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Entrevista com Ainhoa Alonso
from Relvado #7
INCIPIENTE, MAS IMPARÁVEL
Ex-capitã do time feminino do Eibar, Ainhoa Alonso falou sobre o clube, o futebol feminino e a cultura do povo eibarrés
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ENTREVISTA | POR WLADIMIR DIAS
Ofutebol, como o esporte em geral, tem sua popularidade justificada por uma série de razões. Uma das mais apontadas é o fato de colocar equipes de lugares distintos, com culturas peculiares, frente a frente. Apesar de ser habitual a formação de times com atletas de origens diferentes, o escudo que carregam no peito e as cores que representam costumam dizer algo. Twitter / Eibar
Na Espanha, por exemplo, os gigantes Barcelona e Real Madrid transpiram história — seus uniformes expondo disputas que vão muito além do mundo da bola. Equipes menores como o Rayo Vallecano, conhecido pela defesa das minorias e por sua visão política de esquerda, também têm representatividade.
No País Basco, o tradicional Athletic Bilbao procura conservar sua conexão com a região, mediante um rígido padrão de seleção de atletas (exclusivamente de origem local ou com ascendência basca). Em outra escala, o também
basco Eibar leva consigo o orgulho de defender os ideais de sua localidade.
Em 2019, o Eibar completará 79 anos de uma história difícil — quase toda ela vivida na segunda e na terceira divisões do futebol espanhol. Encravado no norte do país, menos de 100 quilômetros distante da fronteira com a França e a aproximadamente 50 da capital do País Basco, Bilbao, o time trabalha com uma missão em seu horizonte: usar pés e bolas como instrumento de transmissão de caros valores. Conhecido pela humildade e o trabalho duro, o povo eibarrés vê em um time valente a reprodução de seus costumes.
E não é só isso que distingue o clube azulgrana. Ele se posiciona. Quando finalmente chegou à primeira divisão em 2014, ano em que completou 75 anos, teve que lutar contra uma legislação que determinava um capital mínimo para a disputa de La Liga. Brigou, recebeu apoios e venceu, mas em seu site segue dizendo que a medida é “injusta e pode provocar o rebaixamento administrativo à segunda divisão de um clube com déficit zero e sem nenhuma dívida”.
Além disso, possui uma fundação que busca promover o futebol de base, o futebol feminino, a educação e os valores de igualdade de gênero e do euskara — o idioma basco. Isso tudo sob a liderança de sua presidente Amaia Gorostiza e da CEO Patricia Rodriguez.
Quantos clubes de futebol têm mulheres em posições de liderança e tratam isso como motivo de orgulho? Entrevistada pela agência Reuters, a mandatária do clube disse: “Eibar é uma cidade em que mulheres sempre tiveram um papel importante em todos os aspectos da sociedade e o clube não é nada senão um reflexo disso”.
Por tudo isso, a Relvado foi atrás de uma das protagonistas do clube nos últimos anos. Ex-capitã do clube (atualmente na segunda divisão) e recém-aposentada, Ainhoa Alonso, de
29 anos, falou sobre uma série de assuntos relacionados aos azulgranas.
Relvado: A maior parte da história do Eibar é um conto marcado por muitas dificuldades. Até 2013 foi uma equipe de divisões inferiores, lembrada por ter recebido por empréstimo jogadores como David Silva e Xabi Alonso e à margem até no próprio País Basco, normalmente representado por Athletic e Real Sociedad. Quando o time masculino chegou à La Liga, qual foi a sua sensação, conhecendo tão bem o clube?
Ainhoa Alonso: O sentimento é o de que foi feito um bom trabalho durante muitos anos, que levou a esse grande prêmio que é alcançar a categoria máxima. Além disso, há uma sensação de alegria muito grande conseguir esse feito histórico para uma cidade de apenas 27.000 habitantes e um clube humilde baseado em seus valores e no trabalho na cantera, com pessoas que apoiam o clube — em muitos casos sem cobrar por isso. Em resumo, é um sonho realizado, a recompensa por muitos anos de trabalho duro e sacrifício.
R: O que você entende que foi o diferencial do Eibar nessa ascensão, tendo o clube tido o menor orçamento da segunda divisão no ano da subida?
A: Penso que o dinheiro ajuda muito e pode ser o ingrediente principal na hora de buscar algo como o acesso à elite. Mas não é tudo. Há outros elementos que não se consegue com o dinheiro, como a união da equipe em torno de um mesma objetivo. Penso que esse diferencial pode ter sido o ponto forte que ajudou o Eibar em seu acesso. Eles demonstraram ser um grupo unido, que acreditavam nas suas possibilidades e em si mesmos. Se tratava de um grupo humilde e muito trabalhador, em que ninguém se colocava como superior ao outro, e que conseguiu desenvolver valores próprios, confirmando um ditado: a união faz a força. Desta forma, demonstraram que qualquer objetivo é alcançável.
