Dédalo nº 3 Maio|Junho 2007 Distribuição Gratuita
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O ARQUITECTO NO LABIRINTO
FICHA TÉCNICA Dédalo N.º3 Maio/Junho 2007 [revista bimestrall] coordenação Pedro Neto equipa Carlos Foyedo, Diana Vieira, Guilherme Sepúlveda, Luís Grilo , Pedro Neto, Ricardo Leal grafismo Diana Vieira blog Ricardo Leal participações especiais Eugénio Cardoso, Manuel Botelho, Manuel Graça Dias, Mariana Amaral, Mariana Simões, Nuno Lacerda, Rui Gonçalves tiragem 500 exemplares copyright © 2007 AEFAUP agradecimentos a todos os que colaboraram, aos professores e Margarida que ligou para a gráfica capa Mariana Simões e Eva Vieira
INDICE 05. Arquitectura em Movimento Joana Gomes 06. A Matéria que faz a cidade Manuel Graça Dias 12. Museu de Arte em Silkeborg Mariana Amaral 12. Ao ar fresco e num mundo são! Nuno Lacerda 16. A dissolução da matéria e/ou a sinfonia cósmica Eugénio Cardoso 22. Notas sobre a estereotomia da luz Luís Grilo
26. Arquitectura, uma música petrificada Mariana Simões 30. Duas advertências à matéria Rui Gonçalves 34. Arquitectura liofilizada|Nova materialidade urbana Pedro Neto 40. Quando o espaço se torna complexo Guilherme Sepúlveda 44. O reflexo da matéria Carlos Foyedo 43. O corpo do mundo Manuel Botelho
EDITORIAL Pedro Neto
Forma, Movimento e agora Matéria. O término de uma espécie de trilogia...talvez! Abordaram-se temas que se tocam, intersectam e que fazem parte de um mesmo todo. Isto. E a arquitectura terá tantas ramificações quantas nós tivermos, e estas serão sempre tão redutoras. Porém, há sempre a necessidade de colar os post-its nas suas devidas gavetas, se é que essas existem ou fazem sentido – prevalece o esquema do hiper-inter-e/ou-só-texto! A vastidão de abordagens derivada de um tópico – matéria, per si extremamente complexo e das suas variadíssimas conotações compõem o presente número. A tentativa de abarcar o maior campo lexical do tema deu origem a uma curiosa sucessão de expressões. E que dizer acerca da matéria? Que é líquida, sólida ou gasosa. Perecível, mutável, relativa, harmónica, inexistente, muito ou pouco existente, perpétua sem dúvida... Da perspectiva da física o sistema é estanque, tudo é algo que existiu e existirá, metamorfoseando-se. E, extremando...o exemplo da muralha da China, em que a população que a foi construindo tornou-se parte integrante da própria muralha..humm! Uma ligação demasiado literal entre a matéria da arquitectura e nós enquanto seres. Outras há, connosco, com o que nos envolve, com o contemporâneo. Matéria como fim de linha. Ou início...será sempre duvidosa essa barreira. Quando era miúdo vi uma estrela cadente. Foi bestial! Caiu atrás de um monte perto de minha casa. Fui a correr chamar a minha mãe. Queria ir buscá-la...
Joana Gomes
A propósito da matéria
A propósito de matéria: anular a matéria. Instalação de Rita Gomes.
Cobriu-se uma sala inteira com papéis; jornais. A sala de aula que era usada todos os dias desapareceu!, no seu lugar: uma cápsula gravitacional de coisas, mescla de pequenas coisas, onde se conseguem focar pontualmente letras, e vagamente, uma ou outra imagem. As paredes desapareceram, os caixilhos das janelas foram anulados – deixando-se adivinhar apenas pela luz que desbrava por entre as letras de tinta preta – o chão é algures nesta superfície que anda por todo o lado, até pelo tecto. Não mais reboco, linóleo, rodapés. A ironia das nossas coisas quando são tratadas por uma pessoa que trata doutras coisas, e a forma como um designer pega nessas coisas - que são concretas, que são matéria,que são substantivos - e as transforma noutras coisas - que são subjectivas, que são emoções, que são adjectivos - mas que são, também, as nossas coisas.
PEDRO NETO | JOANA GOMES | P004/005
A M AT ร R I A Q U E FA Z A CIDADE Manuel Graรงa Dias
Professor Auxiliar Convidado FAUP
1 - ALGUMA DA MATÉRIA QUE FAZ A CIDADE: Pessoas, plátanos, alcatrão, rios, tijolos, rebocos, madeiras, palmeiras, plásticos, pessoas, acácias, alumínio, ferro, relva, saibro, vidraço, basalto, granito, mármore, lona, palha, pessoas, goda, vidro, luz, betão, brita, gesso, gesso cartonado, tinta, pinheiros, azulejo, mosaico, pastilha, fórmica, pessoas, meterosíderos, cristais, cartões, cortiça, espelho, mar, zinco, cobre, latão, cedros, lioz, água, poliuretano, aço, araucárias, bambus, policarbonato, lagos, jacarandás, pessoas, néons, ataíja, massas auto-nivelantes, borrachas, tecidos, tílias, nylons, papéis, contraplacados, cerâmicas, barros, terra vegetal, areia, sílica, feltro, couro, ouro, prata, titânio, roof-mate, wallmate, pvc, papel fotográfico, pessoas. 2 - TUDO ISTO UNIDO, ATADO, PRESO E LIGADO POR: Pregos, agrafos, colas, tachas, assembleias, rebites, encaixes, emalhamentos, embutidos, cravos, argamassas, fusão, diálogos, cruzamentos, encontros, laços, fios, linhas, éter, cordas, guitas, arames, raízes, peso próprio, resistência, vontade, desejo, catenárias, TSF, carris, vitrificação, fita cola, carros, autocarros, metropolitanos, eléctricos (tramways), skates, electricidade, cores, alturas, bicicletas, massas, alternâncias, segways, repetições, internet, soldaduras, comboios, barcos, aviões, helicópteros, jetfoils, carroças, casamentos, divórcios, separações, olhares, cheiros, amizade, camaradagem, solidariedade, amor, gritos, risos, gargalhadas, parafusos, gatos, tirantes, mastros, abraços, reuniões, festas, representação, aulas, filmes, livros, manuais, ironia, humor, empatia, redes, quadrículas, proporções, liames. 3 - TUDO ISTO CONSTRUINDO: Casas, ruas, estradas, largos, praças, jardins, alamedas, bairros, bosques, parques, praias, avenidas, boulevards, cantos, recantos, becos, casas, edifícios, escadarias, escadórios, esquinas, gavetos, travessas, ladeiras, casas, arcadas, portais, alinhamentos, desencontros, movimento, sombra, escuros, clareiras, perspectivas, colecções, famílias, grupos, quincôncios, casas, simetrias, equilíbrios, vazios, adros, terreiros, esplanadas, densidade, vertigem, miradouros, belvederes, corsos, bancadas, sambódromos, estádios, coliseus, igrejas, casas, fábricas, escritórios, casinos, museus, palácios, paragens, casas, torres, cobertos, estadias, arcos, restaurantes, bares, cabarets, botequins, discotecas, cinemas, varandas, loggias, terraços, plataformas, muros de suporte, cais, pontões, pontes, casas, casas, casas. Construindo os lugares que encontrámos quando nascemos, que outros, depois de nós, encontrarão ao nascer, que deixaremos quando morrermos e que nos permitem o ensaio constante de sempre novas instalações; que nos permitem o ensaio dos sempre novos modos que quisermos de estarmos juntos; os lugares que nos permitem a cidade. Lisboa, Junho 200/
M. GRAÇA DIAS | P004/005
Museu de A r t e e m Silkeborg Mariana Amaral
Jørn Utzon projectou em 1963 um museu em Silkeborg, Dinamarca, para albergar as colecções doadas ao museu por Asger Jorn, artista plástico do grupo COBRA. Uma exposição retrospectiva sobre os projectos não construídos do séc. XX relançou a atenção e uma forte análise ao projecto. Arquitecturas Ausentes do séc. XX re-explora Silkeborg.
