O U T U B R O 2 0 1 3
RE LI DA B A R B A R A B A T A I L L E F O N T A N A H E R Z O G H U G O M Ã E M E N D E S C A M P O S T C H É K H O V
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RELIDA 3 OUTUBRO 2013
4 BARBARA, Vanessa. O Livro Amarelo do Terminal. Cosac Naify, 2008, p. 11-14.
8 TCHÉKHOV, Anton. Um Homem Extraordinário e Outras Histórias. L&PM, 2007, p. 146-152.
16 MÃE, Valter Hugo. Piscinas. Em http://goo.gl/y2dYn0, 2013.
20 BATAILLE, Georges. O Azul do Céu. Editora Brasiliense, 1986, p. 13-23.
32 HERZOG, Werner. Caminhando no Gelo. Paz e Terra, 2005, p. 52-57.
38 MENDES CAMPOS, Paulo. O Amor Acaba. Companhia das Letras, 2013, p. 22-24. 3
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CHEGADA A
rodoviária do Tietê é uma cidade de coisas perdidas. “O caça-níqueis está aqui há dois anos”, informou a funcionária, mostrando uma lista que enumerava o esquecimento de espingardas (duas), motocicletas (duas), um banco de Kombi, uma máquina de serrar azulejos, camas, muletas, motores de moto, pneus, dentaduras e mão mecânica. “Às vezes vem gente procurando amigos desaparecidos. Mostram a foto e perguntam se já encontraram”, conta Andréia, que trabalha no setor de Achados e Perdidos. De fato, muitos pernambucanos, baianos, peruanos ou mineiros perderam-se há algum tempo em São Paulo e continuam deslocados, reprimindo a cada dia o desejo de voltar para casa (depois, talvez, quando os guris crescerem e sair a aposentadoria). Têm nomes como Augusta, lvonete, Cláudio, Gileno, José, Edilene; vagam pela cidade junto aos guarda-chuvas esquecidos, aos botões que se desprenderam, às dentaduras e todas essas coisas que não se sabe mais onde estão. A rodoviária é uma cidade de pessoas que andam com um enorme fiapo preso aos pés, de gente que derruba café no chão e joga o papel higiênico fora do lixo. De moças que exigem cartões telefônicos e praguejam do alto de seus óculos escuros. É uma cidade de homens que preenchem o formulário de sugestões apenas para reclamar, que acendem velas dentro do guarda-volumes e resmungam que todos ali são incompetentes. De gente que sugere a instalação de um ar-condicionado com urgência, porque na Europa...
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Uma cidade onde é necessário pedir autorização para conversar com os funcionários; onde é proibido fotografar os ônibus, e os seguranças cumprem ordens do diretor-assistente administrativo, detentor de um escritório espaçoso e um farto bigode. Na rodoviária, milhares de pessoas acotovelam-se numa fila para comprar bilhetes, outras andam de um lado para outro ou arrumam encrenca, alguns empurram os funcionários na plataforma de desembarque ou ameaçam agredi-los a socos — mas as sugestões, meu senhor, devem ser preenchidas com letra de forma neste formulário específico, numerado e identificado, para que possamos... É uma cidade onde os passageiros de Holambra ficam agradecidos e oferecem estadia e flores aos funcionários; onde a atendente ganha um pão de queijo e um aceno da moça que não sabia ir a Santo Amaro. É uma praça pública onde a senhora da limpeza conversa com uma avó de três crianças, e como isso aqui é grande, hein?, eu demoro duas horas pra voltar pra casa (e eu, 37), mas só saio daqui às dez.
N
os corredores do terminal, 100 mil cafezinhos e doze toneladas de pão de queijo são consumidos por mês, trezentos quilos de chiclete desgrudam-se do chão a cada grande faxina e 60 mil passageiros vão e vêm, a cada dia. Todo mês, 1,4 milhão de créditos telefônicos são consumidos nos orelhões, o que equivale a 46 mil horas de conversa ou 84 milhões de “alôs” repetidos à exaustão. São 63 lojas e onze quiosques, 650 quilowatts de energia por hora, 9 milhões de litros de água e mil quilômetros de papel higiênico (dentro ou fora dos cestos de lixo). Ao todo, são 1.806 funcionários que trabalham em três turnos: 445 na administração, 346 nas lojas, quatro mocinhas no balcão de informações e a filosófica atendente Rosângela, que odeia quando não olham para ela e lhe cospem ordens, números ou 6
interrogações sem sentido. Para muitos, a rodoviária é um grande shopping center visto com os olhos de um contador: massas numéricas e estatísticas de porcelana. Mas talvez seja um lugar onde mocinhas sobem as escadas do embarque sem olhar pra trás, homens ultrapassam a linha amarela para abraçar parentes e um velhinho cochila em silêncio, em cima de sua bengala. No terminal, o usuário pode polir sapatos em máquinas elétricas (sala vip) ou derrapar em salgadinhos Chipola (plataforma 82). Pode comprar cisnes dourados na tabacaria ou recolher latinhas de alumínio dos cestos de lixo. Na rodoviária do Tietê, é normal colocar tigres de pelúcia na cabeça, dançar em trenzinhos de Conga, cumprimentar os lojistas todos os dias às sete em ponto, carregar carne-seca com vermes brancos ou sentar-se em um dos 1.200 bancos de espera para tirar os sapatos (aliviado). Pode-se dançar com uma bolacha de maisena na mão ou mostrar a fralda para os transeuntes. Pode-se ir para Piracanjuba ou para Morro do Chapéu, pode-se voltar de Buenos Aires e depois tomar um banho, após deixar dez reais para garantir a toalha. Também é possível pesar os volumes na Viação São Geraldo, pedir ajuda aos carregadores de amarelo — e, se você for freira e isto for mesmo necessário, embarcar sua prancha de surfe sem problemas. Nos corredores do Tietê, alguns aceleram o passo mesmo sem ter motivo e perguntam aos gritos onde fica o guichê da Cometa, mas também é permitido parar em algum canto e ficar ali, de bobeira, conversando com o Papai Noel ou com uma senhora de blusa de lã que diz (de repente) que a Marinha Britânica está vindo buscá-la.
