Deslizes do Desejo em Políticas de Encenação e Acolhimento

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Rejane Arruda (org.)

DESLIZES DO DESEJO em Políticas de Acolhimento e Encenação

Vila Velha SOCA 2020


Deslizes do Desejo em Políticas de Acolhimento e Encenação


Desfrutado entre bichos, raízes, barro e água o homem habitava sobre um montão de pedras. Dentro de sua paisagem - entre ele e a harpa crescia um caramujo. Da­vam flor os mus­gos... Subiam até o lábio depois comiam toda a boca como se fosse uma tapera. Convivên­cia de murta e rãs... A boca de raiz e água escorria barro... (...) Bom era ser bicho que rasteja nas pedras; ser raiz de vegetal ser água. (Manoel de Barros)


SUMARIO

APRESENTAÇÃO Rejane Arruda

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CPÍTULO I: RELATOS DE TRANSMISSÃO EM ARTES FOGO-FÁTUO: UMA EXPERIÊNCIA EM TRANSVERSALIDADE POÉTICA Iasmim Santos Silva, Maria Carolina de Andrade Freitas, Miguel Levi de Oliveira Lucas, Renata Gonçalves de Melo e Thauany Duarte Diniz

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O ENSINO DE PRÁTICAS ARTÍSTICAS NO CONTEXTO DO COVID-19 SOB A ÓTICA DE LYGIA PAPE Erani Ferreira Soares

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A POTÊNCIA DE AFETO NO TEATRO: CORPO CÊNICO COMO FORMA DE ATRAIR O OLHAR DA CRIANÇA Letícia Almeida Dias

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TEATRO SAGRADO: ATOR DEVOTO Marina Castro de Mello

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“REGISTROS” NA ATUAÇÃO PARA CINEMA: UM EXERCÍCIO DE ESPONTANEIDADE VERSUS INTENCIONALIDADE Paula Santos Calasans

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CAPÍTULO II: CRIAÇÃO TEATRAL EM PESQUISA DIALOGOS AFE(c)TIVOS: PROCESSOS DE COMPOSIÇÃO DE “ENSAIO PARA UM DISCURSO” Ananda Lugon Bourguignon

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AS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ADVINDAS DAS INTERSECÇÕES ENTRE RPG E TEATRO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Rafael Teixeira Ciríaco de Souza

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TEATRO CONTEMPORÂNEO NO ESPÍRITO SANTO: ÍNDICES DO TEATRO PÓS-DRAMÁTICO NAS PRODUÇÕES DA CIA TEATRO

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URGENTE Maria Helena Costa Signorelli “VÍRUS”: TEATRO NOS TEMPOS DE PANDEMIA Marcelo Ferreira

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CAPÍTULO III: EXPERIÊNCIAS DE CUIDADO E ACOLHIMENTO PONTO POR PONTO, PALAVRA POR PALAVRA. TECEDURAS NO ENCONTRO COM UM SERVIÇO DE SAÚDE MENTAL DA CIDADE DE VITÓRIA Randra Souza Feitoza Machado Gondouin, Luiza Helena de Castro Victal Bastos e Maria Carolina Andrade Freitas

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“ONDE CAIBO QUANDO ME TRANSGORDO?” CLÍNICA DECOLONIAL E O PARADIGMA ÉTICO, ESTÉTICO E POLÍTICO. Marina Fortunato Gomes Pereira

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A CAVERNA DOS BRINQUEDOS: EXPERIÊNCIA E APRENDIZAGENS ARTÍSTICAS Maria Riziane Costas Prates, Edna da Silva Pereira e Ester Zappavigna Monteiro Costa

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SOBRE COMO O CÉU ESCREVE POSSIBILIDADES... ENCONTROS 246 E REVERBERAÇÕES DE UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO EM UM CAPS Sarah de Souza Cardoso e Cleilson Teobaldo dos Reis A FLOR QUE BROTA NO CONTRETO: A LOUCURA COMO AFIRMAÇÃO 268 DE VIDAS E (R)EXISTÊNCIAS Thais Andriolo Tesch e Cleilson Teobaldo dos Reis

SOBRE OS AUTORES

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APRESENTAÇÃO

“Deslizes do Desejo” porque acredito que é com isso que inventamos a nossa prática e conquistamos caminhos; na medida em que deslizamos pelas cadeias do significante e nos encontramos sempre em falso. Se o desejo desliza, nós também, como seu efeito; e se não o fazemos estagnamos. Este livro se constrói como testemunho de muitos deslizes; de sujeitos empenhados no seu deslizar: para o CAPS, para a cena teatral, para as oficinas de cinema, para o exercício da escrita e para a colaboração entre as áreas da Psicologia, Pedagogia e Artes Cênicas. Somos multiplos, mas parece que há algo “por trás” que orquestra nossas ações. Só que não, porque isso não existe; e, ao mesmo tempo em que desliza para outras mãos e olhos, esta compilação é tecida por um corte que se situa bem no cruzamento da trajetória de cada um que escreveu. Nestes multiplos deslizamentos, nos agarramos nos entrecruzes e, então, percorremos juntos um certo pedaço do caminho. Em se tratando do ultimo livro articulado à trajetória do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, que teve o seu fim decretado em 2018 e chega ao seu ponto final em 2021, eu paro por aqui. Sou grata aos leitores que permitirão novos deslizes do desejo. Rejane Arruda.


CAPÍTULO I: RELATOS DE TRANSMISSÃO EM ARTES


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Fogo-Fátuo: uma experiência em transversalidade poética Iasmim Santos Silva Maria Carolina de Andrade Freitas Miguel Levi de Oliveira Lucas Renata Gonçalves de Melo Thauany Duarte Diniz

Fogos-fátuos que a nossa podridão gera são ao menos luz nas nossas trevas. (Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego)

Uma flânerie remota Uma experiência feita por pontos. Costura ziguezagueante por condição. Arremata conexões-sementeiras aguardando o curso dos fluxos explodir acontecimentos, frente ao abismo, na abertura ao mar-horizonte. Produção de novos relances. É preciso navegar. Procura de aventura polifônica, que ressoe outras melodias, que encare a estridência da catástrofe e a contorne até onde possível, invertendo-a a direção e implodindo-a. Torcer. Feituras de avesso, torceduras, aposta (Ginzburg, 2001). Fogo-fátuo situa uma experiência em meio a pandemia de Covid-19 de produção de saraus poéticos e diários de quarentena como uma ação do projeto de extensão: Estudos Transversais em Educação: arte, memória e criticidade, da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Divinópolis. A iniciativa envolve o curso de História e de Psicologia em trabalho interdisciplinar. Percorre e conclama a comunidade acadêmica e a comunidade externa para, em comunhão, implementar um fazer que extrapole o golpe político e a crise sanitária que experimentamos, a fim de enfrentar o distanciamento social imposto pela pandemia e as dificuldades de trabalho remoto encontradas diante das urgências em curso. Potência afirmada não como a designação de uma instituição, estrutura, mas como potencial: um devir – como afirma Viveiros de Castro (2018), um elemento mágico-real do devir. Na perspectiva do dom do desejo: roubar e compor em trocas aliançadas perspectivas invisíveis que comutem dar, receber e retribuir. Ações possíveis somente em esforço de produção de gesto poético, aquele que tenta – ainda que de forma imperfeita (Vilela, 2008) –


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certa imagem do mundo, a insistir em transduções e transposições insuspeitas e repletas de porvir (Agamben, 2005; 2007; 2013). Dimensão de Fora, singularidade pura, que situada em relação e em pertencimento, invoca um limiar, uma passagem, um espaço e ponto de contato externo, vazio, por onde transmuta-se o acontecimento à porta: aquela que inclui uma soleira, caminho, acessos. (Agamben, 2013). Donde o simples fato de existência apresenta-se como possibilidade ou potência. Registro, portanto, ético e estético. Inseparáveis. Uma experiência em feitura, assim, não se detém em patrimônio de qualquer interioridade. Não admite ser de algo ou de alguém. Antes, vincula-se a uma lacuna, a um espasmo, uma brecha, a uma falta como potência, uma ética, contanto. Preferimos o limbo profano. De não pertencer a reino definível. A criar algum tipo de pertencimento que seja apenas aquele de comungar com espaços, palavras, coisas, agentes, estéticas, mistérios, fendas. Afinal, nossos lamentos não são queixas, são incompletudes, possíveis, que nos esgarçam em todas as direções. Relançam-nos ao Fora. Metem-nos frente a frente à decidibilidade ética inesgotável e inexorável, pungente, da qual não podemos escapar. Não arredamos pé. Ficamos em meio às forças, como testemunhas (Gagnebin, 2015; 2006; 2008; 2009; 2014; 2017). Insistimos. Arrancamos dos entre dentes da primavera as flores do mal. Como fez Baudelaire, em insubmissão e rebeldia (Benjamin, 2010). Porque há experiência a realizar! Contentamentos a produzir. Redes quentes de conexão sensível, em fomento e ousadia (Teixeira, 2004). Recusamos cumprir tarefas. Obedecer enquadres. Exercícios de rasgar verbos e tecer oferendas de alegria e força-ofertório. Assim, conexões se criam, se desfazem, esvanecem, voltam a contornar a dor, com mirra, incenso e flor. Ato de produzir o pensar em redes, ação e paixão. Potência de tocar. Potências de não tocar (Agamben, 2013; 2015a; 2015b). No lugar da mestria, tessituras artesanais, em forma de vaso de argila com as marcas impressas das mãos do oleiro (Benjamin, 1992; 2009; 2010; 2011; 2013a, 2013b, 2015a, 2015b). Desfazimento de lugares epicêntricos. Perseguimentos das bordas. Queremos bordas, fendas, fraturas, entre palavras nas pontas dos dedos e vozes roucas e epifânicas (Barthes, 2011;2004a;2004b).


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Lugares para amores. Para sustentação de insistências teimosas, que reabram o obtuso em filetes e façam vazar os fluxos de revoluções em curso. Sustentação de revezes. Agio, um terminus technicus de poética, que designe o lugar mesmo do amor. (Agamben, 2013). “A possibilidade da salvação começa somente nesse ponto – é salvação da profanidade do mundo (...)” (Agamben, 2013, p.83). No limiar o que se vê não está contido dentro dele. Procurar os modos, as modalidades. Não o contido. Nada é em si mesmo, irreparável. Irreparável “não é assim, mas o seu assim” (Agamben, 2013, p.85). Daqui provém nossa aposta no mundo. Esse terrível estado de coisas, não é. Está sendo. Mas o estar é modo. Podemos apostar na fabricação de outros. Configurar o mundo, ou melhor, os modos de outras formas, provisórias, sempre. Acatar o transitório. O mistério. “Então as coisas estão assim” (Agamben, 2013, p. 87). A experiência dos saraus de poesia e modos de criação sensíveis portou germes de revoluções miúdas. Gestação do tempo em outras frequências vibratórias, outros fluxospassagens, menores, reuniões inusitadas de camaradagem. Ontologia, política e poesia. Todo pensamento é reiterada tentativa de revolução (Agamben, 2013, 2015a, 2015b). Fazer emergir um gesto de resistência, configuração do atual em outro registro contemporâneo, que faça brecar a catástrofe paralisante e totalitária, ao levantar faíscas incendiárias que demonstrem outras urgências e apostas, de produção de palavra viva, itinerante e solidária. Com as trocas dos encontros, outros encontros, por dentro, costuravam outros pontos, saídas múltiplas, experimentações de redes minúsculas. Como entrar por dentro, sair por fora, entrar por fora, sair por dentro, drapear, entretelar, pespontar, casear, alinhavar até produzir o corte. Exercícios de delicadeza e corte. “Não se abre o amanhecer com faca” lembra-nos Manoel de Barros (2010). Nossas armas são palavras quentes, que como indicava-nos Belchior, são navalhas. Ou como sugere-nos Klossowski (1964), são as palavras que sangram, não as feridas. Nossa urgência é a intempestividade que nos causa em fenda com o tempo, uma fissura inconciliável, para que sejamos capazes de entrever a luz e também a sombra do firmamento que olhamos a noite. Impedir que sejamos tragados pela proximidade excessiva e estúpida da visão cega. Cindir a experiência, o tempo, a palavra. Dar lugar ao indeterminado, ao híbrido, a entretempos.


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Raízes aéreas e táticas urgentes É bom renovar o espanto da gente, diz o filósofo. (Matilde Campilho em Jóquei)

O projeto de extensão e a proposta dos saraus visam contribuir para a construção de novas linguagens sensíveis que aumentem os graus de transversalidade das experiências e acontecimentos junto à comunidade acadêmica e à comunidade externa, por meio da invenção de modos de sensibilidade, dispositivos de criação estética e intervenções artísticas e debates que articulem a educação, a arte, a memória e a crítica, como elementos de enfrentamento à situação de distanciamento social imposto pela COVID-19. Por entender a necessidade de produção de novos dispositivos semióticos, articulam à produção científica, o valor das expressões estéticas como ferramentas de aglutinação de fazeres e saberes transversais. O projeto executa-se por meio de dispositivos e plataformas gratuitas virtuais e com a participação de alunos a ele vinculados. Os saraus reúnem, de forma virtual, alunos e docentes de graduação da Universidade proponente, professores de outras IES, Universidades Federais e a Universidade de Vila Velha, profissionais da saúde (psicólogos), alunos de institutos federais, artistas e interessados nas temáticas debatidas. Os temas dos encontros já realizados mapearam uma série de questões sociais em jogo, no acontecimento da Covid-19 e, de forma crítica, intercambiaram reflexões políticas, estéticas e éticas sobre os panoramas históricos vividos na atualidade. A efetuação dos encontros remotos e virtuais concorrem para produção de agenciamentos semióticos que disponham – como a arte – de qualidades de ser inéditas. Aposta-se

que

novos

agenciamentos

semióticos

façam

eclodir

acontecimentos.

Acontecimentalizar. Perseguimos os afetos, o campo intensivo de uma experimentação prudente a fim de fazer da superfície do encontro, suporte para a expressão acontecimental (Deleuze, 1974). Como as palavras do filósofo que induzem a recompor a vida em forma de arte. De obra. Não a obra estancada que serve para expectadores desavisados. Mas a obra infinita do movimento de dobras. Dobrar-se, recurvar-se, desdobrar-se. Foucault (2011) propõe a construção da vida como obra de arte. Uma estética da existência:


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Criar alguma coisa que aconteça entre as ideias, e ela deve ser feita de modo a tornar impossível dar-lhe um nome, cabendo então a cada instante dar-lhe uma coloração, uma forma e uma intensidade que nunca dizem o que ela é. Essa é a arte de viver. A arte de viver implica em matar a psicologia, criar consigo mesmo e com os outros individualidades, seres, relações, qualidades inominadas. Se não pudermos chegar a fazer isso na vida, ela não merece ser vivida (...) fazer de seu ser um objeto de arte, isso é o que vale a pena.” (Foucault, 2011, p. 107 – 109).

Experimentações que alargam os graus de transversalidade dos acontecimentos. Da vida. De forma a exercer simpatia. Simpatia, aqui, retoma a proposição deleuziana de agenciamento e articula-se à uma ideia de produção de cuidado pela via da criação de modos de sensibilidade. A aposta num novo trabalho. Constituído por leituras. Modos de ler e partilhar a vida e as produções de educação, cultura e saúde. Leituras que produzam diversas vozes, fazeres, saberes, montagens, desejos, uma aventura polifônica de vontade de potência! Itinerante e solidária. Intentamos romper com a produção da impotência e do medo, experimentadas frente a situação pandêmica pela Covid -19, por meio da invenção de modos de sensibilidade. Audaciosamente, instaurar dispositivos de singularização que coincidam com o desejo, agenciando outros modos de produção semiótica (Guattari, 2005). Todos os elementos que possam abrir vistas ao movimento, à leveza e ao contentamento sensível. Nosso empreendimento é confiar na produção política de forças de enfrentamento e de criação de outros possíveis, como compromisso ético e inventivo. Nessa perspectiva, o sarau empreendese como força de enfrentamento ao que experimentamos diante das aglutinações de diferença adoecedoras, por constituir-se como um meio da sustentação do novo, do relançamento da processualidade da vida, irrompendo na invenção de outros modos e mundos. Este sentido traduz a estética proposta: a potência estética do sentir, como afirma Guattari (2008), ocupa uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos coletivos de enunciação de nossa época. Apontar a estética não como arte institucionalizada, mas como uma dimensão de criação em estado nascente. O exercício de compor com participantes e envolvidos, por meio de encontros de conversação, sustenta a perspectiva de que as redes de diálogo constituem em complexo processo interacional. A conversação, dada sua natureza dialógica e pelo seu caráter interventivo, destaca a dimensão inter-relacional dos encontros e de suas forças variadas. Remete aos exercícios de criação realizados à esfera de composição das diferentes vozes


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agenciadas e partícipes do processo. O outro com o qual estabelecemos a conversação, não é apenas um interlocutor virtual. É agenciamento dinâmico. A língua, como nos sugere Bakhtin (1997), é concreta e viva, e não se reduz a um mero objeto linguístico. Assim, a linguagem guarda uma atividade responsiva. Constitui-se como gestos de respostas aos movimentos dos quais se efetiva (Bakhtin, 1992). Partimos da direção de que produzir conhecimento é também produzir interesse e controvérsias que constituam questões políticas e enfatizem a reinvenção de sentidos, criação de histórias, vínculos e relações de força favoráveis à sustentação da produção de diferença e engendramento de multiplicidades (Stengers, 1990). Nesse sentido, os saraus poéticos reúnem participantes diferentes em debate e em torno de temas e criações de modos de sensibilidade. As linhas de ações e suas ferramentas específicas possibilitam a sustentação de uma rede de conversação transversal que debata permanentemente os entrelaçamentos entre educação, memória, arte, cultura e criticidade.

Construindo um novo olhar: Possibilidades através da cartografia social

Todo ato de conhecer traz um mundo às mãos, [...] todo fazer é conhecer, todo conhecer é fazer. (Maturana e Varela em El árbol del conocimiento)

Transformar para conhecer. Pelo caminho, novas experiências. Assim é a pesquisa cartográfica. É dissolver formas impostas. É a realidade que interfere na gênese do objeto e gera novas formas. E novas realidades. Transversalização como força, não como um corte vertical. Nem sequer imposição. É preciso ampliar a comunicação, diz Guattari (1981). É preciso ampliá-la entre sujeitos, e entre grupos, na ligação entre componentes e fluxos (heterogêneos, materiais e imateriais). É preciso relações entre relações. Linguagem é a amarração da implicação e da transversalidade. Ruptura das formas: momento de força, que diz dos apegos a quem segue sem questionar. A linguagem como vontade de ordem ou como delírio do Verbo (Barros, 2010) criam processos diferentes. Isso pode ser caótico - em situações disruptivas - visto que as formas, temporárias que são, organizam o caos. As experiências, contudo, ligam-se à


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transversalidade. A transversalidade quebra classificações, hierarquizações, dicotomias - que as formas engendram em instituições. Vincula-se a um agir singular, proposto pela ética do cartógrafo que não se sustenta em organizações ditadas por formas a priori. Conhecer a realidade é delinear seu processo permanente de produção. Constata-se: os atos dos cartógrafos – parte do coletivo de forças – pode inserir e intervir nas mudanças.

Remete a uma ética de conectividade (Simondon, 1981) nos processos, numa busca de superação das lógicas comunicacionais verticalizadas ou horizontalizadas, elas próprias, individualizantes. (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009, p. 104).

O Fogo-Fátuo, sarau poético, abre espaço para os diários de quarentena que se manifestam através de diferentes expressões artísticas, declamação de poemas; escritos dos mais diversos gêneros: relatos, crônicas, poesias; palhaçaria; performances de cunho interpretativo e teatral que são frutos da experiência sensível de cada um de seus integrantes diante de um cenário incerto e instável instalado pela pandemia da Covid-19. A proposta surge em âmbito acadêmico em forma de extensão, portanto, indo para além dos muros da universidade, nos traz um convite de nos lançarmos na experiência de forma conjunta se permitindo afetar e sermos afetados. Nos é ofertado a possibilidade de compreender o momento vigente sob a ótica da cartografia social:

(...) uma cartografia social faz diagramas de relações, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, agenciamentos, jogos de verdade, enunciações, jogos de objetivação e subjetivação, produções e estetizações de si mesmo, práticas de resistência e liberdade. (PRADO & TETI, 2013, p.45)

A análise cartográfica se constituiria assim, como ferramenta para interpretação do momento presente, ensejando uma crítica ao nosso tempo e daquilo que somos.

Paisagens psicossociais também são cartografados. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (...). Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos


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possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. (ROLNIK, 1989, p.15-16).

Se opondo a metodologia tradicional, que reflete uma lógica de caráter estático, neutro e descritivo onde se instaura a posição de observador, indo para além de testar hipóteses ou propor soluções, o Fogo-fátuo propõe uma dissolução do ponto de vista do observador, superando a dicotomia sujeito/objeto e a imposição de um manual interpretativo que se faz distante da experiência e escuta. A construção de reflexões e transmissão são feitas de forma conjunta possibilitando a cooperação e interação entre saberes múltiplos. Deixa-se penetrar pela emergência e demandas manifestadas permitindo abertura, o que proporciona liberdade. Somos coproduzidos: o que se processa é genuinamente a elaboração, participação de cada integrante que nos leva a voltar a atenção à abertura, perspectivas - isso Guattari instituiu de quantum mais amplo de transversalidade.

A estratégia cartográfica permite escapar ao decalque, à cópia, à reprodução e à repetição de si mesmo, tornando possível a singularização, a produção de si mesmo a partir de novas estéticas da existência. (PRADO & TETI, 2013, p.57).

A proposta inspirada também na pedagogia freireana, de construção compartilhada do conhecimento, levanta pontos importantes que podem ser observados e serem transpostos em nossa experiência, nos fazendo entender que a construção do saber se faz com o outro, e não, para o outro, partindo do pressuposto que todos têm construções a serem compartilhadas, o que valoriza a troca de narrativas e práticas.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. (FREIRE, 1987, p.77-85).

É estabelecido uma rede de troca, comunicação, nenhum tipo de vivência ou saber se sobrepõe ao outro. São pautados interesses coletivos. Temas que nos incomodam, mas também


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movem e fazem caminhar. Fazendo surgir novas reflexões, dando fôlego para o surgimento de intervenções que ecoam, germinando sementes de transformações subjetivas.

Incendiária O que é o fogo-fátuo, senão a maior prova da vontade e capacidade de vida? É uma chama azul que aparece em campos, pântanos e cemitérios, geralmente associado ao processo de decomposição. Seria então a morte, não? A morte é a maior comprovação da vida. Para morrer, basta estar vivo. E se se morre, seja céu ou inferno, continua-se de alguma forma. Seja em lembranças, seja através dessa chama que não se apaga. Saudade. Essa chama azulada é a persistência da vida sobre a morte. É a combustão do desejo que ri em cima da degradação, dos momentos de choro e transforma a realidade da morte em possibilidade de luz. O homem, sem poesia nada é. Uma vela acessa que nada ilumina. Desde a sua domesticação, o fogo tem sido um dos maiores instrumentos do homem. De vida e morte. Espantava animais, aquecia os corpos esfriados pelas baixas temperaturas e ventos. Secava peles úmidas e impedia doenças. Assava carnes. Qual é, ou deveria ser, o novo fogo a ser domesticado? Não sei. O incêndio vem aí. E tudo bem. O fogo persiste, na verdade até insiste em nos lembrar da sua importância. Esquenta a pele, assa a carne. Chama. E a alma fica fria? Aí não pode. Por isso a poesia, chama da alma, pedaço de tição que em contato com as cinzas das tristezas que a vida deixa, traz luminescência e esperança. Fogo-fátuo em tempos de fim de mundo, crise política e absurdos é um bacanal poético da conjunção de vozes múltiplas dissonantes e consoantes em coro e cor afinados. Trata de mais do que a junção da necessidade pela arte, mas da necessidade pela vida. Que apesar das mortes, infelizmente não parou. Enquanto resistência, a única atitude possível é a de viver. Viver de verdade, escapando do absurdo da sobrevivência. Sobrevivemos iluminando uns aos outros, mesmo que pela luz putrefata, mas poética de nossas aflições compartilhadas.

À guisa de (in)conclusão: A saúde como a literatura, como a escrita, consiste em inventar um povo que falta. (Deleuze em Crítica e Clínica)


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Fogo-Fátuo: sarau poético e diários de quarentena, apontam para uma política do acontecimento e do desejo, que situe a dignidade dos encontros, das trocas e dos exercícios de sustentação da memória e da palavra como fonte para uma cartografia social que intervenha na produção de modos de sensibilidade e dispositivos semióticos. Há uma preocupação evidente manifesta neste projeto em construir, urgente e coletivamente, ações educacionais sensíveis que sejam democráticas e plurais, que afirmem o caráter público e político das ações humanas em suas montagens de redes de sustentação e transformação. A necessidade de ações transversais, que instiguem nos participantes do projeto a criação de pertencimentos, engajamento, solidariedade e modos sensíveis e inéditos de composição, concorrendo, portanto, para o enfrentamento às forças mortificadoras do estado atual de pandemia por Covid-19. A possibilidade de conexão transdisciplinar e interinstitucional alarga a intervenção crítica para além do corpo acadêmico, alcançando a comunidade interessada e as parcerias estabelecidas. A sustentação dos saraus e compartilhamentos dos diários de quarentena, desenvolvem dispositivos semióticos e tecnologias para a produção de novas linguagens e expressões sensíveis, estéticas, artísticas e críticas. Concorrem para a criação de formas de enfrentamento à situação experimentada, frente à pandemia por Covid-19, envolve tanto a mobilização de repertório teórico, alcançada através do movimento permanente dos grupos de estudos, como pelos encontros e reuniões realizadas nas edições de Fogo-fátuo: sarau poético e diários de quarentena. Os encontros realizados por meio de videoconferências se dedicam a criar redes de conexões e conversações temáticas que debatem temas específicos e apresentam as intervenções artísticas que alimentam a criação de novos modos de sensibilidade, uma vez que partimos do princípio de que pensar, agir e saber são ações entrelaçadas e intercambiantes, que não se separam e afirmam a dimensão política e de criação da vida.

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O ensino de práticas artísticas no contexto do Covid-19 sob a ótica de Lygia Pape Eraní Ferreira Soares

A arte: hibridismo e linguagens Este texto surgiu da reflexão sobre a arte, hibridismo e suas linguagens, quando comecei a trabalhar no curso de Artes Cênicas ministrando as disciplinas de Figurino e Cenografia, de 2011 até 2020, na Universidade de Vila Velha. Atuei como professora, dando suporte no processo de criação de figurino e cenografia para os alunos do curso de artes cênicas. No curso, pude evidenciar o que relata SANTAELLA (2003, p. 135) sobre linguagem e hibridismo: “São consideradas híbridas as produções artísticas que utilizam “linguagens e meios que se misturam, compondo um todo mesclado e interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe integrada”.

Fig. 1. Aula de Cenografia. Laboratório de Gravação e Vídeo. Universidade de Vila Velha. 2014.

No curso, os alunos faziam estágio em escola particular ou pública sob minha supervisão via Projeto de Extensão, no qual eu auxiliava o desenvolvimento de seus trabalhos de estágio.


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Naquele interim, eu participava do processo de criação de figurinos e de cenários para outras disciplinas do curso. Minha função como docente foi inicialmente na disciplina de Indumentária e Caracterização de Figurino e Cenografia. Posteriormente, com a mudança da grade curricular do Curso de Artes Cênicas, passei a ministrar as disciplinas de Figurino I e Figurino II que dava suporte para outras disciplinas do curso. Isso muito contribuiu no desenvolvimento do meu trabalho como docente em uma área nova, bem como o despertar meu desejo de cursar o mestrado na busca por novos conhecimentos. Apesar de minha formação ser em Artes, até então, não havia lecionado como professora em curso de Licenciatura para teatro. O que, no início, foi muito difícil por não conhecer os fundamentos teóricos dessa área nem as práticas ligadas à cenografia.

Fig. 2. Aula de Cenografia. Laboratório de estamparia. Universidade de Vila Velha. 2014.

Na graduação em Artes, as disciplinas de teatro I e Teatro II foram apenas uma introdução, não houve um aprofundamento, nem da parte teórica nem da prática, por isso, não me sentia totalmente habilitada para desenvolver tais atividades. Então, para o planejamento das aulas, pesquisei a respeito dos principais cenógrafos no Brasil e do exterior. Na época, aprendi muito com os alunos que já atuavam como atores, os quais buscavam no curso uma formação acadêmica em Artes Cênicas, assim como adquirir maior conhecimento na área. Estes alunos eram verdadeiros professores-atores.


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Como parte da pesquisa para elaboração das aulas, contei com a ajuda e a participação de outros professores do curso e, principalmente, da coordenadora, Rejane Arruda, a qual sempre me incentivou e me desafiou a pesquisar, cada vez mais, a respeito de cenografia, figurino e suas relações com outras linguagens artísticas. Figurino foi mais fácil, por já ministrar a disciplina de História da Indumentária no curso de Design de Moda, onde realizo pesquisa desde 2002, quando iniciei no curso como docente, na disciplina História da Indumentária. Penetrar nesse fascinante universo da História da Moda, que também se relaciona com o contexto artístico e social, abriu-me diversas possibilidades, tanto na área profissional como pessoal. Para a disciplina de Figurino e Cenografia foi necessário articular a teoria com a prática, frente ao que era proposto.

Fig. 3. Aula de História da Indumentária. Universidade de Vila Velha. 2017.

Diante das possibilidades disponíveis ao trabalhar em uma área onde se misturam linguagens artísticas variadas, como artes plásticas, cênicas e design, e na qual se mesclam pintura, desenho, dança, design gráfico, filmes, performances e instalações, sempre foi muito enriquecedor lidar com tantas perspectivas. Quando não tínhamos um espaço físico e materiais adequados, improvisávamos no anfiteatro da universidade, no laboratório de estamparia, no laboratório de vídeo, entre outros. Eu e os alunos caminhávamos pela universidade com sacos


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de tecidos e outros materiais, isso causava certa curiosidade entre os acadêmicos, tanto os discentes quanto os docentes.

Fig. 4. Aula de História da Indumentária. Universidade de Vila Velha. 2017.

A partir destas experiências obtive a base para desenvolver com maior habilidade minhas atividades dentro do curso juntamente com os alunos. A esse respeito, Viola Spolin (2010, p. 34) explica que: “Experimentar é penetrar no ambiente, é envolver-se total e, organicamente com ele. Isso significa envolvimento em todos os níveis: intelectual, físico e intuitivo”.


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Fig. 5. Apresentação “Alice Uma quase ópera Ópera punk- rock contemporânea”. Teatro Municipal de Vila Velha. Performa-ES.

Artes e suas funções sociais no contexto atual De acordo com FISCHER (1987, p. 51) “o artista continua sendo o porta voz da sociedade”. Ademais, FISCHER (1987, p.51-52) declara que: “ a tarefa do artista é expor ao público a significação profunda dos acontecimentos, fazendo-o compreender claramente a necessidade e as relações essenciais entre o homem e a natureza, e entre o homem e a sociedade”. O autor demonstra como é importante compreender o Outro, aderir à empatia. Foi exatamente isso que encontrei nos alunos e professores do Curso de Artes Cênicas. No período em que ministrei aulas no curso de Artes Cênicas, cursava a disciplina de Arte Moderna como aluna especial no Mestrado em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Logo após, não tive condições de fazer o mestrado por incompatibilidade de horários e também não ter tempo para estudar e elaborar meu projeto de pesquisa. Esse fato ocorre com a maioria dos profissionais da área de educação: trabalhar em várias instituições, com carga horária oscilante e não ter salário definido. Devido a esse panorama, de acordo com HORKHEIMER (2002, p.145):

Assim o sujeito da razão individual tende a tornar-se um ego encolhido, cativo do presente evanescente, esquecendo o uso das funções intelectual pelas quais outrora era capaz de transcender a sua real posição na realidade. Essas funções são hoje assumidas pelas grandes forças sociais e econômicas da época. O futuro do individuo depende cada vez menos da sua própria prudência e cada vez mais das disputas


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nacionais e internacionais entre colossos do poder. A individualidade perdeu a sua base econômica.

Ou seja, o educador, muitas vezes, precisa abandonar projetos pessoais e acadêmicos para cumprir as exigências do trabalho, o que compromete a sua qualificação profissional. Mesmo assim, atualmente, estou matriculada como aluna regular de mestrado na turma 2019/1 e finalizarei o curso de pós-graduação em dezembro de 2020.

O divisor e a atualidade Entre as pesquisas para a disciplina mencionada, conheci o trabalho da artista plástica Lygia Pape (1929-2004), seu trabalho é conhecido internacionalmente. Apesar de ser uma das principais representantes do Neoconcretismo no Brasil em seu período, é pouco conhecida por aqui em comparação com outros artistas do mesmo período, tais como Lygia Clarck (19201988) e Hélio Oiticica (1937-1980).

Fig. 6. Lygia Pape, 1960. 1

Alice Brill (1988) nos revela: “O que define o homem como ser racional, é a sua capacidade de codificar, isto é, de simbolizar a sua experiência vivida”. Por isso, nota-se como 1

Fonte: https://i1.wp.com/arteref.com/wp-content/uploads/2016/10/Lygia-Pape. Acesso em 15/08/2020.


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principal característica da obra de Lygia Pape a integração das esferas estética, ética e política, sua produção artística é marcada pela preocupação em relacionar os principais temas da humanidade, como tempo, o espaço, a violência e a sexualidade. Nesse sentido:

A função simbólica dá ao homem a possibilidade de captar sua vivência, expressando-a, a fim de memorizá-la para si mesmo ou transmiti-la aos outros. É, portanto, a comunicação entre os homens que está na base da função simbólica, possibilitando a troca de ideias entre indivíduos do mesmo grupo social, através de códigos tais como a linguagem escrita e falada e as artes (BRILL, 1988, p. 35).

Ao considerar o momento atual, este ano de 2020 incita novas reflexões a respeito das “funções simbólicas”, afinal, com a COVID-19, há uma pandemia do corona vírus que se alastrou pelo mundo, causando efeitos devastadores em todos os setores da sociedade, inclusive e devastadoramente, na classe artística, pois teatros, cinemas, museus e instituições deste gênero estão fechadas. Aos artistas, resta tentar sobreviver com leis de incentivo a cultura, lives e outras formas de se apresentação de seus talentos.

Fig. 7. “Divisor” (1968) 2

Aliado ao descaso com a arte e com classe artística pelos governantes do nosso país, a obra O Divisor foi escolhida para fazer um paralelo com o contexto político social atual com o período em que foi criada, a década de 1960, o qual também foi um período muito conturbado política e socialmente, conforme afirma FREIRE (2006, p. 21): 2 Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14848/divisor. 2020. Verbete da Enciclopédia. Acesso: 09/08/2020.


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Em dezembro de 1968 foi promulgado a Ato Institucional n°5, que recrudesceu a ditadura militar no Brasil, levando à perseguição e prisão de artistas e intelectuais. No ano seguinte seria proibida, no Museu de Moderna no Rio de Janeiro, a exposição dos selecionados para participar da VI Bienal de Paris, o que provocou um enérgico protesto da Associação Brasileira de Críticos de Arte.

Denise Mattar (2003) nos lembra que, à época: “A obra de Lygia é um experimentar constante, é a busca do novo, o eterno devir. A artista transita do negro para a cor da palavra para a luz, da imagem para o som”. Os trabalhos da artista são conhecidos pela liberdade em ensaiar várias linguagens e interagir a obra com o público, que é uma das características da Arte Contemporânea: saber olhar para todas as épocas, enxergar erros e incertezas, olhar para as luzes e perceber as incertezas de todas as fases. AGABEM (2009, p. 165), desse modo, esclarece que: Ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz, que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar.

No período da produção de “O Divisor”, o Brasil passava pelo regime político da ditadura militar. A crítica, a ironia e o humor negro fez parte deste trabalho de Lygia Pape como forma de protesto, de tomada de posição diante daquele contexto. A obra é formada por um tecido de 30 por 30 metros com buracos preenchidos por pessoas. Neles, ficavam à mostra somente as cabeças, todo o resto do corpo dos participantes permaneciam sob o pano. Lygia, assim, quebrou o limite entre observador e participante ao criar um público novo, pois convidado a completar lúdica e presencialmente a obra. Quando criou “O Divisor”, a artista queria uma arte/ação coletiva, na qual as pessoas pudessem experimentar estruturas e ações performáticas sem que a artista estivesse presente. “Ideologicamente este tipo de proposta seria uma coisa muito generosa, uma arte pública da qual as pessoas poderiam participar, atualmente são chamadas de performances” (Pape apud Carneiro, 1998 p. 45). A arte sempre foi considerada privilegio da elite, em O Divisor são rompidas todas as barreiras que separam o artista e sua obra do espectador.


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Esta análise demonstra como a artista se portava em relação ao contexto político e estético de seu tempo. Em Lygia Pape, também é possível encontrar as evidências tanto do passado quanto do presente, pois “O Divisor” representa um espírito coletivo, mesmo em isolamento social devido à pandemia. Mantemo-nos unidos ao nosso meio social por meio de uma conexão extra corporal, remota, mas definitivamente dinâmica e compartilhada. DidiHuberman (2006) nos ajuda a entender as forças simbólicas que unem o tempo pretérito com a atualidade: O conhecimento por montagem está por intervir a lógica de uma construção temporal da história da arte, pelo contrário, pode haver elementos presentes nela que rementem a outros tempos, muito parecido com o atual contexto político pelo qual nosso país está passando na atualidade.

Fig. 8. Performance de estudantes da Faculdade de Música e Belas Artes, UFMG, em frente ao Palácio das Artes. 2019.

A obra de Lygia Pape já foi exposta no Museu Reina Sofia, Espanha, em 2012; em 2017, foi apresentada em Nova York; em julho de 2020, terminou a retrospectiva da obra de Lygia Pape novamente no Museu reina Sofia, na Espanha, na Fondazione Carrieiro, em Milão até julho de 2020. Segundo Paula Pape, sua filha “todos são um só no Divisor, as pessoas esquecem quem são e se deixam levar pelo coletivo”. O Divisor foi usado em 2019 por estudantes em Belo horizonte, em manifestação contra a reforma da presidência. Em “O Divisor” nota-se a massificação do homem, cada um no seu lugar, com pouca distinção pessoal. Também é possível observar que, mesmo instalados em suas próprias fendas,


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uns conversavam com o outros, o que se torna um paralelo com o contexto atual. Afinal, mesmo confinadas aos seus lares, as pessoas não deixaram de se comunicar. Contudo, há um outro viés, se antes da pandemia grande parte das pessoas já viviam em um “quase” isolamento, agora isso está mais que evidente. Segundo BAUMAN (2001), isso mostra que os indivíduos querem liberdade para tomar um lugar para si e se isolarem: Na modernidade liquida, as relações humanas são voláteis, e podem ser interrompidas a qualquer momento, o que pode ocasionar uma predisposição ao isolamento social, onde os indivíduos optam por viver sozinhos, e como consequência enfraquece a solidariedade, com isso estimula a insensibilidade em relação ao sofrimento do outro.

Ao cabo, não poderia deixar de citar o pensamento de Bertold Brecht (1898-1956), um dos principais pensadores do teatro e da arte em geral do século XX. O conjunto de sua obra visa a arte como instrumento de transformação social, convidando o público a agir de modo a transformar sua história. Segundo Fernando Peixoto (1980), “Brecht recusa o espetáculo como hipnose ou anestesia: o espectador deve conservar-se intelectualmente ativo, capaz de assumir diante do que lhe é mostrado a única atitude cientificamente correta - a postura crítica”. Os pressupostos estéticos da obra de Brecht percorrem todos os campos artísticos e nos remete ao teatro épico que, para o dramaturgo, é pensar a obra racionalmente sem se desfazer da emoção.

Conclusão Por fim, meu trabalho como docente no curso de Artes Cênicas me levou ano de 1968, ocasião na qual foi criado “O Divisor”. O curso de Artes Cênicas da Universidade de Vila Velha é o único no Estado com Licenciatura, por isso é importante para fomentar a cena artística local. Enquanto ministrava as aulas do curso, promovíamos espetáculos gratuitos e oficinas, convidando as pessoas para participar, incentivando a interação, que é um dos papéis da Arte Contemporânea. Artistas locais e alunos mostraram seus trabalhos, porém, como acontece no nosso país, e não poderia deixar de ser diferente no nosso Estado, a cultura e a arte não são valorizados. Mesmo a preços irrisórios, ou até gratuito, o público foi pequeno.


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Fundamental para minha vida profissional e pessoal, no curso fui acolhida com carinho e respeito pelos corpos discentes e docentes, ainda mantemos contato via encontros virtuais, conhecidos como lives. A obra “O Divisor”, de Lygia Pape, foi um trabalho de suma importância para a arte brasileira na década de 1960, por causa do contexto político e cultural no qual estava inserido, a ditadura militar. Também é obra relevante para período atual, pois dialoga com o que vivemos, as diatribes políticas e a pandemia. Ambos nos convidam a nos posicionarmos, afinal a arte não deixa de ser uma forma de manifestação em relação ao que acontece no cenário político e cultural do nosso país.

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A poténcia de afeto no Teatro: Corpo cênico como forma de atrair o olhar da criança Letícia Almeida Dias

Quando falamos de corpo cênico, não se trata da movimentação do ator apenas. Tratase também de presença e narratividade, pois o corpo também conta a história. No teatro para crianças, ele pode ser utilizado para potencializar a narrativa e atrair o olhar do espectador. A criação do personagem envolve a experiência de cada um. O ator pode utilizar de memórias vivenciadas para tornar vivo o papel e transmitir verdade para o público. Para afetar ambas as partes, essa relação precisa acontecer. Segundo Klauss Vianna (2005, pg. 101), “(...) o movimento humano tanto é reflexo do interior do homem como do mundo exterior. Tudo que acontece no universo acontece comigo e com cada célula do meu corpo.” Assim, no momento do espetáculo, as reações das crianças influenciam na atuação dos atores. Por outro lado, os atores também afetam o público a partir das intensidades das suas ações. Gilles Deleuze contribui para essa análise com a seguinte ideia:

Se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e de ser afetado, muitas coisas mudam. Definiremos um animal, ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz (DELEUZE, 1981/2002, p. 129).

Existe uma relação entre o corpo exagerado dos atores e a forma como as crianças são afetadas durante o espetáculo teatral. Este efeito reverbera na vida delas. Como afirma Spinoza (2009, p. 99). “O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída.” O memorial que trago expressa o meu interesse de apresentar como isto aconteceu no decorrer dos anos de experiência com o Teatro para Crianças, através dos quais observei um dispositivo que suporta o corpo do ator e a relação de afeto com a criança-espectador.


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Neste memorial também problematizo a dilatação corporal como forma de atrair a atenção das crianças e exponho a capacidade transformadora do Teatro no que diz respeito à prática pedagógica cotidiana.

Onde tudo começou Nasci em Vitória da Conquista (BA), onde morei grande parte da minha vida. A cidade possui grande carência teatral, então as únicas apresentações que eu assistia eram vistas no YouTube e tentava reproduzi-las na igreja, dirigia, preparava os atores, atuava mesmo sem conhecimento teórico nem muitas referências para isso. Quando completei 18 anos, fiquei sabendo de um grupo teatral local e que haviam encontros todos os sábados. O nome é “Apodío”. Fui a uma aula experimental e quando me dei conta, já estava montando uma peça e indo a todas as oficinas que tinham relação com o teatro. O grupo utilizava exercícios de Jogos para atores e não atores de Augusto Boal. Interessada em conhecê-los ainda mais, eu participei de uma oficina com o tema “Teatro do Oprimido”, baseada em seu livro, cujo intuito é libertar as pessoas das opressões impostas por outras e até por si próprias. Nesta oficina foram vivenciadas dinâmicas, que buscavam relembrar memórias e sentimentos de opressão e expressá-los através do corpo. As pessoas que viam precisavam adivinhar a história apenas olhando as expressões corporais. Sempre considerada tímida, percebi a potencialidade do corpo com esse exercício. Mesmo sem precisar de diálogo, o ser humano pode ser compreendido, ou seja, há outras formas de se expressar além da voz. Diante disso, passei a me compreender mais; notei opressões que me limitavam a expor opiniões e sentimentos guardados, por medo de críticas. Estas limitações refletiam em meu modo de agir. Assim, foi através do teatro que encontrei uma forma de me libertar, não apenas com a voz, mas com o corpo. Aprendi a observar o movimento corpóreo das outras pessoas e a querer estudar sobre isso, tema tão amplo que continuo estudando. A minha primeira apresentação com o grupo “Apodío” foi com a peça “O Silêncio” de Peter Handke. Minha paixão por teatro crescia cada vez mais, porém por motivos pessoais


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precisei me mudar para Vila Velha (ES). Logo comecei a pesquisar as companhias teatrais locais e descobri o Curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha (UVV). Diante de tantas matérias, o que sempre me chamou mais atenção foi a dilatação corporal (Barba, 1995). No decorrer do curso, realizei trabalhos que me mostraram a potência do corpo humano e a sua contribuição para a arte da cena. Desenvolvi peças voltadas ao Teatro para Crianças, com o foco na criação de um corpo extracotidiano.

As técnicas cotidianas do corpo tendem à comunicação, as do virtuosismo tendem a provocar assombro. As técnicas extracotidianas tendem a informação: estas, literalmente, põem-em-forma o corpo, tornando-o artístico/artificial, porém crível. Nisto consiste a diferença essencial que o separa das técnicas que o transformam no corpo "incrível" do acrobata e do virtuoso. (BARBA, 1994, p. 31)

Vale destacar aquelas que são relevantes para a análise em questão, são elas: “Peter Pan: Encontre seu caminho” (2017), com direção de Rejane Arruda; “O Mágico de Oz” (2017), com direção de Marthins Machado e Elisa Oliveira; “O Casamento de Maria Flor” (2018), com direção de Marthins Machado; “Os Saltimbancos” (2018), com direção de Letícia Dias e Filipe Sousa.

“Teatro Vai à Escola” A Secretaria Municipal de Educação de Vila Velha (SEMED) possui um projeto do setor de Arte e Cultura chamado “Teatro Vai à Escola”. Este projeto foi criado por Peterson de Castro 3 e Karla Pio. Este termo já era utilizado por outros grupos teatrais, porém a proposta inovadora foi atribuir aos estagiários do setor à criação do espetáculo, atribuindo a eles a responsabilidade pelo roteiro, atuação, sonoplastia, figurino, cenografia, direção, entre outras funções. Com o objetivo de levar entretenimento e aprendizagem de forma lúdica para as escolas UMEIs e UMEFs de Vila Velha, o projeto de inicio supriu a demanda do “Programa de Saúde nas Escolas” (PSE), de conscientizar os alunos sobre temáticas recorrentes na Peterson de Castro professor de artes, coordenador do setor de arte e cultura da SEMED a oito anos. Karla Pio professora de artes, exerce a função de técnico pedagógica no setor de arte e cultura da SEMED a nove anos.

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sociedade como, por exemplo, uso de drogas, gravidez na adolescência, saúde bocal, entre outros. Diante dessa demanda, houve a necessidade de se obter pessoas qualificadas para a execução das atividades teatrais. O PSE e o setor de Arte e Cultura conseguiram os primeiros estagiários de Artes Cênicas da SEMED, também alunos da Universidade Vila Velha. Atualmente, essas vagas são constantemente preenchidas por outros estudantes e os temas sociais não são mais prioridade. A forma de administrar o projeto “Teatro vai à escola” fica sob autonomia dos estagiários. Quando passei a estagiar na SEMED, em 2018, o grupo era formado por três estagiários estudantes de Artes Cênicas na UVV e uma estudante de outra instituição. Assim que iniciamos o trabalho no setor de Arte e Cultura, começamos o processo de criação do espetáculo “Os Saltimbancos”. Todos nós dávamos ideias para a construção das cenas e trama, que ocorre de forma lúdica, envolvendo a participação das crianças. Estas por sua vez, expressavam suas opiniões e ajudavam na continuação do espetáculo. Os personagens são bem humorados e cada um com uma personalidade própria: jumento, cachorro, galinha e gata. É um musical com músicas do Chico Buarque que retrata a história de cada animal, adaptado com referências musicais da atualidade, como “Dançando com o Txutxucão” da Xuxa e “A Galinha Magricela” da Fazenda do Zenon. As referências foram utilizadas para criar maior envolvimento das crianças com os personagens. Muitas vezes elas conheciam a coreografia e as músicas e, assim, dançavam e participavam da história. A estreia do espetáculo “Os saltimbancos” foi à primeira experiência dos atores com esse projeto para público infantil das escolas. No decorrer das apresentações, a peça foi se modificando, até finalmente amadurecer. Com a vivência nesse projeto, percebi que mesmo que ensaiarmos como se estivéssemos em frente ao público, é notória a diferença que sua presença trás para o espetáculo. Percebi a necessidade das crianças de fazer parte da história e interagir com os personagens. Mesmo sabendo que se trata de uma peça teatral, elas encaram como real. Assim, fazemos perguntas e lançamos proposições para elas, deixando-as escolher o rumo da história.


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Durante a trama, os animais estão fugindo da fazenda à procura da idealizada cidade grande, e para isso questionam diversas vezes para as crianças onde fica a cidade. Cada uma aponta uma direção diferente. Assim, termina o espetáculo sem os animais encontrarem o caminho da cidade grande. Em algumas apresentações, mesmo depois de ter acabado, elas insistem em ajudar os animais a chegarem à cidade. 4 Cada momento como esse é único. O projeto se tornou conhecido nas escolas municipais de Vila Velha, com uma demanda cada vez maior. Mais de quarenta apresentações foram realizadas em um ano e meio. De acordo com a “Base Nacional Comum Curricular” (BNCC), as crianças devem ser protagonistas do próprio aprendizado; e ter cada vez mais voz e participação nesse processo. Acredito que este projeto é uma forma de dar voz a estas crianças e contribuir para que tenham uma participação ativa no seu processo de aprendizado. Em uma apresentação feita na UMEI Basilio Costalonga, a professora após a ter assistido o espetáculo, comentou sobre o comportamento das crianças da seguinte forma:

O que me chamou atenção foi que vocês não exigiram o silêncio das crianças, que muitas vezes quando tem atividade artística na escola, as pessoas pedem o tempo todo para elas não conversarem e ainda assim elas ficam de conversa paralela. Já com vocês, o que me impressionou que o tempo inteiro interagem com elas e pedem opinião, deixam elas falarem e elas ficaram vidradas em vocês, todas as crianças, até as mais hiperativas e sem precisar pedir, fizeram silêncio no momento certo e quando conversavam, foi para interagir com vocês.²

Aprendemos que, quanto maior o exagero ao narrar à história, utilizando recursos corporais e vocais, mais prendemos a atenção delas. Trata-se de um momento de troca com as crianças. Esta troca ocorre desde o momento que entramos no palco. Acontece grande produção de energia e a expansão corporal é conquistada através do experimento com o público. É visível a diferença da expansão de energia quando entra em jogo a inserção desse corpo energético. Certo dia, nós estávamos na escola e tínhamos duas apresentações, pela manhã e pela tarde, sendo a primeira no turno matutino e a segunda no turno vespertino. Pela manhã, tivemos dificuldades com o som, estávamos cansados e resolvendo problemas em cena, o que limitou

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Comentário feito pela professora no dia 12 de Novembro na UMEI Basília Costalonga.


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os movimentos corporais. Houveram também falhas no microfone e as crianças ficaram dispersas. Mas algo ainda as encantou e muitas nos procuraram para abraçar e fazer elogios. Já na segunda apresentação, com outro público, decidimos utilizar maior energia, principalmente corporal. Após o termino, uma professora, nos falou “Quanta diferença da outra apresentação. A do turno vespertino foi bem melhor. Parecia que estavam mais alegres e as crianças se comportaram muito bem. Essa apresentação foi ainda melhor que a primeira”.

O corpo tem um papel fundamental no processo de decifração de sensações, de criação e de comunicação com o público. O corpo é suporte, cenário, linguagem – gestos, movimento, ritmos, pausas (espaço e tempo). E é na relação com outros que ele se faz. (FERLA.A; ÁVILA. M. 2015, p.738)

Como a demanda do projeto é muito grande, tentamos contemplar o máximo de escolas possíveis, indo pelo menos uma vez por semana em cada uma. A diretora da “UMEI Pedro Pandolfi” nos convida diversas vezes e somos sempre bem recebidos, com presentes e conforto. Uma dessas vezes, ela nos falou:

Sempre tento recebê-los da melhor forma possível, na esperança de voltarem mais vezes. Muitas dessas crianças nunca foram no cinema, muito menos no teatro. Para a maioria, o espetáculo de vocês é o primeiro contato delas com o universo teatral e entendemos que agrega na vida delas. É um dia diferente na escola como um dia de festa e voltam pra aula, desenhando o rosto de vocês e alvoroçados para contar para os pais dessa experiência e não deixa de ser um momento educativo também. 5

Já fizemos muitos espetáculos e cada um é único. Os públicos são sempre diferentes, assim como o local e até nós mesmos, nos modificamos constantemente. Muitas vezes fomos apresentar cansados, com problemas pessoais e sentimentos negativos. Mas, ao entrar em cena, o público torna toda a energia positiva. Trabalhar e estudar o corpo sempre foi uma prática prazerosa no meu cotidiano. Desde o momento em que notei a potência de afeto existente entre o ator-personagem e a criançaplateia, passei a utilizar o dispositivo corporal para potencializar essa relação. Cada corpo é afetado de maneiras múltiplas, isto é, nenhum corpo é afetado da mesma forma que outro corpo, pois o que toca e leva um indivíduo a pensar sempre se 5

Conversa feita com a diretora no dia 11 de Abril na UMEI Pedro Pandolfi


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expressa de maneira singular e não genérica, embora as ideias possam ser compreendidas e compartilhadas entre muitos corpos-mentes. (NOVIKOFF.C; CALVALCANTI. M, 2015, p. 91)

Inspirada nas teorias de Spinoza pude notar a relação afetiva entre os corpos durante o espetáculo. Vale ressaltar, que cada um reage de forma única. Assim como cada ator é a afetado de maneiras diferentes, isso também ocorre entre as crianças. Ao analisar o público em geral, notei que, em algumas regiões, existe uma maior carência afetiva. Em certos momentos, mais de cem crianças queriam me abraçar ao mesmo tempo, algumas não queriam me soltar de maneira alguma. Foi preciso que eu fosse puxada pelo professor ou funcionário da instituição. Assim como também tiveram escolas onde não fui abraçada, apenas recebi alguns sorrisos e cumprimentos de despedida.

Se o corpo do ator é, já em si mesmo, território cênico, onde o movimento dos gestos e dos olhares e as máscaras naturais do rosto são dança de afetos e jogo de emoções na lúdica construção da personagem, o espaço do palco é um prolongamento do corpo do ator e se o corpo do ator é um corpo vivo e dinâmico também o espaço do palco em que esse corpo se movimenta é um espaço vivo e dinâmico, habitado por tensões, forças, conflitos, com múltiplos centros correspondentes ao corpo dos atores. (FERLA.A; ÁVILA. M, 2015, p.736)

Filipe Sousa, integrante do espetáculo, contribui para a reflexão, com o seguinte relato. Vejo a criança como uma impulsionadora do meu monólogo inicial e da peça inteira, esse monólogo só dá certo quando a criança reage e utilizo gestos bem exagerados nesse momento, chega a parecer esquisito, mas faz toda diferença, muitas vezes nós chegamos à escola desanimados, mas a energia delas quando entramos em cena contagia. Em cada escola apresentamos em um local diferente, com públicos diferentes, entretanto por mais cansados que estejamos, a criança nos impulsiona através da energia positiva independente do local e do dia. 4


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Fig 1.: EMEF São José, Cariacica, 2019

Fig. 2: EMEF São José, Cariacica, 2019

Fig. 3: UMEF Antônio Bezerra Farias, 2019


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“Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho” O início da minha trajetória com o Teatro para Crianças foi com “Peter Pan: Encontre Seu Caminho”. Com direção da Profa. Dra. Rejane Arruda, o espetáculo foi montado em 2017, no 2º período do Curso de Artes Cênicas, com o objetivo de utilizar os aprendizados das matérias de Jogos Teatrais, Corpo e Interpretação Teatral. O meu personagem foi Firula, um dos meninos perdidos. Com a junção dos aprendizados teóricos e experimentos práticos ao longo do semestre, o resultado foi um corpo ágil, muito agitado, a dilatação das ações físicas. Vale destacar o jogo “Exagero”, de Augusto Boal (1982), realizado durante reuniões de orientação de Estágio.

Os atores exageram todas as emoções, movimentos, conflitos, etc., sempre dentro do rumo certo, mas ultrapassando o limite aceitável. Não se trata de substituir uma coisa por outra, mas apenas de exagerar: quando se odeia exagera-se o ódio, quando se ama exagera-se o amor, quando se grita, exagera-se o grito, etc. (BOAL, 1982, p. 117).

Diante da montagem dessa peça, percebi que o diretor pode encontrar dificuldades em fazer com que os atores cheguem a um resultado desejado e para isso, é preciso buscar soluções. Em relação a este processo criativo, deparamo-nos com uma ausência de dilatação corporal em alguns atores. A utilização de Jogos Teatrais nas reuniões de orientação de Estagio abria espaço para os alunos experimentarem dinâmicas corporais. Algumas dentre estas eram utilizadas para as cenas de “Peter Pan” e, também. O jogo “Exagero” de Boal foi utilizado. A regra era clara: exagerar todas as emoções e movimentos. Alguns gestos que foram produzidos durante o exercício, enraizaram nos personagens e se tornaram marcação corporal. O processo de criação de um espetáculo implica modificações até seu amadurecimento, o que acontece após apresentações com diferentes públicos. No entanto, o período anterior à estreia consiste em um jogo de experimentações e proposições, para selecionar materiais que funcionam, colocá-los em cena (e retirar aqueles que necessitam ser cortados). Na estreia de “Peter Pan”, o espetáculo ainda estava fragilizado, atores inseguros e o público de grande maioria jovens e adultos. Começamos então a nos apresentar para crianças,


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levando o espetáculo para as cidades de Vila Velha. Com o apoio da UVV, em 2018, iniciamos o projeto “Circulação Peter Pan: Encontre o Seu Caminho”. Com objetivo formativo, estas apresentações foram realizadas em dias de semana, para facilitar o acesso dos estudantes e professores. Durante esse período, notei a forma como os personagens afetam as crianças e como esse efeito reverbera na vida delas. Após o espetáculo, essa afecção se torna presente, de modo que não esquecem com facilidade, pois deixamos marcas. Vale destacar o relato de uma criança de três anos feito dias após ter assistido a “Peter Pan”. Mãe: Você lembra qual era o barulho do Jacaré? Menino: Sim, era “tic tac, tic, tac, tic tac” Mãe: E na peça, você ficou com medo? Menino: Não, eu só fiquei muito feliz Mãe: E você gostou dos piratas? Menino: Sim e eles corriam muito e muito rápido. 6

Fig. 4: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, São Roque do Canaã

Filho de uma das integrantes do coletivo “Elas Tramam”, o relato foi passado através do Whatsapp da diretora Rejane Arruda e postado na página da peça no facebook e instagram. 6


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É notório observar na fala da criança a forma como ficaram vivos na memória dele os momentos de correria em cena, ou seja, a ampla movimentação corporal, e o sentimento positivo marcante durante o espetáculo.

Fig. 5: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, São Roque do Canaã


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Fig. 6: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, Vitória

Projeto de Arte e Cultura Em 2017, recebi o convite dos estagiários do setor Arte e Cultura da SEMED para interpretar a personagem Dorothy na peça teatral “O mágico de Oz” que estava sendo montada para o “Arte na Vila”. O projeto “Arte na Vila” consiste em uma semana com atividades educativas e culturais para as escolas. Peterson de Castro, coordenador do setor conceitua o projeto da seguinte forma: É a possibilidade de contemplar diversas manifestações artísticas e culturais desenvolvidas nas escolas, com a participação de alunos e profissionais das 98 unidades da rede municipal de ensino de Vila Velha (UMEF’s e UMEI’s) convidadas para participar da mostra. 7

Iniciei a construção de minha personagem. A movimentação corporal era toda marcada, cada gesto, além da inserção de elementos infantis da atualidade, como a música de abertura do desenho animado “Incrivel Mundo de Bobby” e uma sátira, muito popular nas redes sociais, em cima da música “Turn Down for Whats”. As ações dos personagens tinham sempre uma intencionalidade. Diante disso, vale ressaltar o conceito de ação física e como os externos tem uma intenção baseada no interior da personagem: “(...) o ponto principal das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim

no

que

elas

evocam:

condições,

circunstâncias

propostas,

sentimentos.

(STANISLÁVSKY, 1997, p. 3, apud BOTELHO, 2013, p. 4). Outra problemática encontrada na construção das cenas foi a expressão corporal. Apesar de todas as marcações dos movimentos estarem prontas, faltava energia. A solução encontrada pelo diretor Marthis Machado foi fazer um ensaio mais conhecido como “FF” 8. Esse procedimento foi incialmente proposto pela professora Rejane Arruda nas aulas de Em entrevista concedida ao jornalista Jô Amado e divulgada no site da Prefeitura Municipal de Vila Velha, em Outubro de 2017. 8 A Sigla “FF” significa Fast Forward, ou seja, avanço rápido, utilizado para avançar uma gravação de áudio ou de vídeo em velocidade mais rápida. Essa função teve origem nos antigos aparelhos de som que rodavam fitas cassetes, ou em aparelhos de vídeo com as fitas VHS. Como haviam pouco espaço nos controles para a escrita, eles precisavam abreviar os textos e como o padrão era inglês, surgiu a sigla “FF”. 7


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Interpretação Teatral no curso de Artes Cênicas e utilizado na montagem de Peter Pan. Ele implica em dar velocidade às cenas, como se faz com um filme quando se coloca a função FF no controle remoto. O procedimento tornou-se essencial para a minha construção corporal, a hiperatividade deu a energia que faltava e enraizou na minha personagem, de modo que pude encontrar o estilo de movimento da Dorothy. No ano de 2018, o mesmo grupo foi convidado para mais uma apresentação teatral. Eu participei novamente como voluntária, mas com a proposta de futuramente ser contratada para trabalhar na SEMED. A sugestão da peça teatral foi definida por Peterson de Castro, inicialmente chamada de “O casamento de Maria Feia” que teve que ser adaptada para “O casamento de Maria Flor”, por questões pedagógicas. A peça é uma comédia nordestina: o típico pai bravo que procura um pretendente para a filha. Quando encontra Zé das Baratas, tenta realizar o casamento mesmo que seja sem o consentimento dele (a recusa é devido à falta de beleza em Maria). De modo que a trama traz um foco na aparência da personagem. Não foi o suficiente colocar roupas feias e desenhar uma monocelha. A construção corporal foi essencial para enfatizar a comicidade da aparência de Maria Flor. Esta construção corporal foi difícil de encontrar. Passei por um processo de experimentação constante, até certo ensaio, quando estávamos conversando e eu fiz uma brincadeira com um corpo estranho. O diretor Marthins Machado pediu para experimentar para a personagem e fui aprimorando cada vez mais. A sua movimentação era com as pernas tortas, coluna curvada e expressão facial com várias caretas. Ou seja, utilizei todo o meu corpo, dos pés à cabeça, para transmitir o contrário do que é “belo”.


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Fig. 7: “Arte na Vila”, 2018, Vila Velha.

Fig. 8: “Arte na Vila, 2018, Vila Velha.

O impacto da personagem é o corpo estranho e, no final do espetáculo, quando ela se torna “bonita”, a sua movimentação é totalmente o oposto: a postura ereta, sem os trejeitos antigos. Quando a personagem passa “de feia para bonita”, as únicas coisas que aparentemente


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modifico são: a remoção da maquiagem borrada e a troca de roupa. Mas na verdade é a mudança na postura que dá o contraste entre as duas caracterizações. Em 2019, já trabalhando no “Arte na Vila” como estagiária, fui abordada por uma criança acompanhada da mãe, que me falou dessa personagem. Sua filha se chama Maria Flor e diz ser minha fã, por ter se divertido muito na peça. Diante desse relato, cabe reforçar a forma como o teatro afeta as crianças e esse efeito reverbera na vida delas. Mesmo depois de um tempo.

Corpo-Arte O que é um corpo dilatado afinal? Por que é tão importante para o teatro? Como o próprio nome diz, dilatação significa largo, extenso, aumentado. No livro “A Arte Secreta do Ator”, Eugenio Barba conceitua a dilatação corporal da seguinte forma: “As partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um incremento de movimento, separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço mais amplo ou reduzido.” (BARBA, 1995, p. 55). É essa energia produzida que tende a extravasar sentimentos, expressá-los a ponto de hipnotizar o espectador. Apesar do foco da pesquisa ser a expansão do corpo, isso não quer dizer que a mente não influencia nos movimentos, pois a forma de agir é um reflexo dos pensamentos e o trabalho do ator com o personagem é a união da dilatação corporal e mental. Como detalhei nos personagens que criei, desenvolvia o corpo baseado em suas características internas, diante das criações. Primeiro, penso nas características pessoais e experimento o movimento próprio para a personagem que, só depois de um tempo, consigo definir.

Os exercícios físicos de treinamento permitem desenvolver um novo comportamento, um novo modo de se movimentar, de atuar e reagir: assim se adquire uma habilidade específica. Mas esta habilidade se estagna e se torna unidimensional se não aprofunda, se não consegue chegar ao fundo da pessoa, constituída do seu processo mental, de sua esfera psíquica, seu sistema nervoso. A ponte entre o físico e o mental


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provoca uma ligeira mudança de consciência, que permite vencer a inércia, a monotonia da repetição. (BARBA, 1995, p.59)

Os bons encontros (Spinosa, 2009) proporcionam um estado de alegria. A mente fica mais alerta, tendo maior número de ideias; o corpo fica mais ativo e disposto a fazer coisas. Esse estado auxilia na potência de agir (Spinoza, 2009), pois os indivíduos passam a ter mais possibilidades de afetar e serem afetados, portanto adquirem novas relações com o mundo do qual fazem parte. Em todos os espetáculos descritos acima, havia momentos onde os atores se relacionavam diretamente com o público. Possivelmente esse estímulo ativa emoções alegres, logo a potência de agir é aumentada. (Artaud, 1999) chama de “órgãos” todas as maneiras particulares do nosso corpo ter acesso ao mundo. No entanto, o problema, segundo ele, é que existe um sistema pré estabelecido, fora do corpo, que determina uma hierarquia: certo e errado e outros padrões sobre como devemos agir, comportarmo-nos e a forma como nos movimentamos. Deleuze e Guattari diante dessa premissa elaboram um conceito chamado “corpo sem órgãos”, ou seja, não a organização, não estes padrões que determinam a forma que o corpo deve seguir. Este termo é uma crítica e uma proposição para se tentar destruir a organização corporal diante desses moldes. “O corpo sem órgãos está a caminho desde que se cansou dos órgãos” (DELEUZE & GUARARRI, 2008, p. 10). A dilatação corporal é o contrário do corpo cotidiano; é fazer um gesto, só que de forma grande, o que o torna extracotidiano. Sendo assim, é possível fugir dos padrões impostos no ambiente artístico e caracterizá-lo como corpo-arte. “Pelbart diz que não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados. É necessário experimentar. Aprender a selecionar o que convém e o que não convém ao corpo, o que amplia ou reduz a sua força de existir, selecionar encontros.” (FERLA.A; ÁVILA. M. 2015. P.744).

