Marília César Q. Lafetá
Lila, de Mar e Ilhas Memórias
capa: Renato Guimarães
Lila, de Mar e Ilhas Mem贸rias
Agradeço ...aos meus pais, Lomelino e Mônica por terem incutido em mim um forte sentimento de orgulho do passado, do nome e da família. ...às minhas três tias – Alda, Maria Sílvia e Glorinha por terem me deixado publicar estes escritos que carregam tanta intimidade da família, principalmente dos seus pais. ...ao meu marido, Renato, por ter sido carinhoso com os meus avós. E dedico este livro ...aos meus primos César que irão reviver aqui parte da história dos seus pais e avós. ...aos meus primos Lafetá que reconhecerão o “Tio” Levi e Montes Claros. ...aos meus irmãos, Ane, Kiko e Cássia e primos “irmãos” Daco, Sérgio, Adriana, Kaká, Tetê, Bruno, Bárbara, Mônica e Cândida por terem compartilhado comigo o prazer de ter Levi e Marília como avós. ...aos meus filhos, Rafael e Lívia, à minha nora Diana, aos meus sobrinhos: Cris, Gabriel, Laura, Sofia e Clara e primos Leo, Marina, Rafaela e Francisca, Gabriela, André, Duda, Lucas, Luisa (e próximos) para que, conhecendo um pouco do nosso passado, saibam valorizar o presente e
preservar os valores que sempre nos foram nobres ...aos nossos “parceiros de vida”, Toledo, Eduardo, Stefano, Lilia, Ana Carolina, Bayard, Kika, Deka, Nico, Diogo, Rob, e Dudu que, conosco revivem velhas histórias e criam as nossas próprias. ...à minha neta Isabela e aos próximos netos que virão para que um dia eles saibam do meu contentamento em ser avó, que, tenho certeza vem das boas lembranças da convivência com a minha própria, Lila.
Índice Prólogo...........................................................................9 Capítulo 1. A Casa da Rua Santa Rita Durão..........15 Capítulo 2. A família César Pereira da Silva...........34 Capítulo 3. Descobertas - A Escola e o primeiro amor.........................................................43 Capítulo 4. Entre circos e enterros...........................47 Capítulo 5. Anos Dourados.......................................58 Capítulo 6. O trabalho e a tuberculose.....................72 Capítulo 7. O Persa.....................................................83 Capítulo 8. Entre confetes e confissões....................88 Capítulo 9. O “Sem Chapéu” e o “Com-Asa”...........94 Capítulo 10. 1930 – Momentos de decisão...............102 Capítulo 11. Nova vida............................................112 Capítulo 12. Em Montes Claros..............................118 Capítulo 13. Entre gafes e reflexões no Ita..............127 Capítulo 14. Nas Alagoas, só o mar.......................133 Capítulo 15. A outra “ilha“ – João Pessoa.............136 Capítulo 16. Próxima parada: Manaus...................141 Capítulo 17. De volta às Gerais..............................149 Capítulo 18. 1936 – Em “Novos” Montes Claros...157 Capítulo 19. Novos trilhos... Novos horizontes...177 Capítulo 20. Belo Horizonte, em casa nova...........193
Capítulo 21. Rio, de novo. Mas diferente..............205 Considerações Finais..................................................213
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Capítulo 1
A Casa da Rua Santa Rita Durão. Meaípe, Setembro, 1974
N
ão sei contar o que foi a minha infância através de fatos narrados. O que vou escrever são lembranças esparsas, sem precisão cronológica. Salientam-se nessas lembranças, coisas materiais, imóveis, e, talvez por coerência, tenho recordações absolutamente nítidas da casa onde eu nasci e vivi até o
Eu em minha casa 15