A
rodoviária do Tietê é uma cidade de chicletes abandonados, de pessoas com pressa e de coisas perdidas.
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CACHTÁNCA ANTON TCHEKHOV
mau comportamento
U
ma cadela nova, ruiva, mistura de bassê com viralata, muito parecida de focinho com uma raposa, corria de um lado para outro pela calçada e olhava para os lados, inquieta. De quando em vez ela parava e, chorando, levantando ora uma, ora outra pata enregelada, tentava entender: como lhe acontecera perder-se desse jeito? Lembrava-se perfeitamente de como passara o dia e como, afinal, viera parar naquela calçada desconhecida. O dia começara com o seu dono, o marceneiro Lucá, colocando o gorro, metendo debaixo do braço uma certa coisa de madeira embrulhada num lenço vermelho e gritando: — Cachtánca, vamos! Ouvindo o seu nome, a mestiça de bassê com viralata saiu de sob o banco de marceneiro onde dormia sobre cavacos, espreguiçou-se gostosamente e correu atrás do dono. Os fregueses de Lucá moravam muito longe, tão longe que, antes de chegar à casa de cada um, o marceneiro tinha que entrar várias vezes em algum botequim, a fim de renovar as forças. Cachtánca lembrava-se de ter se comportado de maneira muito inconveniente pelo caminho. De alegria por ter sido levada a passear, ela pulava, atirava-se latindo sobre os bondes de burro, invadia os pátios e perseguia os cachorros. Volta e meia o marceneiro a perdia de vista, parava e gritava com ela, enfezado. Uma vez até, com ar de ferocidade na cara, ele juntou na mão sua orelha de raposa, puxou-a e pronunciou pausadamente: — Por que não rebenta logo, peste! Após visitar os fregueses, Lucá fez uma breve visita à irmã, onde bebeu e petiscou 9
alguma coisa. Da casa da irmã, dirigiu-se à casa de um encadernador, seu conhecido; do encadernador para o botequim, do botequim para a casa do compadre, e assim por diante. Em suma, quando Cachtánca foi parar na calçada desconhecida, já estava anoitecendo, e o marceneiro se encontrava numa bebedeira total. Agitava os braços e balbuciava, entre suspiros profundos: — Em pecado minha mãe me gerou no seu ventre... Ai, meus pecados, meus pecados! Agora caminhamos pelas ruas, olhamos para as luzinhas, mas, quando morrermos, arderemos no fogo do inferno! Ou então assumia um tom brincalhão, chamava Cachtánca e dizia: — Você, Cachtánca, é um bicho-inseto. Comparada a um homem, é o mesmo que um carpinteiro comparado a um marceneiro... Enquanto conversava assim com ele, de repente estrugiu uma música. Cachtánca olhou para trás e viu um regimento de soldados marchando direto para ela. Não suportando a música que lhe irritava os nervos, ela começou a ganir e a uivar. Para seu grande espanto, o marceneiro, em vez de se assustar, ganir e latir, abriu um largo sorriso, aprumou-se em posição de sentido e bateu continência com os cinco dedos espalmados. Vendo que seu dono não protestava, Cachtánca pôs-se a uivar ainda mais alto e, fora de si, precipitou -se atravessando a rua para a calçada oposta.
Q
uando voltou a si, a música já não tocava mais e o regimento não estava mais lá. Tornou a atravessar a rua para o lugar onde tinha deixado o dono, mas, ai!, o marceneiro já não estava mais ali. Correu para a frente, depois para trás, mas do marceneiro nem sombra, como se a terra o tivesse engolido... 10
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Cachtánca pôs-se a farejar a calçada, na esperança de encontrar o dono pelo cheiro das suas pegadas, mas um patife qualquer já passara por ali com galochas de borracha novas, e agora todos os odores mais finos se misturavam com o ativo fedor da borracha, de modo que não dava para distinguir nada. Cachtánca corria de um lado para outro e não encontrava o dono, e nesse meio-tempo já começava a escurecer. Dos dois lados da rua acendiam-se os lampiões, e luzes surgiam nas janelas das casas. Uma neve graúda e fofa caía e pintava de branco o calçamento, os lombos dos cavalos, os gorros dos cocheiros, e, quanto mais escurecia o ar, mais brancos ficavam os objetos. Junto a Cachtánca, fechando-lhe o campo de visão e empurrando-a com os pés, fregueses desconhecidos passavam sem parar para cá e para lá. (Cachtánca dividia toda a humanidade em duas partes desiguais: os patrões e os fregueses; e havia entre as duas categorias uma diferença substancial: os primeiros tinham o direito de espancá-la, mas, quanto aos segundos, ela é que tinha o direito de abocanhar-lhes a barriga da perna.) Os fregueses estavam com muita pressa e não lhe prestavam nenhuma atenção. Quando escureceu de todo, Cachtánca foi tomada de desespero e terror. Encolheu-se junto à entrada de um prédio e pôs-se a chorar amargamente. Um dia inteiro de andanças com Lucá a deixara fatigada, com as patas e as orelhas entanguidas de frio e, ainda por cima, com uma fome horrível. Durante o dia todo, ela só tivera duas ocasiões de mastigar alguma coisa: em casa do encadernador, onde comera um pouco de cola, e num dos botequins, junto ao balcão, onde encontrara uma casquinha de lingüiça, e foi só. Se ela fosse uma pessoa, decerto pensaria: “Não, viver assim é impossível! Só mesmo me matando com um tiro!”.