“the onion project” O projecto prevê que praticamente todo o programa fique enterrado no jardim. Há apenas uma entrada, café, informações e ligação ao museu existente, como elementos externos. Essa ligação é feita através de pórticos, com transparências entre eles, que têm como função conceber uma grande clarabóia para o grande espaço cavado no chão. O resto do programa está enterrado a uma altura de três pisos. O movimento descendente de acesso ao espaços expositivos faz-se através de rampas curvas e interligadas com bifurcações cruzadas, de um desenrolar complexo. Duas das rampas introduzem o visitante nos três espaços curvos – os três bolbos principais da exposição. Entre as rampas há espaços que pode eventualmente ser usados para expôr peças. A caverna permanece enterrada, eterna. Sem ângulos rectos. Como na Endless House do Kiesler, o biomorfismo é explorado num interesse comum. À partida. O espaço que não tem fim do Kiesler é distinto das formas completas que Utzon usa. As clarabóias Aaltianas, como Moneo lhes chamou, possuem um encerramento em si próprias. A outra face está vedada na densidade da terra. Apenas visíveis do interior. O seu limite é a abertura que perfura a superfície na procura da luz. Sobre a casa das paredes que sobem vertiginosas ao tecto e voltam ao chão, Kiesler, que explorou a Endless house durante cerca de vinte anos, escreve: “...the endless house/ has ins and out/ without a door or wall/ they change at will/ from void to fill/ yet standing still...” Noutros espaços expositivos, como o Guggenheim de N. York, as rampas percorrem as obras com o mesmo sentido que Utzon propõe, ainda que o edifíco traga outras questões de presença urbana. É distinto das formas enterradas. É explícito na cidade; um museu visível. No museu de U. há duas zonas notavelmente separadas. E que coincidem com momentos programáticos diferentes. O buraco das rampas e a partir deste, os bolbos que emergem para o exterior. E dois momentos explícitos, respectivamente o de descida/
MARIANA AMARAL | P008/009
acesso e o de ascensão. O diálogo está enterrado, atitude que anula as fachadas. Na densidade da terra, que comprime os volumes, estão definidas esculturas internas. De que vivem? Vivem apenas da luz, que procuram ao emergir à superfície e das paredes que se confinam para conter o “museu”. Eterno, enterrado. The Onion project, como o arquitecto lhe chamou, reveste-se da massiva e opaca condição subterrânea. E lança novas coordenadas. A ortogonalidade geométrica e as implicações da gravidade invertemse no espaço do negativo. O subterrâneo, que nega a possibilidade do alçado, reforça a interioridade. O museu existe para lá das camadas da realidade. Invisível e ilusório... E Kiesler continua: “until I/ split with light/ reality-ilusion/ it’s simply done/ by magic fusion/ of what is not/ what can/ and does not want to be/ yet must obey/ oh! stay/ succumb!/ don’t play me dumb”. Referências bibliográficas: Bogner, Dieter; Frederik Kiesler: Endless space; Editora MAK; Viena; 2001 Sobejano, Enrique/ Fuensanta, Nieto; Museo de Silkeborg 1963/Arquitecturas Ausentes do século XX; Editorial Rueda; Madrid; 2004 Dirckinck-Holmfeld, Kim/ Keiding, Martin; Utzon and the new tradition; The Danish Architectural Press; Copenhaga; 2005
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“Ao ar f r e s c o e num m u n d o são!” Nuno Lacerda
“E a deusa acolheu-me afavelmente, tomou-me a dextra na sua e dirigiu-me estas palavras: “Sê bem-vindo, ó jovem, que vieste à minha morada no carro que te transporta, acompanhado de aurigas imortais. Não é a sorte mesquinha, mas o direito e a justiça, quem te enviou a viajar neste caminho. Pois bem longe ele fica do trilho dos homens. Encontra-lo, significa que aprenderás todas as coisas, tanto o ânimo inabalável da verdade bem redonda, como as opiniões dos mortais nas quais não há confiança verdadeira. Todavia, deverás ainda aprender isto também – como as aparências, passando através de tudo, devem assemelhar-se ao ser”. PARMÈNIDES
Pedem-me os alunos um texto sobre a “última casa” sobre o projecto para a última morada, a tumba, a campa , o jazigo, talvez a memória, não sei ainda. Interrogo-me porquê? Não sou arquitecto tipo “som” (sempre os mesmos) e em geral recuso participar aos convites que sempre nos chegam, na procura da manutenção de uma visão instituída, com sinais quantas vezes incestuosos, em vez do “débil” confronto de ideias ou mesmo do registo das anónimas descobertas que a arquitectura sempre possibilita e experimenta e que particularmente valorizo e persigo. Não deixa de ser interessante, convidarem-me para escrever sobre este tema, que não é da moda, não vende, nem, é muito apelativo – diria mesmo... é genericamente desinteressante! Talvez por isso aceitei organizar algumas ideias em torno desta matéria que de um modo pouco sistematizado tenho trabalhado desde o inicio da minha formação como arquitecto e mesmo antes enquanto estudante, pelo quarto ano, fiz o meu primeiro projecto para uma capela – jazigo para uma família que procurava a representatividade através de uma “arquitectura”. Aquela que Loos diz ser a autentica - “La casa debe agradar a todos, a diferencia de la obra de arte que no tiene por qué gustar a nadie. La obra de arte es un asunto privado del artista. La casa no lo es. La obra de arte de sitúa en el mundo sin que exista exigencia alguna que la obligase a nacer. La casa cubre una exigencia. (...) La obra de arte es revolucionaria, la casa es conservadora. (...) ¿no será que la casa no tiene nada que ver con el arte y que la arquitectura no debiera contarse entre las artes? Así es. Sólo una parte, muy pequeña, de la arquitectura corresponde al dominio del arte: el monumento funerario y el conmemorativo. Todo lo demás, todo lo que tiene una finalidad hay que excluirlo del imperio del arte”. Adolf Loos (“Arquitectura”, 1910, enTrotzdem, 1900-1930, 1931)
arte. Como ele estava errado, pensamos agora, quanto à evolução da Arte, quanto à evolução do conceito autenticidade e sobretudo quanto à evolução da arquitectura que a contemporaneidade nos oferece onde o domínio da arte (comemorativo) se alastrou significativamente. Contudo falar de arquitectura é ainda falar de vida, de memória, de emoção de símbolo e de representação e Loos cedendo à lei da vida ia conquistando esse saber... com humor e com desenho, propunha um cubo (entre outras soluções) para a representação da sua sublime arquitectura, o seu derradeiro monumento. Mas não era um cubo qualquer, deveria ser um cubo de proporções tais que não parece-se um tinteiro, pediu à mulher nos seus últimos dias de vida. Ironia do destino, foi Kulka, a pedido de vários amigos vienenses, quem desenhou, reinterpretando os seus diversos esquissos, um volume de granito cujas proporções apenas se aproximam à pureza que Loos desenhou, onde nem o seu nome aparece escrito como desejou. E, é de desejo que a arquitectura trata e nessa medida insisto, é vida que retrata. Sublinho vida. Se é verdade que para estudar arquitectura e outras artes do passado, era preciso estudar sobretudo igrejas e cemitérios, hoje o deslocamento da noção de arquitectura, de projecto e de obra arquitectónica, onde o “habitar” que o moderno sonhou e generalizou, veio a criar toda uma novidade e todo um deslumbre que ainda persiste na nossa profissão e também nas nossas escolas, remete para a insignificância toda e qualquer abordagem “vetusta” que liga a arquitectura a práticas mais “chãs”, que sendo menos mediáticas, não aparecem nos livros que cada vez mais não lemos, nem nas revistas que cada vez mais pouco consultamos. O projecto sobre a morte, ou projectar para a morte é por isso tratado como obra menor, como uma variação mais livre onde a ausência de organograma, de funcionalidade, de distribuição, programa, tipologia ou mesmo onde a “habitabilidade” se encontra no grau zero, levou a modernidade a desvalorizar estas obras, na medida em
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que na arquitectura funerária o valor de símbolo se sobrepõe ao valor de uso. È paradigmático este percurso de aproximação e de coincidência que se assiste hoje no tratamento simbólico e de representatividade que muitos edifícios ditos “equipamentos” legitimam, como verdadeiros mausoléus de cidades vazias e moribundas que a espectacularidade das crescentes arquitecturas de autor aqui simbolizam. Nesta medida, podíamos dizer que a arquitectura funerária saltou os muros do cemitério e realizam-se e exprime-se verdadeiramente nas cidades. Quantos edifícios encontramos hoje nas nossa aldeia global, que não são mais do que meras interpretações subjectivas de outras “vidas” que entre sentimentalismo, arcaísmo, simbolismo, surpresa, representatividade e inovação formal, apenas procuram evidenciar ou perpetuar os registos biográficos ou autobiográficos dos seus autores, como se de monumentos funerários se tratassem. Por isso quantas cidades parecem cemitérios, e quantas arquitectura parecem jazigos, e talvez por isso a grande parte das Histórias da Arquitectura Moderna e Contemporânea pouco lhe interessa estas obras de pequeno porte e de pequeno impacto pois a característica essencial de conceptualização, símbolo e representação deste tipo de construção passou para outra uma dimensão e ganhou outra visibilidade. O design de uma chaleira de Rossi, o design de uma Cadeira de Eames, o Copo de Porto de Siza, ou a cadeira de Ghery, conquistam nesta ordem de ideias mais evidencia do que qualquer obra que a arte fúnebre apesar de tudo ainda constrói, à margem e sem “inscrição” no actual panorama de ”Inquietud Teórica y Estrategia Proyectual”(Moneo) que a arquitectura hoje evidencia. Se é verdade que quer A. Aalto, W. Gropius, Corbusier... entre outros já construíram ora para si ora para outros clientes, também é verdade que estas obras não revelam os fios condutores que caracterizam ou legitimam a coerência das suas arquitecturas. De um modo geral diríamos que são arquitecturas paralelas, acontecimentos, derivações que pouco acrescentam ao método, ao projecto ou se quisermos à disciplina tal como a vemos e valorizamos hoje em dia. Naturalmente que há importantes excepções que não importa aqui referir exaustivamente, apenas referenciar a capela de Rossi, os cemitérios de Asplund, a capela de Llinás,os trabalhos de Mirralles, entre tantos outros tal como a intervenção “Landart “ que sobre o horizonte da Galiza se constrói, propõe-nos outros temas projectuais e outras
visões metodológicos e como tal são capazes de conquistar novos territórios para o desenvolvimento disciplinar da arquitectura, quer no plano teórico, quer no plano da praticabilidade da concepção do “objecto arquitectónico” enquanto facto que está para alem da ideia de arquitectura como exercício (Corbusier), como organização (Tàvora), natural qualificação (Khan) ou espelho da época (Mies) traduzida em espaço. Se é verdade que nem nestas “definições” mais abertas e abrangentes a arquitectura mortuária se encaixa na perfeição, porquê continuamos a insistir nestas obras sem espaço e mais grave, sem sujeito, como arquitectura? A resposta talvez se encontre na incessante procura do Homem pelo facto “sublime” que ainda hoje persegue, na constante aferição das “razões negativas” (Kant) que a alusão, a expressão e a perpetua diferença entre significado e significante , a Arquitectura, de um modo emotivo e sensual, ainda lhe oferece. Lembro-me agora que tenho de desenhar uma campa para o pai de uma amigo padre, projecto que tenho vindo a pensar bastante e há já algum tempo, só falta agora desenhar... e pedir desculpa pelo atraso que esta arte sempre me obriga, apesar de ter já projectado e construído muitas outras, para diferentes pessoas e diferentes religiões, para amigos e desconhecidos, até para mim próprio, mas também aqui, como em tantas coisas da vida, a experiência não serve rigorosamente para nada.
