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ARTE: POTÊNCIA DE DES-ÓRGÃO-NIZAR

Arte: potência de Des-órgão-nizar

Maria Eduarda Ramos Gazel47 Cleilson Teobaldo48

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Resumo: Esta produção dialoga possíveis entre-laços da arte, psicologia e esquizoanálise enquanto ferramentas de fabricação de um Corpo Sem Órgãos, ou seja: de um corpo revolucionário. Para desenvolvê-lo mergulhei em leituras com Artaud; Deleuze e Guattari; Nietzsche; Rolnik, dentre tantos outros. Para além destas leituras assisti a filmes; ouvi músicas; estudei História da Arte; li poesias; vivenciei a diferença; dialoguei com pessoas diversas, e coloquei meu corpo enquanto ferramenta de experimentar e experienciar essa proposta à luz do método cartográfico, permitindo então fazer do processo de produção a própria criação. Dessa forma chegamos não a um resultado, mas a um prelúdio da minha possibilidade de re-sistir enquanto psicóloga e engendrar estéticas outras para uma klínica em promoção da vida.

Palavras-chaves: arte, esquizoanálise, corpo sem órgãos, loucura, klínica

A revolução acontece na desordem

Encontrei numa anotação de férias no meu caderninho:

O termo ‘corpo sem órgãos’ tem me prendido a atenção. Ouvi que um corpo sem órgãos tem órgãos, mas não necessariamente segue a organização de utilização desses órgãos. Posso usar a pele para cheirar e os olhos para saborear. Saudade tem cheiro de amarelo, meu cabelo tem sabor de céu. Posso usar os olhos para pintar e meus ouvidos atentam-se ao cheiro de manhã. A arte me permite isso49 .

O expandir-se e multiplicar-se de um corpo-objeto não binário e não necessariamente feito a servir. De que forma é possível expandir um corpo à transmutar uma f(ô)rma préestabelecida e experienciar a estranheza?

Recordo um poema de Viviane Mosé (1997, p.55), que Nayan - amigo que ganhei pela graduação - sempre lê para mim: “Um segundo desdobramento para Maria”. Me reconheço nessa menina Maria quando diz:

47 Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Vila Velha/UVV. Rua Comissário José Dantas de Melo, 21. Boa Vista, Vila Velha – ES. CEP 29102.770. E-mail:ariaedramosg@gmail.com 48 Professor do Curso de Psicologia da Universidade Vila Velha/UVV. Rua Comissário José Dantas de Melo, 21. Boa Vista, Vila Velha – ES. CEP 29102.770. E-mail: cleilson.reis@uvv.br. 49 Caderno de notas da autora, 2020.

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Ninguém sabe o que aconteceu com ela aquele dia, nem ela. O fato é que desandou a dizer coisas tortas. Tinha por hábito mudar o nome das coisas. Chamava rio de ruído, passarinho de notícia, e fim de tarde precipício. Manoela, sua vizinha, era saudade. E locomotiva, pássaro ancorado em chão. Dia para ela era olho, e noite sensação. (...) Maria às vezes ficava dias calada, escutando, ela dizia, depois ensinava coisas, como guardar ossos dos mortos bem juntinhos, enrolados em um pano, dentro de uma cesta de palha. A palavra voltaria, um dia, a dar carne aos ossos. (...) Dizem que um dia parou de falar. Ninguém nunca mais ouviu uma palavra sair de sua boca. (...) E morreu.Outros, no entanto, contam que aos poucos foi criando raízes nos pés e asas nas mãos. Nem havia completado onze anos quando, numa tarde, se rebentou em duas: da cintura pra baixo virou árvore e da cintura pra cima passarinho. (MOSÉ, 1997, p. 13)

Numa experiência pessoal, compreendo a arte - também - enquanto ferramenta de vivenciar o que seria a desorganização dos órgãos, ou como diz minha grande amiga Marina: “transformar o dedo em pincel”. O Corpo Sem Órgãos (CsO) propõe um corpo esquizo que desfaz moldes prontos e costura suas próprias roupas, para que caibam perfeitamente em seu corpo singular. Assim como o artista e o louco, são corpos que se lançam e se laçam - se entre-laçam -. Corpos que propõem-se a vestir a loucura e andar com ela por aí: a ponto de por vezes não saber se a loucura é uma roupa que se vestiu ou se é a própria pele. Como propõe Deleuze em O Anti-Édipo: “(...) O passeio do esquizofrênico é um modelo melhor do que o do neurótico deitado no divã.” (GUATTARI & DELEUZE, p. 12, 1972) Enquanto penso esse tema perpasso muitos questionamentos, e vejo a produção de um corpo-arte-fato como potência para romper a lógica capitalística, uma vez que visto a esquizofrenia enquanto revolucionária. E como aguça Deleuze, não que o revolucionário seja esquizo, no entanto “[...] há um processo de desterritorialização que a revolução impede de virar esquizofrenia, e assim dois pólos: a paranóia capitalista, e de outro a esquizofrenia revolucionária.” (DELEUZE, 2013, p.36) Mas, “O que é a loucura?” É A Grande Questão, da qual não encontro resposta que abarque todas as possibilidades de existência dentro desta palavra. Há a loucura vista pelo senso comum, há a loucura vista de dentro de um louco, e há ainda a loucura tantas vezes perversa de uma psiquiatria clássica, que na história da loucura deixa uma ruptura abrupta e sangrenta. Que docilizou corpos, estuprou subjetividades, violentou e matou. E há, por vezes, determinada romantização da loucura, - e com romantização quero dizer um afloreamento que deturpa a experiência - por parte de uma sociedade sádica, que fetichiza a produção de corpos esquizofrênicos para a satisfação de prazeres individuais egóicos- usando do corpo do outro. Fetiche como algo que controla e molda corpos para gozar de seus fluxos aprisionados, atribuindo-lhes sentidos, dizendo-lhes como deve ser.

