ANO 1 N0 4 2021
datavenia.info
R$ 50,00
AGU CAMINHA PARA SER A CASA DA CONCILIAÇÃO PERSEGUIR ACORDO NÃO SIGNIFICA ABRIR MÃO DE DIREITOS
BRUNO BIANCO MINISTRO DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
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C A R TA A O L E I TO R
Justiça conectada ao cidadão Inclusivo, sensível às demandas sociais e cada vez mais conectado ao cidadão por meio de modernas ferramentas digitais, o sistema jurídico do Brasil avança acelerado no rumo da construção da marca que o caracteriza neste século. Essa realidade pode ser percebida com clareza nos textos nas páginas desta quarta edição da DATAVENIA. Embalada pelas comemorações dos 130 anos da era republicana do Supremo Tribunal Federal (STF), a DATAVENIA aponta o inequívoco papel protagonista da Corte para fazer valer a ênfase cidadã e democrática da Constituição de 1988. Esse espírito, inclusive, dialoga intimamente com o Nobel da Paz 2021, conferido a dois jornalistas estrangeiros graças à luta em seus países pela liberdade de expressão e contra as fakenews. A seção Tribunal em Foco detalha o esforço da gestão do Ministro Humberto Martins para o biênio 2020-2022 à frente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para dar agilidade aos processos via investimento em tecnologias de ponta, como a inteligência artificial, e criar meios de acesso direto e descomplicado ao público. A modernização com foco na prestação célere e objetiva de serviços para todos também é a prioridade da Advocacia-Geral da União (AGU), cujo comando foi recém-assumido pelo Ministro Bruno Bianco. Na entrevista de capa que ele concedeu à revista, revelou o seu desejo de tornar a AGU uma instituição ainda mais transparente e aberta a todos os públicos. Além disso, espera consolidar na sua gestão a prática cotidiana da busca pela conciliação, algo que já vem praticando ao longo da sua carreira. Um conjunto valioso de artigos ao longo das páginas da publicação complementam o retrato dos desafios ditados pelos novos tempos no Judiciário brasileiro. O leitor ainda pode degustar na seção Marcas Top, informações sobre o tradicionalíssimo vinho Château Haut-Brion, Premier Grand Cru Classé produzido nos arredores da icônica região francesa de Bordeaux.
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SUMÁRIO
STJ APOSTA NA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
SINAL VERDE PARA A REVOLUÇÃO ESG
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40 LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS FAKE NEWS
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AGU SOB NOVA DIREÇÃO
60 O LEGISLATIVO COM PODER JUDICIAL
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: DEFENSOR DA CIDADANIA
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GESTÃO JUDICIÁRIA
por André Godinho
Ouvidorias de Justiça: portas abertas ao cidadão Na lição de Dalai Lama, “a falta de transparência resulta na desconfiança e um profundo sentimento de insegurança”. Há mais de uma década foi editada a Resolução CNJ nº 103/2010, a fim de dar maior espaço para participação cidadã, abrindo canais de esclarecimento e confiança, que tornou-se um marco na implementação das Ouvidorias de Justiça e trouxe inegáveis ganhos ao funcionamento do Poder Judiciário e aos próprios jurisdicionados. Todavia, sua revisão e atualização eram necessárias, dados os avanços normativos no que diz respeito à participação social e à transparência na administração pública, tais como: a Lei de Acesso à Informação (LAI); a Lei nº 13.460/2017, que trata da participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos; a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD); e a Lei nº 13.608/2018, que normatiza o serviço telefônico para denúncias. Nesse sentido, mesmo diante da constatação de que diversos direitos e garantias trazidos por tais normas foram incorporados ao trabalho cotidiano das Ouvidorias de Justiça, alguns ainda careciam de adequação e uniformização de procedimentos, dadas as particularidades dos tribunais.
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Com vistas a atualizar a regulamentação da matéria, a Portaria CNJ nº 205/2018 instituíu um Grupo de Trabalho destinado ao estudo e à elaboração de propostas voltadas à organização e à gestão das ouvidorias do Poder Judiciário.
O recebimento de denúncias anônimas também foi objeto de discussão e restou disciplinado no art. 10º, considerando a jurisprudência dos tribunais superiores e legislação mais atual que disciplina o tema.
Buscando qualificar ainda mais esse debate, a Ouvidoria do CNJ realizou levantamento, até então inédito, destinado ao conhecimento da realidade das Ouvidorias de Justiça no país. Perguntas sobre formas de escolha dos ouvidores, autonomia de atuação do órgão e atribuições referentes à LAI permitiram elaborar um diagnóstico preliminar que serviu de base às discussões do Grupo de Trabalho.
Inovadora a previsão, constante no art. 12, da criação da rede de ouvidorias judiciais, espaço amplo e permanente de discussão sobre os desafios, troca de experiências e boas práticas relativas ao cotidiano das ouvidorias de justiça.
Importante registrar a valorosa participação de todos os membros do Grupo de Trabalho – Ouvidores dos Tribunais Superiores, Presidentes e Representantes dos Colégios de Ouvidores e Magistrados indicados pela Presidência do CNJ - que não mediram esforços à construção de proposta de ato normativo atenta aos desafios atuais, tendo os trabalhos sido concluídos em menos de dois meses. Após deliberação, no julgamento do Ato 0007554-78.2021.2.00.0000, a nova Resolução que trata do tema foi aprovada, por unanimidade, pelo Plenário do CNJ na sessão do dia 19/10/2021. A nova norma prevê, em seu art. 2º, que a escolha do ouvidor será realizada, em regra, por eleição pelo Pleno ou Órgão Especial, permitindo, excepcionalmente, que a designação para a função possa ser feita diretamente pelo Presidente no caso daqueles tribunais que, na data da publicação da nova regra, já tinham tal previsão em seus atos normativos internos. Considerando as variadas condições de acesso dos cidadãos, um rol mínimo de canais de atendimento foi estabelecido no art. 7º, de forma a permitir a efetiva utilização de seus serviços.
Especificamente no que diz respeito à Ouvidoria do CNJ, no art. 17 foram regulamentados os recentemente criados canais de acesso específicos para atendimento das demandas relativas aos Direitos Humanos, Violência contra a mulher e Meio Ambiente. Assim, nos termos em que aprovada, fica claro o objetivo da nova resolução de promover e consolidar as melhores práticas para a boa atuação das ouvidorias de justiça, em prestígio à transparência na gestão dos Tribunais, cujas portas, mais do que nunca, devem estar abertas ao jurisdicionado.
André Godinho é advogado, sócio do Tourinho & Godinho Advogados Associados. Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por dois mandatos (2017/2021). Ouvidor Nacional de Justiça (2019/2020 e 2020/2021). Conselheiro Federal da OAB, por dois mandatos (2013/2018). Mestrando em Direito e Ciências Jurídicas na Universidade de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil pela Universidade Federal da Bahia e em Direito Eleitoral pela Universidade Maurício de Nassau.
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DIREITO DIGITAL
por Carolina Miranda
Redes Sociais e Proteção Infantil A Sociedade Brasileira de Pediatria produz documentos alertando sobre a influência e os perigos das redes sociais na saúde e no comportamento de crianças e adolescentes desde 2016. Internacionalmente, inúmeros especialistas infantis corroboram as mesmas preocupações, mas sem inspirar movimentos legislativos até o momento. Recentemente, uma denúncia realizada por uma ex-funcionária do Facebook, Frances Haugen, repleta de provas documentais, tornou o assunto prioridade no Congresso Americano, gerando ampla cobertura pela imprensa mundial. No Senado Americano, a oitiva de Frances Haugen gerou um cenário há muito não visto no país: a união entre senadores Democratas e Republicanos para proteger a saúde mental de crianças e adolescentes. O Senador Ed Markey (D) chegou a afirmar, na oitiva do dia 5 de outubro, que “o Instagram é aquele primeiro cigarro da infância”1 , mostrando a seriedade que o assunto foi recebido pelos senadores e o viés da regulação pretendida. Apesar do problema não ser novidade para especialistas da área, a exposição de pesquisas internas realizadas por cientistas do Facebook evidenciou uma realidade assustadora na percepção dos próprios adolescentes sobre os efeitos do Instagram na própria saúde mental. A reação do Facebook às pesquisas e seu comportamento mercadológico geraram fortes reações em todo o mundo, alimentando um forte sentimento de insegurança no ambiente virtual. No Brasil, o assunto não recebeu grande atenção da imprensa, mas em jornais internacionais como NY Times, Wall Street Journal, Washington Post, The Economist, BBC etc., os efeitos da denúncia realizada por Frances Haugen são manchete quase diariamente, com diversas análises detalhadas sobre os documentos vazados3 e as possíveis consequências. 10
Para demonstrar o dano causado pelo Facebook, o Wall Street Journal, na série “Facebook Files”3, mostrou que, em uma das pesquisas entre adolescentes com pensamentos suicidas, 13% dos ingleses e 6% dos americanos conectam esse desejo suicida ao Instagram. Outras pesquisas4 realizadas em 2021 mostram que o brasileiro passa, em média, 3 horas e 42 minutos por dia conectado às redes sociais, sendo que 1 em cada 3 internautas são crianças ou adolescentes. É importante ressaltar que o Facebook reina absoluto como a rede social mais utilizada no Brasil, com quase 130 milhões de usuários. No mundo, o Brasil fica atrás apenas das Filipinas e Colômbia entre os países que mais usam redes sociais, segundo estudo divulgado pela plataforma de descontos CupomValido.com.br. O estudo mostra também que a taxa de usuários pelo total de habitantes no Brasil é de 70,3%, uma das maiores dentre todos os países, e o grupo entre 16 e 24 anos são os que mais utilizam redes sociais no Brasil, com mais de 92% dos usuários nessa faixa etária. A regulação sobre as gigantescas empresas de tecnologia como Apple, Google e Facebook (dono do WhatsApp, Instagram e Messenger) divide opiniões nos mais diversos campos de atuação em todo o mundo. Legislações como a GDPR na Europa, a LGPD no Brasil, a Lei de Privacidade de Dados na Califórnia buscam proteger a privacidade e os dados de cidadãos em todo o mundo, mas especialistas como Frances Haugen afirmam que proteger os dados não significa transparência na atuação, não garante proteção extra às crianças e adolescentes e, definitivamente, não altera a atuação prioritariamente mercadológica dos algoritmos utilizados pelas Big Techs. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil existe uma proteção consumerista às crianças, que as protege de publicidade ou comunicações mercadológicas abusivas, como a Resolução 163/20145 da CONANDA, ainda sem muita efetividade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, recentemente, o artigo 54-C, IV do CDC (atualização
da lei 14181/21), que direciona à proteção de idosos e outros consumidores em estado de vulnerabilidade agravada, como a criança e seu núcleo familiar. Ainda no âmbito da regulamentação legal, está em tramitação no Congresso o PL 5.810/19 que propõe incluir no ECA o direito de receber orientação sobre navegação segura em redes sociais. A relatora, deputada Paula Belmonte (CIDADANIA-DF), argumentou perante a CSSF, na Câmara, que “as redes sociais apresentam riscos diversos” e menciona os relatos de “instigação ao suicídio ou ao cometimento de atos de violência6” como exemplos do perigo que essa navegação apresenta. O PL, entretanto, não parece trazer mecanismos eficientemente capazes de proteger nossas crianças e adolescentes. Na próxima edição da Data Vênia analisaremos os julgados do STJ e STF sobre o tema e as consequências políticas da atuação do Facebook nas últimas eleições americanas, além de atos de violência que ocorreram pelo mundo e são relacionados à plataforma. Por enquanto, o Brasil tem a chance de legislar para proteger crianças e adolescentes e agir, diferentemente do que aconteceu com a indústria tabagista, de forma preventiva, não impulsionado por decisões judiciais. 1 - https://www.wsj.com/livecoverage/facebook-hearing-live-updates/card/ mt7KJ1hv94XtldY6jOod 2 - https://edition.cnn.com/2021/10/25/politics/facebook-papers-what-matters/index.html 3 - https://www.wsj.com/articles/the-facebook-files-11631713039 4 - https://resultadosdigitais.com.br/blog/redes-sociais-mais-usadas-no-brasil/ 5 - https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/conanda/resolucao_163_conanda.pdf 6 - https://www.camara.leg.br/noticias/780843-comissao-aprova-direito-de-criancasreceberem-orientacao-sobre-navegacao-segura-em-redes-sociais/
Carolina Miranda é Diretora de Pesquisas Jurídicas no IEJA Japão. Advogada especialista em Proteção de Dados pela London School of Economics and Political Science. Coordenadora de grupo de estudo sobre “Big Data”. 11
TRIBUNAL EM FOCO
STJ aposta na inteligência artificial Tecnologia de ponta é uma das bases do planejamento estratégico da gestão do Ministro Humberto Martins para o biênio 2020-2022.
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TRIBUNAL EM FOCO
A AUTOMAÇÃO DO PROCESSO JUDICIAL E O USO DE FERRAMENTAS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PODEM GARANTIR GANHO DE TEMPO E REDUÇÃO DE CUSTOS
HUMBERTO MARTINS, PRESIDENTE DO STJ
A tecnologia deve ser uma estratégia para facilitar o alcance da Justiça por todos os cidadãos, além de tornar as respostas às demandas do público mais simples, rápidas e transparentes. É sob esse mantra que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deflagrou, desde 2019, um conjunto de iniciativas centradas no meio digital, nas facilidades da informática e na integração de bancos de dados e serviços com tendências promissoras. O próprio presidente do STJ, Humberto Martins, é entusiasta das ferramentas tecnológicas e do aprofundamento da digitalização dos processos. Segundo ele, trata-se da questão de melhor atender às variadas e crescentes demandas do público em todo o território nacional e, também, de enfrentar um quadro de elevada complexidade das relações sociais. Por essas investidas, o tribunal de terceira instância é destaque em inovações. A partir da Portaria STJ/GP 140, de 26 de abril de 2021, o Ministro Humberto Martins instituiu um comitê especial para implementar o Laboratório de Inovação. Integram esse grupo a Secretaria Geral da Presidência, o Gabinete do Diretor Geral, magistrados e representantes de diversas secretarias e assessorias do tribunal. O colegiado já vem tratando, entre outros temas atualíssimos, a inteligência artificial (IA) e a realidade virtual. Em sua argumentação para descrever a tarefa do STJ de se sintonizar
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com a demanda atual de gigantesca conexão por intermédio da rede mundial dos computadores e de dispositivos móveis, o presidente do STJ e do Conselho da Justiça Federal (CJF) vem defendendo a tecnologia da IA como forma de combater de frente o excesso de judicialização no país. “A automação do processo judicial e o uso de ferramentas de inteligência artificial podem garantir uma rápida resposta do Poder Judiciário às pretensões deduzidas pelas partes, com ganho de tempo e redução de custos”, assinala Humberto Martins. A gestão do Ministro ampliou o uso de meios digitais para o atendimento a advogados e partes. Desde setembro de 2020, é possível peticionar e acompanhar processos por celular ou tablet, a partir do aplicativo STJ CPE Mobile. Informações e dúvidas podem ser tratadas por videoconferência, em tempo real, no Balcão Virtual, plataforma on-line que registrou 7.729 acessos em menos de três meses após o lançamento em março deste ano. O Portal da Transparência do STJ foi reformulado para facilitar a consulta de informações referentes a áreas como estatística processual, gestão orçamentária, gestão de pessoal e remuneração, licitações e contratos. O novo site oferece ainda painéis de Business Intelligence (BI) com dados compilados e atualizados a respeito das ações socioambientais e iniciativas estratégicas.
