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HÍBRIDOS: RASCUNHOS DE UMA PESQUISA ATORAL PARA DOCUMENTÁRIOS
Rejane Kasting Arruda3
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Resumo: A residência “Híbridos” entre a Cia Poéticas da Cena Contemporânea e a Andaluz Filmes, engatilha processos criativos com os atores a partir de procedimentos desenvolvidos pelos dois coletivos marcados pelo hibridismo. Hibridismo entre estéticas documentais e ficcionais; entre as trajetórias com Cinema e Teatro, Filmes de Ficção e Documentário; Jogo e Atuação; Montagem e Processo. A partir da vivência nesta residência, engendrei uma série de reflexões que tocam em questões como: a estética onde o ator está inserido e como ele maneja seu jogo para constituir uma poética que atenda às demandas e inclua princípios necessários as espeficidades de cada uma delas. Em pauta esstá, principalmente, o efeito de real demandado por Cinemas Contemporâneos que não suportam a visualidae da situação de representação, muitas vezes impressa pelo trabalho do ator. Ao invés da representação, o jogo; e tomo como modelar os testemunhos dentro de documentários que proponho chamar de lúdicos, como é o caso de Jogo de Cena de Eduardo Coutinho. Uma exploração sobre o épico e o dramático empresta fundamento à hipótese de que o ator epiciza seu trabalho junto a uma corporeidade que se coloca na poética fílmica e atoral como rugozidade.
Palavras-chave: Ator; Poética Atoral; Cinema Híbrido; Documentário; Épico.
A residência “Híbridos” foi iniciada com a Andaluz Filmes em fevereiro de 2021 estruturada
com duas oficinas, uma conduzida por esta autora e a outra por Rodrigo Cerqueira e Roberta Fernandes, sócios e propositores do projeto junto a SOCA4. Rodrigo e Roberta trouxeram a
3 Doutora, mestra e bacharel em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Trabalha com pesquisa em Artes, com ênfase em Poéticas Contemporânea e a interface entre Criação Artística e Psicanálise. Atriz, diretora, produtora cultural e coordenadora de projetos da Associação Sociedade Cultura e Arte SOCA. 4 O projeto foi contemplado pelo Edital Artes Integradas – Residências da Secretaria de Estado da Cultura e recebeu apoio da Lei Aldir Blanc. Ver mais em: https://www.socabrasil.org/híbridos
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experiência com documentários lúdicos (termo que proponho), quando as falas dos “personagens”5 são trocadas. Assim como em “Jogo de Cena” (2007) de Coutinho6, em “Se você contar” (2017) Roberta Fernandes propõe um jogo nas entrevistas. No filme de Roberta, as entrevistadas assumem como suas as falas das outras mulheres, provocando a epização das histórias (são de todas elas) - as deslocando do drama individual para a alteraidade capaz de perceber-la como sua; espessando a presença de um coletivo. Rodrigo e Roberta trouxeram o procedimento para a residência com a Poéticas, experimentando-o com os atores Ana Paula Castro, Daniel Monjardim, Mariana Alves e Philippe Emanuel e resultantes podem ser vistas na série “Híbridos: Rascunhos de Uma Poética Atoral para Documentários”7 Antes desse experimento, houve uma oficina assistida onde introduzi a práxis com os registros cinematográficos8 (Arruda, 2019) e fala interna. Foram exercitados princípios da atuação sistematizados anteriormente junto a proposição “Se a pandemia estivesse no seu quinto ano”. Outros “mágico se”9 foram propostos, como “Um de nós é viciado”. Sugestionados por situações fabulares, os atores improvisavam – tendo como regra o uso dos registros e da fala interna10. Antes do jogo, a escrita livre para aquecimento. Esta residência me proporcionou uma descobreta a partir da qual engendro uma reflexão: o ator em função de estétcias diferentes, em busca de maneiras de epicizar seu trabalho; a corporeidade como rugosidade e possibiliade de epicizando da poética da atuação no Cinema. Discorro sobre algumas diferenças metodológicas e questões que se apresentam especialmente em estéticas fílmicas que não suportam a impressão de uma situação de representação. O insigh sobre a corporeidade como elemento épico apareceu quando Mariana Alves terminou um exercício; a corporeidade evidente; rítmos corporais com certas dinâmicas próprias e singulares; e o olhar típico de quem presentifica a escuta da fala interna11 , provocando a interrupção da interpretação sobre o dramático-diegético e deslocamento do interesse para a própria poética do ator. Eu perguntei onde ela manteve a escuta ou a visualização, ou seja, com o que estava jogando. Ela me respondeu: “Nada, eu só estava ali”. Percebi a corporeidade como elemento de estranhamento,
5 Na cultura do Documentário os entrevistados (ou retratados) são nomeados “personagens”. 6 O filme está disponível em algumas plataformas de streaming, como o Now e o MUBE. 7 Disponível no Canal Youtube da SOCA: https://www.youtube.com/c/socaiassociacaosociedadeculturaearte 8 Proponho uma sistematização de “registros” com os quais o ator joga para enquadrar-se na linguagem cinematográfica. Ver mais em: ARRUDA, R. K. Seis Registros Para a Atuação em Cinema. In: ARRUDA, R. K. A Arte e/em Processos de Subjetivação. Porto Alegre, Simplíssimo, 2019. 9 Termo utilizada na cultura stanislavskiana de atuaçao, quando o ator precisa ser aproximar e tomar como sua uma situação que é de outro. Experimentei este procedimento no filme “Sem Abrigo” (Leonardo Remor, 2017). Disponível em: https://vimeo.com/153950041 com a senha abrigopass. Acesso em: 25/07/2021. 10 Vou explicar do que se trata. 11 Qualquer imagem acústica onde o ator situa o foco da sua atenção que, então “repousa” sobre ela. Vou desenvolver mais este conceito no decorrer deste ensaio.
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quando encontra o espaço para estar, não tamponada pelas demandas de representação que condicionam uma fala ou um corpo “lisos”12 . Divago neste ensaio sobre premissas, estratégias, evidências e fundamentação. Esta reflexão tem três eixos: a teoria, onde situo conceitos importantes para pensar o trabalho do ator; a questão das estéticas em diferentes linguagens com as quais o ator joga; os procedimentos metodológicos. Durante o texto, vou indicando em nota de rodapé materiais para um porterior aprofundamento das questões.
