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EPÍLOGOS DE UM ABRIL
“Epílogos de Um Abril”: Cinema, Realidade e Memória
Marcella Amorim Rocha38
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Resumo: O presente trabalho discute a construção social da realidade no Cinema e o limite entre ficção e realidade nas narrativas audiovisuais através da produção de um documentário sobre os desaparecidos políticos da ditadura civil militar que ocorreu no Brasil no período de 1964 a 1985. O produto permitiu uma discussão sobre as narrativas construídas através de memórias traumáticas e como esses relatos podem colaborar na construção da história de um país.
Palavras-Chave: Documentário; Cinema; Ditadura Militar; Memória.
Epílogos de um Abril é um curta-metragem (21’) que conta a história de três desaparecidos políticos e suas militâncias na ditadura militar que aconteceu no Brasil de 1964 a 1985.
O filme tem como objetivo humanizar os relatos dos desaparecidos políticos no período da ditadura militar brasileira por meio de uma narrativa ficcional. O filme procura priorizar as histórias dos personagens em relação a ideologias políticas, ressignificando o período e aqueles que militaram contra o regime, além de permitir reflexões que fogem do lugar comum – como tirar a credibilidade dos militantes tidos como subversivos. Dessa maneira, o curta apresenta uma visão dos relatos dos desaparecidos políticos que valoriza as memórias marginais e das minorias que resistiram naquele período. Para isso, as escolhas estéticas e narrativas procuraram aproximar o espectador do personagem a fim de gerar empatia.
Em suma, o presente trabalho visa discutir a construção da realidade na narrativa ficcional do audiovisual tentando compreender em que medida e de qual modo as ficções
38 Formada em jornalismo pela Universidade de Vila Velha, dirigiu o curta "Epílogos de um Abril" em 2017 como trabalho de conclusão de curso. Desde então trabalha com audiovisual na produtora Andaluz Filmes, em específico com a realização de documentários - principalmente com roteiro, fotografia e montagem. Email: marcella.amorim.rocha@gmail.com
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podem contar sobre a realidade da vida cotidiana de um determinado período e contexto. Neste ponto nos embatemos com o desafio de estabelecer um contrato entre obra e espectador, para tornar o filme crível, e ao mesmo tempo abrir mão de recursos como a verossimilhança e o apagamento das marcas de mediação. A escolha do nome se deu depois do décimo primeiro dia de gravação. Ao perceber todo material até então coletado, foi possível refletir a respeito da história e quais caminhos se pretendiam trilhar no processo de finalização. A palavra epílogo, segundo o dicionário Michaelis39, significa: 1. Conclusão da ação de uma obra literária (romance, poema, discurso etc.); 2. Em uma narrativa, peça teatral etc., capítulo ou cena que faz uma rápida menção a fatos posteriores à ação para completar-lhe o sentido; 3. POR EXT Resumo ou parte final de um fato; desfecho, fim, remate. A ideia é apresentar essas histórias como uma voz que, por representar uma minoria, se calou nos anos de regime e ainda se cala por causa de um contexto de impunidade e falta de informação a respeito do período. Dessa maneira, o filme se apresenta como uma chance daqueles que guardam memórias subterrâneas de concluir o período histórico retratado, de apresentar ao público o que pode ter acontecido depois que suas vítimas foram dadas como desaparecidas, de ressignificar a ideia de muitos acerca de militantes; mostrar uma versão que confronta a memória oficial, apresentando assim, um novo desfecho possível. Uma outra via. Mostrando que esses indivíduos eram mais do que suas ideologias político-partidárias. Eram seres humanos. Por fim, “de um abril” alude e representa o primeiro de abril de 1964, dia no qual o golpe foi concretizado e instaurou o conflituoso capítulo para a democracia brasileira que ainda perduraria por vinte e um “abris”. Para a construção do filme e de sua estrutura narrativa, foi realizado um trabalho de pesquisa não só para construir todo o cenário social, político e cultural, mas – principalmente – para aproximar o audiovisual dos relatos de pessoas que foram vítimas diretas do regime. A mensagem compreende que, tão importante quanto esses aspectos mais descritivos da sociedade, é a humanização daqueles que decidiram lutar pelo o que acreditavam. Por meio de relatos coletados em entrevistas com profissionais da imprensa capixaba na época da ditadura pelo projeto de pesquisa Relatos Ausentes, no livro “68 a geração que queria mudar o mundo: relatos”, realizado pela Comissão da Anistia, e no site
39 Disponível em < http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ep%C3%ADlogo/ > . Acessado em 17 de setembro de 2017.