Conclusão No caminhar da pesquisa, o meu olhar como pesquisadora das minhas próprias experiências com o Teatro para Crianças encontrei, através do dispositivo corporal, uma forma


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de promover os bons encontros, buscando proporcionar sentimentos bons para potencializar as trocas de afeto. Uma vez que educadores busquem tornar acessível à cultura teatral nas escolas, passam a ter mais potência de agir e pensar. Incentivar os encontros alegres, visto que a prática de ir ao teatro é pouco comum na sociedade moderna. Anatol Rosenfeld, filósofo alemão refugiado no Brasil, em 1970, já abordava a falta de público nos espetáculos cênicos e chamava isso de crise do teatro nacional. Seis em cada dez brasileiros nunca assistiram uma peça teatral, segundo levantamento feito pelo Sesc e pela Fundação Perseu Abramo. Na minha trajetória com espetáculos cênicos, notei além da necessidade de disponibilizar acesso gratuito, é tornar o espectador parte do fazer teatral.

Como um livro que só existe quando alguém abre, o teatro não existe sem a presença desse outro com o qual ele dialoga sobre o mundo e sobre si. Sem espectadores interessados nesse debate, o teatro perde conexão com a realidade que se propõe refletir e sem a desse outro, seu discurso se torna ensimesmado, desencontrado, estéril. Não há evolução ou do teatro que se dê sem a efetiva participação dos espectadores. (DESGRANGES, 2003, p.27)

Nota-se no decorrer da minha trajetória com o teatro para crianças, a espontaneidade delas durante o espetáculo, essa potência de agir e pensar reverbera na vida delas. Com a valorização do espectador e forma de fazê-lo parte do movimento artístico, pode gerar um gosto por teatro que fará parte da vida delas. É possível que essas crianças sejam o público do futuro e assim diminuir o número de cadeiras vazias nos teatros.

Referências bibliográficas ARTAUD. A. O artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. BARBA, E. A canoa de papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hunitec, 1994. BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para o ator e o não-ator com vontade de dizer algo através do teatro. 4. ed. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1982. BOAL, A. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013. DELEUZE, G. Espinosa Filosofia prática. São Paulo: Escuta ltda, 2002.


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DESGRANDES, F. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003. BOTELHO, N. Stanislávski e as ações físicas: das partituras corporais até a dramaturdia do ator: a dramaturgia e as complexidades do personagem. Atuar produções, 2013. Disponível em: http://www.atuarproducoes.com.br/jornada2013/includes/artigos/Stanisl%E1vski%20e%20as %20a%E7%F5es%20f%EDsicas/Nayara%20Lopes%20BotelhoIFTO.pdf. Acesso em: 16. out. 2019. FERLA, A; ÁVILA, M. O que pode o corpo? Corpografias de resistência. Scielo, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v21n62/1807-5762-icse-21-62-0731.pdf. Acesso em: 17. out. 2019. NOVIKOFF, C; CAVALCANTI, M. Pensar a potência dos afetos na e para educação. Conjectura: filos. Educ. Caxias do Sul, v. 20, n. 3, p. 88-107, set/dez. 2015. ONOFRE, C. O que a BNCC diz sobre o protagonismo dos alunos?. 2019. Disponível em: <https://blog.dentrodahistoria.com.br/educacao/escola/bncc-e-protagonismo-dos-alunos/> Acesso em: 09 out. 2019. O que significa REW E FF. Terminal de informações, 2018. Disponível em: <https://terminaldeinformacao.com/2018/07/05/significa-rew-ff/>. Acesso: 13 de nov. 2019. SAVARESE, N; BARBA, E. A arte secreta do ator: um dicionário de antropologia teatral. São Paulo-Campinas: Hunitec; unicamp, 1995. VIANNA, K. A dança: São Paulo: Summus, 2005.


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Teatro Sagrado: Ator Devoto Marina Castro de Mello

Algum dia algo tinha que surgir do nada Ao que tudo indica, ao longo da minha vida, ao ser absorvida pelo cotidiano, perdi a capacidade de me admirar com o mundo. Ainda pequena descobri que gostava de ouvir e contar histórias, minhas ou inventadas, para sair da realidade e ser transportada; uma jornada rumo aos limites da existência, uma espécie de magia. Algumas pessoas não chegam a enxerga-la. Instantes antes de entrar em cena, é sempre a mesma sensação: pavor e ansiedade. Sozinha em um mundo preto, tenho vergonha das pessoas que estão em frente ao palco. “E se eu errar? E se eu cair? E se...”. Então eu ouço o primeiro sinal, minha mão está molhada; no segundo sinal, meu coração quase sai pela boca; no terceiro, uma luz surge e me convida a enfrentar o que me apavora. Quando a minha batalha acaba e há aplausos, eu vejo a magia. O meu sacrifico é recompensado pela paz e orgulho. O teatro sempre me proporcionou experiências que influenciaram o modo como eu percebia as coisas ao meu redor e trazia uma sensação inexplicável, uma conexão sobrenatural com as pessoas, o lugar e a história. Mesmo sendo difícil responder o motivo, não significa que não tenha respostas. Hoje, porém, posso desvendar este enigma, ao considerar minha relação com o teatro “sagrada”. Após observar e estudar a obra de Margot Berthold 9, posso perceber que a manifestação teatral ocorre a partir de rituais. Assim, estudar o sagrado tornou-se interessante. O método utilizado nesta pesquisa é conceitual-analítico, que favorece a liberdade de análise, possibilitando percorrer diversas áreas de conhecimento e, consequentemente, não obrigando atribuir uma resposta única e universal a respeito do objeto, já que as possibilidades de análise são inúmeras quando se trata da expressão do sagrado no trabalho do ator. Por sua complexidade, o “Ator Devoto” contemplou, sob aspectos relevantes, áreas diversas do conhecimento, como Artes Cênicas, Psicologia, Antropologia, Filosofia, além de experiências pessoais, como atriz, professora e diretora. Temas como “ator devoto”, “ator

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BERTHOLD, Margot. História do Teatro Mundial. Ed. Perspectiva, São Paulo, 2001.


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santo”, “o sagrado e o profano”, “transe e espiritualidade no fazer teatral”, foram utilizados para exemplificar aspectos práticos e indicativos para o meio acadêmico e artístico.

Teatro e religiosidade: uma aproximação “Quem é você? Como surgiu o universo? De onde vem o mundo? Quem é o ser humano?” Estas são algumas questões que a humanidade sempre buscou compreender. De acordo com Valle (2005), antes de sermos religiosos procuramos um sentido para nós mesmos, e ao deparar-nos com o mistério, humildemente percorremos caminhos espirituais que deem explicações para as demandas através da fé. No livro “Um Sentido para a Vida”, o psiquiatra Viktor Frankl (2010) 10 afirma que, para a sobrevivência do ser, há necessidade de orientarmos nossa vida em uma direção, a fim de alcançarmos uma “coisa”, transcender-nos. O autor também afirma que, ao se ver como um ser no mundo, o homem vislumbra o infinito. Para explicar a origem do universo, fenômenos naturais e a própria existência, o homem criou narrativas de caráter simbólico-imagético. Assim, o mito, que de acordo com a Antropologia é um relato simbólico passado de geração em geração, narra e explica a origem de determinado fenômeno, ser vivo, instituição, costume social. Para Carl Gustav Jung (2011), o mito é a personificação de energias arquetípicas de conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade. O mito não trata apenas de explicações fornecidas pelas diferentes religiões. As pessoas precisam participar da luta do bem contra o mal por meio de cerimônias, danças, sacrifícios e orações. Consequentemente, despertando o modo como o homem estabelece contato com o mysterium tremendum. Para Otto (2007) o tremendum é considerado irracional, ou seja, não pode ser explicado através de conceitos, palavras; ele somente se manifesta através do sentimento e da reação que a pessoa desencadeia na psique. De acordo com Alves (1984) há uma demasiada procura religiosa quando acontece um estado de desorganização, em que indivíduos sentem que perderam a sua identidade e os seus referenciais.

Ver mais em: Na tese “Educação em Viktor Frankl: entre o vazio existencial e o sentido da vida” de Eloisa Marques Miguez. 10


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A religiosidade, é um dos paradigmas da expressão humana presente desde os princípios, abrangendo diversos tipos de manifestações. Uma delas, é o Teatro. Ao explorar “História Mundial do Teatro” (Berthold, 2006), importante fonte para a pesquisa documental, por fornecer informações precisas, imagens e uma visão dos períodos mais representativos da história do teatro, notamos que a homenagem aos deuses "em cujas mãos impiedosas estão o céu e o inferno" (BERTHOLD, 2006, p.104), normalmente, culmina dando à luz à Arte Dramática. No referido livro, deparamo-nos com a descrição da representação mais antiga que se tem conhecimento, escrita em 3200 a. C. Trata-se de um drama mitológico egípcio: a história do deus Osíris, que se tornou humano, sofreu traição, morreu e ressuscitou. Na índia, o livro sagrado da filosofia Hindu nomeado como o “Quinto Veda”, o “Natyasastra”, provém etimologicamente de pelo menos duas outras palavras: “Nata” que é condiz ao substantivo “ator”, e “Nat”, que significa o ato de representar o estado da alma, temperamentos e os sentimentos dos homens na história. A obra citada é uma das mais antigas que aborda instruções sobre a Arte Dramática do Oriente. Sua concepção é explicada por uma lenda: Um dia, o Deus Indra pediu a Brahma que inventasse uma forma de arte visível e audível e que pudesse ser compreendida por homens de qualquer posição social. Então, Brahma considerou o conteúdo dos quatro Vedas, os livros sagrados da sabedoria hindu, e tomou um componente de cada – a palavra falada do Rig Veda, O CANTO DO Sama Veda, o mimo do Yajur Veda e a emoção do Atharva Veda. Todos esses ele combinou num quinto Veda, o Natya Veda, que comunicou ao sábio humano, Bharata. E Baharata, para o bem de toda humanidade, escreveu as regras divinas da arte da dramaturgia no Natyasastra, o manual da dança e do teatro. (BERTHOLD, 2006, p.33)

De acordo com Berthold (2006), na Grécia Antiga, os festivais rurais, chamados “Dionisíacas”, eram realizadas na época da colheita do vinho e na Festa das Flores, em Atenas, para honrar o deus Dionísio, deus do vinho, da encarnação, da embriaguez e do arrebatamento, do espírito selvagem, do contraste, da bem-aventurança e do horror, da fonte da sensualidade e da crueldade, da vida procriadora e da destruição letal, o deus da contradição. Essa dupla natureza do deus foi essencial para estruturar a ação dramática. No decorrer do tempo, os ritos dionisíacos, compostos por sátiros e bacantes em orgias desenfreadas, desenvolveram-se a partir de algumas modificações como: a transferência de


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coros de bodes para o culto, com cantos em homenagem ao herói Adrasto. Téspis resolveu colocar-se no lugar de Dionísio dizendo: “Eu sou Dionísio!”, mostrando ao povo grego que poderiam representar o outro. Assim, ele foi considerado o primeiro ator da história do teatro ocidental. Segundo Eliade (2018, p. 88), o homem “se reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses, os heróis civilizadores ou antepassados míticos.” Observa-se que a Arte Dramática já existia em outras nações, portanto, não podemos afirmar que a Grécia é o berço do Teatro. No entanto, ela teve um papel fundamental para a organização do Teatro Ocidental. Percebemos que o seu agente estruturador é o rito. Ao longo do tempo, os modelos divinos estabelecidos pelos deuses, citados por Eliade como responsáveis por uma ordem universal, foram diluídos na Arte Dramática. O seu centro organizador passou ser o “eu”. Consequentemente, houve a fragmentação da verdade, em pequenas verdades individuais. Assim, o Teatro Ocidental tornou-se profano. Em alguns momentos de sua história, porém, sofreu interversões ou influência de religiões, como, por exemplo, no o Teatro Medieval ou no século XX, com os estudos do diretor Jerzy Grotowski. Durante a Idade Média, entre os séculos V e XV, a Igreja Católica exerce forte controle sobre a produção científica e cultural com sua visão teocêntrica. Assim, passa a articular o teatro com seus ritos e celebrações, ao representar o evangelho e a vida de Cristo. com objetivo salvar as almas de seus fiéis. O drama litúrgico didático tinha como temas principais o Natal, a Paixão ou a Ressurreição de Cristo. Após algum tempo, desenvolveu-se outras formas, como milagres, mistérios e moralidades, até que o teatro se torna independente da igreja, encenando vícios, virtudes e traços da personalidade humana. A partir de então, passa-se a ter como temática os conceitos morais, religiosos e políticos. Pode-se dizer que as raízes medievais dos mistérios, milagres e moralidades se estendem até os dias atuais e estão presentes, por exemplo, na cultura popular nordestina e dramaturgias como “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Vale também ressaltar que encenações profanas de cunho popular, brincadeiras jocosas, arremedilhos 11 e pantomimas alegóricas 12 foram aprimoradas ao lado de encenações religiosas, mas representadas em ocasiões não-relacionadas Imitações cômicas e satíricas. Atores mascarados, por meio de gestos e contorções, quase sem palavras, davam a ideia das personagens e de suas ações, à maneira da palhaçada circense. 11 12


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ao culto religioso, associadas às festas populares. Estas representações tem a finalidade de entreter, criticar e colocar o homem no centro, exibindo o caos e se distanciando de “um mundo compreendido como uma ordem, e mais do que isso, uma ordem bela” (ELIADE,1959, p.30,64), percepção de caráter transcendente prevaleceria.

O ritual para um não crente Grotowski nasceu em Rzeszów, Polônia, em 11 de agosto de 1933 e faleceu em 14 de janeiro de 1999. Foi um diretor de teatro polaco e figura central no Teatro do século XX, principalmente no Teatro Experimental ou de Vanguarda. Para iniciar sua pesquisa, deu continuidade aos estudos sobre as ações físicas de Constantin Stanislavski, que consiste na construção de uma partitura de ações a partir de associações e memórias pessoais inscritas no corpo do próprio ator. De acordo com Stanislavski: Não há ações físicas dissociadas de algum desejo, de algum esforço voltado para alguma coisa, de algum objetivo, sem que se sinta, interiormente, algo que as justifique; não há uma única situação imaginária que não contenha um certo grau de ação ou pensamento; nenhuma ação física deve ser criada sem que se acredite em sua realidade, e, conseqüentemente, sem que haja um senso de autenticidade. Tudo isso atesta a estreita ligação existente entre as ações físicas e todos os chamados "elementos" do estado interior de criação. (STANISLÁVSKY, 1997. p. 2 e 3)

Porém Grotowski acreditava que ações físicas era um meio do ator treinar seus extremos. Não pretendemos ensinar ao ator uma série de habilidades ou um repertório de truques. Nosso método não é dedutivo, não se baseia em uma coleção de habilidades, tudo está concentrado no amadurecimento do ator, que é expresso por uma tensão levada ao extremo, por um completo despojamento, pelo desnudamento do que é de mais íntimo, tudo isso sem o menor terão de egoísmo ou de autossatisfação. O ator faz uma total doação de si mesmo. (GROTOWSKI 1987, p.14).

No desenvolvimento de seu trabalho, o encenador polonês foi além da teoria teatral, abandonando as convenções do teatro tradicional e orientando-se pelas alternativas de investigação do ritual, em busca de experiencias espirituais, como uma opção existencial e filosófica. No Teatro Laboratório, esses exercícios sofrem uma mudança de percepção e passam a ser o gatilho para a elaboração de uma forma pessoal de treinamento que localiza e remove as resistências do ator, resistências estas que o bloqueiam na pesquisa criativa. As


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técnicas teatrais eram usadas nesses encontros apenas para desencadear energias no plano espiritual. O trabalho de Grotowski se torna uma espécie de busca espiritual, uma confrontação entre o homem e a mitologia. Em seus escritos e em sua prática, a figura do “ator santo” (Grotowiski, 2007) é fundamental, assim como caminhos para o ator adquirir, conservar e aperfeiçoar elementos ético-técnicos indispensáveis para sua atividade criativa. Jerzy Grotowski (2007), considerava que o caminho em direção a um teatro vivo poderia surgir com a espontaneidade do teatro original, quando os ritos conceberam sua existência, onde os corifeus, isto é, atores e público, tinham uma reciprocidade peculiar. Assim, ele opta pela eliminação da concepção palco e plateia como lugares separados, para que o ator estimule o espectador a participar da ação. A definição de “ator santo” está relacionada a uma prática teatral oposta à ideia de representação e próxima do ritual. Grotowski acredita na conexão espontânea e desautomatizada entre público e atores. Ao desnudar-se diante do espectador, o ator pratica o ato de autossacrifício. A realização do sacrifício aconteceria a partir do treinamento. As mínimas ações de seu cotidiano seriam renunciadas. Na passagem da inercia para o trabalho de expansão, criar-se-ia uma postura em que questões do ego, vontade e de si mesmo, deveriam ser deixadas de lado. Por essa razão, Grotowski denomina esse artista como santo.

Um ator deve estar sempre pronto para se juntar ao ato criativo no momento exato determinado pelo grupo. Nesse aspecto a sua saúde, a condição física e todos os seus assuntos particulares deixam de ser somente de seu interesse. Um ator criativo de tal qualidade floresce apenas se for nutrido pelo organismo vivo. Por isso, cuidados diários devem preparar nosso corpo para lidar com as mais duras tarefas. Não devemos dormir pouco por motivo de entretenimento pessoal e depois ir trabalhar cansados ou de ressaca. Não devemos ir para o trabalho incapazes de nos concentrar. A regra aqui não é somente a presença obrigatória no ambiente de trabalho, mas a prontidão física para criar. (GROTOWSKI,2011, p. 205)

Ao tratar do ator santo, Grotowski explica: “falo de ‘santidade’ como um não crente.” (GROTOWSKI, 2011, p. 26). Compreendemos as suas proposições estabelecendo relações entre as palavras “santo” e “devoção” a partir do sentido religioso presente em Menezes (2011): o santo não existe isoladamente, mas a partir de seus devotos. Ultrapassa-se, portanto, a tríade “pedir, receber e retribuir” ao estabelecer vínculos que envolvem dimensões mais complexas. Menezes (2011) afirma que se tornar santo pode implicar em um investimento pessoal em uma


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conduta de superação e/ou perseverança perante provocações, ou seja, um conjunto de ações que implicam a dedicação e autoconstrução. Segundo Grotowski, o ator necessita de um teatro-laboratório para adquirir, conservar e aperfeiçoar os elementos ético-técnicos indispensáveis para seu trabalho criativo, a partir de exercícios relacionados com diversas técnicas do corpo, como Hatha-yoga, pantomina, acrobacia, dança; e diferentes esportes como esgrima e outros de origem estritamente teatrais, que despertem no ator o instinto e a escolha espontânea dos instrumentos de transformação, realizando um processo de trabalho interior intenso para a vivência do real. O artista que desempenha esta total doação de si para o ato teatral, por meio de uma autopesquisa, pode ser denominado “ator santo”. Essa transformação da consciência e/ou do ser, causa resistências no decorrer da pesquisa. Por essa razão, é essencial que o ator busque possibilidades para atingir seus objetivos.

(...) o ator se capacita para a artificialidade e a elaboração formal, aprendendo, antes de mais nada, a superar os limites do cotidiano e o naturalismo psicológico, para conseguir, depois, a expressividade física total - a única que pode estar em condições de restituir o ator total. (GROTOWSKI,1988, n.p.)

Percebe-se que o ator deve agir como quem fez votos à causa do ofício teatral. Portando, o teatro se torna sagrado quando alguém atribuir a ele qualidade de santo, ao criar uma relação de devoção, através da qual o ator se entrega ao papel de portador da santidade e a emana.

Projeto filosófico: amor pela experiência Na arte a gente pode fazer tudo, desde que seja com sinceridade (Lulu Santos)

Nas aulas-laboratório na Universidade de Vila Velha, durante a graduação no curso de Artes Cênicas (2016-2020), aprendi que as energias geradas no trabalho do artista são capazes de inspirar ou transformar. Percebo que minha espiritualidade foi fortalecida ao manipular energias no decorrer das vivências. Barba (1994) caracteriza a energia do ator como


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uma qualidade indescritível, na forma de um “como” (não na forma de um “o quê”). Para ele, o ator modifica a sua energia por intermédio de técnicas derivadas de várias tradições do teatro e da dança, usando resistências musculares e oposições corporais, entre outros mecanismos que visam acabar com a estática do corpo. Tendo seguido a trilha do ator-bailarino, alcançamos o ponto onde somos capazes de perceber seu núcleo: 1. na ampliação e ativação das forças que estão agindo no equilíbrio; 2. nas oposições que determinam as dinâmicas dos movimentos; 3. numa operação de redução e substituição, que revela o que é essencial nas ações e afasta o corpo para longe das técnicas cotidianas, criando uma tensão, uma diferença de potencial, através da qual passa a energia. (BARBA, 1995, p. 20)

Burnier (2001), afirma que um outro modo de se referir à energia é defini-la como fluxo que descobre resistências para superá-las, ou como vibração que se propaga pelo ambiente. A energia estaria relacionada à predisposição de gerar trabalho, transpor resistências e romper com a inércia. Para quem não tem afinidade com nenhuma religião, é possível ressignificar a espiritualidade. De acordo com Pessini, Bertanchoni (2006) espiritualidade significa, etimologicamente, “sopro de vida”, “encontrar o seu sentido”. Esta compreensão respalda o pensamento de Frankl (2010) que descreve a espiritualidade como processo de autotranscedência, isto é, capacidade de superar e atingir realidades desconhecidas, ultrapassando seus limites. Ao aprofundar sobre a espiritualidade, Boff (2001) cogita-a capaz de alcançar totalidades e, a partir de visões transcendentais que dão sentido à vida, orientar. Já para Giovanetti (2005), a espiritualidade significa a possibilidade de mergulhar-se em si mesmo. Farris (2005) acrescenta que a “espiritualidade é a construção, ou descoberta de significado de relacionamentos, ou interações entre pessoas e o mundo” (FARRIS,2005, p.165). Deste modo, compreende-se a espiritualidade como um conjunto experiências que modifica o indivíduo e suas interações. E o Teatro, como um lugar de experiências, ou seja, um movimento espiritual, mas não religioso. Um lugar que enfatiza o amor, a emoção, o autoconhecimento e a crença de um poder maior, que transcende a religião. Por isso, utiliza-se as ideias de Grotowski, propondo a palavra “devoção”, derivada do latim devotione (“dedicar-


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se a algo”), para desenvolver a ideia de “ator devoto”. O ator devoto é aquele que nutre e vivência aspectos espirituais ao longo de seu trabalho. A espiritualidade, além de ser um conjunto de crenças, está frequentemente relacionada a religiões tradicionais. Segundo Amattuzzi (1999, 2001), a religião é, também, um campo de experiências e indagações, gerando novas possibilidades. A religião é composta antes de tudo pela perspectiva do indivíduo, unidade essencial para sua própria construção. Ao analisar minhas experiências, decidi explorar a espiritualidade, atribuindo a ela o papel de agente catalisador para um processo de desorganização, acionando possibilidades que constroem sentimentos e conhecimento, modificam pensamentos, movimentam as sensações. Boff diz que:

Por espiritualidade entendo a experiência profunda de si mesmo, capaz de provocar transformações interiores que dão um novo sentido à vida e de alargar ainda mais os caminhos que conduzem ao próprio coração e ao mistério de todas as coisas (BOFF, 2001, p. 17-18).

A religiosidade intrínseca pode ser conceituada como uma compressão do sentido da vida, que envolve concentração e reflexão sobre as experiências. Amattuzzi (1999, 2001) associa o amadurecimento psicológico embasado nos ciclos postulados por Erikson e nos estágios da fé de Fowler (1992). Nesses estágios a fé tem relação com a vivência existencial. O autor fala de uma tonalidade mais subjetiva, em que a fé está vinculada à força espiritual. O primeiro estágio é o da confiança básica em que a fé está ligada a este sentimento.

De dentro para fora Na montagem do espetáculo “Peter Pan” (2017), no 2° Período do curso de Artes Cênicas, com direção da Profa Dra. Rejane Arruda, representei Miguel, um dos meus personagens favoritos. Foi o primeiro com o qual tive uma identificação e uma memória afetiva pelo nome. Peter Pan é um menino de idade e origem desconhecidas que vive na tão sonhada Terra do Nunca, lugar onde não há regras. Há apenas nossa imaginação, pensamentos felizes e


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muita aventura. Ao lado dos meninos perdidos e dos irmãos Darling, Wendy, João e Miguel vive grandes aventuras. No início da montagem, fragmentos do texto de J.M. Barrie foram utilizados como base nas situações de jogo de “quem, onde, e o que” (Spolin, 2010), no intuito de treinar o ator e ampliar seu repertorio, permitindo experiências que, por sua vez, produzem e impulsionam resíduos 13, trazendo verdade à situações vividas em cena, dando densidade para a personagem e conduzindo o público a algo inovador. Os atores modificaram os elementos imaginativos com: a substituição (Hagen, 2007) e monólogo interior (Knébel, 1991). Chubbuck (2018) descreve a substituição, como um meio de fornecer reações físicas e emocionais a partir de pessoas reais ou situações reais, selecionadas de acordo com objetivo da cena. Já o monólogo interior é “de fato um diálogo – palavras e frases que estão passando pela nossa cabeça” (CHUBBUCK, 2018, p. 209), portanto, uma “comunicação silenciosa entre pessoas” (CHUBBUCK, 2018, p. 210-211). O monólogo interior pode ser reduzido à fala interna, que “é a escuta de frases que não estão projetadas na cena. Podemos dizer que é escuta de pensamento” (ARRUDA, 2015, p.182). Com estes procedimentos cria-se um estado de espírito e emoções, e os enquadramentos são transformados. Segundo Arruda (2017) o enquadramento tem a função de oferecer limites para o desenho corporal, plasticidade e efeitos de incidência na relação entre o ator e personagem. Antes do jogo com “quem, onde e o que” aplicava-se o procedimento de “Memorização Através da Escrita”, descrito por François Khan. A memorização através da escrita era empregada para exercitar o texto sem representação. O ator acionava o que reteve do texto juntamente com as circunstâncias de jogo, assim adaptando o material, desenvolvendo a organicidade, e criando ações físicas. De acordo com Khan “podemos receber as ressonâncias do texto em nós mesmos e entender o texto sem pronunciá-lo” (KHAN, 2010, p.149), assim, evitando a fixação de formas e significados, ou seja, a composição da ação vocal. No primeiro jogo do laboratório, o objetivo era esclarecer aos atores a relação de seu personagem tinha com os outros, a partir da interpretação do texto que cada um realizou. O

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Palavra derivada do latim residere que significa “ficar atrás, sobrar”.


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primeiro jogo se baseava na cena em que Miguel se recusava a tomar remédio. Nesta etapa, escrevi o seguinte monólogo: Papai fala para mim que ele é corajoso, mas não é não! Não mesmo! Nadinha corajoso! Nem um pouquinho corajoso! Definitivamente sem coragem! Naná é uma MENINA/CACHORRA é muito corajosa! Deve ser por isso que o papai não gosta dela. Remédio não é bom, nem estou doente... Sou forte! 14

Essa pequena narrativa de pensamentos do meu personagem, auxiliou na minha performance, ao entender os sentimentos e ter possíveis justificativas para a cena seguinte, a ida para a Terra do Nunca. O monólogo interno foi importante para aquecer antes dos jogos, e explorar as possibilidades da sua personagem a partir do que o ator reteve do texto, como: as dinâmicas do corpo, da fala, relação com outros personagens/atores entre outros que foram conduzidos de dentro para fora gerando criações de materiais. Este processo foi fundamental para produzir o ponto de vista de Miguel da história, em que ele era o matador de piratas, menino perdido e encontrado, amigo do grande Peter Pan, bebê da Wendy, e segundo ele “ser bebê não era fácil”. No entanto, ao acrescentar elementos cênicos, como o balanço e espadas, o medo de altura e de machucar atrapalhou minha entrega, ao racionalizar em excesso a vivência, por não ter confiança. “O corpo disponível é aquele que permite; que não se isola do fluxo dos acontecimentos ao redor de si, que se envolve com o meio ambiente e com os estímulos vindos, não só da personagem, mas da relação com o grupo de criação. Corpo disponível é aquele capaz das respostas espontâneas e novas que somente a ausência de preconceito e defesas maiores contra o mundo podem assegurar.” (AZEVEDO, 2002, p.192)

Mesmo assim, Miguel, me proporcionou momentos de Fé intuitiva, que é um dos estágios da fé desenvolvidos por Fowler (1992), ligada à imaginação, às histórias contadas, com a presença do simbolismo. Uma experiência transpessoal Em “Cid”, dramaturgia de Pierre Corneille, o personagem Rodrigo (Cid) declara seu amor, trava seu primeiro duelo, mata o pai da mulher que ama, impede uma invasão nacional,

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MELLO, M. Diário de bordo Fora de Cena. Vila Velha, 2017.


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ganha um julgamento por combater e no decorrer de tudo isso, perde e reconquista o favor de seu rei e da dama de seu coração, assim, exaltando os sentimentos de nobreza. Esse texto foi escolhido para a pesquisa e montagem no 3° período do curso de Artes Cênicas. Por ter uma linguagem complexa, o procedimento proposto pela Profa. Dra. Lara Couto para ajudar na interpretação do texto foi separa-lo em unidades e determinar os objetivos de cada cena. Este procedimento contribuiu para melhorar as suposições sobre aqueles personagens e expandir o universo criativo. Assim, é importante a identificação da essência interior de toda unidade, o objetivo, afim de instigar pensamentos e sentimentos dos personagens. “Outro ponto importante num objetivo é que ele, além de ser crível, deve exercer atração sobre o ator, dar-lhe vontade de executá-lo. Esse magnetismo é um desafio à sua vontade criadora.” (STANISLAVSKI, 2018, p. 158). O objetivo possui o poder de atrair e emocionar o ator, impedindo a atuação falsa. Ao entrar em cena, os atores realizavam imagens paradas de suas ações, para deixar claro as separações das unidades e mudanças de objetivos. Este procedimento servia de aquecimento para uma cena fluida. Em seguida, um novo elemento criador foi inserido: os “Gestos Psicológicos” (GPs) (Chékhov,2010). Antes de tudo, o ator deve confiar em sua intuição para definir qual é o melhor GP para revelar sua personagem. Meu primeiro instinto foi que as personagens de “O Cid” são indivíduos que vivem em conflitos internos e externos, pois a honra e o dever são mais importantes que seus desejos e são submetidos a estar normalmente em situações de stress. Os GPs, são condutores físicos de criação, que servem para “influenciar, instigar, moldar e sintonizar a sua vida interior com seus fins e propósitos artísticos” (Chékhov, 2018, p. 84). Portanto, sintetizam várias situações que a personagem experiência no desenrolar da trama. Ao receber oficialmente o papel de Elvira, escolhi que o ato de reverência, seria meu gesto psicológico. Porém, a professora Lara Couto desenvolveu uma linguagem para a montagem que implicava elementos épicos, deste modo, havia um coro de Elvira’s. Ao vivenciar na prática aspectos de estudos individuais elaborados pelas atrizes que formavam o


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coro das Elvira’s, pude observar como suas ferramentas criativas, no meio coletivo, relacionavam-se e transformavam-se ao serem provocadas por outros materiais. Percebeu-se que o trabalho com o GPs gera segurança e fornece um material imaginativo que ajuda o ator a conhecer e manter um determinado personagem. O procedimento foi aplicado em conjunto com outros: afim de demonstrar o que a Elvira ansiava, criei um monólogo (Knébel, 2002) e partituras corporais foram marcadas para a sua narrativa. Mas foi somente no dia do espetáculo, após reproduzir, sucessivamente e sem intervalo, as falas, o corpo e a personalidade da personagem por um longo período, que alcancei a experiência transpessoal. Segundo o psiquiatra checo Stanislav Grof (1987) esta experiência remove sensação de alienação e cria sentimentos de pertencer; impõe força, otimismo e bem-estar no indivíduo; eleva a autoestima, ao reabilitar os sentidos e expandir a percepção da riqueza, beleza e mistério da existência, transcendendo os limites habituais da personalidade. No entanto, este estado não foi preservado. Isto aconteceu na cena, criada pela atriz Gabriela Júlia, em que o coro deveria cantar uma música, na qual, a Elvira declara sua atração secreta pelo Cid. Quando percebi que minhas colegas não estavam cantando, tive a sensação de “despertar” e perdi a concentração. Este estado já havia ocorrido antes comigo. Quando participava do ensaio do grupo de teatro do Instituto Federal do Espirito Santo (IFES) – Campus Vila Velha, com a professora Camila Vinhas, em 2012. Na sala escura, fria e silenciosa, tínhamos que ficar deitados no chão de olhos fechados e esperar o comando de contrair e relaxar o corpo. Fizemos isso durante um longo período, até a próxima fase, quando a peste nos invadiria dos pés à cabeça. Após isso, a porta foi aberta e recebemos a ordem de sair. Neste momento, tive uma vontade enorme de sair correndo, mas algo que se mantinha consciente não me permitia. Em seguida, voltamos para a sala e “despertamos”. A sensação era de relaxamento e paz (em todos, mesmo tendo experiências diferentes). Foi através do teatro no ano de 2012, após um convite da professora Camila Vinhas para participar do grupo de teatro do Campus Aracruz do Instituto Federal do Espirito Santo, onde estudava Química, que consegui preencher um vazio existencial, ao me reconhecer como


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artista e responsável pela direção do grupo. Recebi o papel mais importante da minha vida: ser professora.

A Árvore Sagrada Ministrando aulas no “Centro de Educação Infantil Gente Miúda”, no Bairro de Itaparica, Vila Velha, tive a oportunidade de reaprender o comportamento investigativo sobre atitudes de personagens, em estórias que podem promover novas experiências e aumentar a capacidade de criação nas crianças. As aulas começavam com uma contação de estória, com temas preestabelecidos pela instituição, como: folclore, diversidade, contos de fada, Natal, alimentação, meio ambiente. Depois de reproduzirem corporalmente e com Jogos Teatrais (Spolin, 2010) a narrativa, as crianças iam brincar na área externa. Era naquele local que davam continuidade as suas experiências da aula de Teatro, a partir da liberdade de expressar pensamentos e criar, vivências de alegria, júbilo e encantamento. Para Winnicott (1990) estas vivências podem ser experiencias sagradas e fazem parte do próprio indivíduo. Isto fica evidente quando a aluna Maria, após algumas aulas que tratam de meio ambiente e diversidade, no momento da gravação de um vídeo sobre identidade, olha para o pé de manga que sempre esteve ali, e fala: “Que arvore linda! Olha tia, tem uma manga!”. Em seguida, volta a me contar curiosidades sobre ela. Esta atitude me mostrou que a criança foi afetada pelas narrativas e vivências, utilizando-as como guia, num processo de coconstrução de seu olhar. Amattuzzi (1999,2001) aponta que acontecimentos cotidianos dentro de outro foco são vistos com uma outra luz, trazendo a experiência do sagrado. Esta reflexão reverbera também o apontamento de Grotowski (2001) que “viver” a narrativa do personagem não é o mais importante, mas, usar o papel como um trampolim um meio de ir além de seus limites, e expor o desconhecido para você e aqueles que estão assistindo. Quando eu trabalhava com um ator, não refletia nem sobre o “se”nem sobre as “circunstâncias dadas”. Existem pretextos ou trampolins que criam o evento espetacular. O ator apela para a própria vida, não procura no campo da “memória emotiva”, nem do “se”. (GROTOWSKI, 2001, p.16)


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Filhos de Dionísio: A preparação A convite da Professora Hiáscara Alves Pereira Jardim, alguns anos depois, tive a oportunidade de ministrar aulas no Campus Vila Velha do Instituto Federal do Espirito Santo, para formar um grupo de teatro. A partir de dinâmicas e Jogos Teatrais, observei que a maioria sofria de timidez, dificuldades para entrar em um processo imagético, insegurança, problemas de relacionamento, indecisão e expressão corporal “engessada”. Com esse diagnóstico, exercícios corporais e vocais pouco funcionaram. De acordo com Stanislavski (2018, p. 137), “O ator, como a criancinha, tem de aprender tudo desde o começo, a olhar, a andar, a falar etc. Nós todos sabemos fazer essas coisas na vida cotidiana. Mas, infelizmente, em nossa grande maioria, fazemo-las mal”. Para estimular a consciência do ser, a responsabilidade e a expressão do que é mais humano, elaborei adaptações que estimulassem o estado de curiosidade, esta que pode estar ancorada na espiritualidade. Diminuindo a resistência e auxiliando o desbloqueio das tensões musculares (limitadoras do movimento), tensões internas, padrões posturais e articulares, para recuperar o prazer de se mover e de criar. Então, com uma adaptação do Jogo de Espelho (Spolin, 2010), a primeira modificação aconteceu. Todos tinham que reproduzir o que eu, mediadora do jogo, produzia.

É essencial transmitir as próprias experiências aos outros, mesmo sob o risco de criar descendentes que, por excessivo respeito, apenas repetirão o que aprenderam. É natural alguém começar repetindo algo que não possui, que nem pertence à sua própria história nem surge de sua própria pesquisa. Esta repetição é o ponto de partida para o ator fazer sua própria viagem. (BARBA, 1995, p.246)

O treinamento baseava-se em aperfeiçoar precisão, postura, concentração, ritmo e respiração, intensificando potencialidades, ajudando o ator a ter domínio corporal e consequentemente, melhorando aspectos como: espontaneidade, atenção, disponibilidade, criatividade, observação, desenvolvimento sensorial. Para Descartes, a alma é constantemente perturbada por sensações que tinham a ver com as necessidades do corpo. O Jogo do Espelho foi também usado na montagem do espetáculo “Dentro da caixa”. A linguagem foi sendo construída a partir do contexto do local onde ocorreria a apresentação,


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com poucos recursos disponíveis; lugar aberto, sem acústica e com muitas pessoas. A solução se apresentou no diálogo com Grotowski e um estilo de encenação econômico no que diz respeito a cenário, acessórios e figurinos. Para preencher este vazio, o trabalho do ator tinha que ser intenso e se aproximar do espectador. O teatro para Grotowski é uma arte carnal. Portanto, o corpo precisa eliminar suas resistências. Leva-se em consideração a ideia do corpo como um elemento psíquico, de modo que tudo deve vir dele. Assim, o ator, antes de reagir com a voz, deve reagir com o corpo. Se ele pensa, deve pensar com o corpo, através de ações. Os gestos do ator não necessitam "ilustrar", mas realizar um "ato de alma" através da sua própria constituição. Ferracini (2006), alega que não é possível eliminar o comportamento cotidiano, idealizando chegar a um estado “puro”, no qual o ator estaria despido de todas as suas máscaras sociais e culturais, usando somente sua essência. Pensando dessa forma, o corpo-em-arte passa a ser uma espécie de expansão e transbordamento do corpo com comportamento cotidiano. De maneira que devemos trabalhar contra a automatização, engessamento e acomodação desse corpo, potencializando-o. Ou seja, o corpo-em-arte como uma espécie de vetor em expansão dele mesmo, para ele mesmo, como potência artística de sua época e de seu contexto sociocultural e econômico. Emprega-se, também, outras referências, como Pina Bausch. Coreógrafa, dançarina, pedagoga de dança e diretora, conhecida por contar histórias enquanto dança, seu nome é associado diretamente à condição de criadora da Dança-Teatro. Representada pela fundação e direção da companhia Wuppertal Tanztheater, desde 1973, na Alemanha, a Dança-teatro consiste no elemento humano e busca ser uma arte que prioriza a sensibilização e reflexão do público, através de uma performance que combina dança, canto, diálogos, personagens, cenários e figurinos. Também o coro grego foi usado como referência. Termo que provém do grego chorós, na Grécia antiga, designa um grupo de dançarinos e cantores usando máscaras, que participavam ativamente das festividades religiosas e representações teatrais. Antes de iniciar a montagem, para obter empatia, contei a relação histórica do deus do teatro, Dionísio, com a arte dramática. Em seguida, denominei-os “Filhos de Dionísio”, com o


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intuito de promover a união do grupo, uma irmandade, ao terem algo em comum, um “pai”. Isto influenciou também na escolha do nome do grupo: “DionIFES”. Na primeira etapa da montagem, realizamos a leitura da dramaturgia “Dentro da Caixa”, escrita por mim 15, e uma discursão sobre os assuntos abordados no texto. Em seguida, decidiu-se que o grupo seria dividido em dois coros, representando os papeis principais e que algumas falas teriam que ser ditas pelo corpo e outras pela voz. Cada integrante do coro deveria criar subtextos para sua personagem, individualmente, de acordo com a sua perspectiva. As coreografias inicias foram desenvolvidas por mim e passadas aos atores através da dinâmica do Espelho, desafiando-os a fazer inconscientemente ações extra cotidianas eliminando obstáculos que surgissem, como a dificuldade de se alongar. Ao longo dos ensaios, a autonomia dos alunos apareceu naturalmente, a partir da formação de um olhar que enquadra a disposição uns dos outros e uma escuta que sofre incidência do material auditivo, como catalizador na dilatação, conduzindo a produção de falas internas, ecos corporais. Consequentemente, a técnica do espelho se rompeu ao estarem cientes das circunstâncias internas e externas, assim, assumindo a função, também, de dirigir.

Essas imagens interiores criarão um estado de espírito que, por sua vez, moverá seus sentimentos. Você sabe que a vida lhe faz tudo isso fora de cena, mas em cena é você, o ator, que tem de preparar as circunstâncias. Isto não é feito em prol do realismo ou do naturalismo puro e simples, mas porque é necessário às nossas próprias naturezas criadoras, ao nosso subconsciente. Para eles precisamos de ter a verdade, ainda que seja apenas a verdade da imaginação, na qual eles podem crer, na qual podem viver. (STANISLAVSKI,1976, p.134)

Depois de todas as coreografias estarem prontas, comecei a realizar o processo de eliminação, pois o excesso pode se tornar impudência e não sacrifício; para que as partituras corporais alcançassem precisão e definição. Também para que os atores conseguissem realizar os movimentos, em sincronia e com os olhos vendados (um dos recursos utilizados na montagem). Sem visão periférica dos parceiros de cena, os atores deveriam treinar a agir em estado de transe. Trata-se da aptidão de se concentrar em um recurso teatral específico, e pode ser alcançado com um mínimo de devoção. 15 Dramaturgia desenvolvida em disciplina “Dramaturgia II”, ministrada por Rejane Arruda no curso de Artes Cênicas no primeiro semestre de 2019.


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A qualidade reside no detalhe. A presença do ator, aquilo que dá qualidade ao seu ato de escutar ou de olhar, é uma coisa misteriosa, mas não indecifrável. Não é algo que esteja inteiramente acima de suas capacidades conscientes e voluntárias. Ele pode descobrir essa presença num certo silêncio em seu íntimo. O que podemos denominar de “teatro sagrado”, o teatro no qual o invisível aparece, tem por base esse silêncio, a partir do qual podem surgir todos os tipos de gestos, conhecidos e desconhecidos. (BROOK, 2002, p. 63)

Utilizou-se o dispositivo de visualização da peça, a partir de da minha narração: A menina sem memória é uma pessoa que sofreu diversos traumas, em consequência disso, ela desenvolve transtorno de múltiplas personalidades 16. Dentro de sua mente a um grande conflito quando estar sem memória: “Pareço existir a muito tempo, mas minha caixa está vazia, significa que tenho que preenchê-la novamente, uma segunda chance de colocar na minha caixa o peso [...]” 17. Quando ela descobre que as meninas que estão a sua volta é um reflexo dela, ela sofre, procura por perdão. O objetivo era produzir uma fé intuitiva (Fowler,1992). Ligada à imaginação e a fé mística literal, a fé intuitiva envolve o pensamento lógico com as categorias de causalidade, tempo-espaço e a possibilidade de se colocar no lugar do outro, de acordo com o professor de teologia James W. Fowler (1992). Esse procedimento, ocasionou um momento único no grupo, visto que foi a primeira vez que se conectaram com os personagens. Estavam em jogo os sentimentos de perda, trauma, morte, desespero e perdão. Ao realizar uma reavaliação das experiências vividas e dos atos cometidos por eles/personagens, analisando seu interior e não culpando outros, assim, fazendo parte de um processo espiritual, segundo Breitbart (2003). No final da ação, alguns alunos estavam chorando, outros visivelmente incomodados ou tristes. A ideia de usar este procedimento de visualização, aconteceu durante a criação das coreografias. Eu visualizava e anotava os movimentos. Em determinado momento, tive uma intuição do que ocorreria com os meus alunos ao vivenciar o que eu estava idealizando e me emocionei. Nossa arte requer que a natureza inteira do ator esteja envolvida, que ele se entregue ao papel, tanto de corpo como de espírito. Deve sentir o desafio à ação, tanto física quanto intelectualmente, porque a imaginação, carecendo de substância ou corpo, é 16 17

Ver mais em: Dissociação e transtornos dissociativos: modelos teóricos de JUNIOR, P. N et al. Este trecho foi retirado de dramaturgia “Dentro da Caixa” de Marina Mello.


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capaz de afetar, por reflexo, a nossa natureza física, fazendo-a agir. Esta faculdade é da maior importância em nossa técnica de emoção. (STANISLAVSKI, 2018, p.103)

Este procedimento tornou-se fundamental para trabalhar imagens e enquadramentos que permitissem que o ator evoluísse em cena com ações físicas, não havendo distinção entre o corpo, mente e emoção. Atingindo um estado de concentração em que nada é falado, mas muito é dito. Foi um processo interessante, que realimentou a memória corporal dos atores e provocou vivências únicas, criando uma estética singular ao explorar o hibridismo de imagens de civilizações religiosas com a dança contemporânea. Nos últimos ensaios, o grupo teve atitudes de intriga e revolta. Em determinados momentos, um dos motivos foi a minha sugestão de retirar uma das músicas da trilha sonora. De imediato eles começaram a levantar questões e se uniram para pensar em uma solução para que a música “Bury a Friend” continuasse. E produziram uma nova cena a partir do aproveitamento da coreografia dada anteriormente. A desobediência dos atores me surpreendeu, pois eu sempre tinha sido um “espelho”, e inesperadamente ele foi rompido. Esta atitude foi uma resposta positiva ao modo como eu estou os direcionando. Ao perceber a mudança, fiz um comentário sobre como eles estavam expandindo suas pequenas partículas, que fazem parte do universo, e vibrando, causando pequenas modificações em seus cotidianos. Então uma aluna disse: “É verdade professora, tem alguns professores reparando na mudança de pessoas aqui do grupo, principalmente o Davi”, e o Davi para se explicar falou: “Eu fiquei íntimo do teatro, por isso eu me tornei uma pessoa extrovertida, mas somente neste lugar me transformo em um ‘diabinho’ por me sentir à vontade.” A trilha sonora e as cores dos figurinos foram os únicos signos externos, que não eram produzidos pelos próprios atores. Estes elementos são considerados suplementares por Grotowski (1971), pois o teatro pode ser definido como a relação entre o ator e espectador. Realizamos um ensaio geral aberto ao público. Estavam presentes todos os grupos participantes do “Festival de Arte e Cultura do IFES do Campus Vila Velha”. Alguns atores entraram em estado de ansiedade e medo, choraram, lesionaram-se ou tiveram crises de riso ou estresse. Ao me deparar com essa situação, para acalmá-os, utilizei técnicas de respiração. Assim, conseguiram entrar em cena, mesmo com muitas resistências visíveis em suas ações.


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Depois de passar o pânico, pediram-me um ensaio extra, para se estabilizar e corrigir os erros. Também utilizamos uma ferramenta descrita no livro “O Poder do Ator” de Ivana Chubbuck: para criar um medo orgânico a partir de uma questão pessoal (lista de medos), os atores pensam “e se eu morrer hoje...”; questões que ele nunca poderá resolver, cuidar ou realizar. Acredito que essa reação aconteceu porque foi a primeira experiência do “DionIFES” com espectadores que declaram estar ali para ver a montagem, provocando diversas modificações, não só nos atores, mas nos alunos do instituto. O entusiasmo deles com os ensaios abertos promoveu a popularidade da peça antes mesmo da estreia, e a curiosidade sobre o que estamos querendo contar. No dia 31 de agosto de 2019, estreamos “Dentro da Caixa”, um momento especial para o grupo e para mim, autora da dramaturgia e direção. Foi um encontro especial, com forte conexão entre os atores e público, muita emoção e aplausos calorosos e prolongados. Minha aluna/atriz Erika Evellyn, de 15 anos, deu o seguinte depoimento: Não acho que dá para colocar em palavras, exatamente a sensação de se apresentar! A poucos minutos de se apresentar você passa na sua cabeça tudo que pode dar errado, você não lembra de nada do que tem que fazer! Suas falas somem, tudo é um caos e desordem. Mas quando você entra em cena, é como se você entrasse em outra dimensão! Seu corpo sabe exatamente o que fazer! E como! Tudo sai naturalmente. E quando a peça acaba, no ato final você desaba, é felicidade, alívio, orgulho o mix de emoções volta. E aí você olha para o lado e vê seus colegas de cena e vê nos olhos deles o quão orgulhosos eles estão e os aplausos do público. É tudo uma onda de adrenalina inexplicável! Só quem faz entende. E uma vez que sente essa emoção. Não troca por nada. 18

Outra integrante do grupo, Ashley disse: “Parecia que eu estava em uma montanha russa de emoções. Ficou lindo”. Para homenagear meus alunos e fazer referência sobre discurso que a montagem trás, combinei com a banda de alunos do IFES para cantarem no agradecimento “Ninguém me Cala”, uma música que diz que o corpo está gritando e que nada mais vai silenciar mesmo com a opressão e intolerância. O público ao participar da obra, ao deixar sua opinião ou interesse agirem, quando está assistindo, trazendo consigo um universo de possibilidades. Assim com uma linguagem metafórica, houve diversas versões para esta montagem. 18

Depoimento concedido via rede social WhatsApp, no dia 10 de setembro de 2019.


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Os espectadores compreenderam, consciente ou inconscientemente, que tal ato foi um convite que lhes fizemos, para que experimentassem a verdade sobre si mesmos; rasgando as máscaras atrás das quais se escondem diariamente, sacrificando-se. Um exemplo, é o depoimento do senhor Carlos Alberto Mendonça, de 78 anos, que veio me agradecer emocionado e disse:

O Brasil que só se mostra mazelas e tristezas, encontrar um grupo de crianças e uma professora dedicada, que apresenta um enredo muito bonito e muito consistente. É uma honra, vamos pensar em um bom Brasil e não em um mal Brasil. Parabéns a professora. 19

Também houve aumento no interesse dos estudantes dos IFES de entrar no grupo depois da apresentação. Viu-se uma linguagem diferente no fazer teatral pouco conhecida hoje em dia, em que o texto passa a ter menos importância e a experiência é valorizada.

Nascer, morrer e renascer: um ciclo ritualístico de passagem para o ator devoto O desenvolvimento da pesquisa possibilitou uma análise de como o sagrado pode afetar o trabalho do ator e sua relação com espectador. Ao direcionar os recursos e técnicas dos atores durante experiências teatrais para um plano emocional-intuitivo, há a possibilidade que o sagrado se revele. Eliade (2018, p.17) identifica o sagrado como algo “de ordem diferente” em que esta realidade não pertence ao nosso mundo “natural”. O que torna um ponto fascinante ou sagrado não é a sua característica intrínseca, e sim como é visto pela pessoa, quando ela suspende a sua forma habitual de fazer suas ações, coloca entre parênteses o princípio da realidade. Segundo Alves (1984) a religião é imaginação, é a possibilidade de ver as coisas de modo diferente, com intenso conteúdo emocional, muito difícil de ser verbalizada, como a arte. Deste modo, considerar algo sagrado é uma condição subjetiva. Kant (2015) pensava que o

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Depoimento concedido no dia 31 de agosto de 2019 após a apresentação da peça “Dentro da Caixa” no Festival Arte e Cultura do Instituto Federal do Espirito Santo - campus Vila Velha.


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espaço que não era preenchido pela razão e nem experiencia, o vácuo, era completado pela Fé. Consequentemente, fé natural faz investir, ter vontade de lutar e vencer os obstáculos, deste modo, acelerando o processo de entrega, tanto do ator quanto do espectador, causando diversos efeitos. Além disso, percebe-se que, a cada laboratório, os atores se desempenham de formas diferentes, por existirem condições diferentes que determinam nossa concepção de mundo, de acordo com as impressões dos sentidos que modificam os indivíduos a cada momento. Um eu, e a personalidade não é imutável, ou seja, os atores sempre estarão em transformação ao assumir a criação de um “mundo” que escolheu habitar. Reaprender movimentos, a plasticidade do corpo, gesticulação, construção de máscaras, sempre será necessário. Os ritos de passagem religiosos, como nascimento, casamento e morte, tratam de uma iniciação para assumir sua nova personalidade. Segundo Eliade (2018), não é apenas um homem “recém-nascido” ou “ressuscitado”, é um homem que sabe. Eu percebi muitas semelhanças com a pesquisa sobre ator devoto. O corpo do ator é a réplica de um altar védico; apresenta uma “abertura” possibilitando a passagem pra outro mundo, ao longo de uma série de ritos de passagem e iniciações sucessivas, despertando a consciência suprema, a partir do que Eliade (2018) chama de casa-corpo-cosmos. A carreira do ator devoto é estar disposto a “viver várias vidas” a cada trabalho, com base em seu corpo. O diretor Brook (2002) diz que a vida inventada nos palcos é mais compreensível e intensa que a realidade. Assim, quando uma centelha de vida surge, cria um vínculo com o público, com o interior do ator e seus companheiros de cena. Deste modo, o teatro é sobre a vida. O sucesso do trabalho consiste em não ter uma técnica permanentemente "fechada", porque a cada etapa de seu aperfeiçoamento, cada obstáculo, cada excesso, cada ruptura de resistências, ele encontrará novos problemas técnicos. Marx (1998) dizia que quando o homem trabalha, ele interfere no seu meio e deixa as suas marcas, porém, nesse processo, o meio também interfere na essência do homem e deixa marcas em sua consciência. Convém a nós, artistas, explorar o que nossa existência, nosso organismo, nossa experiência pessoal, tem para nos ensinar. Por isso, Novalis (1992) afirma que o homem traz um universo dentro se si e que a melhor forma de vivenciar é percorrer “o caminho do mistério que aponta para dentro”. De acordo com Peter Brook:


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A verdadeira forma não é como uma construção de um edifício, em que cada ação é um avanço lógico em relação á ação interior. Pelo o contrário, o verdadeiro processo de construção envolve simultaneamente uma espécie de demolição, que implica a aceitação do medo. Toda demolição cria um espaço perigoso, no qual há menos suportes e menos apoios. (BROOK, 2002, p.20)

Logo, conclui-se não ser possível a elaboração de um manual de dispositivos que podem ajudar na construção do ator devoto, pois a pesquisa apresentou diversas variáveis: dramaturgia, elenco, direção, público, figurinos, cenário, signos, disponibilidade, entre outros, que podem ser elementos restritivos ou expansivos, de acordo com o perfil do ator. Por isso, é importante que um diagnóstico seja feito, para depois elaborar um plano de intervenção e criação, com objetivo de desenvolver o sentimento de pura crença, a fé, alcançando uma convicção plena, para que a experiência afete o indivíduo, tornando-a sagrada. Portanto, percebe-se que ser ator não se trata apenas de uma profissão, é algo mais profundo. Nesse contexto, o trabalho mostra como o estudo do tema pode ser aplicado na área das Artes Cênicas, afim de valorizar elementos e criar uma identificação do sagrado, com ênfase no seu potencial de inspirar, concentrar, motivar e melhorar a presença do ator. Ao se identificar características e se analisar os conceitos estabelecidos até o momento sobre o sagrado e o ator devoto, poderá ocorrer um incentivo, para que outros alunos explorarem e apliquem a estética que o tema propõe, assim como os demais, ligados à cultura e comportamento humano.

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“Registros” na atuação para cinema: Um exercício de espontaneidade versus intencionalidade

Paula Santos Calasans

A crônica de uma menina e sua primeira paixão – o cinema Brincar. Correr. Brincar. Esses são as atividades mais comuns na vida de muitas crianças. Mas o modo como cada uma toma parte nessas atividades é diferente, é marcado e modificado por características pessoais. Minhas características? Gostar de diversidade – ficar muito tempo em uma mesma atividade? Não, obrigada. E a ansiedade – uma atividade que leva dias para terminar? Não, dispenso. Enfim, sempre me interessei por muitas coisas ao mesmo tempo, e nunca tive paciência para terminar nenhuma. E foram essas exatas características que me apresentaram ao meu primeiro amor: o cinema. Com ele, eu conseguiria descobrir várias histórias diferentes - dos mais diversos personagens e lugares -, e o que é melhor ainda, eu passaria por seus começos, meios e fins em um período de, em média, uma hora e meia! Seria isso mágica? Naquela época, parecia que sim. Mas a mágica não dura para sempre, há sempre o momento em que o truque é revelado. E quando fui descobrindo-o a medida que crescia, eu me apaixonava mais ainda por aquele pequeno espaço no tempo em que o mundo a minha volta deixava de existir e eu era transportada para um universo paralelo. Universo esse, que conseguia extrair emoções das pessoas mais céticas com uma música bem colocada; que conseguia me fazer odiar ou amar um personagem que nem sequer existe com uma boa atuação; ou então criar novas realidades a partir do zero, só com cenários, objetos e uma câmera bem posicionada. Como não amar o cinema? Diferente de muitos primeiros amores – passageiros -, o meu só foi fortalecendo com o tempo. O suficiente, ao menos, para eu entrar em uma graduação de Artes Cênicas. E ao aprender, praticar e refletir sobre os mecanismos por traz desse mundo que eu ainda considero mágico, fui descobrindo mais e mais sobre teorias, técnicas, práticas e, no geral, todo o trabalho por trás de um único filme, de um único personagem.


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O nascimento de outro Método? Existe o método mágico que levará todo ator para seu auge? Eu espero que não, porque se existe o campo da atuação vai estar zerado. Não haverá mais teorias, pesquisas, descobertas, tentativas... Ficaremos estagnados, e como disse Lee Strasberg, “a representação tem uma história de lutas, progresso e desenvolvimento.” 20 Então todos os métodos criados são falsos? Também não... Cada método é verdadeiro para quem acredita. O ponto que devemos entender é que não há uma verdade universal, há verdades. Em “Método ou Loucura” de Robert Lewis (1982), há um capítulo intitulado “Autenticidade da Interpretação”, e ele começa com a questão “O que é a verdade?”, para a qual será dito mais a frente: “O primeiro obstáculo deste assunto é o de superar a dificuldade de definir a palavra verdade. As mesmas palavras, em arte, significam coisas diferentes para pessoas diferentes.” (LEWIS, 1982, p.88). Para Stanislavski o relaxamento foi seu ponto de partida para seu Sistema (Strasberg, 1990); para Meyerhold, das regras da mecânica e da matemática surgiu sua Biomecânica (Abensour, 2011); e para Strasberg, a “memória emocional é a origem de criação de qualquer trabalho de arte” (STRASBERG, 1990, p.15), o que guiou seu Método. Cada um desses são válidos e verdadeiros dentro de suas próprias propostas. Todos eles marcaram a história das artes performáticas em diferentes maneiras, pois cada um teve uma matriz diferente, dando origem a diferentes linguagens. Mas há fatores em comum que os unem também: todos os seus desenvolvimentos passaram pelo Método Científico 21, a teoria e a prática são inseparáveis. E porque o campo artístico é infinito em suas possibilidades e seus participantes se recusam a estagnar novos olhares trazem novas perguntas, que podem levar a novas pesquisas, práticas, teorias... E foi assim que os “registros” (Arruda, 2019) surgiram. Rejane Arruda professora, pesquisadora, atriz e diretora - detectou e catalogou “registros” nas atuações

Excerto do texto de Strasberg para a Enciclopédia Britânica, retirado do livro Um Sonho de Uma Paixão – o desenvolvimento do método, de Lee Strasberg, 1990. 21 O método científico engloba algumas etapas, tais como a observação, a formulação de uma hipótese, a experimentação, a interpretação dos resultados e, finalmente, a conclusão. 20


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cinematográficas, teorizou-os e os colocou em prática na disciplina de “Atuação para Cinema” do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha. Como uma pesquisa ainda em desenvolvimento, ainda há bastante a ser investigado sobre as suas possibilidades, e sendo a atuação para cinema uma paixão pessoal, considerei um objeto de estudo ideal para me aprofundar. Minha inquietação começou após os exercícios práticos ministrados nas aulas que participei. Quais as diferenças de uma atuação espontânea e uma planejada com o uso dos registros? Há alguma diferença? E se sim, quais são? Como o processo psicológico e físico do ator muda de um caso para o outro? E quais as diferenças no resultado? Observando os exercícios sendo realizados por mim e por meus colegas, fui me interessando mais e mais sobre suas dinâmicas, seria possível estarmos no meio da criação de um novo método? O melhor jeito de desenvolver um laboratório prático para uma investigação científica foi criando um Projeto de Extensão na universidade, no qual filmamos alunos do próprio curso de Artes Cênicas (voluntários) com cenas curtas 22. Uma mesma cena foi regravada em média três vezes com diferentes comandos: sem nenhum registro em mente; com um registro em mente (o mesmo para todos os atores); e com os atores em registros diferentes. Após cada filmagem, sentamos para conversar com os atores e refletir sobre como se sentiram na cena, o que perceberam de diferente, o que preferiram, o que acharam que o comando causou... Enfim, após várias gravações foi possível perceber padrões sobre os registros e o que eles causam na atuação e, assim, teorizar um pouco sobre eles. Relatarei aqui o processo.

Apresentando os Registros de Rejane Arruda 1. Naturalismo Quando falamos em “naturalismo”, fundamentado na “mimese da realidade”, enquanto registro de atuação cinematográfica, este seria alcançado a partir de uma “dilatação da

22 As cenas gravadas durante o Projeto de Extensão estão disponíveis para visualização no link <http://actress-to-be.blogspot.com/>.


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cotidianidade” – através do corpo, fala e imagem do ator. (Arruda, 2019). Para alcançar esse objetivo, o ator deve realizar múltiplas ações ao mesmo tempo, como fazemos em nosso dia a dia – andamos enquanto estamos conversando, checando o celular e tirando o cabelo do rosto... -, e também fugir da dramaticidade. Na realidade, nós não demostramos cada emoção ao conversarmos com os outros. E ao analisarmos um filme naturalista, parece que os atores estão “esvaziados”, causando um estranhamento no espectador. Podemos notar claramente um filme naturalista em “The Edukators” (2004), de Hans Weingartner. Os personagens agem em multitarefas – lavando roupa, fumando, dirigindo, jogando cartas... O filme é uma crítica social que se desenrola através de cenas preenchidas com longas conversas entre seus personagens, as “divisões de foco” (Arruda, 2019) são uma deliberada escolha nesse caso, para que os atores não entreguem os longos diálogos de forma monótona, visivelmente ensaiada. O naturalismo, nesse caso, vem através dessas tarefas paralelas, que distraem o ator, fazendo com que suas ações de falar o texto se tornem mais reais e fluidas. Isso acontece porque: A divisão de foco com atividades físicas, pequenas, simples e cotidianas, realizadas “como que sem querer”, ou seja, automaticamente: uma espécie de distração, que oferece oposição à linha de ação contínua da ação dramática. Ações como mexer em uma bijuteria, bater com os dedos na prateleira, brincar com uma caneta, ajeitar a bolsa, mascar chiclete, fumar, beber, comer, “atrapalham” a linha de ação contínua; freiam, oferecem resistência, fazem perder um tempo a mais. Assim, o ator oscila entre esta atividade e a ação circunscrita pela relação com o outro (dramática). Eventualmente as duas linhas (a de atividades e a de ações) se cruzam e uma atividade ganha o estatuto de ação. (ARRUDA, 2019, p.140)


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Figura 1. Imagens do filme “The Edukators”, de Hans Weingartner (2004).

2. Sujeira Uma “atuação suja” pode ser vista como uma contradição à máxima de que no cinema “menos é mais”, como coloca Arruda (2019). Para alcançar tal objetivo, o ator cria movimentos bruscos e imprecisos, falas sobrepostas e o descaso com seu enquadramento na câmera. Isso causa um efeito de voyeurismo do espectador, que não sabe para onde olhar em meio a tanta ação ocorrendo, dando a sensação de estar assistindo a um documentário. Podemos notar a diferença ao observarmos os filmes que geralmente tem uma ação em foco e ações ocorrendo no background para preencher a cena, como um casal conversando em uma lanchonete e figurantes - funcionários e outros clientes - criando a ambiência, mas claramente sem relevância na cena, para capturar o olhar do espectador. Em contrapartida, um filme ou uma cena no registro da “sujeira” não direciona o espectador para uma ação principal, o que faz com que tudo que esteja acontecendo fique em foco e puxe a atenção do público, criando um clima tumultuado, “sujo”.

Figura 2.: Imagens do filme “Entre os Muros da Escola”, de Laurent Cantet (2008).


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Porém, alerta Arruda, o filme é uma ficção, foram utilizadas estratégias para que esse efeito tenha sido alcançado. Um bom exemplo seria o filme “Entre os Muros da Escola” (2008), de Laurent Cantet, que transmite a realidade do caos de uma sala de aula, com não atores como estratégia para alcançar o registro sujo mais facilmente. Isso porque um ator com experiência tem a tendência de, automaticamente, limpar e definir suas falas e movimentos, esperar uma câmera enquadrada, etc.