O BRASIL É CASO ÚNICO EM TERMOS DE JUDICIALIZAÇÃO NO MUNDO. TEMOS 78 MILHÕES DE DEMANDAS JUDICIAIS CONFORME OS CÁLCULOS DO CNJ
LUIS FELIPE SALOMÃO, MINISTRO DO STJ
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TRIBUNAL EM FOCO
AVALANCHE DE PROCESSOS Para tornar-se um tribunal high-tech, o STJ elegeu a IA um dos três alicerces do planejamento estratégico da gestão do Ministro Humberto Martins no biênio 2020-2022. Esse tipo de tecnologia já está presente em metade dos tribunais do país, conforme estudo divulgado em março último e produzido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), sob a coordenação do Ministro do STJ, Luis Felipe Salomão. Na avaliação do magistrado, o movimento de digitalização da Justiça é cada vez mais necessário para a boa gestão dos tribunais diante do elevado volume processual. Conforme o levantamento, além da plataforma operada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem 64 projetos de inteligência artificial em 47 tribunais. “O Brasil é caso único em termos de judicialização. Temos 78 milhões de demandas judiciais pelos cálculos do CNJ”, lembrou. Ainda de acordo com o Min. Salomão, a pesquisa da FGV revelou que o emprego da IA nas cortes de Justiça gerou um impacto financeiro positivo, uma vez que entre os alvos da IA estão o corte de despesas, aumento da eficiência e da qualidade, promoção da celeridade e ampliação da transparência, na construção do chamado Judiciário 5.0. O relatório sobre a IA no Judiciário analisou os três sistemas já adotados pelo STJ: o Sócrates, o Athos e o e-Juris. O primeiro já se encontra em versão 2.0, elaborado em resposta ao desafio da identificação antecipada das controvérsias jurídicas do recurso especial. A ferramenta aponta de forma automática o permissivo constitucional invocado para a interposição do recurso, os dis16
ESTUDO DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS (FGV) APUROU EM MARÇO DESTE ANO QUE, ALÉM DA PLATAFORMA OPERADA PELO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, HAVIA MAIS 64 PROJETOS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM 47 TRIBUNAIS DO PAÍS
positivos de lei questionados e os paradigmas citados para justificar a divergência. Quanto ao sistema Athos, o objetivo é localizar processos que possam ser submetidos à afetação para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos. Além disso, a ferramenta monitora processos com entendimentos convergentes ou divergentes entre os órgãos fracionários do STJ, casos com matéria de notória relevância e, ainda, possíveis distinções ou superação de precedentes qualificados. Por fim, o e-Juris é usado pela Secretaria de Jurisprudência do STJ na extração das referências legislativas e jurisprudenciais do acórdão, além da indicação dos acórdãos principais e sucessivos sobre um mesmo tema jurídico. O tribunal ainda testa o sistema da Tabela Unificada de Assuntos (TUA) para a identificação automatizada do assunto do processo para fins de distribuição às seções da Corte, conforme o ramo do direito em que atuam.
Ministro Humberto Martins, presidente do STJ
AGENDA 2030 O principal objetivo do STJ, explica o seu presidente, é justamente estar 100% alinhado com a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), sobretudo com o objetivo de promover o acesso universal à justiça. O tribunal está comprometido com essas metas e tem pautado suas ações no alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), fazendo as escolhas necessárias para melhorar a vida das pessoas, agora e no futuro. O ODS de número 16, priorizado pela corte superior, é o que trata de “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”. “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”, diz o objetivo da ONU ratificado por seus países-membros.
Na visão de Martins, o aprofundamento da digitalização vai permitir aos tribunais cumprir de forma ainda mais efetiva o “papel constitucional de garantidor dos direitos fundamentais”. O presidente do STJ chamou ainda atenção para a importância da modernização radical do Judiciário também durante a crise global trazida com a pandemia da Covid-19. As declarações de Martins foram dadas na abertura do 1º Encontro Nacional de Laboratórios de Inovação do Poder Judiciário (1º E-Labs), realizado de 7 a 11 de junho de 2021 na modalidade virtual. Na oportunidade, representantes de mais de 20 equipes expuseram os seus modelos de trabalho e iniciativas de sucesso dentro do sistema de Justiça. O evento realizado pelo CNJ, com apoio do STJ, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), da Justiça Federal – Seção Judiciária de São Paulo e da empresa de inovação Judiciário Exponencial, debateu modelos inovadores, compartilhou experiências e explorou novas possibilidades no âmbito. 17
DIREITO PENAL
por Daniel Gerber
A CAPTAÇÃO AMBIENTAL FEITA POR UM DOS INTERLOCUTORES SEM O PRÉVIO CONHECIMENTO DA AUTORIDADE POLICIAL OU DO MINISTÉRIO PÚBLICO PODERÁ SER UTILIZADA, EM MATÉRIA DE DEFESA, QUANDO DEMONSTRADA A INTEGRIDADE DA GRAVAÇÃO
Daniel Gerber é Advogado Criminalista, Mestre em Ciências Criminais, Especialista em Direito Penal Econômico. 18
Gravações clandestinas: limite probatório
E, confirmando a validade imediata da norma, pertinente destacar o recente julgado do Tribunal Superior Eleitoral2, em que prevaleceu a posição do Ministro Relator ALEXANDRE DE MORAES, o qual bem salientou que a aplicabilidade do Pacote Anticrime é imediata e deve influenciar igualmente o processo eleitoral.
Um dos mais contundentes meios de prova utilizado no combate aos delitos financeiros (lavagem de dinheiro etc.) e, também, praticados por funcionários públicos em virtude da função (corrupção passiva etc.), sempre foi a gravação ambiental, clandestina, realizada por um dos interlocutores da conversa.
Na oportunidade, o eminente Ministro frisou que, na seara eleitoral, tal prova deve ser considerada ilícita “porque a privacidade e a intimidade, direitos fundamentais garantidos pela Constituição, devem prevalecer, sob o risco de incentivar essa prática em cenário de disputa acirrada como o eleitoral.”
Antes do advento do Pacote Anticrime (Lei n.º 13.964/2019), sua utilização como prova acusatória era permeado por muitas dúvidas acerca de sua constitucionalidade, tendo em vista a ausência de sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro - inclusive sendo tema de repercussão geral em nossa Suprema Corte desde 2017, no RE 1.040.515.
Enfim, a novel disposição, corroborada pelo julgamento acima, traduz profunda alteração no meio de prova e, consequentemente, nos processos em andamento que dele derivam. Isso porque, sendo norma processual de aplicação imediata, invalida que uma gravação clandestina outrora utilizada para fins acusatórios - indiciamento, oferecimento de denúncia etc – permaneça no processo gerando efeitos contrários ao réu.
Não obstante, e como citado, a aprovação do Pacote Anticrime regulou a matéria ao promover alterações na Lei de Interceptação Telefônica, introduzindo em seu bojo o parágrafo 4º do artigo 8º-A, ora reproduzido: “A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.”
E, ao contrário do que possa parecer em uma primeira análise, a nova posição aqui comentada em nada enfraquece o Estado de Direito. Pelo contrário, ainda que prejudique o andar de determinadas investigações, fortalece o mínimo ético que deve fundamentar a ação estatal no combate à criminalidade.
Além deste dispositivo, o Legislador fez questão de frisar, no parágrafo 1º do artigo 10ª-A da Lei em comento1, que “não há crime quando um dos interlocutores realiza captação ambiental.”. Conclui-se que a gravação ambiental e clandestina, quando realizada por um dos interlocutores, continua sendo lícita; entretanto, para fins de investigação e processo criminal, ilegítima enquanto prova de autoria e/ou materialidade delituosa, restando sua utilização limitada apenas para matéria de defesa.
1 - Art. 10-A, Lei 9.296/96 – Realizar captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta for exigida: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 1º Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores. § 1º Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores. 2 - Julgamento do plenário do TSE relacionado aos processos: AgR e ED no Respe 0000634-06 e AgR no AI 0000293-64.
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DIREITO DIGITAL
por Daniel T. Stivelberg
PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E OS PRINCÍPIOS DO LIVRE ACESSO, DA QUALIDADE E DA TRANSPARÊNCIA Em continuidade às nossas notas introdutórias a respeito dos princípios de proteção de dados pessoais, passamos a abordar os princípios que fundamentam os direitos dos titulares, a saber, livre acesso, qualidade e transparência. Esses princípios têm como ponto de partida o direito fundamental à autodeterminação informacional, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em 8 de maio de 2020, em decisão que referendou a suspensão da eficácia da Medida Provisória nº 954. A autodeterminação informacional fundamenta a disciplina da proteção de dados pessoais, nos termos do artigo 2º, II da LGPD, e constitui-se no direito que os indivíduos têm contra intervenções indevidas do Estado e de empresas no direito à proteção de dados, e, ao mesmo tempo, no dever de asseguração, de incumbência do Estado, na produção de normas que garantam esse direito. O princípio do livre acesso confere aos titulares dos dados pessoais a garantia de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais, na forma do que dispõe o art. 6º da LGPD. Esse princípio concretiza-se na forma do art. 18, incisos I e II da LGPD, que conferem aos titulares o direito de obter do controlador, mediante requisição, a confirma-
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ção da existência do tratamento e acesso aos dados pessoais. A efetiva garantia do “direito de acesso”, contudo, traz importantes desafios operacionais para as organizações, e sua regulamentação, pela ANPD, deverá prover contornos de razoabilidade e proporcionalidade para coibir o uso abusivo do instituto e sua exequibilidade. A qualidade dos dados está relacionada à efetividade da governança e gestão dos ativos informacionais das organizações. A LGPD define, ainda no art. 6º, V, a garantia de exatidão, clareza, relevância e atualização dos dados, de acordo com a necessidade e para o cumprimento da finalidade de seu tratamento. Esse princípio reclama das organizações a edificação de uma “Governança do Digital” que na prática traga políticas, procedimentos e padrões para o adequado desenvolvimento, uso e gerenciamento de sua infoesfera, com determinações claras a gestores e custodiantes de dados a respeito do ciclo de vida dos ativos e a atribuição de responsabilidades. Do princípio da qualidade emerge, por exemplo, o direito à correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados, na forma do art. 18, III da LGPD. Por fim, o princípio da transparência, constante do art. 6º, VI, garante aos titulares informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial. A transparência objetiva assegurar ao titular dos dados o exercício efetivo de seu direito à autodeterminação informacional, conferindo-lhe condições de participação informada sobre a forma como o tratamento de suas informações está sendo conduzido pela organização. A economia intensiva em dados exige dos controladores que, cada vez mais, inovem em termos de transparência como uma condição imprescindível para uma relação de confiança entre titulares e agentes de tratamento de dados pessoais.
Daniel T. Stivelberg é Encarregado-Adjunto de Proteção de Dados (DPO), Gerente de Relações Governamentais e Secretário do GT de Governança de Dados e do Comitê de Ética e Conformidade da Brasscom. É mestrando em Direito Constitucional no IDP, Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, pesquisador voluntário do CEDIS, Centro de Estudos de Direito, Internet e Sociedade, também no IDP, e Diretor Acadêmico de Direito Digital do IEJA, Instituto de Estudos Jurídicos Aplicados. Stivelberg é especialista em Relações Internacionais pela UnB e em Direito Constitucional pelo nominado IDP. Possui bacharelado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e em Relações Internacionais pelo Unicuritiba.
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CIDADANIA
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Liberdade de expressão versus fake news A premiação de dois jornalistas com o Nobel da Paz 2021 é o reconhecimento do papel da livre imprensa para a democracia e contra a desinformação
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CIDADANIA
A assombrosa difusão de notícias falsas pela internet é um fenômeno que preocupa o mundo, sobretudo o Brasil, estimulando debates na sociedade e nas Casas legislativas sobre sua natureza jurídica e suas consequências. O assunto ganhou especial destaque recentemente com o anúncio, em 8 de outubro, da premiação de dois jornalistas com o Nobel da Paz 2021 – Maria Ressa (Filipinas) e Dmitry Andreyevich Muratov (Rússia). Muratov fundou o jornal russo Novaia Gazeta, que se destacou por apontar escândalos de corrupção no governo do Czar Vladimir Putin, além de revelar o surgimento das tais “fazendas de trolls”, como são chamadas as agências difusoras de mentiras na internet, que ganharam notoriedade no contexto das eleições nos Estados Unidos de 2016. Maria Ressa, por sua vez, criou o Rappler, veículo de imprensa digital que expôs ações populistas do filipino Rodrigo Duterte e como sua campanha de combate às drogas escondeu perseguições e assassinatos. Ela e Muratov sofreram duras perseguições,
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sob o discurso de crítica à atuação crítica dos jornalistas, tachados de inimigos da Nação. Na mensagem que revelou os vencedores, o comitê norueguês do prêmio expressou temor de como as redes sociais vêm servindo para “intimidar opositores e manipular o discurso público”, além de enaltecer a liberdade de expressão como “pré-condição para a democracia e a paz duradoura”. Com isso, o Nobel vê o jornalismo “independente e baseado em fatos e na integridade profissional” como uma defesa contra “o abuso do poder, a mentira e a propaganda de guerra”. Sem liberdade de expressão e imprensa livre, destaca a premiação, “será difícil promover melhor ordem mundial em nosso tempo”. Ao qualificar as redes sociais como manipuláveis, a premiação atribui às redes o papel de instrumento de conflito, além de campo fértil para paranoias e teorias da conspiração. Casos reais de ataques à liberdade de expressão e escalada de autoritarismo, como os enfrentados por Ressa e Muratov, se replicam em vários países.
