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De craque a asteroide: o legado de Shunsuke Nakamura

Meia japonês fez sucesso na Europa e está muito perto de abandonar o futebol para se transformar em uma lenda

JAPÃO | POR FELIPE PORTES

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Uma falta bem cobrada é motivo de orgulho, seja na vida real, ou com um joystick nas mãos. Nesse quesito, poucos astros do futebol mundial revelaram ter um pé tão letal quanto o do japonês Shunsuke Nakamura. Sim, se você tem algo entre 20 e 30 anos, deve conhecê-lo pelos tempos de adolescência e vício nos games. Na vida real, o ídolo nipônico deixou uma marca indelével por conta de sua precisão, sua técnica ao bater na bola e por ser protagonista de uma das melhores seleções do Japão, em sua curta tradição futebolística.

A estrada foi longa na carreira de Shunsuke, que completou 40 anos em junho de 2018. Contratado pelo Jubilo Iwata em 2017, depois de bons anos como referência no Yokohama F Marinos, ele acena em seus últimos passos no esporte.

A trajetória começou em 1997, quando estreou pelo Marinos, superando várias situações adversas. Antes disso, vinha demonstrando pouca evolução física entre os juniores e optou por concluir sua formação em Kawasaki, fazendo viagens diárias com duração de mais de duas horas. Um sacrifício que valeu a pena: a opção visava a

garantia de melhores oportunidades na tentativa de se tornar jogador. Apesar da logística desfavorável, o período serviu para alimentar o sonho de entrar nos gramados como profissional. Entretanto, embora fosse tecnicamente inquestionável, Nakamura ainda precisava de fortalecimento muscular para suportar o nível de disputa.

Formado no colégio de Toko Gakuen, saiu direto para o elenco do Yokohama Marinos, seu time de coração. A ascensão meteórica coincidiu com a explosão do futebol japonês fora das fronteiras asiáticas. O sucesso de Hidetoshi Nakata, contratado pelo Perugia em 1999, abriu as portas para outros japoneses, sobretudo no mercado italiano. Para o meia, o momento também acabou ficando marcado por uma referência bizarra, completamente fora do futebol. Pouco antes da virada do milênio, o astrônomo Akimasa Nakamura batizou o asteroide 29986 (1999 XW37) como Shunsuke, em homenagem ao ídolo.

Nakamura jogou as Olimpíadas em 2000 e também esteve no elenco que conquistou a Copa da Ásia no mesmo ano. Plenamente credenciado a jogar fora do país, deu o salto definitivo em 2002, quando assinou com a Reggina. Outros italianos queriam contratá-lo, e houve até o rumor de que o Real Madrid queria contar com os serviços do meia. Em busca de espaço e de titularidade, buscava superar a grande decepção de ter ficado fora da Copa do Mundo daquele ano, realizada em solo asiático, com a divisão de sedes entre a Coreia do Sul e o Japão.

Em 2005, mais experiente, transferiu-se para o Celtic e encontrou o que seria o seu auge técnico e midiático. De repente, todos queriam saber quem era o mago da bola parada que vestia a camisa 25. A idolatria dos escoceses em relação a Nakamura certamente foi um termômetro de sua passagem por Glasgow. Tricampeão escocês, bicampeão da Copa da Liga Escocesa e vencedor da Copa da Escócia,

após quatro temporadas, saiu de Parkhead mil vezes maior do que chegou.

Euan Marshall, escocês radicado em São Paulo desde 2010 e torcedor do Celtic, guarda com afeto as lembranças de Shunsuke como motorzinho do time. Tem, inclusive, uma camisa com o nome do ídolo, o que para um fanático pelos Hoops talvez não seja um fato tão raro assim.

Divulgação / Celtic

“Ele jogou pelo clube em uma época perfeita para mim. Eu ia bastante ao estádio, assinava os canais, e acompanhava todos os jogos da temporada. Quando ele chegou, a percepção era que na Escócia não tínhamos jogadores daquele nível de qualidade. Percebemos a habilidade de Nakamura imediatamente. A torcida se empolgou com a chegada de um jogador tão especial. É verdade que ele demorou a jogar bem, porque não se adaptou ao ritmo e ao jogo escocês. Era muito leve. Mas ele começou a

fazer jogadas incríveis, então ficamos muito surpresos. Foi um gênio. Dava muito prazer em vê-lo jogar. Tenho muitas memórias dele, que foi o jogador mais habilidoso na Escócia por muitos e muitos anos. [Henrik] Larsson era incrível, muito inteligente, se esforçava bastante, e era habilidade pura, mas acho que só Brian Laudrup e Paul Gascoigne se comparam com Naka nos últimos 30 anos, dentro do Campeonato Escocês”, explicou.