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Enquanto artista, sinto que o sistema espera de mim um processo de produção cada vez mais “doloroso” para que tenha valor (ou preço?), para que seja considerado digno de ser chamado “obra”. O contexto capitalístico-cristã pede que sacrifiquemo-nos em prol de uma “benção”. É necessário abster os desejos do corpo para alcançar o “reino dos céus”, e com isso: criando outras formas de aprisionamentos para o corpo do artista, que lhe tem a “loucura” - disfarçada de sofrimento -, imposta como única via possível de acesso a criações dignas de chamarem-se “obras”. E em todo aprisionamento há sofrimento, ainda que ultrajado de liberdade. É necessário sublimar: há uma linha muito fina que distingue um corpo revolucionário - que se desconstrói para re-construir - de um corpo que ruína-se, fazendo assim o caminho inverso ao proposto pelo CsO, - tornando-se dócil -: escravo de si. O artista, de frente a uma sociedade que clama “Faça aquilo que não tenho coragem de fazer, seja louco!” impõe ao corpo uma estética de processo criativo, um modus criare idealizante que pode favorecer o aprisionamento desses corpos. O artista, do ponto de vista do espectador, pode ser assistido como um louco por talvez romper uma estética esperada, ou por vezes, por se propor experimentar e se expressar de forma outra que aquele espectador não se propõe. O que é estranho atrai olhos curiosos. Quanto mais dramático, melhor! Cazuza clama: “Canibais de nós mesmos, antes que a terra nos coma. Cem gramas, sem dramas.” (Barão Vermelho, 1984) Enquanto em outra proposta de ver, questiono-me até onde o artista pode, por vezes, se inserir num processo de destruição, que se difere do processo de desconstrução/reconstrução - como propõe o CsO -, para atender às demandas cada vez mais sedentas da sociedade, que vibra ao assistir o sofrimento e ver o sangue escorrer... O absurdo leva a plateia “à loucura”!

Lisbon Revisited

“NÃO: Não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos?

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Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus! Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. (...)“ (Campos - Pessoa com o heterônimo, 1923)

É aqui onde proponho um olhar para a arte enquanto ferramenta de criar para si um Corpo Sem Órgãos: um corpo revolucionário. Que não é escravizado, e também não se escraviza. Um corpo que utiliza das frestas e rupturas como passagem. Trata-se da construção de um corpo pleno e intenso, de resistência para o desejo, que só é possível depois da desconstrução do corpo que foi criado para ser-vir. O corpo do artista é revolucionário quando se mantém vivo diante um sistema que pede seu suor e sangue, sua intensidade esgotante: seu esvaziamento. O corpo do artista é revolucionário quando utiliza da arte para adentrar o sistema e romper as estéticas morais sem que percebam; quando utiliza da arte para gritar, - ainda que um grito mudo - e não se afogar em seus próprios fluxos, possibilitando a criação de outras realidades; conectando corpos que desejam se libertar das prisões do sistema. “A liberdade do artista foi sempre “individual”, mas a verdadeira liberdade só pode ser coletiva. Uma liberdade ciente da realidade social, que derrube as fronteiras da estética.”, disse Lina Bo Bardi (Lima, 2021, p.13). O artista se faz um corpo revolucionário quando recusa o esvaziamento imposto como única via possível de criação, e se recusa a injetar em seus corpos a destruição para acesso a louquificação50 esperada pelos pseudo críticos da arte, e cria sua própria forma de re-existência, sua esquizofrenia revolucionária, seu próprio devir-louco que não necessariamente sofre, é triste, depressivo, denso, e por isso cria coisas magníficas. O artista é revolucionário quando ele pode ser triste, pode ser depressivo, pode ser denso, e também pode ser alegre, pode ser feliz, pode ser sarcástico, pode ser leve, e ver potências criacionais em todos os fluxos.

50 Palavra inventada para descrever o sentimento de volta e meia perguntar-me “sou triste o bastante para ser artista?” advinda pela demanda do mercado artístico - podendo se estender a outros movimentos louquificatórios .