um desconhecido misterioso
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as ela não pensava em nada e só chorava. Quando a neve macia e fofa cobriu-lhe completamente as costas e a cabeça e ela mergulhou numa sonolência pesada, de repente a porta da entrada deu um estalo, rangeu e bateu-lhe no lombo. Cachtánca levantou-se de um salto... Pela porta aberta saiu um homem desconhecido, pertencente à categoria dos fregueses. Como Cachtánca tivesse soltado um gemido e se enroscado entre as suas pernas, o homem não pôde deixar de reparar nela. Ele inclinou-se e perguntou: — Cachorra, de onde você surgiu? Eu te machuquei? Oh, coitada, coitada... Vamos, não se zangue... Desculpe. Cachtánca encarou o desconhecido através dos flocos de neve grudados às suas pestanas e viu diante de si um homenzinho baixote e gorducho, de cara bochechuda, de cartola e peliça aberta. — Então, por que está ganindo? — continuou ele, varrendo- lhe a neve das costas com um dedo. — Onde está o seu dono? Decerto você se perdeu? Pobre cadelinha! E o que vamos fazer agora? Percebendo uma nota bondosa e cordial na voz do desconhecido, Cachtánca deu-lhe uma lambida na mão e ganiu ainda mais tristemente. — Mas você é boazinha, engraçada!.. — disse o desconhecido. — Tal qual uma raposinha! Está bem, fazer o que, venha comigo! Quem sabe você até servirá para alguma coisa... Vamos, fiuuu! Ele estalou os lábios e acenou para Cachtánca com um gesto que só podia significar uma coisa: “Vamos!”. E Cachtánca o seguiu. 13
N
ão mais de meia hora depois, ela já estava sentada no chão de um cômodo espaçoso e claro e, com a cabeça inclinada para um lado, fitava o desconhecido, que jantava, sentado à mesa. Ele comia e atirava-lhe uns pedacinhos. Primeiro, deu-lhe pão e uma casquinha verde de queijo, depois um pedacinho de carne, meio pastelzinho, uns ossos de frango, e ela, esfaimada, devorou tudo tão depressa que nem deu para sentir o gosto. E, quanto mais ela comia, mais forte sentia a fome. — Mas como te alimentam mal os teus donos! — dizia o desconhecido, observando a ânsia feroz com que ela engolia os pedaços, sem mastigar. — E como estás magra! Pele e ossos... Cachtánca comeu muito, mas não se fartou, só se embriagou de tanto comer. Depois do jantar, aboletou-se no meio da sala, espichou as patas e, sentindo no corpo todo um agradável torpor, abanou o rabo. Enquanto seu novo dono, refestelado na poltrona, fumava um charuto, ela abanava o rabo e resolvia um problema: onde era melhor? Com este desconhecido, ou com o marceneiro? O desconhecido vive num ambiente pobre e feio: além de poltronas, sofá, lâmpada e tapete, ele não tem nada, e a sala parece vazia; já a casa do marceneiro está atulhada de coisas: ele tem uma mesa, um banco alto, um montão de cavacos, plainas, formões, serras, uma gaiola com passarinho, uma tina... A casa do desconhecido não tem cheiro de nada, já na casa do marceneiro paira sempre uma névoa e reina um cheiro maravilhoso de cola, verniz e aparas de madeira. Em compensação, o desconhecido leva uma grande vantagem — dá muita comida e, justiça lhe seja feita, quando Cachtánca estava sentada diante da mesa, fitando-o comovida, ele não lhe deu um só golpe, não bateu os pés e não berrou nem uma vez: “Passa fora, maldita!”. 14
A
cabando de fumar o charuto, o novo dono saiu e voltou logo, trazendo nas mãos um colchãozinho. — Ei, cachorra, vem cá! — disse ele, colocando o colchãozinho no chão, num canto junto ao sofá. — Deita aqui! Dorme! Em seguida, apagou a luz e saiu. Cachtánca acomodou-se no colchãozinho e fechou os olhos. Da rua ouviam-se latidos e ela quis responder-lhes, mas foi dominada por uma súbita tristeza. Lembrou-se de Lucá, de seu filho Fediúchca, do lugarzinho aconchegante debaixo do banco do marceneiro. Lembrou-se de que, nas longas noites de inverno, quando o marceneiro trabalhava ou lia o jornal em voz alta, Fediúchca costumava brincar com ela. Arrastava-a pelas patas traseiras de sob o banco e executava com ela truques tais que a deixavam enxergando verde e com dores em todas as juntas. Obrigava-a a caminhar nas patas traseiras, fingia que ela era um sino, isto é, puxava-a com força pelo rabo, fazendo-a ganir e latir, forçava-a a cheirar tabaco. Especialmente torturante era o truque seguinte: Fediúchca amarrava um pedacinho de carne na ponta de uma linha e dava-o a Cachtánca, para depois, quando ela engolia a carne, puxá-la de volta do seu estômago, rindo às gargalhadas. E, quanto mais vívidas eram as recordações, mais altos e tristes eram os ganidos de Cachtánca. Mas logo o cansaço e o calor sobrepujaram a saudade. Ela começou a adormecer. Pela sua imaginação corriam cachorros; passou também um poodle felpudo que ela vira na rua, cego de um olho e com tufos de pêlos no focinho; depois, de repente, ele próprio se cobriu de pêlos espessos, pôs-se a latir alegremente e apareceu ao lado de Cachtánca. Cachtánca e ele cheiraram-se cordialmente os focinhos e saíram a correr pela rua.
