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EM BUSCA DO AFETO: MATERIAL EXTRADIEGÉTICO NO JOGO DO ATOR

Em Busca do Afeto: Material Extradiegético no Jogo do Ator

Daniel Monjardim36

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Resumo: Neste presente estudo exploramos e sistematizamos os elementos extradiegéticos e o seu impacto no campo associativo e psicofísico do ator. Como essas reverberações internas e também externas podem afetar o jogo do ator e como ele pode manejar esses elementos para gerar poética da atuação.

Palavras-chave: Elementos Extradiegéticos, Afeto, Jogo, Instante, Associação.

Por meio da minha atuação no mercado de Artes Cênicas do Espirito Santo, nestes últimos quatro anos, tive experiência no audiovisual, com os curtas-metragens “2 Sobre 1” (Matheus Muniz, 2019), “O Fruto Proibido (Gustavo Frossard e Yago de Vargas, 2019), “Jazigo” (Tadeu Vieira, 2020) e no longa-metragem “Os Primeiros Soldados” (Rodrigo de Oliveira, 2020). Percebi que a atuação para cinema necessita de um “voo mais interno”. O que quero dizer com isso? É necessário atingir “camadas mais profundas” do “emocional do ator”. São necessários estímulos, que podem advir das mais diversas formas; por meio da música, monólogos interiores (Kusnet, 1992), materiais visuais e condições externas. Durante uma diária de filmagem, podem acontecer as mais diversas situações. Em todos os sets, me deparei com adversidades e coisas inesperadas que pude utilizar a meu favor em uma cena. Em “2 sobre 1” gravamos no topo da comunidade de Nazareth e no dia anterior eu tinha saído e bebido muito. O sol estava muito forte e o clima estava abafado. Tínhamos

marcado a filmagem para bem cedo. Meu corpo estava exaurido do dia anterior e tivemos que subir muitos lances de escadaria e ladeiras. Cheguei extremamente cansado. A combinação de calor e cansaço resultou em um aspecto “meio jogado” para o meu personagem. Reparei nisso

36 Licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha, membro da Associação Sociedade Cultura e Arte SOCA e dos coletivos: Cia Poéticas da Cena Contemporânea, Companhia de Teatro da UFES, Cia de Teatro Urgente e produtora de audiovisual Checkmath. Ator, músico e professor de Artes Cênicas, modelo e produtor cultural. Email: danielmonjardim@hotmail.com

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apenas mais para frente, ao ver a resultante: o “contexto extradiegético” acabou por determinar uma característica marcante do personagem no filme. Em “Jazigo” (Tadeu Vieira, 2020), eu raptava uma criança (bebê) e a jogava de uma ponte. A cena foi gravada com um drone. Por eu não ter muita experiência com crianças de colo, fiquei nervoso. Eu tinha que atravessar algumas ruas, tinha que correr com a criança na ponte; eu não sabia nem segurar ele direito. Depois de várias tomadas, eu estava com muito medo de tropeçar e deixar o bebê cair. Esse misto de nervosismo e medo acabaram por alterar o meu fluxo de corrida e tencionar a minha expressão, o que trouxe um tom interessante e acabou por revelar o que eu próprio não sabia sobre o personagem. Outro relato de bastidor do mesmo filme, aconteceu com a atriz Layla Erlacher Novaes. No começo do filme, ela andava sobre o viaduto “Caramuru”, no centro de Vitória, à noite. Ela estava sendo espreitada pelo meu personagem. Estávamos eu, Layla, Tadeu (o diretor do filme) e Ramon, fotógrafo. Ramon estava auxiliando com as demais necessidades da produção. Estávamos receosos de ser assaltados naquele lugar. Esse medo estava nitidamente estampado no rosto de Layla e era justamente o que a cena pedia. Isso mostra que o ator tem que estar aberto a estímulos, esses que podem advir das mais diversas formas. Para o ator de cinema, isso se torna ainda mais necessário, pois diferente da atuação para o teatro, mais corporal, dilatada e desenhada, a atuação para cinema bebe na maioria das vezes do Naturalismo (principalmente quando se trata de um certo cinema contemporâneo que demanda do ator uma atuação realista). Assim, uma tentativa forçada de representação pode gerar uma atuação sem credibilidade. Por isso, a necessidade de estar aberto a esses estímulos. Uma mistura acontece, então: o jogo do ator com o outro, o estímulo e o material interno que o ator trabalha para a cena. A combinação de todos os fatores gera, então, a resultante vista na cena.