Levamos os atores a realizarem improvisações com o registro Sujeira, como norte para a construção corporal e verbal. Uma fala por cima da outra, a explosão emocional, o deixar‐se levar pelo conflito, o gesto sujo e grande, a divisão de foco com os objetos, com o próprio corpo, com o ambiente; o enlaçamento na ação para que os impulsos (das falas e das ações) aconteçam. (ARRUDA, 2019, p. 144)

3. Imobilidade Esse registro se subdivide em três: “emoção com contenção”, “inumano” e “neutralidade”.

3.1. Emoção com Contenção Talvez esse seja o registro mais fácil de entender, mas o mais complexo de se alcançar. Isso porque exige um trabalho de preparo psicológico e concentração para “separar a mente do corpo” – que vão estar em estados opostos. Aqui, o ator está com uma grande emoção interna, enquanto se esforça para conte-la externamente. O importante é dar alguma dica para o espectador da sua emoção interna, enquanto, ao mesmo tempo, esconde-la. Um personagem parado, mas tremendo de raiva, por exemplo – ele está parado, mas sua raiva interior está “vazando” através da tremedeira; ou uma lágrima, ou lágrimas, escorrendo em um rosto neutro, seria outro exemplo. Uma cena exemplar de emoção com contenção pode ser vista na Margot Robbie em “Eu, Tônia” (2017), de Craig Gillespie. Enquanto ela se maquia no espelho e, apesar de visivelmente querer chorar, ela se força a segurar o choro e sorrir, em uma tentativa de conter seu sentimento verdadeiro, até que a cena chega a seu ápice. Quando lhe escapa uma lágrima, ela sorri.


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Tomamos a “emoção com contenção” como terceira modalidade da imobilidade. O termo faz referência à ação de tentar conter a emoção. Trata-se de um registro bastante comum: o ator tenta segurar a emoção mantendo o rosto imóvel enquanto esta escapa. (ARRUDA, 2019, p. 144)

Figura 3. Imagens do filme “Eu, Tônia”, de Craig Gillespie (2017).

3.2. Inumano

Nesse registro, o ator está em um estado “não humano”. Para isso, será necessário desconstruir toda a sua humanidade – desde o jeito de se mover, de falar, de reagir, pensar, olhar... – para que se enquadre no novo personagem, como um robô ou um boneco, por exemplo. Como a humanidade já é intrínseca a nós, o trabalho de repressão a estímulos e reações naturais, como o levantar e o franzir de uma sobrancelha, alteração da respiração ao correr, seguir com o olhar os movimentos a sua frente etc., vai ser testado constantemente. Muitas vezes este registro torna o rosto do ator uma máscara pétrea, posta em personagens psicopatas ou ciborgues. Acreditamos que existam personagens que se coadulam mais facilmente ao registro da imobilidade. No entanto, é possível perfeitamente imprimi-la em personagens comuns, como borda do naturalismo, rasgando-o e excedendo-o. (ARRUDA, 2019, p. 143)


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Figura 4. Imagens do filme “Ex Machina”, de Alex Garland “Ex Machina” (2014), de Alex Garland.

Uma clara atuação nesse determinado registro é da Alicia Vikander como uma robô em “Ex Machina” (2014), de Alex Garland. Seu rosto, como podemos observar nas imagens abaixo, durante todo o filme permanece o mesmo nas diferentes situações. Sua postura, movimentos corporais precisos e fala sem inflexões na voz também compõem a atuação de um ser robótico.

3.3. Neutralidade A neutralidade é alcançada a partir de uma “dormência” interna e externa. O rosto permanece sem expressão, juntamente com o olhar – caso os olhos denunciem algum sentimento, caímos no registro de emoção com contenção. Associo a neutralidade com uma pessoa em eterno estado de “Poker Face” 23.

23 Expressão neutra, comumente usada no jogo de cartas Poker, para que não dê nenhuma pista de suas cartas e estratégia através da expressão aos seus adversários. A expressão de popularizou a partir de 2008 com a música de nome “Poker Face” interpretada pela Lady Gaga.


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Figura 5. Imagens do filme “O Garoto da Bicicleta”, dos Irmãos Dardenne (2011).

Um filme paradigmático é “O Garoto da Bicicleta” (Irmãos Dardenne, 2011). Tanto o garoto (Thomas Catoul) quanto a moça (Cécile de France) mantém o rosto imóvel enquanto a intensidade dos seus afetos é perceptível. O rosto imóvel não denuncia um “expressar” para o espectador. A expressão se dá pelas ações dramáticas e não pelo rosto. Preservando uma expressão neutra no rosto, sem “expressar” o que estão sentindo, os atores colocam o espectador em investigação. (ARRUDA, 2019, p. 143)

O protagonista passa por momentos de fortes emoções, tanto de tristeza quando de felicidade, e ver essas ações se desenrolarem para uma criança que mantém o rosto neutro, cria uma sensação de incomodo e frustração no espectador. O registro da neutralidade é muito mais utilizado em cenas-chave, ao invés de ser mantida por um personagem por um filme inteiro, como no caso de “O Garoto da Bicicleta”. Cenas que se enquadram em um momento dramático de um filme, como a Keira Knightley em “Orgulho e Preconceito” (2005), de Joe Wright. Após o ápice do filme, no qual os dois protagonistas discutem após uma declaração de amor do Mr. Darcy, a personagem da Elizabeth Bennet passa mais de um minuto com a expressão neutra, olhando-se no espelho, aparentemente por horas, como podemos ver pelo anoitecer gradual da cena. Nesse caso, a neutralidade foi usada para criar um contraste de uma cena acalorada – a discussão -, para sua


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queda, na qual a personagem parece estar em estado de choque e reflexão, que é mostrado através da neutralidade.

Figura 7. Imagens do filme “Orgulho e Preconceito”, de Joe Wright (2005).

4. Excesso O “excesso” pode ser manifestado em qualquer ação, mas não vamos confundir uma única ação com excesso, apenas pela ação “ser algo mais pesado”. Por exemplo, um soco, por mais forte e violento que tenha sido, não se enquadra no registro. Para que isso acontecesse, seria necessário uma sequência de socos, ou seja, a ação de socar em excesso. Uma cena de riso também pode se enquadrar em excesso, desde que o personagem ria descontroladamente por um bom tempo, para que seja um excesso da ação, como o Joaquin Phoenix em “Coringa” (2019), de Todd Phillips, que chega a rir por um minuto inteiro em determinada cena.

O Excesso é a expressão de uma temporária perda de controle. Se estamos trabalhando a dor, é dor demais; se choro, é choro demais; se riso, é desatar a gargalhar sem controle. A intensidade tem a ver também com duração: este extravasamento dura, dura mais e mais. O olhar desacredita no que vê tamanha força de extravasamento, intensidade, tamanho descontrole. O excesso desafia os limites, alarga-os. É sempre mais e mais; é descontrolado, descabido, fora do lugar, insuportável de se olhar. (ARRUDA, 2019, p. 149)


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Figura 8. Imagens do filme “Coringa”, de Todd Phillips (2019)

5. Performatividade

A Performatividade, entendemos aqui, como a ruptura com a realidade diegética proposta na cena, dando lugar a uma performance: Os shows, de dança ou canto, que irrompem em um espaço institucionalizado pela diegese (como teatros ou bares) ou, ainda, no próprio cotidiano (onde, de repente, o ator começa a dançar ao invés de agir, cantar ao invés de falar), aparecem como atos performativos pelo mesmo motivo: o performar do ator (que se impõe como performer) extrapola o universo diegético. (ARRUDA, 2019, p.146)

Os filmes musicais são o exemplo mais fácil de observar o registro, como o “Amor, Sublime Amor” (1961), de Jerome Robbins e Robert Wise. A história é cheia de momentos onde uma conversa entre os amantes se torna uma música ou uma briga entre gangues se torna um número musical coreografado.


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Figura 10. Imagens de “Amor, Sublime Amor”, de Jerome Robbins e Robert Wise (1961).

6. Teatralidade A teatralidade, assim como a neutralidade, não é um conceito novo, ambos já discutidos no âmbito da atuação cinematográfica. Inclusive, Zurbach, em 2017, discutiu sobre a terminologia em sua dissertação de mestrado, que muito nos serve como definição:

Estamos a falar de um tipo de representação que acontece no teatro, onde os movimentos corporais são mais amplos e a voz é mais projetada. O que vemos então é um tipo de representação destinada a um espaço específico sendo testado em outras esferas, no caso o cinema. [...] A teatralidade simboliza neste aspecto uma representação exagerada para o cinema. (ZURBACH, 2017, p. 20).

Apesar de ser uma atuação mal vista no cinema, sendo até chamado de “teatralidade ameaçadora” por Nacache (2005), que mencionou o hábito de Robert Bresson trabalhar com atores não profissionais para evitar tal tipo de atuação; podemos identificar tipos de personagens que podem, e muito, se beneficiar desse registro. Refiro-me aqui aos personagens tipificados/generalizados, como um bêbado por exemplo. Podemos citar o Paulo Gustavo em sua personagem em “Minha Mãe é uma Peça” (2013), no qual sua atuação nos dá a impressão que ele generalizou todas as mães brasileiras em uma só. Outro exemplo, mais icônico ainda,


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Johnny Depp como Capitão Jack Sparrow (Piratas do Caribe, de Gore Verbinski, Joachim Ronning, Espen Sandberg, Rob Marshall, 2003 – 2017) e Willy Wonka (A Fantástica Fábrica de Chocolate, de Tim Burton, 2005). Nos três exemplos, podemos perceber atuações com gestos, falas e ações exageradas e, até mesmo, teatrais. “A Teatralidade é a explicitação do desenho do corpo ou da voz, a valorização destas instâncias. [...] A teatralidade evidencia o contexto da representação, portanto.” (ARRUDA, 2019, p. 149).

Figura 11. Imagens da franquia “Piratas do Caribe”, de Gore Verbinski, Joachim Ronning, Espen Sandberg, Rob Marshall (2003 – 2017)

Desvendando os Registros

Dificilmente um ator permanecerá em um mesmo registro por um filme inteiro, apesar de alguns exemplos mencionados acima serem assim. Muito mais lhes servirá para enriquecer sua atuação achar o registro que melhor condiz com certa cena e, ainda assim, muitas vezes, não será o suficiente. Partimos, então, para o hibridismo de registros, no qual podemos


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identificar mais de um registro sendo usado por um único personagem em um mesmo momento. Outro aspecto importante é que os registros podem ser usados de forma coletiva – todos os atores na mesma cena com um único registro -, mas é muito mais ocorrente identificarmos cada ator em um registro diferente. Além de dar maior diversidade para a cena, o trabalho de concentração de um ator deverá redobrar, para que não se deixe influenciar pelos registros a sua volta. Mas todas essas questões devem ser exercitadas após um domínio de cada registro individual, para que, assim, o ator consiga brincar com eles de modo intencional e seguro. E são essas questões que me propulsionaram a investigar mais a fundo esse exercício de atuação como mais uma possibilidade dentre os métodos já existentes. Qual a diferença entre uma atuação espontânea, com o ator sem fazer uso consciente dos registros, e outra com o uso intencional dos mesmos? Qual a diferença de uma mesma cena em registros diferentes? Como se dá o processo interno do ator dentro dos registros? Qual a relação que um registro pode ter com outro em diferentes atores em uma mesma cena? Para respondê-las, relatarei aqui o processo e as descobertas feitas no projeto de extensão - Registros na Atuação para Cinema – espontaneidade vs intencionalidade - que criei para servir como um laboratório prático para explorar os diferentes modos de se usar os registros e seus consequentes efeitos.

Em busca de respostas Primeiro caso: No primeiro momento, eu e meu parceiro no projeto, Everton Cuzzuol, iniciamos as gravações a partir de cenas improvisadas, propostas pelos participantes. A mesma cena improvisada foi gravada três vezes: sem nenhum registro, com um mesmo registro nas atrizes e com cada uma em um registro diferente. Antes e depois de cada gravação nos sentamos para conversar com as atrizes, Ana Paula Castro e Bárbara Gomes. Um fato interessante de relatar é que, ao perguntar a elas sobre como se dá seus processo de preparação antes de uma cena, notamos que cada uma tem preferencias opostas. A Ana Paula relata que prefere o ato de escrever um monólogo interior (Knébel, 2005), do qual advirá


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uma curta fala interna (Kusnet, 1992), que por sua vez será usada durante a cena, nas pausas do seu diálogo. Já a Bárbara disse que a escrita não funciona para ela, pois “fica mais no papel do que na cabeça”. Ela precisa de um tempo sozinha antes da cena, sentada, ouvindo uma música, pensando sobre a personagem e sua situação, se colocando no lugar dela... E no final desse trabalho interno, ela extrai uma frase que traduza o que ela está sentindo e a repete “na cabeça” (como fala interna) durante a cena. Desse modo, podemos perceber que as duas atrizes possuem preparações diferentes, o que foi perfeito para as gravações com os registros, me permitindo a possibilidade de vê-los agir sobre cada atriz com seu diferente processo. A primeira gravação foi de uma cena não roteirizada, que surgiu a partir da proposição de um “onde/quem/o que” (Spolin, 2015) 24, sendo definido: “alunas na faculdade discutindo sobre a prova da próxima aula”. Depois dessa definição, pedi que elas improvisassem uma cena sem pensarem em nenhum registro. A impressão para quem estava de fora, era de que as duas estavam no “naturalismo”. E, por essa razão, pedimos que regravassem a mesma cena, mas com o registro em mente, para ver como se diferenciaria da primeira vez. A diferença foi gritante. No momento que começaram a gravar a cena pensando no naturalismo, o primeiro take, que antes havíamos associado ao naturalismo, passou a ser percebido mais como o registro da sujeira. Isso porque com o registro naturalismo em mente, a cena ficou visivelmente mais “limpa”: elas davam pausas entre as falas, falavam sem pressa, estavam mais calmas no geral. Ao conversar com as atrizes após as duas cenas, sem mesmo mostrar as gravações para elas, recebemos o feedback de como elas também notaram a diferença dos dois momentos. O que relataram é que o registro serviu como uma divisão de foco (Spolin, 2015) 25 que enquadra o ator na cena e, em particular no naturalismo; calma, concentra e permite dar pausas no diálogo para pensar. Concordamos que o registro, nesse caso, serviu como um dispositivo de concentração. Diferente da primeira cena onde, sem nenhum registro e, por consequente, Termo usado por Viola Spolin em Improvisação para o Teatro (2015) como um mecanismo de jogo para criar uma estrutura de improvisação a partir da escolha de um “Onde” (lugar), “Quem” (personagens) e “O Que” (problema a ser resolvido). 24

25 Ideia usada por Viola Spolin

em Improvisação para o Teatro (1963), citada como ‘Ponto de Concentração’ e ‘Foco’. “O Ponto de Concentração torna possível a percepção, ao invés do preconceito; e atua como um trampolim para o intuitivo” (SPOLIN, 1963, p. 21).


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sem divisão de foco, de acordo relatam as atrizes, havia uma preocupação em manter o diálogo e não deixar um “vazio”. Nesse dia, eu associei a preocupação de não deixar a cena “cair” ao fato de ter sido um improviso, já que geralmente tínhamos essa preocupação de “não deixar a bola cair” quando praticamos jogos teatrais com cenas improvisadas de “quem/onde o que” nos primeiros períodos do curso. Questionei as atrizes sobre o porquê sentiram que o registro naturalismo permitiu as pausas durante o diálogo. Ana Paula disse que “no naturalismo, o vago (pausas no texto, expressões vagas) e dá pela fala interna te forçando a lembrar (de usar o registro)”. As duas atrizes também concordaram que o registro serviu como uma direção, um norte para a cena, o que as deixou mais seguras, por começarem a gravar já tendo uma base, diferente da cena improvisada. Essa segurança as deixou confortáveis em cena, o que, consequentemente, levouas a brincar/experimentar mais com suas personagens e acabou gerando mais “efeito de naturalidade” – um dos elementos da “atuação naturalista”. Neste momento, lembramos os nossos colegas de sala que tem dificuldade com improviso, inclusive meu parceiro no projeto, Everton Cuzzuol. Em sua maioria, são pessoas com mais insegurança, que precisam de uma direção para sentirem-se a vontade em seu trabalho. E, por isso, sempre foram mais “travados” nas cenas de improviso. Associamos isso com as diferenças das atrizes no primeiro e segundo take, já que elas também só se soltaram quando tiveram um registro como norteador da cena. A partir disto, Ana Paula relatou: “É como se fosse um lago sem pedra. Eu não vou entrar. Mas, se tiver pedra, eu sei onde pisar, então eu entro”. Nessa analogia, as pedras são os registros. Estes dão segurança para o ator, que tem onde “pisar” em cena. Cada passo que dá é com a certeza de que não vai cair. Assim, consequentemente, irá explorar mais o território. Depois de uma reflexão sobre as duas primeiras gravações, pedimos que refizessem a cena, porém, cada uma em um registro diferente. A Bárbara escolheu a neutralidade e a Ana Paula, a sujeira. A priori, achamos que a sujeira, por ser o registro mais ativo, iria acabar “contaminando a Bárbara”. Mas, assim que a cena começou, percebemos que estava acontecendo exatamente o contrário: a Ana Paula com a sujeira, não estava recebendo um retorno da Bárbara – que, com a neutralidade, estava completamente apática na cena -, e acabou contendo a sujeira da colega. Imediatamente, percebemos que há a ação de um registro sobre


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o outro, e como os escolhidos para essa cena são totalmente opostos, a ação foi de um registro neutralizar o outro. Quando conversamos com as atrizes após a cena, imediatamente entramos em concordância sobre a Ana Paula não ter conseguido se manter na sujeira sem o retorno da Bárbara. “A neutralidade faz parecer que a pessoa não tava no assunto. Eu jogava pra ela e não recebia uma resposta, isso me desestruturou.” (Ana Paula). Mas ela disse que seria sim possível, caso tivesse tido um trabalho de concentração e preparação maior. Ela relata que como a Bárbara parecia estar desinteressada durante a cena, sentiu que não podia invadir o espaço pessoal da colega e, por isso, tentou manter a sujeira sobre si mesma (e acabou não conseguindo). Já o Everton disse que se fosse ele com a sujeira na cena, faria exatamente ao contrário, agindo diretamente sobre a Bárbara, tocando/balançando/mexendo nela. E, se fosse esse o caso, caberia a Bárbara manter sua neutralidade em meio à sujeira agindo sobre ela. Outro efeito que esse arranjo de registros teve foi sobre o espectador. O desequilíbrio da cena – com a Ana Paula agitada e a Bárbara apática – causou incomodo em quem estava assistindo. Como não podíamos ler a expressão da Bárbara, cabia ao espectador interpretar o que estava acontecendo – se ela estava em um mau momento ou se simplesmente não gostava da outra personagem. Perguntamos, então, a Bárbara, como foi o seu processo interno na cena, no que ela respondeu: “Como eu já sabia o que a Ana Paula ia falar (por ser o terceiro take da mesma cena), eu me preparei para “não ligar” pro assunto”. E já Ana Paula, por mais que não tenha conseguido transpor sua sujeira corporalmente, podíamos ver sua agitação, isso porque apesar da situação apática da sua colega de cena, internamente ela relatou que a sujeira estava pulsando. Após esta última gravação, chegamos à conclusão que a cena mudou completamente de sentido, uma vez que neste último caso, as personagens estavam em sintonias completamente diferentes; um registro pode agir sobre o outro, e nem sempre o mais ativo agirá sobre o mais passivo; e saber ou não sobre o que iria se passar na cena influenciou muito as atrizes. Arruda, ao analisar esse relato, também pontuou que existem formas diferentes de lidar, com a determinação da utilização do registro, bem como com o parceiro de cena. Por um lado, podese afirmar que um registro age sobre o outro, por outro, não sabemos no que esta ação irá resultar, já que depende, também, da contingência implicada na relação entre os atores. Ou


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seja, mesmo que o princípio de trabalho se mantenha, a resultante, enquanto, criação específica daqueles atores em relação, é única. Segundo caso: Para saber se as conclusões alcançadas até então foram intrínsecas à circunstância imposta da cena improvisada ou não, trouxemos pequenos roteiros retirados da internet, de videobooks, e repetimos o processo. Demos um tempo para lerem o roteiro e pedimos que não pensassem em nenhum registro. Novamente, associamos a cena sem registro com o naturalismo, e ao refazerem a cena com o registro do naturalismo em mente, a cena anterior passou a ser associada a sujeira, enquanto a segunda se apresenta mais limpa e calma (gerando efeitos de uma atuação naturalista exemplar). Até aqui, os resultados do primeiro experimento se mantém. Um fato importante é que as próprias atrizes, durante a cena com registro naturalismo, ao perceberem que estavam começando a falar rápido e perdendo o registro, automaticamente, buscaram uma divisão de foco. A Bárbara começando a mexer em seu elástico de cabelo preso ao pulso, e a Ana Paula lendo o que estava escrito no caderno que estava segurando. Sobre a Ana Paula e o caderno, o interessante é que ela estava com ele na primeira gravação, apenas por ser um comando do roteiro; o caderno estava só como objeto cênico. Somente quando precisou recuperar a sua divisão de foco, para permanecer no naturalismo na segunda cena, que ela passou a realmente ler e prestar atenção no caderno, enquadrando sua personagem externamente (com a ação corporal de passar as páginas) e internamente (com o que estava lendo). O que percebo com a associação do naturalismo com a limpeza 26 que causa na cena é a de um jogo com um só objetivo (roteiro) e um jogo com dois objetivos (roteiro e registro), ao acrescentar um segundo objetivo, parece que o tempo para terminar a tarefa dobra. E na cena, essa extensão do tempo que causa as pausas no diálogo, a permissão que os atores sentem para pensar, falar sem pressa, etc.

26 Entendemos aqui por “Limpeza de Cena”, uma melhor definição/clareza de movimentos, falas e objetivos dos atores/atrizes.


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Isso nos faz concluir que a naturalidade na atuação dos atores é uma consequência de ações pensadas - como as introduções dos tempos, visualidade do pensamento e divisão de foco -, que se propõe quando se introduz o registro Naturalista, causando uma qualidade natural na atuação que não encontramos nas atuações sem o registro. Essas atuações que observamos sem essas técnicas que associamos com o registro, podemos identificar com uma atuação realista, na qual não se enquadram na linguagem cinematográfica do primeiro. Essa qualidade realista vem da falta de técnicas e planejamentos para se alcançar um certo objetivo, causando o que pudemos identificar como uma sujeira na atuação – falas apressadas e sobrepostas, movimentos imprecisos e desnecessários...

Terceiro caso: Com outros participantes, meus colegas de sala, Hugo Gomes e Filipe Sousa, novamente entregamos um curto roteiro e demos um tempo para eles lerem antes de gravarmos sem nenhum registro planejado. Depois, regravamos com ambos trabalhando com o registro sujeira e, por último, com ambos no naturalismo. Achei interessante trazer este caso porque, diferente das meninas, eles se sentiram mais confortáveis com a gravação sem nenhum comando de registro. Comecei a questiona-los sobre o porquê, e foi quando entendi que já haviam interpretado e planejado a cena durante a leitura do roteiro e, sem nenhum registro, puderam seguir o que haviam planejado sem obstáculos. Hugo relatou que “através do roteiro você já vai entendendo o sentido, a cena, tom de voz, gestos...” e Filipe completou “sem o registro, você fica livre e faz o que pensou”. Acontece que os dois haviam idealizado uma cena muito romântica, e só quando pedimos que refizessem com o registro sujeira que eles entenderam que o personagem do Filipe era um garoto de programa. Eles acharam que o registro sujeira não combinou com a cena, já que haviam a idealizado de forma romântica. Isto acabou alterando a história, uma vez que não houve o momento de quebra do romantismo, para que se percebesse que um dos personagens era, de fato, um garoto de programa trabalhando. Dessa forma, a sujeira se encaixaria perfeitamente no final da cena, para evidenciar tal contexto. Já ao refazerem a cena no registro naturalismo, o resultado foi o mesmo das outras vezes. Comparado à cena sem nenhum registro, notamos uma limpeza e calma muito grande.


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Nos atores, foi visível que a divisão de foco os distraiu de falar todo o roteiro ensaiado de forma precisa, o que causou uma naturalidade (efeito do registro naturalista) muito maior, mesmo com certas falas sendo cortadas e alteradas. Eles interagiram de forma muito mais orgânica, criando gestos e falas de acordo com o momento, o que não ocorreu na primeira gravação. Pensando como diretora na construção dessa cena, a combinação perfeita seria o naturalismo até o momento que eles se despedem, a partir daí, a sujeira seria perfeita para evidenciar a verdadeira relação dos dois (cliente e garoto de programa). Depois do terceiro take, voltei a perguntar aos atores em qual eles se sentiram mais confortáveis, o que responderam novamente “sem nenhum registro”. Quando questionei se não consideraram a performance deles com o naturalismo em mente melhor eles responderam que sim, mas ainda se sentiram mais confortáveis sem nenhum registro, por poder seguir o que haviam previamente planejado na leitura do roteiro. Sobre essa racionalização perigosa, que prende o ator às intenções e gestos planejados antes da atuação, prende-o ao roteiro e o impede de reagir aos estímulos e emoções que surgem no momento, invoco a necessidade do espaço vazio, de Peter Brook discutido por Ferreira (2017): Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio. O espaço vazio permite que surja um fenômeno novo, porque tudo que diz respeito ao conteúdo, significado, expressão, linguagem e música só pode existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la (BROOK, 2000, p. 4 apud FERREIRA, 2017, p. 22).

“Tal fato nos conduz ao pensamento de que o trabalho do ator, seja profissional ou não, tem sempre como ponto de partida a intuição, como defende Robert Bresson e Jacqueline Nacache.” (FERREIRA, 2017, p.22). Ou seja, no caso do Hugo e Filipe, que preferiam não ter um registro por poderem seguir seus pré-planejamentos, vemos um obstáculo ao fluxo criativo e à intuição que os impediu de estarem abertos ao momento diegético e suas possibilidades. Muitos diretores preferem trabalhar com não atores 27, por eles não tentarem compreender seus personagens, histórias, motivações; eles simplesmente respondem a estímulos, como explica

O uso de não atores proporciona outras qualidades que enriquecem seu personagem de um modo muito natural, como as marcas na subjetividade, nos corpos, rostos, ações e comportamentos, que os não atores imprimem no filme, por estarem inseridos no contexto social a ser trabalhado. 27


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Ferreira. Os registros, neste caso, servem como uma ferramenta para os atores com um excesso de racionalização. Tal como Hugo e Filipe que, ao regravarem a cena com os registros e terem essa divisão de foco, ficaram em um estado mais vulnerável ao momento da realidade diegética, o que proporcionou uma relação orgânica e autêntica que não estava ali antes.

Os registros com não-atores Levando o projeto para fora das paredes da Universidade Vila Velha e indo para o Instituto Federal do Espírito Santo 28, pude experimentar os registros com os alunos de teatro da minha colega de sala, Marina Mello. Por serem adolescentes de Ensino Médio, não atores, e por eu ter tido um tempo limitado com a turma, não achei pertinente aprofundar a experiência como fiz no curso de Artes Cênicas. Mas deixarei aqui relatado como testemunho. A aula veio como demanda dos próprios alunos. Como nunca haviam tido contato com a atuação para cinema antes, e mesmo o teatro haviam só começado há alguns meses, a aula foi bem simples. Em um primeiro momento, explicamos para eles cada um dos registros, mostrando uma cena para exemplificar cada um. Depois, dividimos eles em três grupos e pedimos que criassem uma cena estruturada por “quem/onde/o que”. Cada grupo gravou a mesma cena duas vezes, a primeira com todos do grupo em um mesmo registro, e a segunda com cada um em registros diferentes. Acho importante mencionar que Marina já havia me avisado que eles eram tímidos e dificilmente me deixariam grava-los. Mas durante a explicação dos registros eles estavam tão interessados e participativos, que na hora da gravação não precisou de muito para convencêlos a se soltar para a câmera. O resultado foi positivo. Considerando que eram tímidos e não atores, seria de se esperar atuações mornas, mas o fato de que haviam entendido os registros, permitiu que chegassem para a gravação com um corpo e mente enquadrados, dando às cenas uma competência que poucos associariam a pessoas inexperientes no ramo da atuação cinematográfica.

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Workshop realizado no IFES-Campus Vila Velha nos dias 29 e 19 de outubro de 2019.


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A maior dificuldade foi manter a concentração em seu próprio registro na segunda gravação (quando estava cada um em um registro diferente). Para auxilia-los, propusemos algumas técnicas como, por exemplo, por um objeto cênico na mão de quem estava na neutralidade, para este funcionar como seu foco interno e externo. E, quando finalmente conseguiam, as cenas pareciam deslanchar. Eles não tiveram medo de experimentar. Foram utilizados neutralidade, emoção com contenção, a teatralidade e o excesso. No final, concordamos que o desempenho deles havia sido do mesmo nível que o nosso ao passarmos pelas mesmas atividades na aula de Atuação para Cinema no quarto período do curso. Essa aula me mostrou que os registros são facilmente absorvidos, mesmo por quem tem pouca ou nenhuma experiência na área, e servem como um ponto de partida, uma base já construída para que a cena não precise surgir a partir do zero. Assim, não atores podem continuar seu jeito “genuíno” de representar (sem marcações, foco excessivo no roteiro, etc), ao mesmo tempo em que já estão enquadrados de forma sutil na intencionalidade da cena. Essa ferramenta pode ser útil até mesmo para aqueles diretores que, como Woody Allen, “costumeiramente não ensaia com o elenco, entrega para seus atores somente a cena que vão trabalhar, e somente no dia da filmagem.” (GERBASE, 2010, p.9). Esse tipo de filmagem pode trazer o efeito oposto do desejado - que seria uma atuação espontânea-, e resultando em atores (ou não atores) que sem nenhuma base para a cena ficam inseguros e travados na gravação. Os registros, neste caso, seriam um meio termo: o diretor ainda terá uma cena espontânea e atores abertos aos estímulos, enquanto os atores terão um enquadramento interno e externo para se sentirem norteados. Usar os registros como exercício de atuação para cinema, portanto, abre possibilidades para um preparo além da atuação em si, mas também para a adequação aos diferentes métodos de direção que os alunos poderão encontrar no mercado de trabalho.

Os registros e suas possibilidades Percebemos na utilização dos registros uma divisão de foco, que, por sua vez, tira, do ator, a necessidade de finalizar o texto, deixando-o mais vulnerável à intenção e aos impulsos que surgem durante a cena, o que ajuda a sair daquela fala “dura” e presa ao roteiro. “Ao invés do ator ‘representar’ (dar o espetáculo), é preciso colocar-se vulnerável à relação com a direção


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que o desenha” (ARRUDA, 2017, p. 14). Mas, ao mesmo tempo, é preciso um estudo sobre qual registro se encaixa mais na intenção momentânea da cena, já que diferentes registros em uma mesma cena muda a intenção da mesma. Outro efeito do registro como uma divisão de foco é a “limpeza da cena” uma vez que, ao enquadrar internamente o ator, a pressa para terminar o diálogo e as ações impostas no roteiro dividem espaço com a execução do registro, fazendo com que o ator fale com mais calma, não tenha medo de pausas e, consequentemente, pense em cena, se enquadre, reenquadre e, assim, tire aquela característica do ator de precisar ter todos os dados da história, de seu personagem, de suas falas e marcações, o que acaba caindo naquela racionalização perigosa. “Diante da câmera, o ator tem de existir com autenticidade e imediatamente no estado definido pelas circunstâncias dramáticas.” (TARKOVISKI, 1988, p. 167). Sobre esse ator extremamente racional, Michelangelo Antonioni também adverte:

O ator de cinema não precisa compreender, mas simplesmente ser. Pode-se argumentar que para ser é preciso compreender. Mas não é assim. Caso fosse, o ator mais inteligente seria também o melhor ator. E a realidade freqüentemente nos indica o contrário. Quando um ator é inteligente, seus esforços para ser um bom ator são três vezes maiores, porque ele deseja aprofundar sua compreensão, levar tudo em consideração, incluir sutilezas, e, ao fazer isso, ele invade um terreno que não é o seu – na verdade, ele cria obstáculos para si mesmo. Suas reflexões sobre o personagem que está interpretando, que, de acordo com o senso comum, deveriam trazê-lo mais próximo a caracterização exata, acabam derrubando seus esforços e privando-o de naturalidade. O ator de cinema deve chegar à filmagem num estado de virgindade. Quanto mais intuitivo for seu trabalho, mas espontâneo ele será. (ANTONIONI, 1961, p.1).

Levando essa qualidade de um ator em um estado de virgindade, como coloca Antonioni, podemos associar os registros como um ponto de resistência para atores que estejam muito confortáveis, ou seja, obrigando-os a desviar o foco de atenção e deixarem as resultantes acontecerem – provocando um enquadre na linguagem da atuação cinematográfica. Também percebemos nas experimentações que os atores se sentiam mais soltos a propor, experimentar, brincas com seus personagens porque – além de estarem mais vulneráveis às circunstancias diegéticas – sentem-se mais seguros, uma vez que já foi dado um norte, uma base: o registro. Isso pode servir como uma ótima ferramenta de direção, pois com os registros, o diretor conseguirá transmitir uma base para o ator, que por sua vez o enquadrará para o ator que o enquadrará (interna e externamente) na intenção da cena, sem que precise


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dizer sua visão de cada movimentação e fala, afinal, “No cinema, o diretor tem de instalar vida no ator, não transformá-lo num porta-voz das suas próprias idéias.” (TARKOVISKI, 1988, p. 177). O trabalho com os registros também pode ser uma chave para um problema que muitos diretores encontram: Sempre é um desafio interessante colocar um ator ou atriz longe de seu “estilo próprio”, porque este estilo já pode ter virado um cacoete, uma série padronizada de ações que se repetem em todos os seus trabalhos no cinema, no teatro ou na TV. (GERBASE, 2010, p.30)

Na faculdade, encontrei dois colegas que possuem muita dificuldade de atuar longe de seu “jeito natural”, enquadrar esse ator em um registro condizente com o filme ou cena pode ser um meio para tira-lo de sua “atuação automática”. Os monólogos 29 também podem ser muito auxiliados pelos registros. Muitos atores tendem a ter dificuldade a enquadrar seu corpo com um monólogo muito longo por, naturalmente, focar muito no texto. Isso acaba não só deixando o seu corpo duro, mas também a sua fala. Com a divisão de foco em um registro que enquadra seu corpo, automaticamente sua mente terá de dividir a concentração que estaria na ação com o texto e a fala sairá de forma muito mais orgânica.

Um novo método Após analisar algumas das possibilidades que os Registros 30 apresentam ao ator, restanos considerar o seu uso como um novo método para a atuação para cinema. Tomo aqui por “método” não a atuação em si, mas como alcança-la. Strasberg, ao descrever sua jornada em busca de seu método em “Um Sonho de Uma Paixão”, relembra de quando viu, no “Teatro de Arte de Moscou”, em 1923-24, o que seria a solução que estava procurando. Ele diz “Parecia claro para mim que o que estávamos vendo não era apenas uma grande atuação, mas alguma coisa que empreendera um caminho para a arte de representar” (STRASBERG, 1990, p. 60).

Longa fala ou discurso de um personagem. Usamos aqui os Registros com letra maiúscula por não se tratar de ‘registros’ como um substantivo simples, mas sim de um novo método de trabalho que estamos desenvolvendo. 29 30


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Da mesma forma, vejo os Registros como um caminho, um exercício de atuação, tal como realizei na disciplina de Atuação para Cinema e, posteriormente, ministrei no meu projeto de extensão. Nos dois momentos, as atividades surgidas a partir do uso dos Registros criaram novas percepções sobre nossas próprias habilidades, zonas de conforto, dificuldades, etc. Todos esses são fatores que um ator deve ter uma autoconsciência para que evolua cada vez mais. Como pude descrever acima, percebi no projeto de extensão desenvolvi no IFES, quais os participantes que se sentiam mais seguros com alguma direção, para guia-los em cena, e quais preferiam ter liberdade completa; refletimos em como nossa atuação pode mudar o sentido da cena; percebemos quais atores conseguiam se manter em um registro sozinho e qual precisava se apoiar no colega de cena... Enfim, todas essas descobertas durante os exercícios são pontos cruciais que vão nos afetar no mercado de trabalho futuramente, e por isso devem ser reconhecidas a formação, através de treinamentos, para que possam ser futuramente manejados na hora do “Ação!”. Um treinamento rigoroso com os Registros, assim como qualquer ação realizada repetitivamente, irá afetar o ator de modo que passe a ser parte de sua memória corporal. Assim, o ator poderá chegar ao ponto de usa-los automaticamente, transitando de um para o outro, adequando-se ao momento da cena, hibridizando-os... Se podemos detecta-los nos filmes em atores que nunca ouviram falar deles, nunca os estudaram ou os praticaram conscientemente, imagina a força da atuação de quem está realizando o Registro com a intenção de fazê-lo. Tudo irá se multiplicar - seu controle, sua capacidade de se adaptar, concentrar... Mas afinal, para que mais um método? Em “On Method Acting”, Edward Dwight Easty responde de uma maneira sarcástica a noção de que atuação não exige trabalho, técnica: Eles parecem pensar que um ator deve ter uma habilidade nativa especial que o diferencia de outros membros da raça humana e que produzirá automaticamente qualquer emoção, caracterização, movimento ou ação verdadeira exigida no script, performance após performance. [...] Portanto, deveria haver um sistema desenvolvido artisticamente que produzisse criativamente sua interpretação de um papel; um sistema que os produziria com sinceridade, não apenas na superfície com a voz e o gesto superficial. (EASTY, 1981, p. 6, tradução nossa) 31

“They seem to think that an actor should be empowered with a special native ability that sets him apart from other members of the human race, and which will automatically produce whatever emotion, characterization, movement, or truthful action that is called for in the script, performance after performance. […] Therefore, there had to be a system developed artistically that would produce creatively in his interpretation of a role; a system that would produce them truthfully, not just on the surface with the voice and perfunctory gesture.” 31


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Apesar de Easty estar se referindo ao método de Stanislavsky, eu associo essa resposta para qualquer sistema, método, técnica e teoria das Artes Cênicas. A atuação é uma ciência em constantes desdobramentos, questionamentos e evoluções, derivados de estudos, investigações práticas e teorias, que resultam em linguagens, poéticas e estéticas diferentes. Por isso métodos são importantes e nunca demais; eles dão novos caminhos para os atores trilharem e encontrarem diferentes destinos. Não há só um método, assim como não há só uma verdade, as artes abrangem infinitas possibilidades.

Registros como um exercício Um exercício é uma atividade que se pratica para desenvolver uma habilidade - nesse caso, a habilidade em questão é a de atuar. No decorrer dessa pesquisa, de quando fui apresentada aos Registros na minha aula de Interpretação Para Cinema até agora, de que maneiras essas atividades serviu a mim e meus colegas?

Everton Cuzzuol: “Pra mim, os Registros de atuação, como exercício pro ator, me serviam como um elemento externo norteados no processo da improvisação. Porque eu sinto muito medo de improvisar, e sempre que a gente podia exercitar as cenas usando Registros, eu sentia que podia criar mais rápido, criar com mais facilidade. No sentido que eu tinha um material a me apegar. Como se tivesse realmente um elemento externo ali me ajudando a improvisar.”

Ana Paula Castro: “Eu acho um exercício ótimo, porque o Registro te enquadra, então ele te dá uma base e você tem onde se apoiar enquanto ta atuando. Então como exercício eu acho ele maravilhoso, porque cria repertório também, e acaba que mesmo que você não esteja pensando no Registro durante a cena, eu acho que ele vem de uma forma orgânica mesmo, e aí acaba te enquadrando bem, e você não fica perdido, você tem uma base bem sólida pra trabalhar em cima.”


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Filipe Sousa: “Eu acho que os Registros dentro dos exercícios da atuação para servem na cena pra situar. Eu vejo como uma situação do ator, porque quando a gente vai fazer uma cena, você pensa em várias possibilidades, tem N’s e X’s possibilidades de exploração de como fazer essa cena, sem antes de mais nada julgar a cena. Mas quando você coloca um Registro, por exemplo a imobilidade, você já sabe que o olhar vai ser diferente, você já sabe como se portar em cena, já começa a estimular isso no seu corpo, no seu olhar pra você passar seu sentimento pra câmera. Então pra mim é um exercício que ajuda a situar o ator em cena. É isso que pra mim os Registros servem, sua maior contribuição vendo essas experiências que eu vivi tanto com a Rejane quanto com você (no Projeto de Extensão).”

Hugo Gomes: “Quando você, ator, recebe o texto, e você tem a liberdade de atuar, escolher a forma que você vai criar seu personagem e como interpretar ele... tem uma liberdade maior de criação pro ator. Mas eu acho que os exercícios (com os Registros) trazem um direcionamento, então acredito que pra atuação, pra trazer algum foco de direcionamento são super validos. E traz um diferencial dentro da interpretação do ator, ele vai ter que se esforçar pra fazer a atuação dele e ainda colocar esse Registro ali, ter ele presente na atuação.”

Pessoalmente, a maior contribuição que eu atribuo aos Registros seria a de um ponto de resistência, que me tira da zona de conforto e me deixa constantemente presente e alerta na cena. Como atriz, conhecendo meu processo e o que devo melhorar, esse é o fator que mais me acrescenta. Os Registros, como podemos notar, impactam pessoas de diferente modos, já que cada um, em sua individualidade, tem características únicas. Assim, esse estudo, que começou apenas há alguns anos atrás, ainda tem diversas possibilidades a serem descobertas que podem surgir a partir de novos olhares. As releituras de um assunto estão constantemente sujeitas à ressignificações, que devem ser incentivadas a fim de enriquecer o infinito campo de estudo das Artes Cênicas, ao invés do caminho à estagnação.


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Palavras Finais Tive, com essa pesquisa, o intuito de me aprofundar na minha área de paixão, a atuação para cinema, ao reafirmar a necessidade de nunca estagnar e sempre descobrir novos caminhos. Também incentivo mais pesquisas no ramo para credibilizar a profissão com seu devido merecimento acadêmico e científico. Enfim, o que apresentei aqui foram alguns pensamentos resultantes de um projeto de extensão laboratorial sobre as possibilidades do uso dos Registros da atuação para cinema como um novo método de exercício. Por fim, gostaria de agradecer a Rejane Arruda por ter possibilitado esta pesquisa, assim como todos os participantes que foram voluntariamente ao projeto, principalmente Ana Paula Castro, Bárbara Gomes, Hugo Gomes e Filipe Sousa, e ao meu amigo e colega de sala Everton Cuzzuol, que foi meu parceiro neste projeto.

Referências bibliográficas ABENSOUR, Gérard. Vsévolod Meierhold – ou a invenção da encenação. Trad. J. Guinsburg et al. São Paulo: Perspectiva, 2011. ANTONIONI, Michelangelo. Film Culture, Tradução de Rodrigo de Oliveira, New York, nº 22-23, verão de 1961. ARRUDA, R. K. Figuras de uma poética do ator no cinema. In: Da Poética do Ator: Teatro e Cinema, Vila Velha: SOCA, 2019. ARRUDA, R. K. Seis Registros para a Atuação em Cinema. In: Arte em/e Experiências de Subjetivação. Vila Velha: SOCA, 2019. CARMO, I. P. S. X. Do ator à criatura cinematográfica: notas sobre Le magique et le vrai : l’acteur de cinéma, sujet et objet, de Christian Viviani. Eco Pós: RJ, v. 22. nº 1, 2019. EASTY, E.D. On Method Acting: The Classic Actor's Guide to the Stanislavsky Technique as Practiced at the Actors Studio. New York, Random House Publishing Group, 1981. FERREIRA, A. C. A. Ator cocriador da cena – Em busca de um cinema ativo construído a partir do improviso do ator. 57 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Escola de Artes, Évora, 2017. GERBASE, Carlos. Direção de atores: como dirigir atores no cinema e na TV. 3ª ed. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2010.


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GREVE, S. T. O ator do teatro ao cinema: um estudo sobre apropriações. 143 f. Dissertação (Mestrado em Meios e Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicações e Artes/ Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. KNÉBEL, María (2002). La Poética de la Pedagogía Teatral. México: Siglo XXI. KUSNET, Eugênio. Ator e Método. São Paulo: Ed. Hucitec, 1992. LEWIS, Robert. Método ou loucura. 2ª ed. Fortaleza, Edições UFC; Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1982. SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2015. STRASBERG, Lee. Um sonho de uma paixão: o desenvolvimento do Método. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A., 1990. TARKOVSKY, A. A. Esculpir o tempo; [tradução Jefferson Luiz Camargo]. - 2- ed. - São Paulo: Martins Fontes. 1998


CAPÍTULO II: CRIAÇÃO TEATRAL EM PESQUISA


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Diálogos Afe(c)tivos: processos de composição da cena “Ensaio para um Discurso”. Ananda Lugon Bourguignon

Não escrevo para convencê-los de nada (já lhes disse que a única coisa que tenho é uma pergunta), nem para lhes explicar nada (certamente não vou lhes dizer nada que não saibam), mas para ver se sou capaz de dizer algo que valha a pena pensar, sobretudo para que me ajudem a dizê-lo e a pensá-lo. (Jorge Larrosa)

Me encontro no início deste trabalho com uma escrita que não sei ao certo aonde vai dar, mas certa de que o que escrevo aqui se trata de uma escrita implicada 32. Ou seja, uma escrita que perpassa, inevitavelmente, minha história vivida, os diálogos e as entrelinhas dos diálogos (Hess, Weigand, 2006) que compuseram minha trajetória, vivenciados dentro ou fora da instituição acadêmica. Assim, de forma que não consigo desenvolver este texto de maneira des-pessoalizada ou descolada de mim e de minhas vivências (que são sempre coletivas também), afirmo que faz mais sentido escrever, aqui, em primeira pessoa. Dessa forma, pretendo trazer aqui, o processo de direção de “Ensaio Para um Discurso”, uma adaptação de “Mulher Judia”, da obra “Terror e Miséria no Terceiro Reich” (1935-1938), de Bertolt Brecht, que foi possível realizar durante a matéria de Cena e Direção I, em conjunto com a matéria de Cenografia, realizadas em 2019/2. Tive o prazer de ter como professor e orientador Antônio Apolinário 33 nas duas matérias, e ele nos incentivou a escrever um diário de campo registrando a experiência desse processo: ideias de cena, sentimentos, críticas, questões, enfim, outra escrita implicada. Ele, no fim do semestre, me incentivou a transformálo em um trabalho acadêmico mais desenvolvido, e sou muito grata por esse apoio. Ao analisar 32

“A escrita implicada (jornais, autobiografias, correspondências, monografias) é portanto um recurso para trabalhar a congruência. Estas técnicas de escrita reflexiva são sempre uma ferramenta de auto-avaliação do pesquisador. O critério que funciona nessa prática é a questão da congruência. Os autores de belos textos, totalmente distanciados com relação ao que eles são ou fazem, não utilizam este tipo de controle. A escrita implicada capta, no dia-a-dia, as percepções, as experiências vividas, os diálogos, mas também as sobras do concebido que emergem. Com um certo distanciamento, a releitura dessas escritas é um modo de reflexividade cujo critério é sempre a questão da congruência.” (HESS, WEIGAND, p. 16) 33

Antonio Apolinário é ator, diretor, figurinista, cenógrafo, diretor de arte de teatro e cinema e professor de artes cênicas . Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Licenciado em Artes Cênicas e Bacharel em Direção Teatral pela Universidade Federal de Ouro Preto (2007/2008).


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partes do diário, após muitas reflexões acerca do que foi registrado no primeiro momento de pesquisa, cheguei a conclusão que o corpo que se apresenta em “Ensaio Para um Discurso” já estava sendo produzido antes mesmo de realizar as matérias de Cenografia e Direção I, inclusive, se dando em outros espaços (principalmente políticos) além da Universidade de Vila Velha e da sala de aula. Tratarei desse assunto mais adiante. Escrevo neste momento experienciando um corpo que se movimenta entre o medo de finalizar um trabalho acadêmico um pouco mais complexo (e me formar), e o desejo de que as pessoas sintam e percebam as palavras lidas "como experiências corpóreas que vocalizam e reverberam não só descrições de processos, mas reflexões com o processo" (OLIVEIRA, N, 2009, p. 16). O desejo que se move aqui é uma potência criadora, que toma o corpo por mistura de afectos, uma “[...] atração que nos leva em direção a certos universos e repulsa que nos afasta de outros, sem que saibamos exatamente o porquê; formas de expressão que criamos para dar corpo aos estados sensíveis que tais conexões e desconexões vão produzindo na subjetividade 34 ” (ROLNIK, 2006, p.31). Entendendo que o desejo é maquínico porque ele produz, é criativo e agencia afectos, nos quadros dos modos de subjetivação 35. Vejam bem: o que trago aqui como afecto 36, não trago como uma ideia superficial, como noção de carinho. Eu mesma já pensei dessa forma, entretanto, não falo do termo que nos referimos comumente. Quando digo que meu corpo foi tomado por afectos, não quero dizer que comecei a criar em mim um amor por algo ou alguém, não passa por aí. Os afectos que me perpassam são, como diz Rolnik, afectos eróticos, sentimentais, estéticos, perceptivos e cognitivos (2006, p. 31) e são eles mesmos que compõem os processos de subjetivação. Afectos os quais não começam e nem se encerram na experiência de adaptação e construção de "Mulher

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Etimologicamente, o termo subjetividade diz de uma "profundidade", de algo que está "por baixo", sob. Ainda assim, a subjetividade, a partir da ótica aqui investida, não se trata de um "interior" do sujeito, a algo que esteja escondido, ou o que é oposto ao objetivo, mas ao que se encontra na fronteira, no limiar. Entre superfícies. 35

Subjetivação [De subjetivar + -ação] Ato ou efeito de subjetivar. (AURÉLIO VIRTUAL). Em Deleuze e Guattari: “Não chegar ao ponto em que já não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos” (1995, vol.1, p.11). Pode-se entender a subjetivação inicialmente assim, como subjetividades em movimento, em relação aos possíveis afectos (eróticos, sentimentais, estéticos, perceptivos, cognitivos). Nunca é individual ou particular. Subjetivações são, pois, correntes coletivas de sensibilidade que atravessam campos corporais na composição de territórios existenciais. 36

“Os acordes são afectos. Consoantes e dissonantes, os acordes de tons ou de cores são afectos de música ou de pintura [...] Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.220 – grifos e parênteses dos autores).


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Judia", muito menos dentro de sala de aula, mas que se subjetivam de acordo com as vivências e com a percepção do território existencial de cada uma e todas. De acordo com Rolnik, os movimentos de territorialização podem ser entendidos como “intensidades se definindo através de certas matérias de expressão; nascimento de mundos”(2006, p.33). Visto pela ótica de Deleuze e Guattari, os autores nos convidam a pensar o território como agenciamentos de componentes heterogêneos, de ordem biológica, social, imaginária, semiótica, afetiva, política, cultural, entre outros. Um agenciamento é uma mistura de corpos, é sempre um recorte de uma rede de relações de forças entre corpos heterogêneos que se conectam por uma vizinhança, uma simpatia, uma simbiose, uma interpenetração (Deleuze & Parnet, 1998, p. 65-66). No caso das Artes Cênicas, logo quando entrei no curso senti que um novo território estava se criando, se agenciando. Andei durante um tempo na faculdade tentando me encaixar na ideia que construí sobre o que seria (do que deveria gostar, por o quê deveria se interessar) uma estudante de artes cênicas, e funcionou, durante pouco tempo, mas funcionou. Depois de aproximadamente seis meses, comecei o outro curso que ainda realizo na UFES, Psicologia, e com isso, novos encontros se deram.

Fig. 1. Registro do diário de bordo. Desenhado pela autora.

A partir disso, minha máscara “estudante-de-artes-cênicas”, que tanto tentei sustentar, mostrava sinais de rachadura, de ressecamento, e se fragilizava a cada novo tema ou exercício


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que era proposto, pelo não atravessamento do/no corpo (inclusive, confesso que fui extremamente mal nas matérias de Corpo I e Corpo II, tema que hoje conduz minhas pesquisas acadêmicas e pessoais). É como se o que eu aprendesse não estivesse fazendo muito sentido ou talvez já estivesse com tanto sentido para as outras pessoas, que se tornou impenetrável para mim-, e “a única pergunta que caberia é se os afetos estão ou não podendo passar” (ROLNIK, 2006, p.32) na máscara, que é uma operadora de intensidades. E, naquele momento, os afectos que estavam tentando se efetuar não faziam sentido. Pode-se dizer, de acordo com Rolnik (2006), que foi um processo de desencantamento da máscara que constitui os territórios existenciais: O desejo, aqui, consiste também num movimento contínuo de desencantamento, no qual, ao surgirem novos afetos, efeitos de novos encontros, certas máscaras tornamse obsoletas. Movimentos de quebra de feitiço. Afetos que já não existem e máscaras que já perderam o sentido. (ROLNIK, 2006, p. 33)

A sensação que comecei a ter nesse período foi do meu corpo perder contorno aos poucos, me senti esvaziada, desterritorializada 37. Ainda de acordo com Rolnik (2006), os movimentos de desterritorialização podem ser encarados como “territórios perdendo a força de encantamento; mundos que se acabam; partículas de afeto expatriadas, sem forma e sem rumo.” (idem). Ou seja, um processo, de certa maneira, cruel e necessário, porque me levou a trancar o curso de artes cênicas e ficar distante da faculdade por um ano. Penso que esse distanciamento - assim como proposto em Brecht - foi importante para que eu conseguisse elaborar melhor uma autocrítica e voltar ao curso, dessa vez, com um esboço de contorno, com um mínimo de corpo - ainda bem. Esse momento em que estive distanciada me permitiu também, ao voltar, passar por várias turmas onde pude vivenciar encontros extremamente potencializadores de afectos, de intensidades e fluxos. Um desses momentos ocorreu quando eu e o Teatro Épico de Brecht, a partir das obras da dramaturga Grace Passô, tivemos um encontro, durante a matéria de Interpretação II em 2019/1, com a professora Nieve Matos. Digo encontro, mas, na verdade, foi um acontecimento.

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"O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios "originais" se desfazem ininterruptamente." (GUATTARI; RONILK, 2010, p.388).


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Eu poderia dizer, de acordo com Guattari e Rolnik (2010, p.388), que comecei um processo de reterritorialização, de reencantamento da máscara estudante-de-artes-cênicas.

Fig. 2. Registro final da apresentação de “Fábrica de Desajustados”. Acervo pessoal.

"A reterritorialização", dizem Guattari e Rolnik (2010, p.388), "consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado num processo desterritorializante". Não era mais a mesma máscara que tentei usar antes. Não era mais um ideal a se alcançar, mas um caminho de criação e invenção de formas de ser estudante e artista; porque, a partir daquele momento, me enxerguei não apenas como uma futura atriz ou professora que pode viver/usar do teatro como instrumento de transformação da sociedade, mas como uma estudante potencializada para pensar em como transformar, que deseja a transformação, porque foi atravessada por novos encontros - pessoais, teóricos - e ao mesmo tempo se sentiu pertencente - ao curso, à turma e à uma teoria-prática. Me enxerguei no espaço, (re)habitei o território. como se só precisasse achar a “ferramenta certa” dentro da caixa e, nesse momento eu entendi que o que eu precisava, na verdade, era construir minhas próprias ferramentas que dessem certo para mim. Entretanto, além do encontro em 2019/1 com Grace Passô, uma dramaturga feminista e mineira incrível, e consequentemente com Brecht, esse semestre foi também um momento no qual estive mais próxima e mais implicada em movimentos sociais e feministas. Um marco


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disso em mim se deu no dia 8 de março de 2019, no ato #MariELASsim junto à Marcha do Dia Internacional das Mulheres, que percorreu as ruas do Centro da cidade de Vitória, com manifestações guiadas em homenagem à vereadora assassinada em 2018, no Rio de Janeiro, Marielle Franco (Psol), e pela defesa dos direitos das mulheres frente às propostas já apresentadas pelo governo Bolsonaro, incluindo protestos contra a Reforma da Previdência. O ato se encerrou no MUCANE - Museu Capixaba do Negro(a), onde várias apresentações artísticas, musicais e performances acontecerem - novamente, outro acontecimento -, me fortaleceram e transbordaram em meio à uma multidão de mulheres que ocupavam o salão do MUCANE, constituindo uma experiênciafecto. Certos contornos foram ficando mais nítidos, mais delimitados, inclusive o meu, no meu processo acadêmico.

Fig. 3. Registro do Ato “MariEllasSim #EleNão, em 8 de março de 2019. Indo em marcha em direção ao MUCANE. Acervo pessoal.

Foi apenas ao escrever esta pesquisa, que me dei conta do quanto esses acontecimentos reverberaram e, de certa forma, compuseram o processo de construção de “Ensaio para um discurso” - desde o desejo de trabalhar com o Brecht (já que só havia trabalhado com ele através da Grace Passô), passando pela escolha do texto, até a escolha de elenco. “Ensaio Para um Discurso” é uma adaptação de “Mulher Judia”, da obra “Terror e Miséria no Terceiro Reich”


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(1935-1938), de Bertolt Brecht, realizada durante as matérias de Cena e Direção I, e Cenografia, apresentada no Teatro Municipal de Vila Velha, no final do ano de 2019, no evento PERFORMA/ES. Tive o prazer de ter como professor e orientador Antônio Apolinário, com quem criei uma relação de admiração gigante. Diante desse cenário, o que eu gostaria de fazer neste trabalho é tentar enfatizar como os agenciamentos produzidos entre minhas experienciafectos vividos em momentos movimentos políticos, neste caso um movimento político (feminista) demarcado, trouxeram e se transformaram em um corpo-coletivo caminhando em um devir-feminista, e que é possível notá-lo durante o processo de construção e direção de “Ensaio Para um Discurso”. Por último, o que pretendo com este trabalho é, assim como os diversos autores aqui citados, destrinchar o que ao meu ver, necessita ser destrinchado, e dialogar com quem penso ser frutífero o diálogo, criando, assim, uma forma própria de se pensar o teatro épico e didático na atualidade.

Justificativa Uma das motivações que sustentam esta pesquisa, situa-se na importância que o dispositivo do Teatro Épico possuiu no contexto conturbado de totalitarismos e guerras vivido no século XX, e na necessidade de se resgatar um teatro didático nos dias de hoje, em vista do nosso cenário político atual. Aposto nesta estética como uma aliada na fomentação do pensamento crítico sobre a sociedade, além de forçar o pensamento a pensar em problemas sociais, raciais, políticos e de gênero presentes no cotidiano. Por outro lado, ao decorrer do processo de montagem de “Ensaio Para um Discurso”, foi inviável, a partir das minhas relações com as atrizes e com o texto, manter exatamente a estética utilizada por Brecht em sua época, até porque fazer isto seria ir contra todos os princípios brecthianos. Foi necessário trazer novos aspectos e dialogar com outros autores, compondo, de fato, um processo de criação. Outra motivação se dá em compreender o nosso corpo como sendo constituído por memória, vivências, experiênciafectos - que também compõem nosso processo de subjetivação -, e entender como alguns momentos podem ser analisados como agenciadores de experiências. Neste caso, ouso dizer que foram algumas movimentações políticas que escoaram no processo de construção da cena “Ensaio Para um Discurso”, e nas relações que a circulam. Aqui, busco novas conexões, e o encontro de pensamentos que falem de política, entendendo-a como indissociável dos afectos e da subjetividade, e por fim, da arte. Ao me colocar, quase sem


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perceber, dialogando com eles durante todo o processo, arrisco mostrar que é possível dentro da arte teatral juntá-los, e para além disto, criar potências. Por último, penso que descrever e analisar o processo de montagem da cena pode ser uma leitura potencializadora, um fator de afe(c)tivação, para outras pessoas que tenham medo de se arriscar em algo, e encontrem, nesta leitura, um espaço de acolhimento, mas também um espaço de reflexão.

Diário de bordo: uma escrita implicada. Antônio Apolinário propôs como trabalho final das matérias de Cenografia e Direção I a construção de um diário, que durante quatro meses foi meu companheiro, no qual registrei os processos de construção e direção de "Ensaio Para um Discurso", se tratando de uma obra por acumulação, sendo também uma escrita implicada.

Fig. 4. Registro do diário de bordo. Início do processo.

Penso nesta alternativa do diário (dessa vez em um caderno físico mesmo, com colagens, desenhos e rabiscos) como um dos melhores métodos de se conhecer o trabalho e os processos de aprendizagem de uma pessoa, pois possibilita que xs professorxs acompanhem o processo, e não apenas o "produto" - até porque são as entrelinhas que nos interessam. Nele inscrevi meus pensamentos, desejos, ideias coletivas relacionadas a cena, incluindo pesquisas


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de referências de encenadorxs, cenografia, figurinos, e outras, para a construção da cena, além de informações, ideias, afetos, percepções, diálogos e também as entrelinhas dos diálogos, que me perpassaram durante 4 meses de montagem da cena. A utilização do diário de bordo como método avaliativo é um ponto interessante a se pensar, porque da mesma forma em que ele é íntimo, e teoricamente escrito para si, é também destinado a alguém, pois “se eu escrevo o diário para que eu mesmo releia, ‘Eu sou um outro’ (Rimbaud) entre o momento da escrita e o momento da leitura ou da releitura.” (HESS E WEIGAND, 2006, p. 19). Gosto de diários, tenho alguns espalhados pelos cantos da casa, que de vez em quando leio novamente, e a cada nova leitura, uma nova percepção, ou melhor, uma nova análise. À medida em que fui ficando mais velha, a escrita se complexificou, e passou de um relato de fatos ocorridos, para anotações mais sensíveis e compreensivas, que permitem análises mais críticas e profundas. Coincidentemente, nessa mesma época já vinha estudando um pouco sobre a própria escrita dos diários (de bordo, pessoal, de pesquisa, institucional, etc). Para Hess e Weigand, “a prática do diário remonta à origem das escritas[…] O diário é uma ferramenta eficaz para compreender sua prática, refletir, organizar, mudar e torná-la coerente com suas ideias. O objetivo do diário é de guardar uma memória, para si mesmo ou para os outros, de um pensamento que se forma ao cotidiano, na sucessão das observações e reflexões” (p.17). Dessa forma, o diário de bordo é uma ferramenta eficaz para trabalhar a congruência entre teoria e prática, e sua releitura se constitui como peça-chave para a análise do meu processo de direção, e para a escrita deste trabalho.

Afe(c)tivações: Devir Para trazer mais adiante o conceito de devir-mulher e, então, devir-feminista, é necessário entender antes que devir é um conceito filosófico que está ligado à uma ideia de transitoriedade, de mudança constante, de se deixar ser nômade. Há indícios de que o primeiro filósofo a pensar o termo devir foi Heráclito:


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Para quem tudo o que existe é conduzido pelo fluxo do devir: nada é, tudo flui, o devir universal é a lei do universo — tudo o que é nasce, se transforma e se dissolve, de tal forma que todo juízo, desde que pronunciado, torna-se caduco e não remete mais a nada; (MARCONDES e JAPIASSÚ, 1996; p. 96).

Ainda sobre Devir, Nietzsche, em seu livro Vontade de poder, diz: “Devir entendido como algo que não tem estado final, não projeta uma identidade... Devir como um estado de variação” (2008, p. 358). Ora, se o Devir é fluidez constante, se não suporta o fixo, o estático e, principalmente, não tem fim (estado final), então, é justamente do inacabado que se é possível tirar o mais proveitoso: se não há forma final, que inventemos novas formas. O Devir, portanto, não é contrário à uma forma, mas também não procura alcançar sua forma definitiva, não pretende atingir nem concretizar a forma que ele tende. Mulher, Criança, Homossexual, Animal, são exemplos de formas, são políticas de identidade as quais se fazem alianças efetivas para a constituição dessas formas.

Mas se digo devir-mulher, devir-animal, são tendências de um ser que flui, constituindo com os outros alianças afetivas, as rizomáticas, que fazem sempre escapar das políticas de identidade. Esse escapar pode ser entendido como as lascas da máscara-realidade dita em Rolnik e Guattari (KRAHE e MATOS, 2010; p. 5).

Porém, esses devires são apenas um ponto de partida, pois a partir daí, faz-se necessário improvisar em cada encontro, e isso demandará criação contínua. O que não é ruim, pelo contrário, pois “Devir é rizoma, é contágio” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.19), acontece por expansão, expansão a qual não pretende a captura do outro. É uma relação em que as duas se querem cada vez mais livres reciprocamente, mais nômades, e com mais travessias e atravessamentos. Os Devires citados acima podem ser entendidos como linhas de fuga, que escapam às essências e às significações, a favor de um mundo movimentado pelos afetos, de algo mais intensivo, “[...] um mundo de intensidades rizomáticas, onde todas as formas se desfazem em proveito de uma matéria não formada, de fluxos desterritorializados [linhas de fuga], de signos assignificantes.” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 20, colchetes meus). Os devires escapam das representações porque há sempre mais modos de se viver do que poderíamos conhecer ou descrever, porém são caminhos que poucos ousam em seguir. São modos que fogem dos


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modelos padronizados, da maioria com “M” maiúsculo, do Cis-tema, do pensamento Majoritário. Daí o Devir ser sempre um Devir minoritário, de modo que só se descolando, escapando das forças dominantes que tentam capturar nossas subjetividades, se pode pensar em um sujeito em devir. Podemos compreender, então, que o devir não se manifesta no padrão (compreendendo o padrão como algo ideal a se alcançar na sociedade, porque o devir não busca alcançar um ideal). Isso porque o padrão - vide Homem, Branco, Ocidental, Católico, Heterossexual, Racional - estabelece uma norma (padronizada também, obviamente), que orienta o campo de forças e os agenciamos que constinuem (n)o sujeito. O Homem não entra em devir-Homem porque é um modelo fixo, que busca territorializar todas as forças em volta dele. Com esse modelo, as subjetividades vão se dando pela imitação, não havendo caminho para a diferenciação, diferença essa que brota no encontro de duas multiplicidades. A partir disto, vamos entender como se dá a questão do devir para a mulher, ou melhor, como se tornar uma mulher é um processo contínuo de devir.

Tornar-se mulher é entrar em devir-mulher Queria começar dizendo algo: eu não nasci feminista. Na verdade, de acordo com Simone de Beauvoir 38, nem mulher nasci, me tornei. Se eu fosse traduzir sua famosa frase: “On ne naît pas femme, on devient femme” para o português literal seria algo perto de "Não se nasce mulher, se devém mulher", mas devém (de devenir) é comumente substituído pelo verbo "tornar-se", que possui a ideia mais próxima da de devir no vocabulário brasileiro. E por que não nasci, mas me tornei/torno mulher? De acordo com o pensamento de Beauvoir, a existência precede a essência, sendo impossível ter nascido algo, mas me tornado - com isso, também traz também a questão da construção de gênero como um acontecimento cultural, e não genético. Ainda de acordo com a filósofa existencialista, no início da modernidade a mulher foi reduzida ao Outro do Homem, excluída do conceito supostamente universal de ser humano e dos direitos de condições humanas, havendo somente uma definição para a mulher: aquela que não é Homem. Ela diz: “O homem é pensável sem a mulher. Ela não, 38

Simone de Beauvoir, foi uma escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa, que viveu de 10908 à 1986.


