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RE LI DA C O N T I L A U B L I S P E C T O R N A S S A R S A N T O R O S O U T O D E M O U R A Z A N A T T O
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RELIDA 1 AG O S TO 2 01 3
4 LAUB, Michel. Razão e Relinchos. Folha de S. Paulo, 07/12/2012, p. e14.
8 LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rocco, 1999, p. 172.
10 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. Companhia das Letras, 1989, p. 51-61.
18 ZANATTO, Rafael. A Galera Cheira, Os Sinos Dobram, O Barulho Não Para. Em http://rafaelzanatto.wordpress.com/
22 CONTI, Mario Sergio. Rebelião. Relâmpago, Fagulha e Incêndio num Fim de Outono. Piauí 82, julho 2013, p. 13-14.
32 MOURA, Eduardo Souto de. Atlas de Parede, Imagens de Método. Dafne Editora, 2011, p. 142-143. 3
RAZÃO E RELINCHOS MICHEL LAUB
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xiste um livro de Schopenhauer chamado “Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão” (ed. Topbooks). Um dos riscos de escrever uma coluna de jornal hoje, ou de opinar em qualquer instância pública, é o oposto: ser ignorado, quando não perseguido e açoitado num pelourinho de grunhidos, relinchos e cacarejos, a despeito da mais cuidadosa argumentação. Convencer alguém a mudar de ideia não é algo comum em nosso tempo. Basta uma semana nas redes sociais para perceber: militantes pró e contra aborto, descriminação da maconha, eutanásia, cotas, cabras e sobrenomes Guarani-Kaiowá, a maioria está ali para confirmar certezas prévias ou se irritar com quem diz o contrário.
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ma radicalização que também nasce do meio: para que os palpites sejam ouvidos entre tantas vozes, a tendência é que o adjetivo prevaleça sobre o termo exato, a ênfase sobre a ponderação, as regras generalizantes sobre as nuances que tiram a graça e o colorido das frases e slogans. Num cenário assim, não é difícil adotar um tom nostálgico ou apocalíptico. Talvez se possa lamentar o fim de uma suposta era de ouro dos debates elevados. Prefiro seguir achando que a humanidade não mudou tanto: apenas passamos a ouvir, graças a uma tecnologia muito mais benéfica que perniciosa, que criou possi-
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bilidades infinitas de compartilhamento de informação, as conversas antes restritas a botecos. É um choque descobrir que amigos são tão ignorantes, levianos ou idiotas, claro, mas até isso tem seu lado positivo.
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e certa forma, estamos diante de um problema das democracias maduras, que já superaram — ou deviam ter superado — questões graves referentes à liberdade de discurso. Ou seja, não estou falando da lei, que proíbe censura, calúnia, injúria e difamação. Nem da ética, que repele a desonestidade intelectual sem que seu autor precise ir para a cadeia. Estou falando é de etiqueta, a “pequena ética” que em sua face menos elitista propõe tolerar os modos alheios — um caminho para, quem sabe, prestar atenção ao que eles representam. Isso porque linguagem e tom — que são maneiras de segurar os talheres num debate — nem sempre arruínam as ideias por terem aparência tosca. Dá um pouco de cansaço, por exemplo, quando bikers defendem suas propostas para o trânsito com tamanha agressividade. Ou quando a pecha de “fascista”, misturada à teoria política da salmonela, aparece na discussão sobre bisnagas de plástico proibidas em feiras e lanchonetes. Ainda assim, tudo a favor de ciclovias e meios alternativos de transporte, e abaixo aqueles saquinhos tristes de ketchup e mostarda. 5
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um ensaio de 2005, um nome insuspeito quando o tema é a consequência das palavras — Salman Rushdie, que passou anos escondido por causa de um livro considerado blasfemo pelo Irã — escreveu: “Na Universidade de Cambridge, me ensinaram (...) que não se deve ser grosseiro com a pessoa com quem se discute, mas se pode ser extremamente grosseiro em relação a tudo que ela pensa”. Parece uma citação descabida num texto sobre etiqueta. Na verdade, é a lembrança de uma regra ideal em debates: deveria importar o que é dito, e não quem diz. É o que impede um interlocutor de ser desqualificado por gênero, crença, classe ou etnia. Forçando um pouco a boa-fé, por que não abstrair também o partido em que o interlocutor vota, a empresa jornalística onde trabalha, os amigos que tem? Ou suas deficiências retóricas, sua ingenuidade, sua queda pelo vitimismo, pelo sentimentalismo, pelo insulto? A distinção total entre texto e autor é utópica, e o conteúdo de uma ideia pode ser indistinguível de sua forma, e às vezes tudo se resume mesmo a interesse ou tolice, mas o esforço para enxergar um pouco além disso é sempre virtuoso. Pensar com liberdade, o melhor atalho para identificar o lado certo numa disputa, passa por ouvir e aprender com vozes dissonantes. Mesmo que o timbre delas seja mais frequente em zoológicos, penitenciárias e hospícios.