EXPERIMENTO #1

No dia primeiro de abril iniciei um laboratório-solo com o objetivo de investigar a linguagem da atuação em um novo curta-metragem, que nomeei “Tentação”. O contexto de criação implica a pandemia do Covid-19 e uma tentativa solitária de produção de linguagem audiovisual. O experimento contou com a orientação de Duílio Kuster na disciplina de “Práticas de Direção e Encenação I” e de Rejane Arruda em “Estágio Supervisionado em

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Artes Cênicas IV”. Neste laboratório, em diálogo com teóricos que me auxiliam no caminhar (entre eles Kusnet, Bogart e Arruda) e partindo utilização do “objeto extradiegético” (elemento dos bastidores, extraficcional), dediquei-me a uma produção a partir da “primeira instalação”. O ator de cinema deve fugir ao máximo da ideia de representação. Segundo Kusnet (1982), o ator trabalha em duas instâncias: primeira e segunda instalação. A “primeira instalação” é o contexto próprio do ator, as suas vivências e aspectos emotivos de sua personalidade, além de todo e qualquer material que não esteja a princípio inserido no contexto diegético. Contexto diegético, chamado por Kusnet, de “segunda instalação”: o contexto ficção, da fábula utilizada pelo roteirista e transmitida no filme como universo da

personagem. Em uma atuação realista, o ator traz, para o set, as suas vivências e estímulos (internos e externos). O contexto da personagem só existe no filme. Este contexto, o espectador vê na tela associado àquela realidade, ali, apresentada por uma série de estímulos e associações pessoais trazidas pelo ator. A “segunda instalação” seria, então, segundo Kusnet, uma resultante da primeira. “O ator atua em nome próprio, o que permite criar um “efeito de personagem” (ARRUDA, 2019, pg.113). Assim, para “efeitos de representação” de um personagem, o ator abandona essa ideia de representação e parte para uma série de vivências oriundas de seu próprio universo pessoal, um verdadeiro mergulho em si. Além dos estímulos internos (substituição, fala interna, memória emotiva, monólogo interior, música interna, imagem interna), o ator também é atravessado por estímulos externos do set, chamados, aqui, de “objetos extradiegéticos”. “O ator, na atuação realista, precisa lidar com certa instabilidade ou o efeito de realidade não acontece.” (ARRUDA, 2019, pg. 112). Segundo Arruda (2019), para o ator chegar em um registro de atuação realista é necessário um “elemento atrapalhador”. Esse elemento causaria uma desestabilização do material interno, causando, então, esse “efeito de realismo” em seu texto. Ela fala da relação com o outro; do jogo do outro ator em relação aos estímulos internos e como a relação com o outro pode lhe atravessar e causar novos estímulos, sensações e afetos diferentes.

Todo ato criativo implica um salto no vazio. O salto tem que ocorrer no momento certo e, no entanto, o momento para o salto nunca é predeterminado. No meio do 29

salto, não há garantias. O salto pode muitas vezes provocar um enorme desconforto. O desconforto é um parceiro do ato criativo – um colaborador-chave. Se seu trabalho não o deixa suficientemente desconfortável, é muito provável que ninguém venha a ser tocado por ele. (BOGART, 2011, pg.115)