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www.desaparecidospoliticos.org.br, desenvolvido pelo Centro de Documentação Eremias Delizoicov e pela Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, o filme pôde estruturar sua narrativa não trazendo as histórias selecionadas na íntegra, mas criando outras histórias baseadas nestas. Dessa maneira, o produto não se prendeu em contar o que realmente aconteceu; mas o que poderia ter acontecido a uma pessoa que viveu o período trazendo um olhar para o ser humano ao invés de defender ou criticar seus feitos ideológicos e políticos para causar empatia. As possibilidades oferecidas pela linguagem cinematográfica permitiram a construção de um produto voltado à memória e à fragmentação, próprias de episódios marcantes. Por essa razão, a sequência dos acontecimentos não é fiel a uma cronologia. O discurso assume um tom de confissão e o embate psicológico ganha formato numa tentativa de mostrar reações internas que permanecem escondidas e silenciadas. A escolha de um produto audiovisual para transmitir a mensagem, adotando a estética do cinema, se deu pela capacidade que este meio tem de passar a sensação de se estar assistindo diretamente a um espetáculo quase real, com um ar de realidade. Desta maneira, a estética fílmica permite um processo perceptivo e afetivo de participação do espectador que ao assistir o produto o corrobora sua credibilidade pela impressão de realidade do mesmo (METZ, 2007, p. 16-17). Já que, segundo Turner (1997, p. 81), dentro de um filme existe inúmeras relações específicas estabelecidas entre o filme e o contexto, tanto textual como social, no qual ele é visto. De certa forma, a maneira como vivenciamos a vida cotidiana, o que Berger e Luckmann (1995, p. 38) chamam de “estado total de vigília”, permite que esta seja considerada como normal, ordenada, parâmetro para julgar uma atitude como natural; a realidade tida como realidade predominante por excelência. Nessa realidade existem fatores que a transformam em crível e real, fatores que a constroem e a identificam. Estes fatores –como linguagem, o contraponto com o outro, o tempo e o espaço serão abordados mais adiante neste trabalho – existem e estão estabelecidos antes mesmo dos sujeitos e vão continuar existindo mesmo depois deles. Contudo, como são fenômenos e fatores que dependem de contextualizações e interpretações, é possível afirmar a existência de realidades. Até porque, para a realidade da vida cotidiana ser parâmetro, ela precisa estar em comparação com alguma outra realidade. Em contrapartida, esta outra realidade não precisa pertencer, necessariamente, ao mundo físico externo; ela pode ser elemento de uma realidade subjetiva
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interior. O contato com diferentes esferas da realidade traz ao sujeito novas tensões de natureza diversa.
Minha consciência por conseguinte é capaz de mover-se através de diferentes esferas da realidade. Dito de outro modo, tenho consciência de que o mundo consiste em múltiplas realidades. Quando passo de uma realidade a outra experimento a transição como uma espécie de choque (BERGER; LUCKMANN, 1995, p. 38).
No âmbito cinematográfico, o cinema pode ser compreendido como um conjunto de linguagens e práticas sociais. Neste quesito, a linguagem tem a função não de rotular, mas de ajudar a construir e entender a realidade uma vez que precisamos dela para que possamos fazer parte da cultura que nos cerca; adquirir senso de identidade pessoal e internalizar valores (TURNER, 1997). Outro fator da realidade da vida cotidiana – que também pode se transpor ao cinema – é a ideia que os autores chamam de “aqui e agora”, os focos da experiência diária. A vida cotidiana se organiza em torno do “aqui” do corpo e do “agora” do presente. O tempo e o espaço que o indivíduo se encontra são os pontos mais reais de sua consciência, é a parcela da vida cotidiana passível de manipulação. Contudo, a realidade da vida cotidiana não se restringe simplesmente ao imediato. Através da linguagem, de seus símbolos e signos, é possível aproximar o sujeito de “aquis e agoras” que já passaram – tanto espacial quanto temporalmente, o que explica a historicidade da vida cotidiana. É a temporalidade que ordena a consciência dos indivíduos. Estes se enxergam no tempo que lhes é acessível em relação a um tempo que já passou ou que há de vir. Nele, a realidade se faz contínua e finita porque “o tempo já existia antes de meu nascimento e continuará a existir depois que morrer. O conhecimento da minha morte inevitável torna este tempo finito para mim” (BERGER; LUCKMANN, 1995, p. 45, grifo dos autores). Na esfera da Arte, podemos reconhecer o cinema como um veículo de representações que uma sociedade dá de si mesma através de narrativas e significados; ou, como uma prática social tanto para quem o produz quanto para quem assiste (TURNER, 1997). Além disso, Marc Vernet (1995) afirma que o cinema é capaz de reproduzir os sistemas de representações e articulações sociais de tal modo que os personagens de uma determinada trama podem ser considerados representações não somente de um período do cinema como também de um período da sociedade.
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O cinema existe pela realidade e para os atores sociais da realidade mesmo que haja traços de ficcionalidade. É importante ressaltar que esta não é só uma realidade compreendida como o hoje uma vez que o cinema não obedece a leis do mundo exterior, e sim às leis da mente e, dentro da mente, o passado e o futuro se entrelaçam com o presente (MUNSTERBEG, 2008, p. 38).
O DOCUMENTAL E A FICÇÃO
Os limites entre o que é documental e o que é ficcional formam uma linha tênue e turva. Ao problematizar os processos de produção e criação do filme, esse limite se torna cada vez mais abstrato e distante. Jorge Furtado (2005, p. 99) exemplifica esta problemática da seguinte maneira:
Se Lumière, fascinado pela “magnifica impressão da vida real” provocada por sua invenção, buscou representar “naturalmente” a realidade observada ou encenada, Mèliès, ao contrário procurou logo criar, através do cinema, uma nova realidade, filha da mágica e da poesia.