O Aberto e o Fechado para Introduzir o Conceito de Rugosidade
Drama em Sarrazac implica: tempo fechado, conflito no desenrrolar deste tempo, linearidade, dialogo. Este “fechado” está em oposição ao “aberto” do épico13, quando entra em jogo uma tridimencionalidade produzida pelo vetor perpendicular que fura a “bolha” do universo diegético14 (drama) e “sai” em direção a posição de quem está olhando de fora. Esta abertura para uma outra tessitura do espaço-tempo está presente em qualquer contação de história, em qualquer revelação de bastidores, em qualquer narrativa. Quando eu conto, presentifico o eixo de quem escuta; também o meu lugar em relação ao fato narrado. São três tessituras portanto, e três vetores. São três espaçostempo. São três fissuras. O épico é “rugoso”, com dobras, hiatos, rachas. Ao contrário do drama, que é “fechado”, “liso” – ou seja, sem fissuras. Esta ideia fundamenta a teoria do teatro contemporâneo e possíveis hibridismos entre épico e dramático que encontramos, por exemplo, em Sarrazac (2002)15 . Onde começa e termina a tessitura do tempo-espaço onde se encontra Ulisses16? E a tessitura do tempo-espaço de quem ouve o fato narrado? Ou do narrador, que conta a história? Estes espaços não se cruzam: eu estou em um lugar o narrador em outro e Ulisses na história narrada. São enquadramentos diferentes. Entre um e outro existe um hiato, escuro, inimaginável. Não existem pontos de contato, de suturas. O fato de existir um narrador e uma história ser contada implica que este narrador pode brincar com este outro tempo-espaço, indo e voltando, quebrando-o e juntando os pedaços em outra ordem; procurando pontos para passar de um para o outro. A brincadeira pode ser, então, costurar. Quando faço referência a uma mão (por exemplo, uma mão de um dos personagens) e “me lembro” – associo – outra coisa; quando uma palavra leva a uma outra bem distante que, sem
12 Vou explicar este conceito – as diferenças entre “liso” e “rugoso” estão aqui colocadas em referência ao dramático e o épico. 13 Aqui a referência para “épico” é o termo tal como cunhado por Bertolt Brecht para o seu “Teatro Épico” e disseminado na cultura das Artes Teatrais.
14 Aqui quando estamos falando de um universo ficcional. 15 Ver mais em: SARRAZAC, J. P. O Futuro do Drama. Porto: Campo das Letras, 2002. 16 Referência aqui a Odisseia, de Homero: Ulisses, que depois de passar 10 anos na Guerra de Troia, leva mais 17 anos para voltar para casa, passando por muitas aventuras no caminho. Disponível em: https://www.baixelivros.com.br/literaturaestrangeira/odisseia. Acesso em: 25/07/2021.
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lógica, se impõe. Trata-se de um “salto” – para uma outra tessitura. O “espaço” entre as duas é ausente (não vemos uma continuidade). O épico é fragmentado, aos saltos. Os pontos de articulação não suturam, apenas possibilitam os saltos. Não existe uma tessitura base “embaixo” de todas as outras para liga-las. Não existe um tecido único formado pelos pontos de cruzamento. Os pontos de cruzamento (as associações que promovem os saltos) estão “soltos”, não fixados. E o que os determina é o instante evanecente. Estes saltos nas histórias provocados por associações seguem a lógica da “livre-associação”. Muitas vezes um salto nos leva a um elemento novo sem sabermos porque. Não há aparentemente uma lógica. Um pé aqui pode lembrar uma imagem de Rejane criança vendo pescador puxar rede. Que lógica impera nestes saltos? De qualquer forma, este é o modus operandi de uma obra Aberta. Saímos de um contexto-tessitura-tempo-espaço e “aparece” outro. A liberdade dos saltos é também a liberdade da fragmentação. Contextos-tessitura-tempo-espaço podem ser completamente diferentes. Mas o que impera uma montagem quando existe a intencionadade da obra? De fazer obra? De criar uma obra? O fato de termos a materialidade do papel, da voz, da cena teatral, da película de um filme ou de imagens fixadas em certa ordem; estas tessituras materiais – é o que chamamos de “escrita”. Ela não impede nossas associações soltas. Mas, se formos olhar para estas tessituras materiais, ela tem pontos de contato. Na tela, um pedaço de imagem encosta no outro; uma letra emenda na outra no papel; um corpo encosta no outro; um movimento encosta em outro; um som encosta em outro. Trata-se de uma ordem fixa. Por isso escrita. Por isso matéria. As sobreposições17 de um videoarte são da ordem da escrita – foram fixadas. Uma imagem está por cima da outra; um som por cima do outro. E começam as lições de harmonia, melodia ou dodecafonia. Pode-se dizer que uma escrita é cheia de costuras, onde os elementos (os uns) se encavalam ou afrouxam, se sobrepõem ou dividem o espaço. E então vemos onde começa um pedaço (“um”) e onde termina outro (outro “um”); o instante em que se encostam ou se encavalam. Os “pedaços” estão ali “presos”, fixados, grudados naquela superfície material. Não saem mais. O ponto onde suas bordas se tocam é fixado. É é neste ponto que se trabalha algo. Interrompe-se algo para começar outra coisa; existe uma amarração. A passagem é nodosa, áspera, rugoza, evidente (no épico) ou disfarçada, imperceptível (no dramático), formando, apesar da escrita composta por fragmentos, uma ilusão de linearidade. Novamente o: liso e linear, mesmo que seja constituido de pedaços filmados em momentos diversos, enquadramentos e posições de camera diferentes. Mesmo com escrita fragmentada pode-se fabricar um drama, liso e inteiro, fechado na sua lógica “dialogica” – sem abrir-se para outros eixos.
17 Estou me referindo ao recurso de duas imagens sobrepostas que utilizamos muitas vezes no video-arte ou videoperformance.