Em cena, o ator tem que estar aberto a estes estímulos. Esse salto no vazio, que o ator dá ao entrar em cena, é o momento chave. É nesse instante que o ator (e seu arranjo interno) se põe em estado de vulnerabilidade (Arruda, 2014), para que elementos extradiegéticos exerçam interferências em sua atuação. Isso pode ocorrer de diversas formas. Para uma das cenas de “Tentação” em função da investigação sobre o elemento extradiegético, escolhi um elemento extracotidiano que me afetaria em cena37 . A este material estou chamando “objeto extradiegético primário”, isto porque é possível que outros elementos extracotidianos se introduzam no jogo a partir da suscebilidade que o objeto primário causa. Primeiro, gravei uma cena sem a utilização do objeto extradiegético primário, apenas com elementos internos. Meu personagem está em um quarto escuro, iluminação azul, enquadrado em plano médio. A escuridão não permite que nada seja visto além dele. A cena foi gravada a tarde, quase ao anoitecer, então foi possível ver parte do ombro e um pouco do peito. O personagem está em uma espécie de loucura, entre o riso e o choro, por conta das situações vividas em um período de distanciamento social, em período de surto de COVID19.

A resultante dessa primeira gravação foi boa, por conta do uso de materiais internos, mas senti dificuldades ao rir. Acho que rir sem ter vontade é muito difícil e, no momento, não consegui encontrar nada que me motivasse o riso. Essa sensação de desconforto por não alcançar o riso não foi de todo ruim e trouxe um tom desejado. Acabei ficando satisfeito ao ver o resultado, mas sentia que eu poderia ir mais. Na segunda tentativa, utilizei o material extradiegético primário. Era madrugada, o enquadramento era o mesmo, mas a luz dessa vez só permitia ver metade do meu rosto. O objeto altera os sentidos, de modo que fiquei mais suscetível aos estímulos. Naquele momento em que me vi sozinho, no escuro, com apenas metade de meu rosto em azul na câmera, me senti assustado e comecei a cena. Senti meus olhos lacrimejando. Parecia que não estava sozinho naquele local escuro. Eu imaginava que um rosto ia surgir por de trás do meu ombro e aquele sentimento me causava arrepios na espinha. Comecei a chorar e, então, a tentar o

37 É importante frisar que o objeto extradiegético-primário é uma função. Esta pode ser exercita por modalidades diversas de objetos. Trata-se de comprovar a função independende de qual objeto o ator escolhas. Para este laboratório em específico o objeto utilizado foi o Tetra-hidrocanabinol.

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riso. Dessa vez, ele fluiu de uma forma mais orgânica, pois eu estava em um estado de relaxamento apesar do medo que eu estava sentindo. A minha figura chorando e rindo no escuro, apresentando certa insanidade mental, me assustou, de modo que comecei a tremer também. Percebi que, durante a cena, a medida em que eu me afastava da câmera e da luz, a escuridão ia me engolindo. O efeito disso me causou mais medo. Minha imaginação estava mais fluida. Eu estava jogando com os estímulos que o set de gravação provocava. Em um certo momento, olhei para um canto escuro do quarto. Imaginei naquele canto uma forma grotesca, um monstro. Na medida em que ia imaginando, fui capaz de ir visualizando. Quase pude sentir a presença dele junto a mim naquele local. Fui tomado de um sentimento de medo e impotência e me debulhei em lágrimas. A segunda cena gravada teve um resultado melhor que a primeira. O uso de material interno e a presença do “material atrapalhador” (Arruda, 2019) ajudaram a causar um efeito naturalista interessante. Mas o uso do objeto extradiegético primário no segundo vídeo, junto à série de afetos que me foram causados pelos estímulos, também extradiegéticos, encontrados no set, causaram-me certa visceralidade e organicidade - na medida em que sentia cada estímulo à flor da pele. É importante para o ator de cinema que brinque com esses estímulos e que seja afetado. O ator deve estar sempre aberto a proposições externas.