Epílogos de um Abril caminha entre dois paralelos. Por um lado, a tentativa de apresentar o período da ditadura militar no Brasil através de relatos reais elaborados em relatos ficcionais, exige do espectador o aceitar o mundo do filme como plausível, como possível de acontecer. Se o espectador não aceitasse os eventos descritos como críveis e possíveis, o filme em si perderia sua relevância e função. Por outro lado, no âmbito da não ficção, é fundamental compreender que os eventos narrados são reais uma vez que, antes de qualquer coisa, falam de pessoas reais e episódios de suas vidas. De toda forma, o filme se apresenta como uma possibilidade de registro, a possibilidade do documentário como memória coletiva; No dilema do crer e não crer:
Um filme de ficção que se faz passar por documentário continua sendo uma ficção, e seu efeito só surge quando essa revelação – cedo ou tarde – emerge. Já o documentário não pode querer se passar por ficção e ainda assim permanecer documentário (COMOLLI apud GUIMARÃES, 2011, p. 70).
Assim, para o espectador que normalmente já reflete sobre a obra numa relação de crença e dúvida, o trabalho de assistir a uma obra assumidamente ficcional que pretende
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discutir uma realidade histórica seria ainda mais desafiador uma vez que, este passaria a se questionar se tudo o que ele assistiu até agora, e tomou como ficção, é na verdade, parte de algo que vai além. Outra discussão proveniente dessa dicotomia é a ideia de representação. Para Furtado (2005, p. 109), o documentário representa uma vida, o registro da vida, como se aquilo acontecesse independentemente da presença da câmera. Porém, como o autor explica, a presença da câmera “ao filmar o real” já transforma aquela realidade retratada transformandoa em algo que não necessariamente aconteça daquela forma sem a presença do documentarista.
Assim, se é possível questionar o filme de ficção se os eventos aconteceram realmente daquela maneira, ou se determinada narrativa é plausível, este questionamento também pode ser feito ao cinema documental. Logo é possível perceber o caráter ficcional no cinema de não-ficção – aquele que utiliza elementos e atores “puramente reais”. É nesta ambivalência que o filme proposto constrói suas bases. Tomando como exemplo a chegada do trem na estação e a saída da fábrica de Lumière, Furtado (2005, p. 108) explica que a subjetividade e a ferramenta de construir estão no posicionamento da câmera e a escolha do momento que o filme começou a rodar. Desta maneira, ele levanta o questionamento: “Quanto de “encenação” há naquela imagem? A dúvida pouco importa: Lumière logo descobriu que poderia “encenar” a realidade, com atores e ações previamente combinadas”. Assim, Furtado (2005) conclui que ficção e documentário, no cinema, são gêmeos bivitelinos, perspectiva também adotada pelo presente trabalho.
EPÍLOGOS DE UM ABRIL: DO CONCEITO À MONTAGEM
A narrativa do filme se origina na compilação e adaptação de relatos orais e escritos, de vítimas diretas da ditadura militar no Brasil e, principalmente, de dados de desaparecidos políticos. Essas histórias não serão transportadas à tela de forma instantânea e literal. A união de enredo e imagem faz da peça cinematográfica um caminho para contar a história da humanidade indo além de formas do mundo exterior como espaço, tempo e casualidade e fazem com que os acontecimentos se moldem ao mundo interior, atenção, memória, imaginação e emoção. (MUNSTERBERG apud ANDREW, 2002, p. 34).