Porto, 2 de Junho de 2007
- A existência desta dualidade Significado e o Significante, já Vituvius, dava nota quando escreveu nos seus livros: “Na realidade, como em todas as coisas, também na arquitectura, de uma feição especial, se verificam estas duas realidades: o que é significado e o que significa. O que é significado é coisa proposta, da qual se fala; o que significa é a evidência baseada na lógica dos conceitos. E, assim, parece que aquele que pretende ser arquitecto se deverá exercitar numa e noutra parte.” E como fazê-lo ¿ encontramos em Mies a resposta “...ao ar fresco e desbravando um mundo são, onde o jovem arquitecto, poderia aprender e actuar de uma forma simples e sensata, mais do que com esse mestres desconhecidos,” que transformam em tumbas, sem vida muita da potencial, bela e sensivel arquitectura.
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A d i s s o l u ç ã o d a m a t é r i a e/ou a sinfonia cósmica Eugénio Cardoso
A experiência informa a intuição e estabelece o enquadramento com o qual analisamos e interpretamos o que percepcionamos. Os progressos da física, da neuropsicologia, ou de modo geral, os progressos de vasta gama de ramos científicos, têm revelado detalhes importantes pouco familiares da realidade, ainda que o seu impacto no contexto do quotidiano seja minimal. Certamente, podemos aceitar que a realidade é o que pensamos que é, aquela realidade revelada pelas experiências pessoais, aquela cuja face facilmente seduz os sentidos. No entanto, uma das conclusões mais relevantes que emergiu da investigação científica moderna é a de que a experiência humana é muitas vezes um guia desastroso no entendimento da verdadeira natureza da realidade, no sentido em que a nossa paleta perceptiva rudimentar frequentemente revela uma concepção enevoada do mundo. Descobertas importantes da ciência levaram, e continuam a levar, a revisões drásticas da nossa concepção do cosmos que, consequentemente, levam sempre a uma reconfiguração, ainda que ténue, do entendimento de nós próprios. Durante alguns tempos pensou-se que protões, neutrões e electrões fossem os átomos antevistos pelos gregos. Mas o uso da capacidade tecnológica moderna mostrou que protões e neutrões não são esses blocos elementares, mas antes que cada um deles é constituído por três partículas mais pequenas, denominadas quark. O quark é um dos dois elementos básicos que constituem a matéria e encontraram-se seis variações: “top”, “bottom”, “charm”, “strange”, “up” e “down”. São as duas últimas variações que formam os protões e neutrões, as outras só se encontram em condições ambientais extremas recreadas em aceleradores de partículas. Com esta capacidade tecnológica em mão, nos finais de 1930, foi encontrada uma partícula chamada muão - idêntica a um electrão excepto que cerca de 200 vezes mais pesada. Em meados de 1950, uma outra espécie de partícula elementar: o neutrino - uma partícula cuja existência já tinha sido prevista. Esta partícula mostrou ser muito difícil de encontrar porque é uma partícula fantasma, que apenas tenuamente interage com a matéria dita mais familiar. Foi ainda encontrado outro parente próximo do electrão, desta vez ainda mais pesado - tau, assim como mais duas partículas com propriedades similares às do neutrino (muão-neutrino e tau-neutrino para distinguir do primeiro, agora chamado electrão-neutrino). Estas partículas são produzidas por colisões de alta energia e são de certa forma efémeras, não são directamente consti-
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tuintes das coisas com que lidamos tipicamente. Mais ainda, cada uma destas partículas deve ter um companheiro antipartícula - uma partícula de mesma massa mas oposta noutros aspectos tais que a carga eléctrica ou o spin. Também são dificeis de detectar, visto que quando em contacto, matéria e antimatéria tendem a anular-se para produzir energia pura. Note-se que a quase totalidade destas partículas são encontradas depois da sua existência ser há muito tempo prevista e esperada pelos cálculos matemáticos - é muito frequente a matemática ajudar a descobrir estes elementos antes que o desenvolvimento da tecnologia permita a sua experimentação em laboratório. A par da matéria, todas estas interacções entre vários objectos e materiais podem ser reduzidas a combinações de 4 forças fundamentais. A força gravitacional, a força electromagnética, as forças nucleares fraca e forte. Estas duas últimas agem essencialmente a nível subatómico, isto é, só mantêm intensidade em distâncias subatómicas, são forças nucleares. A força nuclear forte é responsável por manter quarks colados dentro dos protões e neutrões, e protões e neutrões colados entre eles dentro do núcleo atómico. A força nuclear fraca é força responsável pela decadência radioactiva de substâncias como o urânio ou o cobalto. A nível microscópico, as forças têm uma partícula associada: os constituintes dos campos das forças nucleares fraca e forte são partículas chamadas, respectivamente, bosões de gauge massivos e gluões. Estima-se que a força gravitacional também tenha uma partícula associada - o gravitão - ainda que a sua existência não tenha sido experimentalmente confirmada. A nível sub-atómico como a nível macro-cósmico, as coisas que temos habitualmente por certas e estáveis tomam formas e propriedades que desafiam o entendimento mesmo dos especialistas que estudam essas matérias durante décadas, como reconhece Brian Greene. As teorias da relatividade contribuíram para uma concepção revolucionária do entendimento da entidade espaço-tempo, e evidenciaram comportamentos pouco familiares de alguns aspectos do universo, tais que a invariabilidade da velocidade da luz, independentemente da velocidade de movimento do corpo ou corpos referenciais, e a inevitabilidade de que nenhum objecto, nenhuma influência ou perturbação de qualquer tipo possa viajar mais rápido que a velocidade da luz. Estas propriedades podem parecer estranhas se não tivermos em conta a especificidade de cada entidade separadamente. Por velocidade entende-se a medida de quanto
longe um objecto pode viajar numa dada duração de tempo. A distância é uma noção de espaço - uma medida de quanto espaço existe entre dois pontos; já a duração é uma noção de tempo - de quanto tempo passa entre dois eventos. Na nossa escala quotidiana, a perturbação/distorção espaço-tempo não se nota, mas a velocidades próximas da da luz, o movimento é de tal modo dirigido numa só dimensão que pouco resta a percorrer noutras. Dito de forma breve, a luz não viaja no tempo, não envelhece. Isto revela essencialmente que tempo e espaço não podem ser pensados como conceitos universais imutáveis, experienciados identicamente por todos. Em vez disso, espaço e tempo emergem como construções maleáveis cuja forma e aparência depende do estado de movimento de cada um. Greene propõe que as duas teorias da relatividade estão entre as descobertas mais preciosas da humanidade, e a revolução quântica, um dos maiores desafios a que o entendimento humano moderno alguma vez foi sujeito. Apenas as leis quânticas foram capazes de resolver uma série de puzzles e explicar uma variedade de dados adquiridos em torno do campo atómico e sub-atómico. Em concordância com as leis quânticas, ainda que se pudessem fazer as mais perfeitas medições possíveis da forma como as coisas estão agora, o melhor que se poderia atingir é prever a probabilidade de que as coisas venham a ser de uma forma ou de outra num certo tempo futuro, ou que as coisas foram de uma forma ou de outra num dado lapso de tempo no passado. A noção de probabilidade aplicada à física surge da impossibilidade de determinar com certeza decisiva a posição e velocidade de uma partícula, tendo em conta que para determinar a sua posição, é necessário interferir na sua velocidade, alterando assim o seu estado de moção, e inversamente, tentando determinar a sua velocidade, altera-se a sua posição. Pouco mais tarde também se percebeu que as partículas, na sua condição de matéria elementar (ainda que virtual como no caso dos fotões) reduzida a um ponto são também compostas por uma onda, que se pode extender pela totalidade do universo, e que apresenta deformações que são as zonas de probabilidade para a próxima posição do electrão, etc; quanto mais acentuada a deformação, maior a probabilidade de o encontrar nesse sítio. A possibilidade de encontrar o electrão existe em toda a extensão da onda, embora em zonas longínquas a probabilidade ronde os 0% sem no entanto nunca o ser. Esta é também conhecida como onda de probabilidade. A matéria é portanto simultaneamente onda e partícula (a chamada dualidade onda-partí-