R: Como foi presenciar a cidade abraçando o clube para garantir que se adequasse ao decreto das Sociedades Anonimas Deportivas e pudesse disputar a primeira divisão, levantando a hashtag #defiendealeibar?
A: A sensação foi a de que as pessoas do entorno do Eibar realmente estavam apoiando o clube. Mas não apenas as pessoas diretamente ligadas a ele: as que já viveram o Eibar, que conhecem o clube através de outros contatos, e de gente do mundo inteiro que se solidarizou com um pequeno clube, a priori desconhecido, que havia chegado a uma das melhores ligas de futebol do mundo, com o desejo de mostrar que, com esforço e humildade, se pode chegar muito longe. Foi emocionante ver como conseguiram alcançar o capital necessário, tendo como base a presença majoritária de pequenos acionistas, podendo assim jogar a divisão máxima.
R: O que o Eibar significa para o povo guipuzcoano e como é a relação da equipe com os outros clubes bascos?
A: Guipúscoa é uma província pequena no contexto espanhol. Ter duas equipes [Eibar e Real Sociedad] na primeira divisão fortalece a cultura de uma região em que se trabalha bem, também no futebol; além disso, se levarmos em conta a Comunidade Autônoma do País Basco, somos quatro equipes na primeira divisão [além de Eibar e Real Sociedad, Athletic Bilbao e Alavés], fortalecendo ainda mais a cultura de um povo humilde e trabalhador. As relações [do Eibar] com os outros clubes bascos são feitas a partir da direção do clube, mas a disputa para ser o melhor time basco e produzir os melhores jogadores nas categorias de base, seguramente, gera rivalidades e atritos normais dentro das boas relações entre suas torcidas. Cada dérbi é uma festa, dentro da rivalidade que existe.
R: O que você pode nos dizer a respeito da identidade, dos princípios, do clube?
A: Os valores se resumem, principalmente, a seis, que se encontram no site do clube: respeito, compromisso, disciplina, humildade, solidariedade e honradez.
R: Quais os reflexos do sucesso do time masculino na equipe feminina?
A: Fundamentalmente, os reflexos se centram na possibilidade de contar com mais meios e recursos, tanto econômicos como de pessoal, que facilitam e potencializam a presença do futebol feminino nas estratégias do clube, nas canteras, nos meios de comunicação, assim como na melhora das condições de uniformes, pessoal técnico, meios de transporte, dietas das equipes femininas.
Como curiosidade, conto que nós também tivemos o privilégio e o prêmio de jogar no estádio Ipurua, um estádio de primeira divisão masculina, em que pudemos aproveitar
várias partidas. No meu caso, pude fazer um dos gols do primeiro jogo disputado pela equipe feminina nesse estádio — um sonho que se tornou realidade, para todas e, especialmente, para mim.
* Veja o gol de Ainhoa clicando aqui
R: O prêmio de melhor jogadora do mundo só foi criado em 2001, pela Fifa. Fazendo uma analogia posterior, para quem você daria o prêmio de melhor jogadora da década de 90, quando o futebol feminino começou a se profissionalizar?
A: A informação que as pessoas interessadas no futebol feminino dispõem dessa época é muito escassa. Antes, era muito difícil ver futebol feminino na imprensa escrita e na televisão, tanto a nível nacional quanto internacional. Sinto que não tenho critérios suficientes para fazer essa avaliação. Hoje em dia, pouco a pouco, se está começando a dar lugar ao futebol feminino nos meios de comunicação e canais de futebol. Mas é muito recente. Entendo que dentro de alguns anos falaremos mais dele e as pessoas poderão opinar e falar sobre os prêmios femininos. Acredito que será em breve, com o começo da profissionalização e o aumento do conhecimento mundial sobre o futebol feminino.
R: A Espanha está classificada para o mundial de 2019, na França. Porém é apenas a segunda edição com a presença da Fúria. O quanto você atrela a demora no progresso da equipe feminina à proibição da prática de futebol até 1980? O que se pode dizer do panorama atual?