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meu casamento em 1931, com 20 anos. Cedo, aprendi a gostar da casa própria e, felizmente, a minha trazia-me orgulho e vaidade, porque, tendo frequentado inúmeras residências, aprendi a aquilatar o valor da minha. Achava-a bonita, gostosa e meu pai cultivou essa admiração. Vejo-o mostrando a casa a amigos e, em vez de, porém, mostrar o jardim, a sala de visita ou a pintura da varanda, ia mostrar aos amigos o porão, onde vigas enormes e grossas sustentavam a parte principal da casa (terá vindo daí a minha mania de segurança, estabilidade?). A casa era grande, duas enormes salas, pequeno escritório, pequena entrada, copa, seis quartos, cozinha feia e banheiro bonito com lindos azulejos coloridos, mostrando uma garça entre as folhagens e água. A janela dava para um quintal e os vidros eram recobertos por papel colante, axadrezado, marrom e vermelho, que, com os raios do sol tornavam-se furta-cor. Impressionavam-me muito. Na copa, havia uma larga escada de poucos degraus que nos levava ao porão, onde ficavam os nossos brinquedos, as caixas que vinham do Rio de Janeiro e São Paulo com fogos de artifício, árvores de Natal, fantasias, livros e tudo que perturbasse a vista de minha mãe por ser antiestético ou inútil. O porão era, também, a sede do nosso circo quando 16
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chovia e ele não podia funcionar no quintal. Nesse porão, mais tarde, moraram dois simpáticos tios, irmãos de meu pai. Posteriormente, foi dormitório de Nelson e Gil e tornou-se o lugar em que recebiam os colegas para o estudo. Depois foi o escritório de meu pai, com entrada independente, e em 1935 eu ali dormi com minha filha chorona e com a minha asma constante. Lembro-me - quantas vezes vou escrever esse “lembro-me”... - de uma fotografia que toda a família tirou na escada. A minha mãe colocara-se à esquerda e na frente e ao lado, seus filhos, que deviam ser apenas cinco. Essa fotografia deve ter sido tirada há 55 anos e não sei que fim levou. Seria de museu, tão interessantes as fases, as vestimentas e a fisionomia assustada e compenetrada das crian-
1-Mimia, 2- Eu, 3-Gil, 4- Andre, 5-Mamãe (Lina), 6-Papai (Herculano), 7- Margarida, 8-Laura, 9-Nelson. 17
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ças. A nossa casa (porque o “nossa” em vez de “minha”?) tinha dezoito metros de frente, nove eram de jardim com um gradil pintado de branco, contrastando com o verde e o colorido das rosas. O portão era dividido em dois, enorme, pesadíssimo, e rangia quando, raramente, o fechavam. Tempos felizes em que os portões eram abertos para todos, sem preocupação de furtos... Andava-se entre canteiros uns cinco metros até atingirmos uma escada de três degraus que nos deixava no alpendre comprido com tinas de plantas. Mesmo em frente à pequena escada, víamos a porta de entrada, bonita, escura, com a tinta descascando pois o sol a inundava com sua luz e calor. Nessa porta dois puxadores (eu os tenho) horizontais, imitação de marfim. A porta só se fechava à noite. Era aberta “moral” e materialmente a quem quisesse entrar, conversar, jantar... Era a mania de meu pai: receber. E como eu sou o inverso dele! Entrava-se então em uma pequena saleta atapetada, duas cadeiras, uma estante com planta e, à esquerda, um inútil telefone, tão pouco era usado. Para quê? Os vizinhos se falavam na calçada, as empregadas e as crianças davam os recados. Os namorados não haviam ainda descoberto essa e outras formas de comunicação... Nesta 18
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saleta, três portas, uma para o pequeno escritório entulhado com uma enorme e bela escrivaninha com uma porta de correr ovalada e a estante que tomava toda a parede, cheia de livros encadernados de um vermelho brilhante. Esse escritório era a única parte que não ficava absolutamente em ordem como o resto da casa. Havia sempre jornais, revistas, livros e papéis intocáveis - com o que minha mãe não se conformava. Em cima da escrivaninha, tinha um belo tinteiro com uma placa com o nome e data do aniversário de meu pai (está com