Dmitry Andreyevich Muratov
Maria Ressa
ABORDAGEM INÉDITA Foi a primeira vez que o prêmio foi para um aspecto específico do direito internacional, a liberdade de expressão. Embora outros dois jornalistas já tenham sido premiados, em 1907 e 1935, o foram pelo ativismo pela paz. A presidente do Comitê, Berit Reiss-Anderson, lembrou que a imprensa livre é fator de pacificação internacional e que “não há democracia, nem frágil ou avançada, sem liberdade de expressão”. “A ironia é que há mais informação hoje do que jamais obtivemos”, acrescentou. O Brasil tem sido questionado por organismos internacionais e movimentos independentes por episódios de repressão à imprensa e pela divulgação,
por membro do governo federal, de informações não confiáveis na internet. Entre as matérias que tratam do tema no Congresso está o projeto de lei 2.630/2020, chamado PL das Fake News, aprovado no Senado em junho de 2020 e parado na Câmara dos Deputados, para regular a transparência das redes e de serviços de mensagens privadas. Qual o limite para o direito de se manifestar nas mídias digitais? Eis a questão. O PL 2.630/2020 de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) propõe criar a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O texto passou por debates intensos nas duas Casas legislativas, audiências e 25
CIDADANIA
NÃO HÁ DEMOCRACIA, NEM FRÁGIL OU AVANÇADA, SEM LIBERDADE DE EXPRESSÃO. A IRONIA É QUE HÁ MAIS INFORMAÇÃO HOJE DO QUE JAMAIS OBTIVEMOS
BERIT REISS-ANDERSON, PRESIDENTE DO COMITÊ ORGANIZADOR DO NOBEL
eventos, mobilizando atores variados da sociedade acerca de tópicos como a prestação de contas nas atividades de moderação de conteúdo por plataformas digitais como YouTube, Facebook e Twitter, e de serviços de mensagem como WhatsApp e Telegram, além de modelos de autorregulação para lidar com notícias fraudulentas. Conforme o autor da proposta, ela visa fortalecer a democracia e reduzir a desinformação, por meio do combate a informações falsas ou manipuladas nas redes sociais. Entre as principais mudanças estão regras para coibir contas falsas e robôs, facilitar o rastreamento do envio de mensagens em massa e garantir a exclusão imediata de conteúdos racistas ou que ameacem crianças e adolescentes, por exemplo. Além disso, o projeto cria regras para as contas institucionais de autoridades e prevê punições para as plataformas que descumprirem as novas normas. O governo de Jair Bolsonaro também tentou legislar sobre o tema por meio de uma medida provisória (MP) que redefinia critérios para a remoção de conteúdos e contas das redes sociais. Editada em 6 de setembro, a MP acabou sendo devolvida ao Executivo uma semana depois pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e suspensa liminarmente pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF). Pacheco argumentou que o texto violava a proibição da Constituição referente à impossibilidade de edição de Medidas Provisórias a respeito de direitos políticos e cidadania e, por isso, causaria insegurança jurídica. Rosa Weber, fundamentando-se em argumentos similares aos do presidente do Congresso, deferiu medidas cautelares em sete ações para suspender a eficácia da MP. O assunto seria julgado em plenário virtual extraordinário pelo STF, mas acabou suspenso após a devolução da medida, que ocasionou a perda de objeto das referidas ações. A discussão, contudo, vai continuar. No último dia 20 de setembro, o governo, em reação às decisões do STF contra os seus apoiadores nas redes sociais, apresentou na Câmara o Projeto de Lei 3.227/2021, que reprisa integralmente o texto da MP devolvida. A matéria deverá ser analisada em conjunto com o PL das Fake News.
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CALABOCA JÁ MORREU! Bem antes de eventuais novas legislações para garantir informações íntegras e a preservação das prerrogativas da imprensa, coube ao STF realizar a maior defesa da liberdade de expressão garantida pela Constituição. Em decisão unânime de um julgamento histórico, a Corte liberou, em 11 de junho de 2015, a publicação de biografias sem autorização prévia. “O peso da censura é insuportável”, asseverou o decano Ministro Celso de Mello. Na prática, o Supremo ocupou a lacuna do Legislativo e pôs fim à polêmica que dividia escritores e artistas sobre a necessidade ou não de autorização do biografado ou seus herdeiros para que a obra fosse veiculada. Os nove Ministros presentes foram favoráveis à ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida em 2012 pela Associação Nacional de Editores de Livros
(Anel), para derrubar o impedimento de circular biografias não autorizadas. Na sessão de cinco horas, a relatora Cármen Lúcia pontuou que o julgamento era “sobre o direito à palavra e à expressão” e que a proibição constitui ato de censura. De maneira antológica, a ministra citou o dito popular: “Cala-boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”. A imprensa livre é, na sua argumentação, no julgamento, uma exigência constitucional para se garantir a liberdade de informar e do cidadão ser informado para exercer livremente a sua cidadania. “Não há democracia sem imprensa livre. Não há democracia sem liberdade. Ninguém é livre sem acesso à informação”, declarou Cármen Lúcia, como que se antecipando a um tema futuro e vislumbrando o que norteou o Nobel da Paz deste ano.
CALA-BOCA JÁ MORREU, QUEM MANDA NA MINHA BOCA SOU EU
Ditado popular citado pela ministra Cármen Lúcia, do STF, durante sessão de 11 de junho de 2015, que julgou a publicação de biografias sem autorização prévia.
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DIREITO CONSTITUCIONAL
por Fabiane Oliveira
A responsabilidade pelo exercício do direito à liberdade de expressão
“Tudo me é lícito mas nem tudo me convém”: essa emblemática frase de Paulo de Tarso, um dos personagens mais marcantes da história do Cristianismo, que atravessou milênios e até hoje é parâmetro para nossa conduta, significa, em outras palavras, que serei responsabilizada pelos meus atos. Simples assim. Tal lógica aplica-se, como nunca, ao exercício do direito à liberdade de expressão. Sobre ele, nossa Constituição é precisa no sentido de ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, IV). A primeira conclusão óbvia de sua literalidade é a de que o texto reflete a essência da Constituição como carta política de liberdades. Em suma, nosso conceito nacional alinha-se bem às palavras de Robert Alexy, para quem o direito geral de liberdade é “uma liberdade de se fazer ou deixar de fazer o que se quer” 1 (norma permissiva), desde que - e isto é importante - não haja nenhuma restrição estatal (norma de direitos). A invocação a Alexy é necessária para reforçar que o princípio da liberdade contrapõe-se ao princípio da legalidade, uma vez que, no ordenamento jurídico de um Estado Democrático, a lei é um instrumento para garantir, mas, ao mesmo tempo, mitigar o exercício de direitos, porque no pacto social que assinamos reconhecemos a necessidade de empenharmos deveres para com a sociedade. Destarte, as liberdades consagradas no texto constitucional devem ser analisadas à luz do princípio da legalidade previsto no mesmo artigo. É a própria lei maior que nos entrega diversas outras garantias fundamentais, tais quais a vida, igualdade, honra, intimidade, segurança, saúde, educação, lazer, cultura, meio ambiente equilibrado, paz e dignidade. São valores que têm assento constitucional já em suas primeiras linhas, presentes no cardápio de direitos individuais e coletivos do seu artigo quinto. A livre manifestação do pensamento, portanto, deve ser exercida em harmonia para com todos esses outros sobreprincípios, especialmente o da dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade.
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O que parecia óbvio está tendo que ser reafirmado nesta segunda década do século XXI, em razão das dinâmicas sociais ditadas pelo advento e capilarização das redes sociais. Diante de novo cenário político e social, a temática da liberdade de expressão retorna à agenda jurídica do país, porém com um enfoque distinto. Não apenas os indivíduos como também a sociedade e suas instituições democráticas buscam proteção contra perseguições preconceituosas e discursos de ódio organizados, os quais invocam, com falsos silogismos, a validação de seus abusos na acepção da própria liberdade de expressão, sob o argumento de ser incompatível com a autonomia do indivíduo qualquer controle do Estado sobre o discurso público. Em face das diversas nuances que o tema apresenta, cabe ao guardião da Constituição delimitar a extensão do conteúdo jurídico da liberdade de expressão no marco teórico inaugurado pela nova ordem democrática pós-88. Extrai-se claramente da Constituição o standard da impossibilidade de censura prévia, mas a norma também densifica a cláusula da vedação ao anonimato, para que, no caso concreto, seja apurado, sempre a posteriori, se houve abuso no exercício do direito, bem como se deve haver a reparação civil ou a responsabilização criminal pelo excesso. Diante desses parâmetros, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que “quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja”, não cabendo ao Estado, “por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas” (trecho do voto do Ministro Ayres Britto por ocasião do julgamento da emblemática ADPF 130, que revogou a Lei de Imprensa). Por outro lado, delimitou, como abusos e excessos, os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), a propagação de pensamento que dissemine violência (veja-se caso Ellwanger - HC 82.424), incitamento ao fechamento do Tribunal e a atos antidemocráticos, a ameaça de morte ou de prisão de seus membros e familiares, notícias inverídicas usadas com o propósito de auferir vantagem indevida, seja ela de natureza política, econômica ou cultural,
e o exercício, por membros da magistratura, de atividade político-partidária. Com efeito, no dizer do Ministro Alexandre de Moraes, “A liberdade de expressão não se confunde com liberdade de agressão, com anarquia, desrespeito ao Estado de Direito” (Petição nº 9.456, cujo objeto era o pedido da Procuradoria Geral da República pela prisão e investigação do deputado Daniel Silveira, em razão de postagem, por reiteradas vezes, de notícias fraudulentas, denunciações caluniosas, ameaças ao STF e aos seus membros, além de incitação de atos antidemocráticos em uma rede social). É óbvio que críticas, sátiras, obras provocativas que pretendam atingir fins políticos ou religiosos “encontram suporte legitimador em nosso ordenamento jurídico, mesmo que de sua prática resultem posições, opiniões ou ideias que não reflitam [...] a corrente majoritária de pensamento em determinada coletividade” (Min. Celso de Mello, Relator do ARE 891.647-ED/SP). Isso porque “somente a livre formação de opinião e o pluralismo de ideias e de visões de mundo podem combater a instalação de um pensamento único hegemônico”, Min. Ricardo Lewandowski, ADI 4.451). Em síntese, o direito à liberdade de expressão comporta a obrigação da ética e do respeito ao ser humano e à democracia. São duas faces de uma mesma moeda, e o senso universal da racionalidade humana ainda é o melhor ponto de partida para a solução de controvérsias nessa seara. Inseridos na Era dos Direitos2, de Norberto Bobbio, é bom lembrar de que devemos ser responsabilizados pelo não cumprimento de nossos deveres. 1 - ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. 2 - Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. 7. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004
Fabiane Oliveira é fundadora e Presidente do Instituto de Estudos Jurídicos Aplicados - IEJA. Mestre e Doutoranda em Direitos Humanos pela USP. Assessora de Ministro do STF. Professora. 29
DIREITO ADMINISTRATIVO
por Fernando Mendes
A arbitragem como nudge nos contratos administrativos
O ESTADO BRASILEIRO PRECISA, ALÉM DE SEDIMENTAR O SEU PAPEL DE REGULADOR DA ECONOMIA, RETOMAR O DE INDUTOR DO CRESCIMENTO ECONÔMICO
Fernando Mendes é advogado, administrador de empresas, mestre em Direito Administrativo (PUC-SP) e sócio no escritório Warde Advogados. Foi juiz federal, procurador do Estado de São Paulo e presidente da AJUFE e da AJUFESP. 30
Contratar com a Administração Pública sempre envolveu riscos. Trata-se de um problema passado, presente e futuro que demanda o constante aprimoramento dos mecanismos de contratação e controle. Se o aperfeiçoamento do modelo tem por finalidade trazer maior segurança jurídica e transparência para os contratos da Administração, a criação de mecanismos que tornem a solução dos conflitos decorrentes desses contratos mais previsíveis e ágeis é medida que também reflete diretamente na redução dos custos de transação. Quando o empresário, nacional ou estrangeiro, tem de tomar uma decisão de — como e onde — investir, normalmente ele faz algumas perguntas básicas: quanto eu vou ganhar e, se tudo der errado, quem vai decidir quem tem razão e em quanto tempo. E a definição de como se dará a saída passa pela escolha de quem arbitrará, no sentido amplo, essa decisão final: o Poder Judiciário ou um árbitro escolhido pelas partes. Ao se analisar o por quê da utilização da arbitragem nos contratos administrativos, teóricos da economia comportamental e da análise econômica do direito apontam, dentre outras, duas grandes vantagens: a) a judicialização do conflito é considerada uma externalidade negativa que implica o aumento do preço a ser pago pelo Estado ao contrato; e b) a escolha de um árbitro especialista na matéria é considerado fator inibitório para os chamados comportamentos oportunistas. Richard Posner, ao analisar os incentivos que a escolha de árbitros traz, quando comparados aos jurados do sistema judicial americano, para a solução de conflitos contratuais, defende que a opção pela arbitragem não só torna a solução mais previsível como permite que o contrato seja mais objetivo e simples, eliminando a necessidade de cláusulas explicativas ou complementares cuja finalidade seria a de facilitar a interpretação do acordo pelos leigos (jurados) ou necessariamente não especialistas na matéria (juízes).
Se aquele que pretende contratar com a Administração tiver como certo que a solução de eventual controvérsia decorrente da avença dependerá do caminho longo e demorado que caracteriza a via do Poder Judiciário, tomará esse fator com externalidade negativa e fará com esse custo reflita no preço a ser cobrado da Administração Pública. O que se pode constatar é que a adoção da arbitragem para solução dos conflitos decorrentes dos contratos celebrados com a Administração pode consubstanciar, para a iniciativa privada, uma espécie de mecanismo compensatório dos riscos políticos e de um ambiente de incertezas regulatórias, externalidades que acabam influenciando negativamente a atividade empreendedora, especialmente a voltada à geração da infraestrutura pública e que tem nos contratos de concessões e parcerias público-privada os seus principais instrumentos. Richard H. Thaler e Cass R. Suntein estudando a economia comportamental, defendem o chamado nudge, isto é, o estímulo, o empurrãozinho, o cutucão que, na arquitetura das escolhas, é capaz de mudar o comportamento das pessoas de forma previsível sem lhes tirar, contudo, o direito de livre opção, movimento que denominam de paternalismo libertário. Nesse contexto, em que o Estado brasileiro precisa, além de sedimentar o seu papel de regulador da economia, retomar o de indutor do crescimento econômico, cada vez mais será importante que as regras do jogo sejam claras para que se permita a criação de um ambiente de negócio que confira o mínimo de previsibilidade e de segurança jurídica para os contratos a serem celebrados, como política necessária para atração de investimentos. A utilização da arbitragem pela Administração Pública, como meio alternativo para a solução de suas discussões contratuais, pode ser esse fator positivo, esse incentivo, esse nudge que estava faltando. 31
MARCAS TOP
Château Haut-Brion, um brinde à história
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As vinhas históricas do Château Haut-Brion
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MARCAS TOP
Um vinho elegante e de sabores duradouros. A descrição mais imediata e sucinta do Haut-Brion, o clássico tinto de Bordeaux, ganha significados dignificantes quando se examina sua bela história centenária. O membro primogênito do seleto grupo dos cinco Premiers Grands Crus Classés, assim eleitos pela famosa classificação de 1885, merece então ser sorvido com a devida reverência e vagarosamente. O primeiro Château a ser chamado como tal é notado pelos especialistas como modelo de excelência da icônica denominação francesa, pois se abre em camadas na taça. Os enólogos atentam para a experiência imperdível que o Haut-Brion nos brinda ano após ano como vinho fresco de bom corpo, evoluindo muito bem e surpreendendo pela estrutura firme, taninos sedosos, agradável acidez e complexidade. Essa performance advém da composição da uva formada por Cabernet Sauvignon (44%), Merlot (43%), Cabernet Franc (13%), com teor alcoólico de 13%. A preciosidade desse Bordeaux combina bem com diferentes pratos, como carnes vermelhas grelhadas e assadas, churrasco, cordeiro, cogumelos, massas com ragu de carne, embutidos e queijos duros. Tudo com notas de framboesas, cerejas, violetas e alcaçuz, sobre nuances de chocolate, tabaco e traço mineral. A garrafa de 750 ml era negociada em outubro de 2021 pelo comércio eletrônico de vinhos entre R$ 6 mil e R$ 10,5 mil. O produto pode ser comprado por meio de sites especializados, como o Wine Brasil e Divinho, na Americanas e até no Mercado Livre, além das principais casas importadoras de vinhos do país. As melhores safras são as de 1989 (vencedor do Vivino’s 2020 e Wine Style Awards: Bordeaux Pessac-Léognan), com nota 4,8 numa escala de cinco. Semelhante pontuação recorde atingiram as safras de 1928, 1945, 1953 e 1961. 34
Príncipe Robert of Luxembourg, responsável pela administração da marca
Entre as mais recentes, os destaques são as de 2009, 2012, 2015 e 2017 – todas com 4,6 pontos. A trajetória exemplar do Château Haut-Brion começa no alvorecer da viticultura na sua região. Na metade do século XVI, ele foi reconhecido como um “Cru” pelo departamento de arquivo e documentos de Gironde. Com privilegiado terroir localizado a poucos quilômetros da cidade de Bordeaux, alçou em pouco tempo o selo de Premier Grand Cru Classé, graças à fama e às qualidades dos seus vinhos à época. Em 1935, a propriedade histórica foi adquirida pelo americano Clarence Dillon, que restaurou a glória do Château de Pessac-Léognan. Hoje, tanto Haut-Brion quanto o seu vizinho Château La Mission Haut-Brion estão sob a administração do príncipe Robert of Luxembourg, com gestão técnica de Jean Philippe Delmas. Santé!
