centrifugação +Set 09
Ficha Técnica+
Dédalo
Edição+ AEFAUP
Editores+ Carlos Foyedo Fábio Cunha Guilherme Sepúlveda Luís Grilo Mariana Simões Miguel Tavares Ricardo Leal
Design gráfico+ Participações+
Raquel Vieira
Álvaro Domingues
designbyraquel@gmail.com
Ana Renata Polónia Francisca Durão
Impressão+
Gonçalo Furtado
Gráficos Reunidos Lda
João Gaspar
graficosreunidos@gmail.com
Luísa Magnani
Porto, Setembro 09
Manuel Graça Dias Marcos Cruz
Tiragem+
Pedro Gadanho
300 exemplares
Pedro Leão Neto Pedro Neto
Depósito Legal+
Ricardo Pinto
289476/09
Ricardo Morais Sousa Sérgio Cardoso
Web+
Tatiana Trindade
revistadedalo.blogspot.com
Tiago Casanova
revista.dedalo@gmail.com
EDITORIAL
A escolha do tema central deste número recaiu num conceito que pretende ser um contraponto ao do número anterior, complementando, assim, o binómio Centripetação/Centrifugação. Esta escolha mostrouse inescapável, ilustrando um processo discursivo natural, fruto de inquietações antigas e actuais. De facto, já na década de 1930, Charles C. Colby identificava dois conjuntos de forças - centrifugas e centrípetas - em contradição e constante interacção, que modelam o espaço urbano e que tentam explicar os factores de atracção ou de repulsão de actividades de e para uma área central. No entanto, estes fenómenos não fariam sentido sem se especificar um referencial, uma centralidade. Foi assim que, muito pragmaticamente, assumimos como ponto de partida o “centro tradicional” do Porto.
Texto+
Ricardo Leal
A edição anterior tentou lidar com o reconhecimento nacional, em particular no Porto, da “inversão dos movimentos centrífugos, para fora do centro da cidade” e da “recentralização de áreas da cidade anteriormente consideradas marginais”. Este é um tema recorrente nos debates sobre a pós-modernidade e a cidade. As causas da difusão urbana não são parâmetros imediatos, existindo uma desactualização dos conceitos e das características associados a este fenómeno. Logo, a preferência pelo título Centrifugação, em vez de Periferia ou Sub-urbanidade, não é inocente. Muitas áreas deixam para trás a sua condição de antigas periferias para se assumirem como parte integrante de uma centralidade urbana, passando a representar a antítese de tudo o que é considerado nefasto na chamada periferia. É desta maneira que a discussão deixa de se centrar na maior ou menor adequação da forma da cidade tradicional, e passa a circunscrever o porquê da aceleração da difusão urbana, face a todos os esforços para a travar.
Dédalo 06 • Centrifugação
Neste momento o Grande Porto experimenta dois fenómenos distintos e, à primeira vista, antagónicos. Ao mesmo tempo que o “regresso à baixa” se começa a mostrar viável com investimentos autárquicos e privados de várias escalas e enquadramentos sociais, também as áreas denominadas periféricas usufruem de um continuado investimento, este maioritariamente privado. Se umas muralhas caíram, outras nunca se transpuseram, sendo os exemplos mais flagrantes os da inexistência de uma segunda ligação pedonal à cota baixa entre as margens do Rio Douro, e o perfil ambíguo da estrada da Circunvalação, uma “terra-de-ninguém”. Por outro lado certos elementos lineares servem mais propósitos que a separação ou a conexão. Alguns, como determinadas vias, em particular a Avenida da Boavista e a E.N. 14, são analisadas no artigo de Miguel Tavares e na entrevista a Manuel Graça Dias e a Álvaro Domingues, respectivamente. Sente-se que a cidade viveu direccionada para um centro que se viu desocupado e de costas voltadas para uma realidade que se apresenta como uma conurbação que tem vindo a ser continuamente acentuada. O Porto mostra-se assim um laboratório vivo onde podem ser estudados fenómenos extremamente actuais e globais já existentes e observados um pouco por todas as cidades ocidentais. É nesta óptica que, do artigo de Luís Grilo sobre a Zona Industrial do Porto, o alinhamento editorial segue em direcção a uma maior generalização do tema face ao urbano. Esta abstracção temática atinge maior proeminência numa terceira fase, na qual são focados tópicos como a dança e o corpo com os artigos de Renata Pinto e Marcos Cruz.
Belas-Artes que deu origem à Faculdade de Arquitectura. Por fim, a corrente edição chega ao seu termo com um ensaio mais universal sobre a “cultura do urbano e a aceleração” a cargo de Gonçalo Furtado, cobrindo tópicos como a velocidade e a mobilidade. Incluída, está também a divulgação de várias iniciativas que têm vindo a acontecer, nomeadamente competições como o Concurso Pladur®, ou o Concurso de Fotografia FAUP sob a curadoria de Pedro Leão Neto, ou mesmo o Concurso Porto Collage, organizado pela presente direcção da revista dédalo. Além da participação de autores convidados, a corrente edição contou com um grande número de colaborações voluntárias, facto que explica o aumento significativo do volume da revista. Assim, como consequência deste e de vários outros factores logísticos, a actual direcção optou pela publicação de um total de dois números em vez dos previstos três. É deste cenário que nasce a vontade, que a dédalo assume, de dotar esta discussão do maior número possível de polivalências, falando-se de centrifugação urbana, temática e ideológica. Lembrando Carlos Fortuna: “Nunca o discurso sobre a cidade foi tão multifacetado e plural como neste final de século. Nunca estivemos tão próximos de reconhecer que só no cruzamento de diferentes campos discursivos e tradições intelectuais pode a cidade reencontrar-se na plenitude da sua multivocalidade e polivalência.” (Carlos Fortuna, 1997)
A centrifugação é, de seguida, explorada por Luísa Magnani no caso concreto da cisão na Escola de
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10 + Boavista 66
ÍNDICE
Miguel Tavares
16 + Mais Privado que Público Ricardo Pinto
19 + Conversa ao Volante Álvaro Domingues e Manuel Graça Dias
34 + Prémio Faup, Fotografia de Arquitectura Pedro Leão Neto
42 + Zona (Ainda) Industrial Luís Grilo
48 + Ponto de Origem? Pedro Neto
52 + “Trópico da Desavença” Francisca Durão
58 + Da Organização ao Caos Tiago Casanova
Dédalo 06 • Centrifugação
60 + Três Danças para Um Arquitecto Ana Renata Polónia
63 + O Corpo da Arquitectura
+ A Análise da FAUP e a Sintaxe Espacial Tatiana Trindade com Gonçalo Furtado e Miguel Serra
Marcos Cruz
70
+ Concurso Porto Collage
113
+ A Cultura do Urbano e a Acelaração: da Velocidade Mecânica à Mobilidade Virtual
118
Gonçalo Furtado
82
+ A Arquitectura Saiu da Arquitectura. A Escola Saiu da Escola João Gaspar
85
+ Escola do Porto Luísa Magnani
93
+ Concurso Pladur
127
+ DPA
140
Sérgio Cardoso
+ A Arquitectura Portuguesa Recente: Três Parábolas Mediáticas Pedro Gadanho
104
+ Concurso de Ideias para Barraca AEFAUP, Queima 09
110
+ 2500 d.C., Um Retrato Arquitectural Ricardo Morais de Sousa
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BOAVISTA 66 Texto+
Miguel Tavares
“a
Avenida da Boavista é a “Route 66” dos tripeiros.” 1 Descontextualizada. Poderia ser a primeira reacção que teríamos ao ler esta afirmação mas, analisando-a e com um pouco mais de atenção, apercebemo-nos que, ao fazer um zoom – a cada caso – à devida escala, o que à primeira vista era tão distinto, poderá em alguns pontos chegar a tocar-se. Route 66, 1926. Conhecida como the main street of America, começou, a partir dos anos vinte, a fazer parte do quotidiano dos norte americanos, surgindo directamente associada ao crescimento e desenvolvimento dos EUA para ocidente. The Mother Road2, atravessava o país de Leste a Oeste, unindo, ao longo das suas 2.448 milhas (3940km), respectivamente, as cidades de Chicago e Los Angeles. Amplamente difundida, abriu as portas para a industrialização e disseminação da agitação citadina em várias das cidades norte americanas por onde passava. A sua história ficou sempre fortemente ligada às migrações da população norte americana para oeste. Tanto nos anos 30 com a grande depressão, e por onde pessoas fugiam à seca e às tempestades de areia - Dust Bowl - a caminho das terras prometidas da Califórnia, como posteriormente, nos anos 40 com o fluxo de migração durante a 2ª Guerra Mundial, a indústria bélica situava-se a ocidente, servindo também como principal via de transporte de equipamento de guerra para a costa Atlântica, ou já nos anos 50 tornando-se na principal via de comunicação nos EUA. O Porto teve sempre uma tendência natural para pender para ocidente. Dois factores contribuíram decisivamente para que, ao longo dos anos,
Boavista 66 • Miguel Tavares • Dédalo 06 • Centrifugação
“E cresce, cresce sempre, porque para a cidade parar é morrer. E porque cresce em ritmo quase louco, não é possível impor um sistema de relações coerente entre os seus espaços organizados e ela constitui assim mais uma soma espaços do que um todo estruturado, em que se misturam e confundem funções em que a desordem é soberana. E por efeito desta incontrolada rapidez de crescimento, enormes extensões da cidade sofrem um processo de delapidação e o que hoje era espaço vivo pode ser amanhã espaço morto, o que ainda hoje era ordem pode amanhã ser desordem.” Fernando Távora, Da organização do espaço, pp.35
esta evolução fosse mais predominante num sentido em detrimento do outro: a topografia, mais suave que a Oriente, e a presença do mar (ganha maior importância a partir do século XIX com a construção do porto de Leixões), motivaram esta forte inclinação e o desejo de unir a cidade com o Atlântico. É da intenção de expandir a cidade para poente, que surge este prolongado trilho de modernidade3, representando e marcando, com um só gesto, uma nova direcção de ordenamento no crescimento da cidade, uma “espécie de directriz da urbanização portuense, autêntica espinha dorsal da organização do espaço ocidental da cidade”4 em direcção ao mar. Assim nasce este extenso eixo de urbanização, a Avenida da Boavista, por onde uma “linha de tiro definiu a direcção original da primeira Rua da Boavista, muitos anos depois prolongada até ao mar como traçado da primeira avenida maior das que, a partir de então, começaram a refazer a grande cidade”.5 A intenção de estender a cidade para ocidente foi o resultado de profundas transformações no tecido urbano que se viria a assistir com a industrialização, a partir da segunda metade do século XIX. Nesta época, o movimento de urbanização na cidade do Porto é intenso, rasgam-se novas e importantes artérias para o seu desenvolvimento e expansão, o ritmo de crescimento demográfico é recuperado, um novo dinamismo nas actividades económicas, principalmente na indústria com a sua fixação na periferia, é impulsionado, e o progresso nas infra-estruturas de circulação é notável. A construção do porto comercial de Leixões, finais do século XIX, marca, o início da independência económica da cidade face ao rio Douro, levando consigo toda a actividade comercial para poente, e o triunfo da Avenida6, que na sua concepção “leva ao extremo o conceito barroco de tender para o infinito e de se abrir para a Natureza, uma vez que termina no Atlântico”7. Esta ideia de ligação/extensão da cidade ao mar traz consigo uma tendência que começa a ser recorrente por esta altura. As praias e as casas de férias na Foz,
ao bom estilo britânico, passam a ser o destino de várias famílias burguesas que aí se deslocavam em busca da tranquilidade que o Porto, em constante transformação, não lhes podia proporcionar. O que antigamente se mantivera como uma humilde povoação piscatória, dava agora lugar a novos e elegantes bairros de carácter cosmopolita, de uma elite que importava os gostos da vanguarda europeia, incorporando muitos dos ensinamentos e práticas que lhe chegavam do exterior, e que procurava “a poente da cidade novos lugares de desafogo e verdura para as suas residências”.8 A Boavista, tal como uma verdadeira avenida 66, passava a ser o principal eixo de comunicação daqueles que, fugindo ao Dust Bowl da cidade, procuravam o descanso que a costa Atlântica lhes poderia oferecer. Esta espécie de migração para ocidente estimulou o desenvolvimento dos transportes públicos na cidade e na avenida. O americano (carro puxado a cavalos) nos anos setenta e, posteriormente, o eléctrico nos anos noventa encurtavam o tempo de viagem e aproximavam a cidade dos subúrbios, tendo um papel preponderante no processo de urbanização da periferia. O Porto, começava a expandir-se a passos largos e rápidos. A avenida definia-se assim, como um extenso rasgo, ao gosto europeu dos portuenses, talvez demasiado ambicioso para uma sociedade tripeira preocupada com excessivas transformações que se sucediam por esta altura na cidade com a industrialização. A chegada do caminho-de-ferro, a abertura de novas vias e praças, a construção de infra-estruturas portuárias, a implantação de grandes indústrias na periferia, viriam a retirar a devida importância que tão majestosa obra necessitaria. A sua história é, deste modo, fruto do pensamento e de uma vontade colectiva em alargar os horizontes citadinos, sendo construída por sucessivas e descontínuas fases até aos dias de hoje. Provavelmente será este carácter intermitente o principal problema para
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Autor+ Miguel Tavares Boavista 66 • Miguel Tavares • Dédalo 06 • Centrifugação
a sua descaracterização, fruto da adição de diversas decisões individuais e em diferentes épocas, contrastando com a solidez da cidade histórica, a oriente. Assim talvez se possa definir como um somatório de intervenções independentes que acumula demasiadas decisões isoladas, ao gosto da época, caracterizandose, ao longo do seu percurso de cinco quilómetros, por uma promiscuidade de escalas, variedades funcionais e enormes diferenciações formais e arquitectónicas, a maior parte das vezes, completamente aleatória e desordenada, de usos e funções. Os valores dignos e modernos para o qual havia sido pensada, perderam-se. Desapareceu a ideia inicial de uma via infinita verde e ventilada, afastada dos centros urbanos, que seria marcada por um espaço central de circulação, quer de transporte ferroviário, quer de transporte viário, possibilitando a rápida deslocação da população ao longo da cidade em linha. Hoje, a avenida já não é digna do seu nome. As árvores quase desapareceram por completo, o verde que até então nos conduzia desde a Rotunda (Praça de Mouzinho de Albuquerque) até à Foz deu lugar ao cinza escuro do alcatrão, o separador central, quando ainda existe, é ocupado para mais um estacionamento selvagem, o movimento “ziguezagueante” dos autocarros, que tanto circulam na faixa central como na via normal, é intenso e confuso, e os passeios, estreitos e em mau estado, não convidam à circulação do peão. Julho, é o seu mês. A cada dois anos e durante dois fins de semana é parcialmente invadida pelo ruído ensurdecedor do Circuito. Durante noventa e seis horas, passa na televisão, aparece nos jornais, ouve-se no rádio e, por momentos, numerosas famílias partilham o seu espaço, assistindo às corridas. Finalmente, fala-se nela mas, 15 dias volvidos, regressa ao eterno esquecimento. Pura maquilhagem que por breves momentos disfarça o que até então havia sido dizimado e deixado ao abandono pelo dito Dust Bowl. Após a tempestade, a Avenida torna a ficar despida e desprovida de qualquer significado. O espaço onde,
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anteriormente, decorria o Grande Prémio é agora um “deserto” que parece esperar pela aterragem de um qualquer avião. Pena que não alcance acompanhar tão belo enquadramento que, o casario a sul e o parque da cidade a norte, nos dão até alcançar o mar. A Boavista já há muito que deixou de ser a rainha das avenidas. O resultado a que agora assistimos é a soma de muitas “avenidas” que, de certa forma, unem a Rotunda ao Castelo do Queijo. Será por isso que a “avenida” por onde mais me agrada caminhar é, ainda antes da Rotunda, no prolongamento da rua da Boavista, quando penetra pela cidade histórica? Talvez seja esta a parte que mais se aproxima aos valores para o qual foi desenhada. Nos últimos tempos, temos vindo a assistir a um crescendo de obras de autor em plena Avenida, garantindo-lhe uma nova dinâmica volumétrica e de certa forma, um novo carácter “iconicista”. Em 2001 a aterragem de um suposto disco voador9 foi tudo menos pacífica mas parece que, após alguns anos e passada a tormenta, já faz, pacificamente, parte do quotidiano da cidade e da avenida. A partir de então, cada vez mais projectos, muitas das vezes de arquitectos de renome, começaram a surgir mas, como sempre, a Avenida da Boavista parece continuar esquecida pela
Boavista 66 • Miguel Tavares • Dédalo 06 • Centrifugação
cidade e pelos que decidem o seu futuro. Em época de eleições há que, rapidamente, “tapar buracos” para que esta espécie de “queijo suíço”, que se encontra espalhado por várias artérias do Porto, pare de crescer e os responsáveis pelo destino da cidade não sejam acusados de a ter deixado pior de quando a tomaram pela primeira vez. Parece que, a cada remendo no queijo há a garantia de mais um voto. O tempo não pára, tapemos os buracos rapidamente! Puro desperdício de dinheiro público que não acrescenta qualquer qualidade ao espaço urbano e à nossa qualidade de vida e que apenas mascara, temporariamente, os erros do passado. Imaginemos a quantidade de votos que tão extensa via permitiria conquistar. Mais uma vez, assistimos a uma grande falta de senso por parte de todos os intervenientes neste caso, que se juntam para a já conhecida partida de ping pong, onde a responsabilidade é atirada de um lado para o outro da mesa, sendo o propósito não de ganhar mas sim de não perder. Os anos passam e a Avenida espera pela tão prometida intervenção que a devolva ao rumo e aos princípios para o qual foi pensada. Para tal, é necessário haver esforço, mas acima de tudo vontade, por parte de todos os intervenientes, para que esta operação seja integral e não caia no erro de muitas outras que, à boa maneira portuguesa, pecam por ser pontuais. Talvez fosse altura de alguns porem “os dois pés”10 na Boavista, de forma a criar uma Avenida “para todos”11. Decisões são - ou não - tomadas de acordo com interesses económicos, enquanto isso, o automóvel vai-se apoderando cada vez mais da avenida, assumindo-se, tal como na Route 66, como o principal e quase único protagonista. Finalmente, chegamos à Foz mas a viagem ainda vai a meio. Aqui, o nevoeiro é intenso, a visibilidade é pouca e o mar está bravo. Mais uma vez, esperamos que a tempestade passe para assim voltar ao nosso caminho.
Notas + Durante a elaboração deste artigo senti a necessidade de percorrer,
5
Tavares, Domingos (2001), Avenida da Boavista in Porto 1901-2001, Guia
tranquilamente, toda a extensão da Avenida da Boavista em bicicleta,
da Arquitectura Moderna, Porto, Livraria Civilização Editora e Ordem
tendo demorado desde a Rotunda até ao Castelo do Queijo, 28m47s e, no
dos Arquitectos(SRN), 2001.
sentido inverso, 31m56s. Porque não usar o exemplo de Viena ou como em outras tantas capitais europeias, onde Bicicleta/Peão/Automóvel/ Eléctrico convivem pacificamente? 1
(Machado, João Afonso [1999], O Engenheiro Gustavo Adolfo Gonçalves
e Sousa. In O Tripeiro (7ªsérie – Ano XVIII – nº1), Porto, Associação Comercial do Porto, Janeiro, pp.23) 2
como John Steinbeck a intitulou no seu romance The Grapes of Wrath
– “As Vinhas da Ira”, 1939 3
(Machado, João Afonso [1999], O Engenheiro Gustavo Adolfo Gonçalves
e Sousa. In O Tripeiro (7ªsérie – Ano XVIII – nº1), Porto, Associação Comercial do Porto, Janeiro, pp.23) 4
Oliveira, J. M. Pereira de, O espaço urbano do Porto : condições naturais e
desenvolvimento, Porto : Afrontamento, 2007. pp. 331
6
Idem
7
http://www.porto.taf.net/dp/node/1604
8
Tavares, Domingos (2001), Avenida da Boavista in Porto 1901-2001, Guia
da Arquitectura Moderna, Porto, Livraria Civilização Editora e Ordem dos Arquitectos(SRN), 2001. 9
Tavares, Domingos (2001), Avenida da Boavista in Porto 1901-2001, Guia
da Arquitectura Moderna, Porto, Livraria Civilização Editora e Ordem dos Arquitectos(SRN), 2001. 10
“Com os dois pés no porto” - Slogan campanha eleitoral 2009 de Rui
Rio 11
“Porto para todos” - Slogan campanha eleitoral de 2009 de Elisa
Ferreira
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MAIS PRIVADO QUE PÚBLICO Texto+
Ricardo Pinto A cidade na sua urbanização levou a uma grande mudança nas suas características, transformando desde logo a sua identidade. De centrípeta, como algo uno, limitado e contínuo passou a centrifuga, difusa, fragmentada. De elemento estruturado, possível de ser lido, compreendido como um elemento contínuo e estruturado passou ao que existe actualmente, um campo magnético que absorve os novos tipos de circulação, contendo elementos desconectados, criando centros dispersos, como pequenas manchas numa grande mancha1. É assim a cidade hoje, difusa.
não sabendo muito bem o que são. Passamos por elas todos os dias, a grande velocidade e essas coisas fazem a cidade, esses espaços identificáveis, espaços de estar, monumentos, centros culturais, que são quase sempre aquilo por onde passamos rapidamente, deixando a experiência desses espaços para alguém que tenha de passar por lá a pé. Mas então esses espaços não são nada mais do que elementos num percurso? Não foram, mas são-no agora. Poderão deixar de ser, mas seria preciso revitalizar. Por que não revitalizar?
Esta nossa vida de cosmopolita2, idealista no seu passado e realista no tempo actual, carrega problemas que fazem parte ao mesmo tempo de uma solução, como os fluxos e correntes, efeitos múltiplos e dispersos, ingovernabilidade, redes sociais, que são tanto a origem dos problemas como possível solução. Como espaço privilegiado, a cidade deixou de ser unicamente um espaço de comunicação organizado3, para ser um espaço entre coisas. Que palavra tão naif e ao mesmo tempo tão definidora do que pretendo dizer]. Coisas por que vamos passando rapidamente,
Mais Privado Que Público • Ricardo Pinto • Dédalo 06 • Centrifugação
Pensar, planear, projectar, actualmente significa inventar trajectos de mobilidade descaracterizados, ligando as pessoas ao seu emprego, aos centros comerciais, serviços, lazer, etc. E é neste ponto que mais me interessa desenvolver esta comunicação. Pretendo reflectir sobre as cidades efémeras que se instalam na periferia do Grande Porto e que utilizam um conjunto de tipologias urbanas e arquitectónicas que podemos classificar de “lights”, pelo facto de lhe atribuir um carácter e uma natureza efémera e massificada. É-nos “oferecido” actualmente um conjunto de construções standard, industrializadas, repetitivas que de forma muito acelerada contribuem para a uniformidade da paisagem e do território. Este fenómeno teve o seu inicio nas zonas mais periféricas das cidades consolidadas, alterando modos de vida, transformando as paisagens urbanas, subvertendo as escalas e as características originais destes tecidos, como a sua função. Esta construção de tipologias arquitectónicas e urbanísticas desenquadradas dos sítios e dos contextos sócio-espaciais tem como base projectos arquitectónicos plenos de considerações vazias e propostas formalistas, com total ausência de planeamento e reflexões acerca de como se produz e quais as razões da intervenção arquitectónica. Como resultado temos um tipo de arquitectura e de urbanismo do “desenrasca”, daquilo que está tudo mais ou menos, que rejeita a integração no solo, no sítio e no seu lugar. As relações entre o lugar e projecto não são princípios existentes na génese destas tipologias light, onde o pensamento de um consumo rápido e deslocalizado impõe uma organização hiper funcionalista, demasiado redutora na sua forma e expressão. Todo o encantamento, a imaginação, o jogo, a emoção4 e a participação do utilizador neste tipo de espaços é esquecido. A determinada altura, aparecem “novos lugares”, inventados de forma violenta no
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território, com o único objectivo de se exibirem de forma obscena e de olho só no seu próprio umbigo, num prazer e valorização do individualismo5, numa visão hedonista para com aqueles que circulam nas estradas complementares do Grande Porto, como é o exemplo das estradas-nacionais. Assistimos assim à negação do próprio lugar, com este desenvolvimento de objectos e lugares ostensivos, promovendo a construção de uma identidade negativa e sem qualidades. Através deste processo deslocaliza-se então constantemente centros, consoante a publicidade e o marketing, desenvolvendo novos pontos de consumo. Novos centros comerciais vão crescendo, outros morrendo, juntando-se ao já morto comércio tradicional de rua. Estamos perante um processo de profundo desgaste do espaço público portuense. Não se consegue perceber muito bem quem chegou primeiro (não interessando também muito isso), devido à manipulação de forma categórica da história e da nossa memória em relação a ela, em detrimento de uma nova lógica de planeamento (?) e de desenho (?) espacial das nossas interacções sociais e culturais. Estamos no mundo da fantasia e da ficção arquitectónica e urbanística, em detrimento da representação de uma realidade ligada à experiência humana. As cidades deixaram de ser apenas pontos ou círculos desenhados num mapa e revelam-se agora como manchas descontínuas e fragmentadas. Há um novo sentido de produção, distribuição, circulação, entre outros que alterou o sentido de habitar. Tal como a sociedade contemporânea, a urbanização é estruturalmente centrífuga, como o tem demonstrado até hoje. A arquitectura é actualmente uma arte de representação, um autêntico teatro do mundo, onde se ensaiam cenografias do nosso quotidiano, materializadas em imagens que nos retratam a cidade histórica. A cidade, não é mais uma forma estável, exclusiva e homogénea e os fragmentos da memória do passado
são manipulados para uma forma simbólica, de ícone. O espaço urbano do grande porto é assim um contentor de “mentiras”, que nos remete para uma sociedade de consumo, de espectáculo, de imagens efémeras, dominada pela velocidade. Neste entendimento, sinto que a ignorância é o caminho mais fácil, mas não o seguindo fico-me questionando até que ponto isto continuará. Quem mais força tem? Os políticos, que transparecendo esta ignorância, continuam nesta mentira citadina enganando quem pode ser enganado. Deverá chegar o momento de uma linha de encontro entre interesses privados e públicos6, numa perspectiva de percurso lado-a-lado, num ambiente equilibrado. Mas neste momento a balança está bastante inclinada para os interesses privados.
Notas + 1
Domingues, Álvaro, Imagens Faladas, Dédalo 4.1, 2008
2
Innerarity, Daniel, El Horizonte Cosmopolita, El País, 08.09.2005
3
Távora, Fernando, Da Organização Do Espaço, Faup Publicações,
5ªedição, 2004 4
Bismarck, Pedro, Architecture is (e)motion, Dédalo nº2, 2007
5
Faludi, Andreas, A Decision - Centred View Of Environmental Plan-
ning, Pergamon Press, 1987 6
Benevolo, Leonardo, Melograni, Carlo, Giura Longo, Tommaso, Pro-
jectar A Cidade Moderna, Editorial Presença, 2ªedição • Imagens – Fotografias de um percurso periférico, Valongo a Paredes. Fotografias tiradas pelo próprio, no âmbito do trabalho de investigação realizado no CEAU.
Mais Privado Que Público • Ricardo Pinto • Dédalo 06 • Centrifugação
CONVERSA AO VOLANTE
COM: Moderadores+
Fábio Cunha e Mariana Simões
Álvaro Domingues E Manuel Graça Dias
d
édalo – Centrifugação será o tema do próximo número da revista dédalo, que servirá como contraponto ao número anterior - centripetação. Utilizando a metáfora através deste habitáculo móvel, propomos sair do Porto em direcção à Trofa, analisando os elementos que compõem a urbanização extensiva, diametralmente oposta à cidade consolidada. Como tal, acompanham-nos nesta conversa ao volante o professor Álvaro Domingues e o professor Manuel Graça Dias. Álvaro Domingues – Eu quero fazer um comentário. Tu falas em centrifugação não é? E depois dizes assim: “vamos fazer uma viagem do Porto à Trofa”, e o “artista” pensa assim “eles vão ver como é que o Porto centrifugou para a Trofa”. É essa a ideia que eu não concordo de todo. O Alberto Sampaio, quando estudou as formas de povoamento do Norte Portugal (o livro chama-se “As Vilas do Norte de Portugal”), ficámos a perceber que já desde a primeira estatística que se fez, que foi no séc. XIII – As Inquirições da Idade Média, que por exemplo concelhos como Barcelos já tinham 90 paróquias, que são hoje as 90 freguesias que Barcelos tem. Ou seja, a matriz do povoamento desta região é uma matriz completamente identificada. Portanto, o processo de povoamento não pode ser analisado como se isto fosse um ovo estrelado do Porto a centrifugar para a Trofa, ou para Aveiro, ou para Espinho. É um processo bastante mais complexo, porque todas estas terras já tiveram séculos de vidas, tiveram momentos de crescimento, de crise, etc. Portanto, o processo de urbanização tanto pode ser a clássica centrifugação, como pode ser a simples colonização de infra-estruturas.
geógrafo Álvaro Domingues, o que é que distingue o que se passava no século XIII, XIV, XV e essas paróquias todas com a actual situação? Certamente que não iríamos ver as pessoas a viver no Porto e a trabalhar na Trofa ou vice-versa. Portanto, é por analogia com esta situação que eles estão a criar este artificio. Há hoje uma realidade totalmente distinta. Apesar do povoamento disperso, hoje há uma ocupação que foi permitida pelos novos meios de comunicação, que pressupõe uma vivência num determinado espaço e é isso que distingue a contemporaneidade. AD – Falando em Física teórica, diminuiu imenso o atrito no território. Durante séculos existiram sociedade agrárias (antes da revolução agrícola, pós descobrimentos e pós revolução agrícola). Sociedades cuja economia fundamental era a produção agrícola de auto consumo digamos. Portanto, ainda havia aquilo que hoje já não há, que era a coincidência do rural e do agrícola. O agrícola era a actividade dominante e o rural era a cultura e o território dessa economia. Para mim o que é a Trofa? A Trofa não é um dormitório, porque a quantidade de gente que faz esse movimento é muito pouca em relação ao total de pessoas que vive na Trofa. Inclusivamente se o modelo fosse entre a periferia, a Trofa até era contra pendular como é a Maia, porque sempre atraiu mais do que as pessoas que saem. Hoje os movimentos são assim muito “brownianos”. Em Lisboa é completamente diferente porque Lisboa é uma área metropolitana que... MGD – Sabias que Lisboa é uma área metropolitana e o Porto é... AD – É um “mix mox”... MGD – É um...aglomerado....qual é o nome técnico?
Manuel Graça Dias - Posso então agora intervir? Tudo isto sendo verdade, vamos aqui perguntar ao
AD – Eu não sei, eu chamo-lhe transgénico.
Conversa ao Volante • Com Álvaro Domingues e Manuel Graça Dias • Dédalo 06 • Centrifugação
MGD – Sabes sabes! Há um clássico...
em espacialidades e temporalidades diferentes, e a seu modo não tem vida própria.
AD - Conurbação. MGD – Conurbação exactamente, é um nome muito feio aliás...
MGD - Se estivéssemos aqui em hora de ponta estaríamos bloqueados e parados. Assim essa possibilidade ficaria reduzida a alguns dos seus componentes.
DDL – Podemos começar a falar deste compressor de espaço/tempo (VCI), no qual estamos prestes a entrar...
AD – Eu que sou um “carro dependente”. Tenho uma visão positiva disto porque normalmente o carro é o meu lugar de descanso.
MGD - Estamos a entrar num compressor de espaço/ tempo?
DDL – Consideram então que o automóvel traz liberdade?
AD – Diria o Einstein que estamos a entrar num buraco negro.
AD - Eu acho que sim...