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P I S C I N A S
V A L T E R H U G O M Ã E
N
ado à sapo, não sei nadar de outro modo. Saio pouco do lugar, fico a espanar a água e não tiro os óculos. Quero dizer, como ainda não tenho uns de mergulho, graduados, uso os meus óculos de sempre, para distinguir entre o que é a água da piscina e o que são os azulejos azuis muito enganadores. Claro, ficam todos a olhar para o balofo que nada mal, mesmo à sapo, e que vai de óculos de leitura. Não gosto nada. Redobro a coragem para estas coisas, não vou desistir de fazer umas piscinas, porque tenho os ossos todos a precisar e porque nadar espiritualiza-me a vidinha de uma ponta à outra. No entanto, mesmo que muita gente não leia os meus livros, passar a palavra é como fogo ateado. Ao fim de umas quantas idas à piscina, já há quem me cumprimente de senhor doutor a senhor Hugo ou senhor escritor. Medem os meus calções justinhos, ficam a fazer contas à minha barriga, ao quanto sou ou não peludo, às minhas pernas consistentes. Enfim. Essas coisas em que se repara e não se comentam. Olham-me de cima abaixo, de perto a longe, da verdade à fantasia, para tirarem nabos do púcaro e ficarem regalados de cusca satisfação.
E
m agosto retiraram as cortinas dos chuveiros individuais nos balneários das piscinas de Vila do Conde. Não foi boa ideia. Acredito que aconteça por causa dos putos, que são aos montes e correm a fazer confusão por todo o lado 17
e alguns devem fazer asneiras e sei lá que mais. A verdade é que não há modo de, em agosto, se tomar ali um duche com privacidade. Percebi-o muito imediatamente. Escutei, numa voz falsamente baixinha, um miúdo dizer: ó pai, eu vi a pila do escritor. Parei de ensaboar a cabeça e olhei na direção da passagem, ali por onde os demais andam a entrar e a sair dos duches. Cinco segundos depois, vejo a carantona de um barbudo qualquer a espreitar. Era o pai do miúdo. E o miúdo, meio orgulhoso pela notícia, também apareceu mais atrás, a tiritar. Que o miúdo se tenha espantado com ver um escritor nu, ainda posso entender, agora, que o pai tenha interesse em chegar ao café e discutir o assunto da minha nudez na piscina de agosto já é outra coisa. A partir daí, tomo duche de costas para quem passa. Já sei que não vai faltar quem diga ter visto o rabo do escritor. Os miúdos nas piscinas não pensam. Ficam algaraviados. Atravessam-se à frente de qualquer cidadão, afundam-se à bruta em mergulhos de chapa, gritam histéricos, parecem matar e morrer. Há sempre alguém que explica que o lado onde são colocadas as linhas de boias são para natação contínua, e que a mais de metade da piscina livre é para brincadeiras, pinchos, assassinatos e suicídios. Pouco adianta. Em três minutos os miúdos já foram e já voltaram, porque fugir uns dos outros é urgente, e o mundo pode acabar nessa urgência que estará muito justa a consequência. Uns senhores disseram-me que a nadar sou uma vergonha. Agradeci. Eram uns velhotes com a mania, devem ter sido desportistas em 1922. Numa disputa tolinha, começaram a fazer corridas para chegarem antes de mim. Depois de uma hora, comentaram que eu nadava de óculos porque ia lentinho e dava tempo para ler livros. Diziam isso e punham-se
com aquelas coisas: só estamos a brincar, é uma brincadeira. E eu, meio afogado com muita água nas orelhas, que detesto, estava a achar que me iam dar os nervos. Antes de irem embora, foram cumprimentar-me. Olhe, muito esforço e paciência. Você pode aprender, que até os bebés aprendem. Quando saí da água, a encolher a barriga e a caminhar rápido mas discreto para os balneários, uma senhora, que estava toda aeróbica aos saltos para aquecer, veio confessar-me que achava que a autarquia devia fazer uma piscina para pessoas assim: escritores e doutores, porque ela era doutora e, muitas vezes, sentia-se incomodada pelas pessoas sem cultura que por ali vão. Normalmente, com uma conversa destas fico um bicho. Mas estava a encolher muito a barriga, não tinha ar suficiente nos pulmões, e os meus calções são muito destapados, aquilo não me pareceu boa maneira de me enfurecer. Sorri amarelo e fui embora. Nos balneários, ao fim de meia hora, ainda lá estavam os dois velhotes marretas, vestidinhos de engomados e a rirem de coisas tolas. Achei-os mais normais. Disse-lhes que ali, em pé como as pessoas e não às ondas como os peixes, queria ver se tinham treta. E disse-lhes que uma senhora exigia piscinas para escritores e doutores, só para se livrar de malcriadões como eles. Ficámos a rir. Até desencolhi a barriga. Queria lá saber.
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uando volto à piscina, penso nestas coisas. É costume nadar ainda pior para me rir. Tento não beber água. Já me explicaram que aquela conversa de o chichi se tornar uma mancha azul por causa do cloro é mentira. Toda a gente adulta sabe disso. E pensa-se que toda a gente adulta faz ali chichi e mais muita gente criança que, sem tempo e com as urgências, acaba por se descuidar. É tudo um circo e um certo perigo.