EM 1935, A PROPRIEDADE HISTÓRICA DA VINÍCOLA FOI ADQUIRIDA PELO AMERICANO CLARENCE DILLON. A ADMINISTRAÇÃO ESTÁ NAS MÃOS DO PRÍNCIPE ROBERT 35
DIREITO TRIBUTÁRIO
por Fernando Facury Scaff
REFORMA TRIBUTÁRIA, DESIGUALDADE E DESENVOLVIMENTO
SIMPLIFICAR O SISTEMA SEMPRE SERÁ BEM-VINDO, MAS O REFORMAR COMPLETAMENTE NO MEIO DA CRISE ACARRETARÁ AUMENTO DE CARGA TRIBUTÁRIA, O QUE INIBE INVESTIMENTOS E CRESCIMENTO, ALÉM DE AUMENTAR A INCERTEZA E A DESIGUALDADE.
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Como regra, existem três grandes bases impositivas para que sejam cobrados tributos: renda, propriedade e consumo. Um bom governo, sob a ótica financeira, pressupõe respeito à capacidade contributiva de seus cidadãos, isto é, que arrecade mais de quem ganha ou possui mais bens ou dinheiro, e arrecade menos de quem menos possui. Pelo lado dos gastos, é necessário que o governo também respeite a capacidade receptiva das pessoas, isto é, gaste mais com quem mais necessita dos serviços públicos por ele prestados. Dificilmente haverá quem esteja satisfeito com o atual sistema tributário brasileiro, pois é uma colcha de retalhos e arrecada mais de quem ganha menos. Visando reformar o sistema, o Ministério da Economia optou por fatiar seu projeto, tendo enviado ao Congresso projetos de reforma da tributação do consumo e da renda. Sobre a tributação das propriedades, nem um pio. A tributação do consumo tem a característica de ser cobrada de modo invisível, pois está embutida no preço das mercadorias e serviços adquiridos, e é regressiva, sem análise de capacidade contributiva, uma vez que um quilo de feijão tem o mesmo impacto econômico, seja consumido por ricos ou pobres. Porém, para o rico, um quilo de feijão custa relativamente pouco, e para o pobre custa muito e a proposta já enviada para o Congresso aumenta a carga tributária, embora o governo negue – todos sempre negam. Além disso, fala-se em ressuscitar a CPFM, xodó do governo – mais aumento de tributo para todos, seja rico ou pobre, independente da capacidade contributiva. Já a reforma do IR é um lastimável improviso. O projeto inicial enviado pelo governo federal previa aumento de arrecadação e foi repudiada pelo próprio governo federal – pode isso? E a versão aprovada na Câmara prevê redução da carga tributária, de forma completamente diversa do que foi inicialmente enviado, tanto que os governadores estão se opondo ferozmente a ela.
Aparentemente chegamos ao fundo do poço, mas nele pode haver um alçapão para níveis mais profundos. Hoje, mal ou bem, as cadeias produtivas estão estruturadas sobre uma base conhecida, embora ruim. O risco é caminharmos para bases desconhecidas, desestruturando diversos elos dessas cadeias. Em meio a abissal queda de atividade econômica, será adequado trilhar esse caminho? Simplificar o sistema sempre será bem-vindo, mas o reformar completamente no meio da crise acarretará aumento de carga tributária, o que inibe investimentos e crescimento, além de aumentar a incerteza e a desigualdade. O ideal seria engavetar todos os projetos, aproveitar os debates e a experiência havida, e criar desde já uma Comissão para discutir uma verdadeira reforma federativa, analisando a tributação, o gasto de cada ente federativo na prestação de serviços públicos e a dívida dos Estados com a União. Esse projeto seria votado na nova legislatura que se iniciará em 2023. Não há mais tempo a perder em face dos 14 milhões de desempregados e o retorno de milhões aos níveis mais baixos da pobreza, como ocorreu nestes quase três anos do longo governo Bolsonaro. Não vamos resolver esses problemas com auxílios emergenciais sem fim, que são necessários, mas não resolvem o impasse. Precisamos de um capitalismo inclusivo e responsável, e a reforma financeira é o caminho a ser trilhado para um desenvolvimento duradouro, e não ao estilo de voo de galinha, como a que se pretende implantar – se é que existe um plano em curso, pois o que se vê são apenas iniciativas esparsas e descoordenadas, verdadeiro improviso.
Fernando Facury Scaff é Professor Titular de Direito Financeiro da USP, Advogado Sócio de Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff - Advogados. Livre docente e doutor em Direito pela USP 37
DIREITO TRIBUTÁRIO
por Flavia Regina de Souza Oliveira
STF e o CEBAS O Supremo Tribunal Federal determinou a publicação do acórdão dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário (RE) nº 566.622 (conhecido como “Caso Parobé”), entendendo por bem manter a exigência do CEBAS – Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social – como requisito para fruição da imunidade tributária às contribuições para a Seguridade Social, sem se pronunciar expressamente sobre o modo como ela se compatibiliza com a também imposição de lei complementar para estabelecer os requisitos para gozo da imunidade. Com efeito, no passado, o Plenário havia assentado a constitucionalidade do art. 55, II, da Lei nº 8.212/1991 e fixou a seguinte tese: “A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo art. 195, § 7º, da Constituição Federal, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas”. Por outro lado, o colegiado acolheu, no segundo momento, os embargos opostos pela Fazenda Nacional no RE para esclarecer que a lei complementar é o instrumento apto a estabelecer as contrapartidas para que as entidades usufruam da imunidade tributária, mas os aspectos procedimentais da imunidade, relacionados à certificação, à fiscalização e ao controle administrativo das entidades beneficentes de assistência social podem ser regulamentados por lei ordinária. Ocorre que há uma aparente contradição no julgado: o CEBAS não é mero certificado formal, com a finalidade de chancelar requisitos previstos em lei complementar, ele só é concedido se forem cumpridas condições (contrapartidas) previstas em lei ordinária (antigamente Lei nº 8.212/1991, atualmente Lei nº 12.101/2009). Assim, não afastar a sua exigência é incoerente com a própria tese firmada pelo STF no RE 566.622. 38
Além disso, os Tribunais estão interpretando a questão de modo distinto. Por um lado, o CARF e o TRF da 5ª. Região entendem que o STF condicionou o gozo da imunidade apenas ao cumprimento dos requisitos do artigo 14 do CTN. Veja: “o acórdão recorrido assentou que “o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 566.622/RS, submetido ao rito da repercussão geral, decidiu que a pessoa jurídica para fazer jus à imunidade do parágrafo 7º do art. 195 , C/88, com relação às contribuições sociais, deve atender exclusivamente aos requisitos previstos no art. 14 do CTN” (08053233720174058000 Agravo Regimental Cível, Pleno 04/08/2021). Por outro lado, os TRF da 4ª. e 3ª. Regiões entendem que, para fruição da imunidade, é necessário que a entidade, além de preencher os requisitos previstos no artigo 14 do CTN, também possua o CEBAS: “7. A jurisprudência desta E. Corte Regional tem decidido no sentido de que a certificação do interessado pela autoridade competente, nos moldes da Lei n° 12.101, de 27.11.2009, quanto ao reconhecimento da sua condição de Entidade Beneficente de Assistência Social, é requisito indispensável. Precedentes. (500085916.2017.4.03.6110, 30/09/2021). A diretriz que parece revelar exatamente a ratio decidendi é a seguinte: apenas os requisitos previstos em lei complementar devem ser exigidos para fruição da imunidade, devendo ser afastados os que estejam em lei ordinária. Nessa linha o Plenário do STF, no julgamento da ADI 4480, declarou a inconstitucionalidade do artigo 31 da Lei 12.101/2009, inclusive, o qual determinava que somente após a concessão do CEBAS haveria o direito à imunidade sobre as contribuições sociais. Logo, para haver coerência na aplicação do entendimento do STF, e em prol da função que o precedente possui em nosso ordenamento jurídico, é necessário que se consigne, expressamente, que o CEBAS é elemento dispensável para a fruição da imunidade pelas entidades que cumprem os requisitos do art. 14 do CTN. É o novo capítulo da história.
APENAS OS REQUISITOS PREVISTOS EM LEI COMPLEMENTAR DEVEM SER EXIGIDOS PARA FRUIÇÃO DA IMUNIDADE, DEVENDO SER AFASTADOS OS QUE ESTEJAM EM LEI ORDINÁRIA.
Flavia Regina de Souza Oliveira é sócia de Mattos Filho Advogados, onde atua na prática de Organizações da Sociedade Civil, Negócios Sociais e Direitos Humanos há mais de 20 anos. Formada pela USP, é especialista em Direito Tributário pela PUC-SP. Pela Fundação Getúlio Vargas, é também pós-graduada em Administração para Organizações do Terceiro Setor e em Princípios e Práticas da Responsabilidade Social nas Empresas, Instituição ou Organização e Mestre em Gestão e Políticas Públicas. É professora dos cursos do Programa de Educação Continuada da Fundação Getúlio Vargas e do MBA em Gestão de Negócios Socioambientais da ESCAS – Escola Superior de Conservação Ambiental de Sustentabilidade. 39
S U S T E N TA B I L I DA D E
Sinal verde para a revolução ESG Critérios socioambientais dominam cada vez mais os planos de negócios de grandes empresas e ditam novo rumo para os investimentos no mundo
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S U S T E N TA B I L I DA D E
As ameaças climáticas superaram a pandemia da Covid-19 e agora figuram no topo da lista das preocupações mundiais. Organismos multilaterais, governos, empresas de todos os portes, além de influenciadores e cidadãos comuns se engajam na agenda pela sustentabilidade, que tem sua importância evidenciada pelas nevascas, inundações e secas prolongadas. O tema mudanças extremas do clima global reavivou compromissos como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), e ganhou expressivo impulso no meio corporativo e no mercado financeiro graças ao movimento representado pelo ESG, acrônimo em inglês de Environmental, Social e Governance (Ambiental, Social e Governança). Logo nas primeiras linhas de seu livro “Como evitar um desastre climático: as soluções que temos e as inovações necessárias (Companhia das Letras, 2021), o empresário e filantropo americano Bill Gates quantifica o gigantesco desafio da transição do planeta para a chamada economia de baixo carbono. Com otimismo, ele aposta no fim dos atuais 51 bilhões de toneladas anuais de emissões de gases de efeito estufa por meio de mais investimento, novos hábitos e avanços tecnológicos. Gates, fundador da Microsoft e um dos mais importantes ativistas da luta contra as mudanças climáticas , fixa a meta ambiciosa de 2050 para zerar a poluição atmosférica. E faz a ressalva de que, como os gases em questão 42
permanecem na atmosfera por longo período, o planeta continuará quente por muitos anos, mesmo depois de chegarmos ao hoje impensável zero. No fim de setembro, um grupo de 107 empresas e 10 entidades setoriais do país pediu, por meio de carta dirigida ao governo Jair Bolsonaro, que o Brasil retome o protagonismo nos foros internacionais voltados à defesa da agenda verde global. “O Brasil tem vantagens comparativas extraordinárias na corrida para alcançarmos uma economia de emissões líquidas de carbono neutras valendo-se de nossos recursos naturais”, diz um trecho. O grupo defende um planejamento estratégico para o crescimento sustentável, combate às mudanças climáticas e metas ousadas de transmissão para uma economia descarbonizada. Entre os signatários do documento “Empresários pelo Clima” estão os presidentes de Alcoa, BRF, Cargill e Braskem. Eles adiantam que suas empresas já têm atuado em favor das iniciativas defendidas em nível nacional e global, ancoradas na ESG. Além de grandes empresas nacionais, subscrevem a mensagem entidades como: Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Associação Brasileira do Alumínio (Abal), Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos e Sindicato Nacional da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq e Sindimaq).