MGD – Com esta luz toda? (risos) AD – Buraco negro no verdadeiro sentido do termo, onde há uma força gravítica enorme, em que o tempo se acelera e o espaço se comprime. É isso que o automóvel faz. Nós saímos dali do espaço da faculdade, em que o tempo e o espaço eram o peão, as distancias curtas, o andar a pé...e agora estamos lançados numa outra espacialidade. MGD – Uma espacialidade mista. Agora já não há passeios, mas até aqui estávamos numa situação de alto tráfego com passeios e moradias com os seus jardins... AD – Eu se fosse semiótico diria que é a tal heterotopia, não é? Porque isto não é um lugar. Esta ideia de ser um lugar em movimento que depois tem várias próteses, porque pode ser o telemóvel, o computador, a rádio. Estamos a falar aqui dentro, e ao mesmo tempo toca o telefone e remetemo-nos para o universo da casa, dos amigos, etc. O automóvel é uma flutuação. Portanto, tem esta possibilidade de nos colocar
MGD - É uma liberdade muito limitada. Repara, se eu agora disser: “Pára, para fumar um cigarro e fazer xixi”. Tu não podes parar aqui. Portanto, essa liberdade acaba numa série de regras que têm que possibilitar a gestão desta situação. AD – Estás a falar de um absoluto de liberdade. Isso não existe. MGD – Não é um absoluto. Estou a falar da liberdade que conheço na cidade. AD – Olha eu digo-te assim; durante séculos ou milénios as pessoas ou andavam a pé, ou andavam de burro, ou andavam a cavalo. Os muitos ricos tinham cavalo e carruagem... MGD – Em qualquer das situações podia-se parar para mijar. AD – Com certeza, e os burros mijavam imenso. Um dos problemas da gestão de espaço público era estarem cheios de merda. Durante séculos a sociedade europeia que nós conhecemos foi uma sociedade
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muito ingrata. A vida urbana era fundamentalmente dos senhores porque o aparelho do poder militar ou do poder da religião dominavam, e basicamente os outros trabalhavam e eram mais ou menos escravizados. As pessoas não tinham a possibilidade (a não ser com as pernas) de vencer o atrito, e havia cavalos e carros de cavalos. Eu no meu carro tenho 80 cavalos, e desconfio que hoje em dia os carros estão melhor distribuídos que antigamente os cavalos. MGD - É quase verdade, é quase verdade...porque no principio do século também tiveste o transporte público, ou no final do século XIX se quiseres. Essa fase por exemplo, talvez pudesse aspirar a ser mais democrática do que este veículo individual. AD – Eu distingo os suportes tecnológicos como é o automóvel, ou como é o TGV, ou o avião da apropriação social deles. Como nós não estamos no paraíso com Adão e Eva antes da serpente, infelizmente desigualdades sociais há-de haver sempre. A mim interessa-me saber se o automóvel é mais democrático socialmente hoje em dia, do que era o comboio no séc. XIX. E, quando leio a sociologia do operariado do séc.XIX (os grandes clientes do comboio), de facto aquilo não me traz nenhum discurso assim especialmente positivo. DDL – Qual será então o mais vantajoso? AD - Eu acho que o mais vantajoso é a capacidade de escolha. Eu também gosto de andar de metro, de comboio, de avião, etc. Quem me dera ter um helicóptero que era o que eu queria. O que realmente é importante é a capacidade de escolher. E tu dizias: “ Olha, vou para Lisboa”, como o Graça Dias que passa a vida do Porto para Lisboa. Basta ir de comboio, porque entre outras coisas pode-se trabalhar, pode-se ir ao bar, é confortável. Amanha digo assim: “Vou para Melgaço”, apetece-me ir de quê? De carro
obviamente. Quero ouvir música, falar com os meus filhos, parar naquela estrada magnifica entre Braga e Arcos de Valdevez, quero tirar fotografias... MGD – Claro, com certeza. Contudo, o caso em que estamos (VCI) não tem nada a ver com a tua viagem romântica para Melgaço, não é? Quer dizer, isto é uma chatice, é uma seca. A esta hora ainda é possível transitar, mas daqui a uma hora ou duas isto é um pequeno inferno. É uma vida que no discurso consumista parece uma situação que permite liberdade, mas que na maior parte dos casos não o permite. Este meio de transporte traz à cidade estas estruturas todas que só servem para ele e não servem para mais nada, ao contrario dessas ruas onde andavam apesar de tudo os cavalos dos mais ricos. AD – O Manuel Graça Dias está a isolar uma imagem da VCI que é verdadeira. Não se pode dizer que isto é mentira porque não é. O problema é que eu no quotidiano não penso nisto. Quando usas o automóvel não pensas só no automóvel; pensas no sistema de questões a que ele pertence. O meu problema não é pensar que vou no automóvel na VCI. O meu problema é estar no Marquês a uma hora especifica, porque depois vou não sei onde. No meio disto tudo há questões de senso, de dinheiro, de stress, pode haver questões de qual é o zapping onde se insere este especial trajecto... DDL – Estamos a ser completamente enxovalhados pelo buzinar dos carros.... MGD - Estamos a ser completamente enxovalhados por pessoas que querem andar mais depressa. Nós onde é que estamos já? Estamos na VCI ainda? Não... DDL – Estamos na Via Norte. MGD – Olha esta situação. Um peão que queira
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passar de ou lado para o outro tem que subir esta porcaria desta rampa. AD – Aquilo são regulamentos. MGD – Aquilo é um susto. Eu não acho que o automóvel esteja democratizado. Os automóveis ainda subsistam porque mais de 50% da população faz uso dos transportes públicos (mesmo que tenha automóvel próprio). Porque no dia em que todos decidissem utilizar o automóvel próprio (mesmo que fosse desfasado meia hora) desde as 6 da manha até às 10 da noite, isto era completamente inviável. AD – Mas tem mecanismos de auto regulação. MGD – Auto regulação? Então estas VCI cada vez se alargam mais. AD – Ó Graça Dias! MGD – Ó Domingues! (risos) AD - Como eu não sou masoquista, se a VCI estivesse entupida todos os dias já tinha mudado de estratégia. Felizmente, como a VCI ainda não “crachou”, não colapsou, continuo. MGD – Mas pode vir a “crachar” não é? DDL – Podemos chegar ao ponto em que estas estruturas deixem de ser utilizadas? MGD – Eu acho que sim. Imagina que isto leva um faixa ou duas para carros, ambulâncias, táxis e coisas assim verdadeiramente urgentes. A Maia poderia ter um eléctrico rápido, com paragens de 500 em 500 metros e isto ficaria uma estrutura urbana muito interessante.
AD - Se tu quiseres desmontar aquela passadeira a tutela não te deixa. Há um excesso de sectorialização das politicas, num tema que é o ordenamento do território. Ao mesmo tempo, há disfunções na pirâmide administrativa. O poder em Portugal é “esquiveiro” porque ou está em Lisboa ou está nos municípios. No meio não há nada. Portanto, o planeamento não é o somatório das lógicas sectoriais, nem é o somatório das lógicas municipais. O problema é esse. DDL – Estamos prestes a fazer a transição da Via Norte para a EN 14...onde o tráfego automóvel começa a ficar mais caótico. MGD – Eu não acho mais caótico. Acho até mais simpático porque vai mais devagar e podemos sentir estas árvores à nossa volta. Há sobretudo aqui um momento em que isto remeteu para uma possibilidade mais interessante que a auto-estrada. AD – A auto-estrada podia ser assim não é? MGD - Exactamente, a auto-estrada podia ser muito mais agradável. AD – Olha ali o metro a passar por cima da
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auto-estrada. Isto é que é intermodalidade. Há aqui uma coisa curiosa, aqui à esquerda. Como a crise imobiliária “crachou”, esse loteamento serve como estacionamento. As pessoas deixam aqui o carro para apanhar o metro. Até os meus conterrâneos de Melgaço já sabem que podem deixar aqui o carro.
MGD – Eu não disse que não era ordenador. Eu disse é que era difícil viver aqui. AD – Estamos a deixar a última intensificação da rua da estrada, que é quando a rua da estrada apanha a auto-estrada. Foi o que aconteceu dali até aqui. Há uma dramatização e uma concentração. MGD – Com muita habitação unifamiliar não é?
MGD - Deixam à entrada com medo da grande cidade. Agora temos uma situação bastante mais estúpida e difícil ainda. Enquanto estávamos nas auto-estrada, eu dizia-vos que me pareciam muito pobres e pouco urbanas aquelas estruturas. Agora aqui, que estamos a mudar para o modo estrada habitável lateralmente é também muito difícil. Habitar aqui deve ser bastante insalubre não é? Do ponto de vista acústico, um “gajo” tentar dormir com esta quase auto-estrada a passar-lhe à frente, ou sair de casa para ir às compras ou para levar o filho à escola é muito “expulsador” da alegria de viver. Aliás, basta olhar para os tamanhos dos passeios, que mesmo que fossem grandes quem é que quer andar neles? Isto aqui parece realmente o ultimo sitio do mundo onde qualquer um de nós gostaria de viver.
AD – E muitas memórias. A rua da estrada para mim é um dos objectos de análise mais interessantes por esta diversidade toda. Vai desde o edifício montra ao comércio que associa áreas de estacionamento, e vendas muito episódicas concentradas às vezes só no domingo à tarde ou só ao sábado. Combinam um modelo de habitação que vem do passado e ainda está como está; como se fosse conservada com as misturas possíveis e imaginárias. Eu costumo chamar-lhe casa “kitada”, que é uma casa que já foi casa. A partir do momento em que a estrada ganha tráfego todas as pessoas que passam são potenciais clientes do negócio. Portanto, como dizia um “É preciso fazê-los parar” e as pessoas vão aproveitando essa situação de beira da estrada para abrirem negócios. Se eu fizer um levantamento funcional ao longo de uma estrada, vou ter a mesma diversidade e a mesma riqueza funcional que tenho na cidade canónica.
DDL – Devemos então encarar a condição da estrada como um ordenador ou desordenador de território?
MGD - Mas há aqui uma coisa interessante que eu gostava de referir. É que o modo como o Álvaro Domingues refere estas questões, é um pouco como o cientista que fica animado com o anómalo não é? Quer dizer, com certeza que poderá existir um médico que diga “Este individuo de três braços, quatro pernas e duas cabeças é um fenómeno fantástico. Tomara eu poder estudá-lo de fio a pavio”.
AD – Bom, eu que sou ao contrário, acho que é ordenador. Por uma questão muito simples...
AD – Eu ando há 20 anos a estudar estatística para dizer assim: o município do Porto chegou no seu
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auge a ter 300 000 habitantes duma região que de Aveiro a Braga tem 3 000 000. Nós andamos há não sei quantos anos com a famigerada cidade e entretanto andamos a ocultar um modelo de urbanização que pelos vistos vem do séc.XIII. Eu comecei a trabalhar em Guimarães, onde de manhã tinha uma reunião com o Távora. Falava-se sobre a pré-história da politica do centro histórico em Guimarães e à tarde falava-se do ordinário, da cidade ordinária. No entanto, era uma evidência estatística há 20 anos como é hoje, que dois terços do emprego da população do município de Guimarães estão fora do seu aglomerado urbano. Quer dizer, não estamos a produzir dislexias. MGD – Acredito que sim e o discurso parece-me todo ele bem encadeado. O que eu quero dizer é o seguinte: há pouco referíamos a questão da liberdade e tu definiste-a como uma hipótese das escolhas. E eu pergunto-te porque é que este tipo de cidade é tão “exclusora”? AD – Mas porque é que exclui? MGD – Eu vou-te já dizer. Porque é que uma velha que não saiba guiar, que não tenha filhos que tenham carro e que queira comprar uns mosaicos só pode vir aqui à Trofa? AD – Eu respondo-te de outra maneira. O preço das casas neste sítio é caríssimo, exactamente por causa do interesse da estrada. As pessoas serão masoquistas? Podem vender a casa e mudar, podem ir para a rua de santa Catarina se quiserem.
é. Eu não tenho esse julgamento. MGD – Com esse tipo de raciocínio não podemos nunca mudar o mundo, porque nunca sabemos nada sobre o que gerar. Eu sei lá se os “gajos” que vivem na China miseravelmente para os meus padrões não são felizes? DDL – E este elemento que estamos agora a encontrar (rotunda). O que é que representa? É um simples obstáculo à velocidade ou tem outros significados? O que pretende toda esta sinalética que aqui se justapõe? AD – Estás a falar de semiótica. Todos esses grafismos e comunicações, umas espontâneas e outras profissionais obviamente que têm lógica. Para um geógrafo, a coisa é muito simples. Há o território e há uma sociedade que muda. À medida que a sociedade muda, vai-se territorializando de diferentes formas. MGD – Essa rotunda onde passámos é um espaço que só serve para uma coisa, para os carros diminuírem a velocidade. A cidade é feita de situações que servem para muita coisa ao mesmo tempo. A boa arquitectura deverá ser aquela que realmente propõe soluções para um determinado aspecto da vida do homem, mas sem o saber quase acabará por criar soluções para muitos outros aspectos ainda por descodificar. Cheira mal como a merda aqui.
MGD – Não têm lugar à porta.
AD – Isto é um caso engraçadíssimo. Temos uma agricultura economicamente funcional no meio de um espaço intensamente urbanizado e estamos numa das zonas de maior concentração industrial da região Norte.
AD – Tu tens uma opinião quanto ao automóvel completamente diferente da minha. Dizes que uma pessoa que mora ali naquela casa é infeliz. Eu sei lá se
MGD – E se as pessoas gostam..se elas são felizes assim..quem sou eu? Ó pá, mas aqui cheira mal. Até marca o dia não é? Até marca a hora. (risos)
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AD – Há aqui uma coisa que se está a tornar escassa que se chama emprego. Eu repito e insisto muito sobre isto. A minha questão à partida é social, não é formal, não é estética. Dentro de uma boa solução social podem caber muitas formalizações. Por exemplo, aqui vive-se com uma relativa prosperidade, não é propriamente a Califórnia, mas há emprego. Nós estamos muito perto de um dos gigantes da indústria farmacêutica portuguesa que é a Bial; é ali ao fundo. Tem lá dentro quase 300 investigadores de topo de gama. Portanto, para um geógrafo é isto: a sociedade muda, a tecnologia muda, a economia muda, etc. Aquilo a que chamamos o urbano é a expressão da territorialização da sociedade. Agora podemos fazer com que ele seja mais confortável, mais cómodo? Com certeza. O que eu acho é que há um défice de investigação muito grande sobre estas coisas porque nós somos viciados na “Eis a cidade. Esta é linda, esta é feia, eis isto, eis aquilo”.
soluções de cidade.
DDL - E isto é lindo ou é feio?
AD – Não, para mim é “floculação”. Tens leite misturado com chá; se esperares umas horas ele flocula. Portanto, há aqui uma complexidade muito grande de processos de edificação, de produção de infra-estruturas, localização de actividades, e “das duas três”: ou partes do conhecimento disso para ver como é que o concertas, ou então se lhe queres ajustar modelos que foram testados noutras cidades não funciona.
MGD - Isto são as arquitecturas que se vão fazendo. São os vossos colegas que saem da escola… AD - Isto é a bio-diversidade. MGD - Nisso eu estou perfeitamente de acordo. Aliás, eu estou aqui a fazer o papel de advogado do diabo mas com certeza que também sou sensível a alguma desta vitalidade. Prefiro, e acho que é preciso termos disponibilidade para analisar todas estas manifestações de vitalidade. Estou perfeitamente disponível para aceitar que a cidade como a entendemos ou conhecemos quando nascemos possa ir adquirindo novas configurações igualmente equivalentes, onde o homem encontra também algumas hipóteses de felicidade. O que eu digo, é que há realmente no meio deste mundo que a cultura automóvel promove um grande autismo que não encontrávamos noutras
DDL - E esta senhora a varrer? AD - Isto é o amor pela estrada. Varre a estrada como quem varre a casa. MGD - É o amor pela casa que deve estar cheia de pó! Está a varrer a sua entrada, mas isso acontece em várias partes da cidade. AD - Este território felizmente está cheio de diversas actividades. Nós estamos num modo de urbanização do território que não tem nada a ver com aquele modelo: “Eis a cidade que é a gema do ovo estrelado, depois o branco que é o subúrbio (que é mono residencial) e depois o campo”. Aqui nunca foi assim. DDL - Então nunca podemos entender este movimento como centrifugação?
MGD - Claro, mas não é disso que estamos a falar, não é? AD - Não, mas isso é um problema muito grande hoje em dia. Muitos regulamentos dos planos são standard. Um regulamento é igual para o Algarve e para a Maia. Não faz sentido nenhum. DDL – Esta realidade que estamos aqui a analisar não nasceu do nada. Há sempre referências e isto não foi criado por obra do acaso. Estabelecemos isto com
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uma certa lógica… MGD - Ainda que grande parte da cidade seja criada acidentalmente…
deparamos agora. Existe aqui uma lógica sedutora bastante presente não é?
DDL - E transportam-se as referências da cidade canónica para aqui? MGD - Eu penso que não, essas referências já se perderam. As pessoas gostam minimamente da cidade histórica para ir passear em turismo. Gostam de ir visitar Barcelona e depois ficam lá a passear a pé… AD - Ou Óbidos por exemplo, que é o parque temático de Lisboa. DDL - Então resume-se a um imaginário? Um bilhete de identidade para quem vem visitar o centro da cidade? AD - É uma das funções. Veneza é isso a nível mundial. MGD - Neste momento as antigas cidades estão transformadas em parques temáticos. Alimentam a indústria do turismo e é uma pena que a maior parte das pessoas as encarem assim também; os próprios habitantes.
MGD - Isto é o consumo daqui da zona. As pessoas têm casas individuais e aspiram a um modelo. Há vários patamares de ascensão social e inventou-se este da piscina que é uma obsessão. AD - Tens a palmeira… MGD - A palmeira é mais antiga, vem do século dezanove.
MGD - Ai não, não digas isso; quanto mais turistas mais a cidade se aparvalha.
AD - A estrada é como a cidade canónica, vai registando padrões. Portanto, para mim é como andar num travelling, numa curta-metragem a ver a sociedade e a maneira como esta muda.
AD - Está bem, mas nós precisamos de “guito”.
MGD - É completamente verdade.
MGD - Eu gosto imenso da ideia do turismo, mas do turismo para ao qual não é preciso fazer nada, que vem invejar a vida dos outros.
AD - Houve uma altura em que a onda era ter chorões. As pessoas estavam cansadas da palmeira; toda a gente tinha palmeira…
DDL – E este caso das piscinas com o qual nos
MGD - E o chorão cresce muito depressa também…
AD -Tomáramos nós mais turistas no Porto!
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AD - E tem esta poética do chora não é? MGD - Não sei se tem poética. Eu acho o chorão uma das árvores mais feias do universo. AD - Tu classificas tudo pá! MGD - Olha, eu é que classifico?
MGD - Completamente. E as lanças? Que protegem o “castelo”. As lanças que te protegem do inimigo, portanto tu tens coisas que te roubem. Nesse sentido tens a casa protegida, mas como és pobrezinho acabaste por ter uma coisa que qualquer pessoa levanta com uma perna. AD - Eu acho é que a estética daquilo a que chamamos o kitch é a estética dos referenciais misturados.
AD - O chorão é a estética neo-romântica. MGD - E incompreendidos. MGD – Acredito, mas são muito feias. AD - Mas compreendidos por quem os põe. AD - Diz isso de outra maneira, diz: “Eu não gosto”. Eu também não gosto de palmeiras, eu detesto palmeiras! MGD - A palmeira é uma anti-árvore. Dá-te pouquíssima sombra, é um tropicalismo. Nesse sentido tem graça por ser realmente uma transformação profunda do mundo natural. Isso é muito interessante. DDL – Esta casa que estamos a ver tem uma enorme mistura referencial, não é?
MGD - Incompreendidos na sua origem, digamos assim. Não é que as coisas não possam ser transformadas e retomadas… [Apito dum camião que queria ultrapassar] MGD - Estás a ver como nós não podemos ser livres no automóvel? AD - Não, mas não somos livres em lado nenhum. DDL - Falemos agora um pouco das montras exteriores onde se expõem os produtos, procurando atrair e chamar atenção do passante. MGD - É nitidamente uma montra feita para automóvel, para passarmos em velocidade. Aproveita-se a extensão da fábrica ou do armazém. Todo o terreno vazio que é bastante extenso vai sendo preenchido com parte da fazenda, tal e qual como na cidade a pequena montra de 2,5m é preenchida. AD - As mercearias antigas, em que a mercadoria transbordava para o passeio… MGD - Exactamente, para quem andava a pé poder
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ler e lembrar-se que precisa daquilo. A única diferença entre este modelo (e nisso talvez resida parte do seu encanto) e o modelo americano é que o modelo americano é mais pré-determinado e pressupõe entradas para o automóvel com parques de estacionamento à frente. Aqui, felizmente ainda estamos numa grande mistura e por isso conseguimos agora estar a passar por um momento lindo. AD - Isto se fosse nos Estados Unidos estava museificado. MGD - O que acaba por ser interessante nesta solução é o ser completamente casuística. O facto de ainda gerar muitos conflitos torna-a animada e interessante porque realmente se isto tivesse sido americanizado à séria o conflito era muito menor. Os carros deslizavam, entravam, saíam, compravam, etc. Aqui podemos ter um “gajo” a chamar-nos de nomes da camioneta, porque realmente só cabe um carro de cada vez e quem quiser parar não pode. No modelo americanizado a street foi adaptada a este tipo de comércio automóvel, pois pressupõe um espaço para estacionamento. AD - Tem escalas e modos de apropriação muito distintos. Eu chamo-lhe a membrana, aquilo que faz as várias situações de transição do que é puramente público e puramente privado. A membrana aqui mistura tudo. Há coisas que são claramente a face pública da esfera privada. Têm um uso intensamente colectivo, quer em termos de produção de signo, quer em termos de funcionalidade e apropriação, e que é um tema que na estrada devia ser valorizado em desenho. Sempre que eu tenho uma folga entre o corredor do asfalto e a construção confinante, o que é que eu posso fazer disso que não seja apenas o passeio? O passeio é o grau zero do conforto. Tem uma geometria móvel, ora aperta ora alarga, ora tem muro ora não tem, ora tem espaço de estacionamento ora
de exposição. Como é que posso pegar nisso como um objecto projectual para diminuir o conflito? Gerir quem pára, quem encosta, quem vem em velocidade mais lenta e quem vem mais rápido, que é um dos grandes problemas de resolução deste tipo de padrão da rua da estrada. MGD - Tudo isto é muito irritante porque tem a funcionalidade muito à flor da pele. Nunca há a agradabilidade do espaço, nunca é tida em conta… AD - Nós também estamos muito condicionados por estamos dentro dum carro a fazer este trajecto assim… MGD - Bem… imagina-te a pé que seca! AD - Podíamos dizer assim: “vamos parar aqui e gravar esta conversa para ver quais são as vivências que se produzem”. Provavelmente são muito mais ricas do que nós pensamos. Nós também emitimos opinião a passar. MGD - En passant… AD – Portanto, temos mais tendência a valorizar a lógica do en passant do que a do outro tipo.
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MGD - A do en vivant! AD - Mas também queremos traduzir aquilo que estes carros que passam por nós têm noção. Estamos um pouco a estudar o que é que eles assimilam disto tudo. Embora não o sintam de uma forma tão directa, porque não vão aqui a pensar, vão a pensar noutra coisa qualquer e não na publicidade que aparece à frente… MGD - Estamos fora do Porto, mas realmente percebe-se aqui que isto é profundamente misturado em termos de habitação com uma enorme densidade comercial, fabril. Com certeza que a vivência aqui não é como nós podemos fantasiar noutros sítios aparentemente mais confortáveis, mas há uma vivência. AD - Mas este padrão é muito comum, aqui entre Aveiro e Braga ou quase Viana do Castelo. Isto é o mais vulgar que há como forma de territorialização da sociedade.
AD - Porque a apropriação desta estrada não tem a lógica do transporte colectivo. MGD - Mesmo que a dominância não seja o transporte privado, ele é de tal maneira intenso que acaba por dominar visual e acusticamente estes ambientes. DDL – Estamos já próximos da Trofa. Sente-se uma maior densidade da construção e de todos estes expositores de carros. Aquela rotunda ali à frente é bastante colonizada, quer através de publicidade, quer através dos edifícios que se aproveitam dela. Já estamos a ver daqui a publicidade ao Pingo Doce. MGD - Isso faz parte desta lógica. Nós não podemos também deixar de perceber uma coisa. O grande Pingo Doce é equivalente à joalharia ou à mercearia na escala do peão. O que temos aqui é um momento muito massificado ou muito universalizado/mundializado. Estas coisas depois repetem-se em todos os sítios e as marcas multinacionais como a Honda e as nacionais como os Pingos Doces aparecem em todo o lado.
MGD - Mas isso não é um exclusivo aqui da região Norte. Estou-me a lembrar da zona de Azeitão. Há situações destas perto de Lisboa e a N125 no Algarve é muito isto; com uma intensidade às vezes muito interessante. Eu acho é que o ponto fulcral, e aí a nossa divergência, é o meio de transporte através deste sistema. Eu posso ter um grande trauma com o barulho; mas acho que realmente esta violência da estrada tira à partida qualquer hipótese de tornarmos uma vivência aqui mais amena e agradável. DDL - Então a solução aí seria investir nos transportes públicos, numa rede viável? MGD - Pois, mas tudo isso é romantismo porque cada caso é um caso. A dominância é o transporte privado.
AD - Temos ali ao Tourigalo por exemplo que só existe aqui. MGD - E daí o facto daquela peça ser muito mais
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específica e mais interessante para a memória de quem por aqui passa… AD - Se o Andy Warhol tivesse visto o tourigalo tinha-se encantado. MGD - Pois, isto é um nome incrível. AD - Um nome mítico. A imaginação simples é quando tu imaginas coisas com base no referencial que tens não é? As imaginações compostas são assim: eu posso pensar num touro e pensar num galo, e a imaginação dá um tourigalo. Portanto, nós vivemos neste mundo da imaginação composta, que se torna um signo. Quase que remete para as religiões clássicas dos centauros e das hidras, e ao mesmo tempo é nos familiar. MGD - Pois porque a crista do galo é a crista do Galo de Barcelos. AD - Exactamente. Eu noutro dia disse a um espanhol que esta era a solução do iberismo. É o touro da Osborne com o Galo de Barcelos. DDL – Estamos agora a encontrar aquilo que se pode chamar a “Casa da Câmara”… MGD – “Casa da Câmara?!” AD – Estamos perante uma casa da Trofa, aquela arquitectura muito engraçada que não está estudada. Nos anos 80 quando houve o boom de têxtil aqui na Trofa. MGD - Foram aí uns desenhadores que fizeram muito dinheiro… AD - Sempre que existem processos de mobilidade social ascendente muito rápidos, as pessoas através
do carro, da casa, da roupa, dos seus hábitos e círculos de amigos dão sinais do seu estatuto social. A forma mais vulgar é a casa e o carro porque são muito visíveis. Na Trofa apareceu um gabinete que ainda existe que inventou o pós-moderno antes de ter o nome. Esta agora está caiadinha de branco mas elas não eram assim, eram muito mais exóticas. MGD - Exuberantes. AD - Muito exuberantes. Então agora conto a minha história. Andava eu a fotografar coisas da estrada e estava ali naquele café. Às tantas não sei como, olho e… ui! a Câmara da Trofa! Ainda não me tinha dado conta que a Trofa já era município e que tinha feito um concurso para o espaço do concelho. Não tinha corrido bem e então… MGD - Tinha uma moradia! AD - Alugou uma moradia que é uma típica casa da Trofa. Eu saí ali do café para fotografar e quando entrei de novo no café o homem estava zangadíssimo comigo e saiu-se com esta: “Está a fazer pouco de nós? É jornalista? Pois toda a gente já percebeu que é uma Câmara e que está numa casa, que não é suposto estar…”. E digo eu assim: “Não. Ouça lá, então a Trofa não é filha da estrada,? A Trofa não existe
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porque é o cruzamento da estrada Porto-Braga com a outra estrada poente-nascente que faz EsposendeGuimarães e depois veio o comboio e reforçou esta cruz? Portanto não há Trofa sem perceber a lógica da passagem do cruzamento, não é? Ora bem, se a Trofa agora é Município, o Município da Trofa está à beira da estrada como lhe compete” . E diz ele assim: “Tem razão”. Pronto e já não gritámos mais. MGD - Viu que eras um estudioso do tema. Deixa-me fotografar já agora… AD - Olha, não temos recreio? DDL - Estamos quase a chegar ao fim… AD – Ah, pensei que íamos tomar café… DDL – E vamos!
AD - Isso é para arquitectos, eu não me meto nesse assunto. MGD - Tem qual sentido? DDL - Estamos a falar da casa do emigrante, da ascensão social… MGD - Sim, o problema que se passa aqui é que nós também às vezes romantizamos as coisas e queremos que isto seja o equivalente popular de muita outra arquitectura vernácula. Ele é, só que o mediador aqui é um técnico, um desenhador; e o desenhador também não é nenhum ser virgem de influências e inculto. Ele tem uma cultura, só que é uma cultura a maioria das vezes realmente disparatada e descentrada. Está mais perto destas populações e interpretou o seu gosto. AD - Mas tem referências eruditas? Digo eu, deve ter… MGD - Tem, mas são referências mal treslidas de arquitecturas modernas que não se percebia bem por que é que eram assim, de certos jogos e abstracções. Os telhados desencontrados, os grandes balanços das coberturas, tudo isso nasceu durante o século XX. AD - Mas por exemplo o caso das correntes a substituir os tubos das caleiras?
AD - Olha lá está a casa da Trofa. O modelo mais conhecido e fotografado é este. A célebre casa do esquadro. DDL - Mas isto tem o seu sentido. Ou não?!
MGD - Exactamente, é uma coisa que veio da arquitectura japonesa que a certa altura nos anos sessenta mesmo os arquitectos mais cultos faziam isso. Essa parte era fácil de copiar e o resto da casa não necessariamente. AD - Curiosamente era mais comum (aqui há uns anos agora não sei) este tipo de arquitectura ter o nome de marca da casa do esquadro, por causa do dito esquadro, daquela forma que vem até ao chão, do
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que arquitectura da Trofa. MGD - O que eu acho mais interessante, e isso é que talvez seja de relevar é que apesar de tudo, isto representa um período mais fresco com alguma pulsão mais intensa do que o momento que estamos a viver. Agora as pessoas estão demasiado educadas e condicionadas por uma série de clichés de integração e de respeito pelo património, que os leva a fazer coisas como aquela que vimos há pouco daquela casa de pedra com colunas clássicas, que são tão disparatas como esta. São tão tergiversadas em termos culturais como estas, mas ao menos estas têm uma certa inventiva e as outras na maior parte dos casos não. As outras ao serem integracionistas ou patrimonialistas são mais estúpidas. AD - Eu vejo sempre o patrimonialismo como um resultado da pulsão identitária. MGD - Mas não é. Neste momento é muito mais resultado duma pulsão de lugares comuns, de pensamento único e mainstream. AD - O que eu ia dizer é que está ali um gesto patrimonialista muito poético. Fizeram ali uma rotunda e para a decorar o que é que foram buscar? A tralha ferroviária, o signo da tralha ferroviária. MGD - Que é a cultura da máquina de costura não é? Transformar a máquina de costura em mesa de recepções. AD - Já vamos ver ali… aquilo podia ser uma vitrina dum museu, da patrimonialização da memória do caminho de ferro. É tão engraçada aquela rotunda! MGD - Queres desligar esta máquina terrível? Que já deve estar a ferver… DDL - Sim…vamos então lanchar?
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PRÉMIO FAUP
Fotografia de Arquitectura Texto+ Pedro Leão Neto
CONCEITO vs EMOÇÃO
ABSTRACÇÃO vs PICTORIALISMO
A primeira edição do prémio FAUP de Fotografia de Arquitectura foi atribuída, por unanimidade, pelo júri composto pelo fotógrafo Luís Ferreira Alves, pela professora Tereza Siza e pelo arquitecto José Manuel Salgado, assessorados por Tiago Casanova da organização, à narrativa visual “Almost Like Home” de João Margalha1. Foi ainda atribuída uma menção honrosa ao trabalho de Tiago Pinheiro Dias2 intitulado “Canastros” e especialmente mencionados os conjuntos de Pedro Jorge Rodrigues Botelho (“Verticalidades”), Raul Pereira da Costa (“Fragmentos de Memória”), Hugo Pinho (“Paisagem construída em entropia. Arquitectura: o lugar e o tempo”), Ana Pinto (“Pegadas da Memória”), Pedro Vanzeler Colaço (“Drive in”), João Batista (“Linhas”), Carlos Sousa Pereira (“Vistas Ocultas”), e de Francisco Guerrero (“Ruínas”). A qualidade dos trabalhos que foram seleccionados entre os noventa e três conjuntos de fotografias en-
1
tregues: o vencedor do concurso, a menção honrosa e os restantes 8 trabalhos mencionados, são, por si só, um sinal positivo e encorajador, confirmando o interesse que este evento suscitou a muitas pessoas capazes de um trabalho em fotografia de qualidade e relacionado com arquitectura. O texto que se segue começa por analisar a narrativa visual “Almost Like Home” de João Margalha, tentando relacionar o seu trabalho à luz de algumas referências que se consideram significativas da fotografia nacional e internacional. Em seguida, a análise incide sobre a narrativa visual “Canastros” de Tiago Dias, tentando estabelecer algum contraponto com o trabalho “Almost Like Home”. O objectivo deste texto é, a partir do estudo destes trabalhos, suscitar alguma reflexão sobre os diferentes intuitos com que a fotografia de arquitectura pode ser desenvolvida e da importância do domínio da gramática visual desta arte e técnica.