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GEORG ES BATAI L L E
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uma espelunca de bairro em Londres, lugar excêntrico dos mais sujos, no subsolo, Dirty estava bêbada. Estava bêbada no último grau, eu estava perto dela (minha mão ainda tinha um curativo, conseqüência de um ferimento de copo quebrado). Naquele dia, Dirty usava um vestido de noite suntuoso (mas eu estava mal barbeado, o cabelo em desalinho). Ela esticava as longas pernas, presa de uma convulsão violenta. A espelunca estava cheia de homens cujos olhos tornavam-se muito sinistros. Aqueles olhos de homens perturbados faziam pensar em charutos apagados. Dirty apertava as coxas nuas com as duas mãos. Gemia mordendo uma cortina suja. Estava tão bêbada quanto bonita: revirava os olhos espantados e furiosos fixando a luz do gás. — O que há? — gritou ela. Ao mesmo tempo, teve um sobressalto, semelhante a um canhão que atira numa nuvem de poeira. Os olhos saltados, como um espantalho, veio-lhe uma torrente de 21
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lágrimas. Troppmann! — gritou de novo. Ela me olhava abrindo olhos cada vez maiores. Com suas longas mãos sujas, acariciou minha cabeça de ferido. Minha testa estava úmida de febre. Ela chorava como se vomita, com uma louca súplica. Soluçava tanto que seu cabelo ficou molhado de lágrimas. Em todos os sentidos, a cena que precedeu essa orgia repugnante — em conseqüência da qual ratos devem ter rondado ao redor de dois corpos espalhados no chão — foi digna de Dostoievski... A embriaguez nos havia lançado à deriva, em busca de uma sinistra resposta para a mais sinistra obsessão.
A
ntes de sermos totalmente atingidos pela bebida, tínhamos sabido encontrar o caminho de um quarto do Savoy. Dirty havia notado que o ascensorista era muito feio (apesar de seu belo uniforme, parecia um coveiro). Ela me disse isso rindo vagamente. Já falava arrevesado, falava como uma mulher bêbada: — Você sabe — a cada instante interrompia-se bruscamente, sacudida pelo soluço — eu era garota... me lembro... vim aqui com minha mãe... aqui... há uns dez anos... então, devia ter doze anos... Minha mãe era uma velha alta e pesada tipo rainha da Inglaterra... Então, justamente, saindo do elevador, o ascensorista... aquele ali... — Qual?... aquele ali?... — Sim. O mesmo de hoje. Ele não ajustou o elevador... o elevador ficou muito alto... ela ficou estendida de comprido... fez pluf... minha mãe...
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Dirty estourou de rir e, como uma louca, não conseguia mais parar. Procurando penosamente as palavras, disse-lhe: — Não ria mais. Você nunca vai terminar sua história. Ela parou de rir e se pôs a gritar: — Ah! Ah! estou ficando idiota... Não, não, termino minha história... minha mãe, ela não se mexia... a saia dela levantada... sua saia comprida..., como uma morta... não se mexia mais... eles a ergueram para colocá-la na cama... ela começou avomitar... estava hiperbêbada... mas, um minuto antes, nem se notava... aquela mulher... parecia um dogue... dava medo... Envergonhado, disse a Dirty: — Gostaria de cair como ela diante de você... — Vai vomitar? — perguntou Dirty sem rir. Beijou-me na boca. — Talvez.
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ui para o banheiro. Estava muito pálido e, sem nenhuma razão, me olhei longamente num espelho: estava desagradavelmente despenteado, meio vulgar, os traços inchados, nem sequer feios, o ar fétido de um homem ao sair da cama. Dirty estava sozinha no quarto, um quarto amplo, iluminado por uma quantidade de lâmpadas no teto. Passeava andando reto em frente como se não fosse mais parar: parecia literalmente louca. Estava decotada até a indecência. Sob as luzes, seu cabelo loiro tinha um brilho insuportável para mim. Mas me dava uma impressão de pureza 25
— havia nela, até na sua devassidão havia uma candura tal que, por vezes, desejaria colocar-me aos seus pés: tinha medo dela. Via que não agüentava mais. Estava a ponto de cair. Começou a respirar mal, a respirar como um animal: sufocava. Seu olhar mau, acossado, teria me feito perder a cabeça. Ela se deteve: devia estar retorcendo as pernas sob o vestido. Com certeza ia delirar. Tocou a campainha para chamar a camareira.
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epois de alguns instantes, entrou uma empregada bem bonita, ruiva, de pele fresca: pareceu sufocada por um cheiro raro em um lugar tão luxuoso — um cheiro de bordel de baixa categoria. Dirty não ficava mais em pé a não ser apoiada na parede: parecia sofrer horrivelmente. Naquele dia, não sei onde, cobrira-se de perfumes baratos mas, no estado indescritível em que se encontrava, exalava além disso um cheiro azedo de nádega e axila que misturado aos perfumes lembrava fedor farmacêutico. Tinha ao mesmo tempo cheiro de whisky, arrotava... A jovem inglesa estava embaraçada. — Você, preciso de você — fez Dirty —, mas primeiro é preciso ir buscar o ascensorista: tenho uma coisa para dizer a ele.
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empregada desapareceu e Dirty, que dessa vez cambaleava, foi sentar-se numa cadeira. Com muito custo conseguiu colocar no chão ao seu lado uma garrafa e um copo. Seus olhos tornavam-se pesados. Procurou-me com os olhos e eu não estava mais lá. Ficou desnorteada. Chamou-me com voz desesperada: — Troppmann!
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Não houve resposta. Ela se levantou e várias vezes quase caiu. Chegou à entrada do banheiro: me viu caído num assento, lívido e desfeito; na minha loucura, acabava de reabrir o ferimento da minha mão direita: o sangue que tentava estancar com uma toalha pingava rapidamente no chão. Dirty, diante de mim, olhava-me com olhos de animal. Enxuguei o rosto; assim, cobri de sangue a testa e o nariz. A luz elétrica se tornava ofuscante. Era insuportável: aquela luz esgotava os olhos.
B
ateram na porta e a camareira entrou acompanhada do ascensorista.