BANCOS UNIDOS PELA AMAZÔNIA
No início de setembro, os presidentes do Bradesco, Octavio de Lazari; do Santander, Sergio Rial; e do Itaú Unibanco, Milton Maluhy Filho, fizeram um balanço de seu pacto pela defesa da Floresta Amazônica, iniciado há pouco mais de um ano. Em manifesto divulgado pela imprensa, os líderes dos três maiores bancos privados do país listaram avanços do “Plano Amazônia”, iniciativa voltada ao desenvolvimento estruturado e sustentável do bioma. As instituições financeiras apostam no sucesso da bioeconomia, com apoio às cadeias de suprimentos e ao acesso a mercados globais, além de culturas sustentáveis como cacau e açaí, com foco em renda para comunidades e conservação florestal. Nesse sentido, emprestaram mais de R$ 100 milhões a cooperativas e agroindústrias, além de buscar regularização ambiental da pecuária, com a meta de erradicar o desmatamento ilegal do setor até 2025. 43
Para o professor Marcus Nakagawa, palestrante sobre sustentabilidade e coordenador do Centro ESPM de Desenvolvimento Socioambiental, ODS e ESG são complementares e devem fazer parte do planejamento diário de todos os investidores, empresários, empreendedores e executivos. “Em um mundo de tantas revoluções tecnológicas, temos todos de inovar e ampliar a forma simplista de pensar”, receita. Os 17 ODS da ONU, com 169 metas, englobam questões não só ambientais, mas também sociais, econômicas e de parcerias, nas quais empresas veem um processo em que todos os envolvidos ganham, conta Nakagawa. Nesse modelo de capitalismo de stakeholders, ou seja, que contempla as partes interessadas e não apenas acionistas, com benefícios para toda sociedade. Segundo analistas, o montante de recursos relacionados de alguma forma ao ESG e investidos no mundo representou US $38 trilhões em 2020,
EM UM MUNDO DE TANTAS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS, TEMOS TODOS DE INOVAR E AMPLIAR A FORMA SIMPLISTA DE PENSAR
MARCUS NAKAGAWA PROFESSOR DE SUSTENTABILIDADE E COORDENADOR DO CENTRO ESPM DE DESENVOLVIMENTO SOCIOAMBIENTAL
devendo alcançar US$ 53 trilhões em 2025, cerca de um terço do total de investimentos. Uma pesquisa da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos (Amcham) de 2021, com 178 líderes empresariais no Brasil, revela que 95% deles afirmaram que suas companhias têm engajamento nessa temática. Pioneiro no mercado jurídico brasileiro em ações voltadas à prática ESG, o escritório de Mattos Filho formou em setembro de 2020 um grupo com o leque completo para as áreas relacionadas à sustentabilidade corporativa. Reconhecido pelas temáticas voltadas à estratégia de negócio dos clientes, os sócios da área tratam de impacto social e de investimentos responsáveis.
Marcus Nakagawa
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Professor de sustentabilidade e coordenador do Centro ESPM de Desenvolvimento Socioambiental
A equipe especializada do escritório entende que a análise ESG é essencial para diminuir o risco da tomada de decisão e responder às demandas da sociedade de forma monetizada, política ou de relacionamento positivo. Seus integrantes lembram que a BlackRock, maior empresa em gestão de ativos do mundo, definiu, desde o começo de 2020, um plano de ação para tornar a sustentabilidade elemento-chave dos seus investimentos.
Anna Carollina Palmeira, arquiteta especialista em planejamento urbano
André Fortes Chaves, advogado, co-fundador do Lemob
ESTRADA DA ELETROMOBILIDADE A pauta ESG vem ganhando cada vez mais força no mundo dos negócios nos últimos anos, sobretudo após a pandemia. As perspectivas da adoção crescente de restrições regulatórias aos agentes poluidores e de maior conscientização ambiental por parte de consumidores, eleitores e investidores vêm induzindo empreendimentos emergentes e favoráveis à descarbonização do parque produtivo e do resto das atividades humanas. Nessa onda verde em escala global, os modernos veículos elétricos ganham especial impulso em virtude do óbvio malefício que os tradicionais modelos movidos a combustíveis fósseis trazem ao meio ambiente. Os transportes respondem por um quinto das emissões globais de gás carbônico, que é um dos principais gases causadores de efeito estufa. O Brasil, apesar de figurar entre os 10 maiores produtores e compradores de carros, com destaque no uso de etanol, está longe da eletrificação em larga escala, por limitações legais, ausência de incentivos e infraestrutura. Foi criado, no início deste ano, o Laboratório de Eletromobilidade (Lemob), com foco na difusão e viabilização das vantagens em transformar o
Brasil num polo de desenvolvimento e exportação de tecnologias, como um campo promissor, aproveitando oportunidades, gerando empregos e renda, reestruturando o setor urbano e agregando valor à balança comercial. O grupo tem apoio da Bundesverband eMobilität Federal Association of eMobility (BEM), associação de 300 empresas empenhadas em eletrificar a mobilidade na Alemanha do Grupo de Estudos sobre Política Tributária (Gept) e do escritório Carvalho & Furtado Advogados, de Belo Horizonte. “Com apoio de uma rede internacional, nosso grupo visa a desenvolver no Brasil setor econômico e empresarial a favor de um futuro sustentável, conectado e inteligente”, ressalta o seu cofundador André Fortes Chaves. O advogado explica que as iniciativas para impulsionar a eletromobilidade se tornam cada vez mais diversificadas e significativas, todas ancoradas no desafio de um novo vetor de crescimento econômico mundial ancorado na modernidade e nos desafios ambientais. “Nessa trilha, o Lemob conecta atores interessados em atrair recursos em um cenário em que governos, instituições e empresas se engajam”. 45
DIREITO BANCÁRIO
por Marcio Calil de Assumpção
Os efeitos da pactuação de cláusula compromissória de arbitragem em títulos executivos extrajudiciais
Marcio Calil de Assumpção é Advogado, Mestre em Direito pela Universidade Mackenzie, Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo com participação nas Comissões de Direito Bancário e Direito Falimentar, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, Coordenador do Comitê Legal de Recuperação de Créditos da Febraban – Federação Brasileira de Bancos, foi Presidente da Comissão de Direito Bancário da Seccional de São Paulo da OAB/SP nos anos de 2014 a 2018. 46
A grande indagação, para o título deste artigo, é saber se é possível a previsão de convenção arbitral em título executivo extrajudicial, e em qual medida. A cláusula compromissória de arbitragem inserida em documento particular, assinado por duas testemunhas e que contenha os requisitos de certeza (em relação à forma), exigibilidade (quanto ao vencimento) e liquidez (quanto à apuração do quantum debeatur) convive com o procedimento previsto no Código de Processo Civil para os títulos executivos extrajudiciais. Essa previsão (de cláusula compromissória em título executivo extrajudicial) não retira a eficácia executiva do título. A cláusula arbitral contratada, na forma da Lei 9.307/96, goza de força vinculante e caráter obrigatório e convive com a execução de título extrajudicial (CPC, 784, III), cada qual em seus limites e dentro de seu escopo. Embora o juízo arbitral não realize atos executivos (que são próprios da jurisdição estatal), ele poderá e deverá decidir as questões de direito material, típicas de ações de conhecimento, mesmo que sejam pretensões decorrentes de obrigações convencionadas em documento que também possua requisitos próprios de título executivo extrajudicial, e que por tal motivo o habilitam a percorrer a via executiva, de forma direta. Desta forma, uma vez inserida a cláusula compromissória em título executivo extrajudicial, é permitido ao credor o aforamento imediato do processo de execução, desde que, naturalmente, seu contrato particular reúna os atributos de título executivo, ficando, ao mesmo tempo, reservadas para a arbitragem as matérias próprias da relação obrigacional e do processo de conhecimento, substituindo a arbitragem, neste ponto, os Embargos à Execução (que é uma ação de conhecimento incidental à Execução).
Poderá a execução ser distribuída, com as devidas medidas acautelatórias e até de constrição próprias do processo executivo, e, dentro do prazo legal de oposição de Embargos à Execução o Executado deverá instaurar procedimento arbitral, na Câmara e na forma convencionadas na cláusula compromissória, para os temas relacionados à relação obrigacional e ao direito material. Neste momento haverá a avaliação, pelo Juiz estatal, da viabilidade ou não de suspensão do processo executivo até decisão final da arbitragem, na forma do disposto no art. 919 do CPC. Entretanto, poderão existir temas processuais próprios da Execução, relacionadas ao procedimento do processo executivo e à prática de atos de constrição, e para esses temas processuais, independente da convenção de arbitragem, o juízo competente será sempre o juízo estatal, via Embargos à Execução ou mesmo exceção de pré-executividade, uma vez que estarão relacionados ao processo de execução e não ao mérito da relação obrigacional. Em conclusão, os sistemas (judicial e arbitral) convivem harmonicamente, inclusive com a prática de atos de cooperação jurisdicional, na forma do art. 42 do CPC. A comunicação entre os juízos estatal e arbitral se dá através da carta arbitral (CPC, arts. 69, § 1.º, 237, IV, 260, § 3.º; Lei 9.307/1996, art. 22-C, inserido pela Lei 13.129/2015). Os juízos estatal e arbitral, nesse cenário, devem cooperar entre si – harmonicamente, como se afirma na jurisprudência1.
1 - Note-se que o art. 69, § 1.º do CPC, que menciona também a carta arbitral, encontra-se inserido em Capítulo do Código dedicado à “cooperação nacional”. Decidiu-se, a propósito: “Como afirmado no julgamento do REsp 1.277.725/ AM (Terceira Turma, DJe 18/03/2013), ‘admite-se a convivência harmônica das duas jurisdições - arbitral e estatal -, desde que respeitadas as competências correspondentes, que ostentam natureza absoluta’. Portanto, é aceitável a convivência de decisões arbitrais e judiciais, quando elas não se contradizerem e tiverem a finalidade de preservar a efetividade de futura decisão arbitral” (STJ, REsp 1798089/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.T., j. 27/08/2019).
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CONJUNTURA
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O Legislativo com poder judicial As CPIs estão presentes no palco da política do país, embora seus limites e sua atuação sejam pouco conhecidos
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Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
CONJUNTURA
Por seis meses, CPI da COVID despertou a atenção de todo o país.
Após seis meses de trabalhos, ampla cobertura da imprensa, discussões acaloradas no meio político e nas rodas de conversa de cidadãos comuns, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID chegou ao seu final em outubro. Aprovado pelos 11 membros titulares do colegiado, o relatório de mais de mil páginas do senador Renan Calheiros (MDB) impactou a sociedade e a corrida eleitoral, mas seus desdobramentos jurídicos ainda são incertos. A CPI instalada no começo do ano para apurar omissões e atos considerados negligentes ou criminosos do governo federal, seus apoiadores e demais responsáveis durante a pandemia da Covid-19, evidencia o poder investigativo e judicial que a Casa Legislativa exerce durante tais comissões. Apesar de grande audiência e popularidade, o funcionamento das comissões parlamentares 50
de inquérito ainda é incompreendido por grande parte da população. Além dos duelos verbais, revelações e suspense próprios das CPIs, o que mais este instrumento da oposição e de minorias parlamentares têm de especial? Nas CPIs, o Legislativo ganha poderes de investigação judicial. Essa condição está prevista no parágrafo terceiro do artigo 58 da Constituição Federal, para fazer valer o papel fiscalizador do Parlamento, e tem o seu regramento detalhado na Lei 1.579, de 1952. Este estatuto determina que, para ser instalada, a CPI deve apurar fato determinado e ter prazo certo de duração. No Congresso Nacional, uma comissão parlamentar de inquérito pode ser criada a requerimento de senadores, de deputados ou em conjunto, quando se formam as chamadas CPIs mistas ou CMPIs. O requisito inicial é o seu pedido ser assinado por,
ao menos, um terço dos integrantes da Casa ou Casas: 27 senadores e 171 deputados. Conferidas as formalidades, é feito o cálculo de proporcionalidade partidária, e o presidente da Casa solicita aos líderes a indicação dos membros. Em geral, um acordo garante às maiores bancadas o direito de ocupar presidência e relatoria. A primeira reunião do colegiado é aberta para eleger presidente e vice. Depois, faz-se a designação do relator. O relator apresenta então cronograma de trabalho com procedimentos administrativos a serem adotados e a linha de investigação. É possível a criação de sub-relatorias para ajudar o relator e auxiliar a investigação. Com prazo inicial de 90 dias, a comissão pode ter sua atuação prorrogada por igual período, desde que referendada, com requerimento assinado por um terço dos seus titulares.
A LEI 1.579, DE 1952, MAIS CONHECIDA COMO LEI DO IMPEACHMENT, DETERMINA QUE, PARA SER INSTALADA, A CPI DEVE APURAR FATO DETERMINADO E TER PRAZO FIXO DE DURAÇÃO.
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Foto: Thales Ferreira
CONJUNTURA
CPI da COVID investigou ações e omissões do governo na crise sanitária que vitimou mais de 600 mil brasileiros.
PODERES LIMITADOS Conforme a legislação, as CPI possuem amplos poderes investigativos, mas com algumas limitações. Na CPI, os parlamentares podem inquirir testemunhas, que têm o compromisso de dizer a verdade; ouvir suspeitos, que têm o direito ao silêncio para não se incriminarem; e efetuar voz de prisão em casos de flagrante delito. Para sustentar seus trabalhos, a comissão pode requisitar informações e documentos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional; tomar depoimento de autoridades; e convocar Ministros de Estado. Integrantes de uma CPI também podem se deslocar a qualquer ponto do país para realizar investigações e audiências públicas; requisitar o auxílio de servidores de outros poderes; e quebrar sigilo bancário, fiscal e telemático, desde que de forma devidamente fundamentada e com o dever de não dar publicidade ao conteúdo. Aos colegiados parlamentares não é permitido 52
adentrar a seara dos tribunais e do Ministério Público. A CPI não tem poder de julgar nem tem competência para punir investigados. Desta forma, a CPI não pode, por exemplo, determinar medidas cautelares, como prisões provisórias, indisponibilidade, arresto e sequestro de bens. Nem mesmo pode expedir mandado de busca e apreensão em domicílios, apreender passaporte, determinar a interceptação telefônica, medidas que dependem de decisão judicial. A lei determina que, após terminar os trabalhos, a comissão deve encaminhar relatório com suas conclusões ao Ministério Público ou à Advocacia-Geral da União, a fim de que promovam a responsabilidade civil e criminal dos infratores ou adotem outras medidas legais. A autoridade a quem for encaminhada a conclusão tem obrigação de informar as providências adotadas. O relatório final pode também apresentar propostas legislativas.
COLEGIADO EM NÚMEROS Dias antes da votação do relatório, a CPI da COVID apresentou balanço dos números de sua atuação desde a criação, em abril de 2021.
180 dias de atividades, foram 66 reuniões, sendo 58 para depoimentos. Foram ouvidas 61 pessoas, além das vítimas da Covid-19. Dos 1.582 requerimentos apresentados, 1.062 foram votados. Após
Os membros aprovaram
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transferências de
sigilo (fiscal, bancário, telefônico e telemático).
2.669 ofícios e recebeu 2.792 documentos, além de 71.957 arquivos com documentos ostensivos e 4.251.840 arquivos de documentos sigilosos.
A CPI expediu
Presidida por Omar Aziz (PSD-AM), a CPI da COVID recebeu como subsídio um relatório de 226 páginas elaborado por um grupo de juristas, liderado inicialmente por Salo de Carvalho e concluído por Miguel Reale Júnior, que defende a tese de que Bolsonaro cometeu cinco crimes na gestão da pandemia do coronavírus. Além do crime de responsabilidade, o presidente teria cometido crimes contra a saúde pública, a paz pública, a administração pública e a humanidade. O documento foi feito em junho a pedido do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Ainda o assinam Sylvia H. Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wünderlich.