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sem o homem. […] A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem, e não este em relação a ela. […] O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”. (BEAUVOIR, 1949, p. 16) Esse movimento colocava a mulher como secundária, tanto na educação, na cultura e nos meios sociais, que sempre foram pensados para/por Homens. Como se fosse, literalmente, “o segundo sexo” (título irônico que dá a um de seus livros). Compreender isto foi crucial para entender que as características tradicionalmente associadas à condição feminina, normalmente ancoradas em modelos matriciais, eram muito menos baseados em fatos da “natureza”, e muito mais baseados em simulacros, impostos pela cultura, que moldam e limitam esse corpo. “A questão é primeira a do corpo”, dizem Deleuze e Guattari:

O corpo que nos roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora é à menina primeiro, que se rouba esse corpo: pare de se comportar assim, você não é mais uma menininha, você não é um moleque, etc. É à menina primeiro, que se rouba seu devir para impor-lhe uma história, ou uma pré-história. (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p.72)

Entretanto, não é apenas o corpo da mulher que é fabricado, roubado ou moldado: A vez do menino vem em seguida, mas é lhe mostrando o exemplo da menina, indicando-lhe a menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele, por sua vez, um organismo oposto, uma história dominante. A menina é a primeira vítima, mas ela deve servir também de exemplo e cilada. (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p.72)

Perceber que é à menina que primeiro roubam seu corpo, sua história, seu devir, exige que a mulher se responsabilize por si e pelo mundo que age. Vou além: exige que a mulher se reinvente e crie novas formas de existir nesse mundo constantemente, que se diferencie. Ou seja, tornar-se mulher já é um devir-mulher. Para escapar da normatização dos corpos, menina ou menino, a dupla de autores propõe produzir “em nós mesmos uma mulher molecular”, “criar a mulher molecular”, sem que “seja o apanágio do homem, mas, ao contrário, que a mulher como entidade molar tem que devir-mulher, para que o homem também devenha mulher ou possa devir.” O homem passa pelo devir mulher justamente porque, dizem Deleuze e Guattari: “todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires” (2012, p. 74).


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É importante relembrar que o homem não entra em devir-Homem (porque ele é o padrão/ideal), e que não é necessário ser mulher para entrar em devir-mulher, porque entrar em devir não se trata de imitar. Não se entra em devir-animal marcando território com urina, muito menos em devir-mulher passando maquiagem ou se vestindo com um vestido, por exemplo isso pode ocorrer e, mesmo assim, nada mudar. Contudo, o que o devir-mulher no homem quer é quebrar os jogos essencialistas e identidades cristalizadas, entendendo quais potências em seu corpo se afirmam em um devir mulher, encontrar o que foge às normas estabelecidas, e não buscar onde estariam as forças de reconhecimento, mas ao contrário, as de afirmação. Porque:

O devir-mulher traz a possibilidade de fluir nos signos assignificados, isto é, produzir novas subjetividades ainda não capturadas pela forma de existir do capitalismo consumista, da moral cristã e do pensamento globalizador de massa. (KRAHE e MATOS, 2010, p.6)

É mais interessante atuar no molecular, e não no molar 39, porque essa potência do devirmulher é mais efetiva do que a forma mulher.

Devir-Mulher em coletivo transforma-se em devir-feminista. Por esse motivo, é comum ao pensar em devir-mulher, negar movimentos políticos de gênero e sexualidade, como o feminismo - uma luta identitária. Torna-se essencial, contudo, destacar que toda luta se faz com forças de criação e conservação, inclusive o feminismo, e que, mesmo vinculado ao estado, é uma luta por reconhecimento importante, assim como as outras. O que não se deve deixar acontecer é que ele se torne nossa única bandeira de luta, porque assim, pode ser capturado, ressentido, a partir do momento que começa a utilizar das estratégias de seus opressores, justamente porque foi sua lógica foi capturada pelo sistema regido por quem nos oprime.

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Guattari em breves palavras nos explica a diferença entre a ordem molar e a molecular: “a ordem molar corresponde às estratificações que delimitam objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de referência. A ordem molecular, ao contrário, é a dos fluxos, dos devires, das transições de fases, das intensidades.” (GUATTARI e SUELY, 2011, p. 386.)


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Fig. 5. Ato #MariEllasSim #EleNão, no dia da mulher, em 8 de março de 2019. Acervo pessoal.

Não estou dizendo que se isto acontecer devemos ficar do lado dos opressores, é preciso superar as dualidades. Se trata de criar modos, alcançar lugares onde eles ainda não alcançaram. E justamente quando sentirmos que pode ocorrer algum ressentimento ou captura desses afectos, desses "modos-de-vida-feministas", tirarmos um tempo para nos desfazer, refazer e diferenciarmo-nos em luta. Neste trabalho, proponho este último movimento - de nos aproximar, construir, envolver, afastar, desfazer, e refazer do movimento feminista - como um devir-feminista, pois penso que é justamente esta deslocação o que permite, segundo Passos e Barros (2015, p. 20) citando René Lourau³, “potencializa[r] resistências atuais e atualiza[r] existências potências” (colchetes meus). E é isto o que tenho tentado fazer, com muito esforço, admito, escrevendo este trabalho.

Atravessamentos e Fluxos


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Posso dizer que durante este processo fui atravessada por fluxos, que ao mesmo tempo que me atravessavam, compunham esse processo também. É claro que esse processo é contínuo e faz parte dos processos de subjetivação que experimentamos diariamente, entretanto, a partir da análise do diário, pode-se entender melhor nossos atravessamentos - compostos por afetose nossa implicação neles. No desenho, fiz de maneira até um pouco simples, até porque as linhas que nos atravessam são incontáveis, mas trouxe mais como os fluxos de ordem social afetam a posição de encenadora/diretora que eu ineditamente estava ocupando, e as escolhas consequentes dela, já que os fluxos também são produtores de desejos. Melhor explicando a questão dos fluxos, Deleuze diz: “Fluxo é qualquer coisa, em uma sociedade, que corre de um pólo a outro, e que passa por uma pessoa, unicamente na medida onde as pessoas são interceptadores.” (DELEUZE, 1971, p. 5).

Fig. 6. Registro do diário de bordo.

Ou seja, somos interceptadores e não receptores desses fluxos que passam, atravessam - muitas vezes inconscientemente, por isso é necessário ficar atento a não apenas interpretar esses fluxos, mas entender como nos atravessam, como constituem passagem e constroem o processo. O autor diz mais:


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O processo, é aquilo que chamamos o fluxo. Ora, ainda aí, o fluxo, é uma noção de que precisávamos como noção qualquer não qualificada. Isso pode ser um fluxo de palavras, de idéias, de merda, de dinheiro, pode ser um mecanismo financeiro ou uma máquina esquizofrênica: isso supera todas as dualidades. (DELEUZE, 2002, p. 305).

Dessa forma, arrisco dizer, que construí em nossa relação, minha com as atrizes - que são, ao mesmo tempo minhas amigas-, atravessada por diversas linhas e fluxos que compuseram o processo e que não são finitas, formando uma rede de direções, bifurcações, relações e fluxos infindável.

Ética e a caixa de ferramentas Até aqui, foi possível encontrar diversos autorxs, com diferentes práticas e "linhas" teóricas, que se configuram como constituintes e constituidores dessa caminhada, "caminante, haciendo el camino al andar" 40. Minha relação com essas teorias é ancorada em uma ética, de modo que as utilizo como uma caixa de ferramentas 41 na construção deste processo. Entendendo que a arte teatral é múltipla, podendo envolver complexidades - não no sentido de ter que ser uma arte de difícil entendimento, mas sim diante da diversidade de possibilidades , penso que devemos nos servir de tudo que seja ético ou, dizendo de outra forma, de toda ferramenta teórica que seja útil para a prática, para o processo de construção da arte e transformação da realidade, coisas que, de acordo com Brecht, devem andar sempre juntas e servir uma à outra.

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Aqui, faço referência ao poeta espanhol Antônio Machado, responsável por uma das mais belas poesias sobre o Caminho de Santiago, chamada "Do caminho": "Caminante, son tus huellas el camino y nada más; Caminante, no hay camino, se hace camino al andar." Traduzindo: "caminhante, são seus passos o caminho, e nada mais. Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar". 41

Deleuze, numa conversa com Foucault, afirma que "uma teoria é como uma caixa de ferramentas... E preciso que sirva, é preciso que funcione". Elas são "como óculos dirigidos para fora e se não lhe servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate" (DELEUZE apud FOUCAULT, 1979:71). Numa entrevista ao 'Le Monde', Foucault faz uma afirmação semelhante, ao comentar sobre seus livros: "todos os meus livros, [...] são, se você quiser, caixinhas de ferramenta. Se as pessoas querem abri-los, se servir dessa frase, daquela idéia, de uma análise corno de urna chave de fenda ou uma torquês, para provocar um curto-circuito, desacreditar os sistemas de poder, eventualmente até os mesmos que inspiraram meus livros.. , pois tanto melhor" (FOUCAULT, 1990:220).


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Fig. 7. Registro do meu diário de bordo. Desenhei a “minha caixa” de ferramentas.

Escolha de elenco A generosidade parece estar estreitamente ligada à heterogeneidade, fenômenos físicos que ocupam as relações, que se transforma continuamente em fluxos variáveis e qualitativamente distintos, inclusive no seu aspecto intensivo, velocidades e temperaturas, dos elementos e de suas relações que estão interpelados precisamente pela libido (Deleuze; Guattari).

Nosso elenco é formado por cinco mulheres - Ana Paula Castro, Bárbara Gomes, Mariana Alves e Nayma Amaral, como as quatro Judith's, e eu, Ananda Bourguignon, que me coloco como elenco e diretora. O convite partiu de mim, e foi feito com base na relação que construí com elas dentro e fora do palco, desde quando as conheci, em 2019/1. Passamos pelo processo de "Fábrica de desajustados"¹ juntas, na qual realizamos uma releitura de "Mata teu pai", da Grace Passô, só com mulheres. Nesta ocasião, éramos 8 pessoas, todas potentes em seus jeitos de ser e estar no mundo. Conheci de forma aleatória, já que caí de "paraquedas" na última turma do curso de artes cênicas da universidade. Contudo, fui recebida de uma forma tão convidativa, tão amigável, que me senti, de verdade, confortável em ocupar e ser quem sou naquele espaço, composto pelas pessoas desta turma.


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Fig. 8. Fotografia da terceira cena adaptada de Mata teu Pai, do exercício cênico "Fábrica de Desajustados”. Foto de Julio Gabriel.

Em "mata teu pai" nos aproximamos, ainda que de formas diferentes, já que não somos iguais nem homogêneas, e foi também pela diferença - de vivências, experiências, opiniões e modos de se expressar - que escolhi estas pessoas. Não é porque são minhas amigas, mas cada uma tem um modo diferente, ou melhor, cada uma é um modo diferente, incrível e único de se relacionar. Além do mais, quando li "Mulher Judia", pensei nelas também porque são mulheres fortes, assumidamente feministas, que possuem posturas antimachistas, antifascistas e antirracistas no dia a dia, sendo também fonte de força através dos diálogos, lutas e trocas de afetos que compõem os campos de forças que nos atravessam continuamente. Ao mesmo tempo compomos uma rede de relações que se conectam entre si, dialogamos com outros dispositivos, aumentando e fortificando cada vez mais essa rede.Como diria Oliveira (2009): É, pois, na intensidade de dúvidas e fluxo de criação e produção que o grupo consolida a sua existência. A questão da diferença não é estabelecer um elogio à diferença, porque não se trata de comparar um com outro de forma hierárquica, “um ser diferente do outro”, mas se trata de saber que cada um é uma diferença, então devemos compreender que somos uma diferença e que nos relacionamos sendo diferenças (OLIVEIRA, 2009, p. 167)

Ao longo do semestre, fomos criando relações de admiração e respeito umas com as outras, dentro e fora dos palcos, construindo conversas e momentos fora das salas, compondo essas redes em outros espaços de trocas, que não os institucionais. Os abraços, as conversas, os desabafos, os desentendimentos e encontros formaram e foram formados por algo que acho ser


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muito precioso para o aprofundamento das relações: a intimidade - que também é determinada pela diferença, que, como vimos, é corpo, uma zona de vivências. Esta intimidade foi generosa ao nos conectar com o conceito de aprender-a-aprender. Isso porque nossos encontros não eram “depósitos” de nada, não havia a intenção de “depositar” um conhecimento, uma teoria, ou uma técnica nas atrizes, mas ao contrário, a proposta dos encontros foi de aprendermos juntas, numa troca e compartilhamento, em um aprender constante com o outro - o que foi possível através dessa intimidade que fomos criando. Lembrando que o compartilhar já é o próprio aprendizado.

Fig. 9. Fotografia de “Ensaio para um Discurso”, terceiro ato. Foto por Julio Gabriel.

Quando fiz o convite, fiquei muito feliz em receber um sim entusiasmado de todas, porque senti reciprocidade, já que tinha muitas expectativas em trabalhar com elas novamente também, dada nossas relações. Cada uma, com seu jeito de ser, com suas contribuições, ideias e, na minha opinião, o mais importante, com a abertura e disposição para trocas e atravessamentos, fez com que essa travessia fosse muito mais prazerosa do que poderia ter sido. Reverberações e Feedbacks do elenco


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Ao final do processo conversamos, e pedi que me escrevessem um relato sobre o que elas pensaram, sentiram, viveram, enfim, sobre como a experiência de "Ensaio para um discurso" reverberou nelas. Entendo que esta etapa é fundamental para conseguir criar uma movimentação em torno do próprio saber-fazer, e da nossa relação. Mariana Alves Mariana é uma pessoa tão assombrosa que eu nem sei como começar a falar dela. Ela sempre esteve aberta para qualquer diálogo, seja sobre os ensaios/cena, seja sobre nossas vidas pessoais (ou até mesmo sobre teorias de conspiração), o que eu acho que facilitou muito para que a gente pudesse se aproximar mesmo, e criar essa relação de conforto em opinar, em falar "olha, acho que isso não é legal", ou "tive uma ideia massa!". Sempre estava por inteira nos ensaios, e percebi que existia, de verdade, a vontade dela de estar ali, de vivenciar as trocas, de ensinar e de aprender. Obrigada por estar presente em todos os momentos possíveis, e por ter, realmente, sido responsável em nossa relação. Segue seu relato: Relato de Afeto: Coloco o título desse relato como relato de afeto pois foi algo que senti muito durante o processo de montagem de Ensaio para um Discurso. Euforia, medo, acolhimento e confiança me envolveram durante o tempo que eu passei na sala 12.Euforia. A primeira coisa que eu senti foi a euforia de estar em um trabalho de uma pessoa que eu admiro e atuando junto com pessoas que tenho muito apreço. Acho que facilitou minha inserção na montagem. Medo. Depois da euforia veio o medo. Tenho o péssimo hábito de me pôr para baixo e achava que não estaria no nível das outras meninas assim estragando tudo. Acolhimento. Foi a próxima coisa que eu senti. Talvez as meninas não tenham reparado minhas inseguranças, mas a forma que a Ananda ia conduzindo com as leituras, conversas sobre o texto foi me deixando cada vez mais confortável e inserida dentro daquele contexto. Confiança. Assim que comecei a entender que sim, eu podia, veio a confiança, confiança nas falas, confiança em meus movimentos, confiança em sentir o meu corpo e o corpo das outras meninas, confiança em poder olhar no olho das minhas amigas de palco. Assim chego no título desse relato. AFETO. Acho que por ter tido tanto carinho e comunhão durante a montagem de Mulher Judia me ajudou a fluir melhor nesse processo, consegui me relacionar melhor com a história que estávamos contando, fez com que me sentisse afetada por cada palavra que eu estava lendo para que assim quando passassem pela minha boca saíssem com mais verdade. (Mariana Alves, 2020)

Bárbara Gomes A Bárbara é uma caixa de criatividade. Me identifico com ela em vários aspectos, inclusive no desejo de transformar o mundo, o que eu tenho certeza que me aproximou dela fora dos palcos também. Gosto do jeito sutil com que ela habilidosamente brinca com as palavras, sem deixar se ser forte e implicar intensidade em suas ações e discursos - deixando


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sua personalidade em tudo que faz, inclusive em sua "Judith". Ela é muito sincera, dá suas opiniões de forma cuidadosa, sendo o cuidado uma outra característica marcante dela. É atenta às questões que se colocam à nossa frente, que muitas não percebemos, e consegue pensar em soluções lindas, seja no palco, seja na vida. Obrigada, amiga, pelos nossos encontros. Você é muito especial para mim, e passar por este processo, com você, também foi especial. Relato: Atuar na peça Ensaio para um Discurso, foi um presente! Estar com cada uma foi incrível. A sintonia criada, a liberdade dada pela direção nos fez construir algo na qual envolvesse sentimento e desejo de fazer mais. Tudo foi muito sincero, e acolhido, as inseguranças e as sugestões. Foi importante para meu crescimento e inspirador, sem dúvidas. A direção gentil, foi essencial para a construção e o resultado da peça, além disso também para meu autoconhecimento e crescimento artístico (Bárbara Gomes, 2020)

Nayma Amaral Nayma é fogo, e não é só porque a cor de seus cabelos nos lembra isso. A intensidade do fogo se reflete em Nayma no palco, assim como a sutileza da chama de uma vela que se mantém dançante, acesa, na junção com o vento, sem se apagar. Eu adoro a presença de palco dela, a força que ela tem no olhar e na forma de falar, que prende, que captura o olhar de quem está em volta. Sou grata a todos os momentos compartilhados, e feliz ao olhar essa caminhada que nos trouxe até onde estamos. Fazer parte de um processo foi algo incrível. Desde o inicio me senti realmente acolhida, me senti abraçada por todo esse momento. Uma coisa que ao meu ver realmente tem seu valor é a confiança que a direção passa, a firmeza... e tudo o que não me faltou foram esses pilares, essa força que me jogou para cima, que aumentou o meu desejo de estar no palco, com o elenco. Esse desejo, essa força do conjunto que tanto me fez bem, que tanto nos uniu, e que tornou todo esse processo único! (Nayma Amaral, 2020)

Ana Paula Castro Ana Paula é uma mulher incrível, que também se manteve aberta o processo inteiro. É muito louco tentar descrever ou falar sobre Ana, porque mil adjetivos vem à mente, e parece que nenhum é realmente bom, que nenhum é suficiente. E quem é amiga e conhece ela, sabe o que eu estou falando. A Ana "pega", entende as coisas muito rápido, e se reinventa quantas vezes for preciso, pra tentar fazer seu melhor. Ela é extremamente sensível em suas falas, e


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consegue cativar as pessoas que a assistem com muita facilidade. Agradecida por me cativar, amiga. Grata demais por ter vivido esse momento ao seu lado.

Trabalhar com Ananda foi um presente. Ser dirigida por ela foi gratificante e gostoso. Foi um processo que nos abraçou, ela nos abraçou. As relações eram sinceras e intensas, nós éramos o processo e estávamos lá juntas. Desde o início, sendo introduzidas de corpo inteiro dentro do processo, a liberdade com que trabalhamos, e a abertura que ela nos deu para dar um pouco de nós para ela, a forma com que ela desenhou nossas entregas, e encaixou o arranjo pessoal de cada uma de uma forma tão harmoniosa. É bonito de ver e delicioso de estar. Uma direção aberta desse jeito, de via de mão dupla, nos abre caminhos, nos estimula a propor, estimula o corpo e a mente, é como se estivéssemos imersos da carne à alma. (Ana Paula Castro, 2020)

Não dá nem para imaginar o quanto eu sou feliz, de verdade, por ter vivido essa fase, com essas pessoas, que se tornaram verdadeiramente minhas amigas; pessoas que eu quero só o bem, e quero comigo. Como disse, não seria tão agradável realizar essa produção se eu não tivesse essas mulheres absurdamente incríveis compondo juntas, nos apoiando, incentivando e levantando umas às outras. Sinto que é esse o movimento: ser uma mulher que levanta outras mulheres. Enfim, agradecida.

Considerações Finais Após construir uma análise sobre o diário de campo, ficou mais fácil enxergar o processo de "ensaio para um discurso" como um dispositivo, que é composto por múltiplas linhas de força distintas umas das outras. Linhas que se cruzam e se afastam sem compor sistemas fechados, sempre criando tensões que movimentam os fluxos. Cada linha poder ser fraturada, bifurcada e está sujeita a sofrer derivações. O que eu tentei fazer aqui foi desembaraçar, ou pelo menos trazer à tona as tensões e os caminhos trilhados que me permitiram e me fizeram chegar até aqui. De certa forma, é esse o trabalho da cartografia: descobrir terras desconhecidas, mesmo dentro daquelas que habitamos e que achamos já serem conhecidas. Dessa forma, a tensão entre o teatro épico de Brecht, e os processos de subjetivação, interpretada tanto por Suely Rolnik, Deleuze e Guattari, criam novas linhas, novas bifurcações, novas tensões. Assim como revisitar experiências-memórias do meu corpo em lutas políticas


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feministas, me fez entender como construir um corpo-coletivo-mulheres, tornando-se um devir-feminista. Acredito ser um caminho potente a se seguir justamente por aumentar possibilidades de continuar fazendo um teatro político, que é ancorado também por uma ética amparada nos devires, que se traduz nas práticas discursivas e não-discursivas que construímos diariamente, a todo instante. É necessário dizer também que, pensando no nosso contexto político brasileiro atual, acredito que trazer a estética de Brecht e as temáticas sobre os totalitarismos, como o fascismo, para o teatro, é um dos meios de se conhecer a história, e mais: entender como a relação fascista pode vir a ocorrer, ganhar forças e que pode se repetir à qualquer momento, não sendo exclusiva à um certo tempo histórico apenas - entendendo o fascismo também como um acontecimento histórico. É necessário lembrar que sempre estamos sujeitos à relações autoritárias, e por isso parafraseio a música brasileira, principalmente agora: "é preciso estar atento e forte". Para mais, construir uma relação de troca com as atrizes, principalmente de afetos alegres, fez com que pudéssemos nos fortalecer, e assim, seguir com mais potência de agir sobre o mundo, até porque, como vimos de acordo com Spinoza, os afetos alegres são muito mais potencializadores do que os tristes, que nos paralisa. Já diria Foucault, que "não é preciso ser triste para ser militante". Além disso, mais do que nunca, é preciso da reflexão gerando potência de mudança em quantas pessoas possíveis. Hoje, não temos ainda como estar dentro dos teatros, seja como atriz ou público, contudo não podemos parar. Produzir este trabalho, em meio a uma pandemia, com todas as condições que estão sendo impostas, e mesmo que de maneira "não-espontânea" porque ninguém escolheu ou estava preparadx - é, para mim, um ato político, de resistência. Obrigada a todas as pessoas que fizeram parte deste processo, que certamente continuará. Um agradecimento especial ao elenco, vulgo, minhas amigas, Ana Paula, Bárbara, Mariana e Nayma, com um trecho da música da Marcha Mundial de Mulheres: “Companheira me ajude, que eu não posso andar só Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. Seguimos.

Referências Bibliográficas BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960a


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BOURGUIGNON, Ananda. Diálogos Afectivos: Processos de composição da cena “Ensaio para um Discurso”. Vila Velha, 2020. Disponível em: https://dialogosafetivostcc.wixsite.com/meusite. Acesso em: 18/12/2020. DELEUZE,Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1 e 2. Tradução: de Aurélio Guerra Neto, Celia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995 DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia?. Tradução: Bento Prado Jr., Alberto Alonso Muñoz.São Paulo: Editora 34, 1992 __________. Espinosa: Filosofia Prática [1981]. São Paulo: Escuta, 2002 __________. Foucault. Paris : Minuit, 1986. ESPINOSA, Bento. Ética. In: ESPINOSA, B. Vida e Obra (Col. Os Pensadores). São Paulo : Abril. 3a. Ed. 1983. FOUCAULT, Michel. Microfisica do Poder. Rio de Janeiro : Graal. 1979. __________ . O Dossier/Últimas entrevistas. Rio de Janeiro : Taurus. 1984. __________. Entrevista ao 'Le Monde' (fev. 1975). In: ERIBON, Didier. Michel Foucault uma biografia. São Paulo : Cia das Letras. 1990. GUATTARI, Félix e SUELY, Rolnik. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. KRAHE, Inês e MATOS, Sônia. Devir-mulher como diferença. Caxias do sul: V Congresso Internacional de Filosofia e Educação, RS. 2010. LIMA, Marcos. A ética e a caixa de ferramentas. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, n.25, p. 152-161, 1999. MARCONDES, Danilo. e JAPIASSÚ. Dicionário Básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de poder. Rio de Janeiro: Contaponto, 2008. PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides de. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. p. 17- 31. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA Liliana da. (orgs). Pistas do método da cartografiaa: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; UFRGS, 2006.


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As potencialidades criativas advindas das intersecções entre RPG e Teatro: um relato de experiência. Rafael Teixeira Ciríaco de Souza

RPG, Teatro e Sociedade O RPG é uma sigla para o termo em inglês role-playing-game, que consiste em um jogo de interpretação de personagens inseridos em um mundo fictício. Existem diversas formas de jogá-lo. No entanto, a que abordaremos será a de mesa, que é estabelecido verbalmente. O RPG de mesa se caracteriza por ter alguns jogadores interpretando personagens, criados por eles mesmos, e um deles assumindo papel de “Mestre”, sendo este o responsável por criar os coadjuvantes, os vilões, narrar o cenário e mediar as ações, funções que lembram o trabalho do diretor no teatro. Essa mediação é feita através da “ficha do jogador”, que contém as características e histórias dos personagens. Durante o jogo, aparecem situações propostas pelo mestre que são decididas com base nas características dos personagens e no rolamento de dados. Desde a sua criação, por volta de 1974, com o jogo “Dungeons & Dragons”, o RPG foi visto como entretenimento infanto-juvenil. Com o sucesso do D&D, inovações foram surgindo no gênero, como, por exemplo, a modalidade de terror, que abarcou também os adultos como público. Dentre os papéis que o RPG vem assumindo na sociedade, destaca-se a possibilidade de sua utilização como ferramenta pedagógica, instigando a criatividade, exercitando a oralidade, desenvolvendo habilidades narrativas, entre outras vantagens. Outro ramo em que o jogo vem se destacando é na intersecção que estabelece com as Artes Cênicas. O role-playing-game, por ser um jogo em que os jogadores criam seus personagens usando a ficha e os inserem no universo fictício criado pelo mestre – sendo isso uma regra de jogo (SPOLIN, 2010) – se relaciona com o Teatro, ao passo que se mostra como uma prática de criação e interpretação, refletindo também na futura montagem a que se destina. Neste trabalho, pesquisamos o RPG como criação de linguagem que potencializa a montagem teatral. Embora o Teatro e o RPG tenham muito em comum, já que ambos trabalham com interpretação, cenicidade, criação de enredo e personagens, os trabalhos que correlacionam as


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duas áreas ainda são escassos e sem grandes aprofundamentos. A partir dessa observação, surgiu o interesse em pesquisar sobre esse corpus, visando duas finalidades importantes que se complementam: descobrir uma nova forma de montagem e, assim, atrair novos indivíduos ao universo teatral, como ocorreu com o RPG e a Literatura 42, estabelecendo o contato entre várias pessoas e o jogo através de contos e histórias baseadas em partidas de RPG. A partir da análise dos processos criativos que compõem o RPG, pudemos incorporálo aos Jogos Teatrais (SPOLIN, 2010), servindo como disparador para uma montagem posterior. Este trabalho viabiliza, a partir da pesquisa de campo, a percepção sobre quais aspectos do RPG potencializam o fazer teatral. Ademais, o jogo serve como porta de entrada para as mais diversas pessoas terem contato com o Teatro, já que é uma forma lúdica, atrativa e didática de inserção. As hipóteses surgidas para esse recorte foram de que o RPG pode criar dramaturgia, visto que possui alguns componentes em comum com uma peça de teatro, como os personagens, a narrativa, a presença de regra de jogo. O jogo também tem capacidade de criação de linguagem. Pode também dar origem a uma peça. E, ainda, pesquisamos o “enquadramento” do ator/jogador no tempo e no espaço, conceito cunhado por Arruda (2014), posto que a ficha de RPG desempenha esse papel no jogo. Para a execução da pesquisa, iniciamos recorrendo às teorias e jogos de Augusto Boal 43 e Viola Spolin44, a fim de identificar, através de um paralelo, o que o RPG tem a oferecer como jogo teatral. Tecendo as primeiras articulações Adentrando nas particularidades do jogo de RPG, cabe analisar e teorizar a respeito de três pontos importantes: a ficha, a ambientação e a narrativa. A partir dessa tríade, é possível visualizar as interfaces com o teatro, o horror/terror e dialogar com seus respectivos teóricos, tendo como base o produto obtido através do jogo. 42

Um exemplo é o livro “A Batalha do Apocalipse”, de Eduardo Spohr, que foi criado inspirado em histórias bíblicas e em jogos de RPG. 43 Augusto Boal foi um dramaturgo brasileiro que viveu entre os anos de 1931 e 2009, ocupando um papel de destaque na história do teatro nacional e da América Latina, principalmente no que tange ao aspecto político que ele imprimia em suas obras. 44 Viola Spolin foi uma autora e diretora de teatro norte americana que viveu durante os anos de 1906 e 1994, destacando-se pela sistematização dos Jogos Teatrais e pela fundação do Teatro de Improviso.


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A priori, já se estabelece uma relação entre RPG e Teatro no que tange ao épico (ARISTÓTELES, 2008), já que, assim como nesse gênero, o RPG é marcado pela criação de personagens respaldada na jornada do herói. Também é válido citar que se recorre ao texto dramático 45, visto que a história criada no jogo culminou na dramaturgia da peça, e é estabelecida uma linha tênue com o lírico (ARISTÓTELES, 2008), que será aprofundado mais adiante. A ficha de RPG se mostra como regra de jogo (SPOLIN, 2010), considerando sua função de enquadramento dos personagens. Defendendo que é "preciso materiais que, arranjados com outros, organizem o corpo no tempo e espaço" (ARRUDA, 2016, p. 99). A ficha assume função de estabelecer as relações dos personagens com os itens descritos nela, como: carisma, força, destreza, etc. Dessa forma, as possibilidades dos jogadores/personagens variam segundo os dados previamente informados. Logo, o enquadramento de cada um é único dentro do jogo. No que tange à ambientação, pode-se dizer que ela também se apresenta como regra de jogo (SPOLIN, 2010), tal como o “onde” do Jogo Teatral spoliano, visto que limita as ações dos personagens. Muitos atores acham difícil "ir além de seus narizes" e devem ser libertados para que tenham um maior relacionamento físico com o espaço. Para efeito de esclarecimento, deve-se ter sempre em mente três ambientes: imediato, geral e amplo. O espaço imediato é a área mais próxima de nós: a mesa onde comemos, com os talheres, os pratos, a comida, o cinzeiro etc. O espaço geral é a área na qual a mesa está localizada: a sala de jantar, o restaurante etc., com suas portas, janelas e outros detalhes. O espaço amplo é a área que abrange o que está fora da janela, as árvores, os pássaros no céu etc. (SPOLIN, 2010, p. 81)

Então, a cidade onde ocorrem as ações do jogo assume grau de importância semelhante ao de um personagem, já que ela, em certo nível, delimita o que pode ou não ser feito por um player quando se considera seus aspectos culturais, sociais e geográficos. Assim, entende-se que, mesmo tratando-se de um universo fictício, deve haver verossimilhança e coerência entre as ações dos jogadores e o ambiente narrado pelo mestre.

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Dramático, nesse caso, faz menção ao texto teatral. Não se refere ao conceito oposto ao teatro épico, cunhado por Bertold Brecht.


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O jogo propõe que cada jogador seja responsável pelas ações dos seus personagens, sendo elas passivas de dar algum crédito ou dano a ele, criando, assim, mais uma regra de jogo que organiza a cena no espaço e dinamiza as ações fragmentadas dos atores. A narrativa, por sua vez, se estabelece à medida que os personagens/jogadores se movimentam pelo ambiente com a liberdade de ir para qualquer lugar da cidade fictícia, gerando várias possibilidades de cenas e narrativas que podem fugir do controle do mestre/diretor. A sensibilidade trazida pelo terror/horror 46 (KING, 2012) ao RPG através da ambientação e, consequentemente, da forma de narrá-la é fundamental para a imersão do jogador na mesa e nas ações relativas ao seu personagem. Os medos provocados durante a narrativa, por vezes, transpassam o limite personagem/jogador, aguçando os receios deste e aprofundando a subjetividade da personagem posteriormente. A constituição do mundo e das personagens no RPG também se dá através de narrativa. Sendo assim, é possível recorrer à teoria literária, que afirma que: Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possíveis de caracterização de personagens esbarra necessariamente na questão do narrador, esta instância narrativa que vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar se criando a sua frente. (BRAIT, 1990, p. 53)

A partir disso, identifica-se o mestre como o narrador dessa literatura oralizada – o RPG. Ainda utilizando as categorizações literárias, infere-se que o mestre se caracteriza como um narrador em terceira pessoa, narrando a ambientação e as ações dos personagens NPC's (non-players character). Dessa forma, recortando e direcionando o olhar dos jogadores. Também há no jogo o narrador em primeira pessoa, esses representados pelos players, que contam sua própria história, sendo responsáveis por sua auto apresentação e construção dentro da narrativa. Isso pode garantir maior potência na construção da interioridade das personagens, visto que "esse recurso ajuda a multiplicar a complexidade da personagem" (BRAIT, 1990, p. 61). Buscando novamente em Brait (1990, p. 61), depreende-se que tal coisa pode ser explicada através da analogia com o ser humano: se alguém é capaz de se conhecer e

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Embora os dois termos sejam usados popularmente como sinônimos, existem particularidades entre eles. Enquanto o terror se refere ao medo psicológico, a ansiedade da espera; o horror está ligado ao visível, ao momento em que o nos deparamos com o concreto.


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expressar isso, então o resulto culmina em personagens mais densas. Com este recurso apostase também em uma resolução estética que estabeleça diálogo com o Teatro Contemporâneo. No âmbito do teatro, a narrativa enquadra-se como elemento épico (BRECHT, 1978). Outro recurso épico é a presença do narrador em primeira ou terceira pessoa, o que demonstra um ponto comum com jogo de RPG. Segundo Brecht: O narrador, no teatro, isto é, o ator, terá de empregar uma técnica que lhe possibilite reproduzir a entoação da personagem por si descrita com uma determinada reserva, com certa distância [...]. Em suma, o ator não deve jamais abandonar a atitude de narrador; tem de nos apresentar a pessoa que estiver descrevendo como alguém que lhe é estranho; no seu desempenho não deverá nunca faltar a sugestão de uma terceira pessoa. (BRECHT, 1978, p. 73)

Assim, na adaptação do jogo de RPG para a peça teatral, a presença do narrador se preservou. Porém, a voz narrativa, que antes era do Mestre, foi transferida para um ator dentro da cena, que, logo no início, foi responsável por narrar a cidade e os personagens que ali chegavam. Em meio a discussão sobre o Teatro e o RPG, cabe trazer ainda as reflexões de JeanPierre Sarrazac acerca da obra hibrida: «Ó meu amigo, quem transformará isto em cenas? Quem dividirá este romance em actos?», escrevia Diderot a Grimm10. Um século mais tarde, é Zola que, vítima da forma dramática pouco própria para satisfazer as suas necessidades realistas, retomará a idéia de uma contaminação benéfica, tanto no plano estrutural como no plano temático, do drama pelo romance. Para o mestre naturalista, é o alicerce romanesco que garante a uma obra dramática tanto a abertura social como o afastamento relativamente ao cânone ultrapassado da «peça bem feita». (SARRAZAC, 2002, p. 23)

Em suas obras, como “O Futuro do Drama” (2002) e “A Irrupção do Romance no Teatro” (2009), o autor aborda os pontos de intersecção estabelecidos entre teatro e literatura. Dentre elas, está a “romanização do teatro”, que se apropria de elementos do romance, como a técnica do narrador presente na peça teatral. Há, ainda, momentos em que a interação entre jogadores se dá em forma de diálogo, o que configura um ponto de interseção entre o RPG e o Teatro Dramático. Também aparece, algumas vezes, a narrativa em segunda pessoa quando o mestre, dentro de um diálogo com o jogador, narra a ação que seu personagem executou.


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“Descalços”: Um Experimento Adentrando na prática, iniciamos uma mesa de RPG. Para dar início, o mestre pensou, antes do jogo, as características da localização espacial onde se situa a história da mesa, criando um mapa para melhor ilustrar os lugares, abordando as peculiaridades culturais e geográficas da cidade. Também foi pensado, nesse momento, o ano em que a narrativa se passou e seu contexto histórico, além de aspectos políticos que nortearam a história. Ainda antes do jogo, o mestre criou os personagens fictícios, que não foram vividos por nenhum jogador, existindo apenas para desempenhar funções que o mestre almejava dentro da mesa; esses personagens são os NPC's (non-players character). Logo após, já sabendo sobre o tema e enredo, os jogadores preencheram suas fichas (Figura 1), para o jogo começar.

Figura 1. Ficha de Jogo


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A ficha de jogo (Figura 1) foi montada no momento de criação dos personagens, junto com suas histórias. Cada um possuía quinze pontos de habilidade para serem distribuídos entre força, destreza, inteligência, carisma e sanidade. Também foi necessário definir as habilidades, fraquezas e os itens que os personagens carregavam consigo. Cabe ressaltar que os pontos atribuídos inicialmente podem sofrer mudanças de acordo com os acontecimentos durante a mesa, como os pontos de sanidade, que decaíram devido ao contato dos personagens com seres sobrenaturais. O Mestre iniciou sua narrativa calcada nas características de horror e terror e nas histórias e mitos de cidades de interior, que foram criados anteriormente à mesa, acrescidas das habilidades elencadas pelos jogadores aos seus personagens na ficha. A partir daí, o jogo se delineou segundo as ações dos personagens. Cada jogador, ao criar sua história, atribui um objetivo a sua personagem. No momento em que as personagens se encontram dentro da mesa de RPG, é feita a união dos propósitos de todos. Dessa forma, uma meta maior, que une todas as outras e é capaz de resolvê-las, é estabelecida. Então, os jogadores trabalham para resolver um problema central, que é o norteador da linha narrativa utilizada pelo mestre. Cabe dizer que os jogadores, possuindo certo grau de liberdade, podem fugir da linha narrativa pensada inicialmente pelo Mestre, cabendo a esse deixar as personagens seguirem suas próprias jornadas, o que gera um desvio da trama original. No entanto, o desvio é monitorado pelo Mestre para que as ações tenham influência dentro da trama central. Representando graficamente a escolha dos jogadores e sua posição no jogo, considerando os desvios da linha narrativa que podem ser adotados, ficaria da seguinte forma:

Figura 2. Linha Narrativa


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De acordo com os recortes de dramaticidade e interpretação gerados pelo jogo, foi criada a peça “Descalços”, em que os jogadores são os atores e o Mestre é o diretor. A mesa de RPG para esse trabalho teve como tema o folclore, utilizando os traços característicos de diversas culturas como recurso para o enredo, como a mitologia cristã, histórias assombradas, costumes interioranos, dentre outros. Outra característica da mesa foi a utilização do horror e do terror como gênero. A partir de Stephen King (2012), podemos afirmar que o horror é mais sensível, se tratando de algo mais concreto e que se pode ver, está diretamente ligado ao momento em que se depara com um monstro, por exemplo. Já o terror, está relacionado aos aspectos psicológicos que atuam antes de alguém se deparar com a figura assustadora, são as sensações despertadas pela ansiedade da espera. Dessa forma, esses conceitos foram utilizados para a ambientação da mesa e da peça. Durante o jogo, algumas questões foram perceptíveis. Os jogadores, por vezes, encontraram dificuldades para executar elementos da ficha. Uma das jogadoras construiu sua personagem com forte traço de carisma 47 e, consequentemente, atribuiu alta pontuação a esse aspecto em sua ficha. No entanto, no momento de executar as ações e estabelecer diálogo com outros personagens, essa característica não se fez presente na intensidade desejada; dessa forma, foi necessário trabalhar essa questão com a atriz. Uma das formas adotas foi o uso do desvio de foco (SPOLIN, 2010), que foi necessário para a fala interna (KUSNET, 1975) se fazer presente na ação. Eugênio Kusnet, em seu livro Ator e Método, disserta acerca do método de Monólogo Interior. Segundo o autor: Para podermos dispor de um termo mais palpável, mais prático no trabalho cotidiano do ator, simplificamos o seu significado com o sendo "tudo aquilo que o ator estabelece como pensamento do personagem antes, depois e durante as falas do texto". (KUSNET, 1975, p. 71)

A divergência entre idealização de personagem e execução não é um ponto a ser problematizado apenas no RPG. Na construção de uma peça, muitas vezes isso também é

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Cabe dizer que, no jogo de RPG, o carisma é um traço que determina o sucesso de determinadas ações dentro da mesa, como o convencimento de outros personagens em uma situação.


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recorrente. Assim sendo, foram trabalhadas durante a montagem formas de desenvolver as características dos personagens em cena. A interpretação no RPG se dá através da linguagem verbal, majoritariamente. Como afirma Brait (1990, p.11), “o problema da personagem é, antes de tudo, um problema linguístico, pois a personagem não existe fora das palavras”. Dessa forma, nos deparamos com um desafio de adaptação: transformar as personagens do RPG em seres intersemióticos. Utilizando as reflexões de Santaella, cabe ressaltar que: Também nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes… Através de objetos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie de animal tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagem. (SANTAELLA, 2003, p. 02)

Sendo assim, o processo de montagem da peça exigiu um esforço em recuperar o que os jogadores/atores criaram de seus personagens e fazer transparecer suas subjetividades em caracterização e ação física, bem como através da plasticidade corporal e vocal. Considerando que o teatro e a personagem teatral excedem a palavra, é importante pontuar que a narrativa e estruturação anterior não são determinantes para a existência do teatro, uma vez que o jogo teatral é vivo e independente. As tensões e resoluções de jogo contribuem para a encenação viva e para a criação da linguagem da peça. Considerando as contribuições de Lehmann acerca do teatro Pós-dramático, defendese que: Nas formas teatrais pós-dramáticas, o texto, quando (e se) é encenado, é concebido sobretudo como um componente entre outros de um contexto gestual, musical, visual etc. A cisão entre o discurso do texto e o do teatro pode alargar até uma discrepância explícita e mesmo uma ausência de relação. (LEHMANN, 1999, p. 75.)

Dessa forma, em “Descalços”, o texto aparece apenas como uma parte dos elementos que compõem a peça teatral, de modo que a cena excetua a palavra — característica do anti textocentrismo. Um recurso utilizado para a obtenção de personas mais bem construídas foi a utilização da ficha de RPG como fala interna (KUSNET, 1975). Ao passo que os atores internalizam a história de seus personagens e a ficha para o jogo, a personagem teatral passa a transparecer maior grau de autenticidade em suas ações.


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A autonomia do jogador para construir sua própria história proporcionou a inserção dos personagens dentro de ideologias, sejam políticas, sociais ou culturais, o que foi levado, inevitavelmente, à peça. Um dos jogadores, por exemplo, relacionou a figura folclórica do lobisomem à homossexualidade. Essa característica ressoou na sua presença em cena, tanto em aspectos interpretativos, quanto na caracterização física, ou, ainda, na linguagem crítica que a montagem assumiu. Em decorrência do caráter alegórico-político sobre o qual a narrativa se consolidou, as personagens se apresentam em cena como estereótipos (PAVIS, 2011), ativando rapidamente o reconhecimento do público quanto a elas. Por outro lado, a ideologia e construção subjetiva vinculada às personagens tiram-nas da esteriotipação, trazendo certo aprofundamento e humanização. Considerando as reflexões de Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro: Os caracteres se apresentam como um conjunto de traços característicos (específicos) de um temperamento, de um vício ou de uma qualidade, ao passo que os tipos e os estereótipos são, antes. esboços facilmente reconhecíveis e não tanto "escavados", aprofundados de personagens. O caráter é muito mais profundo e sutil: certos traços individuais não lhe são proibidos. (PAVIS, 2011, p. 39)

Assim, as personagens de “Descalços” apresentam uma tensão proposital entre a tipificação e a individuação, configurando-se como parte do dispositivo cênico. No que tange ao local da apresentação, evocamos o Teatro Pós-dramático (LEHMANN, 1999) para desconstruir o espaço institucionalizado do público na plateia e dos atores no palco. Uma característica muito mais importante dessa produção, entretanto, é o modo como o público se envolve. Se a obra pode ser chamada de pósdramática, como geralmente acontece, não é nem porque abandona a mimese ou a fidelidade ao texto literário, como sugere Lehmann, mas porque desafia a relação espacial entre performance e público que, por muito tempo, foi aceita na tradição do teatro dramático. (CARLSON, 2015, p. 586)

Dessa forma, propomos a disposição da peça e do público sobre o palco. Pretendemos com isso diminuir o distanciamento entre plateia e atores, de modo que quem estiver assistindo sinta o estranhamento do extracotidiano (BARBA, 2012) e se questione sobre a veracidade daquilo que veem, dado que o gênero horror/terror promove uma quebra da dicotomia


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sujeito/obra, já que o sujeito espectador se sente impactado de tal forma que ele passa a se sentir parte daquela história, sentindo medo e angústia tal como os personagens da obra. A encenação: alegoria política e outros elementos O texto dramático foi feito a partir de uma série de decisões de linguagem que foram tomadas anteriormente ao jogo cênico, devido ao universo lúdico criado e as alegorias políticas estabelecidas antes e durante o processo. Essas decisões partiram da ideia de um corpo plástico com movimentos bem desenhados, visando o estranhamento que se pode gerar com esse corpo que rompe com a postura cotidiana, trazendo o estranho para potencializar o sentimento de terror e horror. A narrativa adotada se deu a partir da jornada do herói (CAMPBELL, 1949), que se fez muito popular na literatura e transbordou para o cinema 48. Trazendo como referência clássicos como Alice no País das Maravilhas, O mágico de Oz e Coraline, pode-se fazer um paralelo entre os estereótipos criados pelos jogadores e histórias já estabelecidas no imaginário popular. A partir daí, temos um padrão pré-estabelecido de heroínas com um aprofundamento e amadurecimento durante o decorrer da história. A criação do cenário veio de uma vontade de retomar as origens de parte do nosso folclore, mas que fugisse da docilização. Sendo assim, buscou-se trazer características de contos interioranos, como o intimismo da cidade, a religiosidade, o espaço rural, o misticismo etc. Além disso, os jogadores foram colocados pelo mestre, propositalmente, em conflito com as figuras folclóricas locais, como a Cuca, o Curupira, o Saci Pererê, etc, enquanto o verdadeiro vilão era a igreja, que estava trazendo um mal estrangeiro, o Bicho Papão, para desequilibrar o cenário lúdico brasileiro. Dessa forma, o paralelo político começa a se estabelecer na narrativa, ao passo que o “mal-estrangeiro”, representado pelo Bicho-Papão, é uma metáfora para a colonização cultural da qual o Brasil é, ainda, vítima. Ainda nessa alegoria política (KING, 2012), cabe ressaltar a criação das personagens pelos jogadores e algumas características importantes para a montagem da dramaturgia, atentando-se para o fato de que:

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Bons exemplos para ilustrar essa adaptação da jornada do herói da literatura para o cinema são os filmes “O Senhor dos Anéis”, “Harry Potter” e “Percy Jackson”.


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O gênero terror tem sido muitas vezes capaz de atingir pontos de pressão fóbica em nível nacional, e os livros e filmes de maior sucesso quase sempre parecem expressar e jogar com temores que afligem um amplo espectro de pessoas. Tais temores, que são muitas vezes políticos, econômicos e psicológicos, em vez de sobrenaturais, dão às boas obras de terror um interessante sentimento alegórico — e essa é uma forma de alegoria com a qual a maioria dos diretores de cinema parece estar familiarizada. (KING, 2012, p. 12)

A narrativa estabeleceu-se à medida que os jogadores começaram a se relacionar com o ambiente narrado pelo Mestre. A partir da narração inicial sobre o mundo em que a mesa se ambientará, cada jogador criou sua personagem de maneira que ela tivesse objetivos dentro do jogo. Dessa forma, as personagens e suas histórias surgiram a partir das tensões com a narração inicial, feita pelo Mestre. A personagem Ana é uma mulher jovem que está retornando à cidade natal, de onde havia fugido com seu pai porque sua mãe sofria de uma maldição e fora morta na fogueira durante uma caça às bruxas, liderada pela igreja. Essa maldição é hereditária, portanto, ela precisa entender o seu passado para mudar o seu futuro. Ao chegar na cidade, Ana se depara com um militar (Miguel) recém chegado que está prestes a bater em um garoto (Isac) por ter roubado seu livro, que é de teor místico. Ela o impede e descobre que o homem veio atrás de cura para sua esposa, que sofre de uma maldição desconhecida. Então, resolve ajudá-los levando-os até a casa da bruxa velha para ter acesso ao livro misterioso de maldições. Durante o caminho, eles se deparam com mais um rapaz (Marcos) que também está à procura da bruxa para resolver a maldição do lobisomem. A partir desse pequeno resumo do que aconteceu na história, pode-se fazer uma análise das características emocionais desses personagens. Temos claramente um estereótipo pronto, em que a personagem Ana é equivalente Dorothy, em o Mágico de Oz, em busca de desenvolvimento próprio; Miguel é um militar querendo salvar sua esposa, já que ela é seu único ponto de humanidade depois das atrocidades vividas na guerra, e equivale ao homem de lata; o Isac é um garoto que vive em função de desvendar esse universo místico e está sempre à procura de conhecimento, assemelhando-se ao espantalho; e Marcos está em busca de coragem para enfrentar o que ele realmente é. Ademais, outra referência, dessa vez de Alice no País das Maravilhas, está presente. Os personagens estão indo atrás da bruxa, que os prepara um chá para ver o caos acontecer, fazendo menção ao Chapeleiro Maluco.


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Dadas os pontos mais importantes da história, vamos às pontuações sobre o texto dramático. Recorre-se à estrutura cinematográfica para executar as cenas e recortar o olhar do público para gerar a curiosidade e o horror/terror. Então, a ambientação e trilha sonora se fazem muito presentes durante o processo de montagem da dramaturgia. Luz, som e enquadramento foram pensados em conjunto com a dramaturgia para uma reverberação direcionada dessa estética que se pareia a um sonho, à fantasia. As falas, por vezes, recorrem ao lírico, trazendo poemas durante a história para efetuar uma comunicação mais rápida, fazendo com que o público já identifique do que determinado objeto se trata. Juntamente, músicas e outras referências estabelecem contrapontos com as cenas e já informam sobre cada um dos personagens e, até mesmo, sobre a própria cidade. Considerações Finais O processo de construção de uma encenação teatral a partir do jogo de RPG se mostrou eficiente. Os complexos e subjetividades dos personagens foram aguçados pelo jogo executado previamente à consolidação da peça. A narrativa, por sua vez, se apresentou como algo construído através da coletividade e, quando adaptada para dramaturgia, foi recortada pelo olhar do diretor, que selecionou e criou em cima dos momentos mais potenciais do jogo. O jogo se mostra muito proveitoso enquanto potencializador de personagem. O personagem só existe por um desejo do ator de trazê-lo à vida. Isso potencializa a interpretação de uma personagem que existe unicamente no imaginário do ator e ganha vida A respeito do público, percebeu-se que recursos como o som e a luz direcionam o olhar. Ao escolher os momentos e formas em que eles aparecem, experimentando com a plateia as sensações causadas, pudemos perceber como servem de potencializadores para o efeito aterrorizante que a proposta traz. A criação de clímax e as quebras dessa tensão são efeitos que se pode obter deixando o público em um local confortável e habitual para, posteriormente, provocar o estranhamento em um momento imprevisível, fazendo contraponto entre o som e o que se vê. O trabalho deixa em aberto lacunas para outros desdobramentos acerca da narrativa do RPG e de sua intersecção com o teatro. No entanto, é perceptível que essa intersecção cria uma


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linguagem que comunica com distintos tipos de público através do estranhamento para a criação do lúdico, pautado no horror e no terror, presente na história. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Poética. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. ARRUDA, Rejane Kasting. Jogo, Linguagem, Enquadramento: reflexões sobre o Ator. Periódico do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFRGS, 18 out. 2016. ______. A teatralidade como um choque entre visualidades (e a questão da realidade em cena). Periódico do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFRGS, jul. 2014. BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. São Paulo: Ed, Livraria e Distribuidora Ltda., 2012. BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo, Ed. Ática S. A., 1990. BRECHT, Berlolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 10. ed. São Paulo: Ed. Pensamento Ltda, 1997. CARLSON, Marvin. Teatro Pós-dramático e Performance. Pós-dramática Revista Brasileira de Estudos da Presença, vol. 5, núm. 3, pp. 577-595. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015. FRANÇA, Júlio. O Horror na Literatura, cinema e TV. Revista Cultura, p. 1-6, 4 abr. 2012. KING, Stephen. Dança macabra [recurso eletrônico]: o terror no cinema e na literatura dissecado pelo mestre do gênero / Stephen King; tradução Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2012. KUSNET, Eugênio. Ator e método. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas. 1935. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático, São Paulo: Ed. Cosac & Naify, 2008. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. 3ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011. ROLE-PLAYING-GAME. In: Wikipédia: A Enciclopédia Livre. Disponível https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Role-playing_game#o. Acesso em: 25/11/2019.

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Teatro Contemporâneo no Espírito Santo: Índices do Teatro Pós-dramático nas produções da Cia Teatro Urgente Maria Helena Costa Signorelli

Fig. 1. Marcelo Ferreira, Crash, Ensaio sob a Falência (2014), Teatro Virgínia Tamanini SESC Glória (ES). Foto: Jussara Martins.

A realização de uma pesquisa com bases conceituais sobre a produção contemporânea teatral local se justifica pela inegável importância da arte teatral como uma das mais genuínas e antigas formas de expressão cultural humana e pela urgência e necessidade específica de se preservar a história do teatro capixaba. Um dos eixos de pesquisas no âmbito do teatro contemporâneo é o do teatro pósdramático, campo do meu interesse neste estudo e que me motivou a levar o foco da minha investigação para esse eixo do teatro, na cena do teatro contemporâneo capixaba. É evidente, no panorama do teatro contemporâneo do Espirito Santo, principalmente a partir dos anos 1990 e dos primeiros anos do século 21, a presença de companhias teatrais que desenvolvem um crescente diálogo entre múltiplas linguagens no estabelecimento de matrizes criativas para a composição de seus espetáculos. Ou estabelecem uma forte relação com a arte da performance, indicando a possibilidade de influência do campo de experimentação do teatro pós-dramático em suas produções. Entre elas, podem ser citados o Grupo Z de Teatro, o Repertório Artes Cênicas e Cia, o Grupo de Teatro Experimental Capixaba e a Cia Teatro Urgente.


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Nesse cenário, uma companhia se destaca pela presença marcante de tais elementos no seu discurso cênico, pela posição que ocupa na cena teatral capixaba e nacional e pela especificidade de formação da sua identidade, exibindo uma poética de matriz corporal, que se desenha a partir de referências das artes visuais, audiovisuais, performance e literatura na sua composição. Trata-se da Cia Teatro Urgente, fundada no ano de 2003, pelo seu diretor, o

dramaturgo, coreógrafo, ator e bailarino Marcelo Ferreira da Silva. Embora tenha sido iniciada em 2003, a gênese da identidade da Companhia encontrase na vivência do seu diretor, Marcelo Ferreira, com a Cia Neo-Iaô de Dança 49, que dividia com o bailarino e coreógrafo Magno Godoy 50, de 1986 até o começo dos anos 2000. A poética Neo-Iaô se configura “a partir das similaridades com o expressionismo da dança de Mary Wigman 51 uma forte referência da dança butoh 52, de Kazuo Ohno 53, [...] nas giras e nos rituais de iniciação do Candomblé, no Teatro Nô 54 e Kabuki 55 japoneses, na teatralidade de Grotowiski 56 e Antonin Artaud. 57” (SILVA, 2018, p. 28). Com marcas profundas da linguagem que experimentou a partir de sua vivência artística com Magno Godoy, Marcelo Ferreira inaugura com a Cia Teatro Urgente uma fase autoral, com encenações a partir dos originais de Sófocles, Nelson Rodrigues e Samuel Beckett. Em

49 50

Cia de Dança, em parceria com o bailarino e coreógrafo Magno Godoy/ES – 1986 a 2001 Magno Godoy (1952-2008 ) foi um bailarino e coreógrafo capixaba.

Mary Wigman (1886-1973) foi uma importante coreógrafa, uma das fundadoras da dança expressionista e da dançaterapia. É considerada uma das mais importantes figuras na história da dança moderna.

51

Uma dança que surgiu no Japão pós-guerra e ganhou o mundo na década de 1970. Criada por Tatsumi Hijikata na década de 1950, o butoh é também inspirado nos movimentos de vanguarda: expressionismo, surrealismo, construtivismo, entre outros. Juntamente com ele, Kazuo Ohno divide a criação da dança.

52

Kazuo Ohno (1906-2010) foi um dançarino e coreógrafo japonês, considerado um mestre do teatro butoh, figura máxima da dança-teatro expressionista japonesa. 53

Teatro Nô é uma forma clássica de teatro profissional japonês que combina canto, pantomima, música e poesia. Executado desde o século XIV, é uma das formas mais importantes do drama musical clássico japonês. 54

Kabuki é uma forma de teatro japonês, conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquilhagem utilizada pelos seus atores. O significado individual de cada ideograma é canto, dança e habilidade, e, por isso, a palavra kabuki é por vezes traduzida como "a arte de cantar e dançar" 55

Jerzy Marian Grotowski (1933-1999) foi um diretor de teatro polaco e figura central no teatro do século 20, principalmente no teatro experimental ou de vanguarda. Seu trabalho mais conhecido em português é "Em Busca de um Teatro Pobre", onde postula um teatro praticamente sem vestimentas, baseado no trabalho psicofísico do ator. 56

Antonin Artaud (1896-1948) foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês de aspirações anarquistas. Ligado ao movimento dadaísta e ao surrealismo, é considerado o renovador do teatro francês nos anos 1930. 57


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2006, inicia uma trilogia em homenagem ao cinema com Nosferatu, Fahrenheit, 451 e Metrópolis. Em seguida, o cinema e a literatura tornam-se referências constantes no processo de criação das encenações da Companhia. A partir daí, “novas teatralidades norteiam a pesquisa no Teatro Urgente, indicando uma liberdade para transitar por linguagens da dança, teatro, vídeo-teatro e performance, em palco e locação (site specific)” (SILVA, 2018. p. 28). A busca teatral do diretor Marcelo Ferreira está ancorada em uma visão da encenação como uma obra autônoma, constituída pelos elementos e materialidades da cena, sendo o texto apenas um dos elementos para a representação no palco. A atuação plástica, referenciada no teatro-dança e enraizada pela vivência com a companhia Neo-Iaô, continua como um dos pilares do trabalho da companhia, traduzindo-se numa poética de corpo única: Antes mesmo de haver um argumento, um roteiro, o estudo dos gestos é realizado como base para formatação de uma “gramática corporal”, que instrui alguns procedimentos, view points, para a interpretação do ator/performer: (SILVA,2018, p.29)

Todos esses elementos me instigaram a pesquisar a poética da Cia Teatro Urgente, numa busca de evidenciar os índices de teatro pós-dramático que podem ser encontrados nas suas produções. Para tanto, optei por realizar uma pesquisa documental a partir de entrevistas com os integrantes da companhia, por entender que as entrevistas trazem testemunhos vivos do processo de criação e produção dos espetáculos. Os elementos constituintes da poética vêm à tona a partir dos discursos, da memória e da experiência de atravessamento vivida por seus integrantes. Mais do que simplesmente um exercício de perguntas e respostas, as entrevistas constituíram-se em um diálogo com o encenador e diretor da companhia, Marcelo Ferreira, com a atriz Ivny Matos e o sound & designer Raphael Newman. A transcrição de trechos destacados das entrevistas nos coloca em contato com o processo de criação, a experiência e o ponto de vista de cada um sobre o trabalho desenvolvido. Antes, porém, da exposição dos resultados das entrevistas, apresento as referências teóricas que embasaram a pesquisa, discorrendo, em primeiro lugar, sobre o conceito de teatro contemporâneo desenvolvido pelo diretor francês e estudioso do teatro Jean-Pierre Ryngaert. Em seguida, abordo os conceitos de teatro pós-dramático proposto pelo pesquisador alemão


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Hans Thies-Lehmann, e do teatro performativo apresentado pela pesquisadora francocanadense Josette Féral. O fazer teatral contemporâneo Para compreender o conceito de teatro contemporâneo busquei suporte no trabalho desenvolvido pelo teórico do teatro Jean-Pierre Ryngaert

no

seu livro “Ler o Teatro

Contemporâneo” (2003). O autor inicia afirmando que “o teatro contemporâneo ainda é identificado à vanguarda dos anos 1950, de tanto que o movimento foi radical e o nosso gosto por rótulos amplamente satisfeito por essa denominação” (RYNGAERT, 1998, p. 21). A partir dos anos 1950, a escrita dramática sofreu modificações com autores que se opuseram à antiga dramaturgia. Dessa forma, as ideias e práticas artísticas de Meyerhold, Bertold Brecht, Tadeuz Kantor, Antonin Artaud, Heiner Muller e do Teatro do Absurdo propunham uma nova forma de experiência estética, acenando com mudanças relativas ao chamado “teatro clássico burguês” e que levaram um novo olhar sobre o estatuto do texto e do autor e sobre a figura do encenador e do teatro de grupo. Essas categorias foram relidas no fazer teatral contemporâneo. Sobre o estatuto do texto no teatro contemporâneo, há uma recusa ao “textocentrismo”. Segundo Ryngaert, o texto teatral é o texto que se mostra em cena e não aquele tradicionalmente escrito: “Na cena contemporânea tudo é representável” (RYNGAERT, 1998, p. 31). Essa cena contemporânea não está focada em explicar o texto ou servir como ilustração dele. Na verdade, está muito mais preocupada em mostrar a leitura e a interpretação de uma encenação a partir desse texto. Esse texto, que não é mais somente o texto escrito, mas trata-se de um mosaico ou um caleidoscópio formado por uma variedade de textos. O teórico nos mostra que os autores contemporâneos “narram por quadros sucessivos, desconectados um do outro e às vezes dotados de títulos” (RYNGAERT 1998, p. 85). Ryngaert também aponta que, ao contrário da representação teatral que se desenrola no tempo e no espaço da representação para falar de um outro tempo, no passado, a escolha dos dramaturgos e encenadores contemporâneos não é mais essa. Claramente, eles preferem falar do momento e do espaço em que se escreve, procurando o efeito do teatro no teatro, em que a ficção passada e o presente da representação se confundem. Desse modo, o presente da ação coincide com o


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presente da representação, mostrando o esforço do teatro contemporâneo em reduzir a distância entre o que acaba de acontecer e o que é mostrado na cena. Ao falar da liberdade dramatúrgica do teatro contemporâneo Ryngaert assinala: A grande liberdade dramatúrgica que se instaurou nas relações com o tempo e o espaço é marcada por uma obsessão pelo presente, qualquer que seja a forma que assumam esses diferentes “presentes”, e por uma desconstrução que embaralha as pistas da narrativa tradicional fundada na unidade e na continuidade. O “aqui e agora” do teatro se torna o cadinho em que o dramaturgo conjuga em todos os tempos os fragmentos de uma realidade complexa, em que os personagens, invadidos pela ubiquidade, viajam no espaço, por intermédio do sonho ou então, mais ainda, pelo trabalho da memória (RYNGAERT, 1998, p. 117).

Sobre o conceito de teatro pós-dramático No âmbito do teatro contemporâneo descrito por Ryngaert, o teórico alemão HansThies Lehmann lançou o conceito de pós-dramático em detrimento do que fora denominado anteriormente por teóricos como Patrice Pavis 58 e Steven Connor 59 como “teatro pós-moderno.” Segundo Lehmann, a partir dos anos 1970, o teatro foi denominado pós-moderno devido à presença de elementos, tais como: ambiguidade, descontinuidade, heterogeneidade, não-textualidade, celebração do teatro como processo, diversidade de códigos e subversão. Ele ressalta, no entanto, que tais elementos não indicam um distanciamento da modernidade, mas de tradições da forma dramática do teatro. Dessa forma, o teórico opta pelo conceito de pósdramático, “em oposição à categoria epocal pós-moderno” (LEHMANN, 2007, p. 24), considerando que essa maneira de fazer teatro apresenta possibilidades para além do drama e não necessariamente para além da modernidade. Para Lehmann, com o fim da “Galáxia de Gutemberg” 60e o advento da circulação mais lucrativa de imagens em movimento, diante da pressão exercida pelo estímulo das forças da

Patrice Pavis foi professor de estudos de teatro na Universidade de Kent, em Canterbury, onde se aposentou no final do ano letivo de 2015/16. 58

Steven Connor é um estudioso literário britânico, professor na Universidade de Cambridge. Escreveu “Cultura Pós-Moderna - introdução ás teorias do contemporâneo”. 59

The Gutenberg Galaxy, ou A Galáxia de Gutenberg, é a segunda obra de McLuhan. Publicada em 1962, nesta obra, o autor segue estudando desde a cultura manuscrita, a impressa, sinalizando as transformações da cultura oral mediante as transformações da cultura escrita. McLuhan afirma que, até o surgimento da televisão, vivíamos na "Galáxia de Gutenberg". Nela, o conhecimento era entendido apenas em sua dimensão visual. McLuhan nos apresenta como se reconfigura essa Galáxia de Gutenberg nos tempos da comunicação eletrônica. Foi com esta a obra que popularizou-se o termo Aldeia Global. 60


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velocidade e da superficialidade deste fenômeno, o discurso teatral estaria se aproximando dessas forças e se emancipando da literariedade. Ele sustenta que textos importantes continuam sendo escritos, mas que, desde os anos 1970, com a incorporação de novos signos, surge um texto teatral que não é mais dramático, um novo texto teatral em que “desaparecem os princípios da narração e da figuração e o ordenamento de uma fábula” (LEHMANN, 2007, p. 20). O teatro que se faz a partir de então seria “teatro pós-dramático”. Como, então, Lehmann conceitua dramático? Para ele, dramático seria todo teatro baseado em um texto com fábula onde totalidade, representação e ilusão de que o palco representa o mundo formariam a base do modelo dramático. Já no pós-dramático, esses elementos não mais constituiriam o princípio regulador do teatro, mas apenas uma de suas variantes. Para o teórico alemão, o teatro pós-dramático surge “no curso da ampliação e, em seguida, da onipresença das mídias na vida cotidiana. Desde os anos 1970, entrou em cena um modo de discurso teatral novo e multiforme, que é designado aqui como teatro pós-dramático” (LEHMANN, 2007, p.27). Esse novo modo de discurso teatral se afasta da síntese e projeção de sentido, conseguidos anteriormente, graças à linearidade narrativa do texto dramático, e se caracterizaria mais como um work in progress, com traços estilísticos, tais como: fragmentação da narrativa, heterogeneidade de estilo e elementos hiper-realistas. Segundo o estudioso, embora o texto não seja abandonado por completo, trata-se de uma dramaturgia que não se subordina ao texto e que pode se desdobrar por lógica própria. O texto não é excluído, mas não é mais considerado o suporte e o pressuposto da representação. É um elemento entre outros, no mesmo plano que o gestual, o musical e o visual. Nessa nova arte, nesse novo teatro haveria uma hibridização de linguagens artísticas, tais como: a performance, o happening, a dança e a utilização de diversas mídias eletrônicas e digitais. Lehmann aborda também a presença do imediatismo compartilhado entre artistas e o público, presente nas encenações pós-dramáticas, conferindo a elas uma característica de arte performática. Entre outros encenadores e companhias de teatro, Lehman destaca como representantes do teatro pós-dramático: Bob Wilson, Tadeuz Kantor, Peter Brook, Robert Lepage, Pina Bausch, Jerzy Grotowsky, Eugênio Barba, Wooster Group, La Fura Dels Bans, Station Opera House e Théâtre de la complicité.