João Margalha nasceu em 1966 no Barreiro e trabalha em Aveiro onde também vive. É licenciado em Planeamento Regional e Urbano e tem
o mestrado em Planeamento e Projecto do Ambiente Urbano. A sua obra fotográfica está patente em diversas colecções - Fnac Portugal, Nokia Siemens Networks Portugal , Câmara Municipal de Santarém – e foi vencedor do Prémio Fnac Novo Talento Fotografia 2005, tendo também recebido uma Menção Honrosa na IX Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira. Das diversas exposições já realizadas destacam-se: Rencontres Internationales de la Photographie, Arles, França 2005, XI Exposition de Photographies d' Auteurs, Lacanau, França 2006, Fábrica - Centro de Ciência Viva, Aveiro, Museu Marítimo de Ílhavo, Ílhavo, X Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira. 2
Tiago Dias Pinheiro é um jovem talento que frequenta o curso de fotografia na ESAP.
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O conjunto de 5 dípticos -
“ALMOST LIKE HOME” - com que João Margalha ganhou o concurso é um interessante e rigoroso trabalho de fotografia conceptual. Uma narrativa visual que consegue integrar simultaneamente uma visão documental e artística através de um olhar crítico sobre os espaços de habitação massificados em que se vive em Portugal. Existe um rigor “documental” nestes dípticos e uma disciplina do olhar que nos mostra como o fotógrafo foi capaz de imprimir o seu estilo próprio, isto é, a sua visão direccionada capaz de marcar e caracterizar de forma poderosa estes espaços desabitados. É o mesmo “vantagepoint, frame, focus, and time”: os cantos, a rotação da direcção do olhar em cada um dos compartimentos, a mesma preocupação dada aos artefactos abandonados e à deterioração dos espaços, ou seja à acção do homem e do tempo. É também o mesmo cuidado com a luz e a cor, enfim, é uma gramática visual e um modelo mental3 que “filtram” de forma disciplinada e distanciada estes lugares outrora habitados, criando dessa forma uma visão crítica muito poderosa e subjectiva. Na verdade, nós quase que sufocámos com a desolação claustrofóbica e a nudez destes interiores: compartimentos que deveriam ter características diferentes e que parecem todos iguais, onde não somos capazes de sentir a presença do exterior e da luz natural e que nos dão uma forte sensação de serem quase como
que buracos existenciais. Pode-se dizer que uma narrativa visual deste género pressupõe um observador distante do seu “objecto” de estudo, o que vai contra muitas das teorias e práticas de estudos de etnografia e antropologia urbana, que advogam um maior envolvimento, embora consciente, do observador - investigador4. No entanto, o trabalho de João Margalha e o seu “distanciamento” possui um valor particular que é o de constituir um “documento” visual e artístico capaz de comunicar uma nova consciência e um “novo realismo” sobre estes lugares banais. Relativamente a esta questão, é interessante referir que quando a fotografia ultrapassa o registo e passa a ser também um projecto artístico, o que acontece neste caso, a arquitectura representada passa a estar ligada às imagens de uma forma diferente. Neste caso, existe claramente um projecto conceptual que constrói uma narrativa crítica sobre a normalização e desumanização de determinados espaços de habitação. Sente-se também uma forte influência da Escola de Dusseldorf 5 e da chamada “deadpan photography” em “ALMOST LIKE HOME”, como também em “Canastros” de Tiago Dias, embora constituam trabalhos diferentes, como será explicado mais adiante. Na verdade, a forma como o trabalho de João Margalha dá força e visibilidade a estes lugares de habitação banais, o modo inerentemente crítico das suas narrativas visuais que transforma esses lugares em signos de espaços de habitar massificados, bem como o rigor e disciplina do seu olhar, fazem de certa forma lembrar o olhar desapaixonado e analítico dos Becher e de como a arquitectura foi (re)verificada por alguns dos fotógrafos da Escola de Dusseldorf 6 como Thomas Struth, Axel Hutte ou Candida Hofer. Por outro lado, todas estas características bem como o facto de as imagens de “ALMOST LIKE HOME” levarem-nos a observá-las de forma contemplativa, significa um tempo de visualização continuado e lento patente na maior parte dos trabalhos de Paulo Catrica7.
Prémio FAUP, Fotografia de Arquitectura • Pedro Leão Neto • Dédalo 06 • Centrifugação
João Margalha • “Almost like home”
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“CANASTROS” O conjunto das 6 imagens desta série de Tiago
Dias realiza um interessante e duplo trabalho de dialéctica visual. Estamo-nos a referir, por um lado, ao trabalho subtil de contraposição, em cada uma das 6 imagens, do artefacto caótico e descaracterizado do acrescento, no nível térreo, relativamente à traça vernacular, repleta de carácter que qualifica o canastro, tornada possível devido ao conhecimento popular das técnicas de construção e ao emprego tradicional de matéria-prima da região. Este mesmo exercício de dialéctica visual desenvolvido no interior de cada imagem pode ser detectado em diversos autores de referência como, por exemplo, na célebre fotografia de Shulman: Case Study House4. Se repararmos, na mesma fotografia, Shulman consegue estabelecer um poderoso contraponto visual entre a vista distante de Los Angeles e a representação do interior da casa. Por outro lado, Tiago Dias ao utilizar esta série, repetindo o tipo arquitectónico do canastro em diversas localizações, conseguiu mostrar que existe lugar para a variação neste tipo de estrutura tipológica muito definida. Aqui, a sua ligação ao trabalho de Bernd e Hilla Becher3,4 sobre a arquitectura industrial Alemã é mesmo muito forte, porque eles também mostram como o mesmo tipo de arquitectura industrial varia conforme o seu contexto geográfico específico. A narrativa visual de “Canastros” é realmente muito próxima da gramática visual da obra dos Becher caracterizada por um ponto de vista central, pelas
vistas neutrais, pelo emprego de um mesmo ângulo de visão directa e pelo carácter metódico (taxonomia da arquitectura industrial vernácula) das suas séries. Assim, parece claro que a forma rígida, directa e desapaixonada com que os canastros são representados por Tiago Dias são uma forte referência aos Becher. Já não encontro uma ligação tão forte aos alunos da Escola de Dusseldorf 8 e da chamada “deadpan photography” que já não tinham como objectivo as questões tipológicas ou a vontade de (re)presentar provas, mas sim em forçar os espectadores a questionarem, interpretarem e duvidarem das representações que lhes eram dadas a ver4. Pensando agora em diferenças interessantes entre os dois trabalhos - “Almost Like Home” e “Canastros” pode-se referir que cada um dos autores retratou o tempo de forma desigual: uma dialéctica temporal diferente. Na verdade, na narrativa visual de João Margalha o tempo surge mais abstracto, visto que os espaços são desabitados, praticamente despidos de artefactos domésticos, retratados através de uma visão que vai para além da perspectiva euclidiana e comunicam um tempo - espaço de um grande vazio existencial. Por isso, é possível que aconteça a alguns espectadores, num primeiro momento, não sentirem emoção relativamente ao trabalho “Almost Like Home” e terem mesmo a impressão que as suas imagens nada querem dizer. No entanto, como já expliquei, isso é apenas uma primeira impressão e uma forma
Prémio FAUP, Fotografia de Arquitectura • Pedro Leão Neto • Dédalo 06 • Centrifugação
Tiago Dias • “Canastros”
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de levar o espectador a questionar, interpretar e encontrar um sentido para a obra. Já na narrativa visual de Tiago Dias existe um trabalho dialéctico temporal9 diferente porque as suas imagens, através dos artefactos que são representados, possuem inúmeros indícios que nos permitem apreender de forma menos abstracta a descontinuidade entre dois tempos, duas formas de viver e de construir. No trabalho “Canastros” percebe-se que a arquitectura é representada de forma a colocá-la num tempo histórico determinado. Ela é, nesse sentido, prisioneira do tempo: os canastros a uma arquitectura vernácula do passado e os seus acrescentos a um tempo actual, sem a presença de materiais nobres ou da região, nem o emprego de técnicas de construção populares capazes e culturalmente enraizadas. Existe também a mensagem de que a arquitectura é algo de vivo, porque o homem a vai alterando e transformando ao longo do tempo embora, neste caso, isso seja representado de forma crítica e irónica. Por fim, pode-se constatar que João Margalha utilizou a cor e fê-lo de forma consciente e propositada, um pouco na linha de Stephen Shore ou Joel Meyerowitz, dando força às suas narrativas visuais. Já Tiago Dias optou por uma série a preto e branco, na linha dos Becher e com raízes no modernismo4. É importante referir que ambos os trabalhos “Almost Like Home” e “Canastros” são narrativas visuais onde o significado da composição imagética tem mais raízes no intelecto do que no centro emocional o que significa, entre outras coisas, trabalhos de fotografia com uma forte componente conceptual. Sabemos que as imagens fotográficas têm vindo a ser utilizadas, desde a sua origem, com propósitos diferentes. Na verdade, somos capazes de reconhecer como esta arte e técnica foi utilizada com sucesso para veicular ideias e suscitar emoções nem sempre coincidentes. Assim se conclui ao identificar os
propósitos e as temáticas diversas10 em trabalhos como os da exposição fotográfica internacional do pavilhão soviético na International Press-Austellung, em Colónia em 1928, que utilizava a fotografia para comunicar a “nova visão” da era da revolução soviética, ou o projecto Farm Security Administration, sobre os efeitos da depressão económica no Estados Unidos em 1935 ou a grande campanha fotográfica do século XX DATAR 1984-1988, trabalho encomendado pelo governo Francês e que documenta de forma crítica as transformações na paisagem como reflexo da economia pós-industrial e de um urbanismo de baixa densidade. Repare-se também como a chamada straight photography – Ansel Adams, Edward Weston, Van Dyke e o grupo f/64 - surgem como contraponto ao estilo pictorialista que tinha dominado a fotografia no início do século XX, cujo expoente foi Alfred Stieglitz, ou como o movimento do “New topography” tinha objectivos diferentes da chamada Escola de Dusseldorf e da chamada “dead pan photography”3,4. Por tudo isto, ao escrever este texto, a minha preocupação não foi a de contrapor uma ideologia ou um determinado objectivo fotográfico, mas o de tentar perceber de forma crítica como é que a arte e a técnica da fotografia haviam sido empregues pelos autores para vincular com mestria as suas ideias e emoções. Os trabalhos de João Margalha e Tiago Dias também constituem um exemplo de fotografia de arquitectura que é capaz de explorar, construir e comunicar um significado e um contexto mais amplo para esta disciplina e que, portanto, não se limitam a direccionar as narrativas visuais para temáticas muito específicas como são as questões da luz, da forma, dos detalhes ou da construção do espaço em arquitectura. A este propósito, interessa lembrar o que Walter Benjamin11 escreveu ao reflectir sobre a emancipação da fotografia “de conexões e de interesses de ordem fisionómica, política, científica...” e quando, comentando Brecht, diz que a situação “torna-se tão complexa pelo facto de que cada vez menos uma simples “reprodução da
Prémio FAUP, Fotografia de Arquitectura • Pedro Leão Neto • Dédalo 06 • Centrifugação
realidade” pode dizer algo sobre a realidade. Uma fotografia das fábricas Krupp ou da AEG não revela praticamente nada sobre estas instituições... É realmente preciso ´construir alguma coisa´, alguma coisa de ´artificial´, de ´não real´”. Acredito pois que estes trabalhos constroem propositadamente algo de ´não real´ para apreender e dar uma nova visibilidade a determinadas realidades do espaço arquitectónico que caracterizam o nosso tempo. Por fim, gostaria de transmitir o meu contentamento por ter sido possível realizar todos os eventos relacionados com fotografia de arquitectura que tiveram lugar neste ano de 2009 na FAUP, congratular todos que directamente ou indirectamente contribuíram para que tal acontecesse e realçar a importância que todas estas acções possuíram para ajudar a (re)novar o interesse de um maior número de professores e alunos por esta disciplina.
guesa de Clara Távora Vilar e Nuno Ferreira de Carvalho, 2009. 11
Benjamin, Walter (1977) A Modernidade, Assírio & Alvim p. 259
Notas + 3
4
Stephen Shore, The Nature of Photographs, London: Phaidon, 2007 Gregory C. Stanczak, Visual Research Methods: Image, Society, and
Representation, London:Sage, 2007 5
Robert Hirsch, Seizing the Light: A History of Photography, London:
McGrawHill, 2000 6
Elwall, Robert (2004) The International History of Architectural Pho-
tography – Building with Light, London, RIBA 7
Paulo Catrica - http://www.anamnese.pt/?projecto=az
8 Robert Hirsch, Seizing the Light: A History of Photography, London: McGrawHill, 2000 9
Borden, Iain (2007) Imaging architecture: the uses of photography in
the practice of architectural history, Bartlett School of ARCHITECTURE, University College London, Uk 10
A exposição Arquivo Universal. A condição do documento e a utopia fotográ-
fica moderna, no Museu Colecção Berardo (Centro Cultural de Belém), Guia da Exposição, com texto original de Jorge Ribalta e versão portu-
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ZONA
(AINDA)
INDUSTRIAL Texto+ Luís Grilo Este texto pretende juntar algumas ideias que surgiram durante as últimas tertúlias dos membros editores da Dédalo. Porventura, se bem encadeadas, poderão suscitar o interesse no aprofundamento e alargamento da investigação que propõem. O tema desta discussão diz respeito à situação/condição da denominada Zona Industrial do Porto, no organismo da mesma cidade. A conjugação de factores urbanos,
Zona (Ainda) Industrial • Luís Grilo • Dédalo 06 • Centrifugação
económicos e sócio-culturais específicos, motivam esta reflexão. Com o intuito de construir uma plataforma analítica, que se pretende de consciencialização, uma perspectiva pessoal, e de certa forma provocatória, conduz o pensamento e o discurso. A chamada Zona Industrial do Porto pertence à freguesia de S. Salvador de Ramalde. Na sua posição relativa face a outras freguesias, encontra-se a nascente de Aldoar, e a poente de Paranhos. A Sudoeste situa-se a freguesia de Lordelo do Ouro, e a Sudeste Cedofeita. Entre as duas últimas está Massarelos, embora a sua fronteira com Ramalde seja muito reduzida. A freguesia de Ramalde foi, até à segunda metade do século XIX, uma zona caracteristicamente rural. Com a expansão territorial da cidade do Porto, acompanhada por uma forte pressão demográfica, assistiu-se à alteração do carácter tradicional da freguesia. Sob o contexto do desenvolvimento urbanístico e rodoviário, construíram-se zonas residenciais, incrementouse o comércio, assim como se iniciou um lento processo de industrialização1. A implantação industrial, a partir de 1880, contribuiu, de facto, para transformações marcantes na paisagem
da freguesia. Neste contexto, e até 1960, a indústria têxtil afirmou-se como o ramo predominante. Outros sectores industriais surgiram posteriormente, como é o caso da metalurgia, nomeadamente nas zonas da Avenida da Boavista e da Avenida Sidónio Pais, do Carvalhido e de Francos. Hoje em dia, fruto de diversos factores, muitas destas unidades foram desactivadas2. Na procura de novos espaços, a actividade industrial ordenou-se e concentrou-se essencialmente junto à actual Avenida AEP. O arranque do sector industrial em Ramalde foi acompanhado pela mobilização de uma crescente mão-de-obra, que naturalmente se fixou junto dos respectivos postos de trabalho. Ainda nos finais do século XIX, estas migrações corresponderam à formação de bairros operários, as “ilhas”, cujos vestígios ainda hoje são visíveis. Se nas décadas de 40 e 50 do século XX, o crescimento populacional de Ramalde correspondia ao fluxo migratório das zonas rurais para as zonas urbanas, na década de 60, as populações deslocaram-se do centro do Porto, que apresentava, já, sinais de saturação. Estas gentes vieram a estabelecer-se maioritariamente em bairros sociais. O centro sofreu um processo de progressiva terciarização, transferindo-se a função residencial e o sector secundário para as zonas periféricas3. A partir da década de 60, assistiu-se à aceleração da urbanização. A abertura de ligações rodoviárias de escala regional e nacional, veio melhorar os acessos aos sectores secundário e terciário da freguesia. A migração da indústria do centro para a periferia está directamente relacionada com o aumento da facilidade de circulação e transporte por rodovia. Os grandes eixos rodoviários existentes na vizinhança, ou mesmo os que atravessam a zona de Ramalde, permitiram, até à década de 90, deslocações rápidas dentro da cidade, e a ligação desta com a área metropolitana. Veja-se o caso da Estrada da Circunvalação ou da Via de Cintura Interna. É, ainda, de destacar a Avenida AEP4, pela
sua relação próxima com a Zona Industrial. Esta via permite tanto o acesso à área em questão, como o seu escoamento. Contudo, a sua condição rodoviária no actual contexto regional e nacional, gera momentos de elevado congestionamento, nomeadamente quando é invadida pelo tráfego em horas de ponta. Como refere José Fernandes5, na década de 90 do século passado, o sector terciário assumiu a posição de principal empregador no Porto, face à perda de importância do sector industrial. Segundo o mesmo autor, ocorreu a transferência de emprego, antes afecto ao sector produtivo, para o exterior da fábrica. Por outro lado, os avanços tecnológicos permitiram a modernização do mesmo processo, aumentando significativamente os níveis de rentabilidade, e reduzindo o número de operários6. Nesta ordem de ideias, verificou-se, ao longo dos últimos anos, o decréscimo do número de unidades industriais no território da cidade. A este fenómeno corresponderam ganhos no mesmo sector por parte dos municípios envolventes, sendo de realçar Maia e Matosinhos como os que receberam o maior número de estabelecimentos, podendo estes admitir maiores dimensões7. Em termos genéricos, o processo de desindustrialização é acompanhado pela crescente terciarização. Diga-se que no território, ocorre uma transformação económica de hardware empresarial/ industrial, (sector secundário), em software, (sector terciário). Os factores que justificam tal fenómeno, prendem-se sobretudo com a necessidade de implantação industrial em superfícies cada vez maiores, onde a proximidade perante as principais vias rodoviárias e a posição das edilidades ajuda a explicar a forte pressão imobiliária e especulativa, conduz à exploração, por parte de outros sectores, do valor de mercado dos terrenos outrora destinados ao sector industrial. O comércio e os serviços tendem, então, a controlar a reestruturação do espaço urbano central. Como refere Fernandes, a terciariação ocorre
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à medida que avança um processo de urbanização que reconquista e recicla o seu interior. Tal facto modifica significativamente a composição do espaço urbano e a sua paisagem8. Apesar de não se encontrar na área reconhecida como “centro do Porto”, a Zona Industrial, ainda no espaço interior da Circunvalação, aparenta seguir o mesmo caminho. Face ao referido anteriormente, poderemos afirmar que se assiste a uma reestruturação fundada na extinção, na mudança de campo fabril, ou mudança de sector económico, dos elementos que compõem o seu corpo. O edificado, poderá ser, neste sentido, deixado ao abandono, demolido, mas essencialmente renovado e reocupado para outros fins. A apropriação por parte do comércio e serviços é evidente. O sector secundário ainda presente diz sobretudo respeito a uma indústria considerada soft, pelos meios que incorpora e produtos que gera. A unidade fabril migra para outros domínios da área metropolitana. Os “contentores”, que deixa para trás, mostram-se agora propícios ao armazenamento de produtos e logística, à instalação de unidades comerciais, a oficinas especializadas, ao funcionamento de áreas de restauração, a sedes de empresas de serviços. Veja-se os exemplos, das oficinas e stand de vendas da Renault, Mercedes ou Audi, dos armazéns da Ambar, das sedes de empresas de segurança como a Securitas, ou outros serviços, como postos dos correios. No que diz respeito ao sector comercial, é de destacar o efeito Norteshopping na proliferação de “big boxes”, como os casos MaxMat, Moviflor ou AKI, já junto à rotunda AEP.
Zona (Ainda) Industrial • Luís Grilo • Dédalo 06 • Centrifugação
A introdução de uma outra vertente do sector terciário impregna este espaço de uma nova identidade. Refiro-me aos “serviços de consumo e lazer”, sob a forma de um considerável número de discotecas. Estes espaços, recentemente tão badalados pelos piores motivos na imprensa nacional9, apresentam-se, desde há alguns anos a esta parte, como potente referência na noite do Porto. Estabelecimentos como as discotecas Vogue, Chic, Act, Via Rápida, ou Estado Novo, apropriam-se das condições físicas das construções preexistentes. As suas dimensões proporcionam a flexibilidade necessária à instalação de novos programas. Tem-se gerado todo um ambiente polarizador, não só da vida nocturna regional, mas também nacional e internacional. Esta oferta ultrapassa, claramente, o universo da população do Grande Porto, apresentando-se mesmo como produto de consumo turístico10. Numa outra perspectiva, mas não muito afastada temporalmente, a prática de sair à noite tem conhecido na última década uma forte recondução para o centro da cidade. Acompanhando a revitalização do núcleo histórico do Porto11, num conjunto de iniciativas em várias frentes, assistiu-se a um crescimento lúdico-cultural de relevo nesta área urbana. O apelo contemporâneo para a reestruturação urbana, mediante o crescimento da dita “indústria criativa”, foi acompanhado pela abertura, quase desenfreada, de novos espaços de diversão nocturna um pouco por toda a Baixa. Este fenómeno reanimou o centro histórico portuense como local de encontro para a população “adepta da noite”. Veja-se o caso da Rua da Galeria de Paris. Não querendo entrar em considerações de maior sobre os efeitos a curto e médio prazo relativamente ao impacto deste fenómeno, é interessante estabelecer um ponto de comparação, com o tipo de estabelecimento nocturno entre uma e outra área. As dimensões das discotecas da “periferia” distanciam-
se claramente dos “pequenos” clubes do centro. Senão veja-se os casos do Plano B ou Gare, capazes de acolher os mesmos djs, mas um número consideravelmente inferior de clientes. Naturalmente, a própria natureza física destes últimos espaços propiciará uma vivência festiva totalmente distinta dos “armazéns industriais”. Há, então, que esclarecer, que a apropriação ocorrida por parte “da noite” teria de ser forçosamente diferente no tecido urbano consolidado do centro histórico. As condições disponíveis a priori revelam-se determinantes no carácter e identidade destes estabelecimentos. Observe-se o exemplo do Teatro Sá da Bandeira, sendo um equipamento urbano preparado para o acolhimento de multidões, mostra-se actualmente também como espaço de diversão nocturna. A sua dimensão capacita-o para um número similar de clientes relativamente ao comportado pela maioria das discotecas da Zona Industrial. Neste contexto, a formação de identidades culturais distintas torna-se flagrante quando identificados os grupos frequentadores de ambas as áreas de diversão. Assumindo-se o papel fundamental da cidade na modelação da experiência da vida contemporânea, admite-se a existência de diferentes tendências sócioculturais no “consumo da noite”. As inter-relações contextuais, despoletadas pelo próprio ambiente físico envolvente, ou simplesmente, o facto de “a moda” ser frequentar um ou outro local, contribuem para a caracterização de grupos. Segundo Robert Hollands, a esfera do consumo é de facto, um meio gerador de alternativas identitárias12. A oferta e os atractivos estão, decisivamente, distantes. Veja-se como a filtragem efectuada pelos próprios estabelecimentos desempenha um papel determinante no processo de selecção de identidades (ou serão aparências?). Tome-se agora em conta o funcionamento diário da Zona Industrial como parte constituinte das dinâmicas do organismo urbano. Demarcam-se claramente dois períodos efectivamente descontínuos.
Por uma lado, deparamo-nos com uma actividade laboral diurna, que, aproximadamente, e de forma abrangente, dirá respeito ao espaço temporal compreendido entre as 7 e as 18 horas. A este período estarão associados fluxos migratórios de mão-deobra inerente ao sector secundário e terciário. Esta mão-de-obra deslocar-se-á de outras zonas da área metropolitana, sendo provável que a sua origem se encontre fora da freguesia de Ramalde. Estas mesmas pessoas, concluído o seu período diário de trabalho regressarão, então, às suas áreas de residência. Por outro lado, a crescente actividade nocturna da Zona Industrial afirma-se como referência incontornável. A afluência de “clientes da noite” terá início por volta das 22 horas, prolongando-se noite dentro, até ao novo nascer do sol. De uma maneira geral, e sob o ponto de vista sócio-cultural, este grupo encontrar-se-á bem distante do que o que sucede (ou precede). De modo superficial, poderemos dizer que estes dois universos de “nómadas”, pelo menos neste ponto, raramente se tocam13. Porém, num fenómeno que se aproxima do que acontece em feiras temáticas, encontramos, ainda, um outro suporte ao consumo “da noite”. As pequenas roulottes, onde se comercializam os tão oportunos “produtos alimentares” para quem chega, permanece ou parte após o seu período de diversão, ou trabalho, estabelecem, de certa forma, uma ponte entre dois ambientes distintos. Apesar da descontinuidade rítmica verificada entre dia e noite, a estrutura física deste espaço aparenta uma certa continuidade. A imagem exterior dos “contentores” industriais e de armazenamento de produtos permanece. A flexibilidade programática que o suporte físico apresenta fundamenta esta continuidade. No entanto, é de notar a afirmação cada vez maior, do funcionamento nocturno enquanto “imagem de marca” desta zona. O crescimento dos sectores do consumo e do lazer, apoiados em eventuais “lóbis” (palavra que concentra, hoje, todo um
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conhecimento face ao desconhecido) e determinados interesses, assim levam a pensar. Numa outra interpretação, verifica-se que a relação com o contexto urbano envolvente se processa através de momentos contrastantes, através de escalas desconexas. Apesar da abundante arborização das ruas da Zona Industrial, a transição física e sóciocultural para as áreas habitacionais circundantes ocorre de forma abrupta. O próprio pólo comercial, no qual o Norteshopping se apresenta como “cabeça de cartaz”, não estabelece conexões claras com a zona em causa14. Estamos perante um ambiente que afirma este espaço como um “parque temático” permanente, invadido diariamente por “forasteiros” e “turistas”. A questão que então se levanta, diz respeito à condição que a (ainda) denominada Zona Industrial, assume na estratégia urbana do Porto e respectiva área metropolitana.
Aparentemente não estamos perante um problema de estrutura física interior. Isto é, o corpo edificado não acarreta esta descontextualização por si só. Pelo contrário, e como atrás é referido, incorpora mesmo um potencial flexível face a diferentes apropriações. Já o sistema de interrelações com os acontecimentos urbanos, sócio-culturais e económicos envolventes, carece de análise crítica. Não só urge o reequacionamento das fronteiras e limites físicos, como da perti-
Zona (Ainda) Industrial • Luís Grilo • Dédalo 06 • Centrifugação
nência programática desta zona num organismo mais abrangente. Neste processo de transformação, serão os conteúdos destes “contentores” os mais adequados à realidade contemporânea? Deverá a estruturação urbana sob a orientação do PDM15, equacionar, de forma reflectida e eficiente, a redistribuição territorial de serviços e pequenas indústrias? Esperemos que tal não corresponda à apropriação da exploração imobiliária por parte de interesses meramente económicos, para a construção de mais um elegante e luxuoso complexo habitacional. Numa outra lógica, provocará a crescente exploração nocturna, a transformação deste espaço num “parque temático” orientado exclusivamente para o consumo e o lazer? Intervenções retiradas de catálogos sazonais serão de rejeitar. Exige-se um debate crítico, ponderador de decisões criativas, que aborde a introdução de universos estruturados na e estruturantes da condição urbana.
Notas e Fontes Bibliográficas
a reestruturação do tecido urbano em causa, sob o prisma do mesmo
+
acontecimento.
1
PENEDOS, Maria da Graça, Ramalde, Porto : Afrontamento, 1995,
pp. 7-9.
12
HOLLANDS, Robert G., “As identidades juvenis e a cidade. Newcastle e a
cultura Geordie”, in FURTUNA, Carlos (org.), Cidade, Cultura e Globaliza2
Idem. 12-13.
3
Ibidem, pp. 17-18.
ção, Oeiras : Celta, 1997, p. 208. 13
Noutra perspectiva, poderá dar-se o caso de, parcialmente, estes dois
grupos terem pontos de partida e chegada comuns. Poderão, mesmo, ser 4
A Avenida AEP, ou Avenida da Associação Empresarial de Portugal, foi
outrora denominada Via Marechal Carmona. Esta via rodoviária per-
os filhos de membros da mão-de-obra diurna que frequentam os estabelecimentos nocturnos.
tence ao IC 1, fazendo a ligação entre a Via de Cintura Interna, no nó de Francos, e a A28, em Matosinhos junto ao NorteShopping. A Estrada da
14
Circunvalação intersecta esta avenida na rotunda AEP.
tura viária que suporta a área, mas que, de igual forma, cria barreiras que
“Hoje a A.I.P. [fundada em Maio de 1849], que mudou o nome para Asso-
acentuam as escalas contrastantes que coabitam este espaço.
Relativamente a esta questão, é fundamental considerar toda a estru-
ciação Empresarial de Portugal, funciona como tal e como Câmara de Comércio e Indústria. Centra a sua actividade (feiras e exposições; reu-
15
niões de negócios; formação) em torno de dois grandes pólos: a Expo-
1ª Série, o Plano Director Municipal - PDM é um instrumento de
nor, em Matosinhos, e o Europarque (com intenso programa cultural)
Ordenamento do Território de natureza regulamentar, em que a
em Santa Maria da Feira, in DUARTE, Luís Miguel FERNANDES, João
sua elaboração é obrigatória e da responsabilidade dos Municípios.
Pedro Matos, , MAGALHÃES, Ricardo, Porto : cidade com identidade e
O PDM tem como finalidade estabelecer o modelo de estrutura espacial,
futuro, Porto: C. M., 2004.
assente na classificação do solo, consubstanciando-se numa síntese da
De acordo com o Decreto de Lei 380/99 de 22 de Setembro da
estratégia de desenvolvimento e de ordenamento local, integrando as 5
FERNANDES, José A. V. Rio, “Desindustrialização, Terciarização e Rees-
opções e outros ditames de âmbito nacional e regional.
truturação: o caso do Porto”, in ALVES, Jorge Fernandes (coord.), A indústria portuense em perspectiva histórica : actas do colóquio, Porto : CLC, 1998,
• ALVES, Jorge Fernandes (coord.), A indústria portuense em perspectiva
pp. 443-457.
histórica : actas do colóquio, Porto : CLC, 1998. • DUARTE, Luís Miguel FERNANDES, João Pedro Matos , MAGA-
6
Idem, p. 445.
7
Ibidem, p. 454.
LHÃES, Ricardo, Porto : cidade com identidade e futuro, Porto: C. M., 2004. •
FURTUNA,
Carlos
(org.),
Cidade,
Cultura
e
Globalização,
Oeiras : Celta, 1997. • PENEDOS, Maria da Graça, Ramalde, Porto : Afrontamento, 1995.
8
FERNANDES, José A. V. Rio, “Desindustrialização, Terciarização e
Reestrururação: o caso do Porto”, in ALVES, Jorge Fernandes (coord.),
• Imagens - Fotografias de Luís Grilo.