A: Evidentemente, nossa história do futebol feminino é mais recente do que em outros países, mas também está claro que o crescimento está sendo exponencial, imparável. Ano após ano, a evolução está sendo muito grande e o avanço é considerável, apesar de haver ainda muito a percorrer. O importante é pensar logo no futuro e trazer [o futebol feminino] à normalidade, ao dia a dia, dos meios de comunicação. É
algo que ajuda muito na evolução, na medida em que coloca gente potencialmente interessada em futebol feminino em contato com o esporte — gente que, simplesmente por não ter acesso direto ou se deparar com informações, o desconhece.
R: No Brasil, além do seu posicionamento político, Sócrates foi considerado um jogador peculiar por conciliar o estudo de medicina com a carreira de jogador profissional. Considerando a diferença salarial entre homens e mulheres jogadores de futebol das primeiras divisões, você ter feito curso superior foi mais por ambição ou necessidade de garantir uma outra profissional, dado os percalços da carreira feminina?
A: A realidade social em minha trajetória como jogadora profissional foi a de jogar por prazer, pelo gosto pelo esporte, por fazer parte de uma equipe, pela alegria de jogar futebol. Nunca pensei nesse esporte como uma carreira profissional. É verdade que os tempos estão mudando e que as novas gerações, sim, podem começar a pensar no futebol feminino como carreira profissional, mas há 20 anos isso era muito pouco provável e quase impossível de conseguir — a não ser que a atleta decidisse trocar a Espanha por outros países que apostavam nela e fosse possível ser profissional.
Por isso, combinei meus estudos de Engenharia Mecânica e Mestre Industrial, o trabalho, minha vida pessoal e o futebol durante toda esse período. Por isso também, decidi deixar meu lugar para que as novas gerações de jogadoras possam ter seu espaço, evoluam e desfrutem do mundo do futebol feminino, como apaixonadas e/ou profissionais. Penso que os tempos mudaram e que, hoje em dia, podemos começar a apostar com maiores possibilidades nas carreiras profissionais das futuras meninas futebolistas. Considerando a evolução exponencial em que avança o futebol feminino, em um futuro próximo falaremos de um percentual cada vez maior de jogadoras profissionais ao nosso redor.
R: O clube é reconhecidamente notado por trabalhar com temas socialmente importantes, como a igualdade de gênero. Você foi um dos símbolos da equipe feminina nos últimos anos. Como foi a experiência de representar um clube com mentalidade tão progressista?
A: Foi empolgante e uma honra para mim colaborar com os projetos que o Eibar tinha e tem para o futebol feminino, além de participar como capitã de um grande time, representado a todas e a cada uma de minhas companheiras de jogo — de quem me sinto orgulhosa —, minhas amigas e ao meu clube em eventos do nível da cidade, da nação e, inclusive, com algum alcance internacional (como foi o Bilbao International Football Summit - BIFS2018). Espero que tudo isso tenha sido também como um bom exemplo para o futebol feminino eibarres, entre nossa cantera e para qualquer um que ame o futebol.
Foi um esforço diário que, em meu caso, não tenho dúvidas de que foi recompensador. Sempre estarei agradecida e este clube, às pessoas que depositaram em mim sua confiança desde o primeiro dia, tanto pela capitania quanto por fazer parte do time principal praticamente desde os 15 anos e por todos os eventos e acontecimentos que pude presenciar e participar.
Sempre será um orgulho muito grande ter sido escolhida como símbolo de um clube como o SD Eibar, reconhecendo meu trabalho realizado com a mesmíssima insígnia de ouro recebida pela presidenta Amaia Gorostiza em nome do clube, ao final de minha etapa como jogadora. Essa se encerrou, mas eu sempre estarei disposta a seguir trabalhando e ajudando em tudo para conseguir o melhor futuro para as mulheres que vêm nas novas gerações.
R: De um modo geral, você pensa que o futebol feminino na Espanha está em evolução? Se sim, em que aspectos?
A: Sim, categoricamente sim. Está evoluindo de maneira favorável. A cada dia, grandes clubes apostam no nosso futebol, há mais recursos, que são melhor aplicados. Começam a ser vistos êxitos dos times femininos espanhóis, da seleção, desde as categorias mais jovens — cada vitória sendo um passo adiante para incentivar mais meninas a praticar este esporte. Seguramente, falta mais apoio da sociedade em geral, mas principalmente dos meios de comunicação, que com um enfoque mais informativo e dedicando mais tempo ao nosso esporte, podem gerar a empolgação e o interesse na sociedade, para formar parte de um FÚTBOL en mayúsculas, sem levar em conta se são homens ou mulheres, mas apenas a beleza, magia e esperança que uma grupo de pessoas pode gerar com uma bola entre seus pés, representando algumas cores. Como dizia antes: creio que o futebol feminino já é uma realidade, incipiente, mas imparável.