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A escolha de construir a narrativa de um período social abrangente a partir da coleta de depoimentos referentes à memorias individuais se dá pela compreensão de que a memória se constrói no embate com o outro. Segundo Maurice Halbwachs (2006, p. 69), cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Além de determinar este conceito, Halbawchs (2006) explica que as memórias estão sempre em relação aos contextos sociais. Assim, todas as lembranças, inclusive as pessoais, “se explicam pelas mudanças que se produzem em nossas relações com diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto”. Esta capacidade do cinema de transpor experiências traumáticas e a mente de um individuo à tela, que será fundamental para a elaboração da narrativa, quebra a fronteira do real e do imaginário – que para Turner (1997, p. 111) é o cerne da experiência do cinema. Além de recorrer a registros históricos e de personalidades vítimas do período, o documentário contou com as subjetividades e interpretações da responsável pela elaboração do filme acerca da realidade brasileira no regime militar. Como Turner (1997, p. 58) explica, os ângulos da câmera são capazes de identificar o ponto de vista de um personagem. Mas é importante frisar que tais ângulos são determinados pelo diretor do filme. Todas as escolhas do filme passam por esta figura, inclusive a elaboração narrativa. O intuito do produto não é abordar o que de fato aconteceu com essas pessoas, mas sim contar o que poderia ter acontecido. O que nas décadas de 1960 a 1980 era entendível como possível de acontecer. Até porque, não é plausível dizer com precisão o que ocorreu uma vez que o roteiro é baseado em relatos de memórias que são manifestadas de forma fragmentada. Logo, a intenção do filme é se apoiar nessas múltiplas realidades e reconstruí-las para dar voz a discursos interpretados como discursos da minoria, daqueles que não eram os detentores do poder no regime e viviam à margem dos padrões da sociedade da época, a fim de que, como dito anteriormente, possam existir debates acerca do assunto e para que o assunto possa ser documentado e, quem sabe, gerar um olhar mais empático. Essas memórias subterrâneas, discursos de culturas de minorias dominadas, se opõem à “memória oficial”, como explica Pollack (1989, p. 4). Ainda segundo o autor, a memória que será enquadrada se alimenta daquilo que é fornecido pela história. Dessa maneira, aquilo que lembramos, e a forma como lembramos, é originado naquilo que é mais difundido socialmente – o que reforça fronteiras sociais. Portanto, “o que está em jogo na
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memória é também o sentido da identidade individual e do grupo” (POLLACK, 1989, p. 10). Esse posicionamento confirma a ideia de Coimbra (2011) exposta anteriormente. Considerando o ato da memória, o lembrar e o esquecer, como manifestações políticas, faz-se necessário que o filme, em alguma medida, também se posicione. O cinema enquanto ferramenta comunicacional permite isso. As possibilidades oferecidas pela linguagem cinematográfica – compreendendo que as técnicas cinematográficas são ferramentas para levar o espectador a uma experiência profunda tanto na atmosfera quanto na ação do filme através de transformações de tempo e espaço, movimentos de câmera, diferentes ângulos até a experiência cinematográfica adquirir um caráter afetivo (MORIN, 2008, p.164) - permitem a construção de um filme voltado à memória e à fragmentação que o trauma propõe no contexto de episódios marcantes; e que este se sustente através de um discurso visto como “não oficial”.
Antes mesmo do processo de produção do projeto acontecer, foi necessário entender qual história seria contada e como seria contada. Dessa forma, para a elaboração de um roteiro conciso e compromissado com o período a ser retratado, o primeiro passo foi realizar uma pesquisa bibliográfica que pôde contextualizar a sociedade brasileira das décadas de 1960 a 1980. Para estabelecer um panorama sobre a sociedade brasileira no período do regime militar, as principais obras que serviram como base são as de Ronaldo Costa Couto (1999), Boris Fausto (1999), Elio Gaspari (2004) e Marcelo Ridenti (2000), autores que se dedicam a pesquisar sobre o assunto em questão. O material bibliográfico reunido permitiu construir a estrutura que serviram como embasamento para a inserção dos personagens principais. Mas antes de se propor a contar a história desses personagens foi necessário saber quem eles são já que “o personagem é o fundamento essencial de seu roteiro. E o coração, alma e sistema nervoso de sua história” (FIELD, 2001, p. 27). Para a construção dos três personagens principais, foi desenvolvida uma pesquisa de caráter biográfico. O método biográfico proporcionou à autora a possibilidade de mergulhar no passado, no íntimo do indivíduo a ser retratado. Como Gobbi (2014) defende, este método é uma possibilidade de renovar o presente mostrando experiências válidas. Desta forma, a experimentação humana se torna a principal referência. É importante ressaltar que cada personagem é, na verdade, composto por inúmeras pessoas desaparecidas naquele período e, como tal, estão impossibilitadas de narrarem as próprias histórias.
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O trabalho aqui apresentado se apoiou, majoritariamente, em fontes primárias sendo elas: o livro “68 a geração que queria mudar o mundo: relatos”, realizado pela Comissão da Anistia que reúne depoimentos e casos de indivíduos que viveram na época ditatorial e participaram de alguma resistência; o site www.desaparecidospoliticos.org.br, desenvolvido pelo Centro de Documentação Eremias Delizoicov, que armazena fichas de desaparecidos políticos e aponta seus nomes, idades, ocupações, filiações partidárias, data de desaparecimento e coleta de documentos, registros, leis ou notícia sobre esses indivíduos, entre outras informações e entrevistas realizadas pelo grupo de pesquisa Relatos Ausentes com profissionais da imprensa capixaba no período. Nesta, a partir de relatos individuais, as histórias foram reunidas formando outra história diferente. Assim, um acontecimento que pertenceu a determinado indivíduo, somado a outro acontecimento de um indivíduo diferente compuseram a história de um dos personagens da série. As histórias fictícias nascem de histórias reais para que sejam verossímeis e possam ser críveis. Dessa forma, foram sintetizados relatos reais para a construção de três personagens ficcionais porque, como Vera Lucía Follain de Figueiredo (2009) explica: “Em meio à guerra de relatos, toma-se partido daquele que parte do indivíduo comum, não porque seja mais fiel aos fatos, mas porque tem a marca pessoal, constituindo um esforço voltado para a construção da memória, da