A indústria portuense em perspectiva histórica : actas do colóquio, Porto : CLC, 1998, p. 454. 9
Veja-se os lamentáveis acontecimentos ocorridos no ano de 2007 na
Zona Industrial, que impregnaram o ambiente da mesma de clima de insegurança, afastando algum do seu público habitual. 10
Veja-se a referência feita a determinados locais nocturnos existentes
em páginas web associadas ao turismo no porto, como http://portoxxi. com. 11
A propósito desta temática, considere-se todo o debate exponên-
ciado pelo Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, assim como toda
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PONTO DE ORIGEM? Texto+ Pedro Neto As migrações não são um fenómeno recente e os motivos das mesmas não variaram substancialmente ao longo da História, registou-se sim uma adaptação às novas circunstâncias. Se no “Início” se migrava em busca de melhores terras de cultivo, por focos de caça, ou pela sede do desconhecido, contemporaneamente a situação não se mostra distante. Migra-se por uma oportunidade de trabalho, pela vontade de uma vida melhor, por um amor louco, por motivos políticos, ou apenas pela necessidade de experimentar ou descobrir algo novo. Independentemente da razão, estes deslocamentos massivos de populações são actualmente dirigidos quase em exclusivo para as grandes metrópoles - e essas: grandes, cada vez maiores, mais diferentes e plurais. Este processo de “ir para a cidade”, que é no fundo uma “centripetação” à escala global, implica na maioria dos casos uma simultânea centrifugação dentro das mesmas (assim como uma prévia experimentada aquando da partida do ponto de origem). Ou seja, a grande maioria dos recém-chegados, uma vez na cidade são centrifugados espacial, social, económica, culturalmente - empurrados para zonas que os remetem a um rol de características semelhantes. Do mesmo modo que enquanto processo químico a centrifugação separa os vários elementos que compõe uma dada substância, também a cidade separa (química-naturalmente) os seus intervenientes. Esta distribuição traduz-se pela criação
Ponto de Origem? • Pedro Neto • Dédalo 06 • Centrifugação
de zonas ou bairros relacionados com etnias, com grupos sociais, com situações económicas, com tipos de actividades, (...). É por isso fácil, uma vez numa grande cidade, identificar essa zonificação de acordo com os seus respectivos agentes: sejam turcos, árabes, judeus, ingleses, ou portugueses, sejam estudantes, intelectuais, artistas, boémios ou chics. Estes grupos nem sempre são estanques entre si e os demais, sendo que se constatam frequentemente atributos ou especificidades sobrepostas (o bairro judeu concentra normalmente a riqueza e envolve negócios como a joalharia logo orientado para um público dito chic, assim como o bairro artista é por norma boémio e talvez mais cosmopolita). Cada um destes bairros ou zonas desenvolve a sua própria orgânica, sendo o seu funcionamento intrinsecamente relacionado com as referidas especificidades geradoras desse mesmo espaço - por sua vez aliado a outras redes sociais, infra-estruturas, etc. A multiplicidade cultural que a experiência de uma grande cidade concentra, oferece um sem número de vivências, de emoções, de lugares, de sensações inclusive a de estar nas mais diversas latitudes (“vá para fora cá dentro”). A cidade torna-se um “lugar de lugares”. Nesta nova condição urbana nem tudo é tão idílico quanto se possa pensar. A pluralidade, que se crê ser algo saudável numa sociedade globalizada, acarreta questões profundas que conduzem a conflitos de
vária índole. Conflitos difíceis de solucionar porque impregnados na cultura da própria urbe desde a sua (re)formulação, e ligados na maioria dos casos à exclusão social - económica e étnica, e por fenómenos adjacentes – gentrificação, segregação, ghettização. Observe-se o barril de pólvora no banlieue parisiense, situação que se iniciou desde Haussman quando este implementou o seu plano urbanístico (e em que o Movimento Moderno contribui com mais “achas para a fogueira”). Ao abrir Paris aos grandes boulevards a burguesia deslocou-se para o centro, “deportando” assim as camadas mais baixas da população para a periferia, retirando-lhes o “direito à cidade” (Lefebvre). Nessa mesma descontente periferia juntaram-se as gerações de imigrantes (portugueses, argelinos, marroquinos, senegaleses...) ao longo dos séculos seguintes. Conclusão: factores suficientes para um clima de tensão crescente com repercussões e manifestações violentas. Nota-se que a nova cidade que se tem vindo a desenvolver não é mais um sistema homogéneo, mas sim um conjunto de espaços pontualmente idênticos num suporte totalmente heterogéneo, e em que a convivência entre uma tal pluralidade se torna difícil de analisar, planear, governar...bem como de prever as suas futuras consequências. A progressiva concentração urbana aporta várias questões à medida que se torna cada vez mais difícil separar antigos e novos procedimentos num momento em que as cidades contêm cada vez mais especificidades que urgem ser tidas em conta. A realidade é que os fenómenos enunciados não são totalmente recentes. O permanente crescimento dos aglomerados urbanos (paralelo às migrações), apresenta a sua nova face sobretudo na dimensão por esses atingida – a grande escala que é ultrapassada a cada momento, alcançando proporções brutais e assumindo-se como um processo imparável sem rumo definido.
Devido à sua extensão espacial e concentração de riqueza, de bens, de pessoas, estas novas metrópoles contêm praticamente todos os ingredientes para que consigam sobreviver num regime de quase autonomia do país/território no qual se inscrevem, muito à imagem das antigas Cidades-Estado. (Estas cidades auto-suficientes sobretudo a nível político e económico, mas também cultural e social, atingiram o seu máximo expoente muitos séculos atrás, sendo das mais importantes Atenas, Tróia ou Esparta e mais tarde Génova ou Veneza. Possuíam a sua própria região de acção e de notar, código linguístico próprio – ou dialecto.) A situação presente faz acreditar que cidades como Paris, Londres, Berlim, Barcelona, (...) possam satisfazer essa mesma condição. Conectando o conceito de Cidade-Estado, e o de que esse comporta, ao cosmopolitismo que essas cidades encerram, é da máxima importância perceber ao que pode conduzir todo este processo. As características culturais de origem misturam-se e adaptam-se aos seus numerosos e variados agentes; sendo que o território (área/região metropolitana) que ocupam, permite essa diversidade dentro de um mesmo espaço. Tendo em conta que qualquer grande cidade à volta do globo tem residentes de 95 nacionalidades diferentes e, consequentemente formas de estar, também diferentes, pergunta-se que padrões culturais e sociais se estarão a forjar agora. Que repercussões terá esta centrifugação (dentro da centripetação concentração em focos urbanos) na comunicação e no viver a cidade. A zonificação dos vários actores do tecido urbano em conjunto com a exclusão social e étnica através da segregação cria isolamento. O isolamento leva a uma atitude de afirmação identitária radical (situação que se regista de forma crescente) nessas novas “ilhas” e parece ser a expressão-consequência dessa mesma circunstância. O painel identitário e diferenciado que as recentes políticas metropolitanas desenvolveram
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não só potenciará novos conflitos como levará à quase independência de certas áreas (seja quando o caos se instala e a polícia não pode entrar para conter os ânimos, e olhe-se mais uma vez o exemplo parisiense, ou seja em condomínios fechados –as gatted communities ou alphavilles). Aproxima-se uma guerra urbana. O planeamento e a respectiva arquitectura crê-se que sejam dos principais factores para a criação da cidade em “estado de sítio”. O primeiro (planeamento) pelas razões já enunciadas, o segundo (arquitectura) pelos modelos de acção pontual. De referir os bairros camarários (ou tradicionalmente chamados de “sociais”, termo absurdo pois todos os bairros o são): complexos de habitação massiva, dispendiosa e segregária, como catalisador desses mesmo distúrbios e afastamento da realidade central. O método de produção standard não atende às características de quem para esses é enviado, e ainda que uma integração no novo contexto seja necessária, também o é o processo para que essa aconteça. As novas segregações urbanas estão a dar azo ao afastamento das várias comunidades, e na falta de integração, estas reproduzem os seus padrões culturais primeiros, misturados com os segundos - impostos, e de forma distorcida. A linguagem, porque elemento primordial na comunicação, é a mais visível e susceptível a essa transformação (veja-se o Spanglish em Los Angeles - em que o afastamento dos latinos em relação aos norte-americanos produziu um novo dialecto). A língua não é mais um factor de união, e o simples diálogo (e para que esse aconteça é necessária a mediação primeira da linguagem) torna-se à partida obsoleto. Se a estrutura da cidade se reflecte na linguagem, também essa, por efeito ricochete, influenciará a urbanidade. Pensa-se então que o mosaico urbano contemporâneo não será o de uma Cidade-Estado mas o de uma “Estados-Cidade”. Cada zona terá a sua fronteira
Ponto de Origem? • Pedro Neto • Dédalo 06 • Centrifugação
(virtual ou real), o seu código linguístico, bem como produção cultural (inclusive a arquitectónica) próprios. Alegoricamente, com o fim da Torre de Babel criaram-se os idiomas e o homens foram espalhados pela terra. Presentemente, esses concentram-se, diferenciados, sem comunicação possível, obrigados a partilhar um distanciamento entre si e a suportar as respectivas consequências, num mesmo espaço urbano.
Fontes Bibliográficas
+ • V.A., Transurbanism, V2_Publishing/NAI Publishers, Rotterdam, 2002 • LEFEBVRE, Henri, La Révolution Urbaine, éditions Gallimard, Paris, 1970 • Imagens retiradas do filme “La Haine” - Mathieu Kassovitz, 1995)
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“TRÓPICO DA DESAVENÇA” Imagem • “Maravilhosos Céus Porteños” • Buenos Aires: Balvanera • Março 09
Texto+
Francisca Durão “Cidade dos olhares, dos cheiros e dos sons... Cidade do “do jogo e do amor”1. “Das empenas, do cheio e do vazio”2 também. Do espaço “entre”, da eminência, da vertigem. Espaço que “recua”, como diria Balzac, “para nos deixar passar”3. Ou “espaço que deixamos atrás de nós”4. Cidade do não palpável. Cidade da chuva e da tempestade. Cidade humana. “Cidade nação”5... Do calor, da humidade... Da humanidade... Diomira... “cidade cujas belezas residem noutras cidades também”6 . Cidade dos desejos... Isidora... “onde os desejos são já recordações”6. Zaira: “é feita de relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do passado”6. Cidade da memória. Maurília, “onde a nostalgia só tem encanto por fazer parte de um passado inalcançável”6. Zora: “quem
a viu já não a poderá esquecer”6. Aglaura, “cidade que se perde por falta de palavras para a fixar”6. Leandra: “cidade de nativos e imigrantes”6. A quem pertence agora?... Irene, são muitas: “uma para quem por ela passa sem entrar, outra para quem é tomado por ela e já não sai e outra a que se deixa para nunca mais voltar”6... Cidade de las miradas. Cidade das sombras... das sombras das medianeras entre pátios... Cidade dos jacarandás... Lilás... Mantas coloridas que povoam o chão das avenidas na Primavera Porteña7: são lilases. Cidade da cor. Cidade das formas. Cidade dos símbolos... Tâmara, “porque nela os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas”6 . “Cidade dos anónimos”8 . Zermude, “onde é o humor de quem a olha
“Trópico da Desavença” • Francisca Durão • Dédalo 06 • Centrifugação
que lhe dá a sua forma”6. Filias, “que se subtrai ao olhar se não a apanhamos de surpresa”6. Cidade reverso... “que tem um outro lado que nem sempre vemos”6... indissociável, como as duas faces de uma folha de papel... é ela já Moriana. Cidade de fragrâncias, de odores, de “respiros” e suspiros... Dos ventos: da Sudestada, do Pampeano... Ventos que ecoam enlouquecendo... E que enlouquecem as “gentes” do Sul, soprando pelos céus... “Cidade pestilenta”9. Cidade dos céus. Bersabeia, “são duas: a cidade celeste do abandono e a infernalmente projectada”6. Cidade do tempo. Cidade que varia com o passar do tempo. Andria, “nem ela nem os seus céus permanecem sempre iguais”6. Cidade dos ecos, dos latires e da música... Cidade dos pregões, pregões das manifestações... Manadas de cães que se passeiam na rua pela mão de tristes paseadores de perros10... Cidade das Mães11... Cidade dos bandoneones... Cidade do choro. Cidade da música... Sons que enchem vazios... vazios que enchem corações... da sociedade. Raissa, “cidade infeliz que contém uma feliz... um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e se desfaz, e nem sequer se sabe que existiu”6... Cidade permuta. Cidade troca... Eufémia, “onde se partilham memórias a cada solstício e a cada equinócio”6... Ersília: “cidade, teia de relações”6... procuram elas uma forma. “Cidade sem limites”12, cidade pampa. Leonia, cidade expansível: “cobre o seu perímetro com os dejectos que dela resultam. Vive no perigo da derrocada”6. “Cidadeespaço”. Cecília: “é o espaço que se estende entre uma cidade e outra”6. Cidade contínua. Pentesileia “expandese por milhas e milhas em torno de uma sopa de cidades diluída na planície. Um adensar de construções de magras fachadas, altíssimas ou baixíssimas, como um pente desdentado, parece indicar que a partir daí as malhas da cidade irão apertar-se. Mais continuamos, mais terrenos vazios”... Potreros13... “Ela é só a periferia de si própria e tem o seu centro em toda a parte”6. “Cidade dos vários centros”14. Cidade oculta: Olinda, “a que cresce em círculos
concêntricos”6. “Cidade dos desejos, porque se multiplicam os seu caminhos”6... as vontades... é Doroteia. “Atenas del Plata”15 ... “que se desenvolve entre duas imensidões: o rio e a Pampa”16 . “Cidade tecida na fronteira entre dois desertos”6, é ela Despina. De coisas, de outras coisas, de coisas entre coisas, de “entre”... Cidade da esperança, com ou “sem ela”17, e do infortúnio... “Do romance e do crime”18... Do milagre e da tragédia... do sagrado e do profano... “da civilização e da barbárie”19... Dos olhares e das formas, dos cheiros e do tempo, dos sons e da relação. Como se movem, como se tecem “entre” a realidade e o idílio... ...de isto, são feitos... estes Aires...”20 Buenos Aires estende-se regular e geométrica entre a imensa planície Pampeana e o enorme leito do rio de La Plata. A sua segunda fundação, que terá estado na origem da forma que lhe conhecemos actualmente, data de finais do século XVI. Indígenas que ocupavam o território, mesclar-se-iam com os descobridores oriundos do “Velho Continente” desencadeando um processo de mestiçagem que caracterizaria a população em anos vindouros. Começaria aqui a velha história dos confrontos traçados entre uma cultura que deambulará entre a civilização e a barbárie. Em finais do século XIX seria alvo de aluviões migratórios que, oriundos de distintas localidades Europeias, viriam em busca de um “novo mundo”. Uma Buenos Aires que inicia o passado século com a importação de modelos que lhe eram alheios. O percurso fulminante a que se submete deriva também de uma força centrípeta impulsionada pelas realidades desse “Velho Mundo”. A ausência de um tempo equilibrado para a construção serena do que é a “Cidade”, revelar-se-ia puro acto de Surrealismo. Como nos sonhos, tantas vezes evocados por André Breton, onde para além do cruzamento de diferentes contextos, não existe uma sucessão temporal racional.
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Imagem • “El Potrero” • Buenos Aires: La Boca • Agosto 06
A sobreposição de serigrafias de modelos importados que lhe fora imposta neste momento, imprimir-lheia um eclectismo originando não só uma crise de identidade ao nível cultural e arquitectónico como a nível social e urbano... Uma entropia ensaiada ao som do cruzamento híbrido de culturas estaria na base, assim, da “Buenos Aires Surrealista” a que me refiro. Esta condição introduzir-lhe-ia uma vertigem: a de estar no limite entre ser sugada pela própria Pampa, ou a de se desamarrar, como uma ”ilha flutuante” que lhe permita ir ao encontro desse “Velho Mundo” que a provoca e a desconcerta.
A capital Porteña que vivemos agora, evoca também o resultado da sequência de seis golpes de Estado desencadeados ao longo de cerca de cinquenta anos do século XX (1929-1983) e o retorno a uma calma trazida pela derrota das Malvinas que devolvera ao espaço público a possibilidade de se voltar a ocupar massiva e livremente ao modo dos tempos Peronistas (1946-1955), momento em que a prática do “delírio” da posse da cidade (concedida pela tentativa de conquista da simpatia das massas por parte de Governo) faria proliferar a ocupação massiva do espaço público. Ocupação esta, mais tarde ensaiada pelas Manifes-
“Trópico da Desavença” • Francisca Durão • Dédalo 06 • Centrifugação
tações das Mães de Maio que entre 1977 e 2006 reivindicariam semanalmente, pelas ruas porteñas, o aparecimento dos seus filhos desaparecidos durante a última ditadura. Durante os cinquenta anos evocados a alteração da projecção da Capital Federal num plano horizontal seria verificada tardiamente. No restante período, manter-se-ia estática. No entanto, a Buenos Aires de 1976 (data em que se inicia a mais sangrenta das ditaduras a que terá estado sujeita): “a do medo”, não seria a mesma de 1946 (data em que Juan Domingo Perón ascende à presidência): “a da ilusión”... nem tampouco a de 1929 (data em que a Grande Depressão Mundial terá estalado atingindo também a Argentina onde se dará início à chamada “década infame”): “a do desalento”. Tal facto, induz-me a pensar que o verdadeiro indicador da identidade cultural e urbana que povoa a cidade reside precisamente no “espaço entre objectos”, que deverá “ser entendido como elemento significante”21, onde se geram tensões capazes de lhe imprimir a dinâmica que a caracteriza actualmente. O seu corpo tece-se de relações existentes “entre” a matéria urbana concreta fazendo com esta perca todo o seu valor enquanto indicador de uma identidade legível. Será já a Buenos Aires “significante”, o negativo do seu construído, o negativo da sua quadrícula repetida exaustiva e indiferenciadamente carregada de distintos modelos onde se revela impossível a leitura de uma unidade, tornando-a múltipla e particular. Como já dizia Aldo Rossi: “há um elemento irracional no crescimento das cidades que provem da vontade secreta e incontrolável das manifestações colectivas”22 . Talvez seja ele o verdadeiro indicador de uma identidade cultural e urbana. O que me leva a crer que Buenos Aires esteja agora, ainda por construir... Buenos Aires... “Densos Aires”... Aquela que se entregara ao “mares” colhendo toda a força da sua influência e recursos por meio de uma força centrípeta, para os olvidar depois... Explodiu agora, em direcção
aos “maravilhosos céus porteños”23 e avança já para a planície Pampeana galopando ao som de uma força centrífuga, invadindo silenciosamente o restante corpo de uma Argentina, outrora esquecida, ao modo de um “finger plan” que ousa pronunciar-se em direcção ao Oeste Sul-Americano. Face à indecisão perante a escolha entre dois mundos, o Porteño comum escolheu abraçar o íntimo do território que nem sempre lhe pertenceu... Entre ambos, jaz um gigantesco trópico: aquele que a faz agora repudiar a sedutora “velha” Europa, assumindo, quiçá, uma compaixão para com a Pampa que lhe comprometerá esta sua puberdade. Deixei-me embriagar pelo seu corpo tão “não-palpável” e ainda tão efémero... “América-menina”... E desprendi-me às custas dessa força centrífuga emanada pela “Europa-mulher” e a avassaladora sedução que exerceu sobre mim a densidade desse corpo incontrolável e mutante. Lá ao longe, o casario que se pronuncia sobre o rio... Aqui: o rio olvidado. O cheiro a castanhas pela Santa Catarina... O sabor a mate partilhado pelas veredas da Calle Defensa. O amarelo, Porto, da tua luz nocturna... E os deliciosos malbecs saboreados ao som de bandoneones que ecoam pelos entardeceres porteños. Os manjericos anunciando arraiais praticados em honra das festas S.Joaninas... Casais de anciãos que se abraçam, como se fosse o primeiro encontro, seguindo o compasso binário que ditam os pianos instalados em cima dos passeios: milonga no meio da rua... Encara, ela própria, a mestiçagem da cidade: a batida rebelde do candombe africano fundira-se com as polcas europeias que ao encontrarem um porto perdido no Sul do mundo, ganharam a forma de uma despedida. A despedida da vida que deixariam para nunca mais voltarem. Da mescla das coisas perdidas nascera o tango. Três cantos do universo, assim reunidos numa celebração profana ao encantador desborde da Pampa sobre o sumptuoso rio de La Plata. Preenche ela um vazio, gerando uma dinâmica que adquire expressão
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precisamente no “espaço que reside entre objectos”. O casario, a milonga, as castanhas, o mate, o amarelo, os jacarandás... Lilases... Também ele, o Porto, já tão lilás, de jacarandás... os mesmos da suave felicidade que nos trás a Primavera Porteña... Entre ambos: o maldito trópico...
9
Buenos Aires”. Buenos Aires: Club del Libro Amigos del Libro Americano, 1940, p. 118, 215. 10
Esta actividade constitui, de facto, um meio de subsistência na Argen-
tina, em especial na capital Buenos Aires. 11
Agora ele tão lá no “Sul”... o Porto. E já tão discreta, a “exótica” Buenos Aires....
HUDSON, William Henri – “Far Away and Long Ago” cit. por MAR-
TINEZ ESTRADA, Ezequiel – “La cabeza de Goliath: microscopia de
Afirmação alusiva às manifestações das “Madres de Mayo”, associação
constituída por mães que reivindicaram, entre 1977 e 2006, o aparecimento dos seus filhos “desaparecidos” durante a ditadura militar praticada na Argentina entre 1976 e 1983. 12
Álvaro Siza faz referência à “sensação surpreendente da ausência de
Notas +
um limite” em Buenos Aires in SIZA, Álvaro – “Imaginar a evidência”.
1
Lisboa, Edições 70, Março 2000, p. 21.
MARECHAL, Leopoldo – “História de la Calle Corrientes”. Buenos
Aires: Editorial Paidós, 1967, p. 98. 2
TESTA, Clorindo – entrevista por CHARTERS MONTEIRO, João
– “Clorindo Testa, Arquitecto-pintor” in “Arquitectura e Vida”. Lisboa: Loja da Imagem, Abril 2008, nº 92, p. 17. 3
BALZAC, Honoré – “Louis Lambert” cit. por BACHELARD, Gaston
– “A Poética do Espaço”. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1998, p. 232.
13
Potrero: terreno baldio outrora utilizado para a guarda de gado, de
existência pontual, mas perene, na cidade de Buenos Aires. 14
SIZA, Álvaro – cit. 12, p. 21.
15
MARTINEZ ESTRADA, Ezequiel – cit. 5, p. 128, 176, 213.
16
ESCARDÓ, Florencio – “Geografia de Buenos Aires” . Buenos Aires:
Eudeba, 1966, p. 20. 4
Gaston Bachelard faz referência à rectificação exercida por Honoré de
Balzac sobre o texto relativo à cit. 4 em que o autor substitui a expressão
17
CORBUSIER, Le – conferência “Buenos Aires, peut-elle devenir l’une
”fazia recuar o espaço diante dele” por “deixava o espaço atrás de si” in
des plus dignes villes du Monde?” , 18 Outubro 1929 in CORBUSIER, Le
BACHELARD, Gaston – “A Poética do Espaço”. 1ª ed. São Paulo: Martins
– “Précisions: sur un état présent de l’architecture et de l’urbanisme”.
Fontes Editora, 1998, p. 232.
Paris: Editions Vincent, Fréal, imp. 1960, p. 199.
5
MARTINEZ ESTRADA, Ezequiel – “La cabeza de Goliath: microsco-
18
Eduardo Mendoza denuncia o excessivo racionalismo do plano tra-
pia de Buenos Aires”. Buenos Aires: Club del Libro Amigos del Libro
çado para Barcelona e reivindica necessidade da existência de espaços
Americano,1940, p. 20, 159.
para o decorrer da acção improvisada “do romance e do crime” in MENDOZA, Eduardo – “A Cidade dos Prodígios”. 4ª ed. Lisboa: Publicações
6
Todas as citações são alusivas às cidades “imaginadas” e descritas por
Italo Calvino in CALVINO, Ítalo – “As Cidades Invisíveis”. 3º ed. Lisboa: Editorial Teorema, 1999, p. 11, 12, 14-15, 33-34, 69-70, 80-81, 127-128, 68,
Dom Quixote, 1997, p. 169. 19
SARMIENTO, Domigo Faustino – “Facundo, ó, Civilización y Barbá-
107, 113-114, 152-153, 151-152, 78, 115-117, 154-155,158-159, 132-133, 21-22,
rie en las Pampas Argentinas” Buenos Aires : Centro Editor de América
respectivamente.
Latina, 1979.
7
20
Porteño: relativo a Buenos Aires;
DURÃO, Francisca – “Buenos Aires: estrutura social vs estrutura
urbana – Influência do percurso politico e económico Argentino na ORTEGA y GASSET, José cit. por MARTINEZ ESTRADA, Ezequiel –
estrutura Social e infra-estrutura Urbana do Litiral Pampeano: 1929-
“La cabeza de Goliath: microscopia de Buenos Aires”. Buenos Aires: Club
1983”. Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. 2008. Prova
del Libro Amigos del Libro Americano,1940, p. 215.
final para Licenciatura em Arquitectura, p. 9-10.
8
“Trópico da Desavença” • Francisca Durão • Dédalo 06 • Centrifugação
21
Nuno Portas denuncia a incapacidade de se “pensarem os espaços
consolation” in CORBUSIER, Le – “Precisións: sur un état présent
entre objectos como elementos significantes” in PORTAS, Nuno – “A
de l’architecture et de l’urbanisme”. Paris: Editions Vincent, Fréal,
Cidade Como Arquitectura: apontamentos de método e critica”. 2ª ed.
imp.1960, p. 4.
Lisboa: Livros Horizonte, 2007, p. 56 e sublinhará o conceito já exposto por Fernando Távora afirmando que “a estética banalizada do estilo
• Imagens – Fotografias de Francisca Durão.
internacional o tinha deixado como ‘resíduo’ [ao espaço] em vez de significante protagonista do jogo dos planos e volumes” in PORTAS, Nuno – “Prefácio à edição de 1982” in TÁVORA, FERNANDO – “Da Organização do Espaço”. 4ª ed. Porto: FAUP publicações,1999, p. XXIII. 22
ROSSI, Aldo – “A Arquitectura da cidade”. 2ª ed. Lisboa: Edições Cos-
mos, 2001, p. 242. 23
Perante uma Buenos Aires cujas ruas define como “sans espoir”,
Le Corbusier surpreende-se: “Le ciel argentin? Oui, la seule grand
Imagem • “El Puerto” • Buenos Aires: Puerto Madero - Darsena Sur • Abril 07
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DA ORGANIZAÇÃO AO CAOS Texto+
Tiago Casanova
O conceito de centrifugação advém da Física, sendo um processo de separação em que a força centrífuga relativa gerada pela rotação da amostra é usada para sedimentar sólidos em líquidos, ou líquidos imiscíveis de diferentes densidades, separando-os.1 Mas de que maneira podemos converter este conceito para o panorama da arquitectura? Quando leio esta definição, as palavras que sublinho são separação e a própria palavra centrifugação. Desconstruindo esta palavra temos duas centro e fuga, logo depreendemos que estamos a falar da fuga do centro, e é aqui que entra a separação, mostrando o modo como é feita essa fuga. Trata-se da reorganização da sociedade e dos equipamentos fora do centro, agrupando as várias classes sociais e actividades, separando a moradia da zona de trabalho e de lazer. Quanto ao centro transforma-se num género de parque temático2, baseado em processos de embelezamento como a turistificação e gentrificação. O desenho visa mostrar-nos o sentido paradoxal desta questão, fazendo-nos questionar o que é afinal a organização e o que é o caos. Da organização ao caos é o título desta composição, onde os diferentes elementos se encontram organizados e agrupados de igual modo dentro de um rectângulo, mas que lentamente se vão desorganizando e deformando até perderem a sua identidade original, saindo fora do rectângulo,
Da Organização ao Caos • Tiago Casanova • Dédalo 06 • Centrifugação
perdendo as suas linhas de base e atingindo o caos. Esta é a leitura que fazemos naturalmente desta composição em termos formais, mas se tentarmos transpô-la para a cidade, pensando na utilização e vivência das pessoas, vemos que as formas nos querem dizer o oposto do seu significado imediato. Se tentarmos ler o desenho ao contrário e pensarmos que os módulos agrupados e separados são o caos e a mistura de elementos é a organização, estamos muito provavelmente mais próximo daquilo que é a realidade das cidades em termos de intercâmbio cultural e vivência humana. Sem querer dar exemplos, por achar que estamos perante um problema demasiado complexo, pretendo apenas que cada um analise o desenho, em forma de exercício mental crítico, e que de um modo pessoal o transponha para a sua vivência na cidade e tentem perceber o que é para vocês a organização e o que é o caos, e se nestes processos de centrifugação estamos a caminhar do caos à organização, ou da organização ao caos. Notas + 1
Definição de centrifugação, wikipédia.
2
Nota retirada da comunicação do Professor Álvaro Domingues, duran-
te o Workshop de fotografia um outro olhar sobre o espaço público da Ribeira, no dia 5 de Maio de 2009, Praça da Ribeira. • Desenho original do autor.
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TRÊS DANÇAS PARA UM ARQUITECTO Texto+
Ana Renata Polónia “No começo era o movimento. /Não havia repouso porque não havia paragem do movimento. (…) Era esquecer o movimento que continuava em silêncio no fundo dos corpos. Microscopicamente. Porque, como se passaria do movimento ao repouso se não houvesse já movimento no repouso? / No começo não havia pois começo.” 1
Centrifugar implica um movimento que separa matérias centrípetas atirando-as para lugares longínquos e imprevisíveis. Sugiro então que se lancem neste tema de se afastarem um pouco do vosso “centro”, para que o possam ver de outras perspectivas… Dança. Arquitectura. As opiniões divergem no que toca à possível ligação entre estas disciplinas. Muitos interessam-se quando tomam conhecimento do meu envolvimento com ambas e referem terem muito em comum, outros parecem não encontrar algo que as relacione e comentam o facto com um simples e conclusivo “ah…”. Geralmente, os bailarinos são mais curiosos em relação à arquitectura, do que os arquitectos em relação à dança. Enquanto praticante de dança e estudante de arquitectura, penso que é inegável uma relação, que pode ser bastante complexa e talvez pouco relevante para quem nunca teve contacto com as duas artes (considerando a arquitectura como arte, mas isso seria outra discussão). No entanto, acredito que para os poucos que possam
experimenta-las de algum modo ao longo da sua vida, esta dialéctica possa fazer algum (ou todo) sentido. “A arquitectura parte de um espaço à espera de um corpo e a dança parte de um corpo à procura de um espaço. Essa espera e essa procura têm tempos diferentes…” 2 Efectivamente os bailarinos têm uma percepção do espaço muito diferente da que temos no quotidiano. Quando dançam têm de ter plena consciência do seu campo de acção, e disso depende tudo, inclusive o seu próprio equilíbrio. Intencionalmente ou não, as coreografias resultam sempre da relação entre movimento e espaço. É devido a este confronto, entre a arte que se move constantemente e a arquitectura que a acolhe na sua condição estática, que para quem dança o espaço será sempre o ponto de partida, mas também o seu maior condicionante. Se efectuarmos um movimento em algo diferente do habitual apercebemo-nos de coisas que nunca tínhamos sentido. E quando se dança desafia-se o equilíbrio, a força da
Três Danças Para Um Arquitecto • Ana Renata Polónia • Dédalo 06 • Centrifugação
gravidade, pelo que o plano do chão e os planos que lhe são perpendiculares passam a ser premissas qualitativas do movimento. Quantas vezes experimentaste atirar-te para o chão? Quantas vezes caminhas descalço no teu dia-a-dia? Quantas vezes te deitas num pavimento aparentemente desconfortável? Com o aparecimento da dança contemporânea (e cada vez mais) são muitos os coreógrafos que tentam levar ao limite a exploração espacial. Hoje em dia qualquer sítio pode servir de inspiração e pode mesmo suportar um espectáculo, e nem sempre os teatros são os espaços ideais, mesmo que o sejam na sua versatilidade de tornar quase tudo possível, há coreografias que necessitam desenvolver-se num local específico, real, invés da recriação cenográfica de certo ambiente. A este tipo de espectáculo está normalmente associada a elaboração de vídeos de dança (muito explorados nos anos 90), já que por vezes a excentricidade do “palco” põe em causa o “sítio da plateia” e consequentemente o conforto do espectador (entenda-se conforto não só no seu significado imediato, mas também como capacidade de compreender aquilo que está a ver). Estas experiências podem tornar-se extremamente interessantes, tanto para quem as interpreta, como para quem as observa e, talvez em especial, para quem está ligado à arquitectura, já que propõem um “uso” inesperado para aqueles locais. Não quero, porém, relativizar o valor dos espectáculos ao vivo, os vídeos e filmes podem ser muito práticos e pertinentes em certos casos, principalmente para quem não tem o hábito ou a possibilidade de se deslocar para ver dança, mas
não podem competir com a intensidade de sentir uma coreografia no presente, num momento único e irrepetível. Para a maioria dos arquitectos, talvez nestes espectáculos (curiosamente todos “deslocalizados”) se possa descodificar mais facilmente o binómio dança / espaço, o viver inesperadamente tudo o que nos rodeia, como um sorver momentâneo do tempo, num acto desesperado de não deixar escapar nada e tentar atingir tudo através do nosso corpo. Sendo assim, gostava de sugerir alguns projectos, como proposta àqueles que se possam interessar por esta interdisciplinaridade artística. 01 • Reines d’un jour (1996), um filme de Pascal Magnin com coreografia de Marie Nespolo e Christine Kung. Gravado nos Alpes suíços, mostra pequenas danças, feitas de gestos simples, como bailarinos que caiem e rebolam por uma colina, mas que não fariam qualquer sentido se acontecessem noutro lugar que não aquele. Jamais uma sala de espectáculos poderia reproduzir a amplitude de uma montanha, a genuinidade dos seus habitantes e dos seus costumes. 02 • Dos Alpes viajemos para norte, até à Escola RITO em Leuven, Bélgica. O edifício do arquitecto Henry van de Velde acolheu a coreografia de Anne Teresa De Keersmaeker, dando forma ao filme Rosas danst Rosas de Thierry De Mey (1997). Esta coreógrafa capta pequenos movimentos comuns e explora-os através da repetição e do ritmo, criando uma dinâmica única. Uma linguagem muito forte, mas atrevo dizer que este edifício deu um novo sentido à coreo-
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grafia, várias vezes representada noutros locais. A Escola Rito não foi apenas o cenário da película, passou a integrar a própria dança. A ruína, a cor, a própria expressão dos materiais construtivos, tudo constitui a plena exaustão harmoniosa dos movimentos. É também interessante perceber a exploração de diversos pontos de vista, potenciada pela câmara de filmar, que pode “flutuar” entre bailarinas e “persegui-las” nos diferentes espaços, enquadrando momentos que nunca poderiam ser vistos de outra forma. 03 • E depois desta ponte entre a paisagem natural e a arquitectura de van de Velde, proponho uma outra ponte, entre duas cidades, construída por Fernando Lopes (Lissabon Wuppertal Lisboa, 1998) num pequeno documentário sobre uma das visitas de Pina Bausch e da sua Companhia à capital portuguesa, local onde se inspirou para um dos seus mais emblemáticos trabalhos, MASURCA FOGO (coreografia que mais tarde Almodóvar usou como cenário no filme Hable con Ella). Para além do curioso olhar do cineasta, é bastante pertinente neste documentário a transposição do trabalho desenvolvido na Sala de Ensaios da Companhia Nacional de Bailado, para o palco da Tanztheater Wuppertal. De um espaço amplo e cheio de luz, com um varandim que permite aos curiosos espreitar (um deles é Lopes) “voamos” para a sala de espectáculos, escura, cheia de mistério e poesia, onde a luz foca os bailarinos e a sua dança. Paralelamente, também existe esta dialéctica entre as duas cidades, o que torna este documentário numa perspicaz e permanente justaposição de ambientes. Está lançado o desafio. Àqueles que não conhecem, aos que conhecem e não recordam, aos cépticos e aos crentes. Aos que gostam de dança e aos que não gostam, mas gostam de espaço e de viver espaço. Aqueles que esperam perceber tudo, lamento desiludir-vos, talvez não compreendam nada. Os que não esperam interessar-se, espero que suscite um “ah! Afinal está aqui qualquer coisa!”. Mas para aqueles que não
quiserem ver nenhuma das propostas, deixo um conceito, uma pequena “centrifugação” (em menos de um minuto) de movimento, cor, e leveza, da autoria de Loie Fuller, intitulada Danse Serpentine (1896). Resta-me esperar que depois desta dança queiram ver muitas outras… “Para além de toda a divergência entre dança e arquitectura, é inegável que podemos sentir o que de alguma maneira as liga. (…) Mas aquilo que é talvez mais relevante, é a certeza de que todas as presenças num espaço condicionam a percepção da sua arquitectura e lhe dão de facto o sentido e a razão de existir. (…) O que as une, não é o modo como se materializam, mas o espírito que lhes preside, o seu conceito, o seu modo de pensar a arte e a vida.” 3
Fontes Bibliográficas
+ 1
2
GIL, José, Movimento Total – O Corpo e a Dança, Relógio D’Água, 2001. VAZ, Teresa, Dança, arquitectura e memória: a propósito de “Hoppla!” e
outras danças de A. T. Keersmaeker, Cadernos do Rivoli, Outubro de 2001. 3
Idem.