Gil)... Havia a tinta azul, e a vermelha para as anotações sérias, e aquela caneta em forma de pluma, de prata, leve e brilhante. A segunda porta dava para a sala de visitas, grande, bonita. A pintura de toda a sala era linda! O fundo, de um verde malva, era um florão rodeado por um círculo lilás, meio em relevo, salientando o florão. As janelas eram duas e tinham as mais belas cortinas que já vi. Compridas, pesadas, claras, de tafetá, que sustentavam-se por tubos dourados, brilhantes e eram presas a enormes argolas douradas. Eu gostava de puxar as cortinas e ouvir o tinir das argolas metálicas tocando umas às outras. Foi essa a primeira “composição” musical que ouvi e encantava-me como se fosse a mais bela melodia. Ouvia muito a expressão de “ouro puro” e indagava a mim própria se aqueles 19
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tubos e argolas eram de ouro puro... Nessa famosa sala, orgulho da família e admiração das visitas, havia mesmo peças lindas! O espelho, francês ou veneziano, era o que trazia maior beleza e admiração pelo seu tamanho e arte. Devia ter uns dois metros e meio por dois de altura. Era de cristal bisotado - termo que eu ouvia e não sabia o que significava. A moldura, lembrando “ouro puro”, era larga nas laterais e embaixo, parecendo uma renda de flores entrelaçadas. Na parte superior do espelho a moldura ia aumentando até chegar ao centro onde havia um enorme medalhão formado de flores grandes e pequenas, como se estivessem arranjadas em uma cesta. Eu cresci admirando e amando esse espelho! Quando minha mãe, vaidosa, bonita se aprontava com suas toaletes e ricas joias, ia se “conferir” no espelho. E eu gostava de contemplar a averiguação, quando todas as luzes daquele lustre de cabaçinhas de opalina verde eram acesas. Eu tinha vontade de crescer e mirar-me (os paulistas, e, por influência, eu, usávamos o verbo “mirar”) nele. E assim, logo aprendi a aprontar-me e ir ao espelho, que refletia a minha figura inteira e, de verdade... achava-me feia, achatada, morena, desapontada. Anos depois, costumava me consultar no espelho e achava-me bonita, um todo agradável, notando-se logo a cabeça coberta de cabelos cheios 20
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de caracóis. Aprovava-me e agradava-me a fisionomia alegre, serena, com olhos pequenos, vivos, brilhantes e que mais tarde foram comparados aos faróis...(A.B). O sorriso tímido e discreto mostrava meus dentes branquinhos, iguaizinhos e bem implantados. Ah, espelho meu, se me refletisses hoje como te entristecerias! Refletirias uma velha de 66 anos, gorda, burguesa. Foi a vida, meu amigo. A vida que roubou a mocidade e a beleza daquela que refletias na Rua Santa Rita... Falemos da sala. A mobília era austríaca, um sofá que comportava três pessoas, quatro cadeiras pequenas e duas grandes de braço. Os assentos eram de palhinha, os encostos de tirinhas finas, trançadas umas às outras. Implicavam-me as duas cadeiras de braço. Braço? Braços, pensava eu, são atributos humanos que servem para embalar crianças, para trabalhar, que se movem para o alto, para baixo, braços que contêm dedos, dedos que acariciam, que ferem, que trazem alianças, brilhantes, dedos de unhas pálidas, dedos de cozinheira, de trabalhador. Não, decididamente, cadeira não pode ter braço! E pensando em braços, mãos, dedos... eu analisava e admirava as mãos. Notei (que precocidade!) – que as mãos de minha família eram feias e, sem conhecer os termos “de classe” ou “burguesa”, analisava as pessoas pelas mãos. Muito mais 21