identidade e do sentido”. Antes de representar pessoas, esses personagens representam memórias. Toda ação que acontece e é descrita nasce, prioritariamente, na cabeça e nas lembranças destes personagens. Assim, o filme conta com quatro personagens principais que, além de contarem suas próprias histórias, também contam histórias e ocorridos de terceiros. Como Furtado (2005, p. 109) defende, “um personagem é uma simplificação, uma concentração de ações e palavras que o define no interesse da narrativa”. Entendendo a produção aqui proposta como um híbrido ficção x documental, é possível se basear na explicação de que “na ficção, esta simplificação é feita em pareceria e cumplicidade com o ator” (FURTADO, 2005, p. 109) –uma vez que os atores foram dirigidos em certos momentos e tiveram seus locais de fala previamente determinados por um relato construído. Já na afirmação de que “no documentário, quase inevitavelmente, a simplificação se estabelece sem que o ator tenha plena consciência” (FURTADO, 2005, p. 109) uma vez que os jovens atores eram livres para ressignificar e interpretar o texto de forma livre, priorizando ou descartando episódios que os
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foram entregues. Assim, recriando a história do personagem que, em um primeiro momento, era apenas de autoria da diretora. Carmen Sobrinho Martins: Mãe de Eduardo Sobrinho Martins que espera notícias do filho desde novembro de 1971. Desde que seu filho se engajou na militância política, a casa de Carmen foi invadida e ficou sob vigilância de órgãos de segurança. Em 1981, seu esposo, militar reformado, encontrou um dossiê chamado “Inimigo Interno” que continha uma foto de Eduardo com um “X” vermelho. Carmen milita no movimento “Tortura nunca mais” e em
26/09/1990 prestou depoimento para a Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Maria Barcellos de Azevedo Pereira (Dora): Dora, como era chamada depois que entrou para clandestinidade, era adolescente quando o golpe foi instaurado. Seu pai, médico por formação, foi levado pela polícia e desapareceu depois de ajudar uma amiga da família e seu namorado que foram pedir socorro depois de serem alvejados por causa de suas atuações no Partido Comunista. No final da década de 1960, passa a atuar como jornalista tanto em redações da grande imprensa, quanto militando em jornais alternativos. Na manifestação pela morte do Edson Luís, a foto de Dora saiu na capa do jornal O Globo depois de subir nas escadas da Assembleia Legislativa e gritar “Recuso-me a ter filhos para serem assassinados pela ditadura”. Depois do AI-5, entra para a clandestinidade e em 1969 é presa e torturada. Seu nome estava na lista dos setenta presos políticos libertados com o sequestro do embaixador suíço. Tentou exílio no Chile, e depois de certo tempo, foi para o México, mas só conseguindo se estabilizar em Berlim. Antônio Silva: Estudante universitário que militava pelo Movimento Estudantil e fazia parte da União Nacional dos Estudantes (UNE) desde 1962. No início de 1968, conhece Cecília, que seria sua companheira nos próximos anos, e sua atuação na militância não é mais prioridade. Com o anúncio do AI-5, Antônio se desfez de todo material que poderia ser considerado subversivo. Mesmo com cautela para evitar maiores transtornos, sua ligação com um dos líderes do movimento, Prates, faz com que seu nome seja alvo da polícia. Embora já não fizesse mais parte do movimento, a polícia leva Cecília presa para que Antônio pudesse entregar seus antigos companheiros. As três histórias foram divididas cronologicamente de maneira que fosse possível contar o dia da instauração do regime até o desaparecimento destes personagens. A história se concretiza através dos relatos desses personagens e que são contados por quatro jovens atores através de suas percepções. A intenção é fazer com que o ator recrie com seu próprio corpo e
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atuação aquilo que ele está descrevendo como se seu personagem estivesse vivendo mais uma vez o trauma descrito. Assim, o processo de roteirização se finalizou no tom e na significação que o ator concedeu ao seu personagem possibilitando a construção de um roteiro conjunto. Compreendendo que memórias não são palpáveis e podem se apresentar de maneira fragmentada, o filme trabalhou com a ideia de lacunas. O filme em si representa um exercício de memória, o ato de lembrar e esquecer. Essa característica se manifesta no ir e voltar da narrativa, na imprecisão de datas importantes na vida dos personagens e de lembranças que não correspondem com o período. Por exemplo, Antônio, personagem interpretado por Vitor Camilo, conta que esperava a namorada Cecília para os dois irem ao cinema assistir “2001: Uma Odisseia no Espaço”. O filme do diretor Stanley Kubrick estreou no Brasil em abril de 1968, meses antes da instauração do AI-5, ato que levou Antônio a se desfazer de seus livros. Dessa maneira, o filme que o casal iria ver não poderia ser o de Kubrick. O cenário utilizado foi o palco do Cineteatro da Universidade Vila Velha que, descaracterizado como tal, estava com paredes e chão em preto. A intenção de utilizar um palco, com o mínimo de elementos presentes, é justamente seu espaço que permite uma boa circulação e aproveitamento dos atores. Como em Dogville 40(2004), de Lars Von Trier41 . Desta forma, é exigida do espectador uma imersão na história para que seja função dele preencher esses espaços vazios uma vez que, como já defendido por Metz (2008, p. 406), é no embate com o outro que o processo fílmico é finalizado entendendo que sem o espectador não há razão para o filme existir. Para a construção da narrativa algumas cenas – principalmente aquelas que narram sobre memórias pessoais e o estado psicológico dos personagens – foram dirigidas e, enfim, encenadas já que a estética do cinema permite analogias à imaginação, ao mundo das ideias e a quebra da relação passado, futuro e presente uma vez que o cinema corresponde também às leis da mente (MUNSTERBERG, 2008, p. 38). O objetivo das escolhas que formam a narrativa do filme é mostrar que mesmo que o assunto – os desaparecidos políticos da ditadura militar - tenha de fato acontecido, que os relatos sejam críveis e que os efeitos do regime para a sociedade atual estejam presentes, o filme em si não é real. O intuito é chegar ao limite da relação ficção x realidade. A quebra da
40 O filme conta a história de Grace, uma moça que se refugia em Montanhas Rochosas para fugir de um grupo de gângsters. O diretor escolhe contar a história de Grace de dentro de um galpão, no qual não há cenário realista. Apenas marcações no chão definem os espaços como casas e ruas. Algumas referências são incompletas como: não há portas ou janelas, cuja a abertura é evidenciada pelo áudio e pela interpretação dos atores.