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cula). Para um fotão se deslocar dum ponto a outro do espaço, não percorre necessariamente um percurso traçado em linha recta, antes, percorre simultaneamente todas as trajectórias possíveis para chegar àquele ponto. Einstein, Podolsky e Rosen, cépticos quanto à questão da probabilidade na ciência, tentaram demonstrar que seria possível determinar com exactidão a posição e velocidade duma partícula utilizando um seu companheiro com as mesma propriedades de movimento - na verdade dois objectos resultantes da divisão duma só partícula - mas que viajava em direcção oposta, partindo do pressuposto que enquanto se faziam medições num dos objectos, outro permanecia intocado. Inesperadamente, a experiência acabou por provar que ao interferir num dos objectos, o seu companheiro também sofria alterações. É que normalmente, separação espacial implica independência física. A mecânica quântica desafia este ponto de vista revelando, pelo menos em certas circunstâncias, uma capacidade que transcende o espaço; conexões quânticas de longa distância podem ultrapassar a separação espacial. Dois objectos podem estar longe no espaço, mas quanto ao que diz respeito à mecânica quântica, é como se fossem apenas uma mesma entidade. E por causa da forte relação entre espaço e tempo, as conexões quânticas também têm tentáculos temporais. Enquanto que a intuição humana tende a compreender uma realidade em que as coisas são sempre de uma ou de outra forma, a mecânica quântica descreve uma realidade em que as coisas tendem em ser parcialmente uma coisa ou outra. Se de facto a mecânica quântica constituiu um verdadeiro desafio ao entendimento humano moderno, os desenvolvimentos das mais recentes teorias das cordas, reunidas desde 1995 por Edward Witten numa só teoria unificada chamada teoria-M, revelam um universo altamente mais dinâmico e complexo que qualquer teoria previra até hoje. No ponto de partida, a teoria propõe que os blocos fundamentais não são pontos de dimensão zero - que eram até então a base da física tradicional - , mas antes objectos extensos unidimensionais, cordas vibrantes constituídas apenas por energia, cuja própria frequência de vibração e rotação dita as suas propriedades diversas, resultando numas constituintes de electrões, outras constituintes de quarks, fotões, etc. Desta forma, os mais elementares constituintes da matéria são vibrações. As próprias cordas vibram dentro de dimensões que nos são estranhas, dimensões circulares e espiraladas, recurvadas
sobre si próprias, num total, segundo os cálculos - de 11 (10 espaciais e 1 temporal - note-se que numa primeira vertente da teoria das cordas, a teoria bosónica das cordas incluía 26 dimensões), dimensões espaciais que por razões não totalmente conhecidas não se expandiram tanto como as três com que lidamos diariamente e existem apenas numa escala sub-atómica, na ordem da chamada distância de plank (10-35 m - comprimento estimado das cordas), que se agrupam por vezes para formar espaços recurvados multi-dimensionais - os espaços calabi-yau (do nome dos físicos que os descobriram). A teoria das cordas propõe também uma descrição mecânica-quântica da gravidade que, por necessidade, modifica a relatividade geral quando distâncias envolvidas se tornam tão curtas como o comprimento de plank. Uma nova espécie de geometria tem de emergir, uma que se alinha com a nova física da teoria das cordas: a geometria quântica - que tem a ver com espaços curvos e recurvados em distâncias de plank. A própria matemática também procura agora desenvolvimentos dentro da física, uma vez que a física tinha esgotado a matemática tradicional pela complexidade dos cálculos que esta teoria envolve. No que toca propriamente dito à noção generalizada daquilo que é a matéria, vemos que quando observadas ao microscópio, as coisas que temos por mais inertes, são de facto constituídas por entidades em movimentos imprevisíveis e extremamente rápidos; as coisas que temos por mais sólidas são, no fundo, constituídas por movimento e vibrações, não por qualquer elemento verdadeiramente sólido na acepção mais clássica dessa noção. Para além disso, basta pensar no tamanho dos constituintes de um átomo e na distância existente entre o seu núcleo e electrões para perceber que mesmo o corpo que considerarmos mais sólido à nossa escala é essencialmente vazio, e finalmente, que nem mesmo esse corpo tem constituintes propriamente sólidos, e que da mesma forma todo o universo é essencialmente vazio. De notar que se tivesse mais massa que no estado actual, estaria sob risco de ceder sob o seu próprio peso e caminhar lentamente para o que se tornaria num buraco negro gigantesco e engolir-se a si próprio. - Brian Greene, “The elegant univers - superstrings, hidden dimensions, and the quest for the ultimate theory”, vintage books, março 2000, NY Brian Greene, “The fabric of the cosmos - space, time, and the texture of reality”, Penguin books, 2005, UK Andrew L Bender, “SlipString Drive: String Theory, Gravity, and Faster Than Light Travel”, iUniverse Incorporated, novembro 2006
EUGÉNIO CARDOSO | P020/21
N o t as sobre a e s t e r e otomia da luz Luís Grilo
“A Luz é uma componente essencial, imprescindível na construção da arquitectura. A Luz é matéria e material como a pedra. Quantificável e qualificável. Controlável e mensurável.” Louis Kahn
A arquitectura, enquanto “ideia construída” num dado contexto, vê-se invariavelmente regida pela lei da gravidade. Desde os seus primitivos abrigos, o ser humano dialoga com o peso da matéria . As cavernas que o abrigaram durante milénios são a imagem da força que amarra os corpos. Ao longo do tempo, o homem desenvolve necessárias técnicas de edificação que possibilitam o seu assentamento territorial, assim como o desenvolvimento de actividades produtivas. Desde logo, pelo manejo do material, dota os seus abrigos de dimensão, proporção, escala. Pensa e incorpora a gravidade. O exercício arquitectónico não se limitou, limita ou limitará a um envolvimento, tanto projectual como construtivo, meramente racional. A vontade de transcendência é de facto intrínseca ao ser humano. Por outro lado, a vivência do produto arquitectónico e da sua linguagem será, de forma muito distinta do processo conceptual, embebida de uma forte carga sensorial e emotiva. O espírito é animado pela presença do espaço que controla a gravidade e pela luz que o tensiona. Neste sentido, o espaço é configurado por formas erguidas com materiais densos. A luz em movimento fá-lo “levitar”. O tempo da narrativa montada pelos passos
humanos afigura-se, tal como a gravidade, incontornável. É a sua irreversibilidade que torna cada momento lumínico único. A luz é geradora de vida. O contínuo traçado pelo movimento luminoso atinge a matéria construída pelo homem. Quatro planos verticais sobre um horizontal, são ancorados ao solo. Adquirem sombra própria. Projectam-se em penumbra assumindo a quarta dimensão. Um segundo plano horizontal cobre o vazio interior definido pelos verticais. Dentro, a ausência de luz é total. O volume é impenetrável. No exterior, o sólido, as suas sombras, são esclarecidos pela luz. O olho humano é sensível à gama de comprimentos de onda. A matéria é visível. Um vão, é aberto num dos planos verticais por forma a que o sujeito entre e se proteja. A salubridade da luz solar é necessária. Em cada um dos restantes três planos verticais é rasgada uma pequena abertura. A luz inicia no interior a sua narrativa. Penetra a sua ausência. Consoante a orientação dos planos perfurados, os raios solares admitem diferentes direcções na sua presença dentro do construído. A luz vertical é acompanhada de um desejo de transcendência. Reple-
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ta de simbolismo, é busca permanente na história da arquitectura. Os “antigos”, por dificuldades técnicas vêem-se impossibilitados da edificação de espaços climatizados, tensionados verticalmente pela luz. O Panteão expressa essa tensão no seu esplendor. O vão circular na cobertura é aberto a agressões exteriores. A luz horizontal é possível, mas mantém-se a vontade de atingir a sua perpendicular. Avançadando construtivamente no tempo, o Gótico desenha vãos maiores, mais altos. Os raios luminosos aproximamse da sua verticalidade. A luz é oblíqua. O Barroco enfatiza a procurada verticalidade com engenhosos mecanismos ilusórios. A produção de planos de vidro de grandes dimensões revoluciona a pesquisa histórica da introdução da luz vertical. O movimento moderno, assim como a aquitectura contemporânea desenvolvem-se em torno das inovações técnicas. Novas equações são delimitadas. Da mesma forma, também os planos verticais encaram novas alternativas. A fachada totalmente envidraçada é uma realidade. Contudo, a transparência não dilui as diferenças espaciais nem cria uma arquitectura de percepção uniforme, sendo que interior e exterior se fundem numa ambiência redescoberta.