EXPERIMENTO #2

Utilizei o mesmo objeto extradiegético primário em “Tentação”. Junto dele decidi usar a música como um segundo objeto extradiegético. A música é um material potente na criação de afeto. Por meio dela podemos fazer associações e assim gerar material interno.

O que a música acrescenta a um texto, a uma mensagem? E na interpretação de um ator em uma história? Um elemento importantíssimo, em particular: a emoção. Os códigos emotivos permitem não apenas receber uma mensagem, decodificá-la, mas interiorizá-la, fazê-la própria, fixa-la na memória. (COLOGGI, 2017, pg.1)

Preparei o set, ajustei a iluminação, uma mescla de luz azul com vermelha, posicionei a câmera e botei a música para tocar. Para divisão de foco (Spolin, 2015), acendi um cigarro branco. Estabeleci um foco para meu olhar e comecei a fumar um cigarro ouvindo

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a música “The Lonely Shepherd” (James Last, 1977), trilha sonora de “Kill Bill: Vol 1” (Quentin Tarantino, 2003). Sempre gostei dessa música, então, sabia que iria me causar algum tipo de reação. Não demorou muito e as falas internas começaram a se manifestar. Com elas, a emoção.

“No Cinema tudo o que se exige é a verdade daquele estado do espírito do momento.” (TARKOVSKI, 1984, pg. 179) Para o ator de cinema, é necessário vivenciar suas emoções, a busca pelo afeto se torna o objetivo e para que esse objetivo se cumpra, é preciso se deixar atravessar. O ator deve manejar estímulos para que seja afetado.

O ator atua, age, afeta um espaço-tempo constantemente recriado gerando principalmente, além de percepções macroscópicas musculares e de movimento, sensações microscópicas afetivas e que a atuação é ao mesmo tempo um fluxo coerente de sentido vinculado a um fluxo incoerente (ou não), mas microperceptivo e de atualizações e virtualizações que territorializam sensações. (FISCHER, 2015, pg. 28)

Segundo Fischer (2015) o ator ocupa um lugar no espaço-tempo situado em um instante. E, nesse instante, ele está suscetível a sensações e estímulos que despertam memórias afetivas. A própria presença e a materialidade em si do corpo do ator em cena já geram o afeto. O ator é vivo, o fluxo de micros sensações vem e vai, toma rumos inesperados, se atualiza, vai embora, volta de outra forma. Uma outra experiência que tive em “Tentação”, foi durante a cena de um ritual feito pelo protagonista Alice. Nessa cena, testei novos elementos extradiegéticos: o calor do fogo, o vento, barulhos do set, e a produção de afeto advinda deles. A cena foi gravada em local externo. Eu estava sem camisa, com o intuito de sentir frio. Era madrugada e estava ventando muito. Peguei uma pequena panela de barro e a enchi com álcool, papel e folhas secas de bambu. Ajustei a luz azul, a câmera e “taquei fogo” na panela de barro. Fiquei um bom tempo olhando para a chama queimando na panela, brinquei com a mão de uma forma que parecia que eu controlava a chama, fui sentindo o calor e a sensação que proporcionava ao meu corpo, fui tecendo associações. Em um determinado momento, percebi que a chama estava se apagando. Dentro da lógica do filme, aquilo era o fim para o meu personagem. O ritual não tinha dado certo e ele estava exposto às maldades do demônio Balzac. Na primeira instalação, contexto no qual eu estava vivendo naquele momento, tive uma associação similar ao contexto ficcional. O fogo estava se apagando e eu estava começando a sentir frio. Associei