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quarta parede e o recurso do jump-cut42 irão ser ferramentas uteis para anular a ilusão de real (Barthes, 2004) oferecida pela linguagem cinematográfica assim como no já citado Dogville. Algumas produções foram utilizados como referências para as escolhas estéticas. De Hoje (2013), da Tatá Amaral, a ideia de projeções no decorrer da cena para expor informações que são essenciais para os personagens; a relação do indivíduo com a memória traumática e o modo como esses eventos não acabam quando o período ditatorial termina e o modo como essas lembranças preenchem lacunas no dia a dia. A escolha da projeção se concretizou de forma mais notória no relato de Maria Barcellos sobre a tortura.
Compreendendo o episódio como marcante e de relevância não apenas na história da personagem, mas no período em si, as projeções se apresentaram como uma maneira de simular a tortura de forma que não fosse completamente gráfica, mas simbólica, metafórica. Como as escamas da cobra sobre a pele da atriz e utilização de luz e tinta roxa em alusão as salas de tortura que eram conhecidas como sala roxa. Em concordância com essa ideia, Spellbound (1945), de Alfred Hitchcock, referência a inserção de cenas de caráter psicológico em um sentido mais metafórico e a aparição dos momentos traumáticos que influenciam na vida dos personagens de forma recorrente. Ainda sobre esses aspectos mais abstratos, e corroborando com a ideia do simbolismo, o filme Strike (1925), do diretor Sergei Eisenstein, apresenta a inserção de cenas rápidas que trazem informações ideológicas para o contexto exposto. Outro filme que influenciou de modo mais marcante na construção narrativa é Casting JonBenet (2017), de Kitty Green. A tentativa de construir a história através de um teste de elenco e, como consequência, a partir de relatos dos atores; a liberdade de intercruzar ensaios e momentos em estúdio com cenas dirigidas. Essa possibilidade de construir a narrativa sobre determinado assunto a partir de relatos de terceiros está presente também em Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Outro filme que referencia a construção é Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho (2007), que, como explica Consuelo Lins e Cláudia Mesquita (2011, p. 80), é um filme que exibe variações na forma de atuar e “leva o espectador a compreender a arte de representar como algo instável, inseguro e exposto a riscos”. Assim, graças à capacidade da ficção de criar a verossimilhança, é possível afirma que para uma performance conseguir convencer o espectador ao ponto do mesmo crer naquilo que está sendo apresentado, esta deve imprimir o efeito de verdade através do corpo com mecanismos
42 Jump-cut é “um corte que quebra a continuidade do tempo, pulando de uma parte da ação para outra que é obviamente separada da primeira por um intervalo de tempo” (DANCYGER, 2007, p. 504).
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como os gestos, a entonação, o ritmo da fala, nas modulações da voz, intensidade e velocidade que são expostos por aquele que narra (GUIMARÃES, 2011, p. 76). Após a roteirização, o foco centrou-se na produção. Atores, locação, objetos cênicos, equipamentos a serem utilizados, figurino e ensaios e todos os detalhes de quesito prático serão ajustados. Chris Rodrigues (2007) explica que é na produção onde as condições e todos os elementos necessários para que o filme exista são criados. A primeira preocupação foi fechar o time de atores. Assim, os testes de elenco foram agendados e o espaço a ser utilizado foi decidido. O palco escolhido foi do Cineteatro da Universidade Vila Velha e uma vez decidido, as datas foram agendadas. Quando os atores foram selecionados, a autora conversou sobre o projeto com cada um deles de forma individual explicando detalhes mais sutis, o tema, as referências audiovisuais utilizadas em todo projeto e decisões acerca do figurino. Ficou decidido que quando eles se apresentavam como atores para um teste de elenco, a roupa era a critério deles. Porém, nas entrevistas estruturadas, seriam utilizados figurinos que remetessem à década de 1970, mas que fossem sóbrias e discretas.