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tarde descobri que Levi Lafetá tinha mãos bonitas, eloquentes. Mas, voltemos à sala. Havia um enorme tapete avermelhado que semanalmente era enrolado e carregado por duas empregadas para ser “batido” no jardim. “Batido” com vassoura para retirar a poeira que os pés do desembargador, do comendador (A. S.), dos ilustres médicos, da professora, dos advogados, e das fofoqueiras (não havia o termo) deixavam nos arabescos persas do tapete. Essa mesma sala era aberta às personagens gratas da época, e eu as recebia entusiasmada, mas timidamente. Avaliava-os e tinha as minhas preferências e admirações. Acostumei-me a vê-los entrar, conversar e tomar licores que eram servidos em lindos licoreiros e vinho do Porto, quer no inverno ou verão. De vez em quando ia a nossa casa um senhor alto, magro e diferente dos outros, pois falava baixo e não ostentava riqueza. Achava-o estranho. Na saleta, desabotoava o sobretudo e deixava-o sobre a cadeira. Os outros, não. Entravam com o sobretudo, ficavam com ele ou o deixavam sob suas vistas. Esse estranho homem era o célebre Professor Moraes, professor de boas maneiras, de simpatia, de candura. Não fumava e assim não jogava cinza atrás do 22
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sofá. Se isso tanto incomodava à minha mãe, por que ela, inteligente, não inventou o cinzeiro, que não se usava naquele tempo? Vem daí a minha implicância pelo cigarro. Coisinha ridícula, malcheirosa, incômoda nos lábios e entre os dedos. Decididamente, ou fuma-se o charuto como o jovem médico Miguel Batista ou então nada, pois esse cigarrinho, pequeno, branquinho é mesmo horrível, dizia eu. Muitas impressões, com o correr do tempo, transformaram-se, mas essa, sobre o cigarro, permanece até hoje. Continuemos na sala de visitas. Havia, entre outras, uma pequena mesa de forma irregular, baixa. Em cima, bibelôs de biscuit - um casal, ele de chapéu e ela trazia nas mãos uma cesta com flores. Era mesmo um belo par, sereno, suave nas cores. Pena que fossem em biscuit e não em carne e osso pois os casais que eu via não davam essa impressão de beleza... Na prateleira da mesa ficava um enorme livro - a enciclopédia. Nele havia um fino e liso papel com a apresentação da fauna e flora em cores. Como as cores me seduziam! Constantemente folheava-o, lia os nomes das flores, admirava-as e daí talvez esse meu amor às plantas. Em cima do tapete, lógico, alinhavam-se simetricamente, o sofá e as cadeiras austríacas. Nas laterais do sofá, atrás, duas estantes onde outros 23
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tantos bibelôs franceses e italianos ficavam a se exibir permanentemente, como peças finas e raras. No intervalo de duas portas, que só se abriam nos dias de festas (os aniversários eram sempre comemorados), havia uma bela e frágil mesinha de tripé, de prateleiras redondas, de cristal, onde eram postas as miniaturas mais apreciadas e que um dia foram destruídas de uma só vez, quando o loquaz baiano Dr. Viana, parecendo no físico e nos gestos com um Arturo Toscanini de batuta em punho, derrubou a mesinha e ouviu-se o estilhaço sonoro e cristalino das preciosidades se quebrando. Ao lado do sofá, ficavam (que horror!), duas lindas escarradeiras de porcelana colorida, em forma de boca de leão. Às vezes eram usadas e no dia seguinte eram levadas para a devida limpeza em água corrente. E como me causava má impressão aquele limpar de brônquios purulentos com o consequente escarro! Consequência dos cigarros, penso hoje! Anos mais tarde, essa sala, já modificada e sem os belos bibelôs, serviu-me de lugar romântico e propício às juras de amor do meu noivo. A mobília austríaca foi substituída por um enorme jogo de couro da Rússia (hoje na casa de Luiza, minha cunhada). O espelho, os tubos e argolas de “ouro puro” devem ter sido dadas à uma Dona Maria 24