• Imagem 1 •Reines d’un jour, Pascal Magnin • Imagem 2 • Rosas danst Rosas, Thierry De Mey e Anne Teresa De Keersmaeker • Imagem 3 • Masurca Fogo, Pina Bausch • Imagem 4 • Danse Serpentine, Loie Fuller
Três Danças Para Um Arquitecto • Ana Renata Polónia • Dédalo 06 • Centrifugação
O corpo da arquitectura Texto+
Marcos Cruz
É amplamente reconhecido que a arquitectura contemporânea está a passar por um período de profundas mudanças, muitas das quais estão a ser provocadas pelo impacto de novos meios digitais e também pela crescente influência de domínios como a inteligência artificial, a robótica, novas ciências materiais, assim como a biotecnologia, sugerindo perspectivas extraordinárias, mas também incertas, quanto ao nosso futuro ambiente construído. No entanto, pouco se tem dito sobre o risco de a arquitectura se encontrar actualmente num processo de perda do seu significado tanto cultural como social se continuar a negligenciar o seu agente mais fundamental, o corpo.
• A arquitectura falhou o corpo A presente investigação foi realizada no contexto do programa de doutoramento de projecto arquitectónico (PhD by Design) na Bartlett School of Architecture University College London (supervisionado pelo Prof. Sir Peter Cook e pelo Prof. Jonathan Hill), cruzando pesquisas teóricas e históricas - incluindo a análise de edifícios e obras de arte - com uma série de projectos desenvolvidos entre 2000 e 2007. Estes projectos foram pensados como ferramentas de investigação geradoras de pensamento não só crítico e analítico, mas também proposicional. Um dos argumentos chave desta investigação é o de que a arquitectura actual falhou o corpo; ao longo de todo o trabalho reconheço que isso é consequência de um distanciamento do corpo da arquitectura que conduziu a que muitos dos edifícios contemporâneos sejam, na sua essência, espaços experiencialmente pobres e até vazios. Isto é obviamente grave, se se considerar que a arquitectura é, na sua verdadeira natureza, uma forma de arte social1. O sociólogo americano Richard Sennett alerta-nos para este problema no seu livro Flesh and Stone (1994), quando encara este facto como
O Corpo da Arquitectura • Marcos Cruz • Dédalo 06 • Centrifugação
o resultado de uma “privação sensorial que parece amaldiçoar a maioria dos edifícios modernos; [e da] aridez, monotonia e esterilidade que aflige o ambiente urbano”2. Sennett acredita que este fenómeno é mais do que um “falhanço profissional” no qual “arquitectos e urbanistas... perderam uma ligação activa ao corpo humano nos seus projectos.”; é um problema que “possui causas maiores e profundas origens históricas”3. Em parte, acredito que isto se deve ao legado da sociedade burguesa europeia de meados do século XVIII e do séc. XIX, assim como ao impacto global do Movimento Moderno na primeira metade do século XX. Na verdade, poder-se-á dizer que, desde a invenção da imprensa, a arquitectura já perdeu a sua função como principal “arquivo do pensamento”,4 sendo na nossa era da informação que a arquitectura se encontra na eminência de perder também a sua primordial função protectora e, ainda pior, a sua dimensão social. Não é verdade que a segurança do nosso cartão de crédito pessoal se tornou mais importante do que a da nossa casa, e a internet o local chave para de comunicação e a interacção social5? Interrogo-me, então, sobre o que resta à arquitectura, quando precisamente num período de crise financeira, de falta de recursos energéticos, de aumento da população mundial os arquitectos estão a perder uma oportunidade de questionar de forma mais profunda a dimensão humana, social e estética da arquitectura das nossas sociedade presente e futura. Como o arquitecto e teórico Anthony Vidler salientou no seu livro Warped Space (2000), muitas das transformações as quais a arquitectura contemporânea está exposta neste domínio devem-se a um crescente argumento digital através do qual foi introduzida uma profunda descontinuidade de direcção entre teoria e prática. Isto é particularmente verdadeiro quando se considera que a criação da arquitectura de fora para dentro [generation of form from outside] – e com isto o autor refere-se ao interesse contemporâneo nas questões topológicas – se desfez “definitivamente da temática
humanística de qualquer consideração individual”. A crítica de Vidler acerca da falta “do ‘humano’ como um instrumento gerador”, por oposição a “uma abstracção baseada no processo e no movimento”6 vai claramente ao encontro daquilo que considero ser a necessidade de uma abordagem contemporânea integrada que combina um entendimento não só tipológico, topológico e ecológico, como também “corpológico”7 da arquitectura. Infelizmente os arquitectos ligados à prática profissional parecem ler muito pouco relativamente à discussão sobre novas definições do nosso corpo contemporâneo. Ao mesmo tempo, aqueles que as escreveram demonstram ter ainda menos interesse por edifícios e na aplicação das suas teorias ao projecto arquitectónico. O teórico Robin Evans, por outro lado, refere o fenómeno do aburguesamento da arquitectura ao falar sobre a prevalência do espaço arquitectónico como uma medida preventiva8, enquanto que, de forma similar, o sociólogo Mark Cousins nos alerta para a existência de um sentido de protecção9 nos edifícios, que resultou em espaços onde falta, acima de tudo, como o próprio designa, “a vivacidade do sujeito”’10. Mas este vazio nos edifícios contemporâneos pode também ser entendido como o resultado de uma herança moderna que definiu o corpo como uma entidade mensurável, abstracta e funcional, sendo este tomado como garantido, e assim desleixado no acto de projectar. Em resposta a isso, reivindico uma reaproximação mais consciencializada do corpo, o que pode soar um pouco conservador, mas não me interpretem de forma errada! Muito pelo contrário, é um apelo a uma atitude mais experimental, na qual devemos questionar uma nova relação entre nós próprios e o ambiente físico que nos rodeia. Na verdade, muitas das obras mestres do passado revelam que eram conscientes do corpo, e que a sua mestria foi em parte alcançada de forma experiencial e experimental. É por esta razão que devemos reflectir novamente sobre a nossa herança passada de modo a encontrarmos novos caminhos
para o futuro.
• O corpo Esta investigação é, assim, dedicada a uma nova visão do corpo na arquitectura, questionando conceptualmente (e não apenas funcionalmente) quem somos e como poderemos habitar de forma diferente os edifícios que desenhamos. Eu delineio pela primeira vez uma abrangente investigação estética sobre diferentes concepções do corpo – do Corpo Clássico e Grotesco ao Corpo Burguês e Moderno –, levando à conclusão de que nós todos somos motivados conceptualmente pelo que pode ser considerado o Corpo Cyborgiano. Não me refiro aqui ao cyborg como uma figura de ficção científica, mas antes à nossa crescente dependência de realidades virtuais e outras tecnologias digitais sofisticadas, e, por exemplo, ao fenómeno das transfigurações contemporâneas do corpo através da cirurgia plástica. O Corpo Cyborgiano é um conceito ainda pouco claro que alterna entre um corpo cada vez mais aperfeiçoado e um corpo cada vez mais deformado e fragmentado. Em ambas as interpretações estamos perante uma imagem de um corpo cada vez mais conectado [networked], sendo a sua identidade ainda uma condição instável; um híbrido entre máquina e organismo que pode, em última análise, ser totalmente redesenhado. É um corpo cuja imagem deve ser entendido no contexto de uma estética do abjecto, na qual a noção do feio e grotesco é exposta como recurso artístico,11 e critérios importantes no contexto de um amplo debate pós-moderno. No entanto, apesar da arte já ter lidado com o abjecto nos anos 60 através do movimento contra-modernista, a arquitectura não o fez. Após a era modernista, movimentos críticos como o Racionalismo Historicista, a High-tech, o Deconstrutivismo e, mais recentemente, o Biomorfismo Paramétrico parecem ter deixado o corpo fora do
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seu debate. É por esta razão que, em minha opinião, é necessário ter esta discussão agora e reconhecer a importância crucial da estética de um Corpo Cyborgiano na arquitectura.
• Corpo arquitectónico: mais do que uma simples pele Importante neste contexto é o entendimento do corpo arquitectónico [architectural flesh] como conceito que estende a ideia de pele arquitectónica, uma das metáforas mais importantes da arquitectura contemporânea. A proposta surge em oposição a um entendimento generalizado e redutor da pele como membrana fina e plana. Como o teórico Adrian Forty observa há falta de uma metáfora igualmente convincente que possa reflectir uma noção de espessura nas paredes.12 Enquanto muitos edifícios contemporâneos exibem um evidente fetiche pela pele exterior, reduzindo o interior a uma simples justaposição de pisos, o uso de tecnologias digitais tem também contribuído para a falta de espessura da pele, desincorporando-a e retirando-lhe gradualmente o seu conteúdo material e humano. Assim, o meu objectivo nesta investigação é o de realçar a pertinência de um corpo arquitectónico espesso e corporizado [thick embodied flesh]. O problema do termo ‘flesh’ é que constitui uma definição menos clara do que pele; na verdade, pode ter uma variedade de significados contraditórios. Se, por um lado, se refere à polpa e à substância mole que contém gordura e músculo que cobre os ossos e se encontra debaixo da pele, por outro lado, pode referir-se também ao corpo como um todo ou apenas à própria pele. Talvez o crítico de arte americano James Elkins esteja certo quando propõe flesh como um tipo de “fluído”; um conceito “que recusa a distinção entre pele e víscera, interior e exterior, duro e mole, a favor de... uma matéria viscosa”13. Em termos filosóficos, Maurice Merleau-Ponty fala da existência
O Corpo da Arquitectura • Marcos Cruz • Dédalo 06 • Centrifugação
de uma matéria espessa existencial, dizendo que “flesh é... um ‘elemento’ do Ser”14. Isto é interessante porque Merleau-Ponty descreve um estado através do qual “o corpo pertence à ordem das coisas, pois o mundo é matéria universal”15. A definição de Merleu-Ponty, apesar de profundamente inclusiva, é de grande significado pois coloca o corpo no centro de um mundo definido pelo próprio como Ur-Flesh. Como metáfora arquitectónica, este termo não deriva das ciências como tantos outros, não aspirando por isso a uma verdade científica. Em vez disso, entendo que a sua origem deve ser entendida num sentido existencial, na qual o corpo e a arquitectura se fundem através de uma “experiência de reversibilidade”16 num todo fenomenológico indivisível.
• Interfaces habitáveis como corpo arquitectónico habitável Em termos de projecto, o conceito de corpo arquitectónico é mais facilmente entendido naquilo que identifico como sendo Interfaces Habitáveis. Estes implicam condições tanto tipológicas como fenomenológicas que intensificam uma interacção do corpo com o meio físico envolvente. Revisitando edifícios de uma série de arquitectos do século XX, encontrei uma grande variedade de Interfaces Habitáveis, e não quero com isto dizer apenas Paredes Habitáveis mas também Fachadas Multimédia, Colunas, Cubículos, e Vazios Habitáveis. Exemplos dignos de referência incluem as espessas fachadas na Casa Fuster de Lluis Domènech i Montaner em Barcelona, as paredes (re) vestidas na Casa Moller de Adolf Loos em Viena, a mistura do corpo, edifício e paisagem envolvente em muitos dos projectos de Richard Neutra, bem como built-ins e construções tridimensionais no trabalho de Frank Lloyd Wright, Rudolf Schindler, Richard Lautner e Charles Moore, entre outros. Além disso, há que mencionar os aparatos tecnológicos habitá-
veis da Maison de Verre de Pierre Charreau em Paris, a interacção com um espaço cada vez mais artificial nos desenhos de Francois Dallegret, o visionarismo de uma “appliance-way-of-life” proposta por Alison e Peter Smithson na sua House of the Future em Londres, e a utilização de “fatos-edifício” de Michael Webb no período dos Archigram. Outros tipos de interface podem ser também identificados numa variedade de edifícios públicos, incluindo as paredes espirituais na Notre Dame du Haut de Le Corbusier em Ronchamp, os cones de exposição no projecto de Jorn Utzon para o Museu Asger Jorn em Copenhaga, as fachadas multimédia de Richard Rogers e Renzo Piano no Centro George Pompidou em Paris, e também na Kunsthaus Graz de Peter Cook e Colin Fournier (no qual colaborei durante a fase de concurso), bem como as colunas habitáveis na Mediateca de Toyo Ito em Sendai e da proposta de Preston Scott Cohen para o Museu de Arte e Tecnologia de Nova York. De modo geral, os Interfaces Habitáveis de que falo envolvem uma actividade tanto mental como física, sendo “habitável” [inhabitable] uma condição sempre transiente e que implica o acto potencial de se tornar habitado17. Implica uma experiência corporizada [embodied], que é a interacção entre a presença do corpo, a sua prática perceptiva, e o envolvimento com o ambiente que o rodeia. No meu próprio trabalho e nos projectos de MarcosandMarjan (gabinete fundado com Marjan Colletti em 2000), exponho ainda teorias sobre novas formas de habitar paredes-interface através de um corpo digital e da imersão física e virtual do corpo no espaço.
zam o design como método para explorar e manipular material biológico. Isto não acontece apenas a um nível formal – vejam-se as claras tendências biomórficas de grande parte do design contemporâneo –, mas também em termos técnicos e estéticos. Especialmente nas ciências biológicas e médicas, têm sido implementados processos inovadores de desenho por via dos quais metodologias de trabalho interdisciplinares, no âmbito de um intercâmbio entre designers, artistas, engenheiros, biólogos e médicos, estão a dar origem a técnicas híbridas, a uma nova materialidade e a formas de vida até aqui inimagináveis. Os resultados desta condição que defino como “neoplasmática”18 são, em parte, objecto desenhado e, em parte, material vivo, ou “neo-biológico”, como o americano Kevin Kelly as designou19. As suas previsões foram importantes na medida em que ofereceram um panorama mais amplo de como o nosso ambiente está a tornar-se cada vez mais imbuído de “princípios de bio-lógica”, combinando “engenharia tecnológica e natureza irreprimida até que as duas se tornem indiscerníveis”. Uma síntese destas investigações pode ser encontrada na última AD – Neoplasmatic Design, a qual fui convidado a editar com o meu ex-aluno e colega Steve Pike.
• Rumo a uma “biologização” da arquitectura?
Notas +
Por último, cumpre mencionar a parte mais especulativa desta investigação, que explora uma “biologização” emergente da arquitectura, apoiando-se num crescente número de invenções e criações que utili-
Em conclusão, gostaria de utilizar a minha tese20 como um convite para uma discussão aberta sobre o futuro papel do corpo na nossa profissão. Consideroa como um possível ponto de partida para um debate mais alargado e sobre a futura dimensão estética, social e cultural da arquitectura.
1
Esta é uma expressão retirada da introdução de Leon van Schaik na
edição co-editada pelo próprio AD – Poetics in Architecture, Volume 72, No2, March, Wilkey-Academy, London, 2002, p.6 2
Richard Sennett, Flesh and Stone. The Body and the City in Western
Civilization, Faber and Faber, London, 1994, p. 15
+66/67
3
Ibid., p. 16
16
Ver Claude Lefort, “Flesh and Otherness”, in Galen A. Johnson, and
Michael B. Smith (ed.), Ontology and Alterity in Merleau-Ponty, Nor4
Ver artigo de Mark Cousins, “The Ugly” (terceiro artigo), in AA files
– Annals of the Architectural Association School of Architecture, no 30,
thwestern University Studies in Phenomenology and Existential Philosophy, Northwestern University Press, Evanston Illinois, 1990
Autumn, London, 1995, pp. 65-68 17 5
De acordo com o Oxford English Dictionary o termo “inhabita-
Neste caso refiro-me especificamente à emergência da nossa era de
ble” refere-se a “condições capazes de serem habitáveis, ocupadas, ou
informação. Se, por um lado, o nosso sentido de protecção já não é redu-
arrendadas”. No entanto, até ao século XVII, “inhabitable” significava o
zido ao poder defensivo da arquitectura e das suas paredes imperme-
oposto; referia-se a condições “não habitáveis, não adaptadas à habita-
áveis, por outro lado, a interacção social parece escapar das premissas
ção humana, inabitáveis”. Por outro lado, “inhabitable” difere do termo
simbólicas, sociais, culturais arquitectónicas em direcção a um espaço
“inhabited” na medida em que o último se refere a condições já habita-
virtual muito mais vasto. Como argumentou Joshua Meyrowitz, estamos
das ou com habitantes.
a tornar-nos numa sociedade sem “sentido de lugar”. Joshua Meyrowitz, No Sense of Place. The Impact of Electronic Media on Social Behaviour,
18
Oxford University Press, Oxford, 1985
refere a um tecido anormal que surge sem causa óbvia de células pré-
A expressão é oriunda da medicina onde, em termos biológicos, se
existentes do corpo , que não tem qualquer função útil e se caracteriza 6
Anthony Vidler, Warped Space. Art, Architecture, and Anxiety in
por uma tendência para um crescimento independente e incontrolado.
Modern Culture, The MIT Press, Cambridge Massachusetts, 2000, p.
No entanto, mais do que me centrar na sua estrutura interna e no facto
229
de se tratar de um fenómeno patológico, interessa-me a forma neoplasmática, i.e. a qualidade de ser “plasmática”. Para mais informação, ver o
7
A ideia de”corpologia” (o logos do corpo) que sugiro aqui aproxima-se
meu artigo “Synthetic Neoplasms” in AD – Neoplasmatic Design (guest-
daquilo que outros autores consideram a necessidade de uma arquitec-
eds. Marcos Cruz, Steve Pike), November/December 08, Vol. 78 No 6,
tura corpo-cêntrica.
John Wiley & Sons, London, pp. 36-43
8
19
Robin Evans, Translations from Drawing to Building and other Essays,
AA Documents 2, Architectural Association, London, 1997, p. 89
Kevin Kelly refere-se uma “civilização neo-biológica”ou uma “cultu-
ra neo-biólogica”.Ver Kevin Kelly, Out of Control. The New Biology of Machines, Fourth Estate, London, 1994, p. 606
9
Cousins, “The Ugly” (terceiro artigo), 1995, p. 65 20
10
Ibid., p. 68
11
Ibid.
12
Adrian Forty, “Inside the Whale”, in Laura Allen; Iain Borden; Peter
Título original The Inhabitable Flesh of Architecture.
Cook, and Rachel Stevenson (eds.), Bartlett Works. Architecture Buildings Projects, August Projects / UCL, London, 2004, p. 51 13
James Elkins, Pictures of the Body. Pain and Metamorphosis, Stan-
ford University Press, Stanford California, 1999, p. 116 14
Maurice Merleau-Ponty, “The Intertwining – The Chiasm”, in Claude
Lefort (ed.), Maurice Merleau-Ponty: The Visible and the Invisible, Northwestern University Studies in Phenomenology and Existential Philosophy, Northwestern University Press, Evanston Illinois, 1968, p. 139 15
Ibid., p. 137 Imagem • Marcosandmarjan: Nurbster V, Lisboa, 2005.
O Corpo da Arquitectura • Marcos Cruz • Dédalo 06 • Centrifugação
Imagem • Marcosandmarjan • Projecto para o novo museu Tomihiro, Japão, 2002. Vista interior dos espaços de exposição.
Imagem • Marcosandmarjan • Projecto para a Feira Internacional dos Açores, Ponta Delgada, 2005. Vista do exterior.
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dédalo
CON CUR SOS
CONCURSO PORTO COLLAGE ”Cheios Urbanos” na Cidade Difusa “… because collage is a method deriving its virtue from its irony, because it seems to be a technique using things and simultaneously disbelieving in them, it is also a strategy which can allow utopia to be dealt as image, to be dealt in with fragments without having to accept it in toto, which is further to suggest that collage could even be a strategy which, by supporting the utopian illusion of changelessness and finality, might even fuel a reality of change, motion, action and history.” ROWE, Colin, KOETTER, Fred, “Collage City”, p.149, the MIT press, 1983.
d
ada a complexidade da cidade de hoje, cada vez mais difícil de esquematizar como algo visivelmente ordenado e coeso, a técnica da collage surge como uma abordagem pertinente para análise urbana. A partir de uma dissecação figurativa, permite centrifugar os variados aspectos de ordem estética, funcional, cultural, política ou social de determinada situação. O termo collage foi criado por Max Ernst em 1918. A relação desta técnica com a arquitectura foi intensificada com as vanguardas modernas do início do
século XX, assumindo desde então diversas formas como instrumento de representação, expressão, propaganda ideológica ou sátira social. As montagens construtivistas russas ilustravam por exemplo imaginários utópicos, enquanto as futuristas exaltavam a velocidade própria do seu tempo. Nos anos sessenta arquitectos como o grupo Archigram, influenciados pela Pop Art, utilizavam uma imagem gráfica cujos ecos de linguagem de banda desenhada e televisão permitiam discutir ideias em vez de objectos. Os situacionistas por outro lado, recorrendo a fragmentos de textos, mapeavam graficamente os contornos psico-geográficos da cidade vivida. Hoje em dia as fotomontagens continuam sem dúvida um instrumento essencial para a análise e comunicação de ideias de projecto, podendo também constituir um enérgico meio de provocação ao assumir um olhar crítico perante a actualidade. São exemplo as conhecidas montagens de Rem Koolhaas, que demonstram uma clara posição satírica face à sociedade contemporânea. De acordo com a temática da próxima edição, Centrifugação, propõe-se como área de estudo e intervenção do concurso todas as zonas exteriores ao centro histórico do Porto1 (assinalado no mapa a vermelho). Pretende-se com este exercício debater criativamente
Concurso Porto Collage • “Cheios Urbanos” na Cidade Difusa • Dédalo 06 • Centrifugação
a cidade, levantando dúvidas e incertezas direccionadas à sua área difusa e “periférica”. O objecto de intervenção, ao contrário do que tem sucedido em inúmeras iniciativas e colóquios internacionais contemporâneos, à semelhança da Trienal de Lisboa de 2007, não tem como alvo os ditos Vazios Urbanos. Recorde-se que os Vazios Urbanos eram aqui definidos como: “(…) espaços expectantes, mais ou menos abandonados, mais ou menos delimitados no coração da cidade tradicional, ou mais ou menos indefinidos nas periferias difusas. São manchas de não-cidade, espaços ausentes, ignorados ou caídos em desuso, alheios ou sobreviventes a quaisquer sistemas estruturantes do território.” (in: http://www. trienaldelisboa.com) Ao invés disso, pretende-se desta vez debater sobre determinados “Cheios Urbanos” (na cidade difusa e “periférica”). Pensar, não acerca do expectante ou abandonado, mas do espaço construído e edificado, com relações, estatutos, usos e programas (in)definidos na cidade. Pelos mais diversos motivos, observase que muitos deles estão fora das dinâmicas urbanas, nas suas esferas sócio-culturais e espaciais. São alvo de polémicas e de sucessivas opiniões e intervenções. São áreas difíceis ou até marginalizadas, com elevados défices de lógica e estruturação e/ou simplesmente desajustadas, desapropriadas ou desvalorizadas. Neste sentido, pretende-se gerar um debate/confronto de ideias acerca das virtudes e potencialidades ou dos riscos e prejuízos das mais variadas realidades para a prática arquitectónica contemporânea e consequente bem-estar social.
uma crítica/sátira à realidade actual da zona apontada e/ou uma proposta alternativa a essa condição. Não procurando obedecer, nem tão pouco incentivar, a uma análise meramente funcional da cidade, mas por forma a simplificar e facilitar a avaliação das propostas, estas serão organizadas segundo três categorias distintas. Decorrente de usos e programas existentes no organismo urbano, os três grupos dizem respeito a: Habitação, Equipamento e Espaço Público. Dada a possível pluralidade programática numa mesma área e/ou intervenção, os grupos dizem respeito à predominância ou identidade concentradora de um destes universos. Desta forma, pretende-se apelar ao poder de síntese já no momento da escolha do objecto de análise. A Dédalo dá o exemplo de três possíveis zonas de intervenção: o Bairro do Aleixo (Habitação), o “Edifício Transparente” (Equipamento) e a zona de bares do Cais de Gaia (Espaço Público). Os participantes poderão participar simultaneamente, com collages distintas, nas três categorias ou apenas numa.
Notas + 1
Tendo como fonte a delimitação debatida e estabelecida pelo Porto
2001, considera-se exterior à zona histórica do Porto toda a área assinalada a amarelo no mapa em anexo.
Com vista a um saudável debate e confronto democrático de ideias e opiniões, apela-se ao sentido crítico e subjectivo de cada participante. Pretende-se que cada qual avalie criticamente a cidade difusa e as novas centralidades, apontando uma ou mais áreas susceptíveis de uma possível crítica ou intervenção. Através de uma collage, os participantes devem expor
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Concurso Porto Collage • “Cheios Urbanos” na Cidade Difusa • Dédalo 06 • Centrifugação
CONDOMÍNIO FECHADO DO ALEIXO Autor+ Sérgio Pinto Categoria+ Habitação
• Sinopse Bem vindos ao condomínio fechado do Aleixo. Temos apartamentos T2, T3 e T4 de luxo, vocacionado para a classe média alta, concebido no mais puro conceito de “cidade jardim” e com magníficas vistas para o Douro. Visite-nos. Não se arrependerá.
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DREAM PLACE TO WORK ® Autor+ Francisca Teixeira
Categoria+ Equipamento Público
• Sinopse As estradas nacionais assim como outras estradas de acesso á cidade do Porto tem um uso exclusivo de comunicação e de acesso. A proposta será dar uma nova imagem ás nossas vias: criar edifícios-ponte com um predomínio de equipamentos e aproximar as duas margens separadas pelas estradas. Na verdade, a concessão das estradas nacionais tem a exclusividade troposférica, impedindo a construção destas novas estruturas, responsáveis por uma grafia sustentável. Precisaríamos sim, de um novo milagre!
Concurso Porto Collage • “Cheios Urbanos” na Cidade Difusa • Dédalo 06 • Centrifugação
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Concurso Porto Collage • “Cheios Urbanos” na Cidade Difusa • Dédalo 06 • Centrifugação
A MENINA DA PALMEIRA Autores+ Pedro Pita e Pablo Rebelo Categoria+ Espaço Público
• Sinopse “And did they get you to trade your heroes for ghosts Hot ashes for trees Hot air for a cool breeze How I wish you were here…”
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VEN + CE DOR PORTO
+O GRANDE FOSSO
COLLAGE
Autores Vencedores+
Eva Vieira e Ana Renata Polónia Categoria+ Habitação
• Sinopse Em 2009 a “aldeia do Aleixo” sente-se ameaçada pela “aldeia Lux”, título metafórico aos condomínios fechados que envolvem os bairros desta zona. Uma ideia de contraste onde nos questionamos sobre a passividade da monocromia face à riqueza cromática...
Concurso Porto Collage • “Cheios Urbanos” na Cidade Difusa • Dédalo 06 • Centrifugação
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A ARQUITECTURA
SAIU DA
ARQUITECTURA
Texto+ João Gaspar
A ESCOLA SAIU DA
ESCOLA Trata-se de um memorando completamente pessoal, trata-se de registar um percurso, uma certeza efémera de uma reflexão sobre um período específico da história da nossa arquitectura, todas as citações são não autorizadas, todos os fundamentos discutíveis, todos os chavões censuráveis. Ainda assim escrevo. Admito-mo.
Os cais que o pensar da arquitectura cria são todos em alto mar de um não saber como, de certezas fundadas em dúvidas. Aquando encontra fundos mais sólidos. A nossa escola é isso, um transatlântico da arquitectura que assentou porto aqui, voltado ao rio, não tornou à bolina. • Modernismo e a dor de barriga A história que quero contar, que contarei como me interessa, começa no velório de um modernismo, de um pensar o habitar que puxa o tapete ao habitat, que desconhece a manifestação primitiva do Homem, troca-o por outro, um inventado, universal, feito apenas daquilo que nele conhecemos de determinado, de invariável. Casa máquina para o homem operador. Modernismo que não é o seu pai suíço mas todos os seus bastardos, o subúrbio, o mass housing, o mile upon mile of organized nowhere, a dor de barriga, o cadáver que vai sobrando. • Arquitectura saiu à rua Os seus algozes, gente de peito cheio, apostam em reconhecer a incompetência da classe (do projectista,
A Arquitectura Saiu da Arquitectura. A Escola Saiu da Escola • João Gaspar • Dédalo 06 • Centrifugação
do planeador) em pensar por si as exigências do habitar. Embalada num debate internacional, a arquitectura (nem sempre arquitectura) sai à rua. Pergunta o grau zero do processo: Quem decide? quando se trata de produzir condições para habitar, soltam-se âncoras, do utópico ao pragmático, acha-se um período de teorias socializantes sob a bandeira de uma disciplina humanizada, o arquitecto que recuperar a pessoa.
gestão do processo para que se ergam as casas com as competências de uma brigada técnica, na qual, os estudantes de arquitectura, próximos, são os primeiros recrutados, mas onde o saber arquitectónico se pretendia em paridade com o dos outros técnicos, sob os desígnios da vontade da comunidade.