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O dialogo é um dos elementos-chave deste drama. Isto que chamam “dialógico”, indivíduos em relação, fechados na relação, na “bolha”. Não “cabe” mais ninguém ali, (ou não se denuncia) o eixo de relação com quem os olha; é como se esse outro não existisse. O drama elide outras tessituras. Ele não deixa eu, espectador, penetrá-lo. Os que representam um drama fechado não vão olhar para a plateia ou para a câmera. Se fizerem isso, estarão no reino do épico, estarão “abertos”; construirão um outro vetor – é o que acontece com “Híbridos” (2021), que tematizarei mais tarde, onde se explora a relação com uma diretora conduzindo o jogo de atuação em um experimento investigativo da sua construção. Um diretor que dirige uma cena de atores está nesta posição de outro – de fora. Mas o seu lugar pode ser ignorado; o eixo da relação com este fora elidido. Sujeitos envolvidos em sua relação seguem o seu diálogo (percebe-se que isso acontece também na relação consigo mesmo, pensamento e ambiente, no caso do monólogo ou cena solo). Um joga a palavra para o outro, um rouba a palavra do outro; eles chocam palavras, batem com palavras; soltam no ar – levemente – as palavras; eles puxam as palavras, arrancam, cavam, sopram palavras; socam, trancam, cospem, deslizam, atiram, esgarçam palavras; subdividem, repetem, multiplicam palavras; desdobram, invertem, palavras; trocam palavras; traduzem, da lingua de um para a lingua do outro, do sistema de um para o sistema do outro, do HD de um para o HD do outro, as palavras. Palavras vão e voltam, se acumulam, acabam, se esvaziam, cansam, respiram – neste universo fechado sem que em nenhum momento haja uma interferencia “de fora” ou ruptura na linearidade do jogo que se desenrola no tempo como um tapete. Há uma beleza, pode-se assim dizer no dramático. E outra no épico. Há beleza tanto na linearidade de um jogo quanto na fragmentação – quando o fora rompe, troca, brinca, com um contexto de um tempo-espaço outro, para saltar e voltar, comentar e aterrizar em outro pedaço; e enfiar um elemento de um em outro; deslizar pedaços para lá e cá, mistura-los, condensa-los; coloca-los juntos e se afastar, observar, rir, trazer um quarto e alternar um e outro, um e outro, um e outro (o narrador faz isso). Cada modalidade – épico e dramático – tem a sua própria beleza. A linearidade do drama se organiza com desvios e peripécias, “embolamentos” e soluções; tensões e resoluções. O ponto máximo da tensão, onde parece que não existe uma saída – é neste ponto, que gera angústia – para em seguida vir o desenlace, a solução e o alívio O drama é um jogo que se retroalimenta em torno de um conflito, que aperta e depois desenlaça. Com um único nó, a tal unidade. O drama é nó-único. E isto depende de um roteiro (ou seja de uma montagem intencional, de uma escrita). Pode-se dizer que o espectador experimenta o percurso “como se” fosse vivido linearmente – em uma operação que Stanislavski chamou “empatia” ou “identificação”. O espectador tem vontade de interferir e desata-lo, mas está fora. Barrado, olha e escuta, fingindo ausência; quase sem nem respirar, para não denunciar a sua presença e quebrar o pacto.
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Foi esta posição do espectador que o Século XX se esforçou por mudar de todo jeito. Artaud, Grotowski, Brecht, etc. Onde está o espectador? Ele pode ser um actante da obra? Ele pode ser colocado na posição de um juiz ou perguntarmos para ele como termina esta história mudando o fim conforme sua resposta? Ele pode ser o alvo da violência, quando o provocamos colocando-o no lugar do oprimido, e logo que chegar no espaço vai passar por um corredor polonês18? Ou podemos enfiar um capuz em sua cabeça para que não enxergue e leva-lo de carro simulando um sequestro, solta-lo em um lugar irreconhecível sem que saiba onde está e coloca-lo em uma situação de extremo desconforto e medo para que sinta na pele o que sentem as pessoas que vivem em meio a guerra na Arábia Saudita19? Ou podemos perguntar-lhe gentilmente coisas para que fale sua história no meio do espetáculo? Ou podemos chama-lo ao palco para votar se a guerra continua?20 Simplesmente olhar-lo e cantar uma canção? Ou podemos chama-lo para cantar? Ou podemos toca-lo? Podemos chegar muito perto e falar uma série de verdades na cara dele ou cochichar no ouvido? Entregar-lhe um papel onde está um código e depende dele revela-lo em certo momento? Ou seja, podemos coloca-lo em uma posição de responsabilidade. Estes recursos, épicos – que revelam o eixo da relação com quem está fora, incluindo-o foi tema de uma profícula investigação durante todo o século XX. Grotowski realizava eventos onde o publico entrava no “espetáculo” (não era considerado espetáculo e sim happening), e as fronteiras entre espectadores e atores se diluiam completamente. Uma total diluição do drama no ritual do encontro.
Percebeu-se que existem muitas posições onde este “espectador” pode ser colocado. Não em termos espaciais somente, mas em termos subjetivos – ou seja, do que diz respeito a relação com o outro. O espectador entra em relação. No entanto, é uma relação forçada, porque quem detém “as regras do jogo” é o grupo de atores. E então se testa a resistencia ou a abertura para viver experiências deste espectador. Muitas vezes ele é convidado para entrar em cena e encenar um outro final. Este procedimento está associado a um exercício crítico de provocar transformações em situações dadas. Se descobriria assim, que não é preciso se submeter às situações, nós devemos (e somos capazes) de mudá-las. Se associa a escolha da dramaturgia – baseada em conflitos reais do publico ou contradições sociais – como um espelho da injustiça que ele vai mudar, interferindo e propondo outro desenlase. Espera-se assim que chegará em casa e mudará sua vida, porque viu esta possibildidade concreta
18 Referência ao espetáculo “Apocalipse 1,11” (Teatro da Vertigem, 2000). 19 Espetáculo dirigido por Lucien Bourjeily especialmente para o LIFT Festival 2012, em Londres. 20 Meryhold mantinha uma tribuna aberta, o publico subia em cena para opinar. Ver mais em: ABENSOUR, Gerard. “Vsévolod Meierhold: ou a invenção da encenação”. São Paulo: Perspectiva, 2011.