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qualquer... Só restam as recordações. E por que nossa mente teima em guardá-las, em excitá-las? Gostaria tanto de não ter passado... Devíamos esquecer bons e maus momentos. A vida deve ser a hora presente, apenas isto... Eu gostava muito da mobília da sala de jantar. Eram poucas as peças, enormes, pesadas. A mesa devia ter uns três metros de comprimento e um de largura. Havia na parte superior um vão em que eram guardadas as tábuas que aumentavam ou diminuíam o tamanho da mesa. Era de madeira, rígida, vermelha, mas a beleza consistia nos pés, que eram imensos, como se fossem patas de elefantes e que impediam o mover da mesa. Cobrindo-a, atoalhados de veludo estampado e no centro uma bela fruteira de prata com quatro pratos de cristal para as frutas e no meio um comprido vaso, em forma de cálice para as flores permanentes, colhidas em nosso jardim. Eram rosas ou margaridas. Às vezes, quando eu via flores murchas, caídas, com pouca água, instintivamente ocupava-me em substituílas. Acho que se eu tivesse cultivado o bom gosto seria uma arquiteta ou uma decoradora... Além da mesa, um etagere com tampo de mármore e duas prateleiras, com objetos decorativos. 25
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Embaixo do etagere (curioso...) guardavam-se os sapatos numerosos de toda família. Ali eles eram jogados em franca promiscuidade, e lembro-me de que me danava, silenciosamente, por não achar o pé daquele sapato correspondente ao que queria. Notava o contraste entre as coisas bonitas e arrumadas com o quotidiano dos sapatos empoeirados, enlameados, até que o Agostinho, aquele empregado que parecia filho e irmão, os tirava para engraxar. Os sapatos, como as mãos, feios e grosseiros, já me impressionavam, e vivia a comparar uns e outros com os das mulheres do nosso pedreiro, Pedro Savoto, e do A. Gilherti, nosso sapateiro. As pessoas que serviam a nossa casa ficaram nas minhas recordações. O Agostinho era um guarda que foi destacado para ordenança de meu pai que era chefe de polícia. Agostinho exercia na casa todas as funções possíveis, de babá (ama-seca) a contador de histórias horripilantes e fatos imaginários de assombração que aparecia nos velhos casarões de Ouro Preto. Era de uma dedicação filial. Com a gripe de 1918 ficou tuberculoso, enlouqueceu e morreu. Como não havia casa para loucos em Belo Horizonte, papai conseguiu colocá-lo em uma cela da Delegacia e nós, crianças, íamos visitálo semanalmente e levar-lhe doces, queijos, biscoitos. Parece-me que foi dele que vieram os bacilos 26
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de Koch que tanto atormentaram a vida de minha família. Havia o Rodolfo e o Alcides, chofer e ajudante do carro oficial. Rodolfo era a figura de um barítono italiano, gordo, vermelho, cheio de mímica. O Alcides era magro e sorridente. Viviam em casa à disposição de toda a família. Rodolfo era casado com linda mulher e possuía um lar na Rua Ceará com Afonso Pena e assim nos levava lá e oferecianos salame, azeitonas, que logo eu vim a achar horríveis pois eram servidos de mão em mão... A figura do Ferreti, essa é inesquecível! Ele era o cozinheiro oficial do Palácio, mas, como trabalhava em dias alternados, tinha a freguesia particular. Aos domingos ou nos aniversários o Ferreti era chamado à Rua Santa Rita. Via-o matar o leitão que gritava como um bebê, via-o temperá-lo e assá-lo. Ferreti era um homem enorme, alto, magro, vermelho, sardento, cabelos vermelhos, dentes grandes, sujos, espaçados. Suas mãos imensas eram cobertas de cabelo avermelhado, falava alto, rouco e constantemente, mesmo fazendo o leitão ou uma macarronada, mantinha um cigarro entre os beiços brancos e rachados. Fazia-me medo. Em frente à nossa casa morava um casal italiano com sua filha. Que família simpática! Seu Augusto, baixo, gordo e pálido, era alegre, brincalhão. 27