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Teatro performativo, por Josette Féral Ao teatro pós-dramático de Hans-Thies Lehman, a pesquisadora Josette Féral prefere chamar de teatro performativo, porque “a noção de performatividade está no centro de seu funcionamento” (FÉRAL, 2009, p. 197). Fazendo uma incursão sobre a noção de performance, Féral cita os seguintes elementos como aqueles que inscrevem uma performatividade cênica: transformação do ator em performer; descrição dos acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão; espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto; apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia. Féral evoca dois eixos de análise, o da performance como arte e performance como experiência e competência, para mostrar que deles emergem as características da diversidade do teatro atual. Características essas que Lehmann analisa muito bem, segundo ela, e chama de teatro pós-dramático, mas que ela propõe chamar de teatro performativo. A partir destes eixos, a autora descreve algumas características que para ela estão no centro da obra performativa. A primeira trata do seu caráter de descrição dos fatos. Nas palavras de Féral (2009, p.197), “as obras performativas não são verdadeiras nem falsas. Elas simplesmente sobrevêm”. Na visão da autora essa é uma característica fundamental da performance. A segunda trata das ações que o performer realiza, da colocação em primeiro plano da execução das ações por parte dos performes. Seu corpo, seu jogo, suas competências técnicas são colocadas na frente. O espectador entra e sai da narrativa, navegando segundo as imagens oferecidas ao seu olhar. Neste ponto, Féral chama a atenção para o fato de que a performance joga com os códigos e as capacidades do espectador, toma lugar no real e enfoca essa mesma realidade na qual se inscreve desconstruindo-a: Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer instala a ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes do sentido. Trata-se portanto de descontruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem. (FÉRAL , 2009, p. 20).


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Dois outros pontos são destacados pela autora: o da multidisciplinaridade em cena e o da escrita cênica no teatro performativo. Com relação à multidisciplinaridade, Féral toma como exemplo a “poética tecnológica” de Robert Lepage, 61 na qual as tecnologias estão a serviço da arte do teatro. Trata-se de renovar o teatro por meio de outras artes. Segundo a autora, ele poetisa o banal por meio da tecnologia, que o leva a transformar em poesia o cotidiano. “Onde sentimos, com certeza, a influência do cinema (cortes nítidos; fusões encadeadas; mudanças de foco). É uma arte da metáfora que permite a estratificação do sentido (dos sentidos)”... (FÉRAL, 2009, p. 204). Sobre a escrita cênica no teatro performativo, Féral conclui que ela não é mais hierarquizada e ordenada; ela é desconstruída e caótica. Ela introduz o evento. Para ela: O performer confunde o sentido unívoco – de uma imagem ou de um texto – a unidade de uma visão única e institui a pluralidade, a ambiguidade, o deslize do sentido. [...] Esse teatro procede por meio da fragmentação, paradoxo, sobreposição de significados, por colagem, montagem, intertextualidade, citações, ready-mades. [...] A escrita cênica não é aí mais hierárquica e ordenada; ela é desconstruída e caótica, ela introduz o evento, reconhece o risco. Mais que o teatro dramático, e como a arte da performance, é o processo, ainda mais que o produto, que o teatro performativo coloca em cena... (FÉRAL, 2009, p. 204)

Fig. 2. Marcela Cavallini, Marcelo Ferreira e Ivny Matos, em Um corpo que cai (2014), Teatro Carlos Gomes. Foto: Jussara Martins

A Cia Teatro Urgente por seu diretor: entrevista com Marcelo Ferreira

62

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Lepage, La face cahée de la lune (A face oculta da lua) (2000): la machime à laver devenue cosmonaute (A máquina de lavar tornada cosmonauta). (NOTA) – Extrait: Kentridge. Woyzech. 62 Entrevista de Marcelo Ferreira, diretor da Cia de Teatro Urgente, à autora , em 30 de abril de 2020. A entrevista foi respondida por escrito.


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Na entrevista, o diretor Marcelo Ferreira fala da principal característica da Companhia, do processo de criação e referências enquanto encenador. Autora: Você é ator, bailarino, diretor, atuou como bailarino e produtor da Cia Neo-Iaô de Dança, de 1986 a 2000, e, atualmente, é diretor da Cia Teatro Urgente, desde 2003. É também pesquisador de poéticas performativas. Segundo Hans-Thies Lehmann, teórico alemão, as características do teatro pós-dramático são: não subordinação ao texto, ou seja, abandono do textocentrismo. Além da fragmentação, da heterogeneidade de estilo (hibridismo), de elementos hiper-realistas, hibridização de linguagens artísticas (performance, dança, utilização de mídias eletrônicas e digitais). Como espectadora dos espetáculos e por meio de pesquisas por informações, vídeos e fotos disponíveis na internet, consigo identificar esses elementos no vasto repertório da Cia. Você concorda que os trabalhos da companhia apresentam esses elementos? Diria que eles estão presentes em todos os trabalhos? Em quais você acha que podemos encontrá-los? MF: Desde meu trabalho com a Cia Neo-Iaô de Dança, junto com Magno Godoy, nossa busca sempre foi por renovar a linguagem nas Artes Cênicas. Já nos anos 80, fomos a primeira Cia. a trabalhar com vídeo-dança no Espírito Santo. A Cia Neo-Iaô situava-se no limiar do teatro e da dança, tendo como referência as pesquisas que tinham no corpo a sua origem. O trabalho de Mary Wigman no expressionismo gestual, a preparação dos atores de Jerzy Grotowiski, as experiências ritualísticas de Antonin Artaud e, em 1986, quando estávamos em processo criativo intenso nessa pesquisa de linguagem, assistimos a apresentação do bailarino japonês, mestre da dança butoh, Kazuo Ohno, em sua primeira visita ao Brasil, em 1986. Ter assistido Ohno foi revelador para a Cia. Identificamos em sua dança elementos que apareciam em nossas pesquisas de movimento, mas que não tínhamos coragem de assumir como linguagem. Faltavam-nos referências, sincronias com outros criadores. Ainda não tínhamos internet e as informações circulavam com mais demora pelo mundo. Estava, então, criada a dança

neo-iaô,

que,

trazendo

elementos

genuínos

de

nossa

pesquisa

de

interpretação/incorporação do candomblé, se aproximava do que vimos/presenciamos da dança butoh. Na Cia Neo-Iaô, os temas para as coreografias não vinham da dramaturgia teatral, mas das artes visuais, literatura e outras fontes. Em 2003, já como minha Cia. Teatro Urgente, retomo o trabalho com autores de teatro e começo com obras emblemáticas de Samuel Beckett. A partir de 2007, identifico componentes híbridos nas minhas primeiras obras autorais: a trilogia em homenagem ao cinema (Nosferatu, Metropolis e Fahrenheit 451). As referências


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vinham do cinema e também da literatura e as cenas misturavam dança, teatro, vídeo e artes visuais em sua composição. Em 2010, tive acesso à pesquisa do professor Lehmann sobre o teatro pós-dramático e pude amparar a pesquisa que fazia a partir de sua teoria sobre essa tendência no teatro, que ele observa a partir do final dos anos 90. Meus trabalhos a partir de 2007, portanto, podem ser considerados pós-dramáticos. Em 2018, defendi no mestrado em Artes a aproximação da Cia. Teatro Urgente ao eixo do teatro pós-dramático. Autora: Quais desses elementos estão mais presentes? MF: As criações não partem da dramaturgia teatral, mas viram textos autorais, no formato de roteiros, a partir de referências do cinema, artes visuais e da mídia. Textos em off, a presença de cenas inteiras em vídeo, cenas sem a presença de atores, a substituição do ator por objetos das artes visuais e/ou luz, a presença de uma dramaturgia sonora que pontua as cenas, criando atmosferas e a ausência do naturalismo, substituído por alegorias nos figurinos e maquiagem. Autora: Podemos dizer que existe uma peça mais pós-dramática, a mais pós-dramática de todas? Qual? MF: Dentre o repertório, destaco Mefisto 63; Crash64, Ensaio sobre a falência e Um corpo que cai 65. Obras que foram classificadas como “instalações cênicas” pelo público. Autora: Para aprofundar minha pesquisa sobre as referências pós-dramáticas do grupo, quais peças você indicaria? Uma, duas ou três, a seu critério. MF: As três peças que citei acima. Autora: Quando a Cia. Teatro Urgente foi criada, já existia essa influência pósdramática? A referência do teatro pós-dramático foi uma decisão ou foi acontecendo? Pode contar um pouco como foi? MF: Acho que já respondi essa questão no final da pergunta numero 1. Autora: Além de você? Quais são os integrantes da Cia atualmente? MF: Trabalho com meu assistente Raphael Newman, o iluminador Everaldo Nascimento e com a atriz Ivny Matos. Eventualmente, convido atores ou bailarinos para

Link para assistir ao espetáculo no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=xWIDWwRJRjY&t=164s 64 Link para assistir ao espetáculo no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=9utQ2AhU7Hc&t=66s 65 Link para assistir ao espetáculo no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=vWKJuXGuSCo&t=14 63


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determinados espetáculos. O único critério é já terem estudado ou trabalhado anteriormente comigo, devido a conhecerem a linguagem de matriz corporal, adotada pela companhia. Autora: Pode-se dizer que a grande maioria da plateia atual ainda esteja em busca de um teatro cujo contexto faça sentido, um teatro dotado de fábula compreensível. Você vê, nos dias atuais, espaço para encenações que não privilegiem esses elementos — embora sejam muitas vezes pouco compreendidos? MF: Há espaço para todo tipo de linguagem cênica. Porém, no Brasil, devido ao atraso na formação educacional, devido ao pouco investimento, e também na área cultural os conteúdos televisivos, cinema e mídias sociais (novelas, programas de humor, séries, musicais etc) condicionam o público já restrito do teatro ainda a acompanharem artistas que estão em evidência e a privilegiarem narrativas mais realistas e às vezes escapistas. Mas nunca tive receio do público e sempre lutei contra a taxação de ser hermético e pouco acessível, desde meus trabalhos junto à Cia Neo-Iaô nos anos 1980. Apesar disso, a Cia Neo-Iaô sempre teve um público, embora pequeno, mas fiel às suas produções. Com a Cia Teatro Urgente participo de editais de circulação e já tive possibilidade de levar trabalhos mais conceituais, como Mefisto, para cidades do interior do Espírito Santo. A solução é não discriminar qualquer tipo de público e, após a apresentação, conversar com a plateia, ouvindo suas dúvidas, situando o trabalho, apresentado a história da arte e do teatro, ensinando a apreciar esse tipo de obra. A compreensão, o entendimento do que é visto, nem é o mais importante. O público pode se emocionar, se extasiar com as imagens apresentadas, com a música, a luz, outros elementos que criam empatia e possibilitam um entendimento aberto do que se vê. Trata-se de obra aberta, no sentido dado por Umberto Eco 66, passíveis de múltiplas apreciações.

Umberto Eco (1932-2016) foi um escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano de fama internacional. Foi titular da cadeira de Semiótica e diretor da Escola Superior de ciências humanas na Universidade de Bolonha. 66


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Fig. 3. Marcelo Ferreira, CRASH, Ensaio sob a Falência (2015), Teatro Virgínia Tamanini SESC Glória (ES). Foto: Jussara Martins.

O encontro com a performatividade: Entrevista com Ivny Matos 67 A atriz Ivny Matos entrou para a Cia Teatro Urgente no ano de 2013, mas seu primeiro contato com o diretor Marcelo Ferreira foi em 1999, quando era estudante de radialismo no Centro Universitário Faesa — um centro universitário de Vitória/ES. Em sua entrevista ela fala da sua experiência com a poética do corpo da companhia, da sua identificação com o teatro do absurdo e do seu encontro com a performatividade. Autora: Ivny, para começar a nossa conversa, gostaria de saber desde quando você está na Cia Teatro Urgente? IM: a minha carreira de atriz se confunde com a minha história, com o do teatro urgente, porque comecei com o Marcelo. Não era exatamente teatro urgente naquela época. Fazia radialismo na Faesa e Marcelo era professor de expressão corporal. Era uma disciplina optativa e, obviamente, fui para fazer a disciplina. Gostei muito do Marcelo. A gente ficou amigos e ele criou dentro da faculdade uma companhia de teatro para fazer performances, criar espetáculos e cenas dentro da faculdade. E também levar para fora da faculdade. Aí... o primeiro espetáculo

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Trechos transcritos de entrevista de Iviny Matos, atriz da Cia Teatro Urgente, a autora em 30 de abril de 2020. A entrevista foi realizada por meio da plataforma Zoom e gravada em vídeo. Link para assistir à entrevista no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=8yB_chchURg&feature=youtu.be


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que ele montou foi o Édipo, que fez agora 20 anos. Foi em 1999. Depois, ele fez o “Édipo Vai ao Divã”, que foi uma adaptação do Édipo Rei, que foi incrível. Um sucesso maravilhoso. Um texto maravilhoso... e ali eu fui substituir uma atriz, a atriz principal que fazia Jocasta, e acabei ficando no espetáculo. Foi a minha estreia. Autora: Você era estudante ainda? IM: Desde então eu era estudante da Faesa. Foi em 1999, quando tinha dezenove anos. Depois deste espetáculo, fui para Ouro Preto fazer Artes Cênicas e depois para o Rio. [...] quando foi em 2013, mais ou menos, voltei de vez para a Companhia. Já era a Cia Teatro Urgente. Ele já havia feito montagens com outras pessoas, de Beckett. Inclusive, o assisti no teatro de Guaçuí, com Fahrenheit. Autora: [...] que ele está querendo remontar agora? IM: Exatamente. Neste meio tempo, eu estava em Ouro Preto e no Rio ele fez Fahrenheit e Nosferatu. Estava morando no Rio e assisti Nosferatu lá. Depois, assisti Fahrenheit aqui no Teatro Municipal. Já estava de volta ao Espírito Santo. Entrei com ele em Um Corpo Que Cai, não, desculpa!, com Ópera Pobre... [...] Isso... a gente emendou esses três espetáculos Ópera Pobre, Um corpo que Cai e Plugged, é isso. Resumindo é isso aí... quando foi agora, ele remontou a última experiência que tivemos juntos... Ele me convidou para fazer uma participação especial, que pra mim foi muito especial porque foi uma comemoração dos meus 20 anos de carreira, que comecei exatamente com o Édipo, entendeu? Autora: É um trabalho muito forte de corpo. Que é até uma coisa que gostaria de perguntar. Primeiro você falou sobre o texto. Isso é uma característica forte na companhia do teatro urgente de Marcelo. É uma característica do teatro pós-dramático você abandonar o texto. Mas não abandonar totalmente, pois não é o texto que te guia. Não é ele que faz o espetáculo, mas você. O diretor abandona um pouco o texto e faz um hipertexto. E o Marcelo faz isso o tempo inteiro na companhia. É um trabalho grande de pesquisa. Queria perguntar se você participa também em algum momento, se você se envolve na pesquisa, na criação dos espetáculos, ou se em algum espetáculo você participou da criação dessa questão do texto... se é uma coisa mais dele (MF), por exemplo. Por outro lado, a performatividade também é uma característica forte do pós-dramático e que é forte também na companhia, o que exigem muito do ator. Ele (MF) mesmo colocou na dissertação de mestrado o trabalho que os atores da


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companhia têm de preparação do corpo. Como que são essas duas coisas? A questão do texto... de alguma forma, você participa na criação ou já participou? Ou da pesquisa? Ou a sua participação na pesquisa se dá de outra forma e essa preparação, essa questão da performatividade, como que é ela pra você? IM: Então, o que você falou do texto... se eu participo. O Marcelo quando cria um espetáculo, seja a partir de um texto, e normalmente é a partir de obras clássicas, de obras muito fortes, emblemáticas do teatro mundial... já vem com uma concepção assim. Ele sabe o que quer, mas também respeita muito. Porque ele chega, joga e é aquilo dali... ele [MF] confia no trabalho e vou dar conta de fazer. Nesse sentido de colocar também a minha expressão. Dentro do que ele quer... Autora: Ou seja, ele quer a participação no processo de criação, que se dá já no momento dos ensaios, da preparação e do espetáculo. Nesse momento, de alguma forma, vocês atores participam desse processo de criação mais nessa fase? IM: Com certeza. Como você já deve ter visto, é uma espectadora e acompanha o trabalho do Marcelo. Além de estar pesquisando, existem características muito marcantes, assim como a maquiagem, aquela coisa do butoh, do expressionismo. É uma marca que ele tem nos espetáculos. São coisas que eu, por exemplo, que já estou no terceiro espetáculo seguido, já entendo essa marca dele. Já sei quando fala para fazer assim ou fazer assado. Já entendo o que está querendo dizer, que é a marca da companhia. Autora: Ou seja, tem uma marca, uma proposta clara. Como disse: a performatividade é muito marcante. Você concorda? IM: Muito marcante. Claro, com certeza. Inclusive Lena, nesse processo de descoberta artística, sou atriz, artista e ainda.... me questiono sobre essa arte do ator, da interpretação, porque, inclusive, acho que me descobri performer mesmo, ao longo da minha experiência de palco de cena e atuação de interpretação. Acho que essa característica tem muito a ver com o trabalho da Cia Teatro Urgente. Acho que não foi uma coincidência, mas um encontro mesmo. Talvez aí esteja a nossa química, entendeu? Essa coisa da performance de eu me jogar. Estou me jogando. É uma coisa que assim, porque a performance do ator está acima da proposta. E essa é a característica que o Marcelo tem. Quer dizer, independente do pano de fundo, você bate o olho, você sabe que o trabalho é da Cia Teatro Urgente. Você sabe que o Marcelo está por trás daquilo ali. [....]


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Então... vou até puxar um gancho pra uma coisa que já ia comentar, que acho que tem espaço pra tudo. O teatro do Marcelo é uma outra coisa que eu gosto muito, me identifico enquanto artista criadora. Também quando vou criar isso tem a ver com a minha experiência com a companhia, é o teatro engajado. É o teatro com propósito. Um propósito político e social. Uma coisa assim sabe! não tem aquela coisa da arte? se eu não fizer eu morro. Não tem essa filosofia? se eu não fizer isso eu morro. Por isso que a companhia se chama Urgente. Autora: É a necessidade. IM : Inclusive você sabe que tenho tatuado aqui né? Autora: Não, não sei... IM: O Marcelo tem essa tatuagem... Eu fiz, e o Marcelo tem e depois de alguns anos eu fiz. Autora: Você, assim como ele, está tomada, né?! Essa coisa te pegou mesmo. Você está tomada por essa urgência que ele coloca no teatro, nessa necessidade de falar, dizer coisas por meio do teatro. Dessa linguagem... Vou até mais longe nessa linguagem específica que hoje é... que é uma marca do teatro contemporâneo de vários grupos. Essa coisa pós-dramática que tem essa característica da fragmentação, de querer dizer alguma coisa. E não só contar uma história. IM: Tem a ver essa coisa do Teatro do Absurdo, que ele usa muito. Ele se identifica com essa coisa do Teatro do Absurdo e tal. Tem também essa coisa fragmentada e que tem uma coisa engajada, porque o teatro do absurdo nada mais é do que aquele grito das pessoas, no pós-guerra, que é muito o que a gente está vivendo hoje também com essa pandemia, por exemplo, né?! Tem esse engajamento. Não é o teatro pelo teatro. Não é assim: Ah! vou fazer porque é bonitinho, não! Existe uma urgência, uma coisa que preciso falar. Preciso falar, então acho que o que é difícil às vezes para as pessoas entenderem é: como que eu vou fazer um teatro engajado, que tem um discurso político, que tem uma urgência e, ao mesmo tempo, com o pós-dramático? que não é uma historinha contada. [...] Autora: Acho que toca o fato de ser pós-dramático, toca muito mais as pessoas. IM: Exatamente. Inclusive por essa via, pela via do estranhamento. Autora: Pela via do estranhamento. Tem uma coisa também: a gente falou do Ópera Pobre, né?! Mas você acha que espetáculos outros, teriam mais elementos pós-dramáticos? Até você comentou: o Ópera Pobre não é tanto, também acho. Por exemplo, o outro elemento que vocês usam demais, que o Marcelo usa sempre, é o vídeo. E outros elementos, como música. Tem


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muito essa questão de ser uma coisa audiovisual, com vídeos, um filme, ele [MF] usa muito nos espetáculos, além da performatividade. [...] IM: Dos que eu fiz, sem dúvida é Um Corpo Que Cai, que tem essa coisa muito plástica: vídeo, imagem, movimentações, muito, sabe!... quadros mesmo, quadros. Autora: Aliás, é uma referência que ele [MF] usa muito e coloca isso na dissertação de mestrado dele. Ele usa muito a questão das artes plásticas e das artes visuais como referência. IM: Artes plásticas, fortíssima. A luz, né?! Autora: A cena... o momento em que o espectador vai ficar em silêncio, observando, tendo contato com aquele quadro, com aquela obra, como se fosse na...sei lá, numa galeria, ou como se tivesse vendo mesmo uma obra de artes plásticas. IM: É o impacto visual, o impacto visual que ele usa né. Sempre uma luz muito pensada, uma luz incrível, que você olha, dá aquele choque. Autora: E o som também, a trilha., também influencia... Eu acho que a trilha. IM: Sim, sim, não economiza. Autora: São muitos elementos... a gente chega na questão do hibridismo, que é uma característica do pós-dramático. Usa todos esses artifícios em cena para fazer o que a gente chama do hipertexto. Quer dizer, isso tudo faz com que o texto não seja só aquele texto escrito a ser seguido pelos atores, mas, acrescenta, coloca, faz o texto, isso tudo faz o texto. Iviny, olha pra mim está maravilhoso. Você tem mais alguma coisa assim, que você quer acrescentar, que você quer falar, sobre o teatro, alguma coisa que lembra... . IM: Queria só fazer um comentário em relação a essa... é quase que uma homenagem. Um reconhecimento na verdade ao teatro que o Marcelo faz hoje no Espírito Santo, que acho que é um nível... não é nível de Espírito Santo. Se for olhar assim pela qualidade, acho que ele é um nível São Paulo, em termos de qualidade, de teatro, de pesquisa. Pra mim é uma honra enorme fazer parte disso, ter a confiança do Marcelo, de trabalhar com ele nesses espetáculos. Acho que é um exemplo muito do que a gente está sentindo agora, está vivendo agora. Dessa genialidade dele, dessa coisa... porque o artista que ele é gênio. Vê longe. [...] Quando ele criou Plugged, a princípio... você assistiu Plugged? Autora: Sim, estava na estreia no Teatro de Vila Velha.


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IM : O Plugged é chocante pelo próprio texto do Beckett, dos Dias Felizes, e essa sacação que o Marcelo teve de colocar a pessoa, essa leitura que ele teve de colocar a atriz ali plugada no celular e hoje nós estamos vivendo exatamente isso, Lena! Autora: Sim. Exatamente isso IM: Entendeu? Olha nós aqui. Olha o que que a gente tá vivendo. Ai de nós, se não estivéssemos plugadas. Estamos vivendo isso, verdade! Tem tudo a ver. É essa coisa que você estava falando, de que o artista tem é uma visão do que vem ainda, É uma antevisão. Autora: pra terminar nossa entrevista, alguma coisa que queira acrescentar? IM: Então Lena é... queria fazer uma observação relacionada a essa sacação que o Marcelo teve com Plugged... que, na época, foi bem ousado de fazer essa releitura do Dias Felizes, com essa coisa do Plugged. O personagem tá ali no celular e hoje [...] a gente nunca imaginou que isso fosse se transformar numa única opção de comunicação. Naquela época, quando ele fez, era uma opção. As pessoas já estavam muito envolvidas. Já tinha virado uma patologia. Uma coisa que já estava fazendo mal para as pessoas. M, hoje já é outra coisa, é a única opção!... Não tem outra mais. Acho que foi uma... é coisa que o artista tem, uma coisa visionária, que nem ele mesmo controla, nem sabe porque que ele está fazendo aquilo ali. Mas é claro que há pesquisa, experiência de vida, uma carga de leitura, uma carga de outras coisas que um artista como o Marcelo vai adquirindo, vai ficando no inconsciente e que quando coloca pra fora, ele mesmo não tem consciência do que está propondo. Acaba que a gente tá vivendo. A gente tá vendo que essa profecia que ele fez em Plugged. Tem um poeta, tenho quase certeza que o Ezra Pound, que fala que o “artista é a antena da raça” e é exatamente isso. Esse captar assim... Autora: Obrigada, pela entrevista.


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Fig. 4. Ivny Mattos, Um corpo que Cai (2014), Teatro Carlos Gomes. Foto: Jussara Martins.

A tecnologia no teatro pós-dramático: Entrevista com Raphael Newman 68 O sound & vídeo designer da Cia Teatro Urgente, Raphael Newman, está na companhia desde a sua fundação em 2003. Depois de passar pela maquiagem e contrarregragem, hoje participa do processo de criação junto com o diretor da companhia e atua no desenho de som e imagem. Sua entrevista é um depoimento vibrante da construção da linguagem híbrida que caracteriza as encenações da companhia. Autora: Raphael, além de designer de som e de vídeo da companhia, você faz mais alguma outra coisa na Cia Teatro Urgente? Também queria saber, quando você entrou na Companhia? Como foi e quando entrou e o que mais você faz além de ser o sound and video designer da Companhia? RN: Bom... entrei na companhia de teatro com o Marcelo Ferreira, quando iniciou o trabalho em 2003. Ele queria montar uma companhia de teatro. Dois amigos meus começaram junto com ele. Foi o Anderson Café e o Rafael Malta. Eles pediram para ele assim, enlouquecidamente, pegar um texto para montarem alguma peça. Ele pegou Fim de Partida,

Trechos transcritos de entrevista de Raphael Newman, sound and Designer da Cia Teatro Urgente, a autora em 21 de maio 2020. A entrevista foi realizada por meio da plataforma Zoom e gravada em vídeo. Link para assistir à entrevista no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=mhzHIW5-jds&feature=youtu.be

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de Samuel Beckett 69 e resolvemos adaptar para uma montagem. A gente estava nos primeiros ensaios. Ainda não tinha entrado o Anderson, que me apresentou ao Marcelo. Ele nem era meu professor. Foi meu professor, depois meu orientador. A gente estava na faculdade e foi aí que comecei a me aproximar do teatro [...] O teatro me deu a possibilidade de fazer e de trabalhar. Uma coisa que não tinha trabalhado até então. Entrei na faculdade de Rádio e Televisão. Fiz Comunicação Social - Rádio e Televisão. Busquei justamente não trabalhar na frente do palco, na frente da TV, na frente da câmera. Sempre quis trabalhar nos bastidores. [...] Meu primeiro processo mesmo de contato com a companhia foi em 2003, quando a gente fundou. Hoje, sou membro mais antigo da companhia, junto com o diretor Marcelo Ferreira. Porque de todos, assim que foram entrando, saindo, viajando, mudando… eu mesmo fui morar no Rio de Janeiro, mas voltei pra cá. Nunca deixei a companhia em si. Porque mesmo quando fui morar no Rio de Janeiro, continuava produzindo trilhas sonoras, fazendo parte de iluminação, o desenho de imagem, o desenho de som para os espetáculos serem apresentados aqui... para mim foi isso. Autora: Você participou de todos os espetáculos da companhia, desde 2003? RN: Exatamente, de todos os espetáculos. Autora: Você faz bastante coisa nesse processo todo... RN: Sim. Comecei fazendo a parte de maquiagem. Depois fui fazer, como é que fala?! contrarregra. Fazendo a contrarregragem, mas depois a gente foi fazendo a iluminação, enquanto o Marcelo, tinha que dirigir, né! Fui fazer montagem de iluminação, depois fui fazer sonoplastia. Depois, desenho de som, que era a composição mesmo de trilhas pra espetáculo. [...] Pela minha formação ser em Rádio e TV, na parte técnica, eu tinha muita facilidade. O Marcelo ajudava a gente a explorar essas características que cada um tinha. Fui desenvolvendo mais essa dinâmica, digamos assim, como é que posso dizer... não é um dom, mas é essa a experiência. Autora: O Marcelo na dissertação de mestrado dele, fala justamente sobre o sobre a Cia Teatro Urgente, inclusive destacando esses aspectos pós-dramáticos do trabalho da companhia. Ele coloca na dissertação que essa questão da atmosfera sonora que é criada durante a peça, os efeitos, é uma trilha especial, além de ter as músicas de compositores, e mais uma trilha original que vocês criam. E você é um parceiro dele na criação dessa trilha. A trilha, essa base sonora interferindo na cena, os ruídos que vocês criam, as ranhuras, um raio, um grito, tem um papel Samuel Barclay Beckett ( 1906 - 1989) foi um dramaturgo e escritor irlandês. Recebeu o Nobel de Literatura de 1969. Utiliza nas suas obras ,uma riqueza metafórica imensa, privilegiando uma visão pessimista acerca do fenômeno humano. É considerado um dos principais autores do denominado teatro do absurdo. 69


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porque a trilha sonora no teatro pós-dramático tem um papel importante, porque o teatro pósdramático foge do textocentrismo. O texto passa a ser tudo, a imagem, o som, os elementos de mídia que vocês colocam, o que ele como diretor coloca. O texto passa a ser só mais um elemento e o todo não se subordina ao texto. A questão sonora, ela também é um elemento bem importante, e você falou desse seu processo na participação da companhia. Você acaba participando da criação do espetáculo também ou fica por conta do Marcelo enquanto diretor? Considera que a criação é com ele? Quando entra em parceria na criação da trilha, você acaba participando da criação da cena em si em espetáculos ou interfere no texto também? RN: Sim. Hoje sou assistente de direção do Marcelo, da Cia Teatro Urgente. Já sou uma função bem maior no caso. Estou do lado dele. Exatamente. Auxiliando no que falta, no que ele sente necessidade de expressar. Já entendo a linguagem que a companhia de teatro desenvolve. É uma linguagem que foi evoluída de outros processos e que Marcelo escreveu na dissertação dele. Que já vem trabalhando desde os anos 1980, com o nosso falecido Magno Godoy, que foi um ator fantástico. Eu sempre participo, respondendo a sua pergunta sobre interferências textuais... tem muito texto meu ali, muitas coisas. Marcelo é muito crítico, muito irônico, muito rápido. Também isso vem no texto que a companhia propõe, de não ser uma comédia muito dada, se ela tem uma pegada de comédia, é uma comédia mais densa, mais reflexiva. Não são coisas muito literais, a não ser que realmente precise ser uma coisa muito literal. Mas tem muitos textos que são criados assim de conversas nossas. O processo todo é coletivo. A gente sempre conversa um com outro com relação ao que a gente pode melhorar. O próprio Plugged, Ensaio sobre Dias Felizes, que foi um dos trabalhos mais recentes que a gente fez pela companhia, é uma adaptação de Dias Felizes, de Samuel Beckett. A gente resolveu depois de quase 15 anos da companhia, reviver Samuel Beckett, dessa vez com a atriz Ivny Matos. [... ] Autora: A questão do vídeo é sempre usada nos espetáculos? RN: É um recurso que a gente já usa desde o início. Desde Godot. 70A gente tinha algumas ceninhas que a gente comprou um projetorzinho pra projetar nem que fosse uma foto. A gente começou a projetar outras coisas depois em Nosferatu, em Metrópolis. Eram cenas em vídeo, depois que a gente foi evoluindo para o videomapping, que é o mapeamento do palco, Godot é uma peça de teatro escrita pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Escrita originalmente em francês, foi publicada pela primeira vez em 1952 e apresentada no pequeno Théâtre Babylone em Paris. 70 Esperando


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mapeamento de elementos com o vídeo, que a gente conseguiu introduzir. O vídeo como parte de um cenário mesmo e não só do texto, mas como um elemento de cenografia também onde as coisas devem interferir. Era uma porta, uma estátua que cai, uma bolsa, um meteoro que chega, alguma coisa que chega assim. Em 2011, a gente fez Playbecktt, que foi um espetáculo onde o vídeo é mais protagonista do que a própria [inaudível] no palco, porque havia mais cenas e cenas muito mais longas em vídeo. E pausas entre aspas de um vídeo para o outro, que eram cenas isoladas porque como o nome já diz, a gente estava fazendo como se fosse um tipo de um mundo depois que acabou. Foi no período de 2011, que teve aquelas chuvas fortes aqui no Espírito Santo. Choveu janeiro inteiro, alagou tudo. Marcelo escreveu essa peça em menos de um mês falando justamente sobre isso. Sobre um grande dilúvio que matou todo mundo... e acharam uma fita de um ator, de um curador, na verdade, que ele deixou esse... essa memória dele ali gravada e a gente... e é o que vai tocando então a gente deixou as imagens ali gravadas e é o que vai tocando, então são as imagens, tudo em vídeo, é usado muito o back, porque a gente usa muito a questão do playback, então usa muito o som como elemento principal...

Fig.5. Playbeckett (2011), Teatro da UFES. Foto Raphael Newmann

Autora: Nesse caso de Playbeckett, tem muito som de playback mesmo, gravado? RN: É como se fosse uma entrevista gravada. É totalmente gravado. [...] existia o narrador que era o ator principal. Foi o Eduardo... então a gente gravou em estúdio. Gravamos todas as falas. Fizemos as gravações em vídeo numa lagoa para mostrar justamente o contraponto de como se estivesse alagado mesmo [...] Fizemos planos como se tivesse feito um alagamento numa cidade. Foi um dos trabalhos mais bonitos que a companhia fez e um dos trabalhos mais ricos nesse aspecto de interferência do audiovisual no espetáculo. Não que as


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outras peças não tivessem. Um Corpo que Cai, por exemplo. Respondendo também a pergunta que você fez, de como que a música ou som, os ruídos, eles interferem no pós-dramático... em Um corpo que Cai desenhei uma linha de som toda voltada para teatros, que tivessem assoalhos de madeira, justamente porque a gente usava graves, subgraves, que são ondas mais baixas do que as ondas agudas. As ondas agudas, elas permeiam muito no alto, graves aqui e os subgraves mais abaixo, dependendo da potência do subgrave que você faz, que você coloca... faz tremer. Quando a gente vai para o show, fica na frente da caixa, sente tremer o coração, as pernas. Como em Um Corpo que Cai, tinha muito essa coisa de terremoto…. o mundo estava acabando nisso: maremoto, terremoto…. a gente queria que a trilha interferisse. Havia o momento que a trilha subia como um terremoto mesmo, causando essa experiência pós-dramática do próprio som. O subgrave que faz as pessoas sentirem um terremoto. Gravar o próprio som interfere no espetáculo. O som é assim. Autora: Estava assistindo o Mefisto, porque na minha pesquisa, estou vendo os espetáculos. Aqueles que já havia visto estou vendo de novo. O Mefisto tem muito isso no início... quer dizer, o som alto, depois abaixa, a voz também…A voz que não é falada ali na hora, é uma voz modificada... RN: Metalizada, robotizada, a gente utiliza muito isso. Que é o que tem disponível. Na produção, na pós-produção, a gente manipula de acordo. Às vezes, são dois atores fazendo mil personagens. A gente consegue manipular a voz. [...] Autora: Não é só alguém falando, mas uma voz estranha, uma música, um barulho [...] Como se criar o texto não fosse separado da trilha, de criar o som… RN: Não. Nunca foi. Até mesmo antes de o som ser criado. Quando o Marcelo [Ferreira] está escrevendo ou adaptando algum texto, ele utiliza dos recursos que têm mesmo se for da trilha. Vai perguntando pra mim, a gente vai debatendo, pesquisa junto sobre aquele assunto. Vai trocando, intercambiando muitas coisas, como trilhas sonoras, por exemplos, de compositores pós-dramáticos, pós-modernos, compositores contemporâneos, todos os tipos de música, inclusive música instrumental, tribal, medieval... todos os tipos de música, de elementos sonoros que a gente consegue e que nos auxilia. Muitas trilhas de filmes, compositores de filmes. Porque sou um cinéfilo, ele também é. Temos vários compositores que são nossas paixões. A gente acaba ouvindo. Até mesmo quando não estou compondo para o teatro. Quando estou compondo para o teatro, também ouço. Não que eu utilize os mesmos


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elementos, mas me leva a produzir alguma coisa parecida. Ou aquele sentimento daquele filme, daquela cena, me relembra alguma coisa que me faz pensar no que posso desenhar de som para o espetáculo. Autora: Acho que você já respondeu em parte a minha próxima pergunta. Identifico elementos do teatro pós-dramático, mas você especificamente vê esses elementos além do som, essa utilização de outras mídias, uma das características do pós-dramático. Essa coisa do hibridismo. A questão do texto, você identifica essas características do pós-dramático nesse tempo todo que está na companhia? Que é desde o início, desde 2003, até agora? Tem algum espetáculo que você acha que é mais pós-dramático? Que tem mais esses elementos que você já falou? A questão do vídeo... RN: Playbeckett acho que tem muito essa questão do som e do vídeo. Por conta de ter acabado num dilúvio, por exemplo, que aconteceu e dizimou a população. E um curador de arte... ele resolve fazer uma gravação, e essa gravação é encontrada, e o espetáculo começa com a gravação já explicando tudo... que ele morreu e deixou ali o registro sobre as impressões da vida, sobre a visão dele. Ele já começa, o espetáculo, com uma trilha sonora de gotas de água, gotículas, onde você identifica que é água...é como se aquela chuva tivesse acabado, mas o resquício daquela água continuasse ali, pingando. Você vai se sentindo encharcado automaticamente... ao ouvir aquele barulho característico de pinguela ou de uma chuva vindo, ela chegando, os trovões. Muitas pessoas perguntavam: mas está chovendo? Eu não trouxe guarda-chuva. [...] Como eu te falei, o espetáculo que tem mais interferência pós-dramática em áudio e vídeo seria o Playbeckett. Nesse caso, foi quando a gente começou a fazer mais e a utilizar mais desse elemento. Depois dele todos os outros Mefisto, Ópera Pobre, em Um Corpo Que Cai, Plugged, foram muitos espetáculos que a gente teve muita interferência de vídeo e também muita interferência de atmosfera de áudio, mas os primeiros, por exemplo, que foi Back to Beckett, Ponto de Partida, a gente fez essa duplinha de Samuel Beckett e depois fez uma homenagem ao cinema. O Marcelo resolveu fazer uma homenagem ao cinema antigo. E a gente fez Nosferatu, Metrópolis... Autora: A trilogia que ele chama... RN: Isso é uma trilogia que a gente fez que foi homenagem ao cinema. Foi Nosferatu, Metrópolis e Fahrenheit 451. Esses três espetáculos também tiveram trilha sonoras especiais, compostas, trilhas originais. Todos eles tiveram trilhas específicas para o espetáculo. Inclusive, a trilha de Fahrenheit foi premiada, ganhando o prêmio de melhor sonoplastia no Festival


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Nacional de São Mateus, eu acho que em Guaçuí, em 2009. Foi uma trilha muito feliz, que ambientou justamente essa coisa da perseguição, que ele queria passar, dessa dificuldade que, tanto o livro do Ray Bradbury, quanto o filme do Truffaut tem essa atmosfera densa, pesada. Então foram elementos de pesquisa que eu utilizei para compor uma coisa diferente completamente diferente que a gente queria fazer uma coisa mais... mais sombria, mas ao mesmo tempo que fosse... porque no teatro a gente amplifica muito... no cinema você pode colocar uma coisa sutil lá que ele ficou. Você pode repetir quinhentas vezes, no teatro você não tem como fazer ele tem que ser exagerado ele tem que ser expressionista né?! digamos assim...Ele é muito ampliado... Autora: E tem que ser naquela hora, né! É o que acontecia naquela hora… [...] Exatamente. A trilha tem que ser muito pontual. Quando entrar o trovão para dar a deixa ao ator, ela tem que ser pontual. Quando ela for entrar para fazer uma passagem da chuva... começou a chover, tem que ser bem pontual, bem marcada. Ela tem que vir num crescendo, para que não fiquei muito errada tecnicamente. Apesar de que o errado tecnicamente não existe no teatro pós-dramático, porque a trilha falhando pode ser o efeito que você quis causar naquele momento [...] Não existe errado e certo. Existe o ensaiado e o ensaiado é o que você pretende chegar, naquele ponto. Mas acho que o Playbeckett é um dos espetáculos que tem mais interferência pós-dramática. E, dessa questão da trilha e do vídeo, e Um Corpo Que Cai também foi um espetáculo que teve muito mapping. Muito vídeo-cenário. A trilha é muito pontual também. As coisas caindo com um terremoto nos subwoofers. A gente utilizou esses subgraves. Justamente, foram caixas especiais que a gente pediu para instalar no teatro, para justamente causar essa impressão onde as pessoas se sentiam realmente dentro de um terremoto. Não sabiam o que estava acontecendo, assim tremia a cadeira dentro do teatro. No cinema, a gente chama de 4D, em que a cadeira treme, cresce, vai para frente, para trás, a gente a gente causa essa sensação só com o som. [...] Autora: O Mefisto também, aquela coisa do começo, aquelas cabeças, aquele efeito de 3D... É mais o visual. É bem marcante também, né? Sim. O Mefisto foi um dos primeiros espetáculos que a gente fez com o mapping. Acho que foi o primeiro assim com o mapping. Que a gente teve o auxílio de uma empresa que se chama Pix Flux [...] quando a gente estava montando Mefisto, o Marcelo [Ferreira] queria uma coisa diferente e a gente resolveu simplificar, porque a gente tinha vindo de um espetáculo, que foi


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o Metrópolis, depois o Fahrenheit e o Stultifera Navis... o Stultífera Navis tem muito... como é que fala?... muito elenco. E no Fahrenheit o elenco era menor, mas tinha elementos assim... muita cenografia. Coisas grandes, pesadas para carregar. E o Metrópolis nem se fala. [...] A gente vem de espetáculos com cenários muito grandes. E começamos a querer reduzir esses espetáculos, esses cenários, na verdade, a ponto de que não fosse necessário muita coisa. [...] o Marcelo teve uma experiência com a Maura Baiocchi, 71 quando ele fez Stultífera Navis, que foi através de um edital de residência do Estado, onde ele tinha que trazer um artista convidado para poder ajudar a criar a obra. Ele convidou a Maura Baiocchi e a Maura conversou com o Marcelo. Uma das falas que lembro dele ter me contado, porque não estava aqui no processo. Estava no Rio... e estava voltando pra cá, mas já estava compondo para ele. E a cuia? Como que a gente vai fazer essa cuia? Ela falou: mas se a cuia estiver no imaginário das pessoas, só no movimento. Então... só no movimento e não precisar ter a cuia? Aí o Marcelo começou a querer simplificar cada vez mais. A gente começou a jogar as coisas para o vídeo, os cenários eram vídeos. A gente começou a crescer... o cenário com esses vídeos. E a diminuir o palco em si com o elemento físico. [...] Autora: Acabou que isso se incorporou de tal forma no espetáculo, que deu também esse outro tom mais pós-dramático na encenação, na cena... RN: Sim... as cabeças, como você falou. A gente projetava no palco. Começava a projeção no palco frontal e depois a gente ampliava trezentos e sessenta graus. Todo mundo olhava, que era assim, era cíclico. Começava na frente projetando... [inaudível] no fundo. E depois nas laterais. Elas iam abrindo e a pessoa olhava pra cima, olhava para o lado e tinha cabeças por tudo quanto é lado, por causa de um jogo matemático de cruzamento, de projeção... a gente conseguiu mapear trezentos e sessenta graus... o ambiente, a sala, o teatro, onde a gente estivesse se apresentando. E montar onde gente queria que as cabeças aparecessem. Esse é o trabalho maior. O cenário era todo montado, específico para cada ambiente. A gente tinha os elementos que eles deveriam entrar, mas eles entrariam naquele momento, naquela parte do espetáculo, naquela janela, naquele buraco que tem no ar condicionado, onde dava para projetar a gente projetava. Para causar essa impressão que as pessoas estavam rodeadas de cabeças. Autora: Rafael, a gente está falando do som, do vídeo, de outros elementos. Mas que tocam muito o público. Nessa questão, queria fazer uma última pergunta. Depois, se você quiser 71 Maura

Baiocchi é encenadora, coreógrafa, performer e atriz. Depois de viver no Japão e estudar com os mestres Kazuo Ohno e Min Tanaka, trouxe para o Brasil o butô, arte cênica que mistura dança e artes dramáticas.


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acrescentar alguma coisa, pode acrescentar. E é justamente em relação ao público. Você acha que o teatro pós-dramático... que não tem aquela historinha com começo, meio e fim... Uma das características é a fragmentação... Que causa o estranhamento. A expectativa do público maior, ainda hoje em dia, é de ir ao teatro e ver essa historinha contada. Ele vai sair de lá bem, confortável, no final da história. E, quando, muitas vezes, vai a um espetáculo desses, muita gente fala: ah! se fosse assim não viria, não entendi nada. Fica tentando entender... você acha que tem espaço para o teatro pós-dramático? Acredita que tem espaço para esse tipo de teatro aqui no Espírito Santo? RN: Olha, Lena, a gente tem uma experiência muito grande, porque como te falei, a gente está desde 2003 com a companhia de teatro. Pelo menos eu estou, desde 2003 com o Marcelo e com a Companhia Teatro Urgente. A gente já viajou muito para o Brasil inteiro, mas também para o interior do Estado do Espírito Santo. Muitas das coisas que a gente pensava, era justamente um pensamento até meio preconceituoso, se as pessoas, se elas não entenderiam o nosso tipo... a nossa proposta de teatro. A gente pensava, ah!, por que no interior as pessoas não vão entender a história do Nosferatu. Não vão entender o Mefisto. Mas sempre em todos esses espetáculos a gente tem um bate-papo no final. [...] Muitas das pessoas, elas têm aquele momento de parar quando as luzes acendem até elas entenderem e processarem aquilo [...] Sempre percebi que as pessoas, elas entendiam o espetáculo [...] por mais que não tenha uma historinha roteirizada, certinha, de começo, meio e fim, toda cíclica, certinha, [...] acho que a gente tem espaço para esse tipo de arte. Sim, o ser humano tem uma capacidade muito grande de imaginar. Ele consegue quando ele quer. Quando a pessoa vai, ela senta e se propõe a estar ali, por mais agoniante que seja. Depois, quando tudo passa, a pessoa vivenciou uma experiência diferente. Aquilo que gratifica muito a gente. A pessoa pode não gostar, pode ter não entendido nada, mas vivenciou aquilo de uma forma única. Vejo que ela compreende no final das contas, mesmo que o texto não tenha sido compreendido, mesmo que a ideia do espetáculo não tenha sido compreendida, compreende a arte em si. [...] o mínimo que seja, a pessoa entende... Cada um interpreta de um jeito, por mais mínimo que seja, alguém vai levar uma referência daquilo para si ou vai descobrir uma própria referência dela, mesmo ali, que ela já viu, ou que já foi impactada por aquilo. Acho que o teatro sempre vai ter o espaço. Autora: Rafael, quero agradecer muitíssimo por ter se disponibilizado a gravar essa entrevista. Contribuir com meu trabalho de pesquisa. Se você quiser falar de mais alguma coisa sobre o trabalho, sobre as peças dentro dessa minha perspectiva de pesquisa, fique à vontade.


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Para mim foi superimportante a nossa conversa. Olha... quero também parabenizar pelo seu trabalho e pelo trabalho da companhia. [...] RN: Faço com maior prazer! Faço pela arte, pelos artistas e pela cultura. Sempre que você precisar pode contar comigo para tudo com relação a isso, ao teatro, à cultura. Pode ter certeza quando me chamar estou aqui.

Fig. 6. Marcelo Ferreira, Mefisto (2013), Teatro Carlos Gomes. Foto: Jussara Martins

Índices do teatro pós-dramático na Cia Teatro Urgente Nas respostas e comentários dos artistas entrevistados encontramos indicações da inserção de elementos que caracterizam o teatro pós-dramático. O próprio diretor da companhia afirma que, a partir de 2010, pôde amparar suas pesquisas no trabalho do professor Hans-Thies Lehmann, identificando componentes híbridos nas suas primeiras obras autorais, a partir de 2007. Cenas que misturam dança, teatro, vídeo e artes visuais em sua composição. Textos que possuem o formato de roteiros, a partir de referências do cinema, artes visuais e da mídia. Textos em off, a presença de cenas inteiras em vídeo, cenas sem a presença de atores, a substituição do ator por objetos das artes visuais e/ou luz, a presença de uma dramaturgia sonora que pontua as cenas, criando atmosferas e a ausência do naturalismo, substituído por alegorias nos figurinos e maquiagem.


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Tomando as respostas do sound designer da companhia, Raphael Newman, verificamos a intensidade de utilização dos elementos audiovisuais e de mídia eletrônica nos espetáculos. Newman participa na criação das trilhas sonoras e efeitos audiovisuais. E deixa bem claro que a projeção de vídeos e o vídeo mapping é um recurso usado pela companhia como dispositivo cênico: “O vídeo como parte de um cenário mesmo e não só do texto, mas como um elemento de cenografia também onde as coisas devem interferir”. Ele demonstra sua intimidade com a poética da companhia na composição das trilhas, desenha a linha de som manejando graves e agudos, caixas e subwoofers, fazendo tremer o teatro e o coração do espectador. A trilha deve interferir, a trilha se confunde com o texto. A partir da entrevista da atriz Ivny Matos, constatamos a forte presença da performatividade nas montagens em que participou. A atriz fala do seu encontro com a performatividade na Cia Teatro Urgente. De se descobrir como performer e da sua relação com a proposta do diretor Marcelo Ferreira, assumindo o trabalho de corpo que é uma marca reconhecida do diretor e da Companhia. A tal ponto que tatuou no corpo o nome Teatro Urgente assim como o diretor. A atriz fala também da sua identificação com a poética do Teatro do Absurdo, referência básica para a companhia e que está no eixo do teatro pós-dramático. Outro componente que aparece nas respostas da atriz é a identificação da fragmentação como elemento presente nas montagens . Em um trecho da entrevista, Ivny Matos utiliza o termo quadros para se referir ao espetáculo Um corpo que Cai, do qual participou: “Dos que eu fiz, sem dúvida é Um Corpo Que Cai que tem essa coisa muito plástica: vídeo, imagem, movimentações, muito... sabe... quadros mesmo, quadros”. A partir dos processos descritos e entrevistas realizadas verificamos uma inter-relação entre diferentes linguagens artísticas nas montagens dos espetáculos da Cia Teatro Urgente, permitindo o advento de uma composição estética híbrida, que parte de um texto-roteiro escrito pelo diretor Marcelo Ferreira para se constituir em uma montagem que claramente apresenta o uso da tecnologia, da fragmentação, da exacerbação da música e da sonoridade, da dança, de diversas mídias eletrônicas e digitais, referências do cinema, colagens, montagens e da performance, fazendo com que o texto seja um hipertexto. Todos esses elementos, que inscrevem uma performatividade cênica, hoje tornada frequente em grande parte das cenas teatrais do Ocidente, constituem as características da categoria de teatro que se conhece hoje por teatro pós-dramático.


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Concluímos, portanto, que se encontram índices do teatro pós-dramático no trabalho cênico da Cia Teatro Urgente, se considerarmos os componentes inscritos por Hans-Thies Lehmann, bem como o da performatividade cênica conceituada por Josette Féral. Trata-se de um gênero não dramático na medida em que nenhuma narrativa linear mantém os elementos unidos. O dramaturgo e diretor Marcelo Ferreira assume uma nova forma de experimentação, um novo olhar sobre o estatuto do texto, entendido como o que se fala e se mostra em cena e não aquele tradicionalmente escrito. Estabelecendo um diálogo com as diversas formas de arte e tecnologia. Produzindo quadros, colagens, montagens que provocam no público uma experiência de atravessamento. O espectador se vê evocado. Marcelo Ferreira poetisa por meio da tecnologia. Referências bibliográficas FÉRAL, J. (2009). Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, 8, 197-210. Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v8i0p197-210. Acesso em 05 de setembro de 2020. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac-Nayfy, 2007. RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. SILVA, M. F. A poética do teatro urgente: no eixo do teatro pós-dramático. Dissertação em Artes. Universidade Federal do Espíritro Santo (Ufes): Vitória, 2018.


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“Vírus”: teatro nos tempos de pandemia. Marcelo Ferreira

Teatro, do grego théatron, estabelece o lugar físico do espectador, "lugar aonde se vai para ver" e onde, simultaneamente, acontece o drama como seu complemento visto, real e imaginário. Jacó Guinsburg, crítico de teatro e ensaísta, descreve a expressão cênica como formada por uma "tríade básica – atuante, texto e público", sem a qual o teatro não teria existência, caracterizando uma atividade essencialmente presencial. Essa tríade (ator, texto e público) foi atravessada, no teatro pós-dramático ou performativo, por outros elementos visuais, audiovisuais e tecnológicos, que ampliam as possibilidades da dramaturgia. Experimentos cênicos como do artista alemão Heiner Goebbels, que apresentou “Stifters Dinge” na Mostra de Teatro de São Paulo em 2015. Nessa obra, não temos a presença de atores em cena. A teatralidade configura-se na cenografia, luz, música, vídeo e efeitos especiais (fumaça, chuva e neblina). É uma peça de teatro pós-industrial/ instalação/ performance executada inteiramente por máquinas.

Fig. 1. Stifters Ding - Instalação de Heiner Goebbels. Foto: Acervo pessoal


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Nesse ano de 2020 estamos vivendo uma distopia. Fomos surpreendidos por um vírus letal, o Covid-19, inimigo invisível que se propaga no ar e de contágio rápido. Curiosamente estamos no “ano do rato” do horóscopo chinês, animal que simboliza capacidade de adaptação e resistência. Os governos decretaram o isolamento social, a quarentena, o lockdown e proibiram atividades presenciais. Teatros, cinemas, museus, estádios, shoppings, praias, parques, tudo que é coletivo, que poderia envolver aglomeração foi fechado. Sem plateia, o teatro se apropriou de recursos audiovisuais e da tecnologia disponível como possibilidade de comunicação e sobrevivência. Lives proliferaram. A casa virou home office e estúdio. Teatro gravado e exibido em redes sociais revelam solos e monólogos como tendência e novas linguagens se apresentam, com a impossibilidade de contato e de trabalho com grande elenco. Em casa, sob o efeito de remédios e alarmados pelas noticias da curva de mortalidade crescente, sonhos e pesadelos invadiram a noite. Tempo para experimentar a atmosfera onírica dos sonhos, sempre interrompidos por despertadores. Num deles, estou com minha família, morando numa casa onde também funciona uma clínica. O médico vive isolado numa sala, no fim de um corredor enorme. A casa/clínica está no alto de uma montanha íngreme, cercada por um rio, isolada como se fosse um castelo medieval. No rio que corre ao redor aparecem criaturas surrealistas, com corpo de peixe e cabeça de dragão. As metáforas para o vírus aparecem fragmentadas no material dos sonhos. Para concorrer a um edital emergencial, compus “Vírus”, live performance que será exibida do apartamento, transformado em set, para essa apresentação em tempo real. Em cena, um personagem alegórico, usando camisola longa preta, luvas e máscara de gás, com maquiagem e gestos expressionistas, dança o desespero de ser o único sobrevivente de uma pandemia. A dramaturgia sonora inclui “De temporum fine comoedia”, do compositor alemão Carl Orff.


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Fig. 2. Vírus – live performance. Foto: Anderson Café

Para outro edital, inscrevemos “Plugged, ensaio sobre Dias Felizes”, uma apropriação da obra original “Happy Days”, de Samuel Beckett, que estreei no teatro, ainda quando havia público, em 2016. A atriz Ivny Matos é a protagonista, isolada, imóvel em uma cadeira, plugada em seu smartphone, mantendo uma rotina online, que a faz sentir-se viva. No primeiro ato a personagem está no palco e no segundo ato aparece em vídeo (em close up). O registro do espetáculo em vídeo é que será exibido nas redes sociais.

Fig. 2. Plugged, Ensaio Sobre Dias Felizes - Teatro. Foto: Marcelo Ferreira

Resultado de parceria com ex-alunos de Artes Cênicas da Universidade de Vila Velha criei uma série de monólogos que serão gravados em vídeo e exibidos nas redes sociais, no


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formato web theater. A série inclui: “O monologo do vírus”, a ser encenado por Vitor Camilo, a partir de um texto anônimo publicado numa revista online que trata do Covid-19. Um vírus, como um extraterrestre, faz um discurso para a humanidade.

Fig.4. O Monólogo do Vírus – web theater. Foto: Acervo pessoal.

Em “Dilúvio”, uma atriz (Mariana Zanelato) está isolada em seu apartamento em meio a uma tempestade devastadora e grava um manifesto onde critica as politicas para arte e cultura.

3: Dilúvio – web theater. Foto: Acervo pessoal


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“O fim está no começo”, monólogo criado para Filipe Souza, é uma subtração de “Fim de Partida” de Samuel Beckett. O personagem Hamm, cego e paralítico, descreve um cenário onde tudo acabou.

4: O Fim Está no Começo – web theater. Foto: Acervo pessoal.

“O ano do rato”, com Daniel Monjardim como protagonista foi construído a partir de “A peste”, de Abert Camus e “A metamorfose” de Kafka. O personagem acorda transformado em rato, no meio de uma pandemia.

5: O Ano do Rato – web theater. Foto: Acervo pessoal.


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Além dessas produções, uma nova versão em vídeo de “Fahrenheit, 451”, a partir do original de Ray Bradbury, está sendo produzido pela Cia Teatro Urgente, também com elenco de jovens atores recém-formados. Planejo uma forma hibrida de teatro, tão logo possamos retornar parcialmente ou mesmo pós-vacina. O espetáculo “Cabaré Fim do Mundo” deverá encenado por atores em formação da última turma do curso de Artes Cênicas da Universidade de Vila Velha, no primeiro semestre de 2021. Nesse musical apocalíptico, um meteoro se aproxima da Terra e um cabaré decadente abre suas portas pela última vez, para despedida do mundo. Atores usam máscaras e luvas cirúrgicas em toda encenação. Músicas e textos estão em playback ou em off. Não há contato entre o elenco. O contato é feito por meio de manequins que contracenam com o elenco, tendo como referência, montagens de Tadeuz Kantor. O público para essa apresentação de “Cabaré Fim do Mundo” deverá usar mascaras e será distribuído um número limitado de convites. A plateia terá assentos marcados, espaçados, mantendo distanciamento. Álcool 70% será borrifado nos assentos e álcool em gel será distribuído antes da apresentação para higiene das mãos. Sons de ambulância serão ouvidos durante toda a apresentação, anunciando um perigo iminente. Solos, monólogos, cenas gravadas em vídeo, espetáculos híbridos e com restrições sanitárias, configuram uma nova dramaturgia e se torna linguagem, pela impossibilidade da presença e do contato físico, essenciais no teatro. Para o professor e pesquisador da Stanford University, Hans Ulrich Gumbrecht, a intensidade de uma comunicação face a face, como acontece numa apresentação teatral, não pode ser substituída por processos de comunicação transmitidos por interface, por mais avançados que eles sejam. O lugar do teatro, o théatron, resistirá aos vírus, dilúvios e meteoros, argumentos da ficção e ameaças reais. A presença será o luxo desse século XXI, que alguns historiadores afirmam, começa agora, marcado pela pandemia.


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Referências bibliográficas GUINSBURG, Jacó. Da cena em cena. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. São Paulo: Contraponto, editora PUC Rio, 2010. SILVA, Marcelo F. A poética do Teatro Urgente: no eixo do teatro pós-dramático. Vitória: não publicado, 2018.


CAPÍTULO III: EXPERIÊNCIAS DE CUIDADO E ACOLHIMENTO


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Ponto por ponto, palavra por palavra. Teceduras no encontro com um serviço de saúde mental da cidade de Vitória Randra Souza Feitoza Machado Gondouin Luiza Helena de Castro Victal Bastos Maria Carolina Andrade Freitas

As portas verdes cor-de-doce do CAPS incham no tempo chuvoso. Fica difícil sair, escandaloso entrar. O grito é mesmo preciso; a presença, necessária. Que bom que até as portas são sensíveis ao tempo e às circunstâncias. (Gondouin, 2019)

Introdução Os muros que circundam um serviço de saúde mental localizado nos territórios múltiplos das cidades carregam a potência de uma trajetória política de luta e resistência, transpassando os espaços institucionais, os paradigmas da medicina moderna e inscrevendo na lógica do cuidado os esforços para a legitimidade dos direitos humanos e as infinitas possibilidades de ser como se é. A estruturação física e teórica desses espaços, todavia, não se materializa de maneira repentina, exigindo que tracemos seu aparato histórico em dois momentos. Primeiro, perpassando sua trajetória no continente europeu e, após, as especificidades da edificação destes em território brasileiro. Assim, diante do percurso para além da América Latina, a composição destes lugares surge imersa à um processo extenso que se inicia no desdobramento de questões acerca das práticas do saber médico científico vigente até o século XX em relação à loucura. Este saber, como veremos, é amparado nos seguintes alicerces: a noção de doença mental e o discurso da psiquiatria. É diante do resgate histórico proposto por Foucault (1972) que conseguimos alcançar os dispositivos de poder estatais que, junto aos saberes científicos de uma dita psicopatologia, se propicia do isolamento espacial e subjetivo da loucura, construindo assim os hospitais e manicômios. Neste período de nossa cronologia histórica anuncia-se então a homogeneização dos sujeitos e, portanto, o estrangulamento dos tantos devires. Para aqueles corpos entendidos como dissidentes e desviantes só os resta a exclusão social disfarçada de projeto terapêutico (Carvalho, 2010).


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São nos contornos da assistência dos serviços substitutivos da Reforma Psiquiatra Brasileira, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que a clínica adquire caráter de cidadania, possibilitando que estes sujeitos se impliquem nas suas trajetórias singulares e produzam autonomia diante dos seus vários quereres. Faz-se necessário, portanto, marcamos esse trajeto. Evidenciando seu processo de construção imerso às premissas de redemocratização do país, reconhecendo em um tempo mais recente, como as coordenadas neoliberais apontam para outro sentido, que diz muito mais de um desmanche da luta dos trabalhadores e usuário das redes de saúde mental no Brasil. Sendo assim, o gatilho norteador para o escrito se ampara na perspectiva da escuta, da relação um a um e das possibilidades que esta outra cena exige e sustenta como pilar, mapeando um outro fazer clínico costurado com um fazer de luta política e social.

Contornos históricos da loucura As muralhas com pontas afiadas que envolvem a exclusão travestida de produção de “cura” propiciam um espaço suficientemente controlado para o nascimento da clínica tradicional no século XX. Com as extensas caracterizações do doente mental é canonizada também a produção da doença, no caminho violento para se encontrar uma gênese orgânica para a loucura, subsidiada aos tantos métodos que se positivaram por um discurso que visava a extinção do atípico e o retorno da “normalidade” tão sagrada para a sociedade. (Foucault, 1972) Como elucida Amarante (1996), o que tem de mais arcaico em uma estrutura de “hospital geral”, não é a norma médica que concebemos como naturalizada na contemporaneidade, mas o impositivo imaginário de “depósito” dos inaptos ao convívio em sociedade de modo geral. Sendo assim, o hospital não se funda como instituição médica — sua etimologia traduz bem seu significado diante daquele que ‘hospeda” — , mas como dispositivo de controle de quem está dentro e de quem está fora. Normatizando quem está dentro e controlando de forma simbólica os que não. É por meio dessa lógica de inclusão/exclusão e das práticas vigentes, que há a transformação desse espaço para uma instituição medicalizada e assim, como é pontuado, o hospital torna-se o a priori da medicina moderna (Amarante, 1998; Foucault, 1977).


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Desta forma, os hospitais do século XVII localizados nas emergências européias, como nos aponta Lancetti e Amarante (2006), carregam em sua configuração a função social de receberem aqueles identificados como “desajustados" do convívio coletivo, e, de forma geral, se perpetuavam como estruturas arquitetônicas que amontoavam em pátios e pavilhões milhares de pessoas. Foi a partir da Revolução Francesa e a contextualização necessária que a época nos evoca, que esses espaços passaram por transformações que se fundamentam por meio do lema: “liberdade, igualdade e fraternidade”. Esses pilares que compõem as aspirações do período, de certa forma, saneiam o aspecto insalubre para superar as violações que tais instituições apresentavam. Foi, então, diante de um desses hospitais que Phillip Pinel passa operar as mudanças que culminaram no nascimento da psiquiatria. Ainda nos referenciando à Lancetti e Amarante (2006), os autores nos trazem que, nesses primórdios da psiquiatria, a modalidade de organização recebeu o nome de “alienismo” devido a ser um campo de saber voltando à pesquisa e estudo do que o próprio Pinel nomeia de “alienação mental”. Expressão curiosa a qual provém do latim e nos guia à uma bifurcação: assim como é ruptura, delírio, transgredir a realidade é, também, o estrangeiro, adquirindo caráter de alienígena. A alienação mental, portanto, como teorizada por Pinel em seu livro que é marco simbólico de 1801 — “tratado médico-filosófico da alienação mental ou mania” —, era o modo pelo qual denominava-se a loucura. Sendo médico, Pinel, apodera-se desse campo de estudo que até então era exclusivo da filosofia e o leva para sua área de atuação; ou seja, princípios que pertenciam ao cenário da ética e da moral, deixam de ocupar a posição restrita para fazerse pertencer também ao campo da medicina. Essa equação básica de transposição de lugares possibilitada por Pinel, inscreve a loucura, os desvios da paixão e da moral, no conceito de doença. À vista disso, Pinel é aquele que constrói não só o caráter teórico, mas também, estrutura a prática, reunindo e sustentando os saberes médicos e filosóficos que estavam sendo gerados sobre o tema e consequentemente transformando o estatuto que existia nos hospitais. Logo, A iniciativa de Pinel define um estatuto patológico para a loucura, o que permite com que seja apropriada pelo discurso e pelas instituições medicas, por outro, abre um campo de possibilidades terapêuticas, pois, até então, a loucura era considerada uma natureza externa ao humano, estranha à razão. (Amarante, 1996, p. 23).