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Corpografia: corpo arte-fato investigativo

Vida atenta por ouvidos sempre dispersos que ressoam vazios, como tudo o que aqui proponho: desconstruir é desvelar o oculto. (BATISTA, 2018, p. 235)

Para desenvolver esse trabalho precisei de um tempo para antes, perceber a noção de desterritorialização perpassar meu corpo, me propondo a criar para mim um CsO. Só assim me foi possível falar sobre. Acredito fazer parte do que Deleuze e Guattari (1972) chamam de “método cartográfico”, o que propõe o observar do processo de construção, para além de prender-se a um objetivo. “Consiste numa aposta na experimentação do pensamento, um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com isso não se abre mão do rigor, mas esse é ressignificado.” (BARROS ET AL., 2020, p. 10; SOARES & HUR, 2017) Arrisco-me a chamar então de corpografia, o método que utilizo para essa produção, que é colocar o pensamento junto a meu corpo enquanto ferramentas de produção, e paralelamente de experimentação; desconstrução e reconstrução; que me possibilita sentir as sensações e exprimir delas todas as potências criadoras. Busco dar sentido aos movimentos que produzem intensidades, de modo que desconstruo outras construções, criando relação entre a perda e possibilidade de criar novos sentidos, ou “dar língua para afetos que pedem passagem” (ROLNIK, 1989), abrindo espaço para “expressar afetos contemporâneos”, onde tornaram-se obsoletos (SOARES & HUR, 2017, p.3-4). Assim como na criação de uma pintura, há detalhes no processo que são, por vezes, mais ricos que o objeto final de criação. Como o misturar da tinta na paleta; o feixe de luz que invade a parede do ateliê numa tarde qualquer e cria outras possibilidades sobre a tela; ou ainda a tinta que derrama no chão e cria uma mancha tão bonita que precisa permanecer ali. Fazer do processo, a obra. Ou seja: fazer da caminhada a própria produção. Manoel de Barros descreve em "Pintura":

Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. O que sempre faço nem seja uma aplicação de estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada procurado. É achado mesmo. Como se andasse num brejo e desse no sapo. Acho que é defeito de nascença isso. Igual como a gente nasce de quatro olhares ou de quatro orelhas. Um dia tentei desenhar as formas da Manhã sem lápis. Já pensou? Por primeiro havia

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que humanizar a Manhã. Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as coisas. Porém humanizar o tempo! Uma parte do tempo? Era dose. Entretanto eu tentei. Pintei sem lápis a Manhã de pernas abertas para o Sol. A manhã era mulher e estava de pernas abertas para o Sol. Na ocasião eu aprendera em Vieira (Padre Antônio, 1604, Lisboa) eu aprendera que as imagens pintadas com palavras eram para se ver de ouvir. Então seria o caso de se ouvir a frase pra se enxergar a Manhã de pernas abertas? Estava humanizada essa beleza de tempo. E com os seus passarinhos, e as águas e o Sol a fecundar o trecho. Arrisquei fazer isso com a Manhã, na cega. Depois que meu avô me ensinou que eu pintara a imagem erótica da Manhã. Isso fora. (BARROS, 2006, p.54).

Recordo-me da dificuldade em iniciar a produção deste texto, e em uma das conversas com Cleilson - um grande intercessor dessa produção -, mencionei a incapacidade de escrever por estar vivenciando a experiência da criação de um CsO - é difícil falar de um processo enquanto o vivencio -. Mais tarde vim a entender que a produção de um CsO está sempre em movimento, em intensidades diversas. Trata-se de experimentação. A proposta desta metodologia é fabricar o instante do encontro dos movimentos do pesquisador com os movimentos do território de pesquisa, o que torna o objeto final produzido, algo secundário. Pensando nessa perspectiva cartográfica, Kastrup (2007) aponta quatro variantes na atenção baseada no método de Deleuze e Guattari (1972), que são: o Rastreio, o Toque, o Pouso e o Reconhecimento Atento. O Rastreio situa as pistas de um cenário; o Toque engendra as forças dos possíveis atravessamentos e afetações; o Pouso inicia a criação de território, e o Reconhecimento Atento possibilita o atravessar singular em movimento. A autora chama ainda de política cognitiva um tipo de atenção ou atitude não consciente, que se dá no conhecimento com o mundo e consigo. Ressalta o compreender o mundo enquanto fornecedor de informações prontas para serem aprendidas, e retoma James (1890/1945) - citado por Kastrup (2007) - que reconhece a flutuação da consciência e da atenção quando propõe o conceito de fluxo do pensamento. Compara o fluxo do pensamento ao voo de um pássaro, que desenha no céu em movimentos contínuos, e pára de tempos em tempos em determinados lugares. Voos e pousos diferem na velocidade da mudança, e o pouso é entendido como pouso no movimento, diferente de um pouso do movimento. Voos e pousos possibilitando ritmos ao pensamento e a atenção (KASTRUP, 2007). Aqui o desejo consiste exatamente em apresentar e explorar o processo de produção muito mais do que estabelecer um fim último a ser alcançado, permitindo criar meu próprio

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território de descoberta. Fazer do corpo “terra-tório de passagem”51. Assim, a finalidade deste trabalho é destrinchar possíveis criações de um CsO através da arte, na descoberta de como fazer-se um corpo revolucionário e não sucumbir ao desejo da sociedade capitalística52 . Afinal, a construção de um CsO não se dá em delírio total, ele também é obra do pensamento. A obra se dará pelo caminho, enquanto utilizo meu corpo-arte-fato para experienciar de forma ativa, respeitando meus voos e pousos.