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acontecer no Teatro – e devido a sua interferência, escolha e ação21 . Nestes casos, é a evidencia do lugar do espectador e seu manejo que “quebra” a linearidade dramática. O que acontece na história da dramaturgia? O dialógico-fechado-liso-dramático é associado ao burguês. Os dramas expressam conflitos que dizem respeito aquele indivíduo e não as contradições sociais (como defencia Brecht)22, coletivas (épicas). O coro é épico. Por isso o uso recorrente do coro nas encenações contemporâneas. Podemos observar exemplos do uso do coro e da mistura entre o épico e dramático na obra de Nelson Rodrigues23. Mas é também possível encontrar na pequenez de uma vivência individual, a contradição social. Quando Brecht coloca Mãe Coragem para vender objetos na Guerra, faz questão de mostrar que alimenta a guerra que lhe tira os filhos, e esta é uma contradição, não um conflito. No entanto, quando falamos “dramático”, estamos falando de categoria em oposição ao épico em relação dialética que permite diferentes relações e que enquanto modelo puro é impossível; Szondi24 o atesta, mostrando elementos épicos no interior do drama de dramaturgos do Seculo XX (desde a virada do XIX)25 .
Szondi fala do drama moderno classicista já do ponto de vista da sua impossibilidade. Nesse sentido, chama atenção o fato dessa forma ser definida ali, muitas vezes, por um conjunto de negações, ou seja, por conceitos que apontam para o que o drama não é mais, o que só se torna possível já de fora daquela forma tradicional. (OLIVEIRA, 2014, p. 119).
Esta unidade de tempo-espaço-ação aristotelica, representa, na dramaturgia contemporânea, uma modadalidade em jogo, algo a misturar. Sarrazac defende-o como transbordamento.
Em relação a cada obra estudada, poderíamos verificar que o devir rapsódico procede por transbordamentos incessantes. Do dramático pelo épico ou pelo lírico, é claro. Mas, igualmente, no outro sentido, do épico ou do lírico pelo dramático... No entanto, transbordar não significa aniquilar. (SARRAZAC, 2002, p. 103).
A partir desta premissa propomos pensar maneiras de jogar com esta dialética, quando se tem a poética do ator e do filme em relação complementar. E relembrando a quantidade de verbos que fazem alusão às atividades físicas de sujeitos falantes: socar, lançar, soltar, etc (nossa lista de há
21 Referência ao Teatro Fórum, proposiçao de Augusto Boal. Ver mais em: BOAL, A. Teatro do Oprimido e Outra Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1991. 22 Ver mais em: BRECT, Bertolt. Estudos Sobre Teatro. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1978. 23 Considerado o maior dramaturgo brasileiro. Ver mais em: RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2012. 24 SZONDI, P. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2012. 25 Ele analisa Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck, Hauptmann, e segue percorrendo importantes dramaturgos do Século XX.
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pouco)26; pensamos que o âmbito da palavra é uma das possibilidades de se jogar, já que o diálogo se estabelece como um elemento chave.
Estar em uma Estética Outra ou O Jogo em Nome Próprio Revelado no Documentário Lúdico
É importante nos perguntarmos porque é preciso apontar uma borda, um limite, um para fora, “nada a ver” para que uma poética surja. Esta proposição vem perfeitamente de encontro com a cultura de um Cinema Contemporâneo que preza pelo não-dramático; pelo esvaziamento do tempo e desenlaçamento deste tal “nó-único” que vai sendo apertado e tensão que acelera. Tem roteiro não construído em bases dramáticas; mais próximos a representação do cotidiano quando se revela singularidade, ambiguidade e contraidção. Contemporâneamente temos exemplos; e é importante que o ator tenha noção da estética com a qual sua poética precisa entrar em relação. É algo importante a lembrar: o cinema contemporâneo preza algumas vezes inclusive pelo esvaziamento do sentido, propondo relações com o espectador que não a voyerização do “drama bem feito”. Poderíamos citar filmes, mas não queremos entrar na análise destes – apenas considerar esta estética. É preciso ter cuidado ao fazer Cinema Contemporâneo, e se inspirar no esvaziamento do “simples estar” (e não representar). Este quase nada é o lugar onde o ator se coloca e, com um diapasão bastante sensível perceber as próprias reações e ações de bastidor. É como se a camera não estivesse ligada e a tessitura da realidade do set situasse o foco de atenção. Assim, a captura da imagem é mero acidente. Outras vezes podemos resignificar a presença da câmera, em fantasia e imaginação – potencializando o jogo com o externo a partir de certas “leis” da poética atoral. É importante ressaltar que existe uma evidente diferença entre este cinema e a teledramaturgia, que tem demandas próprias de seu meio de produção, como não deixar o publico trocar de canal e correr com a ação para trazer nova informação ou reviravolta na trama; tipificação com acento de melodrama para que uma trama se estabeleça entre peças bem demarcadas no tabuleiro da sociedade: o vilão, a mocinha, a justa, a “safada-sedutora”, o bandido. A atuação na Teledramaturgia exige do ator uma estética específica. Vemos a imobilidade com excesso de dilatação (que expressa tenção e cujo ápice seria o escorrer de lágrimas); vemos trejeitos tipificados e teatralizados (com contorno definido e dilatado); o exagero parodístico. As falas são decoradas dia-a-dia em variações cuja lógica do personagem impera e a surpresa com o percurso descoberto pode ser impressa (contexto do ator) evocando reações do personagem (através do jogo com a verdade do ator).
26 O que significa a alusão a ação física poderíamos perfeitamente chamar de viewpoint em referencia a práxis proposta por Anne Bogart. Ver mais em: BOGART, A. & LANDAU, T. O Livro dos Viewpoints: O Guia Prático para Viewpoinst e Composição. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2017.