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Destarte, o hospital psiquiátrico ou manicômio, promove ao campo recém formado a possibilidade epistêmica de seus estudos. E, diante do discurso que perpetuará, será o ator principal à impregnar na sociedade, através de sua verdade absoluta, o imaginário do que é a experiência da loucura. Isto é, o modo como as pessoas tratam e interpretam o louco está no mesmo sentido daquela pela qual a psiquiatria produz e pratica. O reconhecimento desse discurso pode ser palpado pelo imaginário que permeiam a loucura, que tem como sinônimo a demência, a agressividade, insensatez, periculosidade, irresponsabilidade, indecência, imoralidade. (Lancetti e Amarante, 2006) Seguindo com Foucault (1972), persistindo com as cartografias históricas desbravadas pelo escritor francês no seu livro a História da Loucura, é identificado a teia de relações entre práticas, saberes e discursos que visam construir um território preciso para a composição da psiquiatria. São, então, nesses escritos que o autor nos fornece pistas para pensarmos a loucura como construção histórica e portanto, passível de desnaturalização e desconstrução do cárcere da modernidade em relação à enfermidade mental. E para além disso, desperta o olhar subversivo da loucura como experiência singular única, que foi submetida à uma verdade psiquiátrica falha e imersa à uma rede de dispositivos que a conformam para o controle social. As exclusões proporcionadas pelo estatuto da loucura contextualizado na modernidade provocam uma extensa construção da estigmatização para com as pessoas que fazem uso dos serviços de saúde mental, reverberando inclusive nos dias de hoje. O rompimento com esse preconceito e a ressignificação desses espaços propicia uma ruptura precisa para contextualizarmos a Reforma Psiquiátrica Brasileira e, assim, os movimentos que vão de encontro dos métodos como a psiquiatria mediou historicamente a loucura. No Brasil o percurso da reforma psiquiátrica tem início em fins da década de 70 com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que se localizam como atores importantes durante um longo período, tanto nas formulações teórica do movimento quanto nas organizações e articulações das novas práticas propostas. O período da constituição da medicina “mental” no Brasil, que se localiza em meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX ou seja, até a segunda guerra mundial, é caraterizado por ações higienistas; que dizem respeito e acarretam em práticas como a medicalização social, na qual a própria psiquiatria surge como dispositivo de controle. Como proposto por Birman (1978) seu modo de atuação por meio do poder disciplinar auxilia organizações e calcula os territórios


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das cidades, como um dispositivo de controle político e social. Ou seja, construiu-se como uma psiquiatria da higiene moral. (Amarante, 1996) Como aponta Carvalho (2010) após a segunda guerra mundial houve a necessidade de modificação das práticas institucionais excludentes e essa mudança esteve ancorada nas reformas psiquiátricas que começavam a se movimentar pelo mundo, e portanto, é preciso entender que a própria lógica dos espaços demandavam essas modificações: ressaltando as semelhanças existentes entre os manicômios e os campos de concentração. Nesse momento global de rupturas e transformações de saberes, algumas teorizações foram base para as mudanças que ocorreram nos espaços físicos dos hospitais. Como aborda Amarante (1998) uma das correntes teóricas precisas para o entendimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira foi a antipsiquiatria da década de 60 na Inglaterra. Iniciada pela forte influência da contra cultura e da cultura undergroud, elabora seus constructos teóricos a partir da inadaptação do saber e das práticas psiquiátricas no cuidado com a loucura. É neste momento, como indaga o autor, que é construída a primeira crítica radical ao saber médicopsiquiátrico, desautorizando-lhe e destituindo-lhe de poder e arrancando deste, em campo teórico, o seu objeto de estudo – a loucura. Assim, a antipsiquiatria nos permite pensar a loucura como subversão, como atividade libertária, um movimento de reação à violência extrema e sistemática da trama institucional. Sendo assim, é a partir desse movimento que se produz um estranhamento diante da naturalização do “binômio” loucura/doença mental. Incitando os questionamentos sobre qual o lugar da instituição psiquiátrica no processo de exclusão social. Poder interrogar sobre esse poder é, também, apontar para o caráter de produção social e institucional da loucura.A antipsiquiatria, portanto, procura romper em âmbito teórico com o modelo assistencial hodierno em sua década, buscando destituir o saber médico da explicação/compreensão das doenças mentais. Surge, assim, um novo projeto de comunidade terapêutica e um lugar no qual o saber médico é interrogado e inscrito em uma perspectiva outra. (Birma, 1978; Amarante, 1996) Outro movimento que tem sua trajetória sobreposta nessa construção teórica e é alicerce para a Reforma Psiquiátrica Brasileira é a Psiquiatria Democrática Italiana (PDI), fundada por Bolonha em 1973. Essa linearidade teórica possibilitou a priori denúncias de ordem civil das práticas simbólicas e físicas da violência institucional e, principalmente, a não restrição dessas


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denúncias para a ordem de meros problemas dos “técnicos de saúde mental”. A PDI permite ao cenário político a revelação que era impossível transformar a assistência à saúde mental sem ressignificar o território das relações entre cidadania e justiça. (Amarante, 1998) O projeto de mudanças institucionais de Basaglia é essencialmente um modelo de desconstrução e re-criação no campo dos saberes, da tecnociências, das ideologias e da função dos técnicos da área de saúde mental (1994). Esse caminho traçado pela PDI instaurou uma ruptura também radical com os saberes e práticas da psiquiatria, ao passo que afligiu diretamente seus paradigmas. Sendo assim em 1971, em Trieste, inicia o processo de “desmontagem” das engrenagens manicomiais, proporcionando ao mesmo tempo novas condutas de cuidado e novos espaços para lidar com a loucura e a doença mental. A experiência arquitetada em Trieste demonstrou a possibilidade de construção de um modo de atenção que consegue oferecer e produzir novas maneiras de se entender o cuidado, abraçando as pluralidades subjetivas e sociais de quem necessita de assistência psiquiátrica. Traçando seus caminhos dentro da esfera de valorização dos indivíduos e como parâmetro as diretrizes dos direitos humanos. (Amarante, 1996) O processo de desinstitucionalização, que é intrínseco ao desmonte manicomial, está entrelaçado com os movimentos de reestruturação sócio institucional das cidades européias e americanas após as duas guerras mundiais. Este conceito que é uma questão central na ótica da luta antimanicomial, emerge no período quando os estados modernos passam a responsabilizarse pelos problemas sociais e, neste sentido, no momento em que a vida social passa a ser conduzida por métodos científicos e racionais. Ao haver a possibilidade de comparação dos hospitais psiquiátricos com os campos de concentração criou-se o caminho para questionamentos em torno desses lugares, caucionando reestruturações norteadas pelo desejo de mudança na lógica de cuidado e nas técnicas e métodos pelos quais se cuida. Portanto, é a partir dessas indagações da década de 60, principalmente nos EUA, França e Inglaterra, que passam-se a registrar movimentos de alta dos pacientes e possíveis reinserções sociais na comunidade. É diante desse peso social, que passa-se a ser reconhecido a necessidade de ir além de uma desospitalização, pois os manicômios de forma simbólica, estavam impregnados nas relações sociais, nas lógicas de tratar e na interpretação da experiência da loucura. Portanto, faz-se necessário reinventar o manejo da condição clínica, lutando pelos direitos enquanto cidadãos e pelo dissolução do imaginário de periculosidade social — fundada para alicerçar a


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necessidade

da

construção

dos

manicômios.

Assim,

pensemos

a

partir

da

desinstitucionalização. (Barros, 1994; Carvalho, 2010; Rotelli, Leonardis e Mauri, 1990) No Brasil, a reforma psiquiátrica inicia seu processo de materialização a partir da conjuntura da redemocratização, no final da década de 70. Traçando uma crítica ao subsistema de saúde existente na época e, enlaçando com as correntes teóricas trabalhadas acima uma crítica sistemática ao saber das instituições psiquiátricas clássicas, permeando todo frenesi político que constitui o processo de redemocratização. (Amarante, 1998).

Loucura, ética e política Usando como referência o nome de uma coletânea de escritos militantes do Conselho Federal de Psicologia (2003) inicio com uma citação de Marcelo Magalhães de Andrade:

Assim, o papel da clínica com a loucura deve ser despretensioso, humilde e solidário. Agir clinicamente de forma não manicomial passa por uma mudança filosófica de como entender que o mundo no qual vivemos é plural e que a experiência com a loucura só pode ser concebida com a presença dos loucos, aqueles que melhor conhecem e dizem sobre a loucura. A nossa luta e a convivência com os parceiros loucos nos fazem dar conta de nossa loucura coletiva predominante, ao mesmo tempo em que nos mostram a possibilidade de convivermos aproximados pelo ideal de que é possível conviver com essas diferenças, que implicam em um saber-fazer definidor de uma forma da função terapêutica para com a loucura (p.171).

Ana Marta Lobosque (2003) tem como gatilho de discussão a respeito da clínica antimanicomial o seguinte questionamento: como pensar modos de subjetivação que possam levar em conta a diferença sem exclusão? A dialética que permeia a ideia de inclusão/exclusão na sociedade contemporânea é delicada e para se estruturar uma clínica da diferença, é preciso ser destrinchada. Incluir nessa perspectiva da clínica do cotidiano é fazer caber, criar lugar; corrompendo com a lógica da inclusão que se dá pela via da exclusão do “adaptar” e docilizar. Acolher e desbravar espaços é político: não é suficiente disponibilizar as sobras de um sistema que precisou ser revolucionado, mas é preciso criar e conquistar. E, então, se a loucura é a expressão polifônica que escapa dos contornos do nosso código simbólico cultural, como criar uma forma de cuidado sem aprisioná-la? Para dialogarmos com esses questionamentos se faz preciso permearmos novamente um campo histórico social e, diante dos serviços substitutivos da reforma psiquiátrica, se faz


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necessário compreender que as formas de controle na contemporaneidade se modificaram. A dinâmica da descrita sociedade disciplinar para a sociedade de controle como teorizada por Deleuze (2000) enfatiza que não é preciso de muros para que aqueles sujeitos estejam aprisionados, os dispositivos de poder com os quais lidamos em uma luta antimanicomial nos hoje são mais sutis e seus recursos se encoram na interiorização das normas, na biopolítica inflamada. Para refutarmos a lógica manicomial é preciso desmoronar os manicômios simbólicos da psicologia e psicopatologia tradicional, como aponta Pelbart, é preciso criar uma nova relação entre corpo e linguagem, entre subjetividade e exterioridade, entre os devires e o social, o humano e o inumano, entre a percepção e o invisível, entre o desejo e o pensar. É preciso embaralhar os códigos que destoam aqueles dos outros. E talvez, abraçar o não sentido, criando assim um outro lugar, aquele que não é o lugar do manicômio. (1990) Inventar essa nova forma de lidar com o singular é ressignificar cotidianamente as amarrações ideológicas que o sistema nos propõe. A clínica da diferença ou do cotidiano inverte a atuação clínica que psicologia tradicional tanto presa, sustentando-se nos serviços de saúde mental na medida em que rompe com os procedimentos clássicos da consulta ou sessão. A clínica tradicional compreendida pelo Conselho Federal de Psicologia/CFP (1988), se conceitua a partir de características específicas de psicodiagnóstico e terapia individual ou grupal, para além desses norteadores, são consideradas atividades exercidas em consultórios particulares, em que o psicólogo se localiza como profissional liberal e seu trabalho tem como enfoque os processos psicológicos e psicopatológicos do indivíduo, que toma como fio condutor a concepção de sujeito abstrato e descontextualizado historicamente ou, inclusive, desconexo dos recortes sociais que constituem seus processos de subjetivação. E, não obstante, a perspectiva da etimologia do termo “clínica” já nos apresenta seu significa de “beira leito”, que evidencia a influição do modelo médico neste campo de saber e atuação, inscrevendo como eixo de a compreensão e o tratamento da doença. (Dutra, 2004) Nos serviços substitutivos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, como os CAPS, é onde a clínica se embebe de potência política e adquire caráter de cidadania. É o cuidado que permeia várias esferas que compreendem a vida e o desejo; e assim, possibilitando que este se transforme em uma reabilitação psicossocial, buscando novas maneiras de atenção que extinguem o preconceito e a exclusão do convívio social. Nessa nova clínica deve-se olhar para cada um como um cidadão de direitos e deveres, depois, como alguém que precisa do apoio psicossocial oferecido. (Losbosque 2003; Raul F. S. Prandoni e Maria Padilha 2006).


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Os mecanismos se modificam e por muitas vezes é preciso, por exemplo, que o acompanhamento terapêutico seja feito fora do serviço, entendendo que esta clínica não se subordina ao consultório, não só em seu sentido físico, mas em seu funcionamento lógico. A partir dela alcançamos o cultivo do diferente, do social e sua criação infindável de possibilidades; do não exilar, nem prender, nem por para fora, ou forçar estar dentro, mantendo uma ligação direta do sujeito com a sociedade, seus espaços e territórios, circulando e fazendo pertencer. É imprescindível romper com os elementos simbólicos do “aprisionar” e transformar a cada caso os contornos dessa clínica que se produz em seu emaranhado rizomático de luta pelo indivíduo e por seus direitos, proporcionando autonomia para aquele que procura um serviço de saúde mental. Essas influências que permitem a construção da clínica ampliada, deslocando o olhar da doença para o caso à caso, não podem ser confundidas e mal interpretadas como a abolição da doença ou do atendimento clínico. Ao realocar essa maneira de cuidado na prática dos serviços substitutivos de saúde, a doença corre o risco de ser negligenciada ou oculta por trás de um discurso, como coloca Campos (2001) em um movimento de alerta. A autora também relata que esse movimento pode permitir que se idealize a loucura em certa instância e se produza na contramão um saber clínico excessivamente organicista que reforça toda prática que a luta antimanicomial refuta em sua trajetória.

“Método é desvio” 72 Sustentar uma conduta atenta de escuta e expressão ética, de maneira despretensiosa, na espera daquilo que surge quando menos se mostra evidente. O método desvia pois, estar na posição de captura das fissuras é, assim, assumir o anacronismo produtivo (Gagnebin, 2006). Não correndo atrás do que se coloca como hipótese, mas aguardando com a certeza de um nãolugar, o que se inscreve nas junções dos corpos, das falas e das paredes. O que abrocha e se traduz como desejo. A experiência inicia-se na ida até o serviço e em cada boa tarde para aqueles que aguardam algo junto ao portão. Com horário marcado e algumas direções determinadas, estive Gagnebin, J. M. (2006). O método desviante. Revista Trópico. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4455290/mod_resource/content/0/GAGNEBIN_O_metodo_desviante.p df

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sempre desperta nas oficinas que tinham como expressão a fala. Seja diante da Oficina que leva o nome de Palavra e de outra, que precisou ser suspensa um tempo depois, a oficina de Radio. Também pude partilhar momentos nas condutas de acolhimento ao serviço e de acompanhamento terapêutico dos usuários. Minha presença escorregava, fazendo caber naquilo que me fisgava. Sendo assim, muito estive no pátio do serviço. Trancei alguns cabelo, penteei outros, segurei algumas mãos. Fui questionada, inserida e autorizada. Tive que agarrar a angústia que o silêncio produz em momentos onde só ele consegue sustentar e fazer borda nas dores. E, assim, participar de uma lógica que revela os porquês de estar ali; estes que edificam os muros, constróem os poucos leitos, retratam as portas, explicam as diferenças. Desenhando as ressignificações simbólicas de exercer uma clínica antimanicomial. A oficina da palavra tinha como princípio a escolha, por meio de votação, da palavra que iria nortear a roda de conversa do dia. As palavras sustentavam o um a um. Cada usuário expressava, um de cada vez, o que aquela palavra dizia para ele. Fazendo com que houvesse uma cadeia de significantes costurada para possibilidade de expressão e contorno sobre aquilo que era vivido e dito. O espaço possibilitava a apropriação de cada usuário sobre sua narrativa, o movimento era de fala, escuta e apoio. Elaborando em conjunto estratégias diante dos empecilhos de cada trajetória. As tarde de oficina foram marcada por sílabas poderosas que contavam, pouco a pouco, sobre as vidas. A oficina de rádio era realizada para um intuito — que, por fim, se desdobrava em muitos: permitir que os usuários expressassem suas opiniões diante do mundo. A fala direcionada da atividade proporcionava que os participantes refletissem diante das notícias que viam nos jornais e, assim, criava para além do exercício de reflexão, um espaço de valorização da voz, na singularidade daqueles ali inseridos. Essa pequena brecha, uma fissura na lógica silenciadora manicomial, se mostrava capaz de estender-se para outros espaços. Os usuários falavam, gravavam e organizavam as notícias contadas por eles; invertiam a dinâmica longínqua da grande mídia e desmistificavam o discurso carregado de estimagtizações daqueles que falam deles. Era possível, assim, alcançarem os seus enredos, se apropriarem de seus direitos e clamarem, com a voz ali permitida, por eles. Desta maneira, a experiência foi edificado por meio das diretrizes de um estudo descritivo, amparado na vivência de uma acadêmica de psicologia do sexto período da


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Universidade de Vila Velha, possuindo como campo de estágio curricular um serviço de Saúde Mental do Estado do Espírito Santo, o Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras Drogas — CAPS Ad III. Foram utilizados relatórios semanais e, ainda, diários de campo pessoais da estudante, discutidos semanalmente diante do processo de orientação e campo supervisionado. A vivência, portanto, mostra-se registrada e amparada. A experiência transborda e se alcança na perspectiva da falta: não há como apreender de maneira absoluta a potência deste encontro.

A experiência é deslizante Toda terça-feira, logo no começo da tarde, eu avistava os muros verdes do serviço. À cada terça eram sempre os mesmos muros verdes, mostrando sua cor com certa inflexibilidade. Entretanto, toda terça-nova, eu tinha uma forma e, mesmo com os mesmos muros, o serviço também. Inspirando um movimento inventivo, rápido e transformador, que pulsa o manter-se vivo sem temer a morte. E enuncia o sobre-viver. A fazer viver e compor como resistência cada passo, cada atendimento. O Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas de Vitória, ES, tem em sua bagagem a trajetória histórica da necessidade de inventar-se em uma clínica do sujeito e um espaço terapêutico que faça atuar e persistir as premissas constitucionais da luta antimanicomial, promovendo fissuras na lógica que sustenta a narrativa da medicina clássica e da clínica tradicional. Ali, se produz um lugar que respira a história de redemocratização do Brasil, que evoca a importância política e social no manejo das perspectivas que emergem no atendimento àquele que procura o serviço. É edificado um caminho que por ser oportunizado as premissas democráticas, mostra-se um local preciso para que estas sejam evidenciadas e resgatadas. As portas são abertas, o diálogo é posto e os atendimentos funcionam em uma dança. Um movimento de direcionar o olhar e, para além, a escuta. Minha experiência no serviço foi legitimada para acompanhamento de duas oficinas, de maneira breve participei da oficina de rádio e, durante todo o período de campo, da oficina da palavra. Os dois encontros, cada um com sua especificidade, sustentavam a mesma força: a fala. Possibilitando um espaço para expressão e simbolização, incitando os usuários a


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costurarem, relato após relato, suas vivências e caminhos, amarrando em pontos firmes suas lutas. A estada mostrava-se expansiva e a experiência ramificou-se para o pátio do serviço, para a cozinha, o refeitório, os leitos e o jardim. Fisgada pelas histórias, me fazia presente, na posição de oferecer uma escuta para além daquela com horário marcado. Sentava, com um copo de café e aguardava alguém me acompanhar, me contar quem era e porque o era, construindo uma teia. Foram nesses outros circuitos que pude tomar emprestado a memória que me possibilitou essa narrativa. Nas frestas entre uma atividade e outra, um encontro de um tempo não lógico, de estar sem prescrições. Foram momentos valorosos que produziram uma verborragia que, em alguma instância, estancou outras hemorragias. Pois, em suma, refletir sobre os usuários de um serviço como este é questionar-se dos movimentos mortíferos que o estado fomenta. Como teorizado por Deleuze e Guatarri e elaborado posteriormente por Mbembe, A. (2017), produzimos na lógica da modernidade tardia tecnologias estatais próximas ao que seriam 'máquinas de guerra'. Ditando através de sua pluralidade de funções a utilidade e o grau de humanidade dos indivíduos, afinal, como bem é exposto pelo autor, ao se retirar a identificação de subjetividade do outro é, consequentemente, visto a possibilidade de exterminá-lo. Se exclui a coisa, como se fosse coisa, como se não houvesse um sujeito, um processo, uma filiação, uma marca. Inscrições precisas e primordiais em cada um. Enlaçando o constructo de linhas abissais, como elaborado por Boaventura de Souza Santos (2007), que sustentam o pensamento moderno ocidental, bifurcando o mundo e expondo de maneira explícita, mesmo que silenciosa, o dito 'outro lado da linha'; os que estão de cá e são reconhecidos como tal e os outros, que carregam todo silenciamento de serem, apenas, outros. Desta maneira, o imaginário do 'direito de matar da necropolítica contorna aqueles que frequentam o serviço e, assim, viver torna-se uma tarefa urgente, como apresentado por Conceição Evaristo: "Eles combinaram de nos matar. Nós combinamos de não morrer". O serviço que era marcado por propostas públicas crescentes e programas de valorização, engasga com os ventos fortes de 2015, com a instabilidade do Ministério da Saúde e junto à ele, do Sistema Único de Saúde. Fazendo com que este programa constitucional de direito à saúde seja alvo de uma série de retrocessos, corroendo seus princípios e impondo novas técnicas e práticas. Como nos aponta Amarante (2018), a Comissão Intergestores Tripartite aprovou em dezembro de 2017 a resolução que, em poucas palavras, resgata os


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contornos manicomiais e é gatilho para uma série de fragmentações das conquistas alcançadas ao longo de décadas no que diz respeito à Reforma Psiquiátrica Brasileira. Culminando mais recentemente na Nota Técnica n.11 de 2019, onde é ressignificado as diretrizes dos CAPS-Ad III, eliminando, por exemplo, a conquista das técnicas de redução de danos, impondo para os profissionais uma série de métodos que não dizem respeito àquelas conquistadas pela ajuda da maioria da década de 80. Esses ventos, ainda fortes, principalmente diante dos contornos das políticas públicas do atual anti-presidente do Brasil, nos apontam para um caminho de criação de comunidades terapêuticas e encarceramento daqueles que são prescritos como desviantes. A equipe vê-se nestes últimos meses embebida de um grande silêncio desesperançoso. Como uma maré que preenche os corredores de apreensões. Preenche as salas, os consultórios, o pátio e o refeitório. Os profissionais e os usuários. A equipe, de modo geral, mostra-se desanimada, cansada, mortificada. Adoecendo. Pude mapear que em pouco tempo alguns profissionais entraram de licença, outros vão frequentemente no posto de saúde, outros, ainda, se deslocam com dificuldade para manterem as atividades. Os movimento contemporâneos de controle são perversos e cada um, das censuras aos cortes financeiros, ecoam nos corpos daqueles que sustentam um ideal que ultrapassa as imposições neoliberais, que insistem em querer transformar o serviço em uma organização institucional tradicional que não alcança a multiplicidade dos papeis, agentes e espaços que o compõem. Um grifo importante em meu caderno de campo foi exposto por uma psicóloga do CAPS-ad III, funcionária há mais de 10 anos, que diz: “a clínica aqui do serviço é deslizante”, mostrando como contraposição que é uma forma de clínica distinta. Lá, na clínica tradicional, como apresentado por ela, é possível traçar em alguma medida os trajetos dos atendimentos, a forma pela qual se constrói o manejo com o sujeito, aqui — no CAPS ad III — “não há como prever. Os paciente são deslizantes”. Há a todo momento, a todo encontro, algo ali, uma emergência subjetiva que ecoa para além dos modelos e das receitas de subjetivações préestabelecidas, há algo que resta. O sujeito desliza pois é múltiplo, é ágil, aprendeu a ser. Cada usuário carrega em sua bagagem os estigmas de ser marginalizado, dissidente. Como não escorregar para existir?


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Seus percursos, inclusive terapêuticos, inflamam a necessidade de pensarmos em uma clínica atrelada à política, costurada com os direitos e suas premissas democráticas. É preciso lutarmos por esses desviantes e, por fim: É preciso aprender a deslizar. Deslizar para enfim escutar aquilo que faz com que haja uma tecedura nas narrativas, a escolha que não passa por via consciente, de cada palavra. É escutar as tantas “sobrevidas” — como uma palavra só, inteira. Que em definição nos diz em caráter ambíguo: tanto de uma continuação de vida, esticando as prosas e fincando as raízes; quanto de uma memória, um registro. Uma trajetória. São as sobre vidas, sobrevividas, que precisamos enfatizar. É deslizar para as alcançarmos a escuta das fissuras entre as palavras. A cada terça, nas oficinas, eu tomava emprestado aqueles fonemas e construía um caminho. Havia semanas que me faltavam páginas em branco, afinal, nossa proposta era ousada: construímos um trajeto que cortou de ponto a ponto o mundo daqueles que escutavam, sinalizou desvios e propôs outras moradas. Apontando para aquilo que embasa e fortifica o sujeito, a fala. A localidade dela, a valorização. O afastamento de ser coisa. É fazer-se vivo, na potência de sujeito. Em um movimento contínuo de desejo e, assim, luta.

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“Onde caibo quando me transbordo?” Clínica decolonial e o paradigma ético, estético e político. Marina Fortunato Gomes Pereira

Prenúncio para convoque Escrever é movimento de convocar. Convocar a palavra para dizer o que mora dentro e o que está pronto para sair afora. Só se vai para fora se em algum momento, em algum instante, se habitou o dentro. Por isso, me coloco aqui em primeira pessoa, porque tenho reconhecido em mim a morada da palavra. As palavras que saem, só saem porque abri as portas. Porque abri a boca para dizê-las. Até mesmo aqueles que virão trazendo a sorte dos poemas, inaugurando citações, só virão, porque eu permiti que essas pipas voassem em meu céu. Se há afeto, é porque alguém foi afetado, e neste caso, esse alguém sou eu. Mas veja só, se fui afetada, é porque um outro alguém me afetou, é aí que mora a dialética do encontro, mas também da própria escrita, do movimento de sair de dentro para um lugar de fora. De mim para um outro alguém,

um

outro

lugar...

Escrever,

é

também

encontro.

Germinando em terra decolonial Inicialmente percorri essa escrita para desenvolver meu trabalho de conclusão de curso, e assim, influenciada por uma estética um tanto quanto acadêmica, escrevi em duras linhas alguns encontros. Enquanto reescrevo, vivo uma era pandêmica onde o capitalismo impera e endurece o tempo, por isso, amolecer a palavra virou lei. Na escrita que segue e se desenrola pelo fio, há uma tentativa de revirar a história por outros caminhos, outros fluxos, outros cortes. Tento revisitar os engendramentos e de modo inventivo, trazer a história com pormenores não contados. Não ali na academia, não lá na escola, onde a colonização nocivamente anda de mãos dadas com o progresso. Não serei a primeira, tampouco a última a tecer tal tentativa, mas não me importa em qual lugar estou nesta fila, o que me impele é a caminhada. Uma outra caminhada, um outro sentido. Por isso, trago em narrativa uma tecelagem escrita e clínica permeada por uma germinação interventiva decolonial.


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Travessia escrita, travessia clínica Antes de prosseguir em análise, gosto de sentir nesse espaço a possibilidade de colocar em palavra, a sensação de revisitar uma escrita endurecida. Primeiramente, antes mesmo de me reencontrar frente ao concreto enrijecido em letra, preciso confessar que após minha jornada acadêmica enveredei-me em outras caminhadas teóricas e práticas. No momento em que vivi o encontro que será mais adiante descrito (não só o encontro com a escrita, mas sobretudo o clínico), a esquizoanálise foi guiança e luz para iluminar os meus caminhos. Essa caixa de ferramentas permitiu extrapolar os muros de concreto que me desconcertavam, mas impulsionavam meus tornozelos. Deleuze e Guattari me deram o pé para caminhar e por isso mesmo, considero que esses guias teórico-espirituais abriram os caminhos e encruzilhadas para que eu mesma pudesse estar em veredas outras, percorrendo outros olhares para ser e viver a travessia. Travessia escrita, travessia clínica. Por mais que eu esteja percorrendo outras veredas, respeitarei o que produzi em um outro momento e o que me guiou para tal produção. Agarro a oportunidade de revisitar minha obra pois a escrevi com muito afeto. Encharcada de sangue, suor e lágrima, vivendo a concorrência das durezas acadêmicas, entretanto, ofertando aquilo que eu acreditava ser possível, e o possível se deu como o necessário. Hoje, reelaboro essa discussão com malemolência e gosto. Vejo, sim, eu vejo, outras pipas voarem em meu céu, mas sem perder de vista quem me trouxe a esta colina de onde ecoa minha voz. É bem sobre essa sintonia divina que em primazia, minha malemolência vem mais uma vez anunciar: sobre esse encontro cósmico-clínico-humano-artístico. Para dar contorno a escrita, me debruço em Foucault (1989) e em seu método genealógico para alcançar as costuras que teceram as experiências coloniais vivenciadas no ocidente e suas implicações aos modos de subjetivação que foram sustentados pelo paradigma da modernidade. Logo, entra em cena a importância de um exercício incessante e contínuo: a problematização das próprias narrativas que forjaram o campo de saber epistemológico da psicologia e como sua busca pelo status quo ofertado pelo título de ciência calcado à égide positivista ocidental, possibilita a produção de efeitos em modos de subjetivação que obedeçam com bastante servidão às próprias diretrizes da colonialidade. Assim, nesse convocar de letra, abre-se a carta convite para se pensar a subjetividade que escapa a essa promessa ilusória de que há um centro, uma razão que sustente, uma particularidade universal de um eu unificado, racional e necessariamente linear. A linha de pensamento desenvolvida por esse fio moderno é sustentada pela ideia de uma subjetivação


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cativa e que não por acaso, sistematicamente servil às ordens do próprio desenvolvimento capitalista (Hüning & Guareschi, 2005). É preciso assim, extrapolar e: Pensar a subjetividade como processo constituído por múltiplas linhas de possibilidades de existência, típicas do devir, que pela experimentação pode produzir processos de singularização. A esquizoanálise recusa qualquer lógica binária, dualística ou identitária da noção de subjetividade, compreendendo que esses aspectos correspondem a um domínio histórico filosófico específico. O processo analítico será afirmado em sua potência revolucionária e criadora, pois a esquizoanálise, ao proceder com a análise do inconsciente, nada espera encontrar em termos de prefiguração do desejo (CORRÊA, 2006, p.33).

Corpo em (cis)ão Assim, dentro dos possíveis temas a serem explorados no campo da colonialidade, venho trazer uma discussão que me pareceu muito necessária justamente a partir de um dos meus encontros clínicos. Além da própria constituição epistemológica da psicologia e os engendramentos deste saber, me é pertinente fazer também uma relação com a cisão dos corpos a partir de uma lógica binária e cisgênera. A cisgeneridade hetero normativa, ou, hetero-cisnormatividade é parte da categoria analítica desenvolvida ao longo de todo o trabalho por ser compreendida como parte de um valor referencial constituído pela modernidade, sendo também, aspecto inerente à colonialidade. Isso porque, o entendimento de gênero e sexualidade comportado pela psicologia parte sobretudo da binariedade cisgênera dos corpos. Há um corpo dividido pela binariedade: homem ou mulher. Uma vez que essa compreensão de gênero e sexualidade se dá através do entendimento concebido pelo saber euro-ocidental, podemos então afunilar para dar amarração ao final do que tenho acreditado ser uma introdução, ao menos um semeio de assunto, um plantio primeiro, o germinar. Para farejar outros territórios e pensar a subjetividade a partir de seu caráter de movimento e construção, autores como Anzaldúa, Deleuze e Guattari me auxiliaram nas análises alternativas aqui utilizadas em colaboração a um fazer clínico que se sustenta esmiuçando a diferença pela experimentação e alteridade. Me anunciaram com suas ideias, as possibilidades de criação de novos territórios subjetivos e ultrapassagem de fronteiras existenciais a partir de um outro paradigma: o ético, estético e político.


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Esmiuçando o território Para traçar essa conversa entre colonialidade 73 e subjetividade, é preciso revisitar as bases que forjam o projeto colonial europeu e alguns de seus aspectos geográficos e políticos vigentes à época. A análise desses elementos abre as portas para compreensão dos elos intercessores entre o início do colonialismo em meados do século XVI e a exploração comercial e produtiva que originou o sistema econômico capitalista e as revoluções industriais (Vergueiro, 2012). Assim, o processo primitivo colonial como um todo é o que acompanha e sustenta o capitalismo em seus diferentes períodos de expansão, isso porque, o próprio colonialismo se ergue para satisfazer os nocivos interesses mercantis da burguesia europeia (Zanotelli, 2014). Este projeto se formata desde o Mercantilismo (1.050-1.648) que transforma a usura em virtude e sinal de salvação, desde as Manufaturas (1.648-1.767), até a Revolução Industrial (1.767), abrangendo inicialmente os países que hoje formam o G7 (grupo dos 7: Inglaterra, França, Estados Unidos, Itália, Canadá e Japão), que multiplica vertiginosamente o acúmulo do lucro, dos bens e empodera cada vez mais o colonialismo, especialmente depois do Imperialismo implantado pela conferência de Berlim (1.885), pelas guerras e crises do século XX e da globalização de agora (IDEM, 2014, p.496).

É também em meados do século XVI que se inaugura a modernidade e a valorização de produções que colocam a verdade restritamente numa esfera racional e científica. É assim que esse novo modelo de racionalidade amparado pelo paradigma cartesiano penso, logo existo, diga-se de passagem, traz a razão como unidade substancial, porque é a razão, somente a razão, a morada da verdade e do conhecimento. Em contrapartida, Dussel, (1994) aponta o ego conquiro (“eu conquisto”) – não mais o ergo sum cartesiano –, como sustentáculo do ego moderno, Afirmando uma suposta superioridade europeia frente a “outra-cara”, ao indígena americano e ao negro africano que têm sua alteridade negada, encoberta. É com as riquezas e experiências acumuladas na América Latina que a Europa consegue forças para se opor a suas culturas antagônicas (ALVES & DELMONDEZ 2015).

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O conceito de colonialidade será elucidado por Quijano (1997) ao longo do texto, explicitando a diferença entre “colonialidade” e “colonialismo”.


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Os séculos que se seguiram, metamorfosearam a modernidade enquanto panorama da vida cotidiana, para compreensão de diferentes aspectos da vida. É importante que se entenda que a crítica aqui não se dá pura e simplesmente sobre o que a modernidade com seu eixo científico foi capaz de produzir e o quanto de “avanço” tais produções trouxeram à humanidade. O que levanto, é muito mais uma provocação-convite para se refletir que a própria colonização dos povos também foi por muito tempo, sustentada por seu caráter “civilizatório” e inclusive científico, em nome dos avanços e progressos da humanidade. Ingenuidade é apontar a ciência e o positivismo como dois segmentos neutros e imparciais deslocados de interesses capitalistas e burgueses. Boa Ventura de Sousa Santos (2014) ainda completa a análise dizendo que para além dos benefícios econômicos, a intercessão moderna-colonial se fez necessária para designar as diferenças entre o colonizador e o colonizado, o bem e o mal, o certo e o errado, o sagrado e o profano. O que passa a ocorrer é uma colonização interna de todo povo/identidade considerado em sua diferença, onde territórios ocupados se tornavam mais um dos espaços de dominação interna. Quijano (1997), fala de colonialidade diferenciando termo à noção do colonialismo histórico, porque esse processo não se encerra com a “independência” ou descolonização, mas na verdade, se metamorfoseia ao desenvolvimento da modernidade e do capitalismo, sendo esses elementares à dinâmica colonial. Dessa forma, sustentada pela égide científica positivista ocidental, os valores culturais, religiosos, políticos e sociais vão se desenvolvendo subalternos aos da metrópole, assim como a subjetividade: por uma lógica binária, dualística e identitária polarizando existências: “tais como mulher x homem; natureza x cultura; preto x branco; ocidente x oriente etc., criando hierarquias sociais e legitimando opressões” (MAYORGA ET. AL, 2013, P. 47). Assim nasce a ideia de um ser humano ideal: branco, a partir de um sexo dado como masculino, cristão, heterossexual, onde todo aquele que desvie desse ideal necessariamente deve passar por regimes civilizatórios. A partir do que coloco aqui, consigo chegar justamente ao ponto onde a construção das políticas identitárias cisgêneras e heteronormativas nada mais são do que parte da herança euro-colonial, mas que além, são consumadas por uma lógica de violência e exclusão a toda e qualquer experiência que desvie desse valor normativo. Como então, suscitar outras vias epistemes que tragam diferentes possibilidades de agenciamentos e criação de uma prática clínica que traga a diferença como norte para se pensar a subjetividade? Uma clínica, portanto, não mais sustentada pela universalização identitária


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ocidental, binária, enrijecida pela racionalidade moderna. Mas que além, seja capaz de pensar as experiências em gênero e sexualidade também como aspecto analítico, entendendo e problematizando o próprio lugar de poder da psicologia na cadeia de produções no campo das políticas identitárias.

Para falar de cis(ão) em corpos

Vivemos em um mundo no qual identidades humanas individuais são forjadas em e através de construções de diferenças de gênero [constructs of gendered difference]. No ocidente, a noção de subjetividade humana (do sujeito humano como tal) erigiuse sobre a fundação ficcional de dois gêneros fixos, unificados, e coerentes em um dos quais todes nós somos inserides (pela força, se necessário) ao nascer (THOMAS 2006, p. 316).

A citação de Thomas inaugura essa análise porque situa as perspectivas aqui tratadas a fim de problematizar as definições dominantes em gênero, e mais, como essas definições se articulam enquanto modos de subjetivação totalitários. Assim, ao expor a cisgeneridade como trincheira analítica (Vergueiro, 2012), é possível deflagrar as marcas constituídas pelas relações de poder, bem como questionar perspectivas que foram construídas pela colonialidade e que concebem corpo-gênero enquanto categorias de ordem natural, binária e imutável (Athayde, et. al, 2014). Situando o termo analítico, cisgeneridade provém do termo “cisgênero”, designado por Carl Buijs ao falar de pessoas que não são trans, ou seja, “pessoas as quais sua identidade de gênero está em concordância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer” (IDEM, p.5). Em consonância aos demais desdobramentos do panorama colonial moderno, torna-se possível perceber como se constrói a base de uma verdade que desconsidera outras possibilidades de se conceber gênero para além das noções ocidentalizadas. Essas concepções se amparam por um discurso médico-biologicista de natureza cisgênero-binária, como Greenberg (2006) exemplifica ao problematizar o sistema legal norte-americano, “Na legislação que se utiliza do termo sexo está implícita a premissa de que somente dois sexos biológicos existem e que todas as pessoas se encaixam perfeitamente em uma destas duas categorias” (p.53). Assim, ao favorecer uma análise sobre a cisgeneridade e seus desdobramentos enquanto lógica social elaboradora de “significados a corpos, práticas, relações, crenças e valores” (MAYORGA, 2013, p.467), destaco a corporeidade, bem como as subjetivações sensíveis aos planos Macro


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e Micropolíticos. Segundo Muylaert (2012) “as Macropoliticas são os territórios visíveis, aquilo que pode ser assinalado inequivocamente no mapa: (...) o Estado, as Leis, as classes sociais, os corpos. Ele opera o visível, é o plano das totalizações, dos sujeitos, recortando unidades” (Idem, p.9). Já a Micropolítica, opera pelas intensidades através das relações com os campos de força (Guattari & Rolnik, 2005), e atravessa os corpos e identidades, sendo fluxos heterogêneos que possibilitam a constituição de novos delineamentos corpóreos e subjetivos. Além, trago como manifesto, a necessidade de confronto à psicologia enquanto estatuto de saber mantenedor dessa concepção cisgênera como valor referencial, bem como a revisão de suas formulações teóricas e técnicas engendradas ao paradigma moderno positivista que garantiram “o status ciência da conduta” (HÜNING & GUARESCHI, 2005, P. 96). Foucault (2002) aponta que a psicologia do século XIX, era amparada por duas lógicas: “alinhar-se com as ciências da natureza e de encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os fenômenos naturais” (p.133). Essa psicologia, que buscava constituir-se como conhecimento positivo, ancorou-se, segundo este autor, em dois postulados filosóficos: “que a verdade do homem está exaurida em seu ser natural, e que o caminho de todo o conhecimento científico deve passar pela determinação de relações quantitativas, pela construção de hipóteses e pela verificação experimental”. (FOUCAULT citado por HÜNING & GUARESCHI, 2005). Entretanto, esse ideal totalitário está em dissolução e sua unicidade se desmorona por linguagens afora. A subjetividade, aqui é pensada como trama de composições, trabalho de criação inventiva através de seus processos de singularidades desapropriada de idealizações. É em terra fértil, que a concepção de subjetividade desterritorializada trazida por Deleuze e Guattari (1992), bem como as experiências fronteiriças de Anzaldúa (1987), se manifestam como ferramentas que potencializam a criação de novos agenciamentos, outras rupturas às colonizações identitárias, sobretudo no que diz respeito às experiências em gênero e sexualidade. É importante reiterar, que a análise aqui desenvolvida, não objetiva reduzir as ressonâncias dessa estrutura colonial moderna às dimensões gênero/sexualidade. É de extrema importância considerar a experiência subjetiva também a partir de outros fatores como raçaetnia, nível educacional, classe, religiosidade entre outros (Vergueiro, 2012), que também vão atuar em diferentes modalidades e esferas subjetivas dos sujeitos.


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Limiar, limite, fronteira... ultrapassagem

Então, a subjetividade deriva do bando, não é um eu fincado em si mesmo, assim, é excluído o buraco central ordenador, não há mais interioridade que apresente um muro, uma tela ou uma instalação de uma só face, mas uma espécie de mistura, um entre. Há uma subjetividade que dialoga com o outro (BRITO, 2012, p. 19)

É através desse nomadismo que escapa aos enrijecimentos identitários que suscito uma compreensão de subjetividade como “uma trama que não está dada, mas que está em composição contínua com diferentes arranjos, sendo assim, ela não está na ordem do “identificado”, como uma espécie de moldura formatada e fixada” (IDEM, 2012, p. 7). Essa capacidade de se deslocar e escapar às estruturas condicionantes e totalitárias, remete ao que Fanon (1968) propõe ao falar do “homem total que a Europa foi incapaz de fazer triunfar” (p. 363). Também pela via da problematização, Anzaldúa (1987) questiona as bases epistemológicas que organiza o saber científico ocidental e destaca outros modos de se considerar a subjetividade: a experiência fronteiriça que enquanto movimento, extrapola a estruturação enrijecida e vai além das fronteiras que delimitam raça, classe, orientação sexual e gênero (Mayorga et. al, 2013). Mesmo enquanto limites fixados e totalizantes, essas fronteiras estão sempre em concorrência às possibilidades de se entrecruzar e percorrer seus limites, podendo-se fluir em diferentes lugares e afetos. Similarmente, destaco a noção de subjetividade desterritorializada desenvolvida por Deleuze e Guattari (1992): Subjetividade desterritorializada é pensar em sua composição atravessada por modos de existência afirmativos, “por cruzamentos, que não permitem sua captura pela forma, mas por pinturas, fissuras, forças, afectos e dobras. Essa perspectiva rejeita um “eu” unificador, por isso, não mais sujeito, mas modos de existência, de singularidades e intensidades (BRITO, 2012, p.7).

Brito segue iluminando o conceito de desterritorialização como movimento dinâmico, onde um território é abandonado, sendo a “reterritorialização um movimento de construção e encontro com um novo território. Territorialização e desterritorialização são processos conjuntos não são separados um do outro” (IDEM, P. 19). Situando a análise em sua dimensão clínica, destaco processo de singularização que ao se debruçar num sentido positivo de ruptura, necessariamente atua em contrapartida aos efeitos da colonialidade, pois pela lógica das multiplicidades, está “sempre colocando em xeque qualquer tentativa de eternidade pelas


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universalizações” (CORRÊA, 2006, P. 37). Assim, diretamente vinculado ao movimento de desterritorialização, está a singularização, elemento importantíssimo do debate, uma vez que “(...) é o exercício do fora que vai dobrando sobre si mesmo, para além da moralidade imposta. (...) não se submete ao controle quando não se deixa fixar em um território, quando não se permite à segmentarização” (BRITO, 2012, p.12). Assim, pensar o processo de desterritorialização exige considerar sua atuação dinâmica de movimento e deslocamento, e que através de novos agenciamentos torna-se inventiva e criadora, se constituindo pelo movimento de territorialidade, desterritorialidade e reterritorialidade. É a partir desse processo que se constituem outros modos de existência, pois, “é aquilo que está em desterritorialidade, em descentramento, que escapa ao dado, ao controle. Então, a ‘subjetividade desterritorializada’ torna-se uma máquina de guerra, com suas combinações heterogêneas, polifônicas, tornando-se uma trama e ao mesmo tempo quebrando toda e qualquer binaridade, fissurando os corpos disciplinados [...] para além dos estratos organicistas” (BRITO, 2012, p. 21). É partindo por essa análise que retomo ao ponto de partida dessa discussão, que é justamente pensar em um fazer clínico que desafie e opere por outros lugares, outras vias subjetivas, que fundamente sua prática através da diferença, e não só com reflexo e manutenção na produção de identidades totalitárias. Assim, me debruço sobre quais tipos de agenciamentos e possibilidades podem ser construídos a partir de uma clínica política, e de que forma o paradigma ético-estético-político pode amparar uma psicologia engajada por uma atitude clínica minimamente decolonial.

Por onde começa A realização desse trabalho só se tornou possível porque decidi relatar minha experiência clínica vivenciada na graduação. Os atendimentos foram realizados na policlínica da Universidade Vila Velha, entre fevereiro e novembro de 2019, sendo aqui retratado parte dos atendimentos realizados com René 74, universitário, 18 anos. Para narrativa aqui trazida afim de descrever minha prática, alguns fragmentos escritos foram retirados do diário de campo através de registros dos atendimentos realizados. Toda esta análise tem como objetivo 74

Evidentemente trata-se de um nome fictício para preservar o anonimato do paciente. A escolha do nome se deu em referência ao pintor surrealista, René Magritte (1898-1967).


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primordial, não só descrever um relato de experiência, mas também, suscitar as possibilidades que nascem pelo fazimento de uma clínica política, e para isso, como disse antes, a esquizoanálise se colocou como ferramenta teórica para fundamentar essa prática. A esquizoanálise não se desenvolve a partir de um agrupamento conceitual onde um especialista estuda e aplica a uma prática socialmente delimitada, com resultados localizáveis e manipuláveis. Ela é, sobretudo, como afirmada por Deleuze (1989), uma espécie de caixa de ferramentas capaz de inspirar uma compreensão dos fenômenos psico-social-históricopolíticos e agenciar práticas que fujam à ordem cotidiana, rompendo com os saberes instituídos em troca de um saber subterrâneo, rizomático. Portanto, a esquizoanálise é o instrumento que ampara a prática clínica descrita neste trabalho, mas que não se encerra em si como ferramenta ou aporte teórico, mas eleva sua contribuição à um fazer clínico transdisciplinar, pois, segundo Barros e Passos (2000), não se pode investigar a subjetividade no âmbito clínico, sem experimentar outros domínios de conhecimento. Se a escuta realizada se apoia ao pensamento da diferença, inevitavelmente debruça à clínica outras possibilidades de seu fazimento, como coloca Rauter (2015) ao sugerir a transdisciplinaridade como estratégia metodológica clínica. A autora aponta para a noção de complexidade como parte do caminho inverso às universalizações, ou seja, para aquilo que se move no sentido de uma complexificação subjetiva que “dá abertura para a multiplicidade ou para os múltiplos indivíduos que nos compõem” (p. 56). Mas para além, acrescenta que o entendimento da complexidade se dá como um dos aspectos fundamentais à transdisciplinaridade, pois se refere ao plano do comum através de diferentes planos de saber e suas diversas proximidades com relação a um mesmo fenômeno, contribuindo de tal modo para a própria complexificação dos entendimentos sobre esse fenômeno, sendo essa complexificação portanto, necessária para se alcançar “a expansão da vida e da potência humana” (IDEM, 2015, p. 51). Para o desenvolvimento do trabalho, elenco a genealogia enquanto método analítico, uma vez que segundo Moraes (2018), O desenvolvimento das análises genealógicas contribui para o exame do biopoder, poder que governa a vida o que leva Foucault a investigar diferentes dispositivos, considerados conjuntos articulados de discursos e práticas constitutivos de objetos e sujeitos, produtivos e eficazes tanto no domínio do saber quanto no campo estratégico do poder (p. 1).


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Dentre os dispositivos examinados pelo método genealógico, Foucault considera o dispositivo disciplinar por localizar no corpo as estratégias de saber-poder, atuando na microfísica do poder a partir de uma anatomia dos indivíduos: refere-se à articulação entre corpo e história, pois é no corpo, segundo Foucault, que os acontecimentos são inscritos (MORAES, 2018). A genealogia é dissociativa por opor-se à crença das identidades eternas quando apresenta a heterogeneidade dos acontecimentos, pois “um acontecimento poderia atualizar-se, estando aberto às novas forças que poderiam se apoderar dele, fazendo emergir novos sentidos e abrindo brechas para a construção de outros modos de ser” (LEMOS & CARDOSO JÚNIOR, 2009, P. 354). A Genealogia como método age pela destruição de valores e realidades aceitas quando se rompe ao que está dado e escoando a potência de vida e criação. É também disruptiva do sujeito de conhecimento e da verdade, “não se limitando a inquirir a verdade daquilo que se conhece e questionando também quem conhece, de modo a propor uma crítica do próprio fundamento antropológico do saber, isto é, do sujeito do conhecimento” (MORAES, 2018). Portanto, aqui é o sujeito psicólogo, que ocupa esse lugar de suposição de saber, que é levado à problematização do próprio que lugar que ocupa na manutenção do poder na autorização de discursos e práticas que se debrucem diretamente às produções identitárias.

Por onde caminhar: encontro clínico em escrita Escrito I: Rede contra rede. Acreditamos que não há como escaparmos das redes e por isso a estratégia é a de constituirmos outras redes: redes quentes, i.e., redes não comprometidas com a exploração capitalista nem com o terror, mas sintonizadas com a vida, redes autopoiéticas. Redes públicas que envolvem a dimensão coletiva da existência e que estão comprometidas em processos de produção de subjetividades não dominadas pelo pânico, pela dívida, pela depressão. Este é o compromisso clínico-político que nos anima. (PASSOS, 2000, P.9)

Quando contesto as bases epistemológicas que construíram as noções da subjetividade moderna, automaticamente elevo a problematização à produção da psicologia tanto em seu plano teórico, quanto em seu fazimento prático. Assim, é possível deslocar a noção de psicologia e subjetividade de seu paradigma colonial-moderno para outras possibilidades ao que tange o exercício clínico.


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Rauter (2003), ao propor a problematização necessária a prática clínica, acrescenta que a fomentação de modelos científicos tem estagnado amplamente a experimentação nesse campo. Assim, a clínica aqui ocupa um outro lugar. Muito além do que uma prática que se ampara por um escopo teórico do qual seu exercício seja um campo para aplicação de conceitos e teorias, é mais, “(...) não se trata também de propor uma nova técnica terapêutica que viesse resolver os problemas das demais técnicas. Trata-se de problematizar a prática clínica, de propor estratégias singulares, que digam respeito aos problemas também singulares que esta nos propõe” (p.3).

Nesta proposta o encontro com a diferença e sua multiplicidade, se desdobra para além das concepções subjetivas sendo ela também parte dos próprios processos de agenciamentos possíveis a serem realizados no campo clínico. Bem como Corrêa (2006) que reitera a necessidade de explorar outras esferas de conhecimento para se investigar subjetividade na clínica, esferas compostas por diferentes acessos que: (...) vêm ora da arte, ora da política, ora da filosofia, ora de outro domínio qualquer que esteja em processo de nomadização, transmutando-se em devir, sendo minoritário, rompendo-se enquanto totalidade, abandonando seus sujeitos-objetos disciplinados em prol da criação (PASSOS & BARROS, 2000, p. 78).

Para dar continuidade ao processo terapêutico iniciado no ano anterior, René de 18 anos retorna à clínica na primeira sessão inaugural do trabalho, dia 25 de fevereiro de 2019. Já neste primeiro encontro, René faz uma série de pontuações falar de si: “Fui criado na igreja evangélica, presbiteriana. Há três anos, não frequento mais a igreja, por entender que aquele espaço não aceita minha homossexualidade”. Durante anos, sua sexualidade foi vivenciada por uma perspectiva de culpa e negação, mas prontamente diz ter superado esses processos e questões, e que inclusive consegue estabelecer outras conexões e vínculos com a espiritualidade, quesito que considera de grande importância na sua vida. “Em muitos momentos pedi perdão a Deus por ser gay”, essa fala corrobora o que Muylaert (2012) coloca em análise ao falar dos regimes de sensibilidade dos corpos vinculados às incidências macro e micropolíticas na subjetivação: Estes (regimes) reagem as maneiras de sentir, criar, afetar e ser afetado pelo mundo. São mutáveis e variáveis, singulares a cada corpo, sensíveis ao tempo. A construção destes regimes depende dos fluxos valorativos que atravessam os corpos, dos modos de subjetivação a que são sensíveis. (...) A cada vez que perguntamos a importância de algum valor, é sobre estes regimes que estamos intervindo, problematizando eticamente seus valores, o custo de sua existência singular naquele corpo. (p. 1-2)


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Dando continuidade à sua fala, René apresenta algumas questões que na verdade vão se dispondo como pistas daquilo que é cedo demais para ser dito, mas que ele mesmo denomina como “episódios na infância que me deixaram muitas marcas e cicatrizes” (Registro do diário de campo, 25 de fevereiro de 2019). Oscilando entre o silêncio e a busca de palavras que lhe ajudam a contornar o questionamento sobre esses episódios, René expressa sua resistência para falar sobre, mas coloca a homofobia, bullying como parte constituinte das cicatrizes que ainda lhe acompanham. “Por mais que eu já tenha superado muita coisa e ressignificado minha sexualidade, eu sofri muito bullying na igreja, ouvi muitas coisas que até hoje me fazem acreditar ser frágil, vulnerável e pudesse ser atingido por algo muito ruim por ser gay” (René, 25 de fevereiro de 2019). É aqui que se salienta o caráter político do trabalho terapêutico; ao insistir em possíveis efetuações clínicas pautadas pelo viés decolonial, as intervenções realizadas necessariamente devem se sustentar pela valorização ao encontro com a diferença, sendo imprescindível a reformulação da atitude de quem exerce a clínica em relação ao saber. De tal modo, proponho à René, analisar a própria relação de existência e resistência a partir do contexto que esteve inserido em sua infância, e que naturalmente essas marcas ainda produziriam as angústias como ele mesmo pontuava naquele momento. Neste ponto, destaco as contribuições decoloniais ao campo clínico, por se tratar de uma elaboração contra hegemônica concomitante à análise histórica dos processos de subjetivação, mas que além, se debruça ao reconhecimento do outro a partir da alteridade: “o outro que se opõe a um sujeito hegemônico detentor do poder de autorrepresentar-se e representar a diferença” (Alves & Delmondez, 2015, p.649). É então que René remonta à sua trajetória nos últimos três anos e se dá conta da sucessão dos acontecimentos em sua vida, como desde sair da igreja até o momento onde revela à sua família que era gay. “Eu não tinha me dado conta de que todas essas coisas tinham acontecido em tão pouco tempo. Eu não tinha percebido que passei por várias coisas nesses últimos três anos e sobrevivi” (René, 25 de fevreiro de 2019). Essa análise trazida pelo próprio paciente permite extrapolar o limite de um lugar de vulnerabilidade reforçado pelo circunstâncias onde viveu, relembrando Anzaldúa (1987) ao falar da experiência fronteiriça: a fronteira é uma metáfora para dizer das experiências múltiplas que perpassam o sujeito, sendo muitas dessas


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incompatíveis; antagonismos esses que causam intensa dor, mas que podem transformar a própria existência do sujeito e a sua percepção e relação com a “realidade”. Para Anzaldúa, a fronteira é um lugar indeterminado, um não lugar, perpassado por opressões e sofrimento. No entanto, abre-se também a possibilidade da invenção, da criatividade, da liberdade, do ilegal, constituindo-se, assim, em espaço de poder e resistência. (Costa & Ávila, citado por Mayorga et. al 2013).

A partir da fala de René, é essencial relembrar as inquietações de Vergueiro (2012) sobre as concepções acerca das “identidades de gênero” 75 não só na dimensão senso comum, mas inclusive dentro do próprio meio acadêmico. O que remete à problematização de Mauro Cabral “Por que parece que as mulheres e homens têm gênero e as pessoas transexuais têm identidade de gênero?”. (BENTO citado por VERGUEIRO, 2012, p. 2). Assim, a discussão sobre a colonialidade se amplia às contestações acerca das experiências em gênero e sexualidade. É neste sentido que Julia Serano demonstra a patologização das identidades dentro de um processo articulado historicamente: Há cinqüenta anos, a homossexualidade era quase que universalmente vista como não natural, imoral, ilegítima, etc. Nessa época, as pessoas falavam regularmente sobre “homossexuais”, mas ninguém falava sobre “heterossexuais”. Em certo sentido, não existiam “heterossexuais” – todas aquelas pessoas que não praticavam sexo com pessoas de mesmo sexo eram consideradas simplesmente “normais (SERANO, 2009).

É pelas problematizações das normas dominantes e seus desdobramentos nos modos de subjetivação, que evoco uma proposição política como intervenção clínica, alicerçada aos processos de resistência que flertam com as sub-normatizações do que significa ser gay, por exemplo (Miskolci, 2007). A importância de se analisar os eixos constituintes dessa relação mora na construção de outras vias que me fizeram pensar no processo trazido por René, mas também permitiram a reflexão sobre as circunstâncias históricas em que estas demandas são efetuadas (Vergueiro, 2012) ao tratar de subjetividades. E assim, o fazer clínico adentra o campo da inventividade:

75

A autora se refere ao termo “identidades de gênero” ao problematizar sua utilização para se analisar o que se considera como inconformidades de gênero: os ‘corpos estranhos das travestis, xs transexuais diagnosticadxs ou não, drag queens e kings performáticxs (...)” (VERGUEIRO, 2012, p.3), centralizando o valor referencial da cisgeneridade como conformidade natural-biológica.


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Não há uma separação entre investimentos familiares, objetais, individuais do desejo e os investimentos políticos e sociais. Eles estão numa relação de coextensividade. A mesma produção, diferentes regimes. Clínica e política são, pois, indissociáveis (RAUTER, 2015, p. 48).

Escrito II: 11 de março de 2019, segundo encontro: René relata se sentir muito entediado ultimamente, o que segundo ele, aumentava expressivamente um estado de ansiedade por meio de pensamentos repetitivos que não cessavam. Quando questionado sobre esses pensamentos, René fala da insegurança sentida por não saber quem ele, é reforçada pela ausência de uma identidade fixa. Pergunto então como é para ele não ter uma identidade fixa e ele traz a relação parental como questão, pois acredita ter que dar aos pais uma satisfação sobre quem ele é verdadeiramente, principalmente sobre sua sexualidade. É então que René é levado a se questionar sobre a quem de fato, se direcionava essa satisfação: para os pais, ou para si mesmo? Como resposta, o paciente traz sua mãe como alguém que estabelece uma forte ligação, mas que em muitos momentos se sente cobrado pelo espaço que ela tomava em sua vida através de cobranças, uma vez que em muitos momentos ela lhe exigia que fosse alguém que ele se negava a ser. A intervenção realizada se dá através da problematização de se caber em uma caixinha (como ele mesmo descreve), uma vez que René admite não caber aos limites da caixa. O silêncio invade o consultório e é nítido o incômodo gerado pelo questionamento: René olha as horas, balança incessantemente suas pernas e me lança a pergunta sobre o que fazer diante disso, como colocar em prática esse entendimento e me solicita respostas sobre como proceder. Lhe digo que não tenho respostas a dar, mas reitero esse processo como uma jornada a ser percorrida duplamente por nós. Fim da sessão. Neste sentido, Muylaert (2012) ilumina a partir de suas contribuições acerca da relação terapêutica aqui descrita. Segundo a autora, essa relação se delineia pela formação de uma rede que se desdobra aos lugares de expressão social dos sujeitos atendidos, produzindo “cortes, atravessamentos, limiares, conexões sem fim” (p. 13). Essa relação não se dá pelo interesse das privatizações dos afetos ou pelo estudo dos “casos” atendidos, mas sim através da viabilização


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do outro enquanto parceiro nas formas, contornos, rupturas e movimentos (Idem, 2012). Assim, considerando o outro por esse sentido requer, (...) estabelecer laços, admitir e suportar a impotência de não ter respostas; lutar para não estabelecer regras à priori; insistir em composições que potencializam a vida; duros passos cambaleantes e movediços no traçado de trilhas provisórias (MUYLAERT, 2000, p.27).

A transdisciplinaridade é, portanto, parte das estratégias descritas nesse trabalho, justamente por fazer parte de uma decisão política necessária ao exercício clínico, que é: se reinventar frente às práticas que permeiam tal campo de atuação. Se por um lado, há um paradigma moderno científico que concebe os sujeitos a partir de uma unidade identitária, por outro, cria-se a possibilidade de acolher a multiplicidade em suas diferentes implicações como instrumento de amparo ao exercício clínico, não mais pela moral, que vincula a vida ao que ela deve, mas sim pela ética, que liga a vida ao que ela pode. A diferença entre ética e moral é que a moral prescreve o que se deve crer, pensar, fazer, sob um modelo ideal e perfeito do Bem; a ética diversamente, convida a agir e a pensar segundo o que um copo pode, de acordo com a potência da natureza que o atravessa (FUGANTI, 1990, p.51).

Escrito III: O sujeito, em suas dimensões política, estética e ética, caracteriza-se como expressão da potência da vida para resistir às formas de dominação (BARROS & PASSOS, 2001, p. 7).

Ao retornar à terapia, René diz que a sessão anterior lhe propiciou muitas reflexões que lhe inspiraram à produção artística de uma pintura capaz de demonstrar um novo sentido em relação a sua identidade. No registro da sessão, encontra-se a descrição da obra realizada (Ver Figura 1): “O quadro é uma pintura que eu fiz depois que você me questionou sobre meu enquadramento na caixa. Visualizei na parede do consultório um quadro dentro de outro quadro, onde a identidade era a própria tinta que fluía e escapava as limitações da moldura, sem se prender a ela, mas sem esvaziar a composição de dentro” (René, 25 de março de 2019).


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Figura 1. Transborde – René, 2019.

Aqui suscito a obra de Guattari, “As três ecologias” (1990), que em contraposição aos modos de produções identitários da contemporaneidade desenvolve um outro aporte que sustente o fazimento clínico: o ético, o estético e o político. É partir deste paradigma que a delineio a intervenção, remontando a significação de um fazimento clínico fundamentado pelo desvio da alteridade, sendo esse desvio o próprio movimento nômade inerente as experimentações que vão de encontro a novos territórios subjetivos. Muylaert (2012), realoca a noção da ética, não como um sentido moral de modulação e adaptação a um modelo dado, mas como “uma potência ativa que emerge no corpo, para administrar a própria vida (...) é um saber das práticas ou das condutas que está colada à potência (...)”. Não se pressupõe uma verdade anterior, como se estabelece a noção de moral, mas a atitude ética se efetua a partir do que afeta o corpo, e que repercute efeitos a outros corpos com que se relaciona. Ético, então, é o rigor com os agenciamentos que compõem um campo; é o rigor com a expressão do singular e inusitado; é o compromisso com as forças que atravessam o campo, compondo os agenciamentos e multiplicando sentidos. É a valoração dos saberes nascidos das relações. Só será ético neste compromisso, se for estético e político no mesmo movimento. (IDEM, p.7)


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A estética, ainda segundo a autora (2012) está posicionada entre a ética e a política, “num agenciamento que adensa sua perspectiva intensiva na criação” (Idem, p.7) reiterando possibilidades de criar, recriar e acolher tudo aquilo que por si só se diferencia e resiste às molduras que enquadram a existência. “Todo devir é um bloco de coexistência”, disseram Deleuze e Guattari (1997, p.89), e Legrand (1983), acrescenta que é justamente pelo encontro com a alteridade que se se sucede a coexistência, pois se viabiliza através do outro. É na criação de estilísticas do existir que se arrebata e multiplica os sentidos e se atravessa a fronteira, é o que provoca a desestabilização dos modos, é o que transborda as molduras:

Onde e quando o exterior invade o corpo (...) Mas, a partir de que momento se torna belo o que está no, quadro? A partir do momento em que se sabe e se sente o movimento que a linha que é enquadrada vem de outro lugar, que ela não começa nos limites do quadro. Ela começou acima, ou ao lado do quadro, e a linha atravessa o quadro (...) longe de ser a delimitação da superfície pictórica, o quadro é quase ao contrário, é o estabelecimento de uma relação imediata com o exterior (...) (DELEUZE, 1990, p.61).

O exterior elencado por Deleuze, se refere caráter político do paradigma que permite o acesso à dimensão histórica e coletiva que constitui as subjetividades, os corpos são, provisoriamente, a expressão da ambiência onde estão posicionados: ético-estético e politicamente (...) No vetor político, evidencia-se o confronto entre os modos de subjetivação singulares e os modos preconizados pelas correntes da normatização das práticas e corpos (MUYLAERT, 2012, p. 10).

O que necessariamente então, acaba dizendo respeito aos afetos produzidos pelo encontro com o exterior: O exterior de uma determinada figura da subjetividade, o exterior de um afeto, suas adjacências, suas pequenas fissuras que permitem a sua comunicação com aquilo que não é: com o inumano, com o transhumano, com seu avesso e sua afirmação. A iminente potencialidade de devir, ancorada na iminência do desmanchar-se; linha, fluxo, desterritorialização. O entorno, mas também o intorno (GUATTARI, 1992, p.15).

Fuganti (2006), valoriza essa capacidade de afetar e ser afetado que pode o corpo e pensamento, pois é dessa maneira que se torna possível explorar as fronteiras dos limites estreitamente impostos pelos valores vigentes de uma época, para que assim, se criem “novos ambientes de intensificação do desejo e aumento da liberdade” (IDEM, 2006, p. 1).