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Nテグ ENTENDO C L A R I S S E LISPECTOR
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Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
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R A D U A N N A S S A R
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ue rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas: “O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família,
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nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa; aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançar aquele equi12
líbrio, é no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível; são sábias as mãos rudes do peixeiro pesando sua pesca de cheiro forte: firmes, controladas, arrancam de dois pratos pendentes, através do cálculo conciso, o repouso absoluto, a imobilidade e sua perfeição; só chega a este raro resultado aquele que não deixa que um tremor maligno tome conta de suas mãos, e nem que esse tremor suba corrompendo a santa força dos braços, e nem circule e se estenda pelas áreas limpas do corpo, e nem intumesça de pestilências a cabeça, cobrindo os olhos de alvoroço e muitas trevas; não é na bigorna que calçamos os estribos, nem é inflamável a fibra com que tecemos as trancas de nossas rédeas, pode responder a que parte vai quem monta, por que é célere, um potro xucro? o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum entre nós há de transgredir esta divisa, nenhum entre nós há de estender sobre ela sequer a vista, nenhum entre nós há de cair jamais na fervura desta caldeira insana, onde uma química frívola tenta dissolver e recriar o tempo; não se profana impunemente ao tempo a substância que só ele pode empregar nas transformações, não lança contra ele o desafio quem não receba de volta o golpe implacável do seu castigo; ai daquele que brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa arrastar pelo calor de tanta chama: terá a insônia 13
como estigma; ai daquele que deita as costas nas achas desta lenha escusa: há de purgar todos os dias; ai daquele que cair e nessa queda se largar: há de arder em carne viva; ai daquele que queima a garganta com tanto grito: será escutado por seus gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso: terá as mãos cheias de gesso, ou pó de osso, de um branco frio, ou quem sabe sepulcral, mas sempre a negação de tanta intensidade e tantas cores: acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba só por expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista, arrancando dos ouvidos os escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das glândulas o visgo peçonhento e maldito; erguer uma cerca ou guardar simplesmente o corpo, são esses os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro, afinal, que força tem o redemoinho que varre o chão e rodopia doidamente e ronda a casa feito fantasma, se não expomos nossos olhos à sua poeira? é através do recolhimento que escapamos ao perigo das paixões, mas ninguém no seu entendimento há de achar que devamos sempre cruzar os braços, pois em terras ociosas é que viceja a erva daninha: ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a terra para lavrar, ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer, ninguém ainda em nossa casa há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer; caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só 14
agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranqüilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse fruto universal, inesgotável, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas fantasias onde teria sido um reino penoso de expectativas e suas dores; na doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o exemplo: é na memória do avô que dormem nossas raízes, no ancião que se alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo, no ancião cujo asseio mineral do pensamento não se perturbava nunca com as convulsões da natureza; nenhum entre nós há de apagar da memória a formosa senilidade 15
dos seus traços; nenhum entre nós há de apagar da memória sua descarnada discrição ao ruminar o tempo em suas andanças pela casa; nenhum entre nós há de apagar da memória suas delicadas botinas de pelica, o ranger das tábuas nos corredores, menos ainda os passos compassados, vagarosos, que só se detinham quando o avô, com dois dedos no bolso do colete, puxava suavemente o relógio até a palma, deitando, como quem ergue uma prece, o olhar calmo sobre as horas; cultivada com zelo pelos nossos ancestrais, a paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas adversidades e o suporte das nossas esperas, por isso é que digo que não há lugar para a blasfêmia em nossa casa, nem pelo dia feliz que custa a vir, nem pelo dia funesto que súbito se precipita, nem pelas chuvas que tardam mas sempre vêm, nem pelas secas bravas que incendeiam nossas colheitas; não haverá blasfêmia por ocasião de outros reveses, se as crias não vingam, se a rês definha, se os ovos goram, se os frutos mirram, se a terra lerda, se a semente não germina, se as espigas não embucham, se o cacho tomba, se o milho não grana, se os grãos caruncham, se a lavoura pragueja, se se fazem pecas as plantações, se desabam sobre os campos as nuvens vorazes dos gafanhotos, se raiva a tempestade devastadora sobre o trabalho da família; e quando acontece um dia de um sopro pestilento, vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as cercanias da moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas das nossas portas e janelas, alcançando um membro desprevenido da família, mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar, deste irmão, 16
seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para ungir sua ferida, e os lábios para beijar ternamente seus cabelos transtornados, que o amor na família é a suprema forma da paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o acabamento dos nossos princípios; e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao cocho, o gado sempre vai ao poço; hão de ser esses, no seu fundamento, os modos da família: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um teto bem suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato quem não se submete.” E o pai à cabeceira fez a pausa de costume, curta, densa, para que medíssemos em silêncio a majestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um púlpito; e aproximando depois o bico de luz que deitava um lastro de cobre mais intenso em sua testa, e abrindo com os dedos maciços a velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai, ao ler, não perdia nunca a solenidade: “Era uma vez um faminto.”