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Ao contrário do que acontece na TV, neste movimento específico, calcado em cotidianidade marcante, jamais a frase decorada terá lugar. Necessitaremos de estratégias para construir interferências e imprimir rugosidades na enunciação. O pensamento em nome próprio pode ser utilizado; com a espessura de sua presença aparecendo para o espectador como uma tessitura enigmática. Muitos cineastas se ancoram no improviso das falas. A oralidade de uma fala decorada, regular e com contornos bem definidos (teatral), que se fecha; pode-se dizer lisa, sem imprecisões, quebras, falhas, impactos, impasses, caroços, hiatos. Estruturada a partir da interpretação de um roteiro, sentido da ação que supostamente o personagem executa ou da fala a partir do que ele supostamente quer. Acreditamos que é preciso perturbar esta produção, furando-a. Viewspoints podem ser utilizados diretamente entrando como regra em foco mas percebemos que também geram teatralidade. Explico: são desenhados. Mesmo que trabalhem as rugosidades, para esta estética não funciona. O que funciona bem no Teatro – produzindo os caroços de uma poética atoral parece não ser o caminho no Cinema. Há algo que precisa ser residual, abrindo lugar para uma corporeidade própria unida à cotidianidade – foi o que concluímos em Híbridos. O não decorar o texto; não creio que seja a saída. Há duas coisas para se pensar, importantes, eu creio. Mesmo não decorando falas, é comum o actante (para não dizer ator, porque acontece com não-atores) imprimir o liso e bem acabado tipico da representação em uma improvisação (por exemplo). O que está em questão é uma noção (equivocada) de representação: armar o sentido e reproduzi-lo na entonação. Por outro lado, o exercício da repetição da ação de decorar, cria uma oralidade fixa e concreta. Sendo mais forte que outros elementos e estando o ator ainda sem as ações construídas, será reproduzida e isto gerará uma artificialidade evidente. Em outra estética tudo bem, mas não nesta.
Esta estética se vale de elementos próximos de um documentário direto; a camera capturando ações supostamente reais impressas no cotidiano, tempo-espaço daquela pessoa e vida, oferecendo certas imprecisões, como o saculejar da camera na mão que busca enquadrar a pessoa e muitas vezes a perde; ou o duplo enquadramento quando algo se intromete na frente. Tanto em relação à camera (e supostamente à pessoa que está atrás dela e imprime um olhar mediado) quanto em relação as pessoas filmadas, a impressão (ou efeito) precisa ser “de real”. É construção, resultante do dispositivo que implica a relação entre todos ali, entre as diferentes tessituras de tempo-espaço e a interferência da equipe de filmagem no cotidiano daquelas pessoas, mas de qualquer forma são fundamentos de certa estética que não suporta a evidencia do ato de representação trazido muitas vezes pela fala do ator. Porque sugerir o descarte do improviso? Existe um âmbito da estética, que é a montagem das palavras, esta implica rugosidades que podem ser importantes na linguagem do filme. A improvisação
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é linear. Pode-se, no entanto, investigar dispositivos, bastante justos e complexos, para retirar o ator do conforto do liso na improvisação. A montagem pode assumir uma função importante, picotando o que até então era linear – para que, justamente, as rugosidades, saltos e nós surjam, e com eles a poética. O que se sugere aqui é trabalhar com a escrita para a memorização de um texto que vai ser descartado – e ficar como residual. Haverá uma seleção (montagem) na hora da primeira fala – já em relação com o outro e a camera ligada. Esta fala se acomodará junto às ações. Esta é uma metodologia que costumo usar, mas ainda assim, ela depende de um dispositivo de jogo que impeça a atualização de uma fala lisa. Ou seja, mesmo não oralizando antes, por estar em situaçao de representação, o ator desenha as falas muitas vezes. É preciso que ele tenha em seu repertório um registro oral com a cotidianidade impressa. De qualquer forma a escrita ativa a corporeidade, o que não elimina o risco desta ser tamponada por uma plasticidade lisa. Há regras de jogo para se imprimir uma ‘fala testemunhal-cotidiana” na atuação? Sim, mas são bastante complexas e reivindicam, muitas vezes, o afeto do alheamento, desistência, esgotamento. Trata-se de uma corporeidade resídual se abrindo como chagas. Trata-se aqui de defender que, com esta poética da atuação o ator pode ser épico, não com o gestus, citação, paródia, lirismo, crítica, viewpoints ou denuncia do eixo da relação com o público, mas na evidência de sua corporeidade. O não representar, e encarar o nada e o não saber; mesmo sabendo o texto, se aventurar na fissura, nesta queda no abismo, se arriscar pelas bordas – esta intencionalidade pode estruturar seu jogo, ou outra coisa que o perturbe (e fure o liso de sua fala). Sem o encapamento do liso, ele vai se segurar na relação com o outro e no espaço entre-dois que se espessa. Nesta espera pelo outro, que inclusive pode ser uma regra de jogo. Quais resíduos de ações primárias implicam este intervalo? Quais treinamos para que apareçam como resíduo aderente a uma corporeidade própria? No filme “Jogo de Cena” (2007), Eduardo Coutinho apresenta atrizes com falas de pessoas comuns como se fossem próprias. Testemunham uma experiência, da mesma maneira que fazem as mulheres que experenciaram de fato o narrado. O diretor coloca ambas no filme, duplicando os depoimentos e confundindo o espectador. Trata-se de corporeidades diferentes; não há um desejo de imitação, mas de apropriação da fala do outro. As atrizes aparecem tematizando seus processos de construção, revelando o que mobilizou, incomodou, emocionou e quais as estratégias para emprestar veracidade às palavras. Fico apaixonada de ver estes testemunhos de um jogo em nome próprio onde o silêncio, momentos preciosos, quase desvios, interferências,onde a corporeidade se revela inteira, vem dos incômodos. A regra de sustentar o jogo impera, e a atriz continua, mesmo com o incômodo ou a questão (em nome próprio). Nestes intervalos o que se vê é uma relação com o outro (o outro Coutinho ou o outro Mulher, ou mesmo o outor Si Mesmo). Esta relação transparece nos gestos, olhar e ações.
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É revelado um princípio: a presença do pensamento (e uma demanda) que inclui a relaçao com o outro tecida no espaço-tempo dos bastidores: o que ele quer, como respondo a isso (e não o que “eu quero” ou o “personagem”, como na proposição stanislavskiana). As atrizes decoram o texto e produzem uma apropriação; elas tem a imagem da outra mulher presente no jogo, mas se recusam ao ato de representação, de maneira que trabalham com o que chamamos “regra de negação”: “não vou imita-la”. A busca pela compreensão – estar com o sentido aberto e colocar-se diante das surpresas e espantos, também se revela como uma estratégia. Uma interpretação rugosa, com desvios ou incômodos, fissuras e contradições, extraindo o detalhe para situar o foco. Demonstra-se o jogo não só da cena, mas atoral.