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Quando René retorna à sessão seguinte com sua obra em mãos, diz: “depois de um tempo fiquei pensando e percebi que eu precisava te entregar esse quadro, ele é parte do resultado de coisas que eu pensei por conta do que você me disse” (René, 18 de março de 2019). O registro do diário segue dando continuidade aos acontecimentos daquela sessão e logo depois de entregar o quadro: René diz que ao longo de sua semana teve coragem para partilhar com sua melhor amiga o que até então, não havia sido dito a ninguém. Através dessa fala, René remonta os episódios vivenciados em sua infância, mais especificamente os que foram lhe deixando marcas que se reverberavam até os dias atuais. Em seu relato, me conta que se relacionou sexualmente com outros dois meninos que frequentavam a mesma igreja que ele, todos com aproximadamente 7 anos de idade. O paciente traz alguns elementos pontuais para se destrinchar a análise: René pontua que o fato de não entender direito o que estava acontecendo, mas ainda assim sentir prazer, provocou sensações como culpa, vergonha e medo. Essas sensações se desdobraram por um intenso e longo processo de ansiedade, atrelado à pensamentos obsessivos que lhe rondam como fantasmas que lhes jogam à infância. René chora bastante enquanto fala, mas alega estar aliviado por ter tido coragem para falar. Após o término de seu relato, percebe-se que René vivenciou esse processo a partir de valores que foram delineando significados como pecado, impuro, sujo, não digno de Deus (Registro do diário de campo 18 de março de 2019). A reflexão-problematização a partir do contexto no qual René estava inserido levou em consideração que dentro desse mesmo contexto, sexualidade e infância são compreendidos como tabus a não serem discutidos ou falados. Esse entrave estabelecido pela ausência do diálogo se desdobra por diferentes implicações acerca da própria compreensão do ocorrido, mas também é por essa não elaboração que processos como a culpabilização de si vão sendo inscritos a partir de marcas e cicatrizes. É indispensável destrinchar essa análise mais uma vez por seus eixos constituintes como não só a sexualidade, mas a própria relação homossexual presente na infância que se dá como contraponto do ideal fomentado pelos valores e ideais presentes naquele contexto: mais uma vez a atuação da colonialidade não criação das significações corpóreas e subjetivas em ressonância às doutrinações identitárias. É dessa forma que René evoca as situações de bullying e agressões vinculadas a discursos que na tentativa de deslegitimar sua existência, lhe concederam um lugar de vulnerabilidade. Mas interessante


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perceber como materializar seu transbordamento através da arte teve um alcance tão significativo que o leva a partilha de sua angústia primeiro com sua melhor amiga, em seguida na sessão terapêutica, e por fim, René conta à sua mãe o que até então não era possível ser contado a ninguém. É como se a intervenção tivesse ultrapassado sua intenção primeira de problematizar a identidade fixa e abriu vias de acesso para diferentes transbordamentos. Se deparar com as molduras é olhar para os imperativos de uma colonialidade que parece não cessar, e que atua como modo de subjetivação e assujeitamento, mas é aqui que a arte se manifesta como a própria expressividade estética do existir: “se Estética é transbordamento, é a vida na ordem do acontecimento que transborda. Linhas que atualizam vetores virtuais de devir intenso... (...) a criação de um campo, (...) criação que encarna as marcas (...) como na obra de arte” (ROLNIK, 1993, p.245).

Escrito IV: “O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia” (Guimarãoes Rosa, 2015, p. 29)

Nas sessões seguintes que se dão em continuidade ao processo, René fala sobre como tem encarado todos esses processos de uma outra maneira, se “desculpabilizando”, principalmente depois de ter conseguido falar sobre isso, não só na terapia, mas com pessoas que ama e confia. No parágrafo seguinte, segue parte do diário de campo referente ao dia 6 de maio de 2019 sobre as percepções captadas através do movimento realizado por René: Trazer à tona o processo, falar sobre, compartilhar com pessoas que René confia, é parte de um “se deparar de frente” com o que até então era guardado e escondido. É de fato, um processo que requer mexer com estruturas que são sustentadas por muito tempo a partir das verdades enclausuradas, territórios fixos e molduras dadas. Perfurar a moldura, ou seja, ultrapassar a fronteira e se desterritorializar é também tocar na ferida e se questionar: ‘onde caibo quando me transbordo?’ É estar disposto a não encontrar respostas, nem um “lá” como chegada. O “lá” é a própria caminhada, é a chegada que não chega, porque no caminho não há fim. E é ele, que por si só se constrói nômade como o próprio processo clínico. É nítido como René revolucionou e questionou sua vulnerabilidade, e experimentou senti-la de perto através do abandono de um território pela experimentação nômade. É se encontrar com o sentimento


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de solidão e desamparo por carregar consigo a angústia do medo, do pecado, a culpa, a impureza, mas ainda assim, fazer da fronteira, travessia” (Registro do diário de campo, 6 de maio de 2019). É dessa forma que segundo Corrêa (2006) a clínica atua pela criação de movimentos desterritorializantes que acompanham o surgimento de novos territórios, sendo esses produzidos através da imanência, mas sem esvaziar a força e a especificidade da atuação. E de tal modo que este fazimento clínico descrito reitera sua efetuação pela valorização dos movimentos de territorialização indissociável à reterritorialização, como num fluxo contínuo de encontros e desencontros que se engendram no processo terapêutico, onde a terapeuta se faz apenas como intercessora desse processo. “Os intercessores se fazem, então, em torno dos movimentos, esta é a aliança possível de ser construída quando falamos de transdisciplinaridade, quando falamos de clínica” (PASSOS & BARROS, 2000, p. 77). Assim, o exercício clínico se delineia como um entrecruzamento de forças que se estabelece com outras vias, outros territórios, o outro e sua diferença, sua singularidade plural que abrange as matizes do múltiplo. Aqui, trago a alteridade tal como ela é: inerente a uma relação terapêutica, mas também como elemento indispensável a um fazimento minimamente decolonial, realocando seu fazer pela ética, estética e política. É a clínica se viabiliza pelo cuidado da vida, do existir. É a Vida para qual dizemos sim e, o que dela verte, são as possibilidades de formas de existencialização que ela pode tomar, em seu processo de expansão: o que importa à Vida não é reservar-se, mas expandir-se, desdobra-se em múltiplas formas, comportar a potência das forças que atravessam o corpo. (MUYLAERT, 2012, p. 6)

Para onde venho chegar Diante do que trago até aqui, reitero a importância desse (s) tema (s) como parte intrínseca da elaboração de dispositivos disruptivos diante dos discursos hegemônicos que atuam na manutenção dos aniquilamentos subjetivos e sua multiplicidade. É preciso falar sim sobre a (s) colonialidade (s), assim como é necessário se enxergar diante das molduras, pois como já dito, foi através do exercício genealógico que se possibilitou outros modos de se contar e consequentemente, viver a história. É preciso destrinchar em análises as atuações desse processo que não cessa, e de tal forma, colocar a cisgeneridade enquanto eixo analítico para se provocar a reflexão inclusive, sobre como lidamos com as terminologias que nos encontram e


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nos atravessam. Trago a cisgeneridade como parte de um questionamento que situa a análise em consideração ao que se tem realizado não só nas esferas acadêmicas, mas sobretudo nos campos de atuação onde a psicologia está inserida. Embora muitos psicólogos critiquem os fundamentos epistemológicos da psicologia e suas diferentes implicações no eixo teóricoprático, o discurso – ainda - atua em consonância com as premissas biologicistas coloniais. É perceptível que esse enrijecimento se sustenta muito pela ausência da autocrítica de profissionais cisgêneros, mesmo ao lidarem diretamente com identidades díspares à essa conformidade dada como dominante, que é a cisgeneridade. Se tratar a transdisciplinaridade enquanto método clínico faz parte de uma contrapartida ao paradigma hegemônico, que este exercício então, se dê de modo contínuo e suscitador, para viabilizar encontros com a arte e descolonizar os afetos e territórios subjetivos. E é para sentir, afetar e ser afetado, questionar sobre o lugar que se ocupa a partir de uma relação de saber poder, para que possíveis transformações se efetuem na própria relação de si com o saber, não somente de si com o outro, e assim possa se alcançar minimamente uma expressividade ético-estético-política. Dessa forma, trago mais uma fala de Muylaert (2012), Estas posições, que são ético-estético-políticas, têm como efeito o cuidado, que não precisa ser mais colocado como um objetivo a ser alcançado ou como uma meta institucional a ser perseguida. Ele surge quando nossas práticas são expressões das pretensões vitais dos corpos, que ensejam criações ímpares para o viver (...) ainda como efeito deste processo, despatologizar o cotidiano, onde outros modos e formas possam habitar e existir, com a força da própria condição de existência e a partir dos valores que sustenta nesta trajetória. (p. 12).

Talvez, sejam por essas razões que este trabalho seja permeado por tanto apreço por mim que lhe escrevi, pois trato de uma elaboração que se deu acima de tudo, pela via do afeto e as afecções produzidas por esses encontros clínicos. Não só pela reafirmação do papel de psicólogos, mas pela reconsideração daquilo que se faz com os saberes, e assim, me proponho também a transbordar onde não me caibo, infundir com a moldura e percorrer a travessia das fronteiras coloniais.

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A caverna dos brinquedos: experiência e aprendizagens artistas Profª. Draª Maria Riziane Costa Prates Edna da Silva Pereira Ester Zappavigna Monteiro Costa

Introdução

Adentrar em novos campos traz, por muitas vezes, novos anseios e expectativas. Uma proposta inovadora e impactante foi colocada em prática a partir de uma reunião realizada entre professores e alunas do Projeto de Iniciação Científica na graduação em Pedagogia da Universidade Vila Velha - UVV, situada no Município de Vila Velha – ES. A criação da Brinquedoteca, posteriormente chamada de “Caverna dos Brinquedos”, objetivou conduzir uma intervenção pedagógica com as crianças que receberam tratamento na Policlínica da Universidade. Eram dez crianças, com faixa etária de 3-14 anos. Uma sala ambiente adaptada com brinquedos dentro da Universidade foi o cenário da pesquisa. Neste lugar, metodologias ativas foram utilizadas. As crianças puderam desenvolver o seu próprio saber, além de terem efetiva participação nas elaborações das atividades ofertadas. O objetivo principal da experiência foi aproveitar a criatividade inata de cada indivíduo, através da aprendizagem afetiva e da experiência, objetivando a construção do futuro. A formação moderna, as ideias de disciplina e autoridade levam, em alguns momentos, a não ouvir as crianças, a decidir por elas e até a classificá-las. Não raras vezes, é imposto o espaço que o outro deve ocupar, e com a criança não é diferente. Colinvaux questiona acerca das decisões impostas sobre as crianças ao invés de escutá-las (COLINVAUX, 2009, p. 59-60). Um trecho do poema de Edwards, Gandini e Forman esboça acerca do fato: A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos cem pensamentos cem modos de pensar de jogar de falar. Cem sempre cem modos de escutar de maravilhar e de amar. Cem alegrias para cantar e compreender. Cem mundos para inventar cem mundos para sonhar.


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A criança tem cem linguagens (e depois cem cem cem) mas roubam-lhe noventa e nove (EDWARDS, GANDINI E FORMAN, 1999)

Os pequeninos precisam ser escutados e entendidos. Muitas vezes, pela falta da escuta e atenção aos seus interesses, o desenvolvimento infantil é prejudicado, o uso da imaginação bloqueado, e consequentemente suas ações são inibidas. A partir da identificação de que a criança tem muito a dizer, para além do que se espera, houve a necessidade de buscar práticas prazerosas e confortáveis para a promoção de uma escuta qualificada do que elas têm a dizer. Com os olhos e ouvidos livres de escutas seletivas e de preconceitos, a atividade lúdica surgiu como meio para viabilizar esse processo. Na brinquedoteca, as crianças tiveram total liberdade para demonstrarem suas emoções e interesses. Sobre a busca por práticas de escuta qualificada, Rocha (2007) discorre acerca da estratégia de interação: Ouvir a criança exige a construção de estratégias de troca, de interação, mais do que de perguntas e respostas, pelas quais se nega que as crianças constituem significados de forma independente. Assim, o momento de escuta tem que ser também o momento de expressão dessa representação, que é uma representação coletiva. (ROCHA, In CRUZ, 2007, p. 49)

Um grande desafio estava por vir. Uma experiência surreal para seus participantes. Ali foram sentidas sensações que modificaram a forma de vida dos envolvidos. Neste tempo, laços de amizade e de confiança foram construídos. Crianças tiveram a chance de serem ouvidas através de escutas e olhares sensíveis. O projeto fortaleceu não apenas os objetivos dos que estavam ali, como também os corações e as almas. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. [...] A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-seia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça (LARROSA, 2002, p. 21).

A fala sensata de Larrosa reproduz a experiência da pesquisa realizada na Brinquedoteca. Viver e sentir são dádivas que a vida dá diariamente aos que vivem. Apesar dos acontecimentos do dia, muitas vezes os fatos ocorridos não são profundos a ponto de tocar a vida. Participar de algo que, de alguma forma, toca o seu viver é gratificante e desafiador.


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Fig 1. A brinquedoteca. Fonte: arquivo pessoal

Fig. 2. Sensações. Fonte: Arquivo Pessoal.

A cartografia foi peça chave para o sucesso da pesquisa. Essa metodologia, formulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, é um mapeamento de paisagens, metafóricas e metafísicas, não estático, e de percurso, “o cartógrafo, ao estar implicado no seu próprio procedimento de pesquisa, não consegue (e não deseja) manter-se neutro e distante” (COSTA, 2014, p. 71).


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Ela não busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim. Ela é puro movimento e variação contínua. É uma prática investigativa que, ao invés de buscar um resultado ou um fim, busca sempre acompanhar o processo em busca da conclusão (COSTA, 2014, p.70). Por meio de uma atenção flutuante (KASTRUP, 2007), foram observadas as diferentes sensibilizações e movimentos que surgiram no processo de exploração do local. Deleuze e Guattari defendem que essa metodologia compreende a valorização daquilo que se passa nos intervalos e espaços entre uma coisa e outra. Em linhas gerais, trata de investigar um processo de produção (KASTRUP, 2014, p. 32). Costa, em seu artigo, traz a ideia de que o cartógrafo esteja em movimento, afetando e sendo afetado por aquilo que cartografa. Dito isto, é certo afirmar que o envolvimento com a pesquisa e, de forma mais especifica, o encontro são fundamentais (2014, p. 69).Vejamos:

Se pudéssemos apresentar um elemento fundamental para uma prática cartográfica, este seria o encontro. Entretanto é preciso superar a noção comum de encontro como um “encontrar algo” ou “achar alguém ou alguma coisa”. O encontro, da forma como aqui falaremos, é da ordem do inusitado e nunca se faz sem um grau de violência (é claro que não estamos falando de uma violência física; mas de um movimento que é violento porque nos desacomoda e nos faz sair do mesmo lugar).

Para Deleuze (1998) o encontro é imprescindível. Através dessa ação, o processo surge e o envolvimento e acompanhamento deste se tornam inevitáveis. Foi este anseio pelo envolvimento que impulsionou o andamento da pesquisa. Nos primeiros momentos, um ar de apreensão e muitas expectativas tomaram conta do ambiente. Crianças inseguras, tímidas e com dificuldade de se relacionarem apareceram e com isso, novos desafios, metas, laços e oportunidades surgiriam. Quando os encontros não aconteceram, as crianças sentiram. Elas comentavam e esperavam ansiosamente pelo dia do encontro. Foi através de um relato de uma mãe que essa afirmação se confirmou. Ela disse: “Meus filhos ficaram inquietos e ficavam inventando o que íamos fazer nas férias. Até Lucas que é o mais tímido sentiu falta do espaço!” Não era apenas uma pesquisa, todos faziam parte do processo. A pesquisa se tornou um campo de emoções no qual não caberia mais a neutralidade. Ocorreu assim como Costa ensina em seu texto: O cartógrafo abre caminho para os fluxos, para aquilo que aponta para criação e que justamente resiste aos congelamentos. Ali onde a verdade guagueja, no pé vacilante da verdade, que ele pega carona. É por isso que dizemos que na cartografia a queda é


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muito bem-vinda. Afinal, só tropeçamos quando nosso pé se encontra com algo (COSTA, 2014, p. 75).

A promoção da mistura é justamente aquilo que o cartógrafo deve fazer. Não há possibilidade da não ocorrência. A neutralidade não existe para a cartografia. A queda sempre é bem-vinda. O conhecer e o fazer se tornam inseparáveis. E este envolvimento, esta mistura, esteve sempre presente na Brinquedoteca. (COSTA, 2014, p. 75). Lucas, uma criança de nove anos de idade, extremamente tímida, foi um dos que tocaram a alma dos envolvidos no Projeto.

Durante o tempo em que ele esteve na

Brinquedoteca, se sentiu tão cuidado e envolvido que compartilhou um grande talento com as pesquisadoras. Sua habilidade em fazer de uma fita crepe a forma de um animal ou qualquer tipo de objeto encantou todos os cantos daquela sala. O ambiente proporcionou o uso da imaginação fértil de Lucas. Através dele, a felicidade tomou conta do lugar. Mais uma vez, a Brinquedoteca se tornou aquilo que era esperado. Um ambiente tranquilo, capaz de aflorar a imaginação, estreitar os laços emocionais da criança com os profissionais e desenvolver habilidades. A felicidade de sua mãe, por sua vez, era sem fim. Sempre com o semblante de gratidão e com seu celular na mão, com intuito de registrar cada momento de seu filho, dizia alegremente: - Mãe de Lucas: Olha como ele está conversando hoje! - Mãe de Lucas: Ele está cantando e brincando mais que o normal hoje! - Mãe de Lucas: Ele está se soltando! - Mãe de Lucas: Cada dia que passa ele fica mais a vontade!

Com essa alegria e ao ver que seu filho estava em processo constante de evolução e desenvolvimento, ela priorizou o tempo do filho na Brinquedoteca. Ela fazia de tudo para ficar mais tempo no ambiente. Muitas vezes a hora do relógio passava e não era percebido. O prazer de estar ali era nítido. Sua prima também era acompanhada pela Policlínica. Lívia, dez anos de idade. Criança muito animada e eufórica. Chegou na Brinquedoteca com muita energia querendo brincar e participar das atividades. Antes da brincadeira começar, uma das pesquisadoras pediu para bater um papo com ela e aos poucos a concentração surgiu. Até que ela disse:


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- Lívia: Me sinto bem aqui. - Pesquisadora I: Sente-se? Isso é bom! - Lívia: Gosto de ficar aqui, fico a vontade, porque vocês conversam comigo e param para me ouvir.

O gosto pelas brincadeiras lógicas e de montagem estavam no DNA dessas crianças. Lívia, assim como seu primo Lucas, adorava ser desafiada. Nos momentos em que ela comparecia à Brinquedoteca, os jogos de montar saiam das estantes e iam de encontro com ela. Sua concentração era real. Certa vez, uma das pesquisadoras decidiu levar um grande quebra-cabeça para ser montado junto com as crianças. Um grande desafio. Cada peça montada, um suspiro de vitória. Até que Lucas, sua irmã e sua mãe chegaram e viram a novidade. Uma surpresa para todos, eles já tinham o hábito de montar quebra-cabeças em suas casas. Que fantástico! Horas se passaram naquele dia e laços de amizade e credibilidade foram criados. Assim como aranhas tecem suas teias, naquele momento foram tecidos os laços entre o grupo. Conversas, histórias, invencionices, risadas, diversão e novas experiências faziam a mágica acontecer. Lucas, embalado nesses sentimentos, propôs a construção de um Castelo com a equipe. Era chegada a hora de mais uma vez, a imaginação florescer. Ele adorava novos desafios. Sua mãe, sempre muito atenciosa, na semana seguinte levou alguns materiais para ajudar na construção do Castelo. Todos colocaram a mão na massa. Foram usados materiais recicláveis e muita tinta. Seu significado era muito além de um simples Castelo. Era a junção de emoções e afetos. Mais crianças participaram de sua construção. Aos poucos, através de um trabalho em conjunto, a imaginação ganhou forma. Lucas se sentira maravilhado com o resultado final. Mais uma mistura de sensações fora sentida. Não só por Lucas, por todos.


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Fig. 3. Confecção do Castelo. Fonte: Arquivo Pessoal.

Fig.4. Castelo construído. Fonte: Arquivo Pessoal.


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A angústia e o medo de não saber o que fazer foi deixado de lado. Os envolvidos, a cada dia, sentiam a sensação de pertencimento no local. A descoberta de propósitos, o olhar sensível às causas das crianças e familiares ali atendidas, impulsionaram o método de trabalho. Outro exemplo digno foi o caso da criança chamada Miguel. Um menino de apenas quatro anos de idade que cativou e deu nome ao ambiente. Numa tarde de sol, Miguel, acompanhado de seus avós e de sua psicóloga, chegara na Brinquedoteca. Criança bondosa, quieta, que ainda não tivera a chance de criar vínculos com outras pessoas, a não ser seus avós, possuía um olhar fixo e pensativo. Sua avó, preocupada com a situação, de forma serena informou que o comportamento de seu neto seria inadequado para a sua idade. A dificuldade de se aproximar de pessoas e a total dependência para com seus avós o levou à Policlínica para acompanhamento psicológico.

Fig. 5. Miguel explorando o ambiente. Fonte: Arquivo Pessoal.

A exploração do ambiente da Brinquedoteca foi a experiência do primeiro dia de atendimento do Miguel. Criança curiosa, de difícil comunicação e muito apegada aos avós, fazia pergunta sobre tudo o que visualizava. Com sua meiga voz dizia: “O que é isso?”.


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Ao despedir das pesquisadoras, uma das primeiras sensações de afeto entre ambos foi sentida. O abraço. Miguel, mesmo com toda sua timidez, se sentiu confiante a ponto de permitir o abraço e prometer que voltaria a vê-las naquele ambiente na próxima semana. E assim se fez. Miguel havia voltado na semana seguinte. Sua vó, muito feliz com o avanço de seu neto, dizia: - Avó: Nossa. Ele estava ansioso para vir para a Brinquedoteca. Até deu um apelido para este lugar! Ontem ele me perguntou se era hoje que viríamos para onde tem os brinquedos. Lá na “Caverna dos Brinquedos”. Porque lá parece uma caverna, vovó! – disse Miguel – Ele veio muito empolgado, coisa que antes não acontecia. Sempre brigava para se arrumar, tomar banho. E agora, desde semana passada, ele quer vir mais cedo. - Pesquisadora I: Nossa, que bom que gostou da nossa caverna. Podemos chamá-la de “Caverna dos Brinquedos”, tá bom? *Miguel acenou dizendo que sim.

Fig. 6. Entrada com o nome escolhido por Miguel. Fonte: Arquivo pessoal.

Mais confiante, falante e alegre, Miguel se sentia a vontade em seu segundo dia na “Caverna dos Brinquedos”. Brincara com o jogo das cores, o qual o ensinou a disserni-las. O telefone de brinquedo se tornou sua paixão. Sua curiosidade aguçada o fazia explorar cada vez mais o local.


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A vovó de Miguel, cheia de esperança, avistou possibilidades. Através daquele ambiente, Miguel se sentira mais disposto para seu tratamento. A psicóloga observou que o tratamento evoluiu. Diante disto, ela solicitou que parte do atendimento fosse realizado ali. A ida para a Brinquedoteca tornou-se rotina. A cada semana, a criança e seu avós compareciam ao local. Ideias surgiram. Agradar aquela criança tornou-se um objetivo. Após conversas, a montagem da entrada como se fosse uma caverna e a confecção de um painel com os dizeres “Caverna dos Brinquedos” fora realizada. A imaginação, mais um vez, tomou conta. No dia da montagem do cenário, Lucas e sua irmã chegaram e disseram:

- Lucas: O que vai ser isso? - Pesquisadora III: Será a “Caverna dos Brinquedos” - Irmã de Lucas: Foi o Miguel que deu esse nome. É por isso que elas estão fazendo tudo isso. - Pesquisadora II: Vocês gostaram da entrada? Ficou bonito? - Lucas: Sim, gostei! *Irmã de Lucas gesticulou que sim.

Após a breve conversa, a mãe de Lucas chegou. Avistando as pesquisadoras, que no momento estavam tendo dificuldade em montar o material, logo se ofereceu para ajudar. Tudo correu bem e pouco tempo depois a entrada se tornou o portal da “Caverna dos Brinquedos”. Satisfeita, a mãe disse: “A ideia de vocês nessa brinquedoteca fez toda diferença no atendimentos dos meninos na Policlínica. Vocês estão de parabéns!” Tudo ficou pronto. Apesar do cansaço do cotidiano e dos afazeres da vida, nada é mais precioso do que o reconhecimento. O poder servir. Fazer a diferença na vida do próximo. A gratidão pairava no ar. Não só das pesquisadoras e da família de Lucas. Miguel e sua avó, posteriormente vivenciaram o mesmo sentimento.


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Fig.7. Confecção da placa “Caverna dos Brinuedos” Fonte: Arquivo Pessoal.

No último dia de atendimento na Policlínica da Universidade, Miguel foi recebido de braços abertos na Brinquedoteca. Sem perceber as mudanças da entrada, adentrou-se e brincou sem parar. Feliz, realizado e falante. Por sua vez, sua avó se emocionou. Mais uma vez, o uso da cartografia possibilitou o sentir. Gratidão e satisfação foram as palavras daquele momento. Laços, que jamais serão esquecidos, foram criados. As sensações foram sentidas, a pesquisa tocou cada um dos participantes. Vínculos novos foram criados. Através da “Caverna dos Brinquedos” Miguel desenvolveu habilidades.

Fig.8. Entrada da “Caverna dos Brinquedos”. Despedida de Miguel. Fonte: Arquivo Pessoal.


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O vento e o titanic da Briquedoteca: imaginação Já era fim de tarde e chegava o momento das despedidas. Vento muito forte. Muita chuva. Frio. As crianças brincavam na “Caverna dos Brinquedos”, até que Lucas se levantou e disse: “- Lucas: Vamos brincar lá fora e sentir o vento? Vem, Lívia, vem, Tia! - Lívia: Vamos. Vamos imitar o Titanic!” Todos foram para fora em forma de fila, abriram os braços e cantaram alto a música do filme “Titanic”. De repente, abriu-se a janela da Policlínica, ao lado da Brinquedoteca. Queriam ver o que tinha acontecido. Todos riram. Todos sentiram. Mais uma vez, os pensamentos deram lugar para a imaginação. Um simples fenômeno da natureza se tornou um modo prazeroso de inventividade. Imaginar é uma arte a qual todas as crianças podem e devem fazer. É um espaço de liberdade, um refúgio. A imaginação é uma dimensão em que a criança avista coisas novas, pressente ou arquiteta futuros possíveis. Ela tem necessidade da emoção imaginativa que vive por meio da brincadeira e de suas experiências. “a imaginação, como a inteligência ou a sensibilidade, ou é cultivada, ou se atrofia”, diz Held (1980, p. 46). Vygotsky pontua que os processos de imaginação são inerentes ao homem e se constroem a partir de elementos da realidade, partindo da experiência anterior do indivíduo. Por este motivo, o estimulo ao uso da imaginação na infância é um meio eficaz de saber sobre os sentimentos e emoções das crianças. O autor afirma que, quanto mais a criança viu, ouviu ou vivenciou, maior será sua capacidade de assimilação e imaginação (VYGOTSKY, 2001, p. 23). O mesmo autor, Vygotsky (1998), ainda traz a ideia de que a imaginação é primária, estando presente desde o princípio na consciência infantil, da qual procede todo o resto da personalidade. Freud explica que a criança é o único ser existente que está completamente emancipado da realidade. É um ser que se acha submerso no prazer, cuja função principal da consciência não consiste em refletir a realidade em que vive, mas apenas em servir aos seus desejos e às suas tendências sensoriais. Singer (1984) sugere que o maior índice de imaginação aparece em ambientes com rotinas estruturadas, com pessoas que valorizam a curiosidade, a criatividade e outros métodos lúdicos e que preferem métodos não autoritários no trato com as crianças. Foi dessa forma que


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a Brinquedoteca funcionou. Pesquisadoras mergulhadas nas experiências aplicaram diversas atividades com intuito de fomentar e despertar a imaginação dos pequenos. Neste sentindo, através da pesquisa realizada na brinquedoteca é evidente a necessidade de estimular e apoiar o processo de imaginação infantil. Por meio deste ato, as crianças puderam se soltar, relatar, sentir e viver o mundo da imaginação. O uso da imaginação alcançou os limites delas e as fizeram alcançar meios de superação, conforme relatos demonstrados no texto.

A infância e as brincadeiras Estes relatos demonstram a importância da imaginação, das brincadeiras e das experiências na infância. É comum pensar a verdade a partir da ciência. Todavia, pensar a verdade a partir da invenção seria, de todo modo, correto. Parte do pressuposto que não há nada verdadeiro que não seja inventado, ou que só pode existir a verdade quando há invenção. A invenção é condição da verdade. (KOHAN, 2004). Vale uma breve reflexão sobre a infância. Kohan (2004) ao discorrer sobre essa etapa da vida faz distinção entre duas infâncias. A infância majoritária, a qual desde Platão é utilizada. Medida através de etapas, da continuidade cronológica. E a outra, chamada de infância minoritária. Essa é conhecida como criação, acontecimento, experiência. É a infância com intensidade, aquela conhecida como “devir”: A significação do termo “devir” não é unívoca. É usado às vezes como sinônimo de ‘tornar-se’; às vezes é considerado o equivalente de ‘vir a ser’; às vezes é empregado para designar de um modo geral o mudar ou o mover-se (que, além disso, costumam ser expressos por meio do uso dos substantivos correspondentes: ‘mudança’ e ‘movimento’). Nessa multiplicidade de significações parece haver, contudo, um núcleo significativo invariável no vocábulo ‘devir’: é o que destaca o processo do ser, ou, se quiser, o ser como processo (MORA, 2000, p. 207).

Uma infância não exclui a outra. São duas temporalidades. Assim como Mora (2000) trata, o devir é movimento. Ambas se tocam, se cruzam e se confundem. O “devir-criança” compõe outra temporalidade, que não a da história. Devir é um encontro entre duas pessoas, uma mistura de ações que provocam uma terceira coisa entre ambas, algo sem temporalidade cronológica, um modo de escape, fuga que transcende a idade. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.10-15). Nas palavras de Deleuze e Guattari:


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Um devir não é uma correspondência de relações. Tampouco ele é uma semelhança, uma imitação, em última instância, uma identificação. [...] Devir não é progredir nem regredir segundo uma série [...] Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem "equivaler", nem "produzir" [...] Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18-9, p. 64).

Ao pensarmos devir-criança a partir dos ensinamentos dos autores acima, mantemos “a ideia de ‘uma’ criança que persiste no adulto enquanto virtualidade e enquanto condição de divergência e diferenciação da cognição, abrindo caminho para a exploração da dimensão inventiva da cognição” (KASTRUP, 2000, p. 376). No grego, ao falar do tempo, existem três palavras para defini-lo. A primeira, Chrónos. Utilizada para designar a continuidade, a sequência do tempo. Um conjunto do passado, presente e futuro, sendo o presente, um limite do que passou e do que há de vir. Transmite a ideia da infância majoritária. A segunda, Kairós. Nos dicionários, ao defini-la, encontram-se os termos ‘medida’, ‘proporção’. Uma temporada ou oportunidade. (Liddell e Scott, 1966, p.859). A última e não menos importante, é o Aión. Diz respeito à intensidade da vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva. O fragmento 52 de Heráclito faz uma ligação dessa última palavra grega que traduz o tempo com o poder e a infância. Ele demonstra que Aión é uma criança que brinca. Ainda no fragmento de Heráclito, uma relação tempo-infância (aión-paîs) e poder infância (basileie-paîs) é feita, indicando que o tempo da vida não é apenas cronológico, sequencial. A infância, para ele, não seria apenas uma etapa, mas um reinado marcado por uma relação intensiva e de movimento. Uma intensidade de duração. Segundo Heráclito, o “tempo aiónico”. Nota-se que a infância não é apenas uma questão cronológica. Vai muito além. Ela é uma condição de experiência. Um momento de intensidade. Emoções a flor da pele. Tudo é intenso. Seja a montagem de um quebra-cabeça, uma brincadeira de roda ou uma cantoria na


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chuva. Tudo são histórias que serão formadas a partir da sucessão dos efeitos das experiências vivenciadas. Kohan ensinou:

[...] o tempo da vida não é apenas questão de movimento numerado e que esse outro modo de ser temporal [tempo aión] pode ser pensado como um modo de ser infantil, de criança. Se uma lógica temporal – a de chrónos – segue os números, outra – a de aión – brinca com os números e infantiliza o movimento (KOHAN, 2008).

Na “Caverna dos Brinquedos” surgiram inspirações, novas brincadeiras e criações de histórias. Lugar onde percorreram as mais infinitas e pulsantes vibrações dos corpos. Quando uma criança se depara com um lugar que chama sua atenção, seu corpo não para de vibrar. As mais diversas sensações são estimuladas e gritam numa atmosfera de alegria. Deleuze e Guattari defendem que o sujeito é o próprio agenciamento de enunciação, isso o torna um ser autônomo e livre na medida em que vivenciam experiências ativas em um território disponível o qual faz reconhecer sua própria identidade (KASTRUP, 2014, p 217). Ainda que forças venham constranger e inibir certas crianças, essas não são capazes de parar o sujeito. A criança se reinventa a todo instante e cria novas maneiras de mostrar que existe (KASTRUP, 2014, p. 217). A “Caverna dos Brinquedos” serviu como um instrumento para a desenvoltura das crianças participantes. Os novos afetos, as descobertas, as experiências ali vividas se eternizaram. Crianças que não se comunicavam, utilizaram de suas imaginações para construírem um ambiente agradável e harmonioso. O uso das brincadeiras foi essencial para esta pesquisa. Por meio delas, os sentidos se aguçam. Gusso e Schuartz (2005) defendem a brincadeira como uma atividade universal que apresenta características peculiares no contexto social, histórico e cultural, fonte de estimulação de autonomia e identidade. Para as autoras as brincadeiras desenvolvem a imaginação e criam conceitos que trazem o entendimento do mundo ao redor, e de certo modo, preparam as crianças para a vida. (Gusso e Schuartz,2005). A brincadeira é a atividade-guia da infância. As atividades lúdicas permeiam esta etapa da vida do ser humano e colaboram para o processo de aprendizagem, linguagem e desenvolvimento de suas emoções (SILVA, 2019). Propõe-se um brincar que respeita o lúdico


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e potencializa o ato criativo, possibilitando ao adulto e à criança o despertar da imaginação. Harres (2003) cita que: A falta de valorização do lúdico faz adormecer a imaginação da criança. A criatividade fica restrita e ela, quando livre, apresenta dificuldade de escolher o que fazer. Parece estar a criança tão acostumada a ser dirigida durante o período escolar que perde a autonomia e a capacidade de escolha, deixando, com isto, de ser agente ativo de seu desenvolvimento (HARRES, 2003, p. 101).

Piaget (1971, p. 67) diz que "Quando brinca, a criança assimila o mundo à sua maneira, sem compromisso com a realidade, pois a sua interação com o objeto não depende da natureza do objeto, mas da função que a criança lhe atribui”. Brincar é preciso. É através da brincadeira que as crianças conhecem o mundo. A brincadeira, segundo Brougère (2001), supõe contexto social e cultural, sendo um processo de relações interindividuais, de cultura. Mediante este ato, a criança explora o mundo e suas possibilidades, e se insere nele, de maneira espontânea e divertida, desenvolvendo assim suas capacidades cognitivas, motoras e afetivas. Velasco ensina: Brincando a criança desenvolve suas capacidades físicas, verbais ou intelectuais. Quando a criança não brinca, ela deixa de estimular, e até mesmo de desenvolver as capacidades inatas podendo vir a ser um adulto inseguro, medroso e agressivo. Já quando brinca a vontade tem maiores possibilidades de se tornar um adulto equilibrado, consciente e afetuoso (VELASCO, 1996, p. 78).

A formação de um adulto depende de sua infância. Se o brincar é social, a criança não brinca sozinha, ela tem um brinquedo, um ambiente, uma história, um amigo ou um professor que media essa relação e que faz do brincar algo criativo e estimulante. Para o autor Leontiev (1998), o brinquedo é a atividade principal da criança, aquela em conexão com a qual ocorrem as mais significativas mudanças no desenvolvimento psíquico do sujeito e na qual se desenvolvem os processos psicológicos que preparam o caminho da transição da criança em direção a um novo nível de desenvolvimento. O brinquedo funciona como um meio de aproximar a fantasia infantil com a realidade social da criança, assim, aprimorando experiências ao seu mundo e preparando melhores resultados na aprendizagem. O brincar é uma atividade que envolve adultos e crianças, mesmo que em níveis diferentes de complexidade (MOYLES, 2002). Ele é “uma parte natural da nossa vida e que tem valor tanto para crianças quanto para os adultos” (MOYLES, 2002 , p. 24).


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Nas concepções de Winnicott a criança que brinca tem tendência a ser mais sadia e promover seu crescimento, caso contrário, pode significar que a criança esteja com problemas. Vejamos: O não brincar em uma criança pode significar que ela esteja com algum problema, o que pode prejudicar seu desenvolvimento. O mesmo pode-se dizer de adultos quando não brincam ou quando proíbem ou inibem a brincadeira nas crianças, privando-as de momentos que são importantes em suas vidas, e nas dos adultos também. (WINNICOTT, 1982 p. 176)

Vygotsky (1988) afirma que o ato de brincar é essencial para o desenvolvimento humano, a fase mais significativa do desenvolvimento da criança. Ao fazê-lo, as crianças assumem características que as podem seguir pelo resto de suas vidas. Eis o que o trecho de sua diz: Brincar é a atividade mais pura, mais espiritual do homem neste estágio, e, ao mesmo tempo, típico da vida humana como um todo – a vida natural interna escondida no homem e em todas as coisas. Ele dá, assim, alegria, liberdade, contentamento interno e descanso externo, paz com o mundo. Ele assegura as fontes de tudo que é bom. Uma criança que brinca por toda parte, com determinação auto-ativa, perseverando até esquecer a fadiga física, poderá seguramente ser um homem determinado, capaz de auto-sacrifício para a promoção deste bem-estar de si e de outros. Não é a mais bela expressão da vida da criança neste tempo o brincar infantil? A criança que está absorvida em seu brincar? A criança que desfalece adormecida de tão absorvida? (...) brincar neste tempo não é trivial, é altamente sério e de profunda significação (VYGOTSKY, 1988).

O brincar desperta não só a criança, mas também o adulto. Movimenta as infâncias que existem em cada ser humano. Desperta forças entre a infância que se foi, que foi superada, e a infância virtual que coexiste. Segundo Kastrup (2000), reforçando Deleuze e Guattari, o devir-criança seria a “criança que persiste no adulto” (KASTRUP, 2000, p. 376), “’é o próprio devir que é a criança [...] a criança não se torna adulto; [...] a criança é o devir-jovem de cada idade” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 70). Deste modo, o uso de atividades lúdicas para o entendimento e desenvolvimento das crianças que passaram pela Policlinica da Universidade objetivou o uso da imaginação e do poder de criar. Através desta pesquisa, crianças conseguiram se desenvolver, seja na comunicação, nas emoções ou intelectualmente. Assim como as pesquisadoras, elas vivenciaram experiências e sensações. Viveram intensamente uma pequena parcela de suas infâncias majoritárias. Vivência a qual marcará suas existências pelo resto de suas vidas.


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Considerações Finais A partir das experiências e vivências relatadas neste artigo, pode-se concluir sobre a importância das atividades lúdicas e o processo de imaginação no desenvolvimento infantil. A infância, segundo Kohan (2004), pode ser distinguida entre duas temporalidades. A majoritária, marcada pela ordem cronológica do tempo e a minoritária, marcada pela intensidade da experiência. A pesquisa realizada na Brinquedoteca da Universidade, a qual utilizou a metodologia cartográfica, fez crianças e pesquisadoras sentirem sensações nunca antes sentidas. Foi uma experiência de vinculo, escuta, amizade e confiança. A evolução dos pequenos que passaram pela intervenção pedagógica foi uma grande resposta das expectativas do projeto. O processo de desenvoltura através de atividades lúdicas possibilitou o uso da imaginação, despertou interesses antes não conhecidos, abriu caminho para a comunicação de crianças que anteriormente eram consideradas incomunicáveis. A imaginação, para Held (1980), precisa ser cultivada, caso contrário atrofia-se. O estímulo não faltou na “Caverna dos brinquedos”. A tentativa de transformar os sonhos em realidade foi constante. A construção do momento futuro se deu a partir das expectativas e anseios das crianças. A utilização da brincadeira como instrumento de pesquisa transformou o ambiente em pura diversão. Várias atividades foram realizadas naquele lugar. Certas vezes eram brincadeiras planejadas e em outras, apenas acompanharam o fluxo da imaginação das crianças, como, por exemplo, a brincadeira do “Titanic”. O brincar é peça chave para o desenvolvimento infantil. É através dessa ação que a criança une seu mundo imaginário com a realidade, vivendo de forma criativa e estimulada. Em poucos meses os resultados da pesquisa vieram à tona. Crianças mais estimuladas, mais felizes, mais comunicativas e desenvolvidas faziam parte do rol daqueles que passaram pela brinquedoteca e deixaram suas marcas. A liberdade para fazerem suas vontades deu asas à criatividade. Mães, pais e familiares embalaram nos sonhos infantis. As psicólogas da Policlínica reconheceram o precioso valor da brinquedoteca em seus atendimentos, elas enxergaram a brincadeira como forma de evolução para o tratamento.


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Por fim, deve-se compreender acerca da importância da brincadeira e da imaginação no processo de desenvolvimento infantil. Fontes de aprendizado e cognição, as atividades lúdicas foram as facilitadoras desta pesquisa. Em conjunto com as sensações e com o tratamento de afeto e carinho transmitidos ali, as crianças puderam evoluir em seus tratamentos e se desenvolverem. Foram experiências únicas e reflexivas. Tudo valeu a pena.

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Sobre como o céu escreve possibilidades... Encontros e reverberações de uma experiência de estágio em um Caps Sarah de Souza Cardoso Cleilson Teobaldo dos Reis

O que convoca o caminhar Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro. (Clarice Lispector, 2009)

O processo dessa escrita só foi possível através do movimento. Movimento do devirestagiária; devir-escritora; devir-psicóloga. Narrar a experiência do estágio específico, me mobilizou e me paralisou. Essas mãos que aqui estão já escreveram, e reescreveram inúmeras vezes. Frases, palavras, letras. Dar corpo a esse texto me foi um desafio. Afinal, foi um dos modos de dar corpo ao meu processo de formação. Mesmo na dificuldade, sustento que possibilitar esse espaço-texto é afirmar e construir espaços-resistências. Em um dos dias em que marcava lugar como estagiária do Centro de Atenção Psicossocial de São Pedro, uma usuária do serviço em um momento de crise, me perguntou: “você escreve?” Sem muito pensar, digo: “eu tento! ”. Em resposta recebi a seguinte frase: “meu desejo é que você sempre escreva, em todos os períodos da sua vida. ” Sei o valor do que, naquele momento me desejou, para ela, a escrita tem um valor único, é o seu lugar seguro, diante de todas as violências que já sofreu. Borges (2008), nos convida a pensar sobre a função terapêutica da escrita, através do mito de Theus, o deus da escrita relatado por Platão. No mito, Theus presenteia Thamous com a escrita que seria phármakon, um remédio medicinal que traria a cura. No entanto, Thamous a recusa, transformando-a em uma perigosa droga, ambígua e errante. Faço uso desse pensamento, para compor esse relato, que ora trouxe cura, ora trouxe dor. Mas persistir e acreditar na potência das escritas, das narrativas, das poesias é um imperativo. Não busquei aqui encontrar verdades, mas sim relatar uma experiência vivida,


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passível de erros e em constante construção. Ao refletir um pouco mais sobre a pergunta que me foi feita, se escrevo? Minha resposta ainda é a mesma: eu tento! Digo que tento, pois, a escrita desse texto tornou-se desafiadora à medida que narro sobre aquilo que ecoou e fez meu corpo vibrar dentro desse dispositivo. Transformar, tanto quanto possível os afetos e encontros que me constituíram, nesse processo final da graduação em Psicologia, em linguagem textual é imprescindível; não só a fim de cumprir uma exigência acadêmica, mas muito mais para registrar aquilo que mais ninguém conseguirá escrever por mim, a não ser eu mesma. Aquilo que desse processo precisou tornar-se público e político. Essa construção não possui a pretensão de ser linear, afinal como é possível pensar linearidade em um cotidiano vívido, que pulsa de maneiras múltiplas, tal como é o Caps? O que se almeja aqui é dar passagem aos atravessamentos gerados através dos encontros e suas complexidades. Encontros esses que fazem emergir rupturas em estruturas impostas, furando a rotina e seus entraves. Deleuze (2002) à luz de Espinosa nos anuncia, que a potência é um ato e os encontros são uma potência para ação, onde os afetos alegres produzem os bons encontros, e por outro lado, os tristes diminuem tal potência. Partindo dessa premissa, as práticas de cuidado precisam ser regidas pelas produções dos afetos alegres que produzem os bons encontros e, consequentemente, vida (Yasui, 2006). Narro, portanto, a partir de minha experiência como estagiária do Centro de Atenção Psicossocial (Caps), localizado na cidade de Vitória, no bairro São Pedro; e “escrevo-me” assim como postulado por Barthes (2004) para me colocar também no centro desta narrativa, a fim de anunciar aquilo que desse lugar de estagiária me foi possível ob(ser)var. “Escrever é hoje, fazer-se o centro do processo de palavra, é efetuar a escritura afetando- se a si próprio, e fazer coincidir a ação e a afeição, é deixar o escritor no interior da escritura, não a título de sujeito psicológico [...] mas a título de sujeito da ação” (Barthes, 2004, p. 37). O encontro com o Caps, pensado e produzido como estratégia de afirmação da vida e de promoção da saúde mental, remeteu-me a pensar não somente a história da loucura, como também, e talvez, fundamentalmente, nossa história como sociedade, nossas produções como sujeitos e nossas implicações na produções de nós mesmos, enquanto seres coletivos e implicados uns com os outros. É desse lugar, portanto, que as palavras ecoam.


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O percurso nunca é totalmente solitário São muitas as reminiscências da história da loucura. Quando olhamos, por exemplo, para a trajetória do que chamamos atualmente de transtorno mental, podemos averiguar que nas sociedades pré-históricas e antigas, ela era entendida como manifestações sobrenaturais motivadas por deuses e demônios (Henriques, 2012). Tal visão era diretamente ligada a crenças religiosas, por isso, é importante ressaltar que essa percepção revela-nos mais uma história dos ideais religiosos, do que propriamente da loucura (Foucault, 1975). À medida que o cenário foi historicamente se modificando, e a atividade científica ganhando espaço, o poder eclesiástico foi dando lugar para outros modos de compreender a loucura (Millani e Valente, 2008). Foi nesse período, no entanto, que surgiram as primeiras instalações denominadas hospitais gerais, reservadas aos ditos loucos, regidas por práticas asilares (Henriques, 2012) e de trancafiamentos. De modo que a loucura se transformou em sinônimo de exclusão, onde os indivíduos marginalizados e desviantes à moral burguesa, em forte ascensão, como por exemplo: pobres, mendigos, desempregados, negros, portadores de doenças venéreas, dentre outros, eram destinados às internações nessas instituições que atuavam, unicamente, como depósitos humanos (Henriques, 2012) e que cumpriam uma função de ordem social e política (Amarante, 2013). Com o passar do tempo os hospitais gerais, que atuavam sob esse modo de atividade, foram acrescentando a suas funções outras finalidades, quais sejam as de tratamento dos enfermos e os diferentes tipos de patologias (Amarante, 2013). Ainda, no entanto, sem perder completamente suas funções originárias de segregação. Dessa maneira, surgiram os manicômios - hospitais destinados somente aos loucos, que após tanto tempo afastados do cenário social

passaram a ser estigmatizados como pessoas perigosas e violentas

(Henriques, 2012) que precisavam ser tratadas, e desse modo os manicômios constituíam-se como a única alternativa (Rotelli, De Leonardis e Mauri, 2001). Daí o nascimento da psiquiatria, com a perspectiva de agrupar todas as pessoas em um espaço físico, a fim de curar suas “errâncias”; é nessa perspectiva que a loucura passa a ser objeto de estudo dos então chamados alienistas (Henriques, 2012). A medicina ocidental, se desenvolveu não só baseada nos estudos das doenças, mas também através da construção das definições de normalidade, considerando patológico tudo o que foge ao padrão da norma, de tal maneira o que se difere do comum, torna- se estranho provocando desconfiança e medo, necessitando, assim, de cura (Tunes e Raad, 2006).


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No Brasil, desde a época dos alienistas, fase em que Machado de Assis escreveu sua célebre obra literária - O alienista (1882), onde fez uma crítica ao saber médico-psiquiátrico, a história da assistência psiquiátrica apresenta um violento histórico de controle social dos corpos (Amarante, 1994). Construir um olhar outro para a loucura nos convoca a pensar, portanto, em um novo modo de cuidado, não mais pautado no isolamento e na desqualificação - consequência da lógica colonial, que visava salvar o louco daquilo que era visto com disruptivo, e enquadrá- lo em um modo de funcionamento; nos convida ainda a deixar de lado a presunçosa ideia de cura médica, nos impulsionando a práticas de cuidados ancoradas em estratégias assistenciais e culturais, que promovam, nos sujeitos, cidadania (Bezerra, 2007) e reapropriação de si. É nesse sentido que, a partir da década de 70, um novo movimento em torno dos cuidados para com a loucura começa a ser produzido em diversos países do mundo, o Movimento da Reforma Psiquiátrica, proposto por Franco Basaglia. Tal movimento trata-se de um processo político e social complexo, pois incide numa ruptura do paradigma clínico das instituições hospitalôcentricas, a partir do processo da desinstitucionalização (Amarante, 1994). Na desinstitucionalização, agora, a ênfase não mais está posta em um projeto de cura e isolamento dos sujeitos, mas sim na produção de vida, sentido e sociabilidade fazendo uso dos espaços coletivos da sociedade (Rotelli, De Leonardis e Mauri, 2001). Os principais atores do processo de desinstitucionalização são antes de tudo os técnicos que trabalham no interior das instituições, os quais transformam a organização, as relações e as regras do jogo exercitando ativamente seu papel terapêutico. (...) Também os pacientes se tornam atores e a relação terapêutica tornase uma fonte de poder (Rotelli, De Leonardis e Mauri, 2001, p. 31).

Portanto, Yasui (2006) afirma que o movimento da reforma psiquiátrica, nasce como um movimento social, que propõe transformar os modos de cuidar em saúde mental, sustentando a constituição de uma rede de serviços, que operam, pautados na liberdade e dignidade dos sujeitos. Amarante (1996) assinala que a reforma psiquiátrica constitui-se como uma crítica ao saber psiquiátrico, instaurando iniciativas de transformações, colocando em cena o próprio sujeito e novos dispositivos de cuidado que possam romper com a lógica binária doença-cura. Deslocando os fazeres médico-centrado para práticas de cuidado efetuadas na comunidade em que os sujeitos estão inseridos (Cardoso, 2017). É nessa perspectiva que ocorrem, os movimentos para construção e consolidação da reforma psiquiátrica brasileira, onde trabalhadores, familiares e os usuários dos serviços de


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saúde mental, também são os protagonistas envolvidos (Heidrich, 2007).

A Política

Nacional de Saúde Mental, apoiada pela lei 10.216/02, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.” (Brasil, 2001), estabelece, legalmente, a necessidade de construção de dispositivos promotores de cuidado e atenção em saúde mental no território nacional, substitutivos ao modelo manicomial e de tratamento em privação de liberdade (Heidrich, 2007). Para tal, o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), como o principal equipamento desta política, atua como uma das estratégias de transformação da assistência em saúde, não se limitando a ser apenas um serviço, mas um lugar onde ocorrem redes de alianças entre profissionais, usuários e outros segmentos sociais do território em que está inserido. Desse modo, pensar que “o Caps é meio, é caminho, não fim” (Yasui, 2006, p. 115), torna-se imperativo. O trabalho no Caps precisa romper com as relações burocráticas, e tornar-se um trabalho vivo, inventivo, capaz de produzir nos sujeitos afetações, “tendo a desinstitucionalização como desafio central” (Cardoso, 2017, p. 2), resistindo às práticas manicomiais, que podem ocorrer mesmo fora dos muros dos hospitais psiquiátricos. Pensando o cuidado como uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro (Boff, 2002). Afinal “mais do que uma essência do trabalho na saúde, o cuidado é uma dimensão da vida humana que se efetiva no encontro. ” (Yasui, 2006, p. 119). Portanto, pensar a reforma psiquiátrica como uma ruptura à um sistema onde não houve produção de cuidado, mas sim silenciamento, negligência e desqualificação do louco (Yasui, 2006), faz com que anunciemos, urgentemente, outros modos de se relacionar com a loucura. Em vista disso, é preciso acreditar que apenas o cuidado autoriza a Vida nos sujeitos. O cuidado é uma condição que permite, produz, mantém, preserva a vida humana frágil, fugaz. É uma atitude que se dá sempre na relação entre seres. Cuidar não pode ser apenas realizar ações visando o tratar a doença que se instala em um indivíduo (...). O sujeito não se reduz a uma doença ou a uma lesão que lhe causa sofrimento. Cuidar remete a um posicionamento comprometido e implicado em relação ao outro. (Yasui, 2006, p. 119).

É partindo dessa premissa que o Caps precisa ser um lugar que propicie a visibilidade das falas, das escutas, dos gritos, dos movimentos, dos múltiplos modos de existir. É preciso


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que o Caps aproprie-se de sua função em ser um canal de passagem das linhas de fuga 76- capazes de fornecer escapes possíveis, afastando-se da estratificação dos espaços enquadrados e imutáveis (Deleuze e Guattari, 1996). É necessário, portanto, que este seja um lugar onde a loucura possa habitar em toda sua plenitude provocativa (Yasui, 2006), ofertando outras veredas possíveis para aquilo que historicamente foi visto como infame. É a partir dos detalhes, dos fatos ligeiros que acontecem na efemeridade do dia, que a vida se realoca (Souza, 2010). E por que falo do Caps? Parto desse dispositivo porque o Caps tem o dever de ser um espaço promotor de tais atos de cuidado (Yasui, 2006). Deve ainda, ser um serviço que entende a saúde como uma produção social, onde seus usuários possuem corpos desejantes que não apenas portam, mas produzem necessidades de intervenções e possíveis (Merhy, 2003). É primordial que a atuação no Caps seja uma fábrica de cruzamentos de forças/fluxos, produtoras de diferença (Rolnik, 1995), e não mais de normatização. Para isso, arriscar-se e reconhecer a potência indomável da vida, é fundamental para pensar nas formas de resistências que são atualmente produzidas (Zamora, 2008). É arriscando-me, portanto, que atuo neste dispositivo, é a partir desse lugar de fluidez e afeto que construo essa narrativa. Não busco me deter a diagnósticos, nesse momento coloco qualquer classificação entre parênteses, para deixar que se revele o sujeito e suas potencialidades.

Possíveis modos de se caminhar Quero não o que está feito, mas o que tortuosamente ainda se faz. (Clarice Lispector, 1998)

Para forjar essa caminhada no Caps, o método cartográfico formulado por Deleuze e Guatarri entra em cena, e Kastrup (2007) ao operacionalizá-lo nos aponta as quatro variedades de atenção do cartógrafo: o Rastreio, o Toque, o Pouso e o Reconhecimento Atento. Rastreio este que se trata de uma localização das pistas que estão presentes naquele cenário; o Toque nos mostra as tantas forças de afetações possíveis de atravessamento; no Pouso temos o início de um território se formando, nos enveredando ao Reconhecimento Atento daquilo que nos atravessa de uma maneira singular, durante o caminhar – ou o voar. 76 De acordo com Deleuze e Guattari (1996) as linhas de fuga sempre vazam e subvertem realidades pré fabricadas , escapando às organizações binárias, atuando como força de criação de outros possíveis.


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Faço-me cartógrafa em meio à esta construção fluida, circular, e que só se faz realizável através do devir - daquilo que surge do inesperado nos proporcionando uma potência criadora, que afirma modos de resistências diversas. À medida em que oferto meu olhar percebo o que acontece nesse percurso, e a partir disso, utilizo-me de Barthes (1980) e sua ideia de biografema, para construir esse espaço-texto, através de detalhes e fragmentos, para vivificar a potência daquilo que é visto como vidas infames e loucas, à beira do quase nada (Fonseca, Costa e orgs, 2010). Como cartógrafa, não busquei estabelecer regras ou caminhos lineares para alcançar um fim estipulado à priori (Costa, 2014). Antes, auxiliada por Passos e Katrup (2009) respaldei-me na reversão metodológica do que entendemos como modo de operação. “A etimologia da palavra metodologia – metá-hódos, trata-se de um caminho (hódos) determinado pelas metas (metá) que são estabelecidas para que o próprio caminhar seja feito” (Costa, 2014, p. 70). Dizer de uma inversão – hódos-metá, conforme Passos e Kastrup (2009), não significa abrir mão da precisão do caminho, mas considerar sua sustentação através dos próprios movimentos da vida. Assim, constituí meus passos na própria fluidez do caminhar e de suas afetações. Partindo dessa premissa, escrevo sobre fragmentos do cotidiano, daquilo que vacila diante as ambiguidades dos movimentos (Oliveira, 2008). É apenas a partir dos detalhes que tocam e fazem dobras sutis nos tecidos dos dias, interrompendo a noção de duração e introduzindo uma temporalidade cíclica (Barthes, 1988) que construí modos de intervir em minhas idas ao Caps. Em vista disso, juntamente com a concepção do biografema – onde o foco sai da trajetória descritiva de fatos diacrônicos, para se dedicar aos fragmentos da vida dos sujeitos (Ribeiro, 2015), daquilo que nos captura e produz desejo e, consequentemente, criação, habitei neste dispositivo, a fim de acolher o caráter finito e ilimitado do processo de produção de desejo (Rolnik, 2016). São sob essas perspectivas que este texto anuncia uma, das tantas vidas que produziram movimentos em mim dentro do Caps III de São Pedro. É na circularidade do tempo que narro, a respeito do meu encontro com Celeste 77, mulher negra de 27 anos, escritora e usuária do Caps há seis anos. Mulher que traz em sua vida muitas marcas: de 77

Nome fictício


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abusos, solidão e violências diversas. No entanto, seu existir não se limita às durezas vivenciadas. Essas marcas que carrega também são regadas potências, poesias, força e uma vontade de viver que se atualiza a cada dia, buscando outros possíveis. Deleuze (1990) anuncia “algo possível, senão sufoco" (p.205), é a partir desses possíveis que procurei aqui, dar passagem, aos encontros e atravessamentos que eles geraram em mim, a fim de não sufocar. Foi escutando, sobretudo, as narrativas anunciadas - daquilo que escapou ao tempo e à verdade, que atuei como estagiária psi naquele espaço. Em consequência, procurei relatar trechos de histórias, sobretudo, daquilo que em mim ficou dos encontros. Ao entender o caminho como o próprio método, e que este, portanto, se concretiza no ato de caminhar, o meu estar no Caps não parte de uma neutralidade, afinal ocupar este espaço já foi um modo de produzir movimentos em mim e em outros. Encontrei-me no Caps também com minhas marcas de mulher negra, militante da luta antimanicomial e em processo de formação. Foi desse lugar que meu corpo vibrou e produziu passagens, canalizando intensidades, germinando múltiplos sentidos e expandindo a vida (Rolnik, 2016). Tal travessia concretizou-se através, do que Rolnik (2016) chamou de pontes da linguagem que possibilitam a criação de mundos, suportando os afetos no próprio corpo, e fabricando, desse modo, estratégias de defesa da vida. É desse ponto que parto, a fim de narrar a respeito dos encontros possibilitados mediante esse estar cartográfico, e consequentemente, político das redes de alianças formadas dentro desse dispositivo. E porquê narrar a respeito de uma vida? (...) Narrar para evitar que se negue a palavra aos mortos. Narrar para evitar que os inimigos continuem vencendo e para fortalecer uma perspectiva que se avizinha do olhar da criança: atenção aos detalhes, ao ínfimo, ao transitório, às personagens sempre alocadas nos níveis mais baixos dos monumentos (Ferreira, 2011, p. 128).

Utilizo-me, ainda, do pensamento de Almeida (2011) para afirmar, que além de todas as conceituações teóricas, o que sustenta essa escrita está dissolvido em todas as linhas que a compõe, em tudo aquilo que, sem receitas prontas, produziu e continua a produzir rupturas.

Alguns rastros do que em mim ficou Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? (Clarice Lispector, 1998)


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Iniciar o relato de uma vida foi desafiador. Por isso, sustentei Clarice Lispector como uma intercessora 78 desse espaço-texto, afinal, assim como Deleuze (1992) “eu preciso dos meus intercessores para me exprimir” (p.156). E porquê Clarice? Alguns motivos me levaram a ela. O primeiro: meu inquietante processo de escrita e a necessidade de saber por onde começar. Foi, portanto, bebendo em sua fonte, que pude perceber que não se começa pelo início, mas sim, “pelo meio, pelo instante de hoje” (Lispector, 1977, p. 25). Outra razão em tê-la como intercessora, foi pelo fato de Celeste ser uma grande fã de Clarice, e em decorrência disso muitos de nossos encontros foram atravessados e tecidos mediante a presença dos textos de Lispector. Acredito ainda, que embora Celeste e Clarice partam de lugares sociais totalmente diferentes, ambas aceitaram navegar nas misteriosas águas da própria escrita, e assim encontraram um caminho em comum - descobriram no ato de escrever, uma fonte de respiração e sobrevivência. “Sou uma mulher que escreve porque, para mim, escrever é como respirar, faço

para

sobreviver”

(Lispector, 2011, p. 117). Essa narrativa,

portanto, começa do arrepio provocado pelos acontecimentos - fluxos e movimentos de transformações que fecundam mudanças e abrem frestas nos territórios, e sobretudo, nos corpos dos indivíduos (Hur, 2018) possibilitando o viver. Em meu primeiro dia no Caps Celeste senta ao meu lado. “Está bonito?”, pergunta mostrando-me um cartaz feito com duas folhas A4. “Vamos dançar?”, foi o convite feito através da frase escrita à mão, enfeitada por flores. Ali começou uma grande dança. Um grande fluxo de movimentos guiados por encontros e regidos por detalhes. Nessa dança me senti, por vezes, extasiada, cansada, fluida, rígida, feliz, revoltada e totalmente afetada. Foi por meio dessa dança, regada de flor e movimento que iniciei meu percurso no Caps. A cada novo encontro com Celeste sentia-me ainda mais convocada a escrever sobre sua vida, afinal, suas histórias dizem respeito às construções coletivas que estabelecemos como sociedade, de forma que registrá-las tornou-se um ato político (Almeida, 2011).

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Este é um conceito formulado por Deleuze (1992), onde os intercessores servem como um dos meios de expressão para algo que é difícil de comunicar , aquilo que é fugidio e que escapa às governabilidades, através dos entrecruzamentos das diferentes forças de afetações. “O essencial são os intercessores” (p. 156).


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Como mulher, Celeste carrega as marcas da invasão que sofreu em seu corpo, e após ter sido vítima de um estupro coletivo, seu quadro de esquizofrenia se abriu. Desde então, Celeste traz consigo as consequências dessa violência. Suas alucinações e delírios são todos voltados a esse dia. As vozes que ouve, conta que são de mais de 70 homens, constantemente narram o que aconteceu na ocasião, além de chamá-la de fraca e repetirem o quanto ela é culpada por tudo que aconteceu. Essas vozes de comando, ordenam que ela faça escolhas o tempo todo “escolhas ou consequências” - é o que dizem. Caso ela não realize as escolhas, que são sempre autodestrutivas, a consequência é ela reviver tudo quanto sofreu naquele dia. Celeste sente as dores e as opressões que experienciou em seu corpo. Além disso, o tempo todo se vê suja do que chama de “coisa ruim que sai do homem”. Às vezes Celeste não consegue se alimentar, pois enxerga também na comida tal sujeira. Não marco esses fatos da vida de Celeste para reduzi-la a eles, mas para que se evidencie a força dessa mulher, e do quanto ela faz dobras nos sofrimentos e produz vida em meio ao caos. No entanto, da mesma forma em que Celeste sente no seu corpo os impactos do sofrimento gerados a partir das violências que passou, diante da dor, ela encontra rotas de fuga onde faz da crise um ato de criação (Veiga, 2015). E desse modo Celeste cria; sua vida abre brechas no tempo e através da escrita consegue amenizar seus sofrimentos. Uma mulher que carrega um “corpo que vive em constante luta para manter-se equilibrado” (Santos e Figueiredo, 2017, 174). Em alguns momentos, as vozes gritam demais e Celeste não consegue escrever seus próprios poemas, quando isso acontece, ela escreve o que eles estão falando. São sempre conteúdos ruins a respeito dela mesma, mas esse movimento de escrever “faz com que eu não escute essas coisas sozinhas”, diz Celeste.