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A GALERA CHEIRA, OS SINOS DOBRAM, O BARULHO NÃO PARA. V
al, o gerente, destrata a funcionária, dizendo que ela não é muito inteligente. A outra ali tem uns peitos muito bons; não consigo precisar sua idade. Ela tem umas pernas muito boas, realmente viçosas, a bunda é um espetáculo à parte, ótima curvatura, a circunferência das nádegas é admirável. Ela definitivamente não é nova o bastante pra isso ser normal natural — as mulheres, como se sabe, em sua maioria, passam a vida como se não fosse nada, elas nascem, crescem amadurecem, e ficam gostosas praticamente por acaso. Elas têm um pico, o auge de sua forma física. E tudo passa. Sem mais nem menos, ela vai, fica gostosa, depois passa, deixando claro que nada daquilo foi intencional ou planejado. Pelo menos não por ela. Essa daí é um desses raros casos em que ela já está velha o bastante para não ter chances de ser gostosa mas é gostosa mesmo assim, como uma menina na flor da idade. As pernas perfeitas, quen-
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RAFAEL ZANATTO
tes, sem marcas, a bunda redondinha no shortinho jeans, os peitos estão bem firmes, nenhuma marca também. Muito bem, muito bom, e não há marcas no rosto tampouco. As pessoas são como livros, ficam amassadas e amareladas, e esta aqui é um belo achado no sebo.
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as essa galera com certeza cheira. A cara toda estourada, o cara cheira. Como ele faz a barba com uma cara tão irregular. Observo com toda atenção possível enquanto ele faz as contas. Os pêlos nascem aqui e ali, ele vestido com as melhores roupas da loja é uma coisa triste, eu fico triste com a moda e com o que ela faz com as pessoas. Não sei ainda como sua barba insiste em crescer nesse rosto destruído pelas espinhas, é triste como as coisas rolam pra algumas pessoas. Eu fico triste pensado que essas pessoas cheiram, que o Val dá um tapinha inadvertido na bunda da gostosa no estoque, que a outra burra chupa o pau do cara do caixa como se fosse um favor. 19
Não dá. Não dá pra ficar pensando nas pessoas. Todo mundo é um poço de bosta.
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o jornal, as coisas continuam as mesmas. Sábado, tento ler as notícias. De costas pro sol, o vento vira as páginas. Me obriga a ler os quadrinhos. Empreendimentos imobiliários saem voando, as latinhas caem da mesa e ficam indo de um lado pro outro, batendo contra a parede, rolando pelo chão. Eu tento manter a calma. Quadrinhos. Vamos pelos quadrinhos. Uma coluna, sei lá, notícias, matéria, novidades, crítica de alguma coisa as latinhas, por que fui tomar latinhas. E por que tantas? O vento levanta as cinzas, tudo é imundo. Dou um gole cai uma gota. Fico olhando o jornal absorvendo minha cerveja. O papel ondula, o líquido vai entrando pelas fibras, o pequeno ponto de espuma se desfaz, o líquido está todo no jornal agora. Era só uma gota, meu Deus, e os sinos do inferno não param de dobrar, trec, trec, craaacratatata, tin tantin. Nada de engraçado acontece. Faz tempo que não fazemos merda nenhuma. Quando tudo é liberado, não sobra muita chance de fazer cagada. Penso frases soltas e deprimidas enquanto tomo banho. Preciso comprar uma garrafa de uísque. E arrumar a internet. Bater uma punheta na sala. Uma punheta na varanda. Realmente temos poucas opções hoje em dia.