De olho fechado pra ver melhor

“Eu tô te explicando Prá te confundir Eu tô te confundindo Prá te esclarecer Tô iluminado Prá poder cegar Tô ficando cego Prá poder guiar” (Zé, 1976)

Quando ouvi pela primeira vez “corpo sem órgãos”, não sabia do que se tratava, me imaginei uma imensa massa de gelatina, onde podia sentir as intensidades todas numa massa de matéria não fragmentada. Como criar para mim um corpo sem órgãos? Como transmutar-me em massa gelatinosa capaz de sentir os atravessamentos sem uma organização que rompe os devires? O CsO, é reativado por Deleuze e Guattari (1972) em sua obra, mas à priori expressado por Antonin Artaud (1972), quando em “Pra Acabar com o julgamento de Deus” declara guerra aos órgãos. Faz-se necessária a compreensão do CsO enquanto modus de produção de existência e singularidade, não podendo ser compreendido enquanto conceito ou noção, mas um conjunto de práticas (DELEUZE, 2013). Para criação de um CsO é necessário a ruptura do corpo dócil, criado para servir aos poderes. Por isso, quando Artaud declara guerra aos órgãos, declara guerra ao organismo, à organização sistemática dos órgãos que

51 Como Fortunato (2021) se refere a seu corpo em “O corpo é uma encruzilhada”

52 A caracterização da sociedade como capitalística refere-se ao que Felix Guattari e Suely Rolnik (1996) atribuíram como um determinado modo de produção da subjetividade contemporânea pautada na economia do desejo, em uma certa produção serializada da subjetividade e do desejo, utilizando-se das mesmas estratégias comuns à lógica capitalista: controle, ordem, padronização da existência e sujeição de indivíduos.

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aprisiona os devires, podendo ser compreendido como um “grito orgânico” à liberdade e à vida! Trata-se de uma rebelião do próprio ser (SCHÖPKE, 2017). Estando atento e forte às linhas de fuga, que tantas vezes transformam-se em linhas de morte. Quando observamos o corpo contemporâneo, nos aparece uma noção de corpo ativo e potente como uma instância inalcançável, fecundada por receitas em busca de “salvações” para o corpo orgânico. Vivenciamos uma sociedade suscetível à práticas conservadoras que homogeneizam e estratificam toda e qualquer diferença. Nesse sentido pode-se pensar o corpo contemporâneo como encarcerado por práticas que capturam os sentidos através da sociedade, da família, das religiões e da cultura, extraindo dos corpos suas diferenças e multiplicidades (SOARES & HUR, 2017).

"[...] Fico eu sufocado; e não sei que ação é essa [...] até sufocarem em mim a ideia de um corpo [...] Me aprisionavam ao meu corpo e contra meu corpo e foi então que eu fiz tudo explodir porque no meu corpo não se toca nunca [...]" (ARTAUD, 1983 citado por Soares & Hur, 2017)

Em sua obra Artaud (1983) - citado por Soares & Hur, 2017 ( p.4) - coloca em pauta três camadas de grande encargo para a promoção de corpos encarcerados: a ideia de consciência/razão que sobrepõe o corpo; a existência de alma/espírito que condena as potencialidades do corpo, e a guerra entre corpo e organismo (SOARES & HUR, 2017). Destrinchemos um pouco mais sobre esses encargos. Em compatibilidade a Espinosa, Artaud critica a compreensão cartesiana que coloca o sujeito enquanto ser duo: razão/consciência, dizendo de um sujeito livre; e de outro corpo, que diz de um sujeito perecível às fatalidades da natureza. Sendo possível compreender a consciência como apaziguadora de angústia por habitarmos um corpo perecível e limitado, ao agarramo-nos a ideia de reconhecimento apenas daquilo que é pensado. Contrariando o discurso científico/instrumental, o poeta fala da importância da “criação espontânea”, e o quão deficiente lhe é a explicação meramente racional da realidade (SOARES & HUR, 2017).

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A crítica de Artaud aos dualismos se estende aos campos metafísicos/religiosos, que separa o homem do corpo quando lança a ideia de alma, em concordância com o que Nietzsche (2008) afirma em O Anticristo:

[...] Nem a moralidade nem a religião tem qualquer contato com a realidade. O cristianismo oferece apenas causas puramente imaginárias (“Deus”, “alma”, “ego”,”espírito”,”livre-arbítrio” -ou mesmo “não livre”) e efeitos puramente imaginários (“pecado”, “salvação”, "graça", “castigo”, “perdão dos pecados”); (...) uma psicologia imaginária (incompreensão de si mesmo, incompreensão dos sentidos gerais do agradável e desagradável…) (...) uma teologia imaginária (o “reino de Deus”, o “juízo final”, a “vida eterna”). (...) O conjunto daquele fictício mundo tem sua origem no ódio ao natural (ao real!), e não é mais que a evidência de um profundo mal-estar em presença da realidade… [...] (NIETZSCHE, 2008, p.27)