VAI ACABAR EM PIZZA
A expressão, que se tornou popular para designar desfechos frustrantes de ações de combate à corrupção no país, particularmente em CPIs, tem uma origem prosaica, fora dos meios políticos. Ela foi utilizada pelo jornalista esportivo Milton Peruzzi na Gazeta Esportiva, no começo dos anos 1960. Após uma série de disputas que levaram a uma grave crise na cúpula do Palmeiras, foi realizada uma reunião de mais de 14 horas para sanar de vez as questões. Famintos, os cartolas, movidos pela praticidade e pela descendência italiana, pediram 18 pizzas gigantes. Ao fim do debate e da refeição, chegou-se ao acordo. “Crise do Palmeiras termina em pizza”, resumiu Peruzzi no título de sua reportagem. 53
CONJUNTURA
COLEGIADOS POLÊMICOS
CPI do Judiciário (Senado)
CPI do Banestado (Senado)
Investigou denúncias de corrupção no TRT de São Paulo.
Apurou denúncias de envio ilegal de R$ 150 bilhões ao exterior, envolvendo bancos.
Apurou desvios do Orçamento da União.
CPIs do Futebol (Senado e Câmara, separadamente) Investigou as relações entre a CBF, clubes e patrocinadores.
1993
CPI dos Anões do Orçamento (Câmara)
2000
1999
Culminou no impeachment do presidente Fernando Collor.
CPMI dos Correios (Câmara e Senado) Analisou denúncias de corrupção na empresa estatal
CPMI do Mensalão (Câmara e Senado)
2005
CPMI do Esquema PC Farias (Câmara e Senado)
2003
1992
Veja as CPIs mais famosas no Brasil desde a Constituição de 1988.
Apurou possíveis vantagens recebidas por parlamentares na votação de projetos do governo.
CPI dos Sanguessugas (Câmara) Visou descobrir possível desvio de verbas destinadas à Saúde.
2015
Procurou evidências de corrupção na empresa.
2021
CPI da Petrobras (Senado)
CPI da Pandemia (Senado)
Nova CPI do Futebol (Senado) Investigou a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014.
Investigou as denúncias de ações e omissões do Governo Federal durante a pandemia da Covid- 19.
54
CPMI do Cachoeira (Câmara e Senado) Investigou crimes de organização criminosa do bicheiro Carlinhos Cachoeira.
CPMI das Fake News (Câmara e Senado) Apurou difusão de notícias falsas nas eleições de 2018.
2012
Investigou o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro.
2019
2006
CPI dos Bingos (Câmara)
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DIREITO DO TRABALHO
por Marlos Augusto Melek
Suprema Corte vai julgar o Trabalho Intermitente: solução ou retrocesso? Nem solução, nem retrocesso. O trabalho intermitente é uma alternativa ao modelo clássico de trabalho, em síntese permitindo que o trabalhador seja convocado mediante necessidade de trabalho, demanda, recebendo o valor do trabalho hora conforme Convenção Coletiva de Trabalho, além de ter assegurado todos os direitos da CLT inclusive proteção previdenciária. No Direito Comparado, o trabalho intermitente já possui regulação há mais de 50 anos, especialmente nos países ditos desenvolvidos. Lá, a intermitência chega a 20% da força laboral, mas no Brasil não chegou ainda a 2%, embora graficamente apresente crescimento sequencial consistente a cada mês. Isso decorre em grande parte da insegurança jurídica com decisões dicotômicas de muitas Cortes Regionais e o aguardo de uma definição da Corte Suprema. No Brasil, essa forma mais flexível de contratação foi a única que apresentou crescimento ininterrupto em todos os meses do ano de 2020, ano de pandemia e fortes restrições à várias manifestações da atividade econômica, em que ocorreu encerramento de mais de 1 milhão de CNPJs. No PIB brasileiro, de R$ 1,5 trilhão, bem como numa população que já ultrapassa a casa de 200 milhões, naturalmente existe espaço para modelos diversos de contratação.
Não havendo na economia moderna e dinâmica separação cartesiana do que seja indústria, comércio e serviços, o trabalho intermitente previsto pela lei 13.467/17 a todos se aplica, exceto aos aeronautas, por peculiaridades da profissão. Vale lembrar empiricamente que antes da nova lei, as pessoas faziam “bicos”, atuavam como “freelancers”, sem direitos ou proteção social e previdenciária, fomentando a informalidade. A nova lei veio proteger esse enorme contingente de trabalhadores e oportunizar a outros, numa economia mais dinâmica, essa nova forma de trabalho. Finalmente, vale lembrar que quem não quiser trabalhar nessa modalidade, deve procurar um emprego clássico. Se porventura ainda algum sindicato argumentar com verticalização que essa modalidade possa ser prejudicial, pode fazer constar a proibição de contratação na Convenção Coletiva. Dessa forma, é certo que o instituto se reveste de constitucionalidade, prestigiando v.g. o primeiro emprego e determinados setores que ordinariamente operam de forma sazonal, permitindo a estudantes a convergência de horários em relação aos estudos, proteção trabalhista e previdenciária para freelancers e atenção ao princípio constitucional da Livre Iniciativa.
Marlos Augusto Melek é Juiz do Trabalho no TRT da 9a Região, professor, escritor, palestrante e foi membro da equipe de redação da Reforma Trabalhista do Brasil (Lei 13.467/2017). @marlosmelek 56
A NOVA LEI VEIO PROTEGER ESSE ENORME CONTINGENTE DE TRABALHADORES E OPORTUNIZAR A OUTROS, NUMA ECONOMIA MAIS DINÂMICA, ESSA NOVA FORMA DE TRABALHO.
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DIREITO PENAL
por Miguel Pereira Neto
Os Desastrosos Impactos Sociais, Econômicos e Jurídicos do Lavajatismo
A Operação Lava-Jato surge, em 2014, apresentando-se de forma legítima, a fim de apurar fatos complexos que aparentavam configurar delitos de corrupção, lavagem de dinheiro, entre outros. Com o avanço das investigações, a Operação se estendeu da apuração inicial de organizações criminosas de doleiros para um esquema mais abrangente de corrupção envolvendo a Petrobras. Segundo o narrado, grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina para altos executivos da expressiva companhia e a agentes públicos em troca de contratos. A partir de então, a Força-Tarefa, sobretudo em Curitiba, passou a ampliar cada vez mais seu alcance, chegando a ter quase 80 fases e avançando para outras empresas e estatais. Para tanto, contaram com o auxílio providencial de um juiz com fortes traços inquisitoriais, vontade de atrair para si os casos como se houvesse competência universal e ambição por notoriedade, seja jurídica, social e política, portando-se como fonte diária de informações seletivas à imprensa. O egóico lavajatismo se desvirtuou ao ponto de seus operadores e do próprio juiz se sentirem autorizados a abusar sem controle do uso do Direito, absolutamente descolados do devido processo legal. Em nome de um suposto combate à corrupção, impuseram o temor e falsas premissas fáticas construídas e direcionadas a partir de uma rede de colaborações premiadas com fatos plantados estrategicamente sem corroboração em evidências. Daí decorreram seus diversos impactos negativos nas esferas social, econômica e jurídica.
Miguel Pereira Neto é Advogado. Graduado com Especialização em Direito Empresarial e Mestre em Processo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Sócio Fundador do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri; Coordenador Acadêmico de Direito Penal Empresarial do IEJA; membro da NGO in Special Consultative Status with the Economic and Social Council of the United Nations, da NGO Associated with the Department of Public Information of the United Nations e da UNESCO. 58
Em termos sociais, trouxe o tema da corrupção para a pauta, mas, por outro lado, produziu distorções, como a criminalização de políticos e de seus partidos, de empresários e empresas, de membros do Judiciário e da defesa, reproduzindo ideias de analfabetismo político, econômico-financeiro, binarismo (bem x mal), gerou cadeia direta e indireta de milhares de desempregados e demais danos absolutamente contraproducentes para a nossa Democracia. Como cediço, Democracia sem Estado de Direito não existe. A observância às regras do direito e aos princípios que as norteiam é essencial para a consolidação e o aprofundamento de qualquer modelo democrático,
marcado que deve ser pela segurança jurídica e pela preservação das garantias individuais e dos direitos fundamentais. Do ponto de vista econômico, pode-se citar os efeitos paradoxais, seja na recuperação de ativos, seja, por outro lado, na forma escusa como o Ministério Público Federal os quis incorporar a uma fundação privada para interesses próprios. Ou mesmo a desestabilização de grandes empreiteiras e empresas nacionais, sem que se protegesse a continuidade do exercício de suas atividades e geração de lucros, causando uma crise desde então, o que repercute na produção de empregos e de riqueza. Não restou demonstrado superfaturamento na Petrobras a causar prejuízos internamente pelas contratações, mas atos isolados de alguns executivos em razão de beneficiamento indevido direto com as empresas contratadas; o prejuízos se deram como consequência dos danos marginais causados pelo próprio processo, o que implicou o acúmulo de perdas por conta da atuação midiática e de interesses subjetivos dos membros da operação e do então juiz, pelo indevido e errôneo vazamento de informações, de fake news posteriormente reveladas, pela queda das ações em Bolsas, pela aplicação de multas, indenizações a acionistas e a partilha que se buscou do dinheiro a uma ilícita fundação. Por fim, quanto aos impactos jurídicos, em um primeiro momento, parecia que o modus operandi ilegítimo dos procuradores e do então juiz estava fazendo escola em outras comarcas e tribunais pelo país, o que traria impactos nefastos a corromper o nosso sistema de justiça. De igual forma, buscaram influenciar doutrinadores e o Legislativo com as 10 Medidas Anticorrupção, acrescentando ao projeto de lei alterações arbitrárias e inadequadas, atingindo o cúmulo com a tentativa de viabilizar a produção de provas ilícitas. Porém, com o passar do tempo e o afastamento necessário, o Supremo Tribunal Federal passou a reconhecer os abusos perpetrados, tais como vazamentos de interceptações telefônicas e de dados, inclusive dos advogados de defesa; conduções coercitivas e prisões preventivas como forma de pressão para delatar e criar as peças para o Ministério Público montar seu fantasioso intento; inverteu-se a
ordem para interrogatórios e apresentação de alegações finais; violou-se tratados de cooperação penal internacional, o que afetou a soberania do país; mas sobretudo a suspeição, a parcialidade e a incompetência territorial de Curitiba para todos aqueles fatos que não guardavam conexão com o objeto inicial da Operação. Criou o lavajatismo ilusória ideia abraçada por parte da opinião pública e publicada, o constrangimento de que manifestações ou decisões contrárias aos atos praticados por seus integrantes, procuradores e pelo então juiz deveriam ser refutados e vistos como voltados ao favorecimento da corrupção. O que se traduz é a criação de um forçoso viés de confirmação autoritário, inquisitório e condenatório, acobertado e orquestrado sem transparência, no qual a Operação e o plano de poder se tornaram muito maiores do que a capacidade e competência para se investigar, denunciar e julgar de forma justa e imparcial. Portanto, não obstante a causa inicialmente legítima do enfrentamento à corrupção e lavagem de dinheiro, a Operação deveria ter primado pelo respeito às garantias individuais e aos direitos fundamentais, às prerrogativas da defesa, ter pensado na manutenção da atividade econômica e na função social das empresas investigadas. Mas, ao revés, adentrou em plano de poder, político e financeiro, galgou cargos, abasteceu a mídia de forma seletiva com bases inverídicas e intentou criar fundação milionária com o dinheiro expurgado da própria empresa que deveria proteger. Hoje, passados quase oito anos desse despautério abusivo, os danos políticos, sociais e jurídicos causados são imensos e os abusos praticados não devem permanecer sem o devido enquadramento legal, sem a devida apuração de responsabilidades e penalização por suas consequências. Reforça-se, destarte, a necessidade de se estabelecer maior controle interno e externo dos atos praticados pelo Ministério Público, bem como eficácia na aplicação de penas e sanções, a fim de não mais se submeter o Estado de Direito e a Democracia a práticas lesivas como as ocorridas no lavajatismo. Afinal, todas e todos os cidadãos têm direito a um julgamento justo e imparcial e o Judiciário não pode, de forma alguma, servir como trampolim a anseios políticos e a vantagens indevidas. 59
CAPA
AGU sob nova direção Os primeiros meses de Bruno Bianco como novo titular à frente da AGU foram marcados pela defesa técnica e diligente de pautas caras ao governo
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61 Foto: Renato Menezes / AGU
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
CAPA
Bruno Bianco, Ministro da Advocacia-Geral da União
Bruno Bianco Leal, substituto de André Mendonça na chefia da Advocacia-Geral da União (AGU), acompanha desde a confirmação de sua nomeação, publicada no Diário Oficial em 6 de agosto de 2021, um conjunto de temas caros à Administração Federal e outros de especial interesse político do Planalto. Após uma transição tranquila ao assumir o cargo de Mendonça, exonerado no mesmo dia da chegada de Bianco e indicado pelo Presidente Bolsonaro para a vaga do Ministro Marco Aurélio Mello, no Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado de 39 anos completa em novembro seus três primeiros meses à frente do órgão, dando claras mostras da marca que pretende imprimir nele. Bruno Bianco, hoje procurador federal da Procuradoria-Geral Federal da AGU, antes de integrar o Governo, em Marília (SP), foi procurador62
-chefe da seccional da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS (PFE-INSS) e procurador regional da PFE-INSS em São Paulo e Mato Grosso do Sul. DURANTE SUA ATUAÇÃO NO RECÉM-RECRIADO MINISTÉRIO DO TRABALHO, BIANCO DEFENDEU A CRIAÇÃO DE NOVOS REGIMES FORA DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO (CLT), SEM PREJUÍZO DAS PROTEÇÕES TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA.
Mestre em Direito pela universidade particular de Marília (Unimar), além de especialista em Direito Público, Bianco foi assessor especial da Casa Civil durante o governo Michel Temer e, no começo do governo Bolsonaro, secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia. Durante sua atuação no recémrecriado Ministério do Trabalho, Bianco defendeu a criação de novos regimes fora da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sem prejuízo das proteções trabalhista e previdenciária. Seu projeto focava na inclusão dos trabalhadores informais, sobretudo os jovens que buscam o primeiro emprego e os profissionais das novas tecnologias.
AGENDA POLÊMICA Entre as pautas sobre responsabilidade da AGU estão processos contra o Presidente da República, demarcação de terras indígenas e a flexibilização nas regras de uso e porte de armas de fogo. Em 6 de julho, o STF suspendeu o julgamento de recurso no qual o Presidente pleiteava o direito de prestar depoimento por escrito no inquérito sobre sua suposta interferência política na Polícia Federal (PF). Antes do início da sessão, o Advogado-geral informou ao Supremo que o presidente decidiu por depor presencialmente:
“O requerente manifesta perante essa Suprema Corte o seu interesse em prestar depoimento em relação aos fatos objeto deste inquérito, mediante comparecimento pessoal. Nesta oportunidade, requer-lhe seja facultada a possibilidade de ser inquirido em local, dia e hora previamente ajustados”. Com essa manifestação, o Ministro Alexandre de Moraes, relator do pedido no STF, solicitou a retirada da questão de pauta para analisar se o caso ainda pode ser julgado.