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ós não temos uma relação. Eu quero falar isso. Eu nem te conheço, eu tenho vontade de dizer. O que seria mentira, pois eu conheço. Mas a única relação 20
que temos é a seguinte: você me atormenta. É isso, você é só uma preocupação. E fala muito. Ela continua falando. Cara, fala tanto. Você não tem vontade de ficar quieta de vez em quando? Pergunto isso em voz alta. Ela é inabalável. Ficar quieta? Ela ri. Eu queria só queria te contar, você tem que ler esse livro. Pelo menos essa parte. É muito boa! Eu não quero ler esse livro, eu não quero ler livro nenhum, meu Deus. E o barulho não para. Eu sou um ser humano infeliz, olhando desesperadamente pros lados, querendo pegar uma cerveja, evitando sentir seu cheiro. Eu odeio seu cheiro. Eu quero tocar fogo neste apartamento. A cidade é tão grande, porque você quer encher logo o meu saco? Tanta gente por aí pra você dar no saco, você vai dar logo no meu? Eu sou um cara especial agora? Eu não aguento. Porra, que saudade de jogar bola. Mas você não gosta de nada. Eu odeio. Odeio tudo. Bato o cigarro na mesa. Se o Corinthians não ganhar amanhã… Bato o copo na mesa. O copo é lindo. Eu não tenho vontade de chutar o copo, por exemplo. Vou falar uma merda. Quero comprar um email. Um email?
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Não, um isqueiro, falei errado. 21
RELÂMPAGO, FAGULHA E INCÊNDIO MARIO SERGIO
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inguém esperava que milhões de pessoas paralisassem centenas de cidades em poucos dias. Elas enfrentaram a polícia. Depredaram lojas e agências de banco. Queimaram ônibus, carros e vans de redes de tevê. Fizeram barricadas em rodovias e impediram a entrada em aeroportos. Abalaram um dos símbolos maiores da identidade nacional, a Seleção Brasileira, e tentaram intervir em partidas de futebol. Centenas foram presas e feridas. Seis morreram. Um governador de estado, o do Rio, não conseguiu entrar em casa porque a rua onde mora foi ocupada durante dias a fio. Multidões bateram às portas de câmaras de vereadores, prefeituras, assembleias legislativas, palácios estaduais, ministérios e do próprio Congresso Nacional. Estiveram a poucos metros do coração do poder central, o Palácio do Planalto. Uma greve geral foi convocada. A situação que se abriu é revolucionária. Nela, o inesperado é sempre a nota inicial. A Comuna de Paris, em 1871, foi uma surpresa para o próprio Marx. Ele estava exilado em Londres e, avaliando que a conjuntura era de calmaria na Europa, abandonara a militância política imediata e se dedicava a estudos de longo prazo. Em São Petersburgo, em 1905, uma rebelião desembocou na eleição do primeiro conselho de democracia direta — “soviete”, em russo. Foi eleito para presidi-lo um jovem desconhecido de
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NUM FIM DE OUTONO CONTI 25 anos que estava fora dos partidos. Chamava-se Leon Trotsky. Pouco antes de a revolução estourar, em 1917, Lênin previra uma temporada de anestesia na Rússia. Isso não significa que o Brasil esteja às vésperas de uma revolução, longe disso. Situação revolucionária não quer dizer tomada do poder. Muito menos mudança radical da sociedade. A expressão serve para descrever o período em que um povo dá mostras de que não quer mais viver como antes. E que o Estado não pode seguir governando como fazia até então. Isso está a acontecer no Brasil. A França de 1871 e a Rússia do começo do século passado não têm nada a ver com o Brasil de hoje. Lá, os países disputavam guerras. Centenas de jovens eram destroçados diariamente à bala e baioneta. Milhões de pobres não tinham o que comer. O desemprego era imenso. Aqui, se está em paz. A miséria foi atenuada nos últimos anos. Há quase pleno emprego. Apesar disso, os acontecimentos de junho mostram que um mal-estar profundo perpassa o país inteiro. Houve protestos colossais inclusive em Macapá. Até o Faustão defendeu na Globo o bota-pra-quebrar contra o isto-que-está-aí.
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aios iluminam o céu azul de vez em quando. Eles só têm consequência quando batem no chão e provocam fagulhas. O incêndio se propaga à medida 23
que encontra combustível para manter a chama. Há dois anos, um jovem sem emprego do interior da Tunísia, desesperado porque a polícia o proibiu de vender frutas na rua, comprou um latão de gasolina e ateou fogo em si mesmo. Mohamed Bouazizi tinha 26 anos. O fogo que o matou acendeu a Primavera Árabe. Em questão de meses, toda uma região do globo, de Rabat a Damasco, estava em chamas. As ditaduras da Tunísia e do Egito foram derrubadas em meio a labaredas de cólera. Na Líbia, Kadafi foi chutado pela rua como um vira-lata que tivesse raiva. Começou a guerra civil na Síria, com seu cortejo de 100 mil mortos e exílio em massa. Num processo desigual e combinado, os fatos se desenrolaram de maneira distinta numa dezena de países, cada qual com ritmos próprios. O Brasil não é a Tunísia. Nem a América Latina é igual ao mundo árabe, ainda que uma manifestação em Assunção, no Paraguai, tenha se inspirado diretamente nas brasileiras e protestos fermentem em outros países. As instituições por aqui são mais arrumadas do que as de acolá. Há democracia, livre expressão, judiciários que bem ou mal funcionam. As ditaduras e monarquias petrificadas de lá se apoiavam em clientelas pagas e títeres. A censura e a tortura política eram a norma. Monstruosos aparatos militares calavam quem desse um pio contra os poderosos.