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Deleuze (1998) diz que escrever é uma forma de forçar a linguagem para dar conta de uma nova aspiração, como no caso de Celeste que deseja não se sentir tão só “escrever o que eles falam tira de mim a sensação de que vou explodir, quando não consigo escrever, me sinto muito sozinha e parece que vou explodir a qualquer momento”. Celeste me entregava as folhas onde escrevia o conteúdo do que as vozes falam, às vezes pedia para que eu lesse na sua frente, outras vezes não. Ao me entregar agradecia, dizendo ficar aliviada “é como se saísse um peso de mim”. Este texto que construo, perpassa a ideia de sentido e interpretação, ele é passagem, travessia, uma explosão de fragmentos, pois sua escrita biografemática passeou por entre a vida de Celeste, e minha vida como estagiária psi e mulher negra, onde deixei-me tocar e ser tocada, produzindo cortes no tempo e no espaço (Santos e Figueiredo, 2017). Ao sustentar o movimento contínuo da linguagem, utilizo-me da concepção de Freitas (2016) onde afirma que “é preciso resistir à vontade de ordem, deixar vaguear as palavras e por este movimento, até mesmo de certa errância, fortalecê-las, potencializá-las, para que a escritura permaneça diversa” (p.34). A partir da fluidez de uma de nossas conversas sentadas na arquibancada do Caps, Celeste me contou sobre como via e se relacionava com Deus, a quem ela se referência como “Deua”. Diz pensar em “Deua como uma Grande-Mãe-Psicóloga”. Embora Celeste, anteriormente, tenha dito, que não teve muitas experiências boas com Psicólogas, é assim que diz enxergar “Deua”. Quando eu a questiono sobre isso, Celeste me diz, “mas antes de ser Psicóloga, ela é Mãe e além do mais, você tem me feito começar a ter outras visões sobre Psicólogas”. Em um outro momento, onde, sentadas embaixo de uma árvore, conversamos sobre “Deua”, Celeste me contou sobre como imagina que “Deua” seja; Celeste diz: “pra mim Deua é uma mulher não muito velha, nem muito nova, tem uns 40 anos, usa uma vestido bem soltinho branco e tem a pele negra, ela é linda. Outras pessoas até podem imaginar Deus como um homem, mas pra mim é complicado, pra mim Deua é uma mulher, e eu peço que ela fique comigo todos os dias”. Deleuze (1998) anuncia que “é preciso quebrar cada língua maior, mais ou menos dotada, cada uma a seu modo, para introduzir nelas esse E criador, que fará a língua correr, e fará de nós esse estrangeiro em nossa língua enquanto é a nossa” (p. 49). Celeste quebra línguas. Seu escrever torna-se ato de enfrentamento à luta do viver (Freitas, 2016). Celeste usa das palavras para se perder e se encontrar, em um trecho de um de seus poema, escreve: “(...) As palavras só vem, por isso escrevo sem demorar, pois sem a escrita sou ninguém para


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decifrar, só alguém esquecido de mim, que faz força para lembrar (...).” Numa de suas crises mais intensas, onde as vozes gritavam muito alto e Celeste se via no local onde foi violentada - em cima de uma pedra, contou-me que: “Quando gritam alto demais e eu acabo voltando para a pedra, eu esqueço das coisas, esqueço quem eu sou, esqueço das coisas que fiz e que faço. E quando eu tento fazer força para lembrar, minha cabeça dói, bem onde eles bateram na pedra, e ai eu desisto. Desisto de tentar lembrar”. De acordo com Lispector (2009) “desistir é a escolha mais sagrada da vida (...) desistir é o verdadeiro instante humano” (p. 133). A autora afirma ainda, que há sempre uma revelação na desistência, e ao desistir Celeste nos revela aquilo que Alvim (2012,) inspirado em Foucault, diz a respeito dos atos de resistência afirmativa. Desistir de tentar lembrar, é o modo como Celeste encontra de afirmar Vida. A respeito do Caps, Celeste se refere como sendo “sua segunda casa”, mas nem sempre ocupar o espaço é fácil para ela. Nas crises mais intensas, em suas alucinações, os homens ficam nus e por isso, ela sente muito medo de “voltar para pedra”, mas mesmo assim Celeste faz contornos no caos. Numa dessas ocasiões a encontrei sentada debaixo da pia, na sala de convivência do serviço. Me aproximei e sentei na sua frente para perguntar como ela estava, e Celeste me relatou que eles estavam muito agitados, sem roupas e tentando tocá-la, “aqui foi o lugar mais seguro que encontrei, porque eles não abaixam para me tocar”. Passado algum tempo de nossa conversa, em que ela falava do quanto se sentia sozinha nesses momentos, e que isso era mais forte que ela, sentei-me ao seu lado, também embaixo da pia. Apenas passado algum tempo, pude saber o quanto essa intervenção, de sentar ao seu lado debaixo da pia foi importante para ela, pois em outros momentos difíceis, mesmo os que não estávamos, literalmente, embaixo da pia Celeste me dizia “obrigada por estar debaixo da pia comigo”. Os encontros com Celeste me ensinaram na prática como a arte cria agenciamentos que possibilitam a vida continuar a pulsar no corpo (Lima, 2006). Afinal, todas as vezes em que ela estava agitada e diante disso, produzimos arte juntas, ela conseguia acessar dentro de si a calma “as vozes ficaram mais baixas, eles estão mais fracos desde que começamos”, ela dizia. Numa dessas ocasiões escrevemos juntas o seguinte poema: Às vezes olho para as estrelas, E me percebo cansada de tentar superar aquilo que não me traz sossego.


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Ao olhá-las, espero que o tempo e seus brilhos me incentivem a superar o cansaço. Dei o nome da estrela de Sossego… Pois trouxe-me paz e calma. Observando os brilhos de Sossego, Vejo que parte dele me habita, posso sentir aos poucos, sua calma me invadir. Assim como Sossego, meu brilho, ora é mais fraco, ora mais intenso, mas é isso que me faz reluzir.

As palavras anunciam o peso das vidas que por elas percorreram (Oliveira, 2000). E assim como postulado por Guattari (1985), é preciso aperfeiçoar as máquinas de guerra social, onde a escrita e a poesia são máquinas de vida, que possibilitam a destruiçãoreconstrução dos sistemas sociais que estão em voga. Meu trabalho com Celeste foi de sempre incentivá-la a escrever, tanto aquilo que sustentasse seu desejo-produção, quanto o que ouvia das vozes. Mas não só, também conversávamos bastante sobre a importância dela dialogar e compartilhar aquilo que sente, por mais difícil que seja, pois desse modo a solidão torna-se mais humana, como nos comunica Freitas (2016). E aos poucos Celeste foi acessando, cada vez mais, a potência da expressão, dando passagem para as tantas forças de afetações, fazendo uso da linguagem para suportar os movimentos (Oliveira, 2000). Após uma dessas conversas, Celeste me endereça o seguinte texto:

Eu fico muito feliz por isso [por não estar sozinha]… Eu fico de verdade feliz por isso. Até um tempo eu quis parar de tentar, parar de lutar, de insistir. Quis parar com tudo. Eu não estava vendo mais nada adiante, eu comecei a duvidar de algumas coisas, sabe. Comecei a duvidar que eu conseguiria viver, estar viva porque eu sentia tudo em dobro, eu costumo pensar como se fosse em dobro. Porque se eu ouço algo ruim, se vejo algo, vejo acontecer em dobro e eu não queria isso mais. Eu estava determinada a fazer algumas coisas para que isso parasse. Acabasse de uma vez, e assim eu nunca mais lembrar ou ouvir ou ver ou sentir. Eu meio que estava desistindo mesmo. E depois, com o tempo… Com as coisas que você me fala e por acreditar em mim, eu comecei a acreditar também. Eu quis tentar mais um pouco. Eu recai um pouco quando ouvi sobre isso não ter cura e ter que conviver com isso pra sempre. Mas depois de tanta fé que tem depositado em mim, depois de começar a acreditar mesmo com isso tudo que eu posso conseguir meus sonhos, eu comecei a acreditar que eu não sou só isso. E eu quis tentar continuar, porque eu achava como se eu estivesse ouvindo tudo sozinha, passando sozinha, mas agora sei que tenho alguém


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que me ajuda e insiste em mim. Por isso, passei a insistir também. Obrigada por insistir, porque isso ajudou e muito. Agora eu também insisto em mim.

A vida de Celeste anunciou-me a força que carrega em ser uma mulher múltipla que dobra e se desdobra em diversos movimentos de fuga, fazendo uso da arte para resistir às capturas dominantes. E foi apenas pela via da presença, da escuta e da circularidade das palavras, que Celeste percebeu que não estava sozinha, foi através de uma relação mútua onde ambas estavam abertas e presentes que Celeste pode acessar e partilhar de afetos, e desafetos que ela não dava conta de suportar, quando se sentia só (Veiga, 2015). Celeste fez meu corpo vibrar dentro desse dispositivo, desde nosso primeiro contato na arquibancada, passando pelos atendimentos nas salas, consultórios, embaixo da pia ou embaixo de uma árvore. Me mostrando a urgência de fugir da mesmice e a percorrer veredas mais criativas, utilizando-me de ferramentas e não receitas, prontas para uma desconstrução e reconstrução de um cotidiano que pulsa de maneiras múltiplas (Alvarenga e Barros, 2007). Foi estando presente com Celeste que pude aprender, na prática, aquilo que Ferenczi (2011) postulou sobre o tato do analista “saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões (...) o tato é a faculdade de sentir com” (p.31). Em um de nossos encontros onde Celeste me dizia sobre estar cansada e triste por não ver perspectivas de cura com os remédios, afinal “mesmo tomando 13 comprimidos por dia eu não vejo melhorias”, eu disse a ela “você experimenta a cura todos os dias, quando não desiste de continuar, quando não se deixa ser vencida por eles. Porque viver é se curar”. Após ouvir isso Celeste chora e me agradece: Obrigada por essas palavras, vou guarda-las sempre em meu coração”. E foi durante um outro episódio de crise que Celeste me disse “obrigada por estar comigo. Esse momento está um pouquinho difícil, mas eu consigo pensar que vai passar, que vai ter uma pausa, então não tenho vontade de desistir por completo. Aliás, tenho vontade de viver, porque viver é se curar e eu nunca vou esquecer disso.

Celeste me ensinou mais sobre Psicologia do que muitos textos e aulas da graduação, pois diante de tanto sofrimento, mostrou que resistir é transformar-se cotidianamente. É a partir de apostas diárias que Celeste encontra meios de ressignificar e transformar sua vidador em vida-poesia. É através de uma luta incessante pelo viver, que Celeste redireciona sua vida. Como mulher negra, Celeste me ensinou sobre a importância de ocupar lugares


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majoritariamente brancos “a gente se parece, nosso tom de pele, eu quero dizer. Isso também é importante pra mim” diz Celeste. Passo a entender que mais do que um lugar de escuta, tornei- me para Celeste um lugar de referência onde ela, como mulher negra pôde, finalmente, ver seus iguais em posições outras. Desde que começamos nosso caminhar, Celeste passou a se cuidar ainda mais e a olhar-se com mais carinho e atenção, numa luta diária para livrar-se do sentimento de culpa e auto ódio, por não se achar digna de usar determinados acessórios ou roupas. Quando Celeste me diz que é importante para ela que tenhamos o tom de pele parecido, posso escutar sobre a importância da identificação que ela encontra em mim. E assim, certifico- me de que não há neutralidade nesse contexto (Sampaio, 2018), especialmente, quando o meu corpo dentro do Caps, ocupa um lugar outro – o de estagiária psi, em relação aos outros corpos negros ali presentes – os de usuários do serviço. Entendo que assim como postulado por Veiga (2019) que “há uma dimensão da subjetividade negra, que só outro negro consegue acolher” (p. 246). Por isso afeto e sou afetada o tempo todo. Após um de nossos encontros, Celeste escreveu o seguinte poema: Estou me superando Estou me desafiando Garras sem garra Grito sem voz Apenas sentindo Me dando a vez Vez de sonhar Vez de confiar Vez de me olhar Apenas sentind o Sentind o tocar Sentind o falar Me sentindo no foco Foco de me esforçar Um esforço de brinco De sorriso


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D e m aq ui ar U m fo co U m ol ha r Olhar para mim Sem me culpar Sem esforço Para me amar.

Foi rasgando a rotina, encarando seus medos e percebendo que não estava sozinha que Celeste foi capaz de superar, mesmo que momentaneamente, os comandos e as situações desafiadoras e complexas que vivência, anunciando que a liberdade é um constante devir, e como tal não se deixa reduzir aos sentidos (Oliveira, 2000). A vida não cabe em entendimentos e sua expansão se dá através dos encontros que nos coloca diante de uma constante disponibilidade para o outro (Yasui, 2006). E assim como a escrita é phármakon, ora cura, ora dor, ela também torna-se intercessora, possibilitando uma “linguagem que se amplia para suportar o movimento dos instantes” (Oliveira, 2000, p.92). Guimarães Rosa (1985) já nos anunciou: Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver, são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente - o que produz os ventos. Só se pode viver perto do outro sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura (p.291).

Celeste me conta ainda, que tem ficado orgulhosa de si, pois tem conseguido enfrentar as consequências sem se machucar ou se punir, pois descobriu que por mais difícil que seja, ela consegue conversar sobre o que sente e dar vazão de maneiras outras. Desde então,


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Celeste se cura e encontra um pouco de descanso na loucura. Em minhas práticas, além da presença procurei sustentar uma dimensão outra de cotidiano, partindo de estratégias mais criativas para produção de vida pelos sujeitos, relacionando-me através de uma circularidade do tempo que facilita a criação do que Yasui (2006) chamou “de novos e outros caminhos”.

Veredas (in)acabadas O que te escrevo não vem manso, subindo aos poucos até um auge para depois ir morrendo de manso. Não: o que te escrevo é de fogo como olhos em brasa. (Clarice Lispector, 1990)

Ao me colocar como um lugar de escuta daquilo que não cessa de ser anunciado pelo outro, encontro-me com meus próprios possíveis, com aquilo que de repente, acerta-me e me faz estremecer, sair do prumo. É desse modo que, aos poucos, me constituo com profissional psi; tornar-me apta a receber um título de Psicóloga só me é possível a medida em que me coloco disponível aos encontros. Estar junto em uma relação circular de troca, onde afeto e sou afetada constantemente, produzindo desvios e apostas mais criativas para o existir, é um imperativo em minha atuação. Essa narrativa tratou-se, sobretudo, da tentativa de transformar acontecimentos - que são produzidos a partir de uma lógica de encontros e fluxos constantes (Corrêa, 2006), em linguagem escrita, mesmo diante das limitações que ela possui, afinal, como descrever um encontro que surge em plena finitude do cotidiano? Apoderei-me, portanto, daquilo que ficou, de seus efeitos e vibrações; com a garantia de que apropriar-se do recurso da escrita, nessa perspectiva, revelou-me a urgência de situar os sujeitos dos discursos, com seus corpos emudecidos a gritarem e alçarem vôos mais altos e regados de potência. Como uma revoada de pássaros que ao cruzar o nosso caminho, não passa despercebida, mas nos faz parar e observar seus movimentos e (en)cantos. O cuidado possibilita a expansão da vida, e é acreditando e sustentando tal premissa que a atuação no Caps deve se consolidar. O Caps precisa ser um serviço que aposta nos sujeitos, e corre todos os riscos que essa aposta desvenda; o trabalho efetuado nesse dispositivo precisa sofrer reflexões diárias, para que não seja pautado em práticas de controle e aprisionamentos dos corpos e das subjetividades, mesmo fora dos muros dos hospitais (Cardoso, 2017). Afinal, a loucura precisa ser experimentada em estado livre, como uma experiência cotidiana que procura mais exaltar do que dominar - ela circula, e por isso faz parte


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do cenário e da linguagem comum da sociedade (Foucault, 1975) e o Caps precisa ser lugar de escuta e passagem, e é por isso que defendo aqui sua imprescindível importância. Embora eu tenha utilizado este espaço-texto para narrar trechos da vida de Celeste, ela não foi a única que me afetou e fez meu corpo vibrar nesse dispositivo, tantos outros usuários passaram por mim de maneira que me tiraram da zona de conforto e me possibilitaram expandir- me em criação de novas práticas de cuidado; e a todos sou grata. Acredito no privilégio de encerrar o ciclo da graduação com essas pessoas, que ao ocuparem os espaços sociais, lutam, incessantemente para romper com a lógica de dominação e exclusão, fazendo da sua existência um ato de resistência diária. Narrar a vida de Celeste, foi um dos modos de narrar o meu processo de formação. Formação esta, que só tem acontecido graças às tantas ações que me tiram e devolvem o fôlego. E assim como versou o poeta Manoel de Barros (1996) “o que não sei fazer desmancho em frases” (p.63). Desmanchei aqui algumas frases, para afirmar que o pulsar da vida é muito mais intenso que as forças de aniquilamento. Fiz, portanto, o que me restou fazer: escrever. Escrevi a respeito dos encontros que possibilitam rotas de fuga e tecem possibilidades de enfrentamento àquilo que dificulta o viver. E como Psicóloga meu desejo é, ainda inspirada no poeta, fazer o nada aparecer, e ser passagem de desvios e brechas que geram acontecimentos dando lugar e acreditando em outros possíveis para a vida. Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapam ao controle, ou engendrar novos espaços- tempos, mesmo de superfícies ou volumes reduzidos (...) é ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão ao controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (Deleuze, 1992, p. 2018)

Acreditar tornou-se verbo imperativo de ação! Encerrar este texto foi tão desafiador quanto começar, afinal, em que momento se finaliza o contar de uma vida? Sustento que não há fim. Aquilo que produz em nós afetação não termina de maneira acabada, fadado ao pó das estantes. Este texto encontra um limite e precisa de uma pausa, mas seu conteúdo reverbera. Suas palavras ecoam para além do campo textual,


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elas encontraram vazão nos corpos. Corpos que se jogam na grande dança da vida, nos encontros e desencontros. É preciso coragem para aceitar os riscos!

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A flor que brota no concreto: a loucura como afirmação de Vidas e (R)existências Thais Andriolo Tesch Cleilson Teobaldo dos Reis

- Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse - com as mãos um pouco febris - o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever. (Michel Foucault)

O correr das lutas Nada a temer senão o correr da luta. (Milton Nascimento)

O trabalho em saúde mental implica em criação, inventividade, movimento fluido e dinâmico, pois assim também é a vida. Identifico-me com o trabalho-processo, trabalhoacontecimento, trabalho-no-fazer. Da mesma forma que a arte nasce do acaso e reflete as circunstâncias nas quais é possível a vida, o trabalho em saúde mental também opera por esta via. O instrumento de trabalho mais importante: a palavra. Circular a palavra, dar contorno, deixar fluir. Possibilitar encontros que se compõem narrativas livres, histórias de vida e um saber a ser resgatado, como nos lembra Lourau, “a carga semântica da palavra é a presença ativa, chamativa, obscena, de seu devir, de sua relação com o jogo de forças e formas sociais (institucionalização)” (2004, p. 188).


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A caminhada em saúde mental aparece em minha vida como arte, essa, para mim, sinônimo de liberdade. Desde o início de minha trajetória acadêmica estive envolvida com a Luta Antimanicomial, luta essa que me proporcionou uma construção como psicóloga, mulher e cidadã, atravessando as instâncias éticas, estéticas e políticas, e é desse lugar que parto para compor essa narrativa. Ocupar-se de pensar as instituições e sua atuação na sociedade é um chamado indispensável aos psicólogos, visto ser nestes espaços, onde acontece a sua atuação acontece. Ninguém faz clínica sozinho, considerando que o compartilhamento do cuidado, a responsabilização e a autonomia do processo em saúde são essenciais (BRASIL, 2004). As instituições brasileiras tem histórias e engendramentos relacionados ao contexto em que foram forjadas, e se faz necessário refletir esse contexto, entendendo o que lhe foi possível. Podemos fazer isso por uma via comum, a dos livros e documentos, relendo as escrituras oficiais, mas só essa dimensão não daria conta de entender os processos de expansão dessas instituições, que não são apenas físicas. A via dos desdobramentos, das narrativas, da memória outra, dos extra acordos. Partindo dessa via, podemos alcançar o que se suscitou e suscita até hoje nas instituições existentes. Por que falo de instituições? Pois a loucura ao longo da história, foi capturada, isolada, maltratada, libertada e reconstruída através delas. No Brasil o processo de desmanicomialização é recente, são 30 anos do lema marcante “Por uma sociedade sem manicômios”. Ainda há muitas revoluções necessárias, mas é surpreendente que em pouco tempo cronológico, se avançou tanto em direção a um processamento democrático e antiproibicionista no campo da loucura. A luta ativa iniciada pelo povo e trabalhadores foi catalisadora de uma mudança de paradigma não só concreto, mas aqueles que vivem em nós. “Não é o doente mental que deve ser desinstitucionalizado, mas é própria loucura como instituição social que precisa ser transformada.” (FIGUEIREDO & RODRIGUES, 2004, p. 174). Apesar dos manicômios, há de ser outro dia. As quedas literais e subjetivas dos hospícios demarcaram uma sociedade fadigada de censura e repressão, e uma evidente falha na organização social enquanto coletivo. E com isso, os efeitos, as reações, as novas possibilidades. Recolher os frutos das lutas se caracterizou como processo lento e incansável, pois como é citado, os manicômios dizem mais de estruturas de pensamento, do que edificações. A tentativa de eliminação do diferente a qualquer custo aparece na sociedade quase como um desejo, uma falsa ilusão de que retirar os supostos elementos desordeiros, faria com que se


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amenizasse o caos. O que se percebe é que quanto mais se tenta eliminar o caos, mais ele comparece com força e violência. Percebemos a relação estreita entre política e instituições. Afinal o que é política? Lourau nos responde que a política está atrelada as relações do dia-a-dia, “Não é suficiente afirmar que a política está na vida cotidiana. É mais exato afirmar que ela é a vida cotidiana.” (2004, p. 122). Consideramos a vida cotidiana não como uma repetição dos mesmos cenários, mas como as potências da escolha do que e como fazer. Dos acontecimentos como disparadores de novas possibilidades, e foi a partir desses acontecimentos despretensiosos que escolhi estar no CAPS como estágio de conclusão de curso. E o que é o CAPS, se não um lugar que deve, a partir do cotidiano, multiplicar campos e abrir possibilidades? Centro de Atenção Psicossocial, lugar, dispositivo, substitutivo. São tantas nomeações que o atravessam. É assegurado pela lei, embasado por um saber, erguido de concreto e constituído pela experiência. Isso o torna tão enigmático, pois não é apenas um lugar, mas uma potência. É onde se sedia o acontecimento. É no CAPS que se dá o acontecimento da saúde mental para todas e todos e do cuidado em liberdade, confrontando o instituído, o manicômio. Pensar o CAPS para além de um lugar concreto, assim como o manicômio, pois ambos são constituídos de pensamentos, esses que podem produzir fechamentos ou revoluções. O CAPS São Pedro, aparece em minha graduação como ponto de mutação, lembro-me da passagem em Capra: “Há movimento, mas este não é gerado pela força [...] O movimento é natural, surge espontaneamente.” (1982, p. 2). A escolha do estágio foi um movimento natural, de uma caminhada já existente na saúde mental, porém não uma caminhada predestinada, mas espontânea, me permitindo enveredar pelos caminhos possíveis. A estadia no CAPS se deu inicialmente por uma experimentação, adentrar o território, permitindo-me entender o que se passava ali, quais eram as demandas, as urgências e os esquecimentos. Observar as minúcias e nuances que reluziam a medida do adentrar naquele cotidiano. A partir de um olhar desvestido, me deixo dançar pelos afetos e permitir o atravessar dos acontecimentos. A experiência se deu fluida, de pousos, não de paradas (KASTRUP, 2007).


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Traçando rotas Prefiro queimar o mapa Traçar de novo a estrada Ver cores nas cinzas E a vida reinventar (Francisco, El Hombre).

Esta experiência passou-se no ano de 2019 em um Centro de Atenção Psicossocial, CAPS III, no município de Vitória, se localizando na região de São Pedro. Participei das reuniões semanais e da atenção diária em um dia da semana, me inserindo na programação do serviço e na organização de uma oficina de colagem no primeiro semestre. Também realizei atendimentos individuais tanto dos usuários do serviço quanto novos casos e ações externas. É partindo do olhar da Análise Institucional, como “não só uma linha teórica para “ler o mundo”, mas muito mais uma linha filosófica e conceitual que pretende dar voz aos movimentos ignorados por uma ciência estática, e dar lugar a luta política que se faz dentro de qualquer situação de análise do humano.” (GUATTARI 1973 citado por ALVARENGA & BARROS, 2007, p. 47) que se permeia essa narrativa. Considerando as dimensões éticas, estéticas e políticas como norteadoras da experiência: Ética, porque o que a define não é um conjunto de regras tomadas como um valor em verdades si para se chegar à verdade (um método), nem um sistema de tomado com um valor universal: ambos são da alçada de uma posição de ordem moral. [...] Estética, porque não se trata de dominar um campo de saber já dado, mas sim de criar um campo no pensamento que seja a encarnação das diferenças que nos inquietam, fazendo do pensamento uma obra de arte. Política, porque se trata de uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir: forças reativas, forças reacionárias. (ROLNIK, 1995, p. 2).

Foi através de uma experiência atuante-observadora, utilizando-se dos conhecimentos psi, da saúde mental baseada nos princípios do SUS, na implicação, na arte e no devir que se deu a minha inserção no cotidiano no CAPS. A partir de pistas cartográficas, como sendo “uma pesquisa-intervenção pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já prontas, nem com objetivos previamente estabelecidos” (PASSOS & BARROS, 2015, p. 17). Não se espera, com esse relato, encontrar respostas, concluir hipóteses ou analisar dados quantificáveis, “não se busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim” (KASTRUP,


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2007, p. 15). Se propõe, ao menos tentar, pensar em caminhos que deem espaço para a subjetividade e a singularidade do que foi encontrado, partindo do acontecer da experiência, seguindo os princípios do método cartográfico.

Existirmos: a que será que desatina? A história foi estruturada de maneira a encobertar as rupturas, passando-se a fingir operar em uma linearidade. Assim também, tentou-se fazer com a loucura: seu isolamento, para fazer operar em continuidade. Foucault (2008), nos diz para ficarmos atentos aos apagamentos históricos, pois esses contribuíram para a manutenção das estruturas fixas e hegemônicas, que reproduziram o apagamento dos sujeitos ao longo do tempo. A loucura é um processo social, político, histórico, econômico e científico, e se faz necessário pensá-lo de modo a integrar essas esferas. Há ao longo da história uma série de tentativas de capturas do sujeito-louco, pelas instituições. Essas capturas vêm atreladas aos interesses de algumas dessas esferas, e a cada captura novos jogos de poderes e saberes, que possibilitaram os caminhos pelos quais se enveredaram ou não seu tratamento. A captura da loucura se dá pelos cruzamentos entre moral e capital, esses que desejam um tipo de vida, que tenta afastar com todas as forças as marcas da diferença, criando os microfascismos do cotidiano (FUGANTI 2007 citado por ZAMORA, 2008). O governo dos corpos loucos se deu através de táticas e estratégias aplicadas à população, difundindo um modelo de pertencimento social adequado, os destinando a espaços específicos, onde se reproduziu por muito tempo um tipo de extração da loucura do ser. Como Simão Bacamarte, em O Alienista de Machado de Assis (1882), extrai a razão como uma pérola, se rouba da concha seu bem mais precioso, seu processo longínquo e cotidiano, se retira a força, ocasionando o apagamento do ser. Deve-se questionar o que se prevaleceu nesse contexto para que fosse possível o prolongamento desse tipo de tratamento, juntamente com práticas violentas, excludentes e morais. Até o século XVIII, os ideais religiosos prevaleciam como norteadores de destinos das pessoas com transtorno mental, entre aqueles que não se enquadravam nos preceitos estabelecidos pelas crenças vigentes. Podemos ir mais longe e perceber o quão o processo encarcerador da loucura se atrela com o processo de colonização, como lógica separatista e de


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supremacia racista, como aponta Foucault, um movimento de limpeza social do elemento infiltrado, assegurando a ordem e a pureza (2005). Foi a partir do século XIX, que o modelo médico-científico se apropria da loucura, com Philipe Pinel - reformista do modelo psiquiátrico francês - que acreditava que o louco estava alienado a sua razão. Valeu-se do tratamento moral e da laborterapia, sendo amplamente difundido em um contexto pós-revolução francesa e ascensão da burguesia, onde se via uma vazão às pessoas que se encontravam fora do jogo capital. O louco-desviante, que antes era um ser sem valor, passa a então ser visto como objeto da produção, remetendo ao contexto social, como aponta Santiago e Yasui, “pautado na lógica do controle do relógio das fábricas, da organização higienista-urbanística das cidades” (2011, p.198). É neste momento que se vê o amplo emprego de práticas disciplinares-manicomiais. O modelo europeu estava sendo uma grande referência para o mundo ocidental. Este modelo chega ao Brasil-Colonial, em 1841, afim de criar um espaço para os loucos-desviantes, é criado o Hospício de Alienados Pedro II, sendo um dos marcos iniciais para a manicomialização no Brasil. Em 1902, as políticas urbanas no Rio de Janeiro possuíam um caráter explicitamente higienista, legitimando a exclusão, e realocando as classes de acordo com um ideal de limpeza (FIGUEIREDO & RODRIGUES, 2004). Podemos afirmar que as políticas e ações em saúde mental no século XX, foram pautadas na recuperação de um valor laboral, separatismo de classes e por fim, a exclusão (YASUI, 2006). É importante notar que o movimento da psiquiatria passou por várias torções ao longo da história, porém o movimento dos anos 1970 denota uma configuração rompante com o estabelecido. A ditadura empresarial-militar no Brasil, período que perdurou de 1964 a 1985, reforçava as práticas de extermínio dos desviantes, além de ter sido um período de desmantelamento das políticas públicas, nas quais as poucas existentes eram exclusivamente atreladas à atividade laboral. Observamos mais um momento em que há a desqualificação de sujeitos que não se enquadram no jogo do trabalho capital. De outro lado, havia os hospitais psiquiátricos, grandes negócios lucrativos, como aponta Amarante (1995, p. 494), “sabemos que o mundo do confinamento não serviu apenas à ordem política e econômica [...], serviu também, e nisso o Brasil foi praticamente inigualável, a uma promissora “indústria da loucura”.


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A partir desse cenário os trabalhadores e trabalhadoras da saúde se articulam para construir práticas democráticas em saúde, com a Reforma Sanitária, que propunha trazer um olhar crítico para o processo saúde-doença e as influências sociais, econômicas e ideológicas na atuação em Saúde. Simultaneamente os debates em Saúde Mental também estavam se pautando na desinstitucionalização, na melhoria das condições dos cuidados às pessoas com transtorno mental e denúncias de violências. Esse movimento foi influenciado pelo precursor italiano, Franco Basaglia, psiquiatra líder da reforma psiquiátrica democrática italiana. Basaglia vem ao Brasil em 1979, visitando os maiores hospitais psiquiátricos, alertando-se para a extrema precariedade e violência no qual se encontravam. A situação daquele momento dá origem ao documentário “Em Nome Da Razão” e isso faz com que se potencialize os movimentos antipsiquiátricos (Amarante, 2006). Após a visita de Basaglia ao Brasil, a visibilidade através da mídia, dos movimentos sociais culminou para ações refratárias ao modelo vigente, evidenciando a urgência de articulações no trabalho em Saúde Mental. Em 1987, ocorre o Encontro dos Trabalhadores em Saúde Mental em Bauru, sumarizando as denúncias e violações de direitos humanos ocorridas no modelo hospitalocêntrico e, onde é lançado o lema: “Por Uma Sociedade Sem Manicômios”. Esse foi um marco do rompimento com o antigo modelo e consolidação do Movimento da Luta Antimanicomial, em conjunto com a Reforma Sanitária, dando início a construção do Sistema Único de Saúde, baseado na universalização do direito à saúde, com a constituição de 1988, no cenário de redemocratização brasileira (AMARANTE, 1995). Em 1989, ocorre uma intervenção na Casa de Saúde Anchieta, hospício privado, em Santos, após a morte de pacientes internados devido à falta de assistência. Com o fechamento do hospício e o processo de municipalização da atenção em saúde, foi possível a criação de Centros de Atenção Psicossocial (AMARANTE, 1995). A partir dessa experiência, foi criada a Portaria Nº 224 do Ministério da Saúde que regulamenta a Reforma Psiquiátrica. Em 2001, quase dez anos depois, é sancionada a Lei nº 10.216, apresentada pelo Deputado Paulo Delgado, que visa os direitos dos usuários dos serviços de Saúde Mental e retira o manicômio do cenário. Em 2002, com a Portaria Nº 336, os dispositivos CAPS são regulamentados e especificados, tanto seus aspectos físicos, como localização, características da equipe, financiamento, quanto os processos de trabalho, fluxo de atendimento e demarcação de um serviço substitutivo e portas abertas. Em 2011, a Portaria nº 3.088, instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), definindo uma rede integral de assistência em Saúde Mental, englobando


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os serviços da atenção básica à atenção complexa, colocando o hospital psiquiátrico desmanicomializado como última alternativa, e o CAPS como a maior referência ao cuidado em saúde mental e liberdade. A partir desse histórico, percebe-se que as revoluções nos cuidados em Saúde Mental vêm de uma luta coletiva e de frente ampla, buscando romper com o instituído, construindo o instituinte, conceitos esses, utilizados pela análise institucional: Por um lado, o alvo é o instituído, o que foi constituído, o que é passado, prolongandose no presente. [...] Por outro, o alvo são as forças instituintes, é o instituinte que está em vias de construção. Nesta trajetória, o objetivo é dirigir-se para o “diante”, para o “proximal”, para o “devir”, para a atualização de um corpo (ESCÓSSIA & MANGUEIRA, 2005, p. 95).

A Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquátrica tem um caráter diferenciado das estruturas hegemônicas anteriores, pois o Saber que as constrói vem de uma desierarquização, de saberes locais, dos quais Foucault define por “saberes sujeitados, um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam” (2005, p. 14), sendo esses saberes, aqueles que sofreram um apagamento, em nome de estruturas massivas, que são recuperados a partir do histórico das lutas, que ressurgem e contam uma nova experiência, a partir de acontecimentos resistentes. E é desta forma que se construiu o CAPS como entendemos hoje. No trecho da Carta de Bauru, podemos ver esse processo explícito: O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada. O Manicômio é a expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão deste tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de menores, nos cárceres, a discriminação contra os negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos, à saúde, justiça e melhores condições de vida (MANIFESTO DE BAURU APUD CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 1997, p.93).

A partir dessa perspectiva histórica, é preciso delinear os processos políticos atuais, com uma premissa de uma nova ordem, onde se faz presente um certo movimento de tentativa de apagamentos das lutas históricas ao longo dos anos. Os pensamentos neoliberais e os movimentos globalizantes econômicos começam a entrar em cena logo após as conquistas democráticas (DETTMANN, ARAGÃO & MARGOTTO, 2016), o que nos faz refletir um processo outro nas constituições das políticas públicas de saúde mental, e até mesmo o olhar civil em relação à loucura. Como afirma Rosa,


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o estado de bem-estar social, presumidamente assegurado por políticas progressistas, acabou entrando em declínio concomitantemente com a garantia de parte dos direitos constitucionais, [...] com o fim de certa dimensão de uma democracia participativa presente no modelo dos conselhos de participação da sociedade civil (2019, pp. 1920).

Com isso vimos uma mudança não só na economia, mas nas produções de subjetividades, acarretando em um olhar outro para os processos sociais, e consequentemente de saúde e doença. A visão na qual se alicerça o sistema neoliberal, segundo Hayek (1987) citado por Gama e Júnior (2005), os homens são desiguais e cada um deve se esforçar para atingir os seus objetivos, mesmo que isso cause prejuízo a outrem. Isso leva a fragilização das relações sociais, bem como a falta das mesmas. Segundo Maia citado (2001) por Gama e Júnior (2005), os sujeitos “são culpabilizados por não possuírem as capacidades requeridas pelo modelo neoliberal, como, por exemplo, autossuficiência e identidade flutuante”. Articulando essa suposta falta de capacidade apontada com a loucura, percebemos que o sujeito-louco está fora do jogo neoliberal, e das relações, ocasionando mais uma vez o isolamento moral do louco, dessa vez por ferramentas mais discursivas e sofisticadas. É nesse cenário que o CAPS se reafirma como espaço fundamental de resistência e de lutas. E é tendo como base o histórico das lutas até o contexto presente, que se narra um relato da experiência de estar em um CAPS como campo de estágio.

(Des)construção: reterritorializando Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir Por me deixar respirar, por me deixar existir (Chico Buarque)

A seguinte discussão se faz a partir dos paradigmas ético, estético e político, a partir das territorializações, desterritorializações e reterritorializações ocorridas durante o estágio. Considerando que “o território é antes de tudo lugar de passagem” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 132).

Ético


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Para nortear uma discussão ética é importante notar que o CAPS São Pedro conta com a Supervisão Clínico-Institucional sendo prevista na Portaria Nº 1.174, com o objetivo de “assessorar, discutir e acompanhar o trabalho realizado pela equipe, o projeto terapêutico do serviço, os projetos terapêuticos individuais dos usuários, as questões institucionais e de gestão do CAPS e outras questões relevantes para a qualidade da atenção realizada.” (BRASIL, 2005). A supervisão ocorre no momento da reunião de equipe, onde um psicólogo de fora do serviço, vem auxiliar nos processos de trabalho em relação aos casos existentes no serviço, sendo escolhido, pela equipe, um caso para discussão a cada supervisão, ou algum tema de interesse. A experiência da supervisão, me permitiu construir um fazer da clínica em saúde mental, uma clínica compartilhada, ética e implicada. Assim, a clínica exige a postura ética e política, visto que é um dispositivo onde forças heterogêneas atuam. Discernir as forças que nos limitam e limitam quem nos procura; as que potencializam, as que entristecem e as que alegram diante de tantas outras que nos afetam; permite criar práticas, discurso e saberes capazes de resistir aos modos dominantes e reducionistas de produzir saúde (RIBEIRO & LAVRADOR, 2007).

Ao falar dos casos, percebem-se suas nuances, seus modos de responder frente às adversidades diárias e quais intervenções de fato produzem efeitos. Faz-nos rever nossa posição enquanto profissionais do cuidado, atentando-nos também para onde existe um fator limitante. Ao falar de um certo caso, dá-se a possibilidade da emergir o sujeito, em suas particularidades, de se compor sua história, a partir dos elementos que são trazidos, mais ainda do que a história registrada em seus documentos. Dá-se a possibilidade de compor um quadro, com as cores vivas dos relatos que os profissionais fazem. Resgato o registro vivo da primeira supervisão acompanhada: Foi a primeira supervisão que participei e foi uma experiência incrível, discutir o caso é muito importante para evidenciar os caminhos possíveis, e como enquanto equipe, segui-los. A cada reunião que participo, aprendo mais e me interesso mais sobre esse ambiente potente e gerador de movimento, onde ao mesmo tempo evidenciam-se as falhas, reconhece-se a necessidade de fazer corpo, um corpo organizado e coeso. (DIÁRIOS DE CAMPO, 10/04/2019).

A presença da supervisão relembra o serviço sobre a implicação, muito discutida, e pouco apreendida de fato. A implicação como sendo um nó de relações, o enlace, não refletindo binarismos de “boa” ou “má”, “o útil ou necessário para a ética e a ética da pesquisa não é a implicação, sempre presente em nossas adesões e rechaços [...] -, mas a análise dessa


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implicação” (LOURAU, 2004, p. 190). É necessário abrir mão do saber enquanto verdade, para o desempenho de algum trabalho que reflita mudanças. Quando paramos para escutar o que temos a dizer, e refletir sobre a forma que se toma, é possível que consigamos escutar o outro de uma forma mais presente, costurando uma trama que dê contorno, esse que por vezes é necessário ao sujeito da loucura. Dar contorno não significa enquadrar, circundar, restringir, mas sim criar possibilidades, abertura, espaço. Colocar-se como apoio sem invadir o espaço do outro. Para que esse processo flua é preciso entender dos contornos próprios, dos contornos institucionais e por fim, contornos sociais. A supervisão tem o papel de ajudar na identificação da qualidade dos traços, a fim de criar um corpo coeso, para fazer frente a um acaso desestruturador. A supervisão denunciou principalmente uma invisibilidade dos corpos habitantes e uma fragmentação do corpo trabalho. Os usuários parecem perdidos no discurso dos profissionais, senão por uma via formal, dos prontuários, quando indagados acerca de seus diálogos com os usuários, um silêncio costumava pairar. E a partir daí, uma busca na memória, tentando fazer o movimento resgate das narrativas ouvidas e trocadas, para tentar emergir o sujeito. A partir das falas dos profissionais no caso, começa-se a entender que os usuários não vão, e nem devem, falar ou fazer as mesmas coisas com todos os profissionais. É necessário captar os endereçamentos daquele usuário em sua singularidade, diante do vínculo, desta forma é possível que se opere algo para o sujeito. Enquanto estagiária-pesquisadora, o interesse de vincular-se não foi uma vontade que partiu apenas de mim, mas também levou em conta o protagonismo, o desejo e a dimensão que o sujeito está inserido. A pesquisa também é um modo de produzir cuidado e cultivar territórios, assim como o trabalho no CAPS em si (ALVAREZ & PASSOS, 2015). Estar no campo impôs um desafio ético, onde deve-se prezar pelos indivíduos e coletividades, habitando um espaço sem ditar regras e padrões, acolhendo o que vem sem ser desatenta, evitando reducionismos e os preconceitos e se atentando a multiplicidade desse espaço. Os corpos afirmam a si próprios enquanto construções, e o novo se constitui como uma afirmação de força, de criação de novas possibilidades, não podendo ser avaliados de um exterior, evitando juízos de julgamento (ESCÓSSIA & MANGUEIRA, 2005). Os corposCAPS negam uma tentativa de captura, que por vezes nos escapa, enquanto tomados pela lógica institucionalizante. E ao negarem, surge para nós, a possibilidade da escuta do novo. “A


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psicologia clínica-institucional não pergunta que pensamentos, que ideias, que fantasmas, um corpo-subjetividade esconde nas suas expressões. Ela “oportuniza” composições” (ESCÓSSIA & MANGUEIRA, 2005, p. 98). O que apareceu na supervisão também, foi a fadiga dos profissionais frente as demandas cada vez mais complexas dos casos, onde pareciam dividir o trabalho entre “trabalho com o usuário”, “trabalho do meu núcleo de saber”, “trabalho institucional”. Sem conseguir amarrar esses “trabalhos”, se sentiam impotentes, inseguros e um pouco perdidos. O que pareceu ocorrer, foi um confundir entre sobreimplicação e implicação, onde a primeira fala sobre uma produção compulsória, levando a morte, estresse rentável, com a falsa ideia de que quanto mais se faz, mais se tem (LOURAU, 2004). A implicação, por sua vez permite que pensemos no nosso espaço enquanto atores, profissionais e cidadãos nas nossas relações com o trabalho, fundante de uma larga dimensão no contexto atual. Pensar essas relações, nos oportuniza a enxergar os jogos de forças e saberes que nos circundam e a qual lógica estamos servindo, e não fragmentar as práticas do trabalho. Penso que no CAPS, o trabalho deve ser coeso, em vias da ética, essa como inclusão e afirmação de Vida.

Estético O espaço que o CAPS se situa é amplo, contando com várias salas e uma grande área aberta. Possui uma área de convivência, quadra de esportes e um jardim com horta. É um espaço colorido e com muita vida. Isso é evidenciado à medida que em todos as paredes, portas e cantos, há arte, feita pelos usuários. O CAPS conta com um arte-terapeuta, que desenvolve atividades artísticas livres com os como desenho, pintura, escultura etc. com os usuários, que demonstram se interessar bastante por esse tipo de atividade. Além das oficinas de arte terapia, existem outras oficinas que trabalham com a criação livre como a customização e geração de renda, sendo uma potência desse CAPS. Foi a partir do arte-terapeuta e de uma demanda por mais oficinas artísticas, que surgiu a ideia de se fazer uma oficina de colagem em parceria com uma outra estagiária de psicologia. A oficina utilizou-se de revistas, papel, tesoura e cola, onde os usuários escolhiam as imagens e colavam em um papel, compondo esses fragmentos da forma que os representassem. Eu e a outra estagiária pensamos em temas pertinentes para serem trabalhados, temas que emergiram


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naquele cotidiano como questões relacionais, habitar da cidade, luta antimanicomial, questões raciais, memórias, planos de vida entre outros. Esses temas eram trabalhados no início da oficina e após esse diálogo, os usuários começavam sua curadoria. Nosso papel enquanto mediadoras da oficina, era de ajudar nas dificuldades da tarefa, como colar ou recortar imagens, visto que alguns usuários perderam a motricidade, e também dialogar com eles, acerca da representação daquelas imagens para eles. A função da imagem como potencializadora ficou evidente através das colagens. Em determinada oficina uma usuária chegou muito agitada e dizia precisar ir ao banco tirar um dinheiro para voltar para sua casa, essa questão a mobilizava bastante. Foi nesse momento que surgiu a ideia de tentar dar vazão a essas questões através das colagens, à medida que folheávamos as revistas, vi uma casa e perguntei se ela gostava, e ela disse que sim, então fomos pensando nessa casa, afim de tentar concretiza-la no papel, e assim, a usuária foi ficando mais calma e conseguiu dialogar sobre suas questões. Sant’Anna nos traz a seguinte reflexão: A imagem promove a ampliação da consciência, à medida que amplia os referenciais do ego. Em decorrência do caráter polissêmico e polivalente, que lhe é próprio, apresenta múltiplas visões sobre as situações vividas pelo sujeito e o leva a uma perspectiva consciente mais abrangente. Ao favorecer a relação e o diálogo entre as esferas consciente e inconsciente, entre mundo interior e mundo exterior, exerce neles uma função mediadora. (2005, p. 39).

As apostas nas produções subjetivas e livres enquanto dispositivos de articulação entre sujeito e mundo, parecem fazer efeito dentro do CAPS. Lugar fluido e enigmático, assim como a arte, que expressando a liberdade opera em vias de preencher os corpos com desejos e cores, resgatando subjetividades mortificadas não apenas pela instituição em si, mas também com os acometimentos do sofrimento mental. Em suas mais diversas formas, a arte se manifesta como possibilidade de reescritura de uma história marcada por violências e, oportuniza ressignificar as vivências e refletir o seu lugar no mundo. Podemos ver essa manifestação através desse poema de uma usuária:

O vento sopra e o capim dança Conforme o vento toca Uma onda de capim, Todos juntos, de um lado para o outro Em uma grande harmonia. Mas, se um Um apenas

Bem no meio Não estivesse dançando E o vento não o estivesse tocando Estivesse parado, imóvel No meio de tanto movimento Você perceberia? T. R.


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A arte se revela como alívio, não apenas aquela concreta, nos quadros e telas, mas um modo de existir enquanto obra de arte, possibilitando a existência do disforme, do descontínuo, contando situações e reconhecendo-se nos lugares ocupados. “Vida como ela é: disruptiva, inapreensível, revolucionária, potente, mutável, cruel, e surpreendente para não me estender mais” (ALVARENGA & BARROS, 2007, p. 51).

Político O CAPS se localiza em São Pedro, uma região periférica da Grande Vitória. A modalidade é tipo III, sendo definida pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2004, p.22), como “atendimento diário e noturno de adultos, durante sete dias da semana, atendendo à população de referência com transtornos mentais severos e persistentes”. É importante notar que esse é o único CAPS Transtorno III que o estado possui, absorvendo assim uma alta demanda. Funciona todos os dias, com acolhimento noturno 24h. A atenção diária ocorre nos dias da semana. A reunião, ponto importante, ocorre às quartas-feiras, e nesse dia não há atenção diária, ou seja, não tem presença de usuários, excetos os acolhidos. A reunião se dá de forma deliberativa, a partir da discussão dos casos e dos processos de trabalho e conta com a participação de todos os profissionais do serviço. Esse momento se caracteriza por trocas e compartilhamento de questões que tangem o trabalho, propiciando espaço para discussões conjuntas quanto ao melhor andamento do trabalho, sendo considerado essencial para o fazer da saúde mental (SANTOS et al., 2017). Olhar a sala cheia na primeira reunião, me atentou para pensar em uma equipe comprometida no CAPS, todos os profissionais pareciam ter seu lugar em meio a uma sala multiuso, se espalhando em volta de uma mesa. Naquela reunião em específico era o dia da Educação Permanente em Saúde, contando com uma profissional da Área Técnica para discutir sobre as políticas de redução de danos. A Educação Permanente em Saúde se caracteriza por uma reafirmação do compromisso com os princípios de universalidade, equidade e integralidade. Através de uma prática políticopedagógica, partindo do cotidiano do trabalho, envolvendo práticas multifatoriais, buscando superar as desigualdades regionais e às populações específicas, fazendo sentido para os atores envolvidos e promovendo o aumento da autonomia na gestão do cuidado (BRASIL, 2007).


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Percebemos que a Educação Permanente se volta para processos intrínsecos ao trabalho, contudo incluindo o conhecimento do cotidiano das populações, fazendo-se necessário a troca de saberes com as mesmas, reconhecendo cada uma em sua especificidade. Percebe-se que o saber popular, ou como aponta Foucault (2005), “saberes sujeitados”, ainda não tem muito espaço para habitar os processos das instituições, visto que os usuários nem outros atores sociais, não participam da reunião nem indiretamente, mas apenas como objetos de discussão. A discussão dos casos ocorre na segunda parte da reunião, repassando-os em ordem de urgência, sendo os primeiros, do acolhimento noturno e em seguida os da atenção diária. A escolha de casos é feita pelos profissionais, que os inscrevem em uma folha ao longo da semana. Ao final de cada caso, são deliberados encaminhamentos e ações, acordadas entre toda a equipe como plano terapêutico para o sujeito. O fluxo de inserção segue um paradigma individualizante, a partir de consultas fechadas, deliberações feitas por profissionais e encaminhamento através de instituições. Sendo compartilhado no momento no Projeto Terapêutico, porém, as atividades são já ofertadas pelos profissionais, cabendo ao sujeito escolher se aceita aquele pacote. Isso não impede que o sujeito se manifeste, esse encontra uma via e faz negociações, que são bem vistas pela equipe na maioria dos casos, evidenciando um entendimento de que a prática se parte de uma ruptura, um disforme, e que uma negação também é uma afirmação vida, construindo e desconstruindo o cotidiano (ALVARENGA & BARROS, 2007). Isso foi sendo percebido ao longo das vivências no CAPS, onde a prescrição médicocientífica, continua sendo a mais prezada. Esse processo não é desprendido de um contexto, sendo que por muito tempo o saber que ficou a cargo da loucura foi o saber das instituições médico-científicas. Durante as discussões em equipe, muitos eram os impasses frente a usuários que precisariam de um laudo, ou de ajustes medicamentosos, e a própria problemática de resposta frente a essas demandas, o que cristalizava a equipe. O usuário passa a frequentar o CAPS, e lá se insere em atividades e oficinas existentes no serviço, cumprindo uma certa rotina estabelecida. Existe uma divergência no olhar da equipe quanto a adesão ou não das atividades, alguns refletem que o sujeito pode e deve negar o instituído, pois essa também é uma escolha válida. Outra parte já acredita que o negar denota algo literalmente negativo, uma falta, e a insistência é usada como ferramenta de convencimento aos sujeitos para fazê-los aderir a algo.


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Os usuários do CAPS, em alguns momentos, evidenciam em seus relatos uma não apropriação do código médico. Aparece aqui uma resistência sutil, resistência 79 da loucura, que insiste em manter o “vaguear da razão extraviada” (FOUCAULT 1992, citado por PEREIRA & PALMAS, 2018, p.22).

O CAPS abre espaço para uma multiplicidade tamanha, que rompe com a lógica do esquadrinhamento manicomial. Cada um faz o seu trabalho e é necessário que tenha espaço para a loucura operar como mensageira, como processo, como liberdade. Para Deleuze (1988, citado por COSTA, 2009), o pensamento é um processo, sem modelo ou imagem, é uma afetação, uma construção. É preciso pensar a loucura e como ela existe dentro do CAPS. A loucura como aparelho de Estado como propõe Deleuze (1988, citado por COSTA, 2009), como um estado mental a ser buscado, como um ideal de sanidade, como algo a ser trabalhado para que volte a ser normal e a servir. A loucura como máquina de guerra, como plural, que não há nada por trás, sem definição pois a definição é apenas uma força hegemônica que deu nome a uma coisa em determinada época. (COSTA, 2009). A loucura é o povo que falta. É o povo que nasce pelas lutas, do devir, e todo devir é minoritário pois foge a norma (COSTA, 2009), “é o lugar do humano, demasiadamente humano.” (YASUI, 2006, p. 15). A loucura por vezes dorme no banco, participa de oficinas, vende biscoitos, grita, quebra, chora, clama, abraça, escreve, canta, toca, afeta e deixa-se afetar de uma maneira avessa, criando descontinuidades e tirando-nos do lugar de poder estático, pois o acaso rege as relações e a inventividade se mostra como via possível. Cada loucura à sua maneira, possibilitando a escolha em liberdade, fruto das lutas incessantes. Reafirmar a liberdade é ser político, é ser antimanicomial. O papel dos profissionais dentro do CAPS é uma reafirmação política constante, é tomar uma posição implicada, o que não deve ser sinônimo de comprometimento, no sentido de uma produção em prol de um resultado. Quem está aderido implica tanto quanto quem não está, e não há como medir esse acontecimento em termos binários de “mais e menos”. A implicação está associada às produções subjetivas e seus desdobramentos (LOURAU, 2004).

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Resistência como uma afirmação, como potência criadora. “é um sujeito que afirma o processo permanente de produção de si, por meio de regras facultativas, mutáveis. Um sujeito que resiste!” (Heckert & Reis, 2012, p. 104).


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As produções subjetivas, por sua vez, são o centro de interesse, pois são afirmação de potência. A criação de outros modos de existir, através de uma experimentação constante. Como nos adverte Corrêa: esses processos são os únicos capazes de romper com os modos de subjetivação capitalísticos. Trata-se de uma verdadeira lógica dos devires – lógica das multiplicidades que estão sempre colocando em xeque qualquer tentativa de eternidade pelas universalizações (2006, p. 37).

De uma “experimentação de um modo de dizer compatível com a problemática que nos mobiliza” (ALVAREZ & PASSOS, 2015, p. 132). Universalizações essas forçadas por um sistema meritocrático, pregando para todos uma necessidade de se atingir um único objetivo, no qual se colocará a certeza de um sucesso em relação ao outro. Essa ilusão de que apenas tentando, se consegue, não só exclui grande parte das pessoas, como massivamente os loucos, colocando-os em um lugar de incapacidade e improdutividade. Por vezes essa lógica também é operada pelos profissionais, que exigem um certo rendimento dos usuários, parecendo reproduzir a exigência que a instituição faz também com eles. Essa espreita acaba por esgotar os profissionais, que se sentem impotentes frentes as demandas múltiplas e complexas do cotidiano. Somado a isso, um desinvestimento nos serviços de saúde pública, um enxugamento das políticas públicas, tomadas como privilégios, faz com que o fluxo seja interrompido, emperrando certos setores. O caminho parece ser o resgate de um saber que pairou, um saber-segredo, que se tenta tamponar, e ressurge com potência. Deixar o “saber sobre” para o “saber com”, valorizando os acontecimentos em suas singularidades, evitando uma postura colonizadora da experiência, incluindo-se também no evento e percebendo os endereçamentos ocorridos (ALVAREZ & PASSOS, 2015). Adotar uma postura crítica frente aos jogos de força e não ter medo de pensar no tempo de nosso próprio pensamento (FOUCAULT, 2008).

As últimas palavras do fim (ou meio) Há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. (Torquato Neto)

Chamo de produção. A produção de relações e vínculos, produção de afetos potentes, me deixando fisgar intuitivamente pelo que apareceu como questão, aberta ao encontro, não me


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prendendo a lógicas dualistas, mas sim olhando para além do que se vê. Criando novos territórios, há território a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais, para se tornarem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para se tornarem expressivos. Há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo (DELEUZE E GUATTARI, 1997, p. 121).

A vivência do CAPS foi frutífera à medida que me desprendi de linearidades e normatividades. De onde menos se espera nasce algo, surge, com potência, como a planta que brota no concreto. Onde há sofrimento, onde há dificuldades e condições questionáveis de vida, de recursos, se procuram linhas de fuga e daí, sai a arte, a vida, o movimento. Fazer das teorias, da análise institucional, da arte, ferramentas com as quais o psicólogo trabalha, ampliando o fazer em saúde, produzindo cuidado no lugar de violência e liberdade no lugar de encarceramento, da forma mais múltipla possível (ALVARENGA & BARROS, 2007). O CAPS deve deixar a lógica da regulação social, não deve atender a pedidos de que se arrume alguém, que se organize alguém, deve sair da ortopedia social, o CAPS precisa ajudar a compor discursos, criar possíveis, dar espaço pro acontecimento. A saúde mental se articula a partir do trabalho em rede, do cuidado antimanicomial, das práticas não hierarquizantes, promovendo uma saúde desinteressada de valores capitais. Reafirmando o CAPS como lugar de fazer esse cuidado, de potência e resistência, frente a um massivo hegemônico, que age na captura. Retomando a discussão a partir da leitura do livro de Machado de Assis, “O Alienista”, assim como tenta se isolar a loucura do sujeito, tenta se isolar a pérola da concha. Como ver a pérola não como um produto final, como um ponto a se alcançar, mas como um processo? Qual papel dos agentes que lidam com esse processo cotidianamente para ajudar na confecção dessa pérola, sem roubá-la ou torná-la um ápice? Quais implicações estão em jogo? O desafio de enxergar a vida não linear, pois “quando se trata de máquina e de devir, também a questão temporal linear é colocada de lado” (CORREA, 2006, p. 42). Esse é que se constitui o desafio de estar do CAPS. Como quebrar a lógica instituída? Como ver, apenas ver? Retomo a questão do poema do capim, “você perceberia?”. Fazer esses questionamentos é tarefa diária, e faz parte do trabalho, trabalho esse no fazer. Identificar os jogos de força de cada dia, para possibilitar uma resistência contínua e criativa, enquanto potência. Resistência essa que emerge na forma de desejo, desejo de “sim”


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e “não”, e poder fazer parte da escuta desses desejos, ou por meios de atividades e grupos, criar um espaço para que esse desejo apareça, ganhe vida, é reiterar um trabalho alinhado com a lógica do cuidado em liberdade. Estar em liberdade não é apenas não estar entre muros, mas sim poder escolher, poder sonhar. Como afirmou um usuário, ao falar do CAPS: “Somos loucos sim, mas somos loucos pela Vida.”

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SOBRE OS AUTORES ANANDA LUGON BOURGUIGNON. Atriz em constante (des)construção, cursa licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de Vila Velha - UVV. Também cursa Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo - UFES - e tenta criar diálogos possíveis entre as Artes Cênicas e a(s) Psicologia(s). Acredita que o melhor caminho para se costurar a tessitura 'teatro-psi' é através da pesquisa e experimentação, e conversa, principalmente, com autores que ajudem a pensar a arte sendo indissociável da política e dos afectos. CLEILSON TEOBALDO DOS REIS. Psicólogo, Mestre em Psicologia Institucional - UFES. Professor adjunto do curso de Psicologia da Universidade de Vila Velha/ES e Psicólogo da Secretaria Municipal de Saúde de Vitória/ES. Histórico de atuação em políticas públicas de Saúde, Assistência Social e Direitos Humanos, com foco especialmente nas temáticas de ética, inclusão social e saúde mental. EDNA DA SILVA PEREIRA, graduanda em Pedagogia na Universidade de Vila Velha com iniciação científica e experiência na área de Educação. ERANÍ FERREIRA SOARES. Mestranda em Artes pela Universidade Federal do Espírito Santos, possui graduação em Artes Plástica/ Educação Artística pela Ufes. Atualmente é professora na rede estadual de ensino, parecerista na secretaria de cultura de Vila Velha.Fio professora na Universidade de Vila Velha, de 2002 até 2020/1, atuando nos cursos de Design de Moda, Design de Produto e Artes Cênicas. Tem experiência na elaboração de conteúdos EAD, também atuando com criação de figurinos. ESTER ZAPPAVIGNA MONTEIRO COSTA, advogada, mestranda em Segurança Pública na Universidade Vila Velha - ES, e servidora pública municipal de Vitória - ES. IASMIN SANTOS SILVA é graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais, integrante do projeto de extensão: Estudos Transversais em Educação: arte, memória e criticidade. LETÍCIA DIAS, atriz e videoartista. É licenciada em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha. Estagiou por dois anos na Secretaria Municipal de Vila Velha no setor arte e cultura. Participou do projeto “teatro vai a escola” na qual circulava com peças teatrais pelas UMEIs e UMEFs de Vila Velha. É integrante do grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea" e da Associado Sociedade Cultura e Arte. LUIZA HELENA VICTAL. Psicóloga, Mestre em Ciências da Saúde pela ENSP/Fiocruz. Especialista em psicologia Clínica, Especialista em Psicologia Social Especialista em Saúde Pública. Membro Fundador da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção de Suicídio. Foi coordenadora de Saúde Mental em Vitória e Vila Velha. MARCELO FERREIRA. Mestre em Artes ( UFES/2018). Especialista em Educação ( FAESA-2004). Graduado em Comunicação Social/Jornalismo ( UFES-1981). Experiência na área de Artes e Educação, ênfase nas Artes Cênicas, com foco na pesquisa do teatro pós-dramático (de matriz corporal). Atua na formação de atores,bailarinos e professores, direção cênica e cenografia de espetáculos de teatro, dança,óperas, corais,musicais e concertos. Dramaturgo, diretor, ator e bailarino da Cia. Teatro Urgente, criada em 2003.


MARIA CAROLINA DE ANDRADE FREITAS é doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Especialista em Saúde Mental pelo Centro Universitário Newton Paiva. Atualmente ocupa cargo de Professora Efetiva da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)/ Unidade Divinópolis, na área de Fundamentos e Intervenções em Psicologia da Educação, Desenvolvimento e Aprendizagem. Professora do Curso de Psicologia e de outros cursos de Licenciaturas. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Subjetividade (NEPECS- UEMG) e integra o Núcleo de Pesquisas em Subjetividade e Políticas e Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho Docente (NEPESP/ PFIST-UFES) como pesquisadora colaboradora. Desenvolve temas de pesquisa e estudo que articulam contribuições psicanalíticas e da Análise Institucional. São temas de interesse e estudo: as relações entre arte, clínica, crítica, saúde, trabalho, educação e processos formativos. Possui experiência em ensino, pesquisa e extensão em áreas de articulação entre saúde, educação, trabalho e clínica. Experiência profissional clínica em consultório e instituições e em serviços públicos de referência na área da Assistência Social. MARIA HELENA COSTA SIGNORELLI, economista, atriz em formação. Mestre em economia pela Universidade Federal do Espírito Santo –UFES (2002). Pós-graduada em administração financeira pelo Instituto Financeiro de Mercado de Capitais – IBMEC (1993) e em gestão pública pelas Faculdades Integradas as Jacarepaguá (2009). Atuou como Secretária de Cultura do município de Vitória(2005/2008), como coordenadora de Economia do Livro na Diretoria de Livro, Leitura e Literatura do Ministério da Cultura(2010) e como coordenadora da Secretaria Executiva do Conselho Nacional de Política Cultural no Ministério da Cultura(2011/2012). Ministrou oficinas de teatro e participa da equipe de produção do Projeto “Surdos, Cegos e Cadeirantes na Cena Diversa do Teatro Capixaba”. MARINA FORTUNATO é um ser-mãe, ser-político, ser-artístico. É um alguém que busca o contato com o outro por meio das diversas linguagens do mundo: pela escrita, pela fala, mas também pelo espírito. Marina é mobilização enquanto espectro ativo, mas também é calmaria, é respiração e afago. Esse afago penso que pode ser uma das heranças do materno em si, materno esse experienciado pela via política e revolucionária que habita Marina. Psicóloga formada pela Universidade Vila Velha, traz essa bagagem como parte da experiência clínica tramada pelo afeto, potência e encontro com o outro. MARINA MELLO, nascida em Ilhéus em 1995. Iniciou sua carreira como atriz em 2012, no grupo de teatro do Instituto Federal do Espirito Santo (IFES), campus Aracruz, quando cursou técnico em química integrado ao ensino médio. Em 2017, ingressou no curso de Artes Cênicas pela Universidade de Vila Velha (UVV) para se profissionalizar, participando de diversas montagens concluindo o curso em 2020. Desde 2019 é diretora do grupo Dionifes do Instituto Federal do Espirito Santo (IFES) do campus Vila Velha. MIGUEL LEVI DE OLIVEIRA LUCAS. Discente do 10° período de psicologia da UEMG Divinópolis e palhaço. Foi bolsista pelo PAPq - UEMG 2019 com o projeto O palhaço e a psicanálise: a palhaçaria como possibilidade terapêutica. Em 2020 passa a integrar o NEPECS. PAULA CALASANS, estudante, atriz e professora. Licenciada em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha (2020) e estudante de História pela Universidade Federal do Espírito Santo (2017-2021


(previsão)). Professora de teatro e história para crianças e adolescentes e atriz na companhia de teatro Dourado Produções e curtas metragens universitários e independentes. RAFAEL TEIXEIRA CIRÍACO DE SOUZA, ator, diretor, videoartista e podcaster. Oficineiro e pesquisador, licenciado em Artes Cênicas (2020) pela Universidade Vila Velha. É membro do grupo de pesquisa “Poéticas da Cena Contemporânea” e da Associação Sociedade Cultura e Arte, onde coordena o laboratório de pesquisa em podcast. Circulou como ator e diretor apresentando peças pela Grande Vitória e interior do Espírito Santo. RANDRA GOUNDOUIN é estudante de gradução do curso de Psicologia na Universidade Vila Velha e psicanalista em formação. Constrói sua trajetória profissional e de escuta inserida no contexto da saúde mental e nos contorno da psicanálise diante do campo hospitalar, na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e Pediátrica. Sempre envolvida na criação de espaços e intervenções para fazer a palavra deslizar, sustenta seu desejo de saber nas amarrações possíveis de uma clínica para além dos tradicionais consultórios. REJANE ARRUDA, diretora, videoartista, fotógrafa e atriz premiada em diversos festivais de cinema. Professora e pesquisadora, mestre (2009) e doutora em Artes Cênicas (2014) pela Universidade de São Paulo; especialista em Cinema (2014) pela Universidade Estácio de Sá. É coordenadora do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, diretora do grupo de pesquisa “Poéticas da Cena Contemporânea” e presidente da Associação Sociedade Cultura e Arte, com a qual desenvolveu os projetos “Feriado também é dia de ir ao Teatro” e “Surdos, Cegos e Cadeirantes na Cena Diversa do Teatro Capixaba”. RENATA GONÇALVES DE MELO tem 23 anos, e mora em uma pequena cidade localizada a 112 Km da capital mineira - Belo Horizonte. É graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG, unidade Divinópolis, MG, e atualmente está no 6° período. É integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Subjetividade - NEPECS e do Projeto “Estudos transversais: educação arte e criticidade”, que teve início em junho de 2020. RIZIANE PRATES, doutora em educação, Mestrado, Especialização e Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora da Universidade Vila Velha, na graduação em Pedagogia e Artes Cênicas, Pedagoga do Núcleo de Acessibilidade (NACE-UVV) e no Mestrado em Segurança Pública (UVV). Professora da Educação Infantil no município da Serra, atuando na formação continuada de professores (Centro de Formação-SEDU-SERRA). Realiza pesquisas no campo da educação formal e não formal, com ênfase em Currículos, Formação de professores, Produção de subjetividades, Educação inclusiva, Aprendizagem ético-estético e afetiva, Infâncias e Docências, Diversidade e Diferença. SARAH DE SOUZA CARDOSO, Psicóloga graduada pela Universidade Vila Velha, pós graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUC-RS. Possui trajetória na área da Saúde Mental, tendo realizado estágios no Serviço Residencial Terapêutico em Vila Velha/ES e no Caps III de Vitória/ES. Atualmente realiza atendimentos clínicos, sustentando uma clínica política, preta e antirracista.


THAIS TESCH é graduada em Psicologia, interessada nas vias de ruptura e nos processos de produção de subjetividade. pensa a escrita como possibilidade de materialização do pensamento. tem como tema de pesquisa central a loucura e seus engendramentos. THAUANY DUARTE DINIZ nasceu no ano 2000 e é graduanda do curso bacharel em Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais -UEMG, Unidade Divinópolis- MG. É pesquisadora e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Subjetividade - NEPECS e do Projeto “Estudos transversais: educação arte e criticidade” que ocorrem na UEMG. Ademais, é co-autora do livro em questão.


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