Uma Questão Metodológica: O Rugoso na Poética da Atuação
“Estar professora” foi possibilitado por descobertas pessoais. Diante das dificuldades e articulando pesquisas sistemáticas desenvolvidas no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator da UFES, fui inventando procedimentos. Quando filmei “Medo de Sangue” em 201127 , pensei: tenho que mostrar isto. “Isto” era: fala interna. As pesquisas tiveram inicio em 2006, por conta de um Mestrado na Escola de Comunicações e Artes. A metodologia consistia na intersecção entre Spolin, Kusnet e Barba, bastante simples de compreender: Spolin com a ênfase no jogo (em nome próprio e frequentemente com não-atores); Barba com a ênfase na fisicalidade e as partituras corporais (de um ator-bailarino); e Kusnet (1992) (stanislavskiano) com a ênfase (na representação do texto dramático pelo ator) na Análise Ativa28, e construção cênica baseada em partituras, material externo e interno, dentre estes, a fala interna e o uso da escrita como procedimento. Stanislavski, Barba e Spolin foram os três eixos da formação no Bacharelado em Interpretação Teatral29, com Armando Sergio (Stanislavski), Beth Lopes (Barba), Malu Pupo e Ingrid Koudela (Spolin). Haviam divergências discursivas nos escopos destas abordagens e eu precisava descobrir uma estrutura que unisse logicamente as três – pois ambas eram importantes (como testemunhávamos na práxis). É importante dizer que diferenças discursivas e metodológicas fundam diferenças estéticas; e a articulação entre as três abre, justamente, para novas resoluções.
27 Medo de Sangue (Luciano Coelho, 2011). 28 Perspectiva de analisar o texto dramático alternando leituras e procedimento de improvisação com o ator em ação em cena – sendo que os sucessivos experimentos vão alterando a interpretação deste texto ao longo do processo, trazendo novos elementos. Ver mais em: DAGOSTINI, N. Stanislavski e o método de análise ativa: A criação do diretor e do ator. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2018. 29 Terminei o bacharelado em Interpretação Teatral na Escola de Comunidações e Artes da USP em 2000.
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A evidencia da fala interna está em Kusnet, mas quando articulo com Spolin eu a amplio para “regra de jogo” repetida para si mesmo. Ou seja, fala interna é imagem acústica situando o foco de atenção. Não só o pensamento do personagem (como em Kusnet), mas também “Eu te odeio”, levando em conta uma “substituição” (Hagen, 2007)30 ou “1, 2, 3, 4, 5” (a contagem demonstra ser uma excelente fala interna). Kusnet me levou a outros stanislavskianos: Hagen, Adler, Knebel e o próprio Stanislavski que, diga-se de passagem é uma literatura muito gostosa de se ler. Mas o olhar que recorta os seus trabalhos, também extraia o que era importante na articulação proposta. Ou seja, a mitificação foi deixada de lado; e volta a assombrar apenas quando um aluno diz “fui tomado pelo personagem; senti o personagem”. A ideia de personagem como ente (ser), eu a deixei de lado. O personagem é efeito; efeito da montagem. Assumi, spolianamente, o jogo, cujas consequencias são fundamentais. Se o ator joga com um “quem” imediatamente percebemos que isto não basta. Tampouco a ideia stanislavskiana de que o ator encarna personagens. Oconceito de personagem não está apenas ligado à “representação”; o que parece ser uma questão é a incorporação e o prazer que se tem quando se sente incorporado. Mas incorporado pelo quê? Incorporação é um termo que Stanislavski utiliza e me parece que está ligado a um prazer de deixar-se levar por algo que se dá via corporal (e não via intencionalidade), atribuida a uma alteridade (no caso, o persoangem). Parece-me que a linguagem verbal (incorporar palavras) e visual (incorporar imagens) tem a ver com isso, mas principalmente, a fantasia que elas evocam, ligada ao corpo e a libido.
Mesmo em um personagem sem texto deve-se escrever subtextos – lembrando do exemplo de Kusnet. Escrever antes de entrar para improvisar “preenche” com uma série de estímulos e vibraçoes que fazem o ator agir “sem pensar” (ou, movido a desejo ou, poderíamos dizer, “perder a cabeça”). Pode-se dizer então de que se trata de incorporar desejos e, diante destes, o testemunho do lugar do outro pode causar extrema timidez. Kusnet em “Ator e Método” testemunha um trabalho infindável de construção verbal do subtexto. Esta tesssitura verbal criada pelo próprio ator carrega a experiência com uma corporeidade no “cavucar” de associações, não apenas nas memórias, mas nas fantasias. Não se trata de memória emotiva, portanto, mas de fantasia. Fantasia do “eu” (em nome próprio) circunstanciado pela situação imaginária. De modo que posso dizer que improvisar é realizar desejos e é assim que o ator se mantém quente, entregue e corpóreo.
30 Escutar o barulho da broca do dentista pode ser uma substituição possíel para um personagem diante de algo terrificante. Se funciona para o ator, vale.