Rodrigues (2007, p. 67) ainda defende que a produção de um filme também incluiu a filmagem em si – desde as preocupações fotográficas quanto a captação de som – já que a produção implica em tudo aquilo que envolve fazer um filme. Compreendendo a Ditadura Militar como um importante marco na história do país, o filme propôs trazer impressões sobre o regime, além das impressões da autora. Para isso, a fim de apresentar os impactos do período até os dias atuais, foi proposto aos atores o exercício da improvisação e da construção do personagem frisando o papel do ator como co-autor da narrativa; como indivíduo que também tem considerações e percepções acerca do tema. Desta forma, os atores puderam construir também o personagem a partir de suas impressões sobre o mesmo através de diferentes exercícios. O intuito era que o personagem se tornasse conhecido pelo ator e que isso facilitasse o processo de improvisação em alguma medida. Para isso, foi entregue aos atores a história base de cada personagem. Além de interpretarem o relato escrito na íntegra, eles puderam interpretar o texto a partir de suas perspectivas sobre a história em questão como se fosse um teste de elenco. Por fim, e para agregar valor ao exercício de improvisação, os atores deram entrevistas como se fossem os próprios personagens a serem entrevistados na década de 1970. Com isso, é possível valorizar a questão do ator emprestar seu corpo ao personagem. Os
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atores responderam perguntas sobre a ditadura militar, seus efeitos e possíveis consequências, como se fossem os próprios personagens. O enquadramento utilizado para as entrevista com apenas o entrevistado no quadro tenta trazer a ideia de uma vastidão de relatos que estão ali, mas que ainda não foram contados e por isso permanecem vazios, em silêncio. A escolha dos enquadramentos e dos ângulos teve relação com a tentativa de aproximar o espectador da história contada. Por isso, foram utilizadas câmeras subjetivas (aquela que assume o ponto de vista do personagem), close-ups (plano fechado na cabeça e ombros). Alguns movimentos de câmera perdem a estabilidade ou se apresentam em espreitas para passar a ideia de que a câmera não deveria estar ali; representam a pergunta “o quanto eu posso filmar?”. O enquadramento que também representa essa ideia é a câmera de apoio da entrevista da Dora.
Projeções de imagens sobre o personagem para tentar reproduzir suas ilusões e memórias; assim como jogo de luz e sombra na tentativa de ocultar certos elementos e expressões. Além de trabalhar com a ideia daquilo que pode ser revelado e da dualidade que a sombra pode trazer, por exemplo: a câmera principal e aberta utilizada no exercício de palco da atriz que interpretava a Dora. Há uma sombra que corta o palco formando um quadrado, do lado de dentro a sombra da atriz está presa, mas a voz que enuncia o discurso está livre. Pudovkin (2008, p. 64) defende o simbolismo como método capaz de introduzir um conceito abstrato de uma forma que evita o uso do letreiro; movimentos pouco estabilizados que representem toda a confusão e agitação proposta na cena. A narrativa também contará com flashbacks, ou seja, determinado evento que aconteceu antes da cena que segue. Como Deleuze explica (2009, p. 65), o flashback retrata acontecimentos que só são possíveis de serem contados no passado. É importante ressaltar que, embora os personagens contem suas histórias, eles inserem em seu discurso histórias de terceiros – de amigos, conhecidos e outras vítimas. Em algum momento, essas histórias se cruzam. É possível tomar a história de Eduardo Sobrinho Martins como exemplo. O personagem caracteriza os desaparecidos políticos de forma mais fiel porque ele é o indivíduo que tem sua história contada por outro, por uma terceira pessoa. Embora ele seja fundamental na narrativa, sua participação está na memória de alguém e não necessariamente na sua presença de forma direta. Para compor essa narrativa, recursos sonoros foram utilizados como referências de memória, como o barulho corrente da água que era usada como método de tortura, ou como
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referências metafóricas: os passarinhos que cantam de forma livre enquanto os personagens estão em um contexto de prisão. É importante ressaltar que a captação desses sons foi feita de forma orgânica e local. Assim, o único efeito artificial inserido na pós-produção foi o da arma engatilhando. A fim de ratificar a ideia de fragmentação da memória, a edição contou com a inserção de cenas rápidas – as cenas nas quais foram utilizadas as projeções, por exemplo –método inspirado no filme Clube da Luta (1999). O diretor, David Fincher, para ilustrar os lapsos psicológicos do personagem principal, utiliza-se de imagens que ocupam a tela com pouca duração, trazendo a impressão de que existe um frame falso. Essas cenas tem o intuito de mostrar a confusão psicológica acarretada pelo trauma e tentam mostrar o que o personagem está pensando enquanto fala. A montagem é paralela entre a memória do indivíduo, os ensaios e a entrevista sem estabelecer necessariamente nenhum padrão. Será neste processo que o filme se construirá já que ele não é sobre eventos do passado ou percepções do hoje, mas sobre uma experiência que só poderá ser vivenciada a partir da montagem fílmica. Assim, a pergunta norteadora será: o que a montagem fílmica pode oferecer para a experiência cinematográfica? Como Tarkovsky (1998) explica, o processo de montagem perturba a noção de tempo, criando algo novo. Dessa distorção do tempo surge a expressão rítmica do filme e essas decisões que constituem a finalização do filme devem ser tomadas de forma prudente, deve nascer de uma necessidade já que
No momento em que se viola o processo orgânico das transações, a ênfase sobre a montagem (que o diretor deseja ocultar) começa a se impor; ela se expõe à vista, salta aos olhos. Se a velocidade do tempo for reduzida ou acelerada artificialmente, e não em resposta a um desenvolvimento endógeno, se a mudança de ritmo estiver equivocada, o resultado será falso e óbvio (TARKOVSKY, 1998, p. 144).