O que encantou genuinamente os escoceses, contudo, foi a bola parada. Nisso, Shusuke era incomparável. “Tínhamos a consciência de que ele era muito bom cobrador de faltas. Reza a lenda que o técnico da época, Gordon Strachan, não viu Nakamura jogar antes de decidir pela contratação. Viu apenas um vídeo mostrado pelo empresário e se convenceu. Ele podia fazer qualquer coisa, então Strachan brincou que ele podia abrir latas de feijão com o pé esquerdo. Quando Nakamura virou a referência técnica do time, ficou muito confortável, e então ele vivia fazendo gols de falta. O segundo, e mais importante foi quando jogamos contra o Manchester United, e ele marcou nos minutos finais [na Liga dos Campeões da temporada 2006-07]. Foi incrível, de longe, não tinha jeito para o goleiro pegar. Ganhamos e fomos líderes do grupo, nos classificamos. Inclusive me machuquei comemorando aquele gol. Havia a percepção de que qualquer falta à meia-distância seria gol. Ele estava confiante, nós estávamos confiantes. Depois, Naka ainda fez um gol de título no Escocês, também de falta, contra o Kilmarnock. Ele foi mágico no Celtic!”, comentou Euan.

[Nota: A temporada 2006-07 foi a primeira vez que o Celtic conseguiu chegar à fase de mata-mata no novo formato da Liga dos Campeões]

Em certo ponto dos quatro anos de Celtic, Nakamura se transformou em uma entidade sobrenatural. É comum que estrangeiros notáveis estejam mais presentes na memória, mas no caso dele, a admiração transcendeu as quatro

linhas. Ele podia ter defendido um gigante continental, o Liverpool, em 2007, mas recusou a aproximação dos Reds por gratidão ao Celtic. Outro fato histórico foi o gol no Old Firm Derby contra o Rangers.

Chamado de “Expresso do Oriente” pelo jornal The Scotsman, o atleta superou a descrença em torno de sua contratação e, com louvor, saiu aclamado pelas arquibancadas quando partiu para a Espanha, onde viveu um breve interlúdio com o Espanyol. A distância da família, contudo, pesou para fazer da estadia na Catalunha um pesadelo. O despertar veio em 2010, com um retorno repentino ao Yokohama F Marinos. Perto da esposa e dos filhos, reviveu o sonho de jogar pelo clube de infância e disputar sua segunda Copa do Mundo, já que havia disputado o certame de 2006.

Foram alguns meses de sofrimento até o Mundial, objetivo maior de Shunsuke ao aceitar o convite do exclube. Visando entrar em forma, acabou mofando no banco durante a Copa na África do Sul e se preparou para a reta final de sua carreira, aos 32 anos. Maestro do time nos anos seguintes, chegou perto de conquistar a J-League em 2013, com desempenho suficiente para isso.

Entretanto, na reta final, Nakamura sofreu uma lesão no joelho e ficou de fora. Por consequência, os jogadores sentiram a pressão da ausência de seu capitão e perderam três das quatro partidas restantes, entregando o título de bandeja para a Sanfrecce Hiroshima. Bastava apenas ter vencido o Albirex Niigata (em casa) ou o Kawasaki Frontale para confirmar a conquista.

Apesar do tropeço inesquecível, o ídolo foi eleito o melhor jogador da temporada japonesa. E mais: houve vingança contra a Sanfrecce, na final da Copa do Imperador, abrindo o ano de 2014 com uma vitória por 2 a 0. Recuperado, Nakamura jogou normalmente e deu a volta por cima. O

problema é que a alegria durou pouco. No mesmo ano, o Marinos foi adquirido pelo City Group, conglomerado que comanda, entre outras equipes mundo afora, o Manchester City. A constante pressão por resultados e a intromissão dos dirigentes na montagem do elenco incomodou Nakamura, que se desgastou ao ponto de ir embora brigado com a diretoria, em 2017.

Recordista em gols de falta na J-League e jogador que mais vestiu a braçadeira de capitão na equipe de Yokohama, despediu-se definitivamente de sua cidade natal alegando que não conseguia mais ver o futebol como antes, por conta das exigências da nova gestão.

“Preciso seguir o que diz a minha alma, encarar o futebol de maneira sincera até o momento em que eu parar de jogar. Quero fazer isso com a certeza de que estou aproveitando a experiência e tendo prazer. Decidi ir embora depois de muito deliberar a respeito, e estou magoado por deixar o Marinos. Meu coração estava certo de que eu iria me aposentar aqui, e eu nem pensava em ir embora, um ano atrás. Não queria deixar o número 10 na camisa, que tanto gosto. Mas todos os dias senti que algo estava errado.

Tive de lidar com isso como capitão, mas isso acabou me tirando tempo para me dedicar ao futebol, propriamente dito. Quero parar de jogar de uma maneira que não me cause arrependimento ou exaustão. Quando eu penso em um lugar que me faça sentir o futebol do jeito que gosto, creio que esse não é mais o meu lar. Tive de escolher um caminho diferente que fosse bom para mim”, confessou o jogador ao site do Yokohama Marinos.

Enquanto Shunsuke perde espaço e minutos no Jubilo Iwata, o status de lenda segue inabalado. E é inevitável que se tenha a imagem dele como eterna dentro do futebol japonês. Talvez seja possível mensurar o seu legado apenas quando ele sair de cena. Por agora, ainda há tempo de reverenciar o gênio das cobranças de falta, um dos últimos grandes camisas 10 japoneses.

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