• A escola saiu à rua (no Porto) Setenta e quatro, saímos também. Porto penava por habitação era urgente construir casas, a escola, os alunos, estavam lá antes da revolução, de costas viradas ao desenho, à portuguesa, trocava a disciplina pela realidade, no bairro, na ilha (quem sabe por falta de torres brancas à beira rio), a sujar as mãos, cá vamos nós (nessas torres), trocando a disciplina pela realidade. Manicura. De inteligência política sai um despacho, romântico despacho, cria-se o Serviço de Apoio Ambulatório, para que se construam casas, no Local, onde faltam. No norte, a população organiza-se em associações de moradores, que se tornam responsáveis pela
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• Arquitecto mão do povo Arquitectura saiu da arquitectura, levou-a de bote a alto mar, revoga o autismo da arte, do exercício intelectual, na volta sentiu que pisava em falso, sentiu falta do desenho, reclama de novo o espaço para a sua competência profissional.
• Arquitectura não invariável Não escolho este outro cadáver a reanimar, de pouco me valem saudades de heróis a preto e branco (heróis sem o tom irónico), mas acredito que há uma lição. Arquitectura não pode ser a invariável modernista neste processo de construir (civilizações), não somos (não há) especialistas nessa demanda, sozinhos não o sabemos fazer. Somos parteiros, não somos mães de arquitectura. ‘’Não podemos deixar de conhecer os mecanismos antropológicos’’. Nuno Portas Para a precisão do nosso traço precisamos de armar uma consciência para a selecção numa Imagem corrente que nos vai corrompendo por dentro.
• Centrifugação Centrifugação, das torres brancas à beira rio, para onde a cidade pulsa. Sem demissões disciplinares, com o desenho, com mais desenhos. Centrifugação da conversa de café para o debate na cidade, a arquitectura tem alguma coisa a dizer. Centrifugação da epiderme, da replicação consciente mais ou menos bem vestida para uma evolução permanente, para que não sejamos a invariável de realidades mutantes. Centrifugação, do nosso arquitecto sacralizado e incompreendido para uma realidade quem sabe menos incompetente, quem sabe capaz de construir processo.
A Arquitectura Saiu da Arquitectura. A Escola Saiu da Escola • João Gaspar • Dédalo 06 • Centrifugação
A Histórica Centrifugação Política, Espacial e Pedagógica da...
“ESCOLA do PORTO”
Texto+ Luísa Magnani
O
texto seguinte foi escrito com base na Tese de Laurea Triennal que efectuei na Facoltà di Architettura del Politecnico di Torino. O seu argumento consistiu na análise do complexo de edifícios que alberga a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, projectado por Álvaro Siza Vieira. O meu interesse na arquitectura contemporânea portuguesa surgiu como resultado de haver cumprido um ano de estudos, ao abrigo do programa ERASMUS, na FAUP. Desta experiência nasceu a vontade e a curiosidade de conhecer melhor esta instituição, procurando não limitar a sua análise aos célebres espaços projectados por Siza, mas também compreender o contexto histórico-político das escolhas efectuadas no sistema de ensino da arquitectura em Portugal, na segunda metade do século XX. Em suma, possuiu como objectivo compreender as diversas componentes que contribuíram para o nascimento da famosa “Escola do Porto”. Nos anos entre as duas grandes guerras foram difundidos em diversos países europeus regimes antidemocráticos, encabeçados por ditaduras militares e governos autoritários, que se reviam na experiência e nas ideologias do fascismo italiano e do nazismo alemão. Em 1926, o governo liberal de Portugal, que já há muitos anos recorria ao exército para controlar
Escola do Porto • Luísa Magnani • Dédalo 06 • Centrifugação
as frequentes tensões sociais, cedeu o poder a uma ditadura militar. Dois anos depois assistiu-se ao início da ascensão ao poder de António de Oliveira Salazar (1889-1970) que, tornando-se primeiro ministro em 1932, promoveu a adopção de uma constituição de carácter centralista e autoritária e iniciou um controlo absoluto sobre o país, transformando assim uma ditadura militar num regime fascista. Um dos primeiros objectivos declarados pelo regime foi o da “modernização” do país, ainda fortemente atrasado e dependente de uma economia predominantemente agrícola. Isto traduziu-se numa inicial, mas de breve duração, abertura aos confrontos com a Arquitectura Moderna, como demonstra a realização de obras como a casa projectada por Carlos Ramos (1897-1969) em 1929 e a Escola Superior de Beja por Cristino da Silva (1896-1976), no ano seguinte. Todavia, depois de 1935, o Salazarismo fez-se promulgar de uma ideologia ruralista fortemente reaccionária que pretendia restaurar a ordem patriarcal baseada na trilogia de valores “Deus-Pátria-Família”. Esta condição veio também seguida de uma série de iniciativas culturais, culminadas com a “contaminada” escolha historicista, operada em 1940, em ocasião da Exposição Universal de Lisboa. A defesa do velho mundo dos latifúndios da mecanização, da industrialização e da presença de multinacionais foi traduzido, no campo arquitectónico, na pesquisa e na vontade de estabelecer os parâmetros de uma “forma autêntica” da casa tradicional portuguesa, onde eram recorrentes temas análogos àqueles utilizados pela definição do Heimatstil da Alemanha do Terceiro Reich. Isto traduziu-se numa série de plásticas arquitectónicas onde entre as quais, que se podem definir nostálgicas, surgiram as de Cassiano Branco (18971970) e de António Varela. A este ecletismo confuso, que encarnava o pensamento cultural dominante, em 1947 contrapuseram-se as vozes de Francisco do Amaral (1910-1975) e de Fernando Távora (1923-2005). Estes dois jovens
arquitectos compreenderam a necessidade de investigar a tradição vernacular portuguesa, libertando-a dos significados políticos e oferecendo-lhe uma interpretação crítica e o mais objectiva possível. Enquanto que o primeiro, intervindo sobre as páginas da revista Arquitectura, sublinhava a necessidade de classificar sistemicamente a manifestação da arquitectura tradicional. O segundo, Fernando Távora, com apenas vinte e três anos, publicava em 1945 o ensaio O problema da Casa Portuguesa1. Foi neste seu ensaio que pôs em evidência a necessidade de realizar um estudo sobre a casa tradicional portuguesa, não em torno de uma (re)leitura estilística ou de chave ecléctica, como pretendiam os seguidores de Salazar, mas com o intuito de extrair desta uma lição de funcionalidade e coerência com o ambiente físico e humano: “O estudo da arquitectura portuguesa, ou do edificado português, ainda não se pode considerar completado. (...) O estudo das nossas habitações antigas e populares deve individualizar as condições que favorecem o seu desenvolvimento em relação às suas condições ambientais e humanas, para além do modo em que os materiais são utilizados para satisfazer as exigências das várias épocas. Se adequadamente estudada, a casa popular fornecerá importantes lições de funcionalidade e coerência, respondendo às necessidades contemporâneas. Actualmente ela está representada nas exposições nacionais e internacionais segundo uma via que não leva a nenhum lugar, senão a absoluta negação.”2 A sua solicitação vem conjunta com a de Francisco do Amaral que, ao lado de outros, conduziu uma investigação com a denominação de Inquérito sobre a Arquitectura Portuguesa. Esta investigação, expandida sobre todo o território nacional, documentava os testemunhos sobreviventes da prática construtiva tradicional que sublinhavam as correlações com a paisagem, o clima e o modo de vida local. Por um lado, o Inquérito mostrava a situação real do país – como a pobreza das aldeias do interior – constituindo, assim, uma
análise mais profunda, que se consentia a compreender os problemas concretos da sociedade com um forte valor de denúncia; por outro, desmistificava a existência de uma arquitectura nacional, como aquela professada pelo regime, fazendo ver as diferenças culturais existentes neste pequeno território no que à arquitectura vernacular respeitava. Estes escritos representaram, acima de tudo, uma explícita ruptura e um forte instrumento de resistência progressista aos valores fascistas professados pelo regime. Graças a esta movimento de pesquisa, formou-se também um outro que unia estudantes e arquitectos, tanto do Porto como de Lisboa, em torno da revista Arquitectura, superando assim a contraposição entre as duas cidades. A capital, como consequência do centralismo do regime de Salazar, era favorita para os investimentos públicos mas, por este motivo, era também muito controlada, sobretudo politicamente. Este facto levou a que muitos estudantes lisboetas se transferissem para o Porto para concluírem os seus estudos, ampliando, assim, os contactos entre os dois pólos e envolvendo as novas gerações. Todavia, na generalidade, a Escola de Arquitectura do Porto, agora dirigida por Carlos Ramos (nascido em 1987 no Porto
mas formado em Lisboa), era já mais livre e aberta. Ramos, que tinha estado entre os fundadores da Organização dos Arquitectos Modernos (ODAM3, 1947-52) partilhava com Távora o desejo de consoli-
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dar em Portugal uma cultura arquitectónica ligada ao Movimento Moderno. Foi deste modo que procuraram a possibilidade de se oporem e combaterem uma situação politica extremamente restritiva, que considerava a modernidade uma forma de oposição ao regime. Távora, que entre os finais dos anos 40 e inícios dos anos 50 tinha cruzado a pesquisa sobre a tradição portuguesa com uma série de experiências internacionais, entre as quais a participação nos CIAM (Dubrovnik e Otterlo) e o aprofundamento da consciência arquitectónica de Le Corbusier, Rogers e Gardella, desenvolveu a possibilidade de uma “terceira via”: uma arquitectura que evitasse tanto o vernáculo como uma visão abstractamente cosmopolita, colocando-se assim nas bases de um framptoniano “regionalismo critico” ante litteram. A chegada de Ramos ao Porto deve ser considerada
uma pedra miliar no desenvolvimento da denominada “Escola do Porto”. Ele soube criar no interior da Escola de Belas Artes do Porto (ESBAP), num período particularmente delicado, condições de grande abertura para a reflexão e prática disciplinar. Foram estas condições que permitiram sobrelevar a instituição, em geral, e a arquitectura, em particular, a um outro nível nacional e internacional. Para desenvolver a sua prática pedagógica, que se baseava na “máxima liberdade” e na “máxima res-
Escola do Porto • Luísa Magnani • Dédalo 06 • Centrifugação
ponsabilidade”, Carlos Ramos, com o apoio de jovens professores formados na ESBAP, impôs uma nova dinâmica nos métodos didácticos. De facto, enquanto continuava a dirigir o Departamento de Arquitectura, convidou quatro membros do grupo ODAM a unirem-se a ele: Agostinho Ricca, José Carlos Loureiro, Mario Bonito e Fernando Távora. No entanto, em 1957 a polícia obrigava Ramos a substituir alguns dos seus colaboradores. Mario Bonito e Agostinho Ricca acabaram por deixar o seu posto a Octávio Figueiras e Arnaldo Araújo, ambos diplomados trabalhando sobre o tema da urbanística e do ambiente rural. Graças ao contributo destes docentes, aos quais Ramos permitia um amplo raio de acção, possuindo um papel determinante na definição progressiva dos objectivos da escola, foram introduzidos no plano de ensino os temas do relativismo construtivo, da sociologia e da geografia urbana, como reflexo do pluralismo de ideias e da arquitectura do Movimento Moderno. Durante os anos sessenta, e sobretudo a partir de 1968, tornou-se evidente a forte relação entre prática pedagógica e prática política, ambas fortemente relacionados com a crise institucional que percorria a Europa. Um forte empenho político na resistência ao regime veio expresso, mais uma vez, das experiências universitárias que, no caso do Porto, se manifestou, tanto da parte de estudantes como de professores, com uma forte e decidida contestação à estrutura didáctica da Academia. Docentes e estudantes uniramse na realização de um novo plano de estudos, que se baseava nas linhas de Ramos traçadas alguns anos antes, onde o desenho, urbanística, construção e história se condensavam como a razão de aprendizagem ao exercício projectual. Posteriormente, a partir de 1968, os jovens portugueses puderam também começar a viajar livremente pelo estrangeiro, o que permitiu a alguns alunos da “Escola do Porto” visitar, em particular, os países progressistas do Norte da Europa, como a Holanda, a Suécia e a Finlândia.
A 25 de Abril de 1974 um golpe de estado militar, que sob a denominação de “Revolução dos Cravos” e comandado pelo Movimento das Forças Armadas, pôs fim ao longo período ditatorial. Este momento representou um ponto de viragem e ditou as bases para o início de um processo de transformação democrática da sociedade, que se prefigurava com o objectivo de rever profundamente todos os campos da cultura e todos os extractos da população portuguesa. Impulsionada pelo forte dinamismo desta nova corrente, a cultura arquitectónica portuguesa conheceu, nos anos sucessivos, novas possibilidades disciplinares: gestão urbanística, pesquisa histórica (estudo e
valorização patrimonial da arquitectura portuguesa), intervenção arquitectónica na cidade, reorganização do ensino e do papel da escola – comunidade. Surgiram, paralelamente, novas possibilidades profissionais que visavam a modificação institucional, o sistema de produção e o exercício da arquitectura; enfim, foi delineada a emergência de novas gerações livres da opressão ideológica antifascista. A evolução política de 1974 teve repercussões também no ensino em torno da Escola do Porto, que radicalizou a própria experiência pedagógica e ofereceu sustento projectual, participando activamente e de um modo total, nas iniciativas do programa democrático SAAL
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(Serviço de Apoio Ambulatório Local). Criado com o intuito de apoiar e sustentar a população que se encontrava em situações habitacionais precárias, o SAAL nasceu, sob a decisão do agora Secretario de Estado para a Habitação e Urbanística Nuno Portas, como serviço descentralizado para a construção de novas habitações e infra-estruturas. As decisões inerentes à projectação dos quarteirões eram confiadas a cooperativas e associações de inquilinos dotados de uma autonomia de decisão e apetrechadas de equipas de profissionais. A instituição SAAL teve uma duração muito breve. A expectativa que tudo podia e devia mudar nas condições de vida dos menos abastados colidiu bem cedo com os limites objectivistas e materiais de um país ainda muito débil, tanto economicamente como politicamente, com as contradições de um aparato estatal herdado do velho regime ainda muito vivo. O programa terminou, de facto, já em 1976 mas, para além da sua duração, representou uma experiência decisiva tanto para os arquitectos como, de um modo geral, para todos os intervenientes do campo da construção: foram criadas as bases de um processo colectivo de discussão e de criatividade traduzido na satisfação das urgentes necessidades habitacionais. A partilha desta experiência contribuiu ainda, e de um modo fundamental, à definição e reforço do sentido de “espírito de corpo” fortemente caracterizador da Escola do Porto. Partindo desta experiência, nos finais dos anos setenta, numa fase de recessão política, o curso de Arquitectura no Porto resistiu graças a toda a experiência precedente acumulada, a qual constituiu a base das mudanças necessárias para a tornar compatível com as novas circunstâncias. No início dos anos 80 os pressupostos para um convívio no interior do mesmo edifício da Academia das Belas Artes do Porto da parte dos três cursos (Pintura, Escultura e Arquitectura), cujas origens remontavam ao século XVIII, vieram definitivamen-
Escola do Porto • Luísa Magnani • Dédalo 06 • Centrifugação
te a escassear. A teoria da integração das três artes era superada, tanto de um ponto de vista conceptual como de um ponto de vista meramente prático, por uma falta de meios e espaço que comprometia notavelmente as qualidades do ensino. Assim, determinados elementos deram início a uma inevitável fuga centrífuga: “Teremos sempre saudades do jardim da escola de Belas Artes, do tempo e das pessoas, mas a atmosfera tornava-se irrespirável.”4 Quase como um filho que abandonava a casa dos progenitores para conquistar independência, a cisão dos arquitectos com os seus companheiros de sempre, pintores e escultores, com o consequente abandono do antigo jardim da casa da Braguinha, foi vista como necessária e inevitável, escrevendo um novo período da vida da “Escola do Porto”. Com um decreto de lei do Ministério da Educação a 20 de Julho de 1982, foi proclamada a criação da Faculdade de Arquitectura do Porto e a sua consequente integração no interno da Universidade. A direcção do processo de transição foi confiada ao arquitecto Fernando Távora, que se ocupou de redigir um programa preliminar didáctico e funcional, enquanto que o projecto do novo edifício, situado no seio da área do designado Pólo 3 da universidade do Porto, foi confiado ao arquitecto Álvaro Siza Vieira. A separação da ESBAP foi vista como uma ocasião afortunada para sublinhar e reforçar aquilo que tinha sido construído nos anos precedentes, através de uma forte experiência de luta e debate: a criação de uma escola que tivesse uma consciência plena e ciente da autonomia disciplinar da arquitectura. O novo programa para a nova escola, quase um programa de resistência, foi formulado baseado neste pressuposto fundamental. Em primeiro lugar, era necessário impor uma limitação dimensional da nova faculdade, para permitir e favorecer contactos e relações muitos estritas entre alunos e docentes, na tentativa de manter vivo o espírito e a consciência do corpo colectivo: “(…) Limitámos a dimensão da futura faculdade para
favorecer contactos e relações muito estreitas entre alunos e docentes numa tentativa de manter, numa cadeia de fidelidades múltiplas, a consciência de um corpo colectivo construído ao longo de anos na chamada Escola do Porto.(…) Deveríamos resistir ao embate da entrada para Universidade, não corrompendo a nossa escola de rigor, como lhe chamava em tempos Nuno Portas: rigor compositivo, construtivo e moral. Tínhamos uma história construída de Sardina a Távora, passando por Marques da Silva e Carlos Ramos. Acreditámos numa espécie de fatalidade ligada ao destino da nossa cidade, contínua, estável, puritana, respeitadora dos seus maiores, onde a linguagem é herança que, sem conflito, se prossegue e aprofunda, de geração em geração.”5 O número pré-determinado de 525 estudantes, com um consequente número de 60 professores, foi estabelecido em conformidade com documento “Planning Standards for Higher Education Facilities” publicado pela UNESCO. O novo plano de estudos nasceu das bases deixadas anos antes das escolhas didácticas efectuadas pelo professor Carlos Ramos: desenho e projecto constituíam o fundamento do programa de estudos e todas as outras áreas científicas, como construção, história e as restantes matérias teóricas, eram subordinadas, mas estritamente ligadas às duas primeiras. O projecto do novo complexo foi fortemente relacionado a esta concepção didáctica: a arquitectura dos espaços que albergam a faculdade foi moldada para criar uma escola/atelier de projecto, à qual foram associados espaços complementares tradicionais, como o auditório, os locais administrativos, a biblioteca e a cafetaria. Inevitavelmente o arquitecto relacionou o seu projecto com a ideia de construir um novo edifício que fizesse inveja ao antigo jardim e que fosse, de um outro ponto de vista, uma expressão global de uma tendência de como estar no Porto e de como fazer Arquitectura. O programa extremamente rígido de 1983, até hoje,
teve de repensar alguns dos inevitáveis compromissos iniciais originados da mudança dos paradigmas no seio da Faculdade, como o aumento dos estudantes, e o ensino da arquitectura em geral. Este, juntamente com a perda daquela importante componente transportada da experiência compartilhada e o avanço (inevitável e, na minha opinião, saudável) de um pluralismo de tendências no interior da própria escola, fez com que, até hoje, o significado ideológico ligado à escola do Porto não seja sempre claro: “Pensando nos arquitectos do Porto e do Norte de Portugal, se há uma característica que me parece evidente é o pluralismo: não existe nenhuma imagem unitária que às vezes se pretende encontrar e que a definição de “Escola do Porto” tente representar. (…) Para mim esta ideia de “Escola do Porto” está ligada a um período em que a escola de arquitectura era uma pequena escola, com poucos alunos e uma unidade baseada numa resposta, ou tentativa de resposta, a obstáculos comuns, mas já perdeu o seu sentido para as gerações mais jovens.”6 Aurea mediocritas!7 Provavelmente a resposta está em encontrar o designado meio justo, um compromisso entre tradição, “a escola de rigor”, e as forças de renovação, ligadas às novas influências, sem medo e evitando a clausura numa inútil e deletéria “torre de marfim”. Tradução Guilherme Sepúlveda
Notas e Fontes Bibliográficas
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Este ensaio foi originalmente publicado em 1945, mas voltaria a ser
posteriormente reeditado em 1947 no âmbito da revista Cuadernos de Arquitectura. 2
F. Távora, “Il problema della casa portoghese”; cfr. L. Trigueiros (edt.),
Fernando Távora, Lisboa1993, p.13 3
Crf. M. Mendes, Porto: “The School and its Projects 1940-1986”, in Archi-
tectures à Porto, Liége 1987, pp.54-55. Em 1947 diversos arquitectos que haviam frequentado a “Escola do Porto”, entre inícios da Guerra de
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Espanha e finais da Segunda Guerra Mundial, expoentes do CAM, fun-
• K. Frampton, Storia dell’architettura moderna, Zanichelli editore,
daram a Organização dos Arquitectos Modernos, com a confiança que
Bologna 1982.
“o entusiasmo jovem e o desejo de participar, com os próprios meios,
• M. Mendes, Porto: The School and its Projects 1940-1986, in Architec-
no solucionamento dos urgentes problemas técnicos e sociais do pais”
tures à Porto, Liège 1987.
(C. Barbosa). No entanto, o ODAM acabaria por ser dissolvido em 1952.
• N. Portas, M. Mendes, Portogallo. Architettura, gli ultimi vent’anni,
Naqueles anos ocorreram inúmeras exposições e publicaram-se nume-
Electa, Milano 1991.
rosos escritos, como forma de oposição ao projecto residencial de baixo
• N. Portas, SAAL and the urban revolution / O programma SAAL e
custo e à tentativa de municipalizar e impor um “estilo do Porto” oficial.
a revolução urbana em Portugal, C. Richard Hatch Editions, New York
Em 1948 o Estado Novo relançou a sua politica agressiva organizando
1984.
um evento documentário dedicado ao edificado publico. Entretanto a
• V. Riso, Álvaro Siza. La Facoltà di Architettura di Porto, Alinea editrice,
União Nacional do Arquitectos organizava o Primeiro Congresso Nacio-
Firenze 1998.
nal de Arquitectura. Foram discutidos os compromissos e as contradi-
• Á. Siza, Edifício da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Por-
ções derivantes da adesão ao Modernismo, e foi levado a cabo um debate
to, percursos do projecto – The Building of the Faculty of Architecture at
acerca das características da arquitectura existente e sobre os limites e
Oporto University, Curse of the project, FAUP Publicações, Porto 2003.
condições da actividade profissional. Quanto às questões levantadas pelo
A. Angelillo, Álvaro Siza: i recenti lavori in Portogallo, «Casabella», n.
ODAM e de muitos outros, foi evidenciada a necessidade de trabalhar
579, Arnoldo Mondatori Editore, Milano maggio 1991, p. 13.
na direcção de evolução estética, que resolvesse os problemas urbanos
• P. A. Croset, A. Angelillo, Scuole in Portogallo di Álvaro Siza, «Casa-
e residenciais. Entre outras, foi enfatizada a ideia de que a evolução da
bella», n. 579, Arnoldo Mondatori Editore, Milano maggio 1991, p. 5.
arquitectura deveria ser acompanhada do desenvolvimento dos direitos
• A. Esposito, G. Leoni, Architetti a Porto: una “scuola”?, «Casabella», n.
fundamentais da vida individual e colectiva. O direito à liberdade criati-
700, Arnoldo Mondatori Editore, Milano maggio 2002, p. 4.
va veio relacionado aos problemas sociais derivados da organização do
• A. Esposito, G. Leoni, “Porto ha perso il suo caposcuola”, «Il Giornale
espaço. Foram citadas as teorias de Le Corbusier e da Carta de Atenas
dell Architettura», n. 33, U. Allemandi & Co, Torino ottobre 2005, p. 8.
de forma a sublinhar a necessidade urgente de uma nova racionalidade
•
urbana e arquitectónica. Foram introduzidos os valores da vida natural –
d Aujourd hui», n.278, Editions Jean-Michel Place, Paris dicembre
sol, espaço e vegetação – na vida dos portugueses. Ao invés de se terem
1991, p. 71.
colocado interrogações sobre o “estilo”, foram colocados em discussão o
• M. Mulazzani, «Álvaro Siza è un architetto fuori moda » conversazio-
saber particular da arquitectura e o respeito público pela sua autonomia
ne con Vittorio Gregotti in Profilo Portogallo, Porto: i giovani e i maestri,
criativa
«Casabella», n. 744, Arnoldo Mondatori Editore, Milano maggio 2006,
P. Landauer, Ecole d’Architecture de Porto, «L Architecture
p. 70. 4
A. Alves Costa, “Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto”;
• M. Mulazzani, Des-continuidade?, in Profilo Portogallo, Porto: i gio-
cfr. Á. Siza, Edifício da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto,
vani e i maestri, «Casabella», n. 744, Arnoldo Mondatori Editore, Milano
percursos do projecto – The Building of the Faculty of Architecture ar Oporto
maggio 2006, p. 44.
University, curse of the project, FAUP Publicações, Porto 2003, p.23
• M. Mulazzani, «Modernismo senza dimenticare la storia» conversazione con Álvaro Siza in Profilo Portogallo, Porto: i giovani e i maestri,
5
Idem, p.24-25
6
C. Seoane, “Intimità e Monumentalità, intervista ad Álvaro Siza”, Casa-
«Casabella», n. 744, Arnoldo Mondatori Editore, Milano maggio 2006, p. 71.
bella, nº678, Arnoldo Mondatori Editore, Milano, Maggio 2000, p.29.
•
E. Souto de Moura, Fernando Távora. Ritratto dell artista da
giovane in Profilo Portogallo, Porto: i giovani e i maestri, «Casabella», n. 744, Arnoldo Mondatori Editore, Milano maggio 2006, p. 76.
7
Orazio, Odi 2, 10, 5.
• W. Wang, La Nuova Facoltà di Architettura di Porto, «Casabella», n. 547, Arnoldo Mondatori Editore, Milano giugno 1988, p. 4.
• L. Benevolo, L’architettura nel nuovo millennio, Ed. Laterza, Bari 2006. • B. Fleck, Álvaro Siza, E&FN Spon (an Imprint of Chapman & Hall), London 1995. • K. Frampton, prefazione di F. Dal Co, Álvaro Siza, tutte le opere, Electa, Milano 1999.
Escola do Porto • Luísa Magnani • Dédalo 06 • Centrifugação
ARQUITECTURA PORTUGUESA RECENTE: TRÊS PARÁBOLAS MEDIÁTICAS Texto+
Pedro Gadanho
• O presente texto constitui uma versão modificada de três excertos da tese de dissertação defendida na FAUP em 2007 com o título “Arquitectura e Mediatização Generalista 1990-2005.”
Arquitectura Portuguesa Recente • Pedro Gadanho • Dédalo 06 • Centrifugação
n
as sociedades ocidentais contemporâneas, a arquitectura é hoje abundantemente difundida através de media de massa que abrangem as várias formas da imprensa, a televisão, a rádio, a internet e até as variadas mediascapes das nossas cidades. A isto chamo não só uma mediatização generalista, mas também uma mediatização generalizada. Os meios especializados perderam terreno na definição da disciplina ou generalizaram-se, eles mesmos, para aceder a um mercado mais sustentável. E os meios generalistas assumiram o locus da consagração e da legitimação arquitectónica, produzindo a nova imagem pública da arquitectura e o seu novo sistema de valores. A importância retumbante da mediatização generalista da arquitectura faz, deste modo, com que a sua análise forneça uma história relevante do campo arquitectónico. O arquivo dos media generalistas oferece uma narrativa que, nas suas entrelinhas, produz uma desconstrução imediata da imagem que o campo arquitectónico tem ou gosta de mostrar de si próprio. Como sugeria Sigmund Kracauer, a leitura dos mais simples fenómenos de superfície – como os aparentemente inerentes a uma mediatização generalista – permite extrair uma informação inconsciente que tem a vantagem de ser relativamente independente dos sistemas institucionais de controle e gate-keeping de uma disciplina autónoma como a arquitectura. Ler o campo arquitectónico a partir das suas mediatizações generalistas dá-nos a perceber como é que, afinal, a visibilidade mediática dos arquitectos acaba por afectar a arquitectura efectivamente produzida. Esta foi a extrapolação essencial da minha pesquisa sobre o assunto. Entre as conclusões a que cheguei retira-se que Portugal, apesar do seu carácter periférico e aparentemente inócuo, se tornou num bom exemplo do fenómeno da mediatização da arquitectura tal como ele ocorre actualmente. Assim, três parábolas extraídas dos media portugue-
ses permitem-nos analisar algumas repercussões paradoxais da actual difusão mediática do campo arquitectónico.
01 • Ausência e Presença Mesmo num ambiente de mediatização crescente da arquitectura como o que acontece no caso português, a presença da cultura arquitectónica nas representações mediadas da cidade e do território revela-se, por vezes, ainda paradoxalmente invisível. Em 2005, um artigo de um conhecido opinion-maker português intitulado “Portugal a voo de pássaro” apresenta ainda um retrato impiedoso de caos urbanístico que grassa no país. Ao longo de uma descrição brutal da “fealdade” da paisagem portuguesa contemporânea, nem uma só vez se refere o contributo estético que o campo arquitectónico poderia ter tido – ou poderia vir a ter – para se modificar esta situação. Sendo o tema o desordenamento do território, num momento histórico em que a arquitectura vive uma apreciação eufórica, a ausência de referência à disciplina e à sua função social e estética torna-se gritante Como aponta José Pacheco Pereira, houve melhorias, “há mais escolas, mais bibliotecas, mais equipamentos culturais, nalguns casos gigantes e subutilizados, mais hospitais, mais serviços a nível local e regional, melhor comércio de massas, mais acesso a determinados bens e mais dinheiro para os adquirir.” Mas para o opinion-maker, isto é apenas “uma gota de água no caos, na fealdade, que cresce exponencialmente.” Como se podem compreender as implicações desta afirmação para uma classe arquitectónica que, por esta altura, é mais visível que a classe dos médicos ou dos engenheiros? Perante a hipótese pouco plausível de que o colunista se tenha esquecido de que existe uma classe profissional e uma cultura especializada que poderiam dar
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um contributo para evitar ou travar o crescimento exponencial da fealdade, podem-se arriscar duas hipóteses de interpretação da sua mensagem. Uma possibilidade seria que o opinion-maker avisa que, de facto, a visibilidade do campo arquitectónico – e logo a sua autoridade cultural – deveriam ser usadas para algo mais do que para providenciar um “cenário mediático” e uma “consagração” que se limitam a afagar o ego colectivo. Outra possibilidade, seria, mais bem, que o colunista deixava antes um recado a uma classe profissional que, não só adquiriu visibilidade e projecção social e simbólica, mas estava também prestes a ampliar as suas responsabilidades efectivas – e o seu campo de actuação legal – perante a realidade do território português. O problema que aqui se coloca é, então, como é que, perante a sua presença crescente no espaço púbico mediado, o campo arquitectónico se posiciona perante a civitas? Como assume as suas responsabilidades? A resposta natural seria que o campo arquitectónico que detém visibilidade mediática deveria passar do seu regime corrente de auto-celebração e auto-consagração à promoção da presença dos seus participantes nos mais diversos contextos de actuação – mais que simplesmente os empurrar para a emulação do starsystem ou para a simples imigração. Sob o impulso da mediatização generalista, arquitectura deve passar de evento excepcional a evento do quotidiano. Essa seria uma forma feliz de resolver o outro paradoxo implícito nesta pequena história. Um país inteiro prolonga um estado de fealdade do seu território, enquanto 90% dos seus arquitectos recém-formados – atraídos a essa área de produção cultural pela visibilidade pública da arquitectura e pela consagração dos seus protagonistas – sentem que não tem condições para um exercício regular e condigno da sua profissão. O que vai mal neste país dotado de uma arquitectura
tão internacionalmente reconhecida e aclamada?