A relevância do processo de montagem para o produto em si é tamanha uma vez que é neste momento que o filme é lapidado. Neste momento é possível reescrever toda narrativa a partir do material coletado e perceber qual caminho este material está tomando; é momento de deixar que o material fale por si mesmo. Rabiger (2005) defende a edição como uma segunda oportunidade de dirigir o filme. Algumas escolhas da montagem permitiram passar a mensagem de que, embora essas histórias sejam reais, o que o espectador assiste é apenas um filme. Existe em diversos momentos a tentativa de revelar o dispositivo: ao mostrar a câmera no palco gravando a cena, ao inserir o recurso da palma como uma marcação de que o ator estava pronto para começar,
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ao mostrar o ator passando o texto ou quando a diretora adverte duas moças que está tendo uma gravação naquele momento. Assim, quando o espectador adota a ideia do filme e se tem o momento da diegese, ele é lembrado de que aquilo é apenas um filme. Foi na montagem que a narrativa enfim se concretizou com mais precisão. Por exemplo: a escolha de cortes bruscos e secos, como quando a personagem Dora se suicida traz a ideia de um fim ríspido, inesperado, repentino; ou a inserção da pergunta sobre o trabalhar no jornal em tempos de censura logo após uma fala de alto teor emocional de uma mãe que espera a volta do filho, representando como a nossa sociedade trata o assunto de desaparecidos políticos. Sabemos de sua existência, mas continuamos nossas vidas e trabalho sem lidar com essa questão, ou seja, prosseguimos de forma muitas vezes insensível. Sem imputar a esses relatos a importância e o respeito devido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No processo de produzir “Epílogos de um abril” foi perceptível que dentro de um único filme existem inúmeras chances de contar uma história. A história tem a sua primeira chance de ser contada na fase da pesquisa, roteirização e produção. Mas ao entregar o texto para o ator, a história se refaz em interpretações e novas perspectivas e através das escolhas que cabem à direção do filme, esse se refaz em uma nova narrativa. Um novo relato. Mas é na montagem que a história a ser contada é finalmente decidida. É na montagem que o filme é dirigido mais uma vez a partir de um material bruto que, ao ser lapidado, pode se desdobrar em diferentes e inusitadas narrativas que não existiam antes da pós-produção. Quantas histórias existiram dentro de um filme até que se chegasse à história que finalmente foi contada? Foi na pós-produção que “Epílogos de abril” passou a falar enquanto filme, enquanto narrativa e tomar forma por si mesmo, possibilitando ao espectador um resultado que ainda não era conhecido na fase inicial da roteirização. Se no começo do projeto a intenção era dar voz a minorias e a discursos que se encontram à margem da sociedade, por meio da pesquisa e ao fazer o documentário, entendeu-se que essas vozes já existem. Não é necessário concedê-las a esses grupos, pois eles já se apropriaram de seus discursos. É necessário tornar essas vozes conhecidas, visíveis. Assim, como futura jornalista, compreendemos que não é necessário dar voz e sim prover visibilidade.
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Na teoria, o jornalismo tem o papel social de trazer à comunidade essas vozes que se escondem, de causar empatia entre grupos distintos por meio das narrativas do real. Contudo, foi possível perceber que, por muitas vezes, a ficção dá mais conta da realidade do que o próprio registro do real. Como reviver as memórias, como contar as histórias de desaparecidos políticos se não é possível entrevistá-los pelas formas tradicionais que o jornalismo estrutura? Compreendemos que narrar o real vai além do jornalismo e suas estruturas, formas e discursos impostos. A ficcionalidade carrega em si mais traços do real do que apenas o fato. Para existir, ela engloba o fato, o contexto, as marcas pessoais, as marcas da memória e das interpretações. Se compreendermos o jornalista como o responsável por contar histórias, por trabalhar com narrativas e o jornalismo como a instituição que traz a tona realidades e discursos muitas vezes abafados e contidos, é necessário repensar esse fazer. Dessa forma é fundamental se desprender de paradigmas e amarras da práxis jornalística e considerar outras opções, levando sempre em conta qual é a melhor forma de valorizar o conteúdo da mensagem. Compreendendo que o objetivo é compartilhar a mensagem, talvez seja necessário repensar estruturas, conceitos e moldes impostos pela prática jornalística, a fim de humanizar as narrativas.
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