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isso a esperança e o frio à destruição de todos os meus sonhos. O calor estava indo embora, o aconchego também e, com ele, vinha um sentimento ruim de frio, um frio desolador. De repente, me vi pensando em tudo que me deixava triste. Durante esse processo, vi a emoção vindo e se acumulando dentro de mim, me vi chorando compulsivamente. Os pensamentos se atualizavam o tempo todo, novos materiais iam e vinham e me afetavam. Nesse estado em que me encontrava, decidi explorar mais os materiais que me rondeavam no set. Peguei na mão as cinzas e mostrei para a câmera. Isso me motivou a chorar mais ainda, porque o fogo havia apagado. O vento vinha e eu me tremia todo. Isso me trazia desespero, pois era a associação que eu tinha feito. Durante essa experiência, experimentei objetos extradiegéticos que eu havia programado, mas, durante a gravação, ocorreu de eu ser atravessado por outros objetos, dos quais eu não havia programado. Chamei-os de objetos extradiegéticos indiretos. Eles me afetaram em conjunto: os objetos primários e secundários. Eram barulhos que vinham do nada, como o ranger e bater de portas, barulhos no mato, latidos de cachorro, uma goteira pingando atrás de mim e que me molhava, sons de televisão do vizinho e músicas de uma festa que estava rolando em uma residência no meu bairro, todos esses objetos me afetaram e me fizeram criar associações diversas que me mantiveram vivo em cena.

O instante existe na medida em que o indivíduo experimenta uma sensação imediata e tangível. Essa sensação é tão intensa, tão fortemente sentida, que esvaece assim que é sentida pela primeira vez. A experiência da sensação forte articula a possibilidade de um instante tanto por meio de uma intensidade de sensação que comunica presença imediata quanto por meio da diminuição de intensidade pela qual o instante contrasta com o instante menos intenso que o sucede. (CHARNEY, 2001, pg. 386)

De acordo com Charney (2001) é no instante que o afeto e a vivacidade do ator se efetivam. Por mais que o ator se aproprie de técnicas diversas, se a produção de afeto não se der no instante, o trabalho se esvazia. “Essa forma de experiência determinada no e pelo instante, seria um acontecimento que impactaria primeiramente os sentidos, por meio do afeto, para depois trazer a consciência dele.” (FISCHER, 2015, pg. 117) Durante o instante em que o ator é afetado, ele entra em uma espécie de transe. Primeiro se sente, é atravessado; depois o afeto é decodificado e se criam as associações, que se atualizam constantemente, pois o material interno é vivo e inconstante.

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Nossa capacidade imagética embora esteja diretamente relacionada ao psíquico, ocorre dentro do nosso corpo a partir de "gatilhos de acesso" que são criados pelos participantes ao longo dos processos, como, por exemplo, a utilização de fotografias e imagens acerca do tema a ser trabalhado. A pesquisa individual para embasamento acerca do personagem que está surgindo, a maquiagem que cria um novo rosto, ou o figurino nos levam a um tempo outro. Objetos cênicos e adereços que fazem reverberar sensações no ator também são gatilhos. Tudo isso são formas de acesso a uma transformação que resulta em uma consciência dilatada, que por sua vez toca o nosso corpo físico e o faz chegar a outros mundos. (FERNANDES, 2019, pg. 12-13)

O ator nessa espécie de transe estaria, então, vivenciando a segunda instalação? Não, o transe alcançado a partir desses gatilhos, objetos extradiegéticos evocam associações na primeira instalação. Tentar vivenciar a segunda instalação seria mimetizar afetos e não realmente vivenciá-los. Para que seja estabelecida uma conexão é necessário que se sinta afetado, isso só irá ocorrer se a situação dramática dialogar com seu universo pessoal. Os objetos extradiegéticos causam sensações no ator, cabe ao ator manejar essas sensações e criar suas associações.

EXPERIMENTO #3

Foi notado a partir de uma experiência em um projeto, Híbridos (Roberta Fernandes, em pós produção), uma residência artística entre a Cia Poéticas e a produtora Andaluz Filmes, resultantes interessantes de interação entre a poética de interpretação e os elementos extradiegéticos. Em uma determinada diária de gravação deste projeto, em um exercício de improvisação proposto por Rejane Arruda, foi me indicado fazer uma cena em que o elemento central fosse meu personagem estar fazendo o uso de drogas, esse para mim não era um tema forte o bastante para em questões de sustentação de cena, na qual a resultante interativa com os outros atores, era só em relação a meu personagem largar o uso de cocaína, de ter roubado dinheiro e de ter que ir para a reabilitação, a jogada chave para a mudança desse panorama de cena foi jogar o elemento DEPRESSÃO, esse elemento novo foi essencial para que fosse adicionada mais uma camada a cena, onde essa, me possibilitaria tomar novos rumos e eu pudesse por meio do contexto montado acessar mais profundamente o meu interior.