02 • Visibilidade e uniformização Em 1998, um importante prémio cultural português – o Prémio Pessoa, lançado por um semanário de referência e uma estação de televisão privada – é, pela primeira vez atribuído ao campo da arquitectura e, nomeadamente, a uma das suas estrelas em ascensão, Eduardo Souto Moura. Um editorial especial do director do diário O Público, assinala “a consagração da arquitectura.” A atribuição deste prémio à área da arquitectura traduz o remate simbólico da progressão da presença da arquitectura na sociedade portuguesa até ao pico da Expo 98. Para José Manuel Fernandes, fecha-se então um “círculo afectivo que se abriu com o deslumbramento popular que representou a arquitectura sem concessões da Expo e que levou muitos portugueses a olhar de outra maneira para alguns dos seus criadores.” Os media generalistas de referência revelam-se, assim, predispostos a acolher a arquitectura e a aí encontrar novos heróis e figuras de referência. Nesse âmbito, os prémios revelam-se como os mais interessantes mecanismos para caucionar publicamente uma procura de heróis que encarnam o papel de novos ídolos do consumo. Numa fase anterior, a visibilidade e o consumo da arquitectura eram primordialmente garantidos por outros mecanismos. Os eventos organizados em torno da cultura arquitectónica – as exposições, as conferências, os debates, os seminários – continuarão, é certo, a revelar-se como mecanismos que, ao mesmo tempo, afectam o curso interno da disciplina e garantem uma grande visibilidade mediática à arquitectura. Esta simultaneidade foi cedo percebida e, de facto, no cenário arquitectónico português, o valor expositivo
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destes eventos depressa integra a aposta clara na visibilidade mediática como impulso para a transformação do campo e das suas tendências. Eu próprio contribuí para esta situação com uma série de exposições – desde as mostras Space Invaders e Post-Rotterdam, até ao ciclo Influx, à representação nacional na Bienal de Veneza de 2004 e ao call-for-concepts Lisbon Car Silos – todos elas realizadas com o intuito de injectar o campo com informação sobre novos protagonistas da cena nacional e internacional e, simultaneamente, todas elas dotadas com o objectivo de granjear novas audiências para a cultura arquitectónica. Uma vez que este tipo de eventos oferece um assunto e uma topicalidade facilmente compreensíveis no âmbito do sistema do consumo cultural mediático, eles continuam a desempenhar um papel essencial no transporte da arquitectura e das suas transformações para a esfera pública. Existem, depois, naturalmente, outros factores que permitem o incremento da visibilidade da arquitectura. Tal como os prémios aqui inicialmente referidos, também a publicidade, a promoção institucional e outros mecanismos conscientes de produção de visibilidade permitem alargar e intensificar a presença mediática da arquitectura. Porém, e por oposição a estes mecanismos de visibilidade que ainda se encontram sob controle da disciplina, os formatos de visibilidade arquitectónica progressivamente mais presentes no espectro mediático advirão – como se pressente no início desta história – do protagonismo social e cultural dos representantes consagrados do campo. À imagem da lógica do sistema mediático, a celebridade transforma-se no principal motor de visibilidade do campo arquitectónico. A relevância e o reconhecimento dos protagonistas revelam-se particularmente adequados à natureza intrínseca da reprodução mediática. A reprodução mediática vive do reconhecimento ime-
diato dos seus assuntos e esse reconhecimento advém, por sua vez, da identificação dos protagonistas das narrativas e histórias que os media veiculam. Quando a arquitectura se aproxima dos media de massa passa-se dos mecanismos tradicionais de divulgação da produção e da obra, para a construção de narrativas personalizadas fundadas sobre figuras e protagonistas relevantes do campo arquitectónico. A emergência do star-system internacional provém, precisamente, do recrudescimento desta lógica à medida que a arquitectura se torna assunto privilegiado dos media de massa. Como os media de massa necessitam de figuras relevantes, identificáveis, notáveis e propensas à criação de celebridade, o campo arquitectónico adapta-se-lhe com docilidade e recria-se enquanto sistema de estrelato que é compreensível pela linguagem do consumo mediático mais abrangente. A arquitectura começa a ser privilegiadamente definida como uma produção e consumo cultural de ícones e autores. Neste sentido, dentro do cenário português, também surgiram figuras que, em diferentes tempos e medidas, satisfizeram ou satisfazem a voracidade da reprodução mediática. Tomás Taveira foi o arquitecto que, nos anos 80, corresponde à fase de afirmação da mediatização da arquitectura e, como tal, representa o caso clássico de uma figura que ascende, vive e morre pela lógica dos media de massa. Siza Vieira corresponde à fase de maturação. A sua projecção mediática corresponde à revelação e apropriação de uma ampla consagração disciplinar e ao reconhecimento dos chamados heróis da produção. E Souto Moura responde à fase estabelecida da relação entre arquitectura e media de massa. Neste caso, o arquitecto serve a manutenção da visibilidade e do ciclo de reprodução mediática que garantem a sobrevivência do assunto arquitectura e das respectivas audiências. Ele surge, então, como expressão da necessidade
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crescente de ídolos de consumo e afirma-se como o protagonista ideal da mediatização generalista da arquitectura. Neste cenário, onde antes a promoção de eventos culturais ainda apelava a uma certa diversidade de conteúdos e de formas de representação do campo arquitectónico, os fenómenos da celebridade e do seu poder referencial reproduzirão, mais frequentemente, uma tendência para a uniformização que é típica dos media e da cultura de massas. A existência de mecanismos de produção de visibilidade comuns ao campo arquitectónico e ao campo mediático significa, afinal, que aumentam as probabilidades de a arquitectura ser encarada – e representada – a partir da lógica mediática e não segundo os princípios da sua própria autonomia. Daí, o campo arquitectónico pode começar a exibir características típicas da reprodução de massas. De resto, e como aconteceu no caso português, esse facto pode também ser reforçado pela coincidência entre os interesses do campo mediático e a manutenção do status quo do campo arquitectónico ou respectivo sector restrito. A coincidência histórica entre a consagração interna do campo arquitectónico e a consagração externa proporcionada pelo campo mediático transforma-se numa das repercussões essenciais da mediatização generalista. Neste caso, aliás, não se ecoa senão um efeito mais vasto, perceptível na reprodução mediática do star-system internacional. No entanto, e ao contrário do que acontece no cenário internacional, aquilo que hoje é visível da produção arquitectónica portuguesa em termos mediáticos – especializados ou generalistas – sugere uma uniformização formal influenciada pela reprodução exaustiva de modelos de um sub-campo restrito que foi progressivamente identificado com o universo total da arquitectura portuguesa. O efeito de consagração mediática que se gerou em torno de alguns poucos protagonistas contribuiu para
que, em 15 anos, a arquitectura portuguesa perdesse grande parte da sua biodiversidade. Neste sentido, a uniformização deriva não só da natureza do campo mediático, mas também das características do chamado sistema de consumo e, até, circunstancialmente, da natureza do campo arquitectónico em questão. Com uma pequena dimensão e grande homogeneidade, mercado económico e simbólico limitado, ascendência absoluta de um número reduzido de protagonistas muito fortes e visíveis e até o deficit democrático de uma cultura ainda em afirmação, o campo arquitectónico português passou a reproduzirse exclusivamente à imagem de uma linguagem arquitectónica de audiência garantida. A consagração de ídolos de consumo e a reprodução do reconhecível evocam o sistema do consumo e produzem uma uniformização em direcção ao menor denominador comum daquilo que é mais consumível e identificável. Neste sentido, alguns considerarão até que a homogeneidade não corresponde senão a uma identidade coesa e desejável. As tendências negativas normalmente alertadas na mediatização – como a superficialização dos conteúdos ou a novidade pela novidade – traduziramse antes, no caso português, numa consolidação da imagem e no aprofundamento da afirmação da chamada arquitectura de qualidade e de autor, estabelecidas como referências estáveis para uma fácil digestão. Porém, a diferença desapareceu do mapa, à excepção – apesar de tudo promissora! – da produção de alguns jovens arquitectos influenciados pelo contexto europeu mais abrangente – naturalmente, não sem se evidenciarem as dificuldades em afirmar qualquer ruptura com a homogeneidade de estilo prevalecente. No meio disto tudo parece esquecer-se, que, como acontece em qualquer sistema ecológico, a sobrevivência depende do encontro entre a estabilidade identitária e a biodiversidade.
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03 • Em direcção a um consumo conspícuo A arquitectura atingiu em Portugal um novo – e talvez conclusivo – patamar de generalização quando surgiu como objecto de um concurso televisivo direccionado a uma audiência popular. Quando o apresentador de um programa do principal canal de televisão nacional pergunta ao concorrente quem foi o autor de um dos estádios construídos para o Euro 2004, percebe-se que a cultura arquitectónica atingiu finalmente o estatuto de cultura geral. Que, ademais, entre as possibilidades de resposta múltipla – Tomás Taveira, Manuel Salgado, Siza Vieira –o concorrente acerte efectivamente no autor do projecto, significa que, afinal, até há um domínio relativo dessa cultura por parte da audiência generalista. Longe vai o tempo dos idos anos 80 em que o mesmo canal televisivo introduzia, numa telenovela de produção nacional e sob forma considerada anedótica, a figura social desconhecida do arquitecto. O episódio mais recente só é revelador, no entanto, se se cruzar com outros aspectos da construção mediática da arquitectura que a ofereceram à estratificação corrente do sistema do consumo. Nesta entrada no mundo prosaico e mediatizado do futebol, encerra-se, afinal, uma lógica de aproximação ao quotidiano e ao consumo que já se tinha feito sentir na orientação do evento do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura. No mesmo ano, de resto, assiste-se ao efeito retumbante da presença do star-ystem internacional na paisagem quotidiana portuguesa quando as televisões montam e emitem em directo os seus telejornais contra o cenário de fundo da inauguração do maior legado do Porto 2001: a Casa da Música de Rem Koolhaas. Contra a maré de polémicas envolventes, a arquitectura de Koolhaas para a Casa da Música “impôs-se no imaginário.” E, assim, também neste caso a arquitectura é agora cultura geral e está definitivamente
instalada no quotidiano. Todavia, esse já não é sequer o facto de maior relevo. O que mais interesse poderá suscitar aqui é, antes, o carácter definitivamente generalizado da presença da arquitectura como pano de fundo da realidade mediática. A arquitectura excepcional banaliza-se sob a forma de consumo de massas. Claro que o impacto do edifício justificava, por si só, o empenho e a presença do campo mediático. Porém, agora sente-se plenamente o efeito cruzado e amplificador de uma mediatização da arquitectura que ocorre em várias frentes. Os directos da TV são acompanhados por capas e edições especiais da imprensa de referência, entrevistas de rádio, presenças nas revistas de moda, spots publicitários e repercussões variadas nos circuitos mais especializados. A arquitectura culmina, no meio de massas por excelência que é a televisão, uma tendência para se oferecer como ícone de consumo quotidiano que, imediatamente antes, era já evidenciada na imprensa cultural e de estilo de vida. O surgimento da revista britânica Wallpaper em meados dos anos 90, por exemplo, assinalou a confluência e consolidação de uma progressão difusa pelo qual a arquitectura passou a ser alvo de um consumo associado à criação de estilos de vida e de identidades. Como nunca antes acontecera com uma revista não especializada – e que, de facto, atinge proporções de um meio de massas generalista e internacional – a Wallpaper coloca a arquitectura e o design ao nível da moda, isto é, dá à arquitectura um dos papéis de protagonista principal entre as produções culturais que permitem arranjar “as coisas que estão à nossa volta.” Em consequência, a arquitectura adquire o estatuto efémero dos fenómenos de moda que, no território do consumo media, concorrem com outras produções culturais de valor semelhante. Sublinha-se o papel da arquitectura na construção de um certo hedonismo, mas também de uma certa ideia de qualidade de vida. A projecção social e cultural da arquitectura destaca-
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se, deste modo, das obras e dos protagonistas tradicionalmente legitimados pelo campo arquitectónico e dá-se, agora, a outro tipo de apropriações simbólicas e identitárias. A arquitectura é consumida como maisvalia que tanto pode ser veiculada por media artísticos e de vanguarda, como por meios de comunicação destinados aos sectores políticos e económicos. Isto pode parecer distante de uma realidade como a portuguesa, mas a verdade é que esta condição irá afectar profundamente a recepção mediática da produção arquitectónica nacional mais restrita. De facto, a visibilidade crescente da arquitectura num cenário mediático alargado e transversal não é, em Portugal, muito diferente da de outros países onde esta produção cultural detém reconhecimento social ou protagonistas proeminentes. Se o crescimento do star-system arquitectónico internacional foi, nas últimas duas décadas, codependente da expansão de círculos mediáticos mais restritos para meios cada vez mais alargados, então a presença de um membro desse sistema em Portugal, Siza Vieira, foi suficiente para aí criar um microcosmos mediático do qual é possível extrair leis bastante gerais. De facto, se a década de 80 é de transição no surgimento da arquitectura para uma esfera pública alargada,a década de 90 será aqui, como em alguns postos avançados da prática arquitectónica ocidental, de afirmação e consolidação da projecção da arquitectura no território social e mental dos portugueses. Dentro das especificidades do caso português, esta afirmação é também interdependente do crescimento económico e cultural impulsionado pela entrada do país no espaço europeu, mas passa crucialmente pela descoberta dessa figura legitimada por um sistema de estrelato arquitectónico internacional e, de seguida, pela confluência progressiva entre os interesses do campo mediático e os valores assumidos pelo campo restrito da arquitectura portuguesa. Não só a mediatização generalista da arquitectura
incrementa em torno de valores partilhados e consensuais, mas, por reflexo desta presença, assiste-se também ao alargamento efectivo do campo arquitectónico e seus participantes. A mediatização generalista é favorecida por condições favoráveis; as ondas de repercussão desta mediatização geram uma aura positiva para o campo profissional; esta aura origina atracção e traduz-se no crescimento efectivo dos participantes do campo; este aumento de participantes tem correspondência na criação de novas audiências para a cultura arquitectónica – quer de forma directa, quer por via das e respectivas redes de interacção social dos novos participantes – e, assim, ocorre de novo favorecimento da mediatização do assunto. Cria-se um ciclo virtuoso que determina que a arquitectura se torne um assunto apetecível, um assunto que cresce transversalmente no espectro mediático, social e económico e, consequentemente, se assuma como um consumo cultural que adquire várias facetas. Que a arquitectura surja como assunto para diversos sectores mediáticos significa também que a arquitectura se presta agora a diferentes formas de consumo. A arquitectura é consumida como cultura, como mais-valia económica, como símbolo identitário, como ostentação, como locacional value, como património, como touristic asset, como signo de distinção social. Com o seu apelo a um consumo simbólico imediato e com o conceito de património a aproximar-se vertiginosamente do presente, a melhor produção contemporânea da arquitectura portuguesa passou a adquirir um estatuto patrimonial instantâneo, com a natural classificação dos edifícios de Siza Vieira, mas ainda mais surpreendentemente, com o Estádio de Braga de Souto Moura a ser declarado national heritage menos de um ano depois da sua inauguração. Fale-se de história instantânea! Noutros casos, através dos media acentua-se o valor
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de commodity da arquitectura no âmbito turístico e amplia-se a centralidade da arquitectura contemporânea nas narrativas sobre o consumo de destinos exóticos ou históricos. Mas as novas facetas públicas do consumo da arquitectura não se ficam por aqui. A arquitectura afirma-se como um capital cultural e, logo, predisponibiliza-se para tipos diversos de apropriações consoante os sectores da sociedade que se apercebem da possibilidade de converter esse capital para os seus próprios interesses e necessidades. Quer se trate do sector político, quer económico; quer se tratem de apropriações individuais ou colectivas no sentido da construção da identidade e da constituição de estilos de vida, a arquitectura avança rapidamente para o domínio do consumo conspícuo antes reservado aos bens móveis de luxo. E onde, de facto, até há bem poucos anos a utilização dos recursos simbólicos providenciados pela arquitectura era reservado àqueles que detinham um poderes político ou económico expressivo, com a mediatização generalista a apropriação alargada da cultura arquitectónica torna-se subitamente alcançável. Entre a clara utilização económica ou o simples aproveitamento simbólico do reconhecimento que a autoria arquitectónica pode trazer, os agentes sociais promovem agora a apropriação da arquitectura com a conivência explícita e imprescindível da lógica da reprodução mediática e dos próprios arquitectos. Em Portugal, temos assim casos amplamente mediatizados como o da urbanização Bom Sucesso, em Óbidos, onde a apropriação dos maiores autores do campo arquitectónico português se traduz, afinal, numa das maiores operações de sempre de transformação da paisagem portuguesa protegida em urbanização turística de luxo. Esta é, de resto, a nova forma privilegiada de ranking dos arquitectos nacionais, com os autores de maior renome e celebridade a fornecer, na pura lógica da
economia cultural, as habitações mais caras e as disponíveis em menor número. A arquitectura nacional encontrou aqui a sua reserva natural: um imenso campo de golfe isolado da fealdade da restante paisagem portuguesa onde, finalmente, a arquitectura de qualidade e de autor pode, como num safari, ser observada e consumida num estado de graça de relativa autonomia. Aguardam-se os teams de televisão e os directos ao vivo na cerimónia de inauguração.
Notas + As imagens neste artigo são da inteira responsabilidade da revista.
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CON CUR SOS
CONCURSO DE IDEIAS *BARRACA AEFAUP+ QUEIMA 09
BARRACA EM CORDA SIZAL Concurso de ideias • Barraca AEFAUP • Queima 09 •
Projecto+ Miguel Brochado e Sofia Granjo A barraca AEFAUP aspira ser palco das mais diversas vivências dos estudantes, numa semana intensa a eles consagrada. À luz, à música e ao álcool, que sempre dominaram a atmosfera deste espaço, pretendemos aliar um conceito espacial claro, forte e de cunho arquitectónico. Desenvolveu-se o lado artesanal do artefacto arquitectónico, o fabricar de uma pele materializado pelo estabelecer de uma regra construtiva que justifique e qualifique o espaço expectante. Como um corpo, anatomia e pele, manteve-se a ossatura em aço e estudou-se uma nova membra-
na - Uma corda que percorre infinitamente as faces deste objecto, em trilhos sinuosos e arbitrários, e que, subjugando a forma às suas regras, cria o ponto de fuga, o grande balcão circular, espaço gerador das vivências. É um edifício¬¬¬¬ laboratorial, explora a construção da caixa objectual, que gira uniformemente sobre todos os seus planos, estimulando a percepção de quem a entrevê, dotada de luz própria, numa comunicação intrínseca a si, ora por sombras chinesas, penumbras, ora por fugazes vislumbres por entre o novelo criado.
Concurso de Ideias para Barraca AEFAUP • Queima 09 • Dédalo 06 • Centrifugação
AEFAUP
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Talvez porque seja uma aprendizagem da experiência, o relevo de um bom acompanhamento de obra foi uma fragilidade não colmatada pela minha formação académica. Ainda que hoje, em atelier, me permita tirar partido do delírio geométrico do CAD, em obra demovo-me de dizer: “Sr. Joaquim alinhe-me ai a tomada pelo eixo da sanita”. Num raciocínio algo paralelo, verifico que no momento da materialização quem manda é o material. Quando projecto, para mim é a diferença entre o acabamento de um reboco de 1,5cm e um de 2cm; para o construtor é afirmar que em obra “até um metro não é erro”. Será um meio-termo entre as duas posições, no entanto reconheço-lhe a vantagem de mestre construtor, como um artesão que conhece as medidas e regras do seu material. Nas suas características físicas e químicas, na capacidade de o manipular, na capacidade de prever a sua reacção ao tempo. Face à perenidade da matéria arquitectónica interes-
sa-me a sua resposta às agressões do uso e do tempo. As patines que ganha, as mazelas da idade, marcam o espaço como se de um corpo vivo se tratasse, dilatando e contraindo numa lenta respiração. David Leatherbarrow fala-nos disso em “On weathering”; o processo químico natural que a acção do tempo provoca sobre os materiais. Em última instância serão eles os protagonistas da ruína. Mas, na ironia de uma exposição de meros dias, própria de um pavilhão temporário, a inevitabilidade da acção do tempo sobre
Concurso de Ideias para Barraca AEFAUP • Queima 09 • Dédalo 06 • Centrifugação
a matéria tornou-se decisiva. Tal como em obra fora decisivo testar capacidades de manipulação e alterar lógicas de montagem, ou verificar reacções à luz e som numa (re)escolha de materiais, também o conhecimento do material estipulou novas decisões construtivas. Adam Caruso chama-lhe o fundamento material da forma. Mas, ainda que esta pele se fundamentasse expressivamente na sua matéria-prima, o desconhecimento tornou-a alheia às suas características físicas: tensa e rígida, capaz de impor as suas regras, a qualquer custo. Da barraca da queima, na sua precoce ruína, ficou assim a experiência e a aprendizagem de artesão.
• Durante a execução do pavilhão, a contracção da corda com à água das chuvas, aliada à sua excessiva tensão, exerceu uma força superior ao momento flector das vigas de aço da cobertura que não se encontravam ainda travadas. Na imprevisibilidade das consequências desta resposta material, as implicações do recomeço artesanal da construção na proximidade com a semana académica ditou a precoce desmontagem deste pavilhão. Sofia Granjo
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2500 D.C., UM RETRATO ARQUITECTURAL Texto+
Ricardo Morais Sousa
Estima-se que noventa por cento dos edifícios do planeta sejam habitação. Esta fatia corresponderá a mais de oitocentos milhões de casas. Não faço ideia que percentagem dentro destes milhões foram realmente desenhadas por arquitectos mas olhando pela janela do quarto onde escrevo nem cinco por cento arriscaria. E no entanto, cá na rua, as coisas parecem funcionar às mil maravilhas. As crianças da casa ao lado brincam felizes e descontraídas no jardim e parecem nem se preocupar com a fachada da moradia onde vivem que grita o estilo neo-burguês-capitalista que de facto a erigiu. Em frente, vejo o vizinho, pouco mais velho do que eu, arremessando o filho pelos ares cheio de sorrisos. Parecem-me felizes, apesar da pulseira electrónica no tornozelo do pai, e nada importados com o facto de o seu tardoz ser um enorme plano de vidro e metal que por alternâncias de aberto e fechado, recolhido para a esquerda ou para a direita cria brilhos impressionantes. Não, não moram no quinto piso de um Dienner & Dienner ou qualquer outra arquitectura da Europa central. Vivem mesmo aqui em frente e a fachada de trás é obra de todos os seus vizinhos, e também sua obra-prima, uma marquisezinha que aumenta dois metros quadrados à sala, já pequena para tantos artefactos Moviflor. E como criou influencias a sua obra! Não eram nem nove da manha de um destes dias quando o som da marretada escorregou, ritmado e persistente, pelas paredes do meu prédio abaixo. Achava que o som era a consequência das obras na vizinha da penthouse (na verdade é só um duplex com recuado...) mas mal sabia que os ruídos eram os da casa a nascer. Como o bebé chora no parto a casa gemia por todos os lados em sons estridentes porque também ela (re) nascia. A arquitectura, boa, é tal qual um ser vivo: nasce, desenvolve-se e depois chega o inevitável dia em que morre. Só que ao contrário do mundo dos humanos, que às tantas até deveria ser o mesmo do da arquitectura, o cangalheiro não vem. Ali ficam os
2500 d.C., Um Retrato Arquitectural • Ricardo Morais Sousa • Dédalo 06 • Centrifugação
andares moribundos empilhados uns sobre os outros e dentro: nós, espectadores da vida, porque pouco ou nada participamos nela se o ambiente que nos circunda não o permitir. E lá junto ao céu, no quarto piso, em frente ao recuado nasceu uma nova extensão da casa, bem no cimo da composição de todo o edifício: o frontão alumino-depressivo da marquise. Estes são os mecanismos pessoais que remedeiam uma arquitectura pouco flexível às necessidades sempre em mudança do utilizador. Adições, alterações, substituições em edifícios depois da sua obra concluída incomodam-me. Mas não no sentido de afectação burguesa a que os arquitectos de hoje parecem responder. O incómodo não se prende com qualquer ruído visual ou deturpação estética da cidade. De facto esta é mesmo feita de recolocações e sobreposições, “layers” e o não remexer as suas pedras é uma atitude que vai totalmente contra o decurso natural da sua história. Mas também não é pelo desrespeito à envolvente que lamento estas adições de emergência até porque maior parte das vezes esta é o que é e neste caso, a rua é um enorme mar de pastilha amarela. O que me pesa neste tipo de remendos que de dia para dia vou vendo emergir nos edifícios são as questões mal resolvidas com a casa que por um lado ocultam mas por outro são bem expressivos. O modo como a sociedade se veio a moldar transformou o desenho da casa numa arquitectura de “chave na mão” como um qualquer outro objecto de consumo. O que a mesma sociedade se esqueceu é que as estruturas físicas com que interagimos não são só interfaces funcionais onde vencemos as estaladas na cara do quotidiano. E não quero com isto dizer que a arquitectura é a resolução para todos os flagelos do mundo porque de facto não é. Pelo menos esta arquitectura de “esfregão amarelo” amplamente divulgada nas revistas, blogosfera, e academias, onde uma mão suja sobre o reboco branco estanhado exige a remoção rápida da mancha não vá a composição do alçado deturpar-se.
E se de repente os objectivos da arquitectura mudassem? Se os conceitos pré-concebidos de bonito, feito e elegante se triturassem todos entre si para dar azo a uma nova estética? Se estivesse previsto desde o início que a varanda de hoje pode ser o escritório de amanhã como seriam as cidades, as revistas, as universidades? Mas sobretudo como seria a relação do habitante com a sua própria casa? Estas são retóricas às quais não me parece que estejamos aptos para responder pelo menos no sentido de efectuar uma previsão visual de como poderá ser o aspecto do futuro. Contudo acho que poderíamos fantasiar acerca de como as coisas se poderiam processar no mundo da arquitectura no ano 2500. “A cidade não é surpreendentemente cheia de arranha-céus retorcidos e luminosos. Afinal não há uma cúpula negra de smog e nos céus continuam só os pássaros em vez dos esperados veículos voadores à Blade Runner. A arquitectura de hoje é muito diferente da de há 500 anos atrás. As casas parecem todas diferentes e ao mesmo tempo não destoam umas das outras. Parece que novas estruturas foram criadas no mundo do imobiliário mas também na sociedade. Hoje, passados todos estes anos, não existe REMAX, ou ERA, ou classificados nos jornais que não os da linha erótica e ofertas de emprego. O conceito de comprar casa está totalmente ultrapassado. Hoje o acto de construir casa é mais do que nunca uma adenda fundamental à cultura da sociedade. Mas não se pense que a cidade é uma enorme favela onde a vontade do vizinho se sobrepõe à minha porque ele é mais forte do que eu. Não. Hoje a casa é de facto o palco da relação com a comunidade à minha volta e do mesmo modo que eu mudo ela muda também comigo. Sou seu mestre mas também seu vassalo porque estou ciente que ela me influencia em tantos aspectos que não posso deixar de lhe dar importância. Felizmente existem os arquitectos. E ai de quem diga que são seres caprichosos!
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Isso passou à história. Hoje o arquitecto tem as estruturas comunicativas e ferramentas de projecto para que possa em conjunto comigo idealizar o espaço da casa. Mas não achem que o arquitecto é um coração mole qualquer! Quando estamos em desacordo ele continua a bater o pé, com a diferença que me apresenta uma solução alternativa. Vezes e vezes sem conta até tudo estar perfeito. E depois de juntos erigirmos a casa, o arquitecto continua a cumprimentar-me na rua! Quer saber como está tudo, se a casa “se comporta bem” e que alterações novas estou a pensar fazer. De tempos a tempos convido-o para jantar e a melhor parte do serão é sem dúvida quando fazemos o “petit tour” pela casa e o homem de olhos sempre admirados vai bebendo cada alteração nova com interesse, registando no seu caderninho preto as metamorfoses das divisões e fazendo perguntas umas atrás das outras...”
Para que o Homem e a arquitectura se reconciliem faltam ainda muitas ferramentas e ideologias novas e bem definidas. Contudo até ao ano 2500 ainda nos resta quase meio milénio... A reavaliação dos objectivos da arquitectura é urgente e devia ocorrer de imediato. Isto pode ser como qualquer outra crença mas julgo que introduzir verdadeiramente o utilizador final no processo de projecto optando por uma arquitectura participada pode ser um escape para a crise de valores interna à disciplina mas também à deturpação indecente que os esquemas do poder impõem ao arquitecto, obrigando-o a praticar uma habitação impessoal e inflexível, morta desde o momento em que é erigida. Mas por agora, senhora do quarto andar, pare lá com as marretadas que quero é dormir mais um bocado...
2500 d.C., Um Retrato Arquitectural • Ricardo Morais Sousa • Dédalo 06 • Centrifugação
A ANÁLISE DA FAUP E A SINTAXE ESPACIAL Texto+ Tatiana Trindade com Gonçalo Furtado e Miguel Serra
01 • Para uma análise da FAUP No ano lectivo 2007/ 2008, o 1º autor teve a oportunidade de lidar com o quadro teórico e analítico da Sintaxe Espacial, no âmbito do seu ERASMUS em Berlim. O interesse provocado por esta experiência foi continuado com o desenvolvimento de um projecto LIDERA, inserido numa iniciativa criada pela Reitoria da Universidade do Porto. A pré-proposta do projecto, submetida em Setembro de 2008 e revista no mês seguinte, com o título “Caracterização espaço-funcional de Pólo da UP e áreas adjacentes [Parte I – FAUP]”, defendia seus objectivos e metodologia gerais assim como, a equipa, coordenada pela autora, e a orientação, de Doutor Gonçalo Furtado (FAUP) e de Mestre Arquitecto Miguel Serra (FEUP/ CITTA). Refere-se portanto, que “é objectivo principal do projecto proposto avaliar em termos espaço-funcionais a área urbana correspondente a Pólo Universitário do Porto, tanto do ponto de vista da sua estrutura espacial local, como da sua inserção nos contextos urbanos envolventes. A análise do espaço urbano será efectuada maioritariamente
com recurso ao quadro teórico e analítico conhecido como análise sintáctica ou sintaxe do espaço (space syntax). Pretende-se, através desta análise, definir o contexto e o funcionamento espacial actual das áreas em questão e identificar mais-valias e/ou disfunções espaciais particulares. Pretende-se ainda que o produto desta análise sirva para a produção de um conjunto de propostas e recomendações com vista à intensificação dos usos presentes e/ou correcção das disfunções identificadas.” (In: TRINDADE (coord.), 2009, Proposta de Projecto LIDERA nº 65) O abstract “Spatial and Functional Analysis of a UP’s Faculty and its Surrounding Area – A Space Syntax Approach”, submetido em Janeiro de 2009 e apresentado no mês seguinte no 2º Encontro Internacional de Jovens Investigadores da UP – IJUP 09, referia que o projecto, conduzido por Tatiana Trindade, “(…) arises from two contexts: the first is related with a LIDERA Project title “Caracterização espaço-funcional de Pólo da UP e áreas adjacentes [Parte I – FAUP]” which is being conducted under her leadership (…) and the second is related with the develo-
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pment of her own dissertation titled “Análise espacial e funcional da envolvente e edifício da Faup: Uma abordagem pela Sintaxe Espacial” (…) At the end, the research will investigate the correlation between variables as movement flows of pedestrians and other space uses, with the findings of the configurational analysis. This will highlight how space morphology affects the use of the chosen area and will provide information related to spatial use and performance.” (In: TRINDADE, 2009: 284, IJUP 09)
No Relatório de Progresso do Projecto LIDER nº 65, de Março de 2009, entregue à Reitoria da Universidade do Porto, expunha-se os aspectos teóricos e metodológicos adoptados. O objectivo principal de analisar e avaliar, em termos espaço-funcionais, com recurso à técnica da Sintaxe Espacial, a área urbana correspondente a um Pólo Universitário da UP, encontra-se orientado para a FAUP. Procedeu-se então a: “a) levantamento de documentos; b) elaboração de cartografia e de dados estatísticos; c) bibliografia. Posteriormente expomos um enquadramento teórico explicativo das duas dimensões do trabalho – sociológica e analítica (Space Syntax).” (In: TRINDADE (coord.), 2009: 2-3, Relatório de Progresso do Projecto LIDERA nº 65) O relatório final, em conclusão, visa reunir o conjunto de propostas e recomendações de intensificação dos usos presentes e/ ou correcção dos problemas identificados. Refira-se também que no âmbito da 7ª Mostra da Universidade do Porto, em 26 e 29 de Março de 2009, avançou-se um resumo da investigação realizada, no projecto LIDERA descrito. Um paper intitulado “Spatial and Functional Analysis – A Space Syntax Approach” foi submetido e aceite ao workshop “Digital Cities 6: Concepts, Methods and Systems of Urban Informatics” em Abril de 2009, inserido no evento “4th International Conference on Communities and Technologies”, Universidade da Pennsylvania. Contemporaneamente à coordenação do projecto LIDERA, a autora foi desenvolvendo também a sua
dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, na FAUP, sob orientação dos co-autores deste artigo, cujo título é “Análise espacial e funcional da envolvente e edifício da FAUP: Uma abordagem pela Sintaxe Espacial”, que se encontra actualmente em conclusão e eminente entrega. Como se refere, no plano de trabalho oportunamente aprovado pelo Conselho Científico, a autora aborda a Sintaxe Espacial enquanto ferramenta útil ao processo de concepção e previsão projectual, especificamente mediante a análise espacial e funcional da envolvente e edifício da FAUP. Identifica também as vantagens e os eventuais desequilíbrios inerentes às vicissitudes de contextualização urbana da FAUP e reconhece o potencial configuracional do edifício, enquanto objecto arquitectónico emblemático da cidade. Deste modo, a ordem de trabalhos dividiu-se em três grandes grupos: o primeiro engloba a exposição do quadro teórico e analítico da Sintaxe Espacial e a apresentação sumária da conjuntura projectual e construtiva da FAUP; o segundo grupo reúne as análises sintácticas efectuadas no caso de estudo e, por fim, o terceiro grupo encerra o conjunto das considerações finais, resultantes do confronto dos dados analíticos com a observação em campo. Na opinião da autora, a técnica da Sintaxe Espacial, cujo interesse pessoal e experiência aqui foi descrito, permite a relação com o tema do presente número da revista Dédalo – Centrifugação. Em certa medida, o artigo pressupõe discursar sobre a forma como o espaço incorpora premissas referentes ao movimento, realizado pelos seus utilizadores. Assim, a propósito de tais dinâmicas do espaço, a autora opta então por partilhar com os leitores uma breve abordagem dos princípios fundamentais da Sintaxe Espacial.