O desenho aparentemente aleatório de uma fachada, composta de vãos rasgados descomprometidamente, aparentemente indiferentes a regras geométricas de composição, mostra, contudo, toda a sua coerência no espaço interno, invadido pela medida dos raios luminosos. A dificuldade motivadora da montagem do puzzle encontra-se no encaixe, a partir do difuso, de peças contíguas. A dialéctica constante entre interior e exterior na procura da exactidão do controlo da luz. Tensão interior versus delineação (des)contextulalizada exterior. Sem a “estereotomização” da luz (entenda-se reflexão e domínio do desenho intrínseco ao estudo da iluminação natural) não existe arquitectura. Apenas resta um amontoado de formas tridimensionais. Citando Le Corbusier “o volume e a superfície são os elementos pelos quais se manifesta a Arquitectura. Jogo sábio, correcto e magnífico dos volumes sob a luz”. A disciplina arquitectónica enraíza-se no diálogo entre luz e gravidade. No entanto, “nós não podemos, como o Principezinho no seu planeta, ver o crepúsculo sempre que nos apeteça”. A transformação luminosa é motivo de contemplação.
Referências bibliográficas: . Ramos, Elisa Valero; Reflexiones sobre la luz en el proyecto de arquitectura. La Materia Inatangible; Memorias Culturales . Baeza, Alberto Campo; A ideia construída; Caleidoscópio . João Mendes Ribeiro / arquitectura e cenogravfia, entrevista publicada no #5 da revista NU.
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Mariana Simões
Arquitectura, uma música petrificada Goethe
Sempre existiu uma estreita relação entre música e arquitectura, seja ela experimental ou apenas em termos de estrutura, padrão e estética, mesmo que ultimamente o som tenda a descrever um espaço mais imaterial. Fazendo uma viagem no tempo conseguimos facilmente associar Bach às igrejas barrocas enquanto um apocalíptico tema de Schoenberg pode perfeitamente encarnar o Museu Judaico em Berlim de Libeskind, ou mesmo a música “avantgarde” do compositor John Cage consegue encaixar naturalmente no minimalismo de Mies van der Rohe. Esta relação entre música e arquitectura não se restringe apenas a uma metáfora simbólica nem à questão ordinariamente debatida da acústica das construções. Trata-se também de considerar o uso do som como um meio arquitectónico empregue para criar, definir e dar corpo ao espaço. Ao longo da história da arquitectura, vários exemplos ilustram a próxima relação entre o som e o espaço. A musicalidade das construções não é um tema recente e tem sido explorado nos mais diversos casos, como demonstra por exemplo um estudo sobre as Gru-
tas de Niaux em Ariege, França. O antropólogo Iégor Reznikoff afirma que a posição das pinturas neolíticas corresponde aos lugares capazes de produzir prolongados ecos de uma intensidade particular. Avançado um pouco no tempo, a questão das proporções harmónicas, transpostas da disciplina musical, foi outro tema intensamente explorado por muitos arquitectos. No séc.1 a.C., segundo Vitruvio “the arquitect ought also to know music in order to understand canonical and mathematical theory…”. No séc.15 Alberti advoga a utilização dos números de acordo com uma relação harmónica, à semelhança das regras musicais enquanto que François Blonel defende no séc.17 um “casamento entre música e arquitectura” quando se debatia na Academia Francesa de Arquitectura a ideia da proporção harmónica. A partir deste ponto a relação teórica entre música e arquitectura foi adormecida durante os séculos seguintes, para ser retomada com particular vigor The Music of Caves - Paleolithic Wall Paintings The Ten Books of Architecture, Book 1, Chapter 1; Vitruvio 3 - The Art of Building in Ten Books; Book 9, Chapter 6
no séc. 20. Colaborações entre músicos e arquitectos são possíveis neste contexto porque existem correspondências entre as duas artes aliadas. Conceitos como estrutura, ritmo, harmonia/ dissonância, métrica, fornecem uma linguagem comum para os respectivos discursos. A música e a arquitectura encontram muitas vezes afinidades no ponto comum que é disciplina da matemática. “The poet is one who starts from the seat of the unmeasurable and travels towards the measurable, but who keeps the force of the unmeasurable with him at all times” (Louis Kahn) Um rigoroso exemplo desta cooperação é o Pavilhão Philipis, uma colaboração entre Le Corbusier, Iannis Xenakis e Edgard Varesè para a Feira Mundial de Bruxelas, em 1958. O ponto de partida para a concepção do Pavilhão foi a peça musical Metastasis, baseada no contínuo desvio de uma linha direita. Xenakis representou este modelo na música através dos glissandos, transformando-os em formas parabólicas ou elipsoidais, transformações essas continuadas no espaço. A ideia de Corbusier foi a de criar um ‘Poème Électronic’, onde o cenário era totalmente produzido a partir das relações entre a
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luz, plasticidade, desenho e música, “It will be the first truly electronic work and with symphonic power.” No ano 2000, um outro pavilhão é criado para a exposição de Hannover, desta vez uma estreita colaboração entre Peter Zumthor e Daniel Ott. A sua engenharia estrutural e espacial é desenhada de maneira a amplificar e direccionar o tom e timbre das composições musicais, tendo sido utilizada como base do desenho a imagem de uma larga caixa-de-som. Daniela Ott perseguia a ideia de ‘música espacial’, com ‘músicos movéis’ no seu interior, a alterar continuamente o som do espaço. A música da “Caixa de Som” resultante baseava-se nos heterogéneos blocos edificados, que podiam ser reconfigurados diariamente durante a performance de 153 dias. O compositor tentava converter o número reunido da caixa de som suíça numa composição e em troca experimentava converter a quantidade de números e proporções produzidas pela composição em sons e estruturas baseadas no tempo. Dentro da mesma lógica Steve Roden desenvolve em 2005 uma performance para o pavilhão Serpentine Gallery, dos arquitectos Álvaro Siza e Eduardo Sou-
to Moura. O artista utilizou os próprios desenhos dos arquitectos para gerar resultados gráficos, preenchendo as várias unidades das suas plantas e cortes com cores. Cada cor correspondia a notas musicais de xilofones de crianças, utilizados por músicos amadores durante a performance. O pavilhão foi desta maneira “desenhado” através de várias sequências melódicas. Estes Pavilhões foram construídos como propostas temporárias de estruturas edificadas, cuja essência é tão efémera como a música executada no seu interior. Música e arquitectura trocam desta maneira informações através de uma linguagem comum partilhada pelo arquitecto e compositor. Hoje em dia, com a nova tecnologia áudio emergente, para além de uma partilha de métodos e linguagem, a estreita aliança entre espaço, som e tecnologia, dá origem a novos ambientes sónicos. A potencialidade desde novo campo começa a ser explorada em aplicações arquitectónicas. Um exemplo disso é o trabalho do artista japonês Ryoji Ikeda. Considerado o “arquitecto do som” é um dos mais radicais e inovadores exemplos da música electrónica contemporânea. O seu trabalho explora as característi-
cas físicas do próprio som e sua relação com a percepção humana, baseandose numa acuidade matemática que se reflecte na música, espaço e tempo. Uma das suas instalações que parte desta premissa de intersecção do som e arquitectura é o projecto matrix (for acoustic deslocation), apresentado em 2000 no Millinium Dome, em Londres. O espaço foi desenhado pelo gabinete da arquitecta Zaha Hadid, uma sala principal praticamente escura, desenvolvida em rampa e cuja configuração espacial quebrada do tecto potencia os efeitos do som. Ao longo do seu comprimento existem 16 microfones cujos sons de alta-frequência estão sincronizados mudando continuamente a experiência do espaço. Os visitantes mal conseguem reconhecer as suas dimensões devido à intensa escuridão e o som é quase inaudível devido às suas altas-frequências. No entanto, à medida que passam, súbitos padrões de oscilação ocorrem em torno dos seus ouvidos, causados pelos seus próprios movimentos que interferem com os sons. O som em si é subtil e minimal mas a experiência na instalação é activa e dinâmica, e o espaço compreendido através do envolvimento físico e percepção sonora.
Desta maneira os contornos espaciais são desenhados pelo som… o visitante não vê claramente o espaço mas “ouve-o”, reconhece-o através de uma sinestesia confusa mas ao mesmo tempo precisa e ordenada. Desde as cavernas aos micro-chips, passará o som a ser entendido como configurador de formas e lugares, adquirindo contornos de matéria, que nos envolve e delimita, guiando-nos pelo espaço?