Nós enfatizamos a realidade interior. E essa foi a característica particular do nosso trabalho que excitou a todos: a força das intensidades emocionais, as erupções quase

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vulcânicas. [...] Usamos as ações. Usamos as circunstâncias dadas. Usamos todo o procedimento. (GARFIELD, 1980, p. 34)

Stanislávski elabora então a ideia de que o ator pode e deve viver o papel não com os sentimentos alheios, mas com seus próprios. Justamente com a ajuda de sua própria memória afetiva o ator ressuscitaria dentro de si as vivências, necessárias para determinada cena e vividas por ele em circunstâncias semelhantes em sua própria vida. (VÁSSINA e LABAKI, 2016, p. 110).

O ator no momento da cena ao utilizar memória afetiva deve dialogar com seu próprio contexto. Naquele dia, eu havia passado por duas experiencias estressantes antes da gravação, problemas com a família e problemas no trabalho, vamos pensar nesses dois casos ocorridos como possíveis elementos externos a cena; Ao mudar o objeto de conflito da cena para DEPRESSÃO, pude acessar mais facilmente gatilhos que dialogavam com a minha memória afetiva, pois já tive depressão.

O ator “não pode fugir de si mesmo”, pois todo o material de criação que ele dispõe sempre estará em sua própria vivência, ou seja, em suas próprias emoções. Diferentemente de um escritor, um compositor ou um pintor, o material de trabalho do ator é o próprio ator: “O instrumento do ator [...] é ele mesmo; trabalha com as mesmas áreas emocionais que usa na sua vida real. [...] O ator é tanto o artista quanto o instrumento. Em outras palavras, violinista e violino a um só tempo. (STRASBERG, 1990, p. 152).

Não existe personagem, existe o ator vivenciando experiências análogas ao papel, “mas esses sentimentos pertencem ao ator mesmo, e não à personagem que foi criada pelo poeta.” (VÁSSINA e LABAKI, 2016, p. 310). Acredito que esses dois fatores (os casos ocorridos) que aqui vou estar chamando de Objeto Extradiegético Primário, foram facilitadores para que a memória afetiva pudesse ser alcançada de uma forma mais potente, a situação de estresse causada pelo Objeto Extradiegético Primário (o contexto), gerou resíduo interno que esteve presente em toda a gravação, mas que em algum momento pré-modulado por mim, eclodiu na cena, me afetando e facilitando com que os gatilhos trabalhados por mim penetrassem camadas mais profundas do meu interno.

“Strasberg, então, parte dessa premissa e subdivide a memória em duas partes: a memória sensorial (ligada aos sentidos) e a memória afetiva (relacionada à emoção propriamente dita).” (GREVE, 2018, pg. 44). O Objeto Extradiegético Primário atuaria nesse campo da memória sensorial, afetando os sentidos e criando essas micro reverberações no corpo do ator, pensando em