Dirty desabou na cadeira. Ao final de um tempo que me pareceu muito longo, sem ver nada e com a cabeça baixa, perguntou ao ascensorista: — Estava aqui em 1924? O ascensorista respondeu que sim. — Quero lhe perguntar: a velha alta... aquela que saiu do elevador e caiu, vomitou no chão... Lembra-se? Dirty falava sem ver nada, como se tivesse os lábios mortos. Os dois empregados, horrivelmente constrangidos, lançavam-se olhares oblíquos para interrogar-se e observar-se mutuamente. — Eu me lembro, é verdade, admitiu o ascensorista. (Esse homem de uns quarenta anos tinha um rosto de coveiro malandro, mas aquele rosto parecia ter marinado no azeite, à força de untuosidade.) — Um gole de whisky? — perguntou Dirty. Ninguém respondeu, os dois personagens 27
estavam em pé com deferência, esperando penosamente.
D
irty pediu sua bolsa. Seus movimentos estavam tão pesados que ela passou um longo minuto antes de enfiar a mão no fundo da bolsa. Quando encontrou, jogou um pacote de notas no chão dizendo simplesmente: — Dividam... O coveiro achava uma ocupação. Apanhou aquele pacote precioso e contou as libras em voz alta. Eram vinte. Entregou dez à camareira. — Podemos nos retirar? — perguntou depois de um tempo. — Não, não, ainda não, por favor, sentem-se. Ela parecia sufocar, o sangue lhe subia ao rosto. Os dois empregados tinham ficado de pé, observando grande deferência, mas também ficaram vermelhos e angustiados, em parte por causa da importância espantosa da gorjeta,. em parte por causa de uma situação inverossímil e incompreensível. Muda, Dirty mantinha-se na cadeira. Passou-se um longo momento: a gente poderia ouvir os corações no interior dos corpos. Avancei até a porta, o rosto lambuzado de sangue, pálido e doente, estava com soluço, a ponto de vomitar. Os empregados terrificados viram um filete de água correr ao longo da cadeira e das pernas de sua bela interlocutora: a urina formou uma poça que se espalhou pelo tapete enquanto um ruído de entranhas relaxadas se produzia pesadamente sob o vestido da moça, transtornada, escarlate e retorcida sobre a sua cadeira como um porco sob uma faca... 28
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camareira, enojada e trêmula, precisou lavar Dirty, que parecia ter voltado a ficar calma e feliz. Deixava que a limpassem e ensaboassem. O ascensorista arejou o quarto até que o cheiro desapareceu completamente. Em seguida, fez um curativo para estancar o sangue do meu ferimento. Todas as coisas estavam em ordem de novo: a camareira acabava de arrumar a roupa de cama. Dirty, mais bonita que nunca, lavada e perfumada, continuava a beber e estendeu-se na cama. Fez o ascensorista sentar-se. Ele sentou-se perto dela numa poltrona. Naquele momento a embriaguez a fez abandonar-se como uma criança, como uma menina. Mesmo quando não dizia nada, parecia abandonada. Por vezes, ria sozinha. — Conte-me — disse afinal ao ascensorista —, depois de tantos anos que está no Savoy, deve ter visto coisas horrorosas. — Oh, nem tanto — respondeu ele —, não sem terminar de engolir um whisky, que pareceu animá-lo e colocá-lo à vontade. Em geral, os clientes são bem corretos aqui. — Oh, corretos, não é? É uma maneira de ser: como minha falecida mãe que deu com a cara no chão na sua frente e vomitou nas suas mangas... E Dirty arrebentou de rir de uma maneira dissonante, no vazio, sem encontrar eco. Prosseguiu: — E sabe por que eles são todos corretos? Têm medo, ouça, eles batem o queixo, é por isso que não ousam mostrar nada. Sinto isso porque eu também tenho medo, 29
mas sim, você entende, meu rapaz... mesmo de você. Morro de medo... — A senhora não quer um copo d'água? — perguntou timidamente a camareira. — Merda! — respondeu brutalmente Dirty, mostrando-lhe a língua. — Estou doente, eu, entenda, e tenho uma coisa na cabeça, eu. Depois: — Vocês não se importam, mas isso me enoja, ouviram?
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uavemente, com um gesto, consegui interrompê-la.
Eu a fiz beber mais um gole de whisky, dizendo ao ascensorista: — Confesse que, se dependesse de você, a estrangularia! — Você tem razão — ganiu Dirty —, olhe essas enormes patas, essas patas de gorila, é peludo como colhões. — Mas — protestou o ascensorista, horrorizado, que se levantara —, a senhora sabe que estou a seu serviço. — Mas não, idiota, acredite, não preciso dos teus colhões. Estou com náuseas. Arrotando, soltou uma risada. A camareira correu e trouxe uma bacia. Ela parecia o próprio servilismo, perfeitamente honesta. Eu estava sentado, inerte, lívido e bebia cada vez mais. — E você, aí, a moça honesta — fez Dirty, desta vez dirigindo-se à camareira —, você se masturba e olha bules de chá nas vitrinas para montar casa; se eu tivesse um traseiro como o seu, mostraria pra todo mundo; sem isso, um dia a gente morre 30
de vergonha, a gente encontra o buraco se coçando. De repente, assustado, eu disse à camareira: — Jogue-lhe um pouco de água no rosto... você está vendo que ela está alterada.