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A escrita do subtexto aciona elementos contraditórios. Podemos dizer que a linguagem é tessitura com desvios e não haveria porque não acionar contradições. Podem nos levar a uma imagem “x” – esta que se desdobra e continua se reconstruindo, feita de fragmentos em montagem. Podemos dizer que este estado é um meio-lugar entre o sonho e a vigília, e que o ator se coloca à merce destas construções – e as realiza. Digamos que são rugosas, pois podemos interferir e transforma-las. O que acontece com a escrita, é uma profunda necessidade do ator abandonar esta rede. É bastante óbvio que não se pode segurar em foco dois cadernos inteiros de anotações. De maneira que Kusnet propunha a redução do monólogo interior. O ator escrevia e ia reduzindo, reduzindo, reduzindo, até ficar com uma palavra (pequena) para manter no foco na hora de entrar em cena – o que testemunha a necessidade não só da imagem (“visualização”), mas da escuta. Kusnet operava a lógica do personagem para selecionar fragmentos, promover deslocamentos, provocar inversões, encaxa-los em uma linha de ação contínua. Stanislavski inventa perguntas operadas pela ideia de objetivo, para interferir e provocar mudanças e desdobramentos. As construções vão se desdobrando, passando do geral ao detalhe, o que testemunha a necessidade de situar o foco de atenção; inventa um gatilho de deslocamento (que torna possível se colocar no lugar do outro) chamado “mágico se”. Se acontece x, depois acontece y, depois z, depois v e eu me vejo na situação h. Isso funciona e é operado com a linguagem. A fantasia é construída com a linguagem. Os stanislvaskianos operam com a extração de um objetivo lógico, uma linha de ação lógica – para que esta entre em jogo. Parece-me que isto faz sentido, porque o que não colou é jogado fora e se faz resíduo – continuando sua incidência íntima em segredo. Estes elementos residuais do processo deixam suas marcas. Mas penso que o exercício da escrita que aciona a corporeidade e o desejo solto, mais próximo do “delírio do subtexto” (Nomacce, 3013)31, seja mais eficiente para o despertar da corporeidade. Trata-se de uma espécie de escrita livre grata aos surrealistas – operada por livre associação. De maneira que são modalidades. É possível defender mais uma que outra? O delírio do subtexto trás corporeidade e deixa a fantasia livre (não podemos esquecer que o ator está suceptível a uma série de sugestões que o texto-roteiro trouxe). A lógica ajuda a extração de certos elementos para situar o foco – na medida em que operam a extração de falas interna e “mágicos se”32. Talvez os dois procedimentos sejam importantes. Quando extraem um elemento só e o reduzem para uma palavara
31 Em 2013 etrevistei Gilda Nomacce e outras atrizes de cinema de São Paulo (Clarissa Kiste, Mariana Loureiro) a respeito de seus métodos de trabalho. Gilda fala do “delírio do subtexto” também em suas oficinas.
32 O “se mágico” é colocar-se na situação-dada, respondendo “o que faria eu nesta situação”. Ver mais em: DAGOSTINI, N. Stanislavski e o método de análise ativa: A criação do diretor e do ator. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2018. Quando apliquei para filmar “Sem Abrigo” eu o decupei em muitas etapas: O que faria se fosse demitida, se meu pai falecesse e descobrissemos uma dívida, se tivessemos que vender a casa e minha mãe tivesse uma crise fosse internada, meu irmão sumisse no mundo e eu ficasse sem casa, sem dinheiro, fosse para a rua, começasse a dormir nos cantos..... Esta sequencia foi me levando a me ver em situação sem precisar representar.
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apenas, encontram algo bem concreto para situar a escuta e estabilizar o foco. Mas penso que se este elemento estiver enquadrado no contexto da pessoa que joga, ele é mais forte. Stanislavski inventa elementos diferentes (só o objetivo não basta). Tem-se por exemplo “a contra ação” e a própria partitura (extremamente cotidiana puramente física) é um “outro elemento” em relação – que constitui rugosidades. Pode-se dizer que a ação física cotidiana atrapalha e atrasa a fala, provocando hiatos. Tem também os “círculos de atenção” – uma atenção sobre o ambiente que começa ampla e vai sendo reduzida para cada vez mais próximo de si mesmo. Adler propõe a descrição (verbal) para trabalhar a relação com o ambiente e treinar o olhar a se apoiar nas coisas que enxergamos – se distrair com elas. Mas se estão lá porque é preciso descrevelas? As palavras criam um trilho, um caminho, uma decupagem para o olhar. Adler também ensinava usar uma ação física para desviar o foco da atenção que estaria concentrado na emoção ou na fala. A brincadeira com o foco pode criar uma distração bem vinda, uma ação de perder-se. O foco se divide entre materiais que se alternam e deslocam. São regras, que ocupam provisoriamente o lugar da fala interna e o abandonam, mantendo-se em seguida “fora” – como testemunharam os atores nos jogos de “Híbridos”. O momento em que “não se pensa” e “sai naturalmente, sem esforço”. Pode-se dizer que existe uma dialética entre manter a escuta de uma imagem acústica e a ação de larga-la. Quem trabalha com cinema sabe que muitas vezes vêem demandas como “dois centimetros para lá”. A regra (instancia verbal) pode estar presentificada na imagem acústica “Dois centímetros para lá”, que se mantém em escuta cumprindo a função de fala interna sem que o ator perceba. A corporeidade surge. É importante perceber que existe a função da imagem acústica no foco, mas que esta pode sair de foco para dar lugar a outra (ou, ainda, dividir o foco com outra). É importante perceber duas operações: pode-se abandonar algo que está no foco para trocar por outro; e o que é abandonado pode se manter presente na ausência, depois que cedeu seu lugar. Portanto, construir para esquecer. De qualquer forma, consideramos a evidência da incidencia da palavra sobre o corpo, ativando uma corporeidade “organica” (usando o termo proposto por Grotowski). É um termo que de certa forma nos ajuda por fazer alusão à orgãos, trazendo a ideia de que a escrita envolve o organismo, a temperatura e a libido, produzindo impulsos de ação e também um imaginario, construções fantasísticas onde o ator se coloca no “lugar de”, sente as vivências deste lugar em sua intimidade (a escrita é um exercício de vivência íntimo). Ou seja, as palavras são as pás para remover as terras de corporeidades alimentadas por imagens. E dizer que é “o personagem” talvez seja uma forma de se esquivar da responsabilidade do próprio desejo ou prazer na fantasia. Mas fantasiar é um direito. O mesmo se dá na estética teatral, apenas a plastica corporal é outra. São outras regras para a construção do corpo, que precisa estar extremamente dilatado. O estranhamento que se imprime no
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teatro, pode-se imprimir no cinema com outras regras. Aí está a poética do ator: a corporeidade e a plasticidade –nodosa, apontando a borda de um vazio, um limite da linguagem, um “...”, que nos deixa mudo. É ali que o ator precisa chegar, nesta mudez – jogando com elementos específicos das estéticas onde atua.
O termo “figura”, ao invés de “personagem”, proposto contemporâneamente, é extreamente grato, por se tratar de forma múltipla, coral (Braga, 2009), cenica, plastica e performativa, que provaca efeitos de estranhamento. Esta figura situa um lugar para a corporeidade que o ator encena. Pode-se dizer isso. A um tempo atrás conceituei ator como “encenador de incidências”, hoje situo-o como um encenador de corporeidades – estas provocadas pela incidência de certa fantasia. E, se no sonho temos direito, em cena também. Pois não falamos apenas de nós através da atuação – falamos do humano que há em nós, e naquele que nos vê – mas isso depende da epicização.