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Duas advertências à “matéria” Rui Gonçalves
Pequena introdução às duas palavras: arquitectura e matéria Antes de relacionar arquitectura e matéria importa atentar sobre o tema de Projecto. Pode dizer-se que o projecto é uma entidade em constante transformação e que consiste em três momentos: desenho, construção e crítica. A relação entre arquitectura e matéria está ligada a estes três momentos e é no tempo da construção que a arquitectura se materializa. Sem procurar integrar os significados profundos de ambos os conceitos importa atentar sobre a possível relação entre as duas palavras. Na língua alemã arquitectura é “baukunst”. “Bau” significa arte e “kunst” significa construir, portanto arte-de-construir. Assim se encontra o primeiro sentido da união entre os significados de arquitectura e matéria: a primeira como gesto que comanda a segunda, instrumento e fim para a concretização das relações do projecto. Do pensamento de Semper pode estabelecer-se o raciocínio contrário. Em “Os quatro elementos da arquitectura” , Semper firma a separação entre dois modos distintos de construir, a massa compressora e a estrutura em tensão. “Deste contraste dialético entre Pesado e Leve(...), induz-se uma analogia matérica e tecnológica: A madeira associa-se à forma tênsil, enquanto a alvenaria à massa em compressão.(...)” Aparece assim definida a tendência natural da matéria para se associar às diferentes formas da arquitectura. Notese que esta definição de Semper é apenas uma ínfima parte das profundas problemáticas com que se debate na sua obra, com discussões que recuam até às primitivas origens da arte e à própria natureza humana. A sua procura da essência da arquitectura tem, já muito mais tarde com Frampton , a sua consagração e continuação. O carácter genérico do termo “matéria” não permite que este se escape a definições de carácter mais abstracto ou filosófico. Nesse sentido deixo a seguinte frase de Heiddeger. “aquilo que dá às coisas a sua permanência e substância e que ao mesmo tempo é a causa da SEMPER, Gottfried, The four elements of architecture and other writings, Cambridge University Press, 1989, (1ª ed. 1851) BARATA, Paulo Martins, “A arte de construir no nosso tempo”, in Álvaro Siza 1954-1976, Trigueiros, A. Costa, P. Barata, K. Frampton. Blau, p.37 FRAMPTON, Kenneth, Studies in tectonic culture(...), MIT Press, 1995
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forma como nos tocam sensivelmente, o colorido, sonoro, duro, maçiço, é o material da coisa. Nesta determinação da coisa como matéria já está posta, ao mesmo tempo, a forma. O permanente de uma coisa, a consistência, consiste em que uma matéria está unida com uma forma. A coisa é matéria formada.”
Primeira advertência: matéria e minimalismo Quetglas identifica o equívoco que advém do uso do termo “minimalismo” para definir uma tendência arquitectónica. Concordo inteiramente com a sua posição. Tratando esta corrente artística de curto-circuitar qualquer transmissão de informação entre a obra e o espectador, não faz qualquer sentido que exista uma arquitectura “minimalista”. Não nos aperceberíamos dela. Começa a notar-se na paisagem portuguesa uma atitude insistentemente repetida por alguns arquitectos. Confrontados com um programa simples, a definição de uma “caixa” é solução para a forma do edifício. A caixa simplifica o pensamento espacial e tal poder simplificador muitas vezes se concretiza em projectos sem forma. É possível, desde esta posição (dentro da caixa) definir “materialidade”. Surge esta advertência para esclarecer e encerrar o grave equivoco que daqui se gera. Desde este ponto de vista, os materiais, pelo seu valor expressivo próprio e pelo valor das relações que criam entre si, possuem essa já muito fotografada capacidade de atribuir “ambiente” ou “atmosfera” à caixa, pela maneira como recebem, difundem ou transmitem a luz. O que me parece importante esclarecer é que “estas” matérias, neste campo específico, nada tem que ver com arquitectura mas, se tanto, com outras disciplinas menores. Está portanto reduzido o problema à escolha no sentido materialista, ou seja, no pior sentido. Usar os termos matéria ou materialidade em arquitectura significa ser capaz de se libertar deste equívoco e, tomando a construção como instrumento de projecto, deixar às relações entre materiais a capacidade de identificar e incorporar as relações do projecto e das formas. Perante a contingência do acto de construir, o material, por si só,
HEIDEGGER, Martin, citado por FRAMPTON, Kenneth, Studies in tectonic culture. QUETGLAS, Joseph, Artículos de ocasión, Editorial GG, 2006
não possui qualquer valor. Segunda advertência: o refúgio na matéria A disciplina arquitectónica tal como a conhecemos não só está posta em causa como, de certo modo, é agora um mutante interdisciplinar capaz de resolver sob o signo da acção qualquer desafio que se lhe coloque. Se é possível encontrar na obra de alguns arquitectos os limites da antiga disciplina somos forçados a aceitar que o acto em si, de um ponto de vista global não possui já formas ou elementos reconhecíveis. Daí se despoleta a atracção pelo movimento inverso desenvolvendo-se em pequenos núcleos dispersos um renovado gosto pelo material e pelo tangível. Os vocábulos tectónica, matéria ou materialidade tem vindo assim a ganhar crescente importância, quer no discurso dos arquitectos, quer nos múltiplos artigos que povoam as revistas da especialidade. Parece-me que, infelizmente, os discursos assentes nestes “chavões” estão na moda e pelas razões erradas. O pensamento materialista é resultado da ausência de forma que determina o contexto actual da arquitectura. Este novo equívoco deriva também do discurso tectónico, que passa estes dias por mais um ressurgimento. Re-avaliar a essência da arquitectura desde os seus elementos primitivos, em analogia com a natureza, é um percurso sempre tentador face a tamanha incerteza e insuficiência de instrumentos críticos para tornar claro o cada vez mais eminente “vale tudo”. Tectónica define assim um estado perante o problema arquitectónico actual que pode, nalguns casos, ser sinónimo de um discurso de continuidade com as formas do passado e noutros, de uma renovada procura pela identificação de forma com estrutura e de uma clara percepção gravítica das massas que compõem a forma. O perigo está na estrita interpretação material deste discurso, à luz de uma suposta “poesia” assente no significado dos materiais. Ora no nosso contexto tecnológico, no qual os materiais são, por vezes, transformados em matérias quase não-naturais e perante tamanha dispersão da técnica, parece-me ilusório que se persiga cegamente este “nirvana” da autenticidade e do significado, coisas que já nem sequer existem.
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“Arquitectura liofilizada” | Nova materialidade urbana Pedro Neto
O tema Matéria remete inevitavelmente para uma fisicidade, sobretudo quando se trata de arquitectura. Não que a arquitectura viva somente deste carácter físico, material. O texto que se segue visa abordar a arquitectura somente na sua vertente estética/material e não na sua condição de Arquitectura global. Quando se pensa em arquitectura portuguesa, lembramo-nos dos seus aspectos relacionados com a construção tradicional, o respeito pelo lugar e o seu contexto. De imediato as imagens de fachadas em reboco ou as construções em granito assaltam-nos a memória. O tal respeito pelo lugar e pelo contexto fazia-se primeiramente pelo uso da materialidade que o território proporcionava. Da mesma forma que quando se folheia uma enciclopédia de arquitectura percebemos a especificidade das culturas do mundo, em que a maior
ou menor etnicidade está relacionada indelevelmente com o local em que se desenvolveram. As suas construções povoam a paisagem de maneira silenciosa, os materiais usados são os que o sítio oferece. Se nas ilhas do Pacífico a imagem dominante são palmeiras e cabanas perfeitamente integradas na paisagem, no norte de África as construções de lama parecem igualmente contextualizadas. Outro extremo, como os igloos, são exemplo desta integração e apropriação do local. Mas abandonem-se estas molduras naturais pois o mundo real é outro. As cidades cresceram, os materiais ditos naturais ou nobres já escaceiam, as políticas da arquitectura sustentável já são um lugar comum (felizmente!), ainda assim a obsessão por uma hipotética etnicidade arquitectónica mantémse. Esta busca de uma nobreza, de uma monumentalidade auspiciosa perdeu hoje o seu sentido, resumindo-se mera-
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mente a uma operação de cosmética e/ou ostentação. Procura-se uma imagem de um certo bucolismo saudosista usando para tal elementos sacralizados pela memória paternalista - neste caso o uso dos materiais tradicionais. Outra vertente há em que na falta dos mesmos ou pelo seu custo elevado se criam imitações. Imitações que subvertem o carácter do material e a sua utilização. Esta questão da reprodução artificial estende-se a outros campos que não apenas a arquitectura. Pense-se na alimentação e os produtos ditos biológicos... No fundo é uma tentativa duvidosa de atenuar o artificial derivada da vontade de voltar a ter um mundo limpo, natural. Mas é curiosa esta aversão generalizada ao artificial, quando afinal o processo de “naturização” é essencialmente uma sobre-artificialização. Vive-se então num “mundo liofilizado” de “arquitecturas liofilizadas”. * As cidades contemporâneas são feias, dizem!, são as cidades do nosso tempo, que o saudosismo perverte e persegue. Rejeitam-se os produtos que a indústria e a tecnologia proporcionam e de que afinal toda a sociedade depende, pondo de parte à partida o seu potencial estético. É urgente questionar então de que materiais são feitas as nossas cidades. Imagine-se um Robinson Crusoe dos tempos moder-
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nos, citadino, tendo que lidar com as adversidades do meio envolvente, e vendo-se a braços com a necessidade de construir algo que o abrigue, que o proteja. Como seria, que aspecto teria? Com certeza a imagem do bairrode-lata seria um momento estético no seu desenvolvimento, pois a sua materialidade é tudo o que uma cidade pode oferecer. São os bairros-de-lata, que se tentam varrer da paisagem urbana quando a estrutura destes, na sua maior parte, clandestinos, são o expoente da materialidade contemporânea. Com os seus tapumes de pedaços de madeira velha, ou as suas coberturas em policarbonatos, ou a alvenaria descoberta, restos que a indústria deixou, lixo reinventado. Talvez demasiado extremista, porém é nas favelas que se concretiza a materialidade da cidade de hoje (salvaguardam-se as questões relacionadas com o seu planeamento!). Encarem-se estes materiais de frente, poderão ser uma porta aberta a uma nova estética urbana.