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CAPA
TERRAS INDÍGENAS
A PROTEÇÃO DAS TERRAS TRADICIONAIS OCUPADAS REPRESENTA ASPECTO FUNDAMENTAL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS AOS INDÍGENAS
DEFESA DA AGU NO JULGAMENTO DO CASO DA RESERVA RAPOSA SERRA DO SOL
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Em 1º de setembro, o AdvogadoGeral defendeu a segurança jurídica nos processos demarcatórios e a manutenção de balizas estabelecidas pela Corte no julgamento sobre a demarcação das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol, em 2009. “A proteção das terras tradicionais ocupadas representa aspecto fundamental das garantias constitucionais aos indígenas”, argumentou. O Artigo 231 da Constituição, sublinhou Bianco, reconhece aos índios direitos originários sobre terras tradicionais, cabendo à União fazer sua demarcação. No julgamento do caso Raposa Serra do Sol, o Supremo estabeleceu orientações e salvaguardas na promoção de todos os direitos indígenas. Para garantir a regularidade da demarcação de suas terras foram observados os marcos temporal e da tradicionalidade. O processo tem repercussão geral, significando que a decisão a ser tomada servirá de baliza para outros casos semelhantes que forem decididos em todo o Judiciário. Na reto-
mada do julgamento, entidades se manifestaram contra e a favor da tese. O plenário do STF retomou, em 17 de setembro, o julgamento sobre a constitucionalidade de decretos editados pela Presidência da República que facilitaram o acesso a armas de fogo no Brasil. A análise, contudo, foi interrompida pelo pedido de vista do Ministro Nunes Marques, após o voto do Ministro Alexandre de Moraes, favorável à derrubada das normas. O Ministro Alexandre acompanhou o voto dos relatores ministra Rosa Weber e Ministro Edson Fachin. Em defesa dos decretos, a AGU argumentou que as normas têm o objetivo de desburocratizar e simplificar o acesso a armas de fogo, e que isso seria uma demanda da sociedade expressa na eleição presidencial de 2018. Decretos anteriores sobre o tema traziam “restrições excessivas”, e as normas estão em conformidade com o Estatuto do Desarmamento, além de outras leis que versam sobre legítima defesa e proteção de propriedade.
BALCÃO V IRT UA L
FERRAMENTAS DIGITAIS Uma das primeiras medidas de Bianco, no comando da AGU, foi firmar, em 5 de outubro, parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para aderir ao Balcão Virtual, uma videoconferência que permite o contato com o setor de atendimento das unidades do Judiciário. A ferramenta passou a ser usada durante a pandemia da Covid-19 para garantir o atendimento judiciário durante o trabalho remoto. Para tanto, os juízes mantiveram uma sala de atendimento eletrônico durante o horário de funcionamento do órgão. Bianco afirmou que o Balcão Virtual representa um avanço na gestão do fornecimento de informações administrativas e judiciais para advogados e para o público em geral. Na sua avaliação, as instituições públicas deverão se reinventar diante da crescente virtualização das atividades. “A implantação da videoconferência virtual nos tribunais e sua expansão para outros órgãos da Administração merecem aplausos”, declarou.
BOAS PRÁTICAS PREMIADAS A Advocacia-Geral da União (AGU) foi uma das vencedoras do 5º Prêmio Ajufe de Boas Práticas de Gestão, conferido pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) em cerimônia no dia 20 de outubro. O “Projeto Linguagem Jurídica Inovadora” da Procuradoria-Geral Federal, órgão da AGU, venceu no quesito “Boas práticas para a eficiência da Justiça Federal”. O projeto da AGU começou no segundo semestre de 2020 e foi criado por uma equipe de procuradores federais para aperfeiçoar a atuação do órgão durante o período de trabalho remoto, adotado durante a pandemia da Covid-19, em especial o relacionamento com juízes e desembargadores. A ideia é tornar a linguagem jurídica acessível, unindo Direito, tecnologia e design para transformar a comunicação com o Judiciário de forma significativa. Por meio da iniciativa, membros da Advocacia-Geral passaram a adotar o formato “Visual Law” na elaboração das petições, com o uso de elementos visuais, fazendo o uso de vídeos, QR Codes, infográficos, fluxogramas, storyboards e bullet points. Por meio da técnica, os memoriais que antes chegavam a ter de 10 a 12 folhas passaram a ficar com até quatro. 65
CAPA
PORTA ABERTA PARA TODOS OS PODERES Nos seus 100 dias à frente da Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministro Bruno Bianco, íntimo conhecedor das rotinas e inúmeras atribuições da instituição, imprimiu um ritmo acelerado em várias frentes e fez questão de atender todas as demandas apresentadas.
Foto: Renato Menezes / AGU
De questões trabalhistas aos danos ambientais, da polêmica sobre o porte de armas às privatizações, os temas relevantes à sociedade dominaram sua agenda. Além da diversidade de pautas, o Ministro de 39 anos empenhou uma marca pessoal ao comando da instituição ao estabelecer amplo e direto diálogo não apenas com todo o sistema judiciário, mas também com os três Poderes da República. “Tinha muita coisa a fazer, mas também tinha a vantagem de conhecer bem a AGU e as suas equipes”, contou ele à DATAVENIA. Membro da AGU desde 2008 na carreira de procurador federal, Bianco revelou o desejo de consolidar uma prática que desempenhou ao longo da carreira: a da busca pela conciliação e a preocupação permanente de se evitar o litígio. “Ganha o Estado, ganha o Judiciário, ganha a sociedade”, explicou. Leia a seguir os principais trechos da entrevista. 66
DATAVENIA – Ministro, que balanço o senhor faz dos primeiros meses à frente da AGU? BRUNO BIANCO – De fato, havia muita coisa para fazer aqui e comecei respondendo a todas demandas de um amplo espectro. Mas, por outro lado, eu tinha a vantagem de conhecer muito bem a instituição e as suas equipes, que eram boas e azeitadas. Com a Casa arrumada e no bom caminho, fiz só pequenos ajustes e tocamos logo o trabalho jurídico, com demandas junto ao Supremo Tribunal Federal, representando o Executivo. Nesses quase 100 dias, atuei junto com os nossos quase 9 mil advogados, que formam o Sistema AGU, ao qual costumo chamar de maior escritório de advocacia do mundo, com 330 unidades distribuídas em 147 cidades. Apenas em 2020, os profissionais do órgão atuaram em mais de 8 milhões de processos. Gosto de dizer que a gente pode até sair da AGU para cumprir outras missões, mas a AGU nunca sai da gente. DATAVENIA – Quais são as prioridades da sua gestão? BRUNO BIANCO – Estou focado em dar ênfase ao que fiz ao longo de toda a minha carreira, que é sempre defender maior proximidade com todos os assistidos, mantendo canais transparentes e abertos, observando com cuidado cada caso. Quero fazer da AGU a instituição mais aberta e democrática possível, deixando as portas abertas não apenas para o mundo jurídico, mas para todos os poderes, tal
qual determina a Constituição Federal. Faço questão de conversar pessoalmente com todos os Ministros do Executivo, procuradores, presidentes de autarquias, governadores, enfim, não focar, unicamente, no Supremo Tribunal Federal. Democraticamente, despacho com juízes, desembargadores e outras autoridades, desde a primeira instância, para defender as causas dos nossos representados, seja buscando decisões favoráveis ou cassando liminares. Acho válido também fomentar a cultura da conciliação e da procura do acordo até mesmo quando não temos todos os instrumentos para isso. Esse objetivo, que estava limitado pelo princípio da indisponibilidade do interesse público, vai avançar mais com a AGU assumindo seu papel de árbitro, com o esforço pela desjudicialização, visando o distensionamento para evitar que algo se judicialize. Assim, ganha o Estado, ganha o Judiciário e ganha a sociedade como um todo, até mesmo na perspectiva do consenso de se perseguir duração razoável para as causas serem justas. Perseguir acordo não significa abrir mão de direitos. DATAVENIA – Quais os impactos, na prática, de uma atuação mais completa e aberta, como o senhor defende?
ACHO VÁLIDO FOMENTAR A CULTURA DA CONCILIAÇÃO E DO ACORDO MESMO QUANDO NÃO TEMOS TODOS OS INSTRUMENTOS PARA ISSO. PERSEGUIR ACORDO NÃO SIGNIFICA ABRIR MÃO DE DIREITOS
MINISTRO BRUNO BIANCO
BRUNO BIANCO – A Advocacia-Geral da União tem por princípio e tradição atuar preventivamente, para evitar que situações acabem confirmando a tendência e se judicializem. Para isso, acompanhamos todas as fases de processos, desde o parecer, 67
para nos precavermos de problemas futuros. Além de representar qualquer ente dos Poderes – um deputado que desejar, por exemplo –, somos consultores e assessores do Executivo com precedência, desde a gestão de uma ideia. Esse papel preventivo pode e deve ser aperfeiçoado, bem como os canais de interlocução. Um bom exemplo disso é o monitoramento dos precatórios,que a AGU sempre realizou, mas agora demos um passo adiante com o acordo de cooperação com o Conselho Nacional de Justiça e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para implementar o Sistema Nacional de Gestão de Precatórios. O acordo foi assinado no fim de outubro e será utilizado por todos os órgãos do Judiciário, seguindo as regras previstas na Constituição e na Lei Orçamentária Anual. A ideia é elevar a eficiência no acompanhamento, no controle e na execução orçamentária relativa ao pagamento dessas dívidas. No rumo do desejável entendimento, a AGU apresentou recentemente um recurso ao Supremo Tribunal Federal solicitando a instauração de processo de conciliação entre o governo federal e os estados para negociar o pagamento de precatórios bilionários referentes ao antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, Fundef, criado em 1996 e convertido em Fundeb em 2006. É a mesma lógica do provisionamento, tal qual fazem empresas privadas, com procedimentos que constam inclusive nos seus balanços financeiros. Analisamos esses processos judiciais doo início até o fim, desde a tese, o valor, a expectativa de quanto será gasto, os potenciais riscos de perda ou ganho até a causa se encerrar e o poder ser instado a pagar. A AGU, por força de lei, precisa explicitar riscos fiscais, dentro de normas da contabilidade, alguns na casa dos bilhões de reais. DATAVENIA – Qual o papel institucional que a AGU exerce no Brasil atual? BRUNO BIANCO – Fazemos advocacia de Estado, com a missão de assessorar o presidente da Repú68
blica, como o representante legítimo do Poder Executivo. O governo é resultado da vontade popular expressa nas urnas, em sufrágio universal, e assessoramos aquele que dita a política pública. De certa forma, a AGU colabora para viabilizar a política pública. Buscamos a previsibilidade, para tornar a advocacia um fator de equilíbrio, presente em todas as engrenagens da máquina pública. Como já disse, há situações do Executivo, Legislativo e até Judiciário em que há o direito à representação da Advocacia-Geral, mediante suas quatro carreiras. Temos a Procuradoria-Geral da União, PGU, que abriga os advogados da União, responsáveis pela representação jurídica da Administração Direta; a Procuradoria-Geral Federal, PGF, de onde vim, com profissionais que atuam junto às 159 autarquias e fundações, incluindo o INSS; a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, PGFN, formada pelos que trabalham nas matérias fiscais de interesse da União, em conjunto com o Ministério da Economia; e, por fim, a Procuradoria do Banco Central, PGBacen. DATAVENIA – Como alguém que acompanhou de perto as discussões e a implementação da Reforma Trabalhista, quais as consequências jurídicas das mudanças implementadas? BRUNO BIANCO – O país amadureceu e a população avançou na compreensão dos temas trabalho e previdência. A crise econômica deixou mais clara a percepção de que distorções precisavam ser corrigidas para se criar oportunidades de trabalho para quem quer trabalhar. O povo compreendeu que as mudanças e flexibilizações eram necessárias e chancelou a Reforma Trabalhista. A Consolidação Geral do Trabalho não se aplica em muitos casos atuais, que fazem parte da realidade laboral de muitos numa época dominada pela tecnologia, como as situações já incorporadas do trabalhador de aplicativo. O trabalho intermitente, por exemplo, era uma demanda evidente para muitas categorias, estando essa modalidade até prevista pela CLT apesar dos críticos.
Foto: Edu Andrade/ASCOM/Ministério da Economia
QUERO FAZER DA AGU A INSTITUIÇÃO MAIS ABERTA E DEMOCRÁTICA POSSÍVEL, DEIXANDO AS PORTAS ABERTAS NÃO APENAS PARA O MUNDO JURÍDICO, MAS PARA TODOS OS PODERES
MINISTRO BRUNO BIANCO
DATAVENIA – O senhor afirmou numa conferência transmitida para Glasgow, na Escócia, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), que, ao contrário da acusação de atores globais, “o Brasil reprime, pune e cobra”,que empresas obedeçam às políticas ambientais “proativamente”. Por que o país ainda recebe tantas críticas nas questões ambientais? BRUNO BIANCO – O Brasil tem uma lei ambiental moderna e o Estado brasileiro tem agido com total firmeza para aplicar regras capazes de preservar a cobertura florestal. Nesse sentido, destaco, por exemplo, a força tarefa na Amazônia, com 142 ações ajuizadas e bilhões de reais em bloqueios e acordos para reparação de danos florestais. DATAVENIA – A produção da AGU como consultoria do Executivo acaba por sedimentar conceitos que podem levar a novos regramentos? BRUNO BIANCO – No nosso papel de consultoria jurídica elaboramos pareceres prévios sobre contratos, concessões, concursos públicos, entre vários outros assuntos. Essa produção serve de aconselhamento para o Executivo em inúmeras ações e, às vezes, proporciona propostas de repercussão vinculantes para todos os consulto-
res. Editamos ao todo 86 súmulas que orientam a atuação jurídica dos nossos membros, com normativos que devem ser cumpridos pelos órgãos de Consultoria e Contencioso da AGU, da Procuradoria-Geral Federal e da Procuradoria-Geral do Banco Central do Brasil, de acordo com a Lei Orgânica da AGU. As súmulas são um instrumento hábil para estender à esfera administrativa efeitos de entendimento uniforme, estável e reiterado dos tribunais superiores, ou de decisão judicial proferida em julgamento de casos repetitivos. O esforço do governo para cancelar portarias e regimentos ultrapassados também tem o apoio importante da AGU, que identifica normas obsoletas e vácuos normativos. DATAVENIA – Além dos interlocutores da AGU, como a instituição tem trabalhado para melhorar o atendimento virtual ao público? BRUNO BIANCO – Assinamos, no começo de outubro, com o Conselho Nacional de Justiça, um acordo de cooperação técnica para transferir conhecimento e tecnologia para a instalação do nosso balcão virtual. Com essa plataforma, buscamos nos aproximar da população e tornar o atendimento mais ágil, remoto e personalizado às partes e representantes em processos judiciais. 69
DIREITO ADMINISTRATIVO
por Orlando Morando Júnior
Novas regras para improbidade administrativa e seus impactos para o gestor público Em vigor desde a última semana, a lei 14.230/21, que estabelece novas regras para os processos por improbidade administrativa, emerge ao cenário nacional sob olhares reflexivos às suas benesses e questionamentos. Uma ampla modificação nos mecanismos foi realizada no texto que perdurava desde 1992.
mantém a punição aos agentes que atuam com intenção e que praticam dolo ao erário público, traz uma otimização quanto a atuação do MP nos casos e evita o uso político da ação. Dessa forma, fica qualificada a apuração do que de fato foi uma ação má intencionada, em relação aos processos com equívocos e erros.