Apontamentos Sobre A Rugosidade na Pesquisa da Cia Poéticas com o Teatro
O jogo como é aplicado a partir do Fichário de Spolin (2000), com um “quem, onde e o que”, tem resultantes diversas das que exercitamos. Quando se trata de “quem” é provável que se trabalhe com a tipificação: a mãe, a mãe estressada (mesmo se for um quem composto), o ladrão, o padre, o jovem rebelde, etc. Um “quem spoliando” induz à tipificação. Isso não acarreta juizo de valor. Inclusive pecebe-se o quanto está próxima dos gestus promovidos por Brecht (1978) – quando o padre ou a mãe, ou o padrão, o empregado, imprimem um gesto determinado socialmente, signo de sua função social. Vale lembrar também das proposições de Anne Bogart (2011) sobre o esteriótipo, propondo o seu uso vivo. Quando o ator “joga com um personagem”, esta outra categoria, diferente do “quem” (inclusive Spolin é contra “representar personagens”) troca o tipo por um indivíduo, desconstruindo qualquer gesto que o coloque como ser determinado socialmente, assumindo o jogo em outra estética e aproximando-se do que Stanislavski defendia: cada personagem é um indivíduo único. É importante que ao tor perceba que ele está em relação complementar com a estética demandada pelo diretor, filme e cultura cinematográfica (ou teatral) onde está situado. É importante também dizer que trabalhar com o tipo não é lançar mão de uma singularidade. Apenas o tipo e o gestus estão como regra de jogo, alicerce de uma estética específica, ainda que cada um resolva este jogo de forma diferente e, mesmo na reprodução de formas, restará algo singular de sua corporeidade atualizada nas resultantes.
No entanto, como estratégia de jogo, no Cinema Contemporâneo, abrimos mão de qualquer quem e de qualquer personagem. Mesmo que no roteiro tenha um; mesmo que o diretor se refira a ele. Porque se estamos atuando em uma estética que não suporta a impressão da situação de representação,
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não se pode representar. Construção de “quens” podem não entrar em jogo, podem não ser utilizadas; contruções de presonagens, idem. Apesar de que, seja jogando com o “quem” tipificado, com o “persoangem” ou qualquer outro estímulo, o ator estará “em nome próprio” de qualquer forma, porque é da estrutura do jogo: ele o é em nome próprio e jamais deixará de haver um ator (sujeito) em jogo. Estrategicamente, no entanto, em cinemas que não suportam a ação de representaçao denunciada pela presença do gesto de representar, abrimos mão do jogo com o persoangem e nos concentramos na tessitura real de nossa situação de jogo e como reagimos a ela. Em “Veto a Voz” (2018)33 tinhamos regras de fala. Este jogo de improvisação gerou falas elaboradas. Os princípios que regiam ainscrição do corpo eram próximos ao naturalismo (o espaço inclusive era íntimo, as pessoas junto a nós no palco) e a fala, ao incorporar elementos aleatórios, causou estranhamento, o que aproximou o trabalho de uma espécie de “Teatro do Absurdo”34 . Mais do que expor os materiais do “Veto a Voz” (que não vem ao caso agora), quero mostrar que a fala pode ser o agente que dispara outras tessituras quando se está em um drama – criando uma linguagem da obra a partir da resistência destes elementos aderirem ao “liso” do dramático. É especialmente por “não caberem” no tecido dramático, que formam “nós” ou buracos, irregularidades, rugosidades, próteses, fissuras, desencaixes, na escrita da cena. Rugozidades nas falas também podem ser constituídas no jogo de montagem da tessitura do roteiro (voltando ao caso do emprobecimento das falas espontaneias em improvisações lineares). Utlizamos também regras de corpo, o registro do Naturalismo (Arruda, 2019)35 aliado ao performativo, a partir da absorção de resultantes do “Treinamento de Ações Primárias”. A segunda regra era utilizar o reperório de ações físicas constituído e este era bastante aleatório. Ações primárias (Arruda, 2019) são viewpoints (Bogart & Laudau, 2017); são como ações físicas barbianas (Barba utiliza-se de lançar, empurrar, puxar); ou como as ações de Laban: deslizar, sacudir. Estão no contexto de jogo; na tessitura do tempo-espaço de quem joga; implicam uma forma corporal, um movimento específico, certa dinâmica e qualidade, que se estabelece como elemento extradiegético (não pertence ao universo narrado e vivido pelos atores “como se” fossem os personagens). O ator não usa sacudir ou socar para repersentar a raiva. Ao contrário, ele provoca a aderência destas ações, absorvidas na diagese enquanto elemento heterogêneo, costuras – tornando a escrita do corpo-em-cena rugosa. Estas ações físicas primárias funcionam como escrita portanto. Quando absorvidas na ficção (incluidas na lógica das relações intersubjetivas, ganhando sentido através desta), ainda restará algo de
33 Foram apresentados dois work in progress deste trabalho: na Mostra OFF de Teatro de Grupo (2017) e na 6ª Abertura de Processos de Criação Cênicas, Teatro Municipal Vila Velha (2016). Ver mais em: https://www.socabrasil.org/vetoavoz 34 Ver sobre Teatro do Absurdo em: CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: Unesp, 1997. 35 Ver mais sobre o registro do Naturalismo para o ator em: ARRUDA, R. K. Seis Registros Para a Atuação em Cinema. In: ARRUDA, R. K. A Arte e/em Processos de Subjetivação. Porto Alegre, Simplíssimo, 2019.
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sua forma que resiste, e é aí que a poética é construída: com isto que estranha. Algo que aponta para este contexto do jogo; para o performar. E ao abrir uma fissura ou criar rugozidades no liso, apontam também para o seu limite, para um “nada” da linguagem (porque não há sutura com outros tempoespaço).
É importante lembrar da proposição de José Miguel Wisnick (2002); que a linguagem se constrói das relações entre sentido e não sentido. É preciso o sentido e também o não sentido. É a relação entre os dois que gera linguagem. Pode-se dizer que pensar a obra apenas em termos do que ela diz ou significa – tentando traduzir um tempo-espaço para o outro tempo-espaço; ou que sentido ela tem para o artista e as pessoas, é um equívoco.
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