02 • A sintaxe espacial SOCIEDADE. Acções e relações sociais. Possuem configurações
A Análise da FAUP e a Sintaxe Espacial • Tatiana Trindade com Gonçalo Furtado e Miguel Serra • Dédalo 06 • Centrifugação
espaciais próprias. Organizam o espaço através da espacialização desses padrões. ESPAÇO. Configurações espaciais. Embebem acções e relações sociais. Reproduzem esses padrões e potenciam novos através da organização do seu layout. Dinâmicas sócio-espaciais.
O conteúdo humano do saber-fazer Arquitectura é-lhe teimosamente intrínseco. O objecto produzido é resultado da acção criativa do Homem, da corporalização de intenções sociais, da atribuição de determinado significado ou valor. O espaço construído, arquitectónico e urbano, tem sido desde sempre alvo de estudo no que respeita às lógicas sociais que controlam a sua materialização. Desenhar espaço de qualidade requer intenções sociais e o seu entendimento enquanto resultado de um processo tanto criativo como crítico. É esta esfera crítica, de previsão das efectivas relações de causalidade entre espaço e sociedade, que apresenta maiores fragilidades. Concepção. Desenho. Controlo A concepção e controlo do projecto constituem fases de um processo cíclico de design, cujo fim se detém na solução que melhor desempenho apresenta nos propósitos inicialmente formulados. A capacidade de prever a eventual subversão de efeitos, provocados por determinadas estratégias projectuais nas estruturas sociais presentes, permite um recuo no processo de design e consequente aperfeiçoamento da proposta. Análise. Representação A técnica da Sintaxe Espacial, desenvolvida por Bill Hillier e Julienne Hanson e sistematizada pela primeira vez em 1984, em The Social Logic of Space, responde a este desafio através da criação de uma nova forma de análise do espaço, através de novas representações dos sistemas espaciais humanos (mapas axiais, mapas convexos, mapas de isovistas e VGA - Visibility Graph Analysis), que têm em comum
o facto de serem facilmente traduzíveis em grafos.1 Estes grafos descrevem a complexa rede de relações (permeabilidade, acessibilidade ou visibilidade) que existem entre espaços de determinado sistema espacial, sendo essas relações representadas por arestas e os diferentes espaços por vértices. Ao conjunto de padrões relacionais entre espaços dá-se o nome de configuração (conteúdo não-discursivo do espaço). Deste modo, os sistemas espaciais são representados num grafo que internaliza o seu complexo sistema de relações topológicas. Considerando o espaço, nomeadamente o urbano, o resultado de um processo global aleatório de agregação de células, restringido por regras locais, a técnica sintáctica propõe-se compreender os efeitos provocados por esses geradores espaciais, representantes dos propósitos sociais, na estrutura global do sistema. Assim, “The essence of the problem is to capture the local-to-global dynamics of architectural and urban systems, that is, to show how the elementary generators, which express the human ability to cognize and structure an immediate spatial reality, unfold into the ramified complexities of large-scale systems.” (HILLIER, 2007: 69)
A capacidade de traduzir numericamente os padrões de configuração de sistemas espaciais, através das medidas sintácticas (conectividade, profundidade, controlo, integração e inteligibilidade espacial) possibilita também analisar e quantificar fenómenos e variáveis sociais como por exemplo os fluxos de movimento presentes na malha urbana. Configuração. Movimento A Sintaxe Espacial considera as cidades como “mecanismos de geração de contacto” (HILLIER, 2007) por proporcionar entre os seus utilizadores um campo probabilístico de situações de contacto e encontro, através de padrões de movimento gerados pela lógica configuracional da sua estrutura. A teoria defende mesmo que os fluxos de movimento
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urbano (principalmente pedestre) são determinados maioritariamente pela própria configuração espacial, desvalorizando a influência que elementos atractores possam ter na geração desses padrões - teoria do movimento natural (HILLIER, 1993). No artigo de 1993, os autores referem que,
experiência ser realizada não através da continuidade espacial absoluta (como acontece no espaço urbano), mas sim a partir das relações de permeabilidade e controlo que os limites físicos estabelecem entre os espaços constituintes do sistema. Tais relações vêmse portanto em,
“The argument is that configuration is the primary gene-
“(…) the dualism reflects only the dual nature of the boundary,
rator, and without understanding it we cannot understand
which at one and the same time creates a category of space – the
either urban pedestrian movement or the distribution of
interior – and a form of control – the boundary itself.” (HILLIER
attractors or indeed the morphology of the urban grid itself.”
e HANSON, 1984: 146)
(HILLIER et al, 1993: 31-32)
Por outro lado, a malha urbana é percorrida por um complexo sistema de movimento que a usa a dois níveis diferentes: como canal para deslocações origem-destino e como receptáculo do subproduto dessas deslocações, isto é, do valor que o espaço adquire ao ser percorrido por fluxos de movimento. Os padrões de movimento urbano, maioritariamente induzidos pela forma da malha, encontram-se deste modo ligados à espacialização de determinado tipo de usos e densidades urbanas. As cidades são, por isso, também vistas como “economias de movimento”. Os espaços mais frequentemente percorridos, devido às propriedades configuracionais da malha, são enriquecidos funcionalmente, criando efeitos multiplicadores, que por sua vez atraem ainda mais movimento urbano. Áreas da cidade bem integradas, isto é, com elevado grau de acessibilidade, são assim povoadas por maior número de “usos consumidores de movimento” (SERRA, 2008). A diversidade funcional de determinadas zonas da cidade, relativamente a outras, é induzida pelo padrão de espaços integrados e segregados na malha urbana. O valor de integração, enquanto função do grau de acessibilidade e de atracção para o movimento de cada espaço em relação ao sistema global, é exclusivamente um produto da forma da malha urbana. Por sua vez, o espaço arquitectónico revela outros tipos de estruturas configuracionais, visto a sua
O seu uso cumpre-se, deste modo, segundo uma espacialização articulada de categorias e uma lógica de controlo físico e visual, ambos os aspectos profundamente influenciados pelos limites físicos, isto é, pela arquitectura do objecto em questão. É óbvio que os padrões de uso e movimento apresentem, nestes sistemas espaciais, um controlo mais rigoroso e programado assim como tipos de interfaces sociais diferentes. A atribuição de categorias ou usos sociais aos diferentes espaços constituintes do sistema é também reveladora do elevado nível de lógica social implícita neste tipo de espaço. A distribuição programática, e sobretudo a forma física, estabelecem os interfaces entre as diversas categorias e consequentemente as situações de encontro e contacto entre os utilizadores, produzidas na efectivação das suas deslocações internas e dos outros usos espaciais. Os pontos expostos demonstram o valioso contributo que a técnica da Sintaxe Espacial pode proporcionar na compreensão antecipada dos efeitos de determinadas configurações espaciais em sistemas espaciais humanos. As relações sócio-espaciais, quando traduzidas por métodos de representação sintáctica, permitem a redução da sua complexidade a um nível abstracto de quantificação e comparação. Deste modo, desde o Projecto LIDERA de 2008, a autora tem usado a técnica para analisar a FAUP. Por fim, resta repetir o propósito inicial referido nesta exposição: encontrar uma ferramenta precisa de avaliação e
A Análise da FAUP e a Sintaxe Espacial • Tatiana Trindade com Gonçalo Furtado e Miguel Serra • Dédalo 06 • Centrifugação
previsão projectual da operatividade sócio-funcional de sistemas espaciais, sejam eles urbanos ou arquitectónicos, a usar em contexto académico e profissional.
• PEPONIS, J. e T. Bellal. (2005) In Fallingwater: Spatial structure at the scale of quasi-synchronic perception. In: Proceedings, 5th International Space Syntax Symposium 1: 65-81. • PINELO, A. M. S. (2008) Frank Lloyd Wright. Usonian houses. Uma abordagem sintáctica ao estudo do espaço doméstico. Lisboa: IST/ UTL. Dissertação de Mestrado.
Notas e Fontes Bibliográficas
• SERRA, M. (2008) Análise Sintáctica e Morfogenética Urbana. In:
+
Dinâmicas Espaciais das Franjas Urbanas - cinco casos de estudo na Àrea
1
Segundo Serra “Os grafos são objectos matemáticos utilizados para
Metropolitana do Porto. Porto: FAUP e FEUP. Dissertação de Mestrado.
representar e analisar relações existentes entre elementos de um dado
• SERRA, M. (2009) Explorando a forma da cidade periférica – Uma
conjunto, onde os elementos são representados por vértices (pontos), e
Abordagem Sintáctica. In: Arq/a Arquitectura e Arte, 67: 72-75.
as relações entre eles por arestas (linhas).” (SERRA, 2009)
• TRINDADE, T. (coord.) (2009) Caracterização espaço-funcional de Pólo da UP e áreas adjacentes [Parte I – FAUP], Proposta de Projecto
• HILLIER, B. (2007) Space is the machine: a configurational theory of
LIDERA nº 65, Reitoria da Universidade do Porto.
architecture. Electronic Ed. London: Space Syntax UCL.
• TRINDADE, T. (coord.) (2009) Caracterização espaço-funcional de
• HILLIER, B. e J. Hanson. (1984) The Social Logic of Space. Bartlett
Pólo da UP e áreas adjacentes [Parte I – FAUP], Relatório de Progresso
School of Architecture and Planning, University College London. Lon-
do Projecto LIDERA nº 65, Reitoria da Universidade do Porto.
don: Cambridge University Press.
• TRINDADE, T. (2009) Spatial and Functional Analysis of a UP’s Facul-
• HILLIER, B., A.Penn, et al. (1993) Natural movement: or, configura-
ty and its Surrounding Area – A Space Syntax Approach, In: IJUP 09:
tion and attraction in urban pedestrian movement. In: Environment and
284.
Planning B: Planning and Design, 20 (1): 29-66. • HILLIER, B., J. Hanson, et al. (1987) Syntatic Analysis of Settlements. In: Architecture and Behaviour, 3 (3): 217-231.
Planta piso 1
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Torre E Torre F
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Imagem • Mapa axial da FAUP (Piso 1) • Integração raio-n
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Torre H
A CULTURA DO URBANO E A ACELERAÇÃO: DA
VELOCIDADE MECÂNICA À MOBILIDADE VIRTUAL Texto+
Gonçalo Furtado
• Velocidade A compreensão do urbano contemporâneo e a emergência da cidade digital não pode, a nosso ver, prescindir da identificação da ocorrência de um incremento exponencial da VELOCIDADE e da existência-matriz de um desejo cultural de mobilidade. De facto, um dos fenómenos que nos pode ajudar a entender a realidade pós-industrial em que vivemos (e o papel especifico do digital) é precisamente o fenómeno da aceleração, que acompanha a passagem
do modelo mecanicista para o modelo digital de cidade, sobre o qual nos debruçámos noutros escritos. Comecemos por referir que, a modernidade, que com os seus perigos e potencialidades mobilizava entusiastas e opositores entre os pensadores do século XIX, esteve imbuída no mito da máquina, do progresso e nos benefícios da tecno-ciência. O MUNDO MECÂNICO seria também expresso na organização, forma e modo de vida urbano das cidades modernas surgidas aquando dos primórdios da
A Cultura do Urbano e a Acelaração: da Velocidade Mecânica à Mobilidade Virtual • Gonçalo Furtado • Dédalo 06 • Centrifugação
revolução industrial. Essas ficariam marcadas tanto pela referida industrialização (e só posteriormente pelos serviços) como por uma urbanização comandada pelo poder mecânico e económico e pela lógica higieno-tecnicista. Novas organizações espaço-sociais e tipologias de cidades anunciaram-se pois com a substituição do modelo medievo feudal pelo modelo sócio-económico-político do mercantilismo comercial burguês. Como refere Escudero, com a revolução industrial as cidades tornam-se enormes e o comércio volumoso: “A revolução industrial supôs uma mudança profunda não só para as actividades manufactureiras; alcançou também a agricultura, as vias e os transportes, a população, tanto no respeito à sua distribuição como ao seu crescimento, o comércio, a economia em suma, as estruturas sociais e a concepção do mundo. As pequenas cidades pré-industriais cresceram e as relações do homem com o seu ambiente variaram drasticamente”.1 Recorde-se que o urbanismo moderno tem origem precisamente na insalubridade em que a industrialização inicialmente mergulhara a cidade, surgindo as estratégias de reforma dos centros urbanos paralelamente a estratégias de expansão territorial nas colónias. O forte êxodo obreiro, após pressionar os envelhecidos bairros centrais, dirigiu-se para a periferia, e às preocupações habitacionais dos governos associou-se frequentemente a especulação burguesa. E, paralelamente aos denominados higienistas, surgiram socialistas utópicos, onde se pode já identificar princípios do urbanismo moderno - a organização controlada, o higienicismo e “zooning”. Neste sentido, recorde-se por exemplo as experiências de Claude-Nicholas Ledoux, as cidades jardim de Howard, as realizações de Owen, a Icária de Cabet, o Falanstério de Fourier ou o Familistério de Godin. O processo de transformação e modernização, iniciado no século XIV com a demolição das muralhas, em
parte devido à existência dos canhões a pólvora, foi pois de resto acelerado com a industrialização, a exponenciação da oferta de trabalho na metrópole e as facilidades de deslocação trazidas pelos novos meios de transporte (do comboio ao barco a vapor) a que voltaremos. E na metrópole surgiu também uma série de TIPOLOGIAS arquitectónicas para albergar novas actividades, não somente industriais ou habitacionais, mas também comerciais e de serviços. É o caso das “Passagens cobertas” de Paris, progressivamente generalizadas nas principais cidades em meados do século passado, como lugares expositivo-comerciais por onde deambulava a burguesia. Nestes antecedentes dos espaços públicos contemporâneos (ex. centros comerciais, shopping-centers, etc) surge uma movimentação distraída e uma percepção colectiva desatenta, similar à propiciada pelo seu contemporâneo “Panorama”. Como refere Xavier Costa: “o espectáculo de origem burguês, quer se trate do panorama, ou mais tarde, da projecção cinematográfica e incluso da televisiva, procurará negar o ponto de vista privilegiado para conseguir modelos de visão não hierárquicos. Todos eles implicam aceitar o princípio de mobilidade universal”.2 Surgem também as “Exposições Universais”, iniciadas com a de Londres em 1851, uma espécie de cidades efémeras representativas do mundo onde se expunham os bens de consumo e as novidades tecnológicas à burguesia emergente. Estas celebrações da Era Industrial e do capitalismo, são de resto em tudo semelhantes aos eventos excepcionais a que recorrem muitas das cidades actuais, ávidas pelas repercussões económicas advindas do turismo e da projecção da sua imagem em termos de marketing. Refira-se que na revolução industrial, os novos sistemas de TRANSPORTE, melhores caminhos e canais, diminuíram o tempo e custo das viagens e embarateceram as rotas comerciais permitindo colocar os excedentes no mercado. A primeira grande intervenção urbana moderna foi a reorganização urbana empreendida pelos “Bulevares” de Haussman em Paris,
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que imediatamente muitas cidade seguiriam. O seu revestimento com “macadame” reflecte, à semelhança da expressão das possibilidades de ferro nas naves industriais e estações de transporte,3 o aumento de velocidade. Igualmente com a revolução industrial, a ideia de progresso moderna, centrada na rapidez e precisão, assim como nos meios de transporte da Era da máquina, iniciam também um fenómeno interessante. I.e., com o incremento da velocidade mecânica moderna - a relação entre tempo e espaço percorrido - o percurso “desaparece”, reduzindo-se à chegada e à partida. E alguns autores chegam a descrever por exemplo a viagem férrea como uma experiência transcendental.4 Em suma, Os Panoramas, Vitrinas, Galerias comerciais, Estações e Exposições Universais, formaram um conjunto tipológico que promove eventos relacionados com o comércio e o vislumbre, sendo por isso também cenários capazes de absorver a mutabilidade, a velocidade e o dinamismo da envolvente condição económica e cultura E simultaneamente o incremento da velocidade da máquina de vapor e dos meios de transporte, e a lógica da mobilidade dos bens, deram o ritmo de vida urbana e configuraram e expandiriam, a princípios do século XX, a cidade moderna. Por outro lado, deve-se ainda recordar que a GUERRA trouxe também à Europa uma aceleração da transformação urbana (i.e. construção-destruição) única. A exaltação futurista da velocidade e da máquina (a mesma que pouco depois mataria Sant`Elia!) e a crença na ciência e na técnica aplica-se então ao discurso estético e aos novos modos de vida da cidade. Sant`Elia proclamava: “nós (…) devemos buscar inspiração nos elementos do novo mundo mecânico que criámos e de que a arquitectura deve ser a mais bonita expressão”.5 Por vezes é essa crença na tecnologia, no progresso e na máquina da cultura industrial, que se repete nas visões por vezes cegas
de alguns tecnólogos da nossa mais recente era da informação. Mas se, como apontámos, a cultura da máquina incrementou a velocidade e esteve na origem do modelo de cidade moderna e dos aspectos físico-culturais decorrentes da urbanização, a dita CULTURA DIGITAL, atingida a transmissão à velocidade da luz, permite actualmente conceptualizar outro modelo. Em grande medida as novas tecnologias instauram na realidade quotidiana o que antes era mera ficção científica. Constatam-se novas formas de vida no espaço digital da Net e a inauguração de uma nova dimensão da realidade. Na imediatez telemática das tecnologias da comunicação, a velocidade torna-se absoluta, desaparecendo a distância e o protagonismo da localização física. O bit torna-se na unidade de medida e no denominador comum que constrói as utopias digitais do ciberespaço assentes numa quase subestimação da materialidade. A tecnologia digital vem pois sobrepor, com a imaterialidade e a simulação, uma lógica distinta da reprodutibilidade mecanicista que estava presente na génese da cidade moderna, ditando-a agora a uma SUBMERSÃO no espaço telemático. • Mobilidade Como aludido, a revolução industrial trouxe novas necessidades e possibilidades tecnológicas, que metamorfosearam brutalmente a Arquitectura e o Urbanismo. E mais tarde a vanguarda moderna procurou formas e estratégias apropriadas aos avanços tecnológicos assim como novos modos de organização urbana. Em grande medida, a transformação-dispersão da cidade novecentista foi de resto permitida pela possibilidade de distribuição energética e pelos novos meios de mobilidade e comunicação que, em conjunto, trariam uma nova PERCEPÇÃO-DA DISTÂNCIA-TEMPORALIDADE; os quais afecta-
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riam os relacionamentos espaciais da arquitectura, e suscitariam novos padrões de urbanização. De facto, depois dos fios telegráficos e telefónicos, seguiu-se a proliferação dos média, das auto-estradas e automóveis, difundindo a noção de acesso, mobilidade, e um tipo de experiência nomádica para os condutores que passam a apropriar a cidade em movimento sob uma série de planos e pontos de vista. O processo de suburbanização do pós-guerra não é alheio à explosão dos automóveis, das áreas suburbanas residenciais (desde os anos 70), dos centros comerciais, das comunicações e dos média. Joel Garreau empregou o termo “EXURBIA” em “Edge city” para descrever os processos desenvolvidos fora das cidades americanas, e hoje o nosso imaginário urbano local reestruturase já com a cidade global. Atenda-se ás palavras na notável publicação do UIA de 1996: “A cidade está cada vez mais sujeita aos fluxos e intercâmbios gerados pelo aumento de circulação de pessoas, veículos e informação, o que muda o carácter-função do espaço sobre o tempo. (…) Os espaços de trânsito são tão importantes como os espaços urbanos estáticos tradicionais. O trânsito veicular, que certamente criou conflitos na cidade do séc. XIX, é na cidade contemporânea a medida da necessidade e desejo de mobilidade e acesso, e requer a transformação dos espaços tradicionais. (...) Os problemas de construir auto-estradas nas cidades e a proliferação (...) de transporte privado, cómodo e rápido, (...) o desejo de mobilidade pessoal, (...) procura ser reconciliado com a necessidade de desenvolver cidades habitáveis e sustentáveis (...) - como equipar a cidade e para uma cultura móvel, (…) uma “cidade para o trânsito”6. Como referimos, um dos responsáveis por este processo foi a generalização do AUTOMÓVEL como meio individual de locomoção. “O automóvel expandiu a escala bidimensional do planeta, alterando a ideia de distância e transformando radicalmente noções como a de família. Martha Rosler refere que o
tráfego automóvel privado reformulou as nossa vidas e paisagens, iniciando a experiência de mobilidade, e tendo, ao contrário da ferroviária ou aérea, alterado o nosso poder de decisão. Esta é na contemporaneidade, característica de uma “civilização que requer a circulação não só de mercadorias mas de ideias (…) e pessoas”.7 Por outro lado os mais recentes PC´s, que suplantaram em número os próprios automóveis, constituem novamente a generalização de um meio individual de interacção colectiva e geram uma nova ideia de espaço conceptualizado no termo ciberespaço. Atenda-se então como o desenho de muitos paradigmas urbanos como Las Vegas expressa o automóvel em movimento, ficando a imagem da cidade dada por out-doors transitórios. Um excerto do ensaio “Teleantropos” do Emanuel Pimenta explícita claramente como a performance e o desenho da cidade muda com a passagem da tecnologia automóvel para a digital; e a forma como a urbanidade se “tematiza” e se constitui como fluxo informacional. Em grande medida, a velocidade do transporte de coisas materiais dá lugar ao fluxo informativo virtual; o que no entanto significa um incremento que, se subestimado, pode comportar fracturas civilizacionais. Escreve Pimenta: “Com o aproximar do final do século XX, gradualmente os desenhos urbanos de várias das maiores cidades deixaram de obedecer ao modelo operacional estabelecido pelo automóvel e foram-se transformando na imagem de circuitos integrados. Tiveram início os atritos entre as diferentes tecnologias e o automóvel transformou-se rapidamente em espécies de ‘paredões’ artificiais, invisíveis e dinâmicos compartimentando a cidade. As ruas deixaram de ser lugares para pessoas e passaram a ser barreiras separando e, em certa medida, isolando conjuntos de edifícios. Daí aos poderosos sistemas de telecomunicações e à metamorfose virtual, a cidade do
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final do milénio produziu um magnífico salto ao efémero levando McLuhan a afirmar que o que restaria fisicamente do espaço urbano nada mais seria que um fantasma para turistas. De facto, a cidade enquanto urbe passou a estar presente no poderoso sistema de fluxo informacional, expandindo-se na Net, avançando inexoravelmente para o campo. Mas restaram ‘ruínas’ de outras épocas na forma de antigos edifícios e a cidade transformou-se em parque temático de si própria, para turistas como afirmava McLuhan (…).Assim a imagem da cidade muta-se novamente transformando-se na efémera mandala trans-sensorial dos sistemas de telecomunicação em tempo real e as construções ‘físicas’ passam a ser parte desse complexo enfeixamento informacional”.8 Agora instaura-se a MOBILIDADE VIRTUAL e a figura de um “teleantropos” que se revela à distância; segundo Pimenta uma nova espécie civilizacional: “A essência da poderosa metamorfose representada pela emergência do ciberespaço nada mais é que (…) a ideia que torna possível também pela primeira vez, o aparecimento dos mega-agrupamentos humanos, como megacidades ou mega-empresas”. O fluxo das massas migratórias justifica de facto a passagem da população urbana de 3% no início do século XIX para os 50% actuais e a emergência de megacidades, as quais dentro de uma década, poderão atingir o valor da população espanhola.9 No entendimento de Pimenta: “Assim, o antigo conceito de cidade enquanto centro de conhecimento especializado ou de produção dá lugar à cidade enquanto centro de lazer”.10 Interessaria agora referir que formas de NOMADISMO humano, foram continuamente expressadas por trovadores, vendedores ambulantes, homens do circo, refugiados, desertores, emigrantes, etc. Mas, como refere Banham,11 a modernidade anunciou uma cultura verdadeiramente nomádica, que hoje
se encontra instituída. Dotada de infra-estruturas e meios de mobilidade (da ferrovia de longa distância, automóvel e caravana individual, ao tráfego aéreo e aeroportos internacionais), de estância (como o campismo e as multinacionais hoteleiras) ou outros serviços de apoio (como a rede bancária mundial, o travel cheque, o cartão de crédito e a rede informática) e equipamentos de viagem ligeiros e especializados (da bolsa de higiene aos guias e travel books) ou atestados de viagem (como a máquina fotográfica ou o souvenir). Um conjunto essencialmente simbólico, já que toda viagem se encontra projectada e confinada aos limites da própria estrutura que a possibilita (com as promessas de um conforto no destino igual à partida) impedindo precisamente o afastamento daquilo a que fugimos. Refira-se pois que a compressão espaço-temporal da nossa sociedade é paralela ao crescimento desde a Segunda Guerra Mundial da indústria do ócio e TURISMO de massas; actualmente suportada por um autêntico sistema organizado. Paralelamente a este processo, o dito “património” arquitectónico e o ambiente “temático” começam a tender para frequentemente significar uma e a mesma coisa; como amplamente debatido por muitos autores. De facto, podemos identificar o paralelismo entre algumas reconstruções urbanas e simulações tipo Eurodisney - locais de percepção e consumo contemporâneo. E Ignási Sola-Morales, no notável “Património arquitectónico ou parque temático”12, incluso refere que arquitectura se sujeita a um processo geral de museuficação, integrando-se num novo mercado em que pode desaparecer a sua essência. Para além da referência para a importância deste debate, gostaríamos ainda de salientar o PAPEL DA VIAGEM AÉREA, assim como da experiência e percepção do mundo que dela resulta. Martha Rosler, em “In the place of the Public”, é por exemplo uma das autoras que desde o campo artístico aborda este assunto, o qual (como refere Vidler no prefácio á
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referida publicação) é de sobremaneira pertinente para a teoria da arquitectura. Atenda-se neste sentido que a viagem aérea de longa distância, que adquiriu importância com o mundo turístico e negocial, foi totalmente “domesticada” (oferecendo refeições, filmes, comércio, etc.) durante o período que medeia a privacidade doméstica da partida e a da chegada ao destino; Pelo que por alguma razão já Corbusier denominava os aviões de casas voadoras! Como refere Pimenta, também “os aeroportos foram gradualmente sendo transformados em centros comerciais destinados a pessoas que passaram a viver parte das suas vidas transferindo-se de uma parte para outra do planeta, a ‘flutuar’ quotidianamente”13; E movimentando milhões de pessoas e os biliões de dólares advindos da intensidade migratória do turismo, incluem progressivamente shoppings, restaurantes, hotéis, centros médicos, etc. O interessante trabalho artístico de Rosler descreve precisamente, à semelhança da nossa condição nomádica actual, espaços e experiências físico-psicológicas de transitoriedade, deslocação e eventualmente alienação. Como aí se alude, o terminal contemporâneo constitui-se enquanto plataforma fulcral de trânsito, caracterizada por corredores polidos vazios em que se canalizam passageiros para os embarcadouros, fazendo-os parecer uma mercadoria sujeita à eficiência dos fluxos. Recorde-se agora como interessantemente já na década de 60, em “Community without propinquity” de Melvin Webber, se teve como corolário o facto da densidade física já não ser a característica exclusiva da urbanidade. O incremento da mobilidade e a importância dos meios de comunicação levavam a que, nos anos 70, a “cidade-região” estivesse definida não por limites políticos, mas por o que Ignási denomina por FLUXOS (de mercadorias e pessoas etc). O novo conceito de urbanidade na cidade região passava pois a contemplar uma cultura de mobilidade, e as auto-estradas e cinturões que conectavam núcleos,
funções urbanas e suportavam as comunidades e a vida urbana, a integrar a gramática de construção da cidade. Solá-Morales precisa também que, no modelo dos CIAM- i.e. Carta de Atenas - o movimento correspondia já a uma das 4 funções (conjuntamente com a habitação, lazer e trabalho), mas o dito movimento, ainda que se reconhecesse a sua importância e se previsse uma zona específica de transportes, era objecto de tratamento separado. E apenas no anos 50, por parte da ala crítica dos CIAM, se começaria a desenhar o movimento, e a conceptualizar-se a figura que Ignási denomina de “fluxo”, actualmente essencial para compreender o funcionamento das cidades globalizadas. De resto esta crise abala simultaneamente um conceito estável da Arquitectura e a prática do próprio Planeamento.14 Como salienta Solá-Morales, a arquitectura não pode continuar apenas a ser vista em termos de estabilidade, localização e lugar; quando os fluxos de informação estendem a cognição-apropriação-percepção humana ao planeta e se altera o próprio significado tradicional de mobilidade e de lugar. De resto, a mutação em curso afecta, como se vem aludindo, o planeamento urbano, onde os PARÂMETROS URBANOS tornam-se simultaneamente fixos e deslocados. E a própria descrição espacial convencional, congelada no ponto de vista da planta ou da perspectiva linear Albertiana, tende a ser substituída por uma descrição de dados de associatibilidade múltipla assente em meios (visuais e não visuais) de cognição móvel (do infravermelho ao SIG).15 Refira-se agora o facto de em grande medida a análise de como os novos métodos de REPRESENTAÇÃO urbana afectam a forma como as cidades são planeadas, construídas e experienciadas ser um assunto ainda pouco explorado. No âmbito deste artigo gostaria de remeter para a publicação “City Speculations”editada por Patrícia Phillips e
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que inclui contributos de autores como Christine Boyer. Esta engloba um conjunto de experiências, inspiradas-baseadas na conhecida maqueta gigante de NY, realizada sob a direcção de Moses por altura da Feira Universal de 1939. Sumariamente a questão que se levanta é o facto de essa se tratar de uma representação obsessiva e estática; ainda que Moses estivesse consciente da disponibilidade de uma diversidade de técnicas de simulação (algumas das quais empregues noutros locais dessa mesma Feira) e que estão bastante mais próximas do modo como experienciamos o espaço.16 Ora as referidas experimentações ou “city speculations” mais recentes, ainda que apresentando várias estratégias e tecnologias de representação da cidade de hoje, têm precisamente em comum o facto de fugirem da representação singular e estática, expressando como aí se refere a ausência pós-moderna de um sujeito universal. À semelhança da nossa experiência urbana, privilegiam pois múltiplos pontos de vista e incorporam-se parâmetros de movimento e temporalidade que, simultaneamente, questionam como essas imagens afectam a percepção e compreensão da cidade actual. Neste sentido refira-se por exemplo a experiência do “Environmental simulation center”, dirigido por Kwaetler, o qual salienta a importância da simulação urbana incorporar o tempo e o movimento do mundo real, abandonando as representações urbanas estáticas que sempre estiveram associadas às idealizações congeladas do poder.17 Ou a “Fresh Kills: Imaging the landfill/scalling the city”, de Mierle Laderman Ukeles, o qual identifica uma nova forma de experiência de planear (e contactar com o lugar) baseada nos recentes sistemas de representação, numa altura em que se tornou impossível lidar com a complexidade de um local sem a combinação de múltiplas tecnologias de representação (fotográficas, numéricas, temporais,etc). Processando-se múltipla informação; uma diversidade de sistemas
de DM-GIS (i.e. data mangement-geographic information system) prometem assistir à tomada de decisões; combinado uma variedade de informações específicas em entidades mais maneáveis. Como refere Phillips, questiona-se assim também de que forma estas “metodologias de imaginário exerce influência