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Brasil é mais parecido com a Europa e os Estados Unidos. Mais precisamente: setores das metrópoles brasileiras são semelhantes aos estamentos que a crise econômica vitimou nos países centrais. Ou seja, estudantes que precisam começar a trabalhar e não encontram nada, os desempregados e os ameaçados de perder o serviço, os funcionários de estados que mínguam a cada ano, à força de cortes de orçamen24
to que sucateiam escolas, hospitais e o transporte coletivo. Também na Europa e nos Estados Unidos houve revoltas. Mas elas não abriram situações revolucionárias. Salvo na Islândia, onde greves gerais em sequência e manifestações que arrebataram a povo inteiro barraram o Diktat recessivo da grande finança internacional. E descontada a Grécia, onde os protestos foram ainda mais fortes que os brasileiros. Em Atenas, uma coalização instável conseguiu ser eleita e, com recursos portentosos da União Europeia, a duras penas vem tentando governar. A crise econômica fez surgir os indignados na Espanha. Pela heterogeneidade, o movimento deles tem pontos de contato com os protestos brasileiros. Ele é integrado por estudantes, jovens que pedem emprego, serviços públicos decentes e o fim da corrupção. São parecidos com o Occupy Wall Street. O agrupamento americano, que se espalhou por dúzias de cidades, surgiu numa manifestação convocada por uma revista canadense, que por sua vez se inspirou na ocupação da praça Tahrir, no Cairo. O mundo globalizado é uno. Um camelô que se imola nos cafundós da Tunísia acende uma mecha na praça Tahrir. A derrubada da ditadura egípcia inspira canadenses a conclamarem a ocupação em Nova York. Mas cada país tem seus usos e costumes. E o Brasil é o Brasil. O relâmpago brilhou no céu da tarde fria de uma quinta-feira, 6 de junho. O raio caiu na escadaria do Theatro Municipal, no centro de São Paulo. Havia ali o punhado de gatos pingados do Movimento Passe Livre. Eles têm 20 e poucos anos, mas desfraldaram faixas com uma reivindicação popular velhíssima, a redução do preço das passagens. Ele fora aumentado em 20 centavos no começo 25
do mês. Não era a primeira manifestação. Meses antes, em Florianópolis e Porto Alegre, eles haviam organizado atos parecidos. Os poderes constituídos não os levaram em consideração. Repetiram D. Pedro ii. Em 1879, o imperador não ligou para a Revolta do Vintém, que pleiteava o corte da tarifa de 20 réis. Ecoaram Juscelino Kubitschek, que nos anos 50 não deu bola para os cariocas que eram contra o aumento das passagens. Nos dois casos houve sururu, tiros e bondes incendiados. O Passe Livre conseguiu juntar 2 mil pessoas. Marcou outra passeata para o dia seguinte. Depois outra. Uma terceira. Elas atraíram mais gente e ficaram parrudas. O governador do estado e o prefeito paulistano estavam em Paris. Quase de joelhos, solicitavam que a cidade fosse sede de mais um desses megaeventos que não dizem nada a quem fica entalado horas num ônibus, mas rendem excelentes negócios para os espertalhões de sempre. Eles dividiram as tarefas para dar as respostas de praxe. O prefeito, do pt, apareceu com um maço de planilhas. Explicou racionalmente porque não reduziria de jeito nenhum o preço das passagens. O governador tucano mandou baixar o pau nos irrealistas e insolentes. Afinal, o passe livre só deve valer para um punhado de maganos: vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores, ministros, presidentes disto e daquilo. Apenas eles podem ter transporte gratuito vip: carrões pretos reluzentes e chofer de paletó no banco da frente. Nada mais justo, já que são autoridades, Vossas Excelências. A Central Única dos Trabalhadores e a União Nacional dos Estudantes mantiveram-se em silêncio. Todas as organiza26
ções empresariais, todas as igrejas, todos os parlamentares ficaram mudos. A imprensa hostilizou os “vândalos” e clamou pelas forças da ordem. O Brasil oficial se apartou da realidade. A Polícia Militar saiu a campo. Ela não foi treinada para manter uma passeata nos limites. É adestrada para caçar bandidos e moradores de quebradas barra-pesada, ao abrigo de registros impertinentes. A polícia sentou bala de borracha em cima de quem viu pela frente. As balas saíram pela culatra. Os protestos se multiplicaram em progressão geométrica e se irradiaram pelo país todo. O pêndulo se moveu de São Paulo para o Rio, onde 300 mil pessoas se juntaram no centro da cidade. A Assembleia Legislativa fluminense, um dos mafuás mais notórios da corrupção oficial, foi invadida. O que era um raio em céu claro virou fogaréu.