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Além disso, era sapateiro e cabeleireiro. Com ele, consertavam-se os sapatos e desconsertavam-se os cabelos. O meu, fácil e bonito, não trazia problema, pois o corte à inglesa era clássico. Mas minha irmã Mimia, às vezes, saia do salão chorando, com as mãos na cabeça, pois o Sr. Augusto havia cortado os cabelos lá na grimpa. O mesmo acontecia com Augusto e André que saiam “pelados” pois a máquina havia tirado todo o cabelo deles. Eles, crianças, pouco se importavam, mas mamãe não se conformava e falava, falava: - “Não é possível, Herculano, não é possível! ”E mensalmente a cena se repetia... Mas como devaneei... Estou descrevendo fatos em vez de descrever a minha casa que se fixou em minhas recordações como se estivessem presas com pregos... Os dormitórios da casa não eram nem bonitos nem confortáveis, apenas os de meus pais tinham uma nobre mobília de jacarandá como a tal cama que levei para Montes Claros e, por escrúpulo ou orgulho, a devolvi, e que, como espelhos e outras preciosidades, foram dadas a amigas modestas. As camas das crianças eram fortes, boas, de metal. Os guarda-roupas, bons, grandes, de madeira, contrastavam com as camas. Os colchões, vindos de Diamantina, eram de crina animal, excelentes, e os travesseiros de macela deixavam um 28
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cheirinho gostoso e apetitoso. O jardim da Santa Rita, ah, esse sim, era a maravilha da casa! Enorme... (não sou muito afeita à medidas), mas acho que em área ele teria uns dez por dez entre grama, folhagens, margaridas e rosas. Roseiras de São Paulo, roseiras de Barbacena... Bem em frente ao portão havia uma que era uma árvore e sempre cheia de rosas – rosas. Afinal foi ficando velha; o tronco era cheio de nós, as flores se atrofiavam. Era tão simples... cortá-la e substituí-la por uma nova, cheia de seiva, de folhas verdes, de botões semiabertos com todo o encanto da mocidade! A outra já encantara, já florescera, já perfumara. Estava no tempo de ser abandonada. Quem sentiria saudades? Mas era uma árvore e já fazia até sombra... A nova roseira era qualquer coisa de extraordinária. Nos seus tenros ramos vinha a etiqueta com seu nome. Para que nome, se ela possuía tantos encantos? Os entendidos em rosas, P. Trade, Arduíno Bolivar e Boaventura quase diariamente iam lá ver os progressos, os brotinhos, os botões. Só eu mesma me lembrava da velha roseira com o tronco marrom carcomido e das rosas que eu apanhava para ir à coroação da Virgem na Igreja da Boa Viagem... No centro do jardim havia uma enorme e fron29
Flávia Lafetá Couto Guimarães
que foi parar na geladeira e meu avô inadvertidamente o bebeu. Foi um escândalo que o pobre fez levantando inclusive a possibilidade de tentativa de assassinato. Ele era dionísico, dramático, apoteótico...! Para mim, uma mistura de licor de pequi com vinho Sauternes – doce, rico, simples, complexo, rústico e sofisticado. E foi o melhor médico e enfermeiro que a Vovó poderia ter desejado. Dedicou o resto da sua vida a ela e a ajudá-la a suportar as inúmeras síndromes, crises, choques, ites e oses que fizeram da vida da Lila um caso médico. Ela era um desafio para a medicina. Que o diga Dr. Dário Bittencourt que foi de um carinho e atenção extremada para com ambos. Era realmente um caso de contínua superação porque as doenças e os medicamentos tiraram-lhe, aos poucos, o comando dos olhos e a eterna luta na busca de ar a impedia de falar e se manifestar. Mas não queria morrer e mesmo no hospital, pediu para passar batom... Vovô foi o contrário. Quatro anos depois, declarou que não queria mais comer e assim morrer. Foi lúcido até o fim. Lia e sabia de tudo que acontecia no mundo. O difícil era entendê-lo por que como cedo diagnosticou a Vovó, a dicção dele não era das melhores. Definitivamente...! E aqui poderia ficar, abrindo arquivos mentais, recuperando imagens, falas, situações e im219