Ou seja, no contexto cristã-religioso aprendemos a negar e sacrificar o desejo de nossos “corpos pecaminosos” como sacrifício para alcançar o sagrado lugar ao céu, e assim, retiramos do corpo a potência de fluir onde habita. Artaud (1983) citado por Schöpke (2017), compreende o organismo como o funcionamento das coisas - O juízo de Deus -. Acredita que o corpo é inserido no contexto em que vive com formas e funções pré-estabelecidas, de forma a mecanizá-lo, torná-lo organismo, e organizado vem a ser um adversário, invés de uma potência. À medida que se organiza sofre uma automatização da vida, que rebaixa os desejos como potência de existir e fluir no mundo em que vivemos (SOARES & HUR, 2017). Artaud, como colocado por Deleuze e Guattari “conhecia os perigos da desestratificação demasiado brutal, imprudente.” (SCHÖPKE, 2017, p.7). É necessário um rebaixamento da moral, e constante questionamento da realidade em que estamos inseridos, para que as intensidades perpassem por todo o corpo de forma ética que para Espinosa, é saber escolher o que fortalece e o que enfraquece o corpo -. Não se trata de destruição da ordem, para além disso: trata-se de chegar ao próprio cerne da produção de corpo, para rearranjá-los em novas conexões, produzir a si mesmo. (SCHÖPKE, 2017). Os órgãos são portas para efetuarmos os desejos, mas o sentir coabita nossos corpos antes dos órgãos, e o organismo propõe uma organização neurótica e rígida de sentires.

(...) E também aqui imaginamos coisa melhor: (...) negamos que qualquer coisa possa ser feita perfeitamente enquanto for feita conscientemente. O “puro espírito” não passa de pura estupidez: trai o sistema nervoso e os sentidos, o chamado ‘invólucro mortal’ e o resto é um erro de cálculo -apenas isso! (NIETZSCHE, 2008).

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Figura 1: Apagamento

Cera de vela sobre páginas do livro “O que é Loucura?” 55 cm x 15, 2cm

Na imagem, obra autoral nomeada “Apagamento”. Como na cartografia, o percurso dá-se de forma orgânica, assim como em meu fazer artístico. Acendi uma vela verde sobre o livro e no outro dia vi que o pigmento da vela desceu, criando uma sequência de manchas nas próximas cinco páginas do livro. As manchas grifam palavras organicamente e vão diminuindo, o que me dá sensação de Apagamento, - que é o que a sociedade solicitou, e a psiquiatria clássica se pôs ao (des)serviço de fazer: apagar cada um daqueles que não eram neuróticos o suficiente para viverem aos enquadros da sociedade capitalística -. Ou como chamados por Artaud (1970) - Alienados Autênticos ,

É um homem que preferiu ficar louco, no sentido em que socialmente isto é entendido, do que trair uma certa ideia superior de honra humana. É assim que a sociedade faz estrangular em seus asilos todos aqueles de que quis se livrar ou se defender, por terem se recusado a ser seus cúmplices em certas sujeiras. Porque alienado é também um homem que a sociedade não quis ouvir (...) (ARTAUD, 1970, p.4)

A última mancha se dá na orelha de um personagem desenhado por um dos “esquizofrênicos” que teve sua história apagada, e mais uma vez me lembra a história de Van Gogh, que decepou sua própria orelha, e como bem colocado por Artaud: não suicidou-se, foi suicidado pela sociedade.

[...] Van Gogh não morreu por causa de uma definida condição delirante, mas por ter chegado a ser corporalmente o campo de batalha de um problema [...] introduziu-se

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no seu corpo essa sociedade absolvida, consagrada, santificada e possuída, apagou nele a consciência sobrenatural que acabava de adquirir, como uma inundação de corvos negros nas fibras de sua árvore interna, submergiu-o numa última onda, e, tomando seu lugar, o matou. (ARTAUD, 1970, p. 13)

O autor diz que ainda hoje, assim como Van Gogh, somos suicidados pela sociedade. E acredita que não há outro tipo de revolução possível que não com o corpo. Considera que através do corpo é possível gritar o grito de revolta contra o mal que nos acontece. E eu, acredito que através da arte nosso corpo ecoe esse grito de revolta para não mais aplaudirmos de pé a morte dos devires, das diferenças, das intensidades e do nosso - potente “pecaminoso” desejo (SOARES & HUR, 2017). O problema dá-se quando perde-se o movimento de desterritorialização e reterritorialização, e não se produz um corpo ativo. Diria que toda pintura precisa de moldura, não necessariamente de madeira robusta, mas ao menos uma margem às extremidades da folha, que seja, ou ela se dissipa. No entanto, se a moldura for demasiada grosseira, a pintura perde a intenção. Ou seja: “Toda vida precisa de contornos e limites, ou ela própria se esvai. No entanto, se ela é excessivamente contida e limitada, ela perde sua vitalidade e movimento, e é aí que a morte se instala.” (SCHÖPKE, 2017, p. 288). A produção de um CsO não se trata de um convite à loucura e à depravação, diz de uma reinvenção da vida e produção de singularidade, produção de si, criação de corpo pleno.