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etistas e tucanos, novamente de forma concatenada, recuaram. Mandaram a polícia se moderar e abaixaram o preço das passagens. Foi uma vitória admirável, na contramão do que costuma ocorrer no Brasil. O movimento estudantil de 1968 foi derrotado pelos militares e iniciou-se a fase mais repressiva da ditadura. A campanha pelas eleições diretas dos anos 80 fracassou. A agitação reformista redundou na escolha de um presidente, na frase feliz do sociólogo Francisco de Oliveira, “mais conservador que Nossa Senhora de Guadalupe”. Nem Tancredo Neves acabamos tendo. Com a sua morte, tomou posse o jaquetão que coonestara a tortura. A pressão popular derrubou Collor. Mas ele não passou um dia sequer na cadeia e não se tocou nos seus bens. Foi morar em Miami, passeou pelo Taiti e se elegeu 27
senador governista. Impávidas, as negociatas prosperaram: compra de votos de parlamentares, concorrências viciadas, nepotismo, caixa dois eleitoral, máfias de ônibus, o mensalão petista e o tucano. Talvez a vitória tenha vindo rápido não só devido à quantidade das multidões, mas à natureza dos protestos. Eles foram carnavalescos como os da Diretas Já e do Fora Collor, mas bem mais aguerridos. Dessa vez não houve palanques, discursos, lero-lero. A violência esteve sempre presente. Além da pancadaria policial, ocorreram revides, depredações, saques, quebra-quebra. Havia perigo real em participar delas. E elas atraíram cada vez mais pessoas iradas em um sem-número de cidades. A redução do preço das passagens gerou algo mais espantoso ainda: os atos públicos prosseguiram e cresceram. Mantiveram a batida virulenta e chegaram a rincões com depósitos enormes de combustível, os arrabaldes das metrópoles. É neles que vive a gente mais sofrida, e também os beneficiários do Bolsa Família e do salário mínimo robustecido na era Lula. Foi a partir de bairros pobres que se organizou a interrupção de rodovias. Eles queriam passarelas, segurança na travessia das estradas e reintegrações de posse. O aumento dos pedágios foi cancelado. Quem foi à grande passeata de comemoração na avenida Paulista viu que a presença do Partido dos Trabalhadores fez com que o ambiente ficasse carregado. O repúdio à participação dos petistas veio de dois lados. Uma parte se irritou com o oportunismo do partido, cujos líderes um dia antes defendiam o aumento das passagens. Outra parte, minoritária mas organizada, agrediu os militantes. Mais por eles apoiarem o governo e serem de esquerda do que por integrarem um partido. 28
De roldão, outros partidos da esquerda, que estiveram com o Movimento Passe Livre desde o começo — o pstu, o psol e o pco —, foram forçados a arriar suas bandeiras. Parecia haver, em gestação, milícias de direita. E a direita organizada nunca tomou parte de agitações reivindicatórias. Dem, psdb e pmdb têm horror a elas. O seu mundo é o dos gabinetes, dos conchavos e dos comícios bem enquadrados. Que tenham descido à avenida Paulista é mais um sintoma da turbulência dos idos de junho.