Para notas sobre a matéria, ou para outra matéria qualquer
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Quando o espaço se torna corpo Guilherme Sepúlveda
No universo da física, matéria é qualquer coisa que possui massa, que ocupa espaço e que está sujeita à inércia. Possui três estados de agregação distintos: “o estado sólido, que é quando as partículas elementares se encontram fortemente ligadas, e o corpo possui tanto forma como volume definidos; o estado líquido, no qual as partículas elementares estão unidas, mas de uma forma mais fraca do que no estado sólido, e no qual o corpo possui apenas volume definido; e o estado gasoso, no qual as partículas elementares estão ligadas de uma forma muito fraca, e o corpo não possui forma nem volume definidos.” As possíveis relações entre corpo (objecto físico e palpável) e espaço têm vindo ao longo do tempo a ser alvo das mais diversas abordagens e interpretações, havendo sempre uma persistência na procura em estabelecer relações recíprocas entre ambos. Se por um lado o corpo habita o espaço, agindo e trabalhando sobre este, por outro também o espaço é habitado pelo corpo, regulando e modelando a sua actividade e subsistência. Dessa forma constituem (ou deveriam constituir?) um sistema, ou
seja, um conjunto de elementos que se encontram interconectados de uma forma harmoniosa, de modo a formar um todo organizado. “A boa integração dos elementos é chamada sinergia, determinado que as transformações ocorridas numa das partes influenciará todas as outras. A alta sinergia de um sistema faz com que seja possível a este cumprir a sua finalidade com eficiência; já a sua falta pode implicar o mau funcionamento, inclusive a falha completa. (...) Vários sistemas possuem a propriedade da homeostase, que em poucas palavras é a característica de manter o meio interno estável, mesmo com mudanças no meio externo. As reacções homeostáticas podem ser boas ou más, dependendo se a mudança for inesperada ou planeada, respectivamente.” A casa é também parte integrante de um sistema semelhante. O seu termo remete sempre para uma relação com os seus ocupantes. Apesar de os “tempos modernos” terem afastado o homem da sua casa, o lar foi sempre considerado uma referência de identidade para o sujeito. “A constituição da forma, dos usos e da função de uma casa é sempre resultado de um processo sócio-cultural: de um
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lado existe a participação do arquitecto; do outro actuam hábitos sociais consolidados, preconceitos relacionados com o modo de vida, a legislação do lugar e as limitações económicas.” Segundo Bruno Taut, é irrelevante o aspecto da arquitectura sem gente, e o que verdadeiramente importa é o aspecto da gente nela. A arquitectura aparece como pano de fundo da imagem, da acção. “Uma casa não se constrói, vai-se construindo”, e assim como o homem se constrói e transforma todos os dias, ela vai acompanhando todo o seu processo evolutivo. Torna-se um organismo vivo. As palavras de Adolf Loos não poderiam ser mais pertinentes: “o vosso lar será feito convosco e vós com o vosso lar”. “Há uma acção que cada usuário exerce sobre a arquitectura, uma acção lenta e sistemática, fruto da experiência contínua.” Mesmo com as luzes apagadas o homem consegue movimentar-se e orientarse dentro da sua própria casa. Sabe que em determinado local está uma parede ou um degrau e que a x metros ou passos de um determinado ponto encontra uma porta ou uma janela. Reconhece a sua distribuição programática sem ter de a ver ou
ouvir. Sabe onde se situam os interruptores e de que lado estão os puxadores das portas. A sua experiência e a sua memória espacial assumem aqui um papel fundamental, contudo o “à vontade” e a confiança aqui revelados são deveras evidentes, não só pela frequência com que estas acções são praticadas mas também por ser um local de auto-expressão, de memórias, um refúgio do mundo exterior onde são manifestados sentimentos de pertença e onde o indivíduo pode “baixar a sua guarda”. Este tipo de relações é susceptível de ser estabelecido noutros locais, mas porventura não de uma forma tão intensa e segura. “O lar não é tanto definido por onde se vive mas mais como se vive.” Encerramos as portadas ou os estores porque não queremos luz, estamos com frio, queremos dormir, queremos privacidade... Dispomos a casa de acordo com as nossas vontades e necessidades. É manipulada por nós. Assim como fechamos os olhos porque não queremos ver ou abrimos a boca para falar, corremos as janelas porque queremos ar, luz ou simplesmente contemplar o exterior. A casa pode ,quase, ser assim interpretada
como uma continuidade e/ou extensão corporal do sujeito, na medida em que serve e atende os seus pressupostos e que é adaptada a ele com único intuito de o servir. Homem e casa quase que poderiam constituir um todo, um único organismo, um único corpo. São levadas a cabo inúmeras questões ergonómicas e antropométricas (entre outras), no sentido de ser adaptada à sua fisionomia: a altura e largura das portas e janelas, o pé-direito dos compartimentos, as suas respectivas áreas, a disposição das tomadas e interruptores... etc. Citando o cientista e astronauta Dr. William Thorton: “A qualidade do interface que põe em contacto o homem com as suas máquinas determina, com frequência, a capacidade e funcionamento final dessa unidade (...). O princípio de todo interface homem-máquina é que o conhecimento objectivo de máximo alcance possua o tamanho, a forma, a composição e as possibilidades mecânicas do homem”. Porquê a necessidade de compartimentar a casa? O interior das “cabanas primitivas” já era dividido, pois existem indícios de diferenciação de espaços: um canto para trabalhar, um canto para
repouso e um canto para cozinhar. Hoje é compartimentada e separada em diferentes espaços com fins e objectivos diferentes (embora haja a tendência para a flexibilidade ser cada vez mais valorizada e praticada), mas que se relacionam entre si. Têm uma finalidade, uma função e um propósito específico – Tal como o corpo humano com os seus cinco sentidos (audição, visão, olfacto, tacto e gosto) e a sua cabeça, tronco e membros. Cada espaço assim como cada órgão tem a sua função pré-determinada e estruturada. A um conjunto de órgãos com funções relacionadas chama-se sistema. “O habitante será aquele que tomará posse da casa, manipulando-a e utilizando-a, por forma a adequá-la ao seu modo de vida e dotá-la de significado” Neste sentido está-se a falar de uma arquitectura no estado sólido, ou seja, no qual “as partículas elementares se encontram fortemente ligadas”.
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O reflexo da Matéria Carlos Foyedo
Foto : “Água serpenteando sobre a banca”, Carlos Foyedo
Matéria... Massa ou energia? Não falo por melancolia mas não posso começar se não desta forma, melancólico face à meta, para assim contornar a ciência, a quântica, do que é ao que não é. Corria o risco (certo), de ao isolar o conceito de matéria sobre si, converter a bruma na protagonista, o que, tratando-se de uma abordagem arquitectónica, e sendo a matéria lego primordial, não seria comportável análogo ruído. A relação entre matéria e o homem a um nível sensorial, é tema já de si enigmático, sem que para isso seja necessário o voto da (contra)dicção cientifica. De tal forma nuclear na arquitectura e na nossa existência, o tema da matéria parece desfilar absorto e exímio, face à demanda da sua origem universal-atómica-energética-etc. É termo concreto mas não de leve aproximação, se arquitectura é definida por Goethe como “música petrificada”, onde acaba a pedra e principia a música? São dissociáveis após a melodia constituída? O termo é recorrente, abrigando lugares-comuns no discurso: do (des)materializar.
É prima, é ferramenta, é dela que são feitas as gloriosas cidades. Parece, pela magnificência do seu termo aconselhar uma definição que toque o nuclear, de tão seco que nos soa. Matéria, és aí, mutante do real. O que entendo de ti é o que a condição me consente, matéria dos sentidos que transformo. Podes reflectir angústia, fascínio... E no teu estado autista, fazes-te de morta. Estás longe de estar morta, já te vi uma vez. Foi quando senti que me tinha apercebido da tua presença, que te revelaste. Mas vi-te ligeiramente antes. Revelaste-te sobre a forma de um reflexo luminoso eléctrico, um branco-azul, e assim faiscaste por instantes, trémula e intensa, sobre o rio. Haverá motor de maior perplexidade do que o reflexo de um rio, quando a imagem dada por este é mais sedutora do que a verdadeira, concentrando em si o rio que é e o sinal da forma que reflecte? Pobre da realidade. Pobre. Bem sei matéria que ninguém te detém efectivamente, fazes parte. Sei que te capturo, e és uma dita realidade, exterior, que também eu crio, e eu sou reflexão (difusa). Espelho? Pobre espelho, grau zero da sensibilidade, medíocre, ordinário e banal.