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experimentos anteriores onde o Objeto Extradiegético Primário foi o THC, concluímos que dentro da sistematização proposta por mim, esse elemento primário teria sempre essa função de expansão sensorial, a grosso modo com a finalidade de aumentar o canal perceptivo e potencializar afetos, isso pode ser programado ou não e pode acontecer de diversos modos, seja por meio de: uma substancia, algum acontecimento no contexto real do ator (do dia, do mês, de anos), estado físico (como exaustão, fome, frio) e etc. No meu caso naquela diária o meu Objeto primário foi espontâneo, mas poderia ter sido modulado como foi em Pele (Rejane Arruda, 2019). Em um dos ensaios desse espetáculo, eu não estava conseguindo chegar na energia necessária para uma cena de briga e isso estava empacando o ensaio; Para que eu conseguisse chegar no estado de espírito necessário para aquela cena Rejane modulou uma situação para me colocar em pressão, para que surtisse efeito em mim ela trouxe coisas do meu contexto de vida, e do contexto do momento, a sensação de desconforto gerada pela pressão causada pelo dispositivo de Rejane atravessou meu corpo e me fez acessar mais facilmente a minha memória afetiva, me pondo em um estado de raiva que era necessário para a cena.

Por “registro” entendo um arranjo corporal específico, que se apresenta como matriz (Bunier, 2001) no jogo do ator. Os registros que trabalhamos com atores são: Naturalismo, Sujeira, Excesso, Performatividade, Teatralidade e Imobilidade, este último dividido em Neutralidade, Emoção com contenção e Inumano. Estes registros são estudados a partir de referências para, primeiramente serem experimentados de forma pura e, em um segundo momento, alternados e hibridizados. (ARRUDA, 2019, pág. 139)

Essa hibridização dos registros com outras técnicas gera efeitos interessantes na corporeidade do ator em cena. No momento daquela cena do projeto “Híbridos” brinquei com a alternância dos registros; o efeito causado pelo Objeto Extradiegético Primário me fez acessar camadas mais viscerais da minha memória afetiva, que em hibridização com outras técnicas como “contar até 10 na cena repetidamente”, gerou esses efeitos interessantes para a performance. A divisão de Foco (Spolin, 2015) causada pelo ato de alternar os registros e ter que focar nessa escuta durante a cena, gerou esse efeito de naturalidade, rompendo com o ato de representação e cadenciando o afeto gerado pelo Objeto Extradiegético Primário.

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Considerações Provisórias

Nesse estudo explorei a relação do ator com os elementos externos do set. A metodologia é experimentar diversos elementos ditos extradiegéticos em cena e ver como se dá a produção de afeto, linguagem dentro de uma poética da atuação. Depois de trabalhar com diversos objetos, eu concluo que o ator quando em cena, está sujeito no instante a ser atravessado pelo afeto que pode advir de um ou mais elementos extradiegéticos previamente trabalhados ou de forma espontânea. Até esse ponto, pude concluir que os objetos extradiegéticos são importantes aliados na produção de afeto, linguagem e poética da atuação, durante a cena. Proponho o termo “objeto extradiegético primário” para a praxis atoral por perceber que é operacionalizador e potencializador de procedimentos.

Referências

ARRUDA, R. K. Da Poética do Ator: Teatro e Cinema. Porto Alegre: Simplíssimo, 2019. BOGART, A. A Preparação do Diretor. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2011. KUSNET, E. Ator e Método. São Paulo: Ed. Hucitec, 1992.

GARFIELD, D. A player’s place. New York: Macmillan Publishing, 1980. VÁSSINA, E & LABAKI, Ar. Stanislávski: vida, obra e Sistema. Rio de Janeiro: Funarte, 2016.

STRASBERG, L. Um sonho de paixão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. HODGE, A. Actor Training. Londres: Taylor & Francis Ltd, 2010 ARRUDA, R. K. Arte e/em processos de subjetivação. Vila Velha: SOCA, 2019. CHARNEY, L. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001. COLOGGI, D. Música e Teatro, Comunicação e Emoção. 2017?. FERNANDES, L. I. A. O jogo ritual e os estados alterados de consciência. 2019. 27 f. TCC (Licenciatura em Teatro) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Natal, 2019.

FISCHER, R. D. Uma poética entre o cinema e o teatro: reflexões sobre a presença e a atuação cênica na obra de John Cassavetes. 2015. 212 f., il. Tese (Doutorado em Artes) — Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

TARKOVSKI, A. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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