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camareira imediatamente se apressou. Pôs uma toalha molhada na testa de Dirty. Penosamente, Dirty foi até a janela. Viu lá embaixo o Tâmisa e, ao fundo, algumas das construções mais monstruosas de Londres ampliadas pela obscuridade. Vomitou rapidamente ao ar livre. Aliviada, chamou-me e eu segurei sua testa olhando o imundo esgoto da paisagem, o rio e as docas. Na vizinhança do hotel, edifícios luxuosos e iluminados surgiam com insolência. Eu quase chorava olhando Londres, de tão perdido de angústia. Lembranças de infância, como as meninas que brincavam comigo de diabolô ou de pigeon vale associavam-se, enquanto respirava o ar fresco, à visão das mãos de gorila do ascensorista. Aliás, o que acontecia parecia-me insignificante e vagamente cômico. Eu mesmo, estava vazio. A custo imaginava preencher esse vazio com a ajuda de novos horrores. Sentia-me impotente e aviltado. Nesse estado de obstrução e de indiferença, acompanhei Dirty até a rua. Dirty me arrastava. No entanto, não teria podido imaginar uma criatura humana que fosse um destroço mais ao sabor da corrente. A angústia que não deixava o corpo distendido um instante é, aliás, a única explicação para uma facilidade maravilhosa: conseguíamos satisfazer qualquer desejo, desprezando as barreiras estabelecidas, tanto no quarto do Savoy como na espelunca, onde podíamos.
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W E R N
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terça-feira, 03.12.74
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ificuldades para passar a noite. Quando no escuro tentava arrombar uma casa, perdi minha bússola, que caiu do cinto sem eu perceber. Tinha me apegado a ela desde o Saara, foi uma perda dolorosa. No alto do morro, na boca da noite, dei com um grupo de homens que esperavam à beira do mato, estranhamente imóveis, de costas para mim. As serras elétricas ainda funcionavam no bosque, embora o horário de trabalho já tivesse terminado. Ao me aproximar, percebi que se tratava de detentos destacados para cortar lenha, esperando a condução. Também estava ali o inspetor, todo de verde . Mais tarde, várias peruas Volkswagen gradeadas me ultrapassaram. Sento-me à beira do Reno. Tomei a balsa em Kappel, águas calmas, tempo calmo, quase ninguém. Está nublado, não dá para ver os Vosgos. À noite, dormi em Münchweier, num celeiro no meio da cidade. Só bem em cima ainda havia um pouco de palha, armazenada ali já há uns dez anos, com certeza. Estava empoeirada, nem dava para sacudir, um péssimo leito. Na casa em frente não tinha nin-
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guém, porém mais tarde abriram a porta e vieram pegar madeira debaixo de onde eu estava. Escutando com atenção, tive certeza de que quem recolhia madeira era de idade, um homem, com mais de setenta anos, e o que recolhia era madeira.
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rande número de corvos voa para o sul. O gado, inquieto, sapateia no carreto. Para mim, o Reno se parece com o Nanay, embora não tenha nada que lembre o Nanay. Queria que a balsa tivesse demorado mais para atingir a outra margem, a gente precisa dar conta dessa travessia do rio. Apenas uns três ou quatro carros vão comigo, a água está marrom-clara, nenhum outro barco à vista. Aqui, as cidades dormem, mas não estão mortas. Telefonei para M., problemas. Penso muito em Deleau, Dembo, Wintrebert e Claude. Obtive o novo número da Eisnerin. Faltam: uma bússola, pilha para a lanterna e pomada; fora isso, tudo em ordem. Está bem quente. Pardais e crianças em Boofzheim. Digo: sede. Comprei leite na loja, já é o segundo litro hoje. As crianças, aqui no self-service, 33
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disfarçam, passam a mão nos gibis e vão correndo ler no chão, num cantinho onde a caixa não as possa enxergar pelo espelho redondo. Embriago-me de leite. Galos cantam, portas batem, sol; paro para descansar no banco em frente à igreja. Terreno plano, à minha volta, só gralhas gralhando. Uma hora desconfio seriamente que perdi o juízo, pois ouço tantas gralhas e vejo tão poucas. Silêncio mortal ao redor, até onde posso ouvir, mas lá vem o barulho das gralhas. O contorno vaporoso da Cadeia dos Vosgos começa a se desenhar. Na planície, dois parques de diversão, com roda-gigante, trem fantasma, castelo medieval, tudo completamente deserto e fechado, como que definitivamente. No segundo parque, há também um zoológico: um laguinho com gansos e, ao fundo, um cercado de corças. Um trator transporta feno. Os monumentos aos mortos de guerra são minha pousada. As camponesas conversam muito entre si, os camponeses estão mortos de cansaço. Toda hora vejo ônibus desativados. Então digo: prosseguir.
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m Bonfeld, as crianças de um jardim da infância me rodearam, achando que eu era francês. Vai ser difícil um lugar para dormir. No trecho final até Barr — um par de quilômetros — uma mulher me deu carona; até que não foi mal, pois pude comprar uma bússola antes de se fechar o comércio. É do tipo cuja agulha boia num líquido, só que ainda não ganhou minha amizade. Na mata pelada, os operários cortaram ramos e fizeram uma fogueira. Também amarraram muitos ramos em feixes. Mesmo aqui na cidade as gralhas continuam gralhando na minha cabeça. Pela primeira vez, fora o cansaço, não tenho nenhuma reclamação quanto às pernas; de vez em quando, talvez, um probleminha no joelho esquerdo. O tendão de Aquiles direito já não tem mais aquele aspecto crítico, des35
de que comecei a usar toda a esponja que tinha em volta do tornozelo, no lugar onde a bota dobra, e a amarrar o cano com o máximo cuidado. Preciso lavar a camisa e a camiseta hoje: estão com um cheiro de corpo tão forte, que me obrigam a fechar o casaco quando encontro gente. Meu consumo de líquido é muito alto: hoje, dois litros de leite, meio quilo de mexerica, e logo depois já estava de novo com tanta sede, que a saliva ficou pegajosa, grossa e branca como a neve. Quando me aproximo de outras pessoas, enxugo os cantos da boca, porque tenho a sensação de estar espumando. Cuspi no rio Ill, e o cuspe flutuou como um chumaço compacto de algodão. Há momentos em que a sede fica tão grande, que só penso em termos de sede: a fazenda no fim da curva terá certamente um poço; por que esse bar está fechado justo hoje, terça-feira, quando eu precisava com mais urgência de uma cerveja ou uma coca? Esta noite mesmo vou lavar a camiseta — é a que Nuber, do Offenbacher Kickers, usou em sua partida de despedida. Talvez siga pelo rio Aube, não sei onde ouvi dizer que o Aube é bonito. O senso de humor da gente daqui provém de milênios de vida sedentária. Algo me diz que é melhor a Alsácia pertencer à França.