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A matéria torna-se carregamento de símbolo para o homem, que a transforma e lhe dá sentido, e ela reflecte-se nos sentidos de cada um, instalando-se e não havendo nunca sobre ela uma verdade abstracta e absoluta. Dos ditos sobre o belo é dito que “quando se é escravo/ até as flores podem pesar”. O teu tempo fascina e lembra-me a casa... Já tudo mudou na casa, o tempo das pessoas foi algum, o teu tempo, matéria, foi insignificante: tempos tão diferentes esses, estás lá, e mesmo não sabendo o que és, sinto-te resistente. Recordo que reflectias cheiro abafado e seco das pedras quentes de granito quando o sol te brindava, reflectias cores, no duro peitoril arcavas com queima do leite (creme). Retumbam foguetes num longínquo domingo, as pessoas pisam-te e tu reflectes sons de madeira e de cimento. Uma casa na quietude genuína de uma aldeia, e todo um rito que mudou e hoje, a casa embora transformada encontra-se intacta face às vidas. Continuas a reflectir o cheiro das pedras implacáveis, és irónica. A matéria que outrora foi palco da vida é cenário. Cenário do imaginário, é este o seu poder. Posso especular sobre ela, agora, tendo. E de que matéria é feita a casa? De granito? De granito
explodido da montanha, dividido em fracções, montado em alvenaria, rematando com outras o espaço dos vãos e facilitando uma soleira para a entrada. Não quero ser melancólico. É tudo, sem ela não somos nada, não significamos, é o tactear com os 5 sentidos, e significar. Não quero ser materialista mas não consigo ser de outra forma. O meu imaginário é cheio de toda a matéria que já experimentei, e é apenas aí que a desmaterializo e consigo alcançar um corpo na sua totalidade. Organizo, completo e sintetizo o leque do que é a memória dessa matéria, e é no imaginário que o mais rígido dos materiais circula não palpavel e simultaneamente com textura; cor; ruído; aroma e sabor. E consigo sentir a fricção da pedra lá fora com o olhar, enquanto oriento o percurso do quarto à sala com o tacto.
Referências Bibliográficas: CALVINO, Italo.1972. Le città invisibili [As cidades invisíveis. Lisboa: Teorema, 1993] ; ARNHEIM, Rudolf, The Dinamics of Architectural Form, 1ª edição: Lisboa 1988, Editorial Presença ; FERNANDES, Gomes, Crónicas do Porto, 1ª edição: Novembro de 1991, Asa editores ; ANTOLOGIA 1981-2004, Jornal arquitectos, Janeiro a Junho de 2005
“Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio reflectido no espelho. (...) As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar.” As cidades Invisíveis, Italo Calvino Fotografia: “Ponte reflectida” por Manuel Magalhães
CARLOS FOYEDO | P046/047
Manuel Botelho
O Corpo do MUNDO
Pediram-me, o Pedro Neto, para escrever umas palavras sobre o corpo do mundo..... Na cultura ocidental, mesmo num mundo secularizado, quando falamos de corpo, de matéria, do sensível, uma espécie de pano de fundo envolve o pensamento que pressupõe níveis de relacionamento estratificados. Parece existir um patamar inferior ligado ao corpo e outro superior ligado ao espírito. É assim connosco.....quando distinguimos o saber mais inteligível do saber mais sensível. Não sei se são ainda ecos dum maniqueísmo que teima em distinguir o bem e o mal, associando o primeiro ao espírito e o segundo ao corpóreo, à matéria., como se em nós se verificasse uma coexistência de princípios opostos e como se nós fôssemos uma soma ou uma mistura destes dois princípios. As palavras que transcrevo do célebre Hugo de S. Vítor, figura marcante na grande revolução do século 12, parecem-me traduzir esse modo de pensar, muito embora nos nossos dias não se pense exactamente assim: “....é sensível o homem que ainda sente afecto e carinho pela sua terra natal, é forte aquele que sabe fazer de todos os lugares a sua pátria, mas é verdadeiramente perfeito na virtude, aquele que considera o mundo como um lugar de exílio. O primeiro fixou o seu amor por uma parte da terra, o segundo distribuiu o amor por muitos lugares, mas o terceiro conseguiu anular por si o amor pelo mundo.”
Paira nestas palavras a alegoria da terra prometida, da Jerusalém celeste, da cidade de Deus em oposição à cidade dos homens. Eu ao contrário penso no grande valor que é o de sentir e amar a terra, os sítios, as cidades, o corpo do mundo........
PEDRO NETO | LUÍS URBANO | P042/043
Gostaria até de possuir a capacidade dos poetas para emprestar ao ar e ao vento, às pedras, ao mar e ao céu, palavras que explicassem melhor esta corporeidade que fala e grita e chora....
Gostaria até de possuir a capacidade dos poetas para emprestar ao ar e ao vento, às pedras, ao mar e ao céu, palavras que explicassem melhor esta corporeidade que fala e grita e chora....mas sinto e sei que a espacialidade do sítio, ou a sua corporeidade, que nos possui, é a condição absoluta da nossa consciência. A identidade do homem constrói-se na inter-acção com o lugar. A experimentação em arquitectura, de que tanto se fala, é afinal experimentar vivencialmente possibilidades de pertencer a um sítio, ou possibilidades de vivência. Este respeito pelo corpo do mundo traduz-se e implica o respeito pelo tempo e pela espacialidade do lugar. Se não se respeita o tempo, acontece como na cidade ideal do Renascimento, cidade utópica onde a beleza e a perfeição da forma esgotavam a qualificação espacial e o conteúdo da cidade, negando o seu devir, a sua dinâmica, a sua vida. Hoje somos tentados a negar a espacialidade. Neste mundo das comunicações, das redes informáticas, da telemática, parece até que a informatização da actividade humana e das comunicações, dispensa a espacialidade dos lugares na relação entre as pessoas. Num mundo globalizado torna-se mais difícil e aparentemente sem sentido, esta experiência de amor pelo lugar.... e fazemos do corpo do mundo terra de exilados. O mundo é desumano, e transformamo-nos em construtores de refúgios. Mas a interioridade da arquitectura constrói-se na interacção com o mundo. E se não for assim haverá necessariamente consequências para o nosso equilíbrio. Não podemos ser cidadãos sem pátria! Ser moderno é estar perto do “aqui e agora” e, para nós arquitectos, projectar é sentir
MANUEL BOTELHO | P048/049
a corporeidade do mundo, é reaprender a capacidade de hospitalidade dos lugares. Não é portanto a forma, não é a tecnologia, não é a linguagem das arquitecturas tantas vezes em solilóquio, nem é até a poética individual do arquitecto que faz descobrir o corpo do mundo, mas a disponibilidade para o ouvir. O valor da arquitectura está na conciliação com a vida mesmo quando ela se manifesta na descoberta da multiplicidade de espaços impensáveis. Não existem receitas a priori no projecto de arquitectura, porque ela será sempre uma resposta à inquietante pergunta do ser. E esta resposta é uma invenção de diálogos: diálogo com o tempo, diálogo com a história, diálogo com o sítio, diálogo com o mundo, diálogo com o homem. A arquitectura é então uma extensão do corpo do mundo com o qual se mistura e faz um todo. Acredito que muito mais do que nas análises de classificação tipológica muitas vezes superficiais ou nas análises geométricas da arquitectura, que o importante é saber descobrir as disponibilidades de diálogo que existem ou existiram nas cidades e nas arquitecturas entre o construído e a sociedade. E ouvir o corpo mundo (pobre mundo não ouvido!) não é retórica, é saber sentir que ele não é uma grande máquina abstracta sem memória de si próprio e saber sentir a corporeidade dos materiais como a pedra, a água, o ferro ou madeira, como se tivessem vida ou alma e dialogar com as sua cores e texturas como quem usa as palavras para cantar o mundo.
Nos próximos dias 13, 14 e 15 de Junho entre as 14h30 e as 20h tomará ocorrência o CIRconferências (Como Inovar Realidades) nas instalações da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, no pavilhão Carlos Ramos e a entrada será gratuita. Esta iniciativa parte AEFAUP que pretende trazer aos alunos da FAUP e a outros interessados um ponto de vista sobre as concepções arquitectónicas que têm vindo a emergir no país. Assim, os arquitectos convidados são: [13 de Junho] Jorge Figueira, Alexandre Burmester e Luís Pedro Silva [14 Junho] Nuno Grande, Michele Cannatá e Fátima Fernandes e Promontório [dia 15] Nuno Brandão, Luís Urbano e Manuel Graça Dias. trazem à FAUP alguns dos seus mais recentes projectos de relevante impacto e mérito na comunidade arquitectónica. Estas conferências visam atingir maioritariamente os alunos da área, no intuito de poderem ajudar à sua formação e concepção de ideais e mostrar do que se está a fazer de melhor da arquitectura nacional.
Dédalo‘07/’08 Avisam-se a todos os interessados que as candidaturas para a direcção da dédalo 07/08 estão próximas. Grupos de 5 elementos no mínimo, mais informações brevemente no site www.revistadedalo.blogspot.com.
MANUEL BOTELHO | AVISO À NAVEGAÇÃO P050/051