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Figura 2: Não é louco quem quer

Sangue sobre páginas do livro “O que é Loucura?” 30,6cm x 22cm

Na imagem obra autoral de título: “Não é louco quem quer”, um corte em análise. O trabalho consiste em monotipias de chaves de ferro com sangue sobre páginas do livro “O que é Loucura?”, de Frayze-Pereira (1993). Ganhei esse livro depois de faxinar a biblioteca da primeira instituição onde fiz estágio durante a graduação em psicologia, e sempre me captura as marcações nas páginas. Crio possibilidades de ser para um alguém que deixou suas impressões em grifos e pequenas anotações nas páginas amarelas deste livro velho. Agora também deixo as minhas impressões, e nessa tentativa desordenada de marcar a ferro e sangue - ou seja, a ferro duas vezes -, também acabo por grif(t)ar palavras. As chaves ganhei de um tio distante - sempre ganho velharias e esquisitices da família que contribuem para minhas coleções -, são chaves pesadas, e muito antigas. Penso o que essas chaves viraram. Que portas, janelas, ou talvez correntes elas abriram e fecharam, e que cargas

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históricas trazem. Utilizei sangue, material orgânico, que muda de cor com o passar dos dias, me propondo a pensar o tempo enquanto acompanho a mudança do vermelho vivo pro amarronzado. Os rastros de sangue deixado pelos manicômios e pela psiquiatria clássica na história da loucura, que propunha um olhar classificatório, demarcador de sujeitos e subjetividades, à la alienista, de Machado de Assis, e que nunca vão se apagar. São vestígios de uma história marcada por violência, dor e subjetivação. Quantos corpos-potências foram destruídos nesse massacre por também não corresponderem a uma determinada lógica? Recordo-me de um trecho belíssimo do longa metragem A Febre do Rato (2011), de Cláudio de Assis, onde Zizo - poeta e anarquista inconformado - declara ao Dia da Independência do Brasil:

Hoje, no dia da independência, proponho a liberdade. A liberdade e o direito ao erro. Proponho a liberdade e o direito a paz, para pedir, além de teto e comida, anarquia e sexo. (...) Somos anarquistas sim, e estamos aqui porque até a anarquia precisa de tradição, queremos o direito de errar. Direito de errar! Direito de poesia! Não há mal maior quando o mundo não precisa de amor. (...) Precisamos de um não, um não que seja um sim, não há mal maior quando a vontade se impõe a força. Tome poesia pra esse mundo, precisamos é de amor, não de armas, não há mal maior do que a vida, não há mal maior de que esse mundo abismo, abismo mundo. Não há mal maior do que a mentira. Não há! Pra salvar as possibilidades, um acordo que de tão livre não precise ser respeitado. Por sinal, nesse acordo o respeito desaparece por não ser necessário. A palavra vai dar lugar a amizade e não existirá a ideia do ontem e nem a angústia do amanhã e a culpa do presente será diluída nos atos inconsequentes, será igual pra todos. Igual pra rola, igual pro cu, igual pra boceta. (GUIDOTTI, 2016, p. 9)

Não nos deixemos enganar: a desconstrução aqui nada tem a ver com destruição. Apesar de ambas tratarem de algo que rui, penso que na primeira existe a presença de um corpo ativo no processo de ruptura, enquanto na segunda o processo ocorre de forma reativa. É importante diferenciar a produção ativa de desconstrução, de uma destruição niilista (SOARES & HUR, 2017). Trata-se de um corpo em constante processo de desterritorialização e reterritorialização para viver o pensamento revolucionário. No processo de desconstrução e reconstrução, alguns corpos se extraviaram para a zona da destruição, por isso coloquemos em linhas claras: aqui o proposto é pensar a desconstrução como um movimento implicado e implicante do corpo que desconstrói, ou seja, uma desconstrução ativa na fazedura, diferente do corpo que é desconstruído. Implica na responsabilização pelo que se constrói no lugar, pelo que se produz de possibilidade em meio à desconstrução. Por isso desterritorialização e reterritorialização são processos conectados e indissociados.

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Para suprir a demanda do “ser artista” habitando um corpo contemporâneo, vemo-nos por vezes fadados a carregar o peso da loucura, da depressão, da tristeza no corpo. Por essa razão, menciono a questão trazida por Deleuze e Guattari: “Será que é possível captar a potência da droga sem se drogar, sem se produzir como um farrapo humano?” (DELEUZE, 2013, p. 75) E eu questiono: É possível dar um beijo na boca da loucura e não levá-la para casa? É possível ser artista, beber direto da fonte e permanecer em um corpo pleno? É possível elevar nossas intensidades à potências máximas - não só para nos expressarmos -, mas por vezes para chacoalhar uma sociedade que goza através do outro em seus lugares confortáveis na platéia da vida, enquanto o artista se lança e vive o corpo revolucionário, e se coloca em posição de voyeur para a sociedade capitalística que tenta docilizar seus corpos por meio de si próprios? “(...) Será que é possível fazer movimentos de desterritorialização ou, simplesmente experimentar novas potências e intensidades sem precisar ser um drogado, um louco ou um pervertido? Como se abrir pra fora sem se perder no caos?” (SCHÖPKE, 2017, p. 288) É um infeliz e recorrente contexto em que o artista extravia seu corpo para a zona da destruição. E o que encoraja tal destruição? Seria uma visão muito cartesiana responsabilizar apenas uma esfera. A destruição do corpo do artista pode advir de um adensamento de coisas que envolvem sua existência: suas experiências, o contexto em que está inserido, sua história, seus desejos, suas relações, dentre tantas. Mas quero dizer, num contexto contemporâneo social, onde vivenciamos uma lógica capitalística-cristã, que impõe aos corpos dos artistas que alcancem níveis extraordinários das sensações e as exprimam poeticamente. Em busca da “loucura revolucionária”, por vezes, o corpo do artista escorrega e cai na loucura que aprisiona, que fabrica uma máquina produtora de consumidores passivos. Um corpo que realiza todos os desejos é um corpo escravizado, embora em outro viés do capitalismo, que de alguma forma habita ainda um lugar de apoderação. Por isso o pensamento deve ser vigilante, não se pode dormir demais, nem entrar em demasiado delírio. Como canta fortemente Elis Regina:

Atenção! Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso (...) É preciso estar atento e forte “Atenção! Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso (...) É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte... (GIL & VELOSO, 1968)

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Deleuze e Guattari pedem atenção para o valor da prudência na construção de um CsO, visto que sem prudência - ou sabedoria - não cria-se um corpo pleno e revolucionário. Prudência no sentido do agir pensado, saber usar doses, compreender quando se avança quando se recua. O corpo não pode se ver desconectado do pensamento, toda experimentação de corpo é também uma experimentação do pensamento. E o pensamento advém de uma coesão de forças, bem como o corpo. Não se deixe enganar, entretanto: um corpo partido entre o Eu e consciência, é um corpo da moral, o CsO é outra produção (SCHÖPKE, 2017). Lembro da declaração de Rolnik (1966) ao participar da proposta “Baba Antropofágica" de Lygia Clark em 1994, e descreve como sentiu-se:

(...) O corpo sem órgãos é esta matéria aformal de fluxos/babas, que experimentei num plano totalmente distinto daquele onde se delineia minha forma, tanto objetiva quanto subjetiva. Eu disse matéria "aformal" e não "informe", porque o que vivi ali não foi simplesmente uma ausência ou indefinição de minha forma, mas sim um além da forma. Um plano habitado por uma fervilhante agitação de fluxos de saliva, de linhas, de bocas, de mãos, em movimentos de atração e repulsa, produzindo constelações - uma pletora de vida onde um feixe desconhecido de sensações foi germinando, impossível de ser expresso na forma em que eu me reconhecia. Foi quando me estranhei: algo em mim deixara de fazer sentido. Só fui me apaziguar quando senti ganhando consistência um novo corpo, um novo eu, encarnação daquelas sensações produzidas pela mistura dos fluxos/baba. (ROLNIK, 1996, p. 75)

“Pássaros e leões nos habitam”, diz Lygia - são nosso corpo-bicho. Corpo vibrátil, sensível aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos ambientais que nos atravessam. Corpo-ovo, no qual germinam estados intensivos desconhecidos provocados pelas novas composições que os fluxos, passeando para cá e para lá, vão fazendo e desfazendo. De tempos em tempos, avoluma-se a tal ponto a germinação que o corpo não consegue mais expressar-se em sua atual figura. É o desassossego: o bicho grasna, esperneia e acaba sendo sacrificado; sua forma tornou-se mortalha. Se nos deixarmos tomar, é o começo de outro corpo que nasce imediatamente após a morte (ROLNIK, 2015).

Reticenciar

Vi-me em conflito: me compreendi enquanto artista - que foi um intenso processo de compreensão que ser artista muitas vezes diz mais sobre o modo de criação de existência, do que de produção de fato -, e vendo chegar perto o título de “psicóloga” me questionei se caibo nessa psicologia, que por tantas vezes também funciona como fábrica de sujeitos, indivíduos e

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estruturas. Por entre as leituras esquizoanalíticas, vi frestas e rupturas que permitiram um pouco de luz entrar. Por isso, considero este ponto não o final conclusivo de meu trabalho, mas justamente o contrário: o começo, a abertura, a porta de entrada, a fresta a ser arregaçada. Não se pode ser completamente reativo ou completamente ativo. É sobre ser atravessado e agenciar os atravessamentos, fazer deles potências e não destruição. Não tratase de um corpo desesperado por realizar desejos e da produção de perversões, apologias às drogas e delírios sexuais. Só se produz um CsO se entramos em guerrilha com os poderes interiorizados em nós, que vivemos por reproduzir sem questionar. Nessa guerra, se faz fundamental produzir um corpo pensante, que pensa inclusive nos desejos, e que possa criar novas possibilidades de produção, de existência, de vida. Contrário ao que podem pensar, um corpo desesperado por prazer não é um corpo que vivencia os desejos em potência máxima. Em geral lhes falta o desejo, que se esvazia na busca sedenta por um objeto que lhes foi roubado - o próprio desejo. Nietzsche resume: “A mãe da devassidão não é a alegria, mas a ausência de alegria.” (SCHÖPKE, 2017, p. 301) É necessário ver o corpo enquanto máquina de guerra, potente e criadora.

Trata-se da criação de um devir inumano (...) que não quer dizer tornar-se animal (até porque isso já somos). Trata-se antes de desfazer-se da ordem humana no corpo para encontrar nossas próprias zonas de intensidade, nossos grupos, ou seja, as populações e espécies que nos habitam. Só assim é possível alcançar a criação de um CsO pleno e revolucionário. (SCHÖPKE, 2017, p. 290)

Durante a vida escutei muito que “vivo no mundo da lua” ou que “preciso ser mais realista”, e me pergunto: que realidade é essa? É possível haver uma realidade em comum a todos os corpos? Fernando Pessoa disse que “(...) reconhecer a realidade como uma forma de ilusão, e a ilusão como uma forma de realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil.” (Pessoa, 2019¸ p. 90) “Fiquei louca”, - como muito já ouvi - por me recusar a viver uma realidade inventada por outrem para mim, ao invés de me permitir criar as minhas próprias? considerando obviamente todo meu contexto de inserção .