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imagem daquele monte de lixo na planície quer me sair da cabeça de jeito nenhum. Vi-o de longe e fui andando cada vez mais depressa, até ficar como que tomado por um medo mortal, pois não queria que um carro me ultrapassasse antes de eu chegar lá. Alcancei o monte de lixo ofegante da correria e demorei um bom tempo para me restabelecer, embora o primeiro carro só tenha passado alguns minutos depois. Ali perto, dentro de uma fossa de água suja e gelada, havia uma carroceria de automóvel, com as portas, o cofre e o porta-malas escancarados. A água alcançava as janelas. Nem sinal do motor. Tenho 36
visto tantos ratos, já perdemos a noção de quantos há sobre a Terra, é incalculável. Os ratos chiam baixinho no capim rasteiro. Só quem anda os vê. Nos campos cobertos de neve, eles cavaram túneis entre a grama e o gelo; onde a neve já derreteu, pode-se ver os caminhos sinuosos. É possível fazer amizade com os ratos.
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uma aldeia antes de Stotzheim, estava sentado nos degraus da igreja, com os pés extenuados e o peito oprimido pelas preocupações, quando na escola ao lado uma janela se abriu — uma criança recebera a ordem de arejar a sala. De lá comecei a ouvir uma jovem professora vociferar com os alunos. Para não perceberem que uma testemunha desses gritos horrendos estava sentada sob a janela, fui-me embora, apesar de mal conseguir colocar um pé na frente do outro. Caminhava em direção a uma chama, sempre diante de mim aquela chama, como uma parede incandescente. Era um fogo do frio, um tipo que produz frio em vez de calor, que transforma instantaneamente a água em gelo. O pensamento do fogo virando gelo resulta em gelo na velocidade do pensamento. A Sibéria nasceu exatamente desse modo, e as auroras boreais são os últimos lampejos do fenômeno. Eis como se explica. Certos sinais no rádio acusam isso, principalmente os breaks. Também na televisão, quando encerram a programação, o ruído e os pontos dançando significam o mesmo. Agora ouço uma ordem: recolher todos os cinzeiros e manter a linha! Os homens falam de caçada. A garçonete enxuga os talheres. No prato, a pintura de uma igreja. À esquerda, sobe um caminho, e nele move-se calmamente uma mulher em trajes típicos; a seu lado, já de costas para mim, uma moça. Desapareço com as duas na igreja. Na mesa do canto, uma criança faz a lição de casa. Toda hora pedem cerveja Mutzig. O patrão cortou o dedo no machado dias atrás.
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OAMOR ACA BA
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amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que ver-
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P A U L O M E N D E S C A M P O S tem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
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EDITORIAL P
aradoxalmente essa revista sofre novamente com o desafio da refeitura. Dessa vez acompanhada da dificuldade de realizarmos as coisas quando elas são destinadas a nós próprios. Para a RELIDA de outubro, mês do aniversário desse editor que vos fala, amigos queridos foram convidados a escolherem textos que foram por estes indicados para (re)publicação em forma de presente a ser lido e relido. Com isso, o que vinha sendo uma idiossincracia passa a ser uma colaboração, o que era uma mensagem de texto vira ligação. Característica explícita nesse número mas que se pretende rotina. Se tudo der certo.
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o amigo designer urbanista a introdução do livro da jornalista urbanista; de uma amizade complexa um texto simples do autor complexo; do autor que o amor não tinha — e nem tem — medo se dizer fã, piscinas; uma referência clara para o meu amigo que já é, no caso, uma referência clara; da amizade que caminha mesmo de forma distante, gelo; e da amizade que me ensinou onde o amor começa, onde o amor acaba. Desse conjunto de textos e de tudo o que se entende e não se entende deles é possível extrair o significado de um amigo. Uma revista que começou com a intenção de espalhar textos anonimamente mas logo se tornou uma forma de presentear quem quiser simplesmente ler naturalmente se transformou nisso: amizade e amor, por escrito.
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o encomendar especialmente a um amigo fotos para ilustrar essa edição, o objeto acabou se tornando ele próprio, mas sem rosto. Um amigo. 40
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AMIGOS
P M H R G J L
edro Ungaretti é designer urbano e ciclista sempre que pode. arina Barrio é arquiteta nascida em São Paulo e dona do gato Joaquim.
annah Uesugi é poeta escritora e designer nas horas de trabalho.
afael Zanatto é jornalista e está lançando seu primeiro romance. abriel Sepe é arquiteto nascido em Rio Claro e tenta parar de fumar.
oice Carvalho é Brand Development Analyst e uma grande amiga.
eandro Fontana é arquiteto paisagista e tirou as fotos que ilustram essa edição.
RELIDOS
V A V G W P P
anessa Barbara é jornalista e o livro publicado aqui foi fruto de seu tcc. nton Tchekov foi um escritor, dramaturgo e médico russo até 1904.
alter Hugo Mãe é português e estará no cinema com O Sentido da Vida.
eorges Bataille fundou as revistas Acéphale e Critique. Faleceu em 1962. erner Herzog é cineasta e documentarista alemão.
aulo Mendes Campos escrevia e editava sozinho o seu Diário da Tarde.
edro Botton vem sendo principalmente designer gráfico e edita esta revista. 42
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