ou propriedade do cotidiano. Consideramos cotidiano o próprio movimento de

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tessitura e partilha dessas redes. As redes não estão no cotidiano. Elas são o cotidiano! (FERRAÇO, 2007, p. 78).

Imagem 20: Crianças brincando com o boi no pátio da UMEI-2019

Experimentar esse movimento da escola, fazendo com as crianças, inventando, constitui-se como aprendizagem potente na produção de uma docência que quer estar junto, aprender sempre. Todos os espaços da escola, até os desabitados e estreitos, foram descobertos e alargados, como novas possibilidades de compor uma aula, para além do já posto, como liberdade e aprendizagem que “[...] avança com a tomada em consideração de um número crescente de elementos do ambiente, que passam a compor o contexto onde a ação se dá’’ (KASTRUP, 2001, p.22). Linhas de escrita e vida... O PIBID chegou ao fim em dezembro de 2019 e foi preciso escrever um artigo sobre o trabalho desenvolvido. A escrita não é um exercício tranquilo, pois o vivido sempre transborda em relação à escrita sobre ele. Lançamo-nos à essa empreitada que nessas linhas conclusivas, desejam prosseguir. Afirmamos, nessa tessitura, a importância desse programa e dos estágios na formação inicial. Interessante seria se todos os estudantes das licenciaturas que irão se formar 148


professores um dia, pudessem vivenciar os campos de pesquisa, e principalmente com bolsas de estudo, pois essa contribuição, por vezes, é a única alternativa para algumas pessoas que não tem condição financeira de fazer um bom estágio, por trabalhar o dia inteiro e não ter tempo para o investimento mais qualificado nessa atividade. Ao iniciarmos essa escrita, tínhamos algumas indagações. E para concluir essa escrita, desejamos afirmar que acreditamos na funcionalidade desse projeto como melhoria na educação e incentivo à carreira do pesquisador, pois essa experiência fez diferença em nossa formação docente, pelas experimentações com as práticas tecidas na escola com as crianças e professoras, enquanto movimento que provocou rupturas em nosso modo de pensar e fazer educação, pelo exercício docente que obrigou a entrar em relação com a educação de uma maneira diferente. Aprendemos que a docência é tessitura de vida, linhas de errâncias. Assim a necessidade do investimento em políticas públicas que potencializem diferentes modos de estágio docente, pela conexão entre educação básica e ensino superior, em linhas que tecem escritas e vida. Referências ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In OLIVEIRA, Inês Barbosa de e ALVES, Nilda. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.13-38 ALVES, Nilda et al. (Org.). Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2002.BRASIL. Ministério da Educação 2018. Disponível em:< http://portal.mec.gov.br/pibid> Acesso em 18 de Nov de 2020.

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