Tudo em nós se apresenta corrompido, primeiro por uma moral transcende que torna a própria razão refém (e também um instrumento privilegiado) deste desejo de proteção e segurança máximos. E segundo, pelo niilismo que decorre do adoecimento da própria vida que tornou servil (...) É preciso que o CsO seja uma resposta ao corpo que grita, à vida que não pode mais, ou seja, que ele represente a libertação da vida que foi encurralada em nós desde a mais terrena infância, e não a sua destruição. (SCHÖPKE, 2017, p.301)

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No fim agradeço o olhar de estranheza advindo de quem vive um corpo reativo aprisionado pelo sistema ou pelo organismo. O diferente é sempre visto com estranheza, e esses olhares me confirmam que meu corpo se propõe num movimento contrário. Como bem colocado por Trindade (2017): “Sonhar com a média ponderada é consagrar-se a mediocridade!” E me recuso a sucumbir! Deve ter algo a ver com a quantidade de vezes que ouvi “Lindo Balão Azul” quando criança:

(...) Eu vivo sempre no mundo da lua Tenho alma de artista Sou um gênio sonhador E romântica... (Arantes, 1996)

Todo corpo tem potencial para ser “gênio” - nem gosto dessa palavra apesar de ter um gato de nome Aladin53 -, precisamos nos libertar das amarras e dar vasão aos nossos fluxos, implicando a eles as potências máximas, mantendo sempre o pensamento ativo para que permanecemos um corpo pleno e sobretudo revolucionário! “Há em todo demente um gênio incompreendido, cuja ideia de luzia na cabeça provocou medo, e que só no delírio pode encontrar uma saída para os estrangulamentos que a vida lhe prepara.” Artaud (1970). Entendo por gênio então alguém que em seus delírios encontra brechas e possíveis54 para ventilar. Para que entre ar e com isso: movimento, vida, possibilidades de existência e criação de si.

Começa então, meu trabalho de arregaçar essas frestas e deixar clarear o espaço escuro, com isso quero dizer: começo agora o trabalho de criar para mim, e para minha proposta klínica um CsO, uma clínica que não é Consultório. Fazer de meu corpo máquina de guerra em prol da vida, da multiplicidade, da multiplicação dos afetos, e em benefício da alegria. A angústia em não saber como traçar algo que me possibilitasse perpassar a arte e a psicologia clínica sem parâmetros, técnicas e análises já pré-estabelecidas - acredito na arteterapia e sua potência, mas ainda não se tratava disso -, chego ao delírio possível do “Ateliê Experimental” ; ou “Klínica Ateliê”, - ou palavras outras que deixo em aberto brechas para que cheguem - onde proponho desenvolver minha klínica dentro do meu ateliê,

53 Personagem da Disney, “gênio” que mora na lâmpada mágica. 54 “[...] um pouco de possível senão eu sufoco…” Deleuze sobre Foucault.

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utilizando a arte e a esquizoanálise enquanto ferramentas de produção. Guimarães Rosa usa sempre palavras certeiras: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é no meio da travessia.” (Rosa, 2019, p.46) Em minha proposta, ainda sem nome, de experimentações psico-filosóficas-artísticas, quero que o cliente tenha liberdade para escolher onde sentar, ou ficar em pé, ou deitar... Ocupar o espaço usando o corpo de forma ativa. Desejo criar um espaço de troca, onde o tempo também não necessariamente é medido por hora e minutos, mas por intensidades. E compreendo que esta pode ser alcançada em minutos, horas, anos ou dias, de forma orgânica ao construirmos relações singulares. Por acreditar que a linguagem não dá conta de todas as demandas, desejo um espaço múltiplo que abarque todas as formas criação e produção de existência. Desejo romper a estética clínica no que diz respeito à organização do consultório - esse nome por si só -, a forma pré-estabelecida no espaço, onde o cliente tem definido onde deve se posicionar, e de forma reativa ocupa seu espaço, pois creio que dessa forma, estaria corroborando com o espaço criado pelos padres55 . Aposto na existência, que é também apostar na vida.

(...) Produzir a própria existência a partir de operações que se realizam na mais pura imanência e potência do ser. Sim, a construção de um corpo sem órgãos é uma questão de potência de vida e, fora de qualquer aspecto moral, significa simplismente: criar um corpo mais forte, mais resistente e mais alegre para a própria vida. (SCHÖPKE, 2017, p. 304)

Por fim, gostaria de deixar uma provocação.O processo de escrita me foi um desafio contrário ao que propõe meu trabalho. Levando em conta as diversas formas de expressão, critico aqui a invalidação das outras tantas e super validação da escrita como única via possível de comunicação “formal”56 . Veja bem, frizemos: não existe uma oposição à escrita, pois essa particularmente me ocupa um lugar de muita valia, me oponho aqui a validação única da escrita enquanto forma de expressão formalizada.

55 Como os psicanalistas foram referidos por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo (1972) 56 Ou diria “moralmente correta” ?

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CAPÍTULO III: PALHAÇARIA

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