Na vida pública há três décadas e prefeito de São Bernardo do Campo-SP desde 2017, vejo com otimismo as reformas e modificações, com vistas à modernidade de todo o nosso sistema funcional.
Neste campo, destaco o trabalho com afinco da boa gestão pública de São Bernardo do Campo, que é norteado pela premissa de que a sociedade brasileira como um todo tem a consciência que bons resultados obtidos por uma administração pública são a base para o desenvolvimento de todo o nosso Estado Maior.
A principal inovação da lei é que a improbidade só pode ser caracterizada quando há comprovação de dolo do gestor ou agente público. Ou seja, quando ficar provado que há intenção maliciosa, e não apenas imprudência ou negligência, algo que a jurisprudência já vinha firmando, pois já rechaçava as punições nos casos de culpa. Acompanhado a isso, o Ministério Público (MP) passou a ser o único titular possível de ações de improbidade. Pela regra anterior, qualquer pessoa jurídica de direito público, supostamente lesada, poderia fazê-lo. A instituição vai ter essa tarefa de ajuizar a ação, mas vai ter que provar que o agente visou dolosamente cometer o ato de improbidade. Sob este aspecto, espero termos a estrutura ideal e uma maior agilidade na apuração de todos os casos que porventura vão surgir. Ao contrário do que se falou neste primeiro momento, destaco que o novo texto não vem com o ar de impunidade. Pelo contrário, ela
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No início da nossa gestão em São Bernardo do Campo enfrentamos vários desafios: a confiança na relação sociedade x poder público era decrescente, haviam inúmeras obras abandonadas, serviços ineficientes, intervenção judicial, entre outras ingerências. Enfretamos esses desafios com moralidade e respeito ao erário público e tenho confiança de que, com esse novo molde fiscalizador, as intervenções em más gestões serão mais contundentes. O novo texto legal moderniza e centralizao julgamento, garante uma punição assertiva a quem merece e traz robustez ao processo de improbidade administrativa. Espero e torço pela moralidade nas gestões públicas, com a convicção de que os agentes punidos pelos danos causados ao erário público serão processados de forma veemente e clara, garantindo assim mais segurança e respeito a nossa sociedade.
Orlando Morando Júnior é formado em Direito e Administração. É o atual prefeito de São Bernardo, pelo PSDB. Atualmente cumpre seu segundo mandato à frente da cidade, após obter 261.761 votos (67,28%) para o exercício de 2021-2024. Empresário, é casado com a deputada estadual Carla Morando (PSDB) e tem dois filhos. Iniciou seu governo em São Bernardo, em 1º de janeiro de 2017, promovendo um amplo resgate financeiro e administrativo na cidade. Recuperou a credibilidade financeira do município e foi responsável pela maior entregue do volume de obras dos últimos anos na cidade, em infraestrutura, Mobilidade Urbana, habitação, além de ampla reestruturação na Saúde, Educação, Esporte e Cultura. Durante a pandemia, se destacou pela defesa da ciência e pela gestão eficiente da campanha de vacinação da população - São Bernardo figura como a quarta cidade do Estado que mais imunizantes aplicou, atrás apenas da Capital, Campinas e Guarulhos. Tem mais de 20 anos de vida pública. Antes de ser prefeito, foi vereador por dois mandatos e deputado estadual em quatro legislaturas. É membro da executiva nacional do PSDB e vice-presidente do Conselho da Associação Paulista de Supermercados. 71
DIREITO CONSTITUCIONAL
por Paula Pessoa Pereira
Insuficiência deliberativa no processo de emenda constitucional: ajuste de peças institucionais As democracias constitucionais contemporâneas, com o propósito de tutelar de forma adequada as constituições, prescrevem processos formais de alteração marcados pela complexidade e consensualidade. Distinto daqueles previstos para as modificações das legislações ordinárias formadas no contexto da política majoritária ocasional, nos quais não há compromisso com o passado normativo, apenas com a regulação temporária consentânea ao momento da legislatura. A razão subjacente para a formulação desse desenho institucional diferenciado centra-se nas propriedades elementares que identificam as constituições, dentre essas, a estabilidade normativa, a rigidez procedimental, a exigência de alta performance deliberativa das decisões estatais que estruturam o ideal republicano, o incremento da relação entre os poderes e a continuidade normativa intergeracional. As constituições precisam ser alteradas ao longo do tempo como método de ajuste das disposições normativas inadequadas, para responder às novas necessidades sociais e políticas, bem como para fortalecer as instituições e processos decisórios democráticos, por meio de novos desenhos procedimentais. Essa responsividade aos elementos culturais, sociais, políticos e econômicos, embora necessária à plasticidade da 72
arquitetura constitucional, precisa respeitar as características do texto constitucional enquanto norma fundamental do Estado de Direito e de determinada sociedade. Significa dizer que a constituição precisa ser protegida das decisões político-partidárias formadas em conjunturas majoritárias ocasionais e dos riscos de captura do sistema de presidencialismo de coalizão e do baixo compromisso deliberativo. De outro lado, precisa ser produto de debates democráticos qualificados. Nesse cenário conceitual e funcional, a questão da necessidade e justificação de processos formais de alteração da constituição (ou seja, as perguntas “o que” e “por que”), de iniciativa dos atores políticos e atuação exclusiva do Congresso Nacional, no desenho institucional brasileiro, já foi respondida satisfatoriamente pela teoria constitucional. Todavia, problema remanescente consiste no “como” deve ser esse processo constitucional, quais peças são necessárias e suficientes para a proteção das propriedades essenciais da norma constitucional. Particularmente, qual desenho promove a genuína democracia deliberativa e o consenso decisório na criação das normas fundacionais de um sistema jurídico? Mais deliberação, menos negociação e barganha como métodos de solução das divergências políticas. Portanto, urge introduzir na conversa constitucional as potencialidades dos desenhos institucionais que permitam alteração da constituição, apoiados em consenso suficiente, resultado de adequada deliberação por parte do Congresso Nacional, como resposta aos valores da segurança jurídica, da estabilidade e da democracia. Seguindo essa diretriz, faz-se necessária uma abordagem acerca da suficiência das técnicas procedimentais previstas no art. 60, da Constituição Federal, como as limitações circunstanciais, a votação em dois turnos por cada Casa do Congresso Nacional, o quórum de três quintos, as cláusulas de intangibilidade (cláusulas pétreas),
para a tutela de uma performance deliberativa adequada ao Estado constitucional. Partindo de uma análise superficial, e mesmo intuitiva dessa abordagem, um insight já fica evidente: a debilidade da técnica temporal, ou a ausência desta, entre os turnos de discussão e votação do projeto de emenda, nos termos do procedimento prescrito no art. 60 (CRFB), os quais podem ocorrer, inclusive, em uma única sessão. A insuficiência da técnica processual leva a resultados de baixa qualidade deliberativa e alta performance de barganha e negociação, à semelhança da legislação ordinária, no qual a conjuntura do presidencialismo de coalizão impõe mais capturas que consensos. Ilustrativo desse argumento, a aprovação de emendas constitucionais em tempos recordes, indicando que o repensar da fórmula procedimental pode trazer resultados melhores. A exemplo, coloco nessa conversa constitucional o requisito temporal de intervalo anual entre os turnos de discussão e votação do projeto de emenda, como método de se assegurar a tarefa de coleta informacional (audiências públicas, comissões) e a construção de consensos marcados mais pela estabilidade que pela conjunta ocasional. Os compromissos constitucionais exigem tempo e esforço democrático, não podendo ser equiparados às urgências e necessidades do varejo da política ordinária. É urgente a retomada do sentimento e da prática deliberativa na democracia, para tanto o experimentalismo processual e institucional tem muito a oferecer.
Paula Pessoa Pereira é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professora na Pós-Graduação do IDP e do Mackenzie/Brasília. Foi pesquisadora visitante no Max Plank Institute for Comparative Public Law and International Law. Assessora de Ministra do Supremo Tribunal Federal. 73
MEMÓRIA
Juristas avaliam necessidade de reforço no papel de defensor das garantias fundamentais alcançado pelo STF a partir da Constituição de 1988
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MEMÓRIA
Sob os ditames da Constituição Federal de 1988, Carta Cidadã proclamada pelo deputado Ulysses Guimarães, o Supremo Tribunal Federal (STF) se consagrou como o guardião dos direitos fundamentais no Brasil. O texto constitucional advindo de uma ordem democrática e inclusiva deu à Corte também olhar de futuro e prioridade na proteção de grupos vulneráveis e de minorias no rumo de uma sociedade mais justa e solidária. Essa impressão comum está contemplada na análise de especialistas da Constituição, sendo particularmente destacada nos depoimentos publicados pelo portal comemorativo do STF, dedicado aos seus 130 anos na era republicana, completados em 28 de fevereiro. Para eles, o papel da mais elevada instância do Judiciário vai além de acumular competências típicas de tribunal constitucional e de última instância. O advogado Otávio Luiz Rodrigues Júnior, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), destaca que a função do Supremo também como moderador dos Poderes só foi alcançada plenamente em 1988. Outro atributo
essencial da Corte, acrescenta Felipe Santa Cruz, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), é o de “reforçar as garantias dos direitos individuais, sociais e humanos inscritos na atual Constituição”. Teresa Arruda Alvim, advogada e professora na PUC-SP, contextualiza essas exigências feitas ao órgão de cúpula do Judiciário, nos tempos atuais, como “cada vez mais pesadas”. “Aparecem temas de inquestionável relevância, absolutamente inéditos e, envolvendo novos valores, somados à pressão da sociedade por rapidez”, explica ela. O advogado Antônio Augusto Mayer dos Santos, parecerista, professor de Direito Eleitoral e autor de livros jurídicos, lembra que a Constituição atual se refere ao STF em quatro dos nove títulos: Direitos e Garantias Fundamentais, Organização do Estado, Organização dos Poderes e Disposições Constitucionais Gerais. “A importância dada pelo constituinte ao tribunal revela-se ostensiva, o que se reflete nas suas competências e decisões que abrangem temas de impacto econômico, social e político”, diz.
Otávio Luiz Rodrigues Júnior, advogado, membro do CNMP e professor da USP.
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Ex-presidente Michel Temer durante visita Protocolar ao Supremo Tribunal Federal pela
Foto: Marcos Corrêa/PR
data de Aniversário da Constituição Federal.
PROTAGONISMO INÉDITO Entre dispositivos vigentes, modificados ou revogados, tanto de natureza permanente quanto transitória, Santos sublinha que o Supremo é citado 72 vezes na Constituição Cidadã. “A Assembleia Nacional Constituinte guindou o STF, que exerce o controle concentrado de constitucionalidade, a protagonismo inédito na história da República”, observa. Não por acaso, há o ditado corrente de que os nomes dos 11 Ministros do STF são hoje mais conhecidos do que os 11 titulares da Seleção Brasileira de futebol.
“De 1891 até os dias atuais, o Supremo Tribunal Federal perpassou seis constituições e testemunhou o amadurecimento cívico da nação brasileira”, disse, em sessão plenária que homenageou os 130 anos da Corte, o seu presidente Luiz Fux. Ele fez questão de pontuar que, ao longo da história da República, o STF esteve presente nos rumos do país, assumindo o seu papel institucional de garantir o equilíbrio e a harmonia entre os poderes, a defesa da paz social e dos direitos e garantias individuais do cidadão. 77
MEMÓRIA
NOTAS HISTÓRICAS DO SUPREMO Ao longo de 130 anos, o STF colecionou fatos curiosos. Confira alguns
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O STF foi instalado às 13h do dia 28 de fevereiro de 1891. A primeira sede se localizava na Rua do Lavradio, bairro da Lapa, Rio.
Três barões do Segundo Império exerceram mandato no Supremo durante a República:
Dos 168 Ministros do Supremo no período republicano, 93 exerceram a advocacia antes de ingressar na Corte, ou seja, 56% deles.
Barão de Lucena (1890-1892), Barão de Pereira Franco (1891-1902) Barão de Sobral (1890-1893).
De todos nomeados, 51 (30,54%) exerceram mandatos no Congresso.
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O Ministro mais velho a atuar foi o pernambucano André Cavalcanti d’Albuquerque, que faleceu no exercício da presidência, em 13 de fevereiro de 1927, cinco dias antes de completar 93 anos. Foram 29 anos e 246 dias na Suprema Corte.
Alberto de Seixas Martins Torres foi o Ministro mais jovem. Em 30/04/1901 foi nomeado com pouco mais de 35 anos de idade.
Os presidentes da República que mais nomearam para o STF foram Getúlio Vargas (21), Deodoro da Fonseca (15) e Floriano Peixoto (15).
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Juntos, conduziram 51 integrantes à Corte.
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O único presidente da República que não indicou nenhum Ministro para o STF foi Café Filho, cujo governo durou menos de um ano, de 24/08/1954 a 08/11/1955.
José Linhares, que ficou 18 anos no STF, foi quem mais vezes o presidiu. Foram quatro mandatos: de 26/05/1945 a 29/10/1945, de 02/02/1946 a 02/02/1949, de 02/02/1951 a 28/04/1954 e de 28/04/1954 a 29/01/1956, quando se aposentou.
O menor tempo na presidência da Corte foi exercido pelo Ministro Carolino de Leoni Ramos: 23 dias, entre 25 de fevereiro e 20 de março de 1931, data de seu falecimento.
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O Ministro Godofredo Cunha desenvolveu surdez a partir de 1928. Para poder acompanhar as sessões e votar nos processos, mantinha dois funcionários, um de cada lado da sua mesa, os quais repetiam para ele o que estava sendo debatido pelos colegas.
No dia 5 de novembro de 1968, a Rainha Elizabeth II, acompanhada do Príncipe Phillip, Duque de Edimburgo, participou de uma sessão solene no STF.
A primeira transmissão ao vivo de uma sessão plenária do Supremo pela TV Justiça ocorreu em 14 de agosto de 2002.
Fonte: 500 Curiosidades sobre o Supremo Tribunal Federal (Editora Thoth, 2021), do advogado gaúcho Antônio Augusto Mayer dos Santos.
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Ensinar é o que fazemos Direito
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