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s manifestações perderam a reivindicação unificadora do congelamento das tarifas. Agora, vale tudo. Uns buscam a satisfação de dificuldades locais com ônibus, hospitais e escolas. Outros denunciam os gastos extravagantes na construção dos elefantes brancos para a Copa do Mundo. Defendeu-se a derrota do projeto que retirava poderes do Ministério Público, o que acabou ocorrendo. Há aqueles que se insurgem contra a discriminação homofóbica. Muitos pedem — metaforicamente — a cabeça do presidente do Senado. Poucos, a da presidente da República. Dilma Rousseff voou às carreiras de Brasília a São Paulo para se encontrar com o seu antecessor e, sinal dos tempos, o marqueteiro de ambos. Voltou à capital e, abatida, fez dois pronunciamentos seguidos na televisão. Reuniu-se com organizadores do Movimento Passe Livre, que uma semana antes levavam cacetadas da pm no lombo. Eles a consideraram despreparada para discutir transporte coletivo. Algumas das ideias da presidente são de viabilidade mais remota que o passe livre para todos. Fica difícil ir a algum lugar se não há placas nem quem aponte um rumo. Há muita lança e pouca ponta na rua. Existem mil ideias no ar e nenhuma prevaleceu. A depender dos desdobramentos, 29
algumas delas vingarão. Não necessariamente as mais assentadas. As ideias do Iluminismo estavam à margem do pensamento predominante na Europa do século xviii. Rousseau e Voltaire eram pequenos diante da força da Igreja Católica. Em 1789, porém, suas ideias fizeram sentido para artesãos, camponeses, comerciantes e trabalhadores que se puseram em movimento. Figuras obscuras emergiram e foram levadas ao centro dos acontecimentos: Danton, Marat, Robespierre. A social-democracia russa do começo do século anterior era composta de grupelhos e extremistas exilados. Eles dedicavam boa parte da sua energia a querelas internas. Poucos sabiam que existiam. Veio 1917 e os desconhecidos criaram o partido bolchevique, que serviu de instrumento para a tomada do Palácio de Inverno. A revolução do século passado que teve maior participação popular não foi a russa. Foi a iraniana, de 1979. Quando ela começou, o seu líder sequer estava em Teerã. Vivia no exílio há quinze anos e morava em Neauphle-le-Château, perto de Paris. Era o aiatolá Khomeini. Repita-se: o Brasil não é a Rússia nem o Irã. Mas desencadeou-se um tempo de agitação prenhe de riqueza. Em semanas, o Brasil realizou um aprendizado coletivo equivalente ao de décadas de baixa voltagem. Haverá ciclos de desânimo e exaltação. Clivagens, diferenciações, celeuma e choques. Avanços, recuos, rodeios e zigue-zagues. O sistema político resistirá a mudanças materiais. Ele é integrado por gatos de sete vidas, capazes de cair de pé depois de piruetas esdrúxulas. Além do mais, rua é uma coisa e urna, outra. A hora é de participar: debater, criar e fazer escolhas. Muita coisa parece possível. Menos uma. Que o Brasil volte à rotina de antes do outono em que o raio bateu em gasolina.
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UMA AUTO BIOGRAFIA POUCO CIENTÍFICA
EDUARDO SOU TO DE M OU R A
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asci no Porto, em Portugal, em 1952. Em 1958 fui para a escola italiana a cerca de 100 metros de casa dos meus pais. Durante quatro anos tive professores que recordo com nostalgia, como a senhora Morelli e o professor de música, o pai Facciola, que me deu a conhecer a língua, a cultura romana e uma admiração precoce do classicismo da qual nunca me libertei. Os cinco anos na escola secundária foram uma espécie de Idade Média, uma nuit obscure, onde aprendi francês, língua obrigatória que me deu acesso ao existencialismo, que estava na moda: Sartre, Camus, Boris Vian, etc. Mas sobretudo Rimbaud. II faut être absoIument modeme. Foi com essa convicção que, nos anos 70, entrei nas Belas Artes para estudar arquitetura. Os primeiros anos centraram-se nas ciências sociais, o “marxismo”, a sociologia, a antropologia, o estruturalismo, etc. Os professores acreditavam que a síntese do projeto poderia produzir-se dominando as disciplinas analíticas. O nosso livro de aulas era o curso de linguística de Saussure. O desenho, no momento da revolução, era qualquer coisa tecnocrática e reacionária.
O
que se passou com a «Revolução dos Cravos», o Secretário de Estado da Habitação, que era o arquiteto Nuno Portas, fundou o saal (Serviço Ambulatório de Apoio Local) que sustentou economicamente brigadas de estudantes a fazer projetos para Associações de Moradores. O senso comum foi a nossa sorte. Como não tínhamos qualquer ideia de como conceber, pedimos a um profissional que dominava o métier. Álvaro Siza aceitou e, durante cinco anos, trabalhei no seu atelier. Aprendi com o seu carácter a forma de resolver os problemas, de construir o projeto, uma aprendizagem lenta da realidade e 33
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da sua história. As soluções definitivas, por pudor, nunca as utilizei. Já estava consciente do célebre artigo de Aldo Rossi, Architettura per i musei quando o tive como professor em Santiago de Compostela. Nesse seminário de projeto compreendemos finalmente a autonomia da disciplina, que era posta em causa nas aulas a que assistíamos com dificuldade por causa do trabalho com Siza: São Vítor, Évora, Bouça, Berlim, etc. Por razões que compreendi mais tarde, Álvaro Siza dispensou-me como colaborador evocando (definitivamente) que não era o processo ideal para me tornar um arquiteto. De seguida trabalhei com o meu professor de urbanismo, Manuel Fernandes de Sá, que me entregou o projeto do mercado de Braga, que construí. Jean Nouvel escolheu-o para a Bienal de Paris nos anos 80. Depois de dois anos de serviço militar consegui ganhar um concurso para um centro cultural no Porto, um trabalho que também consegui construir. Tinha organizado a base para arrancar a minha vida profissional de um modo independente, com a convicção de ajudar a reconstruir um país após 48 anos de ditadura. Apenas para terem ideia, era necessário construir meio milhão de casas.
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videntemente Portugal funcionava de uma maneira diferente da Europa. Robert Venturi e Aldo Rossi propunham o pós-modernismo. Mas Lyotard não me convencia porque o Salazarismo tinha sido uma espécie de pós-modernismo, o que era estranho porque nós éramos pós sem nunca termos sido modernos. Eu estava mais próximo de Habermas e da sua crítica da Bienal de Veneza e aproximava-me de Mies van de Rohe e da oportunidade dos seus princípios naquele momento de mudança. Face a frontões de cartão, less is more foi 35
verdadeiramente uma lufada de ar fresco. Assim como o movimento moderno, o neoplasticismo, a construção industrial como futuro, a permanência do clássico ainda que com materiais modernos. Como professor na Suíça, em Lausanne e Zurique, e depois em Harvard, encontrei Jacques Herzog de quem me tornei amigo. Herzog teve a lucidez, neste impasse dos anos 80, de trabalhar colaborando com cultura local, a linguagem vernacular e a arte contemporânea, mostrando com o seu trabalho que “o universal é o local, sem paredes” (Miguel Torga). Também conheci em Zurique Donald Judd, que me marcou com a sua explicação da escultura e do desejo de querer ser um arquiteto.
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oje, 30 anos depois, continuo a trabalhar com Siza, e com prazer. Encontro Herzog regularmente e coleciono livros e imagens de Mies. Uma das últimas que encontrei mostra Mies em casa com as janelas fechadas, deitado com um robe de seda num canapé banal de veludo, sem design, a beber um Martini. Num outro cartão postal vejo o Mestre sentado num sofá anónimo, lendo, sob um abajur e envolvido com quadros de Klee, Kandinsky, esculturas de Picasso, discos provavelmente de Bach e livros seguramente de Santo Agostinho. Mies citou sempre Santo Agostinho dizendo que “a beleza é o espelho da verdade”, mas Mies mentiu. Mentiu constantemente nos detalhes de construção que foram sempre encobertos com outros materiais mais cenográficos. É esta contradição que me interessa mais no seu trabalho. Mies tinha um apartamento em Lake Shore Drive, todo em vidro, para o qual nunca se mudou. Viveu sempre dentro de muros, na sombra, envolvido por obras de arte. Descobrir porque Mies nunca mudou de casa é compreender o devir da arquitetura.
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Discurso de agradecimento por ocasião da atribuição da medalha de L’lcademie d’Architecture de France, Paris, Junho de 2010.
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EDITORIAL Durante a Feira Literária de Paraty a revista piauí faz uma seleção de alguns textos publicados durante o ano e os republica em uma edição especial e gratuita. Isso de certa maneira cristaliza esses textos. A RELIDA é isso. Escolher somente textos já publicados e colocá-los de novo em circulação editados em forma de revista gratuita. E com isso tentar potencializar as idéias e, principalmente, a beleza contida neles. Em meio à quantidade gigantesca de textos disponíveis na internet em forma de pixels essa revista acredita que algumas coisas devem ser transformadas em tinta impressa no papel. A RELIDA foi feita pra acompanhar o seu almoço e adiantar a espera pelo ônibus. Leve-a sempre contigo e boa (re)leitura.
RELIDOS
M C R R M E J
ichel Laub é escritor e seu novo livro A Maçã Envenenada sai neste mês.
larice Lispector era escritora ucraniana mas se declarava pernambucana.
aduan Nassar é, ou foi (em 1984 deixou de escrever), escritor. afael Zanatto é jornalista e publicará seu primeiro romance em breve. ario Sergio Conti é jornalista e escreveu o livro Notícias do Planalto.
duardo Souto de Moura é arquiteto português vencedor do Pritzker.
oão Santoro é economista e tirou as fotos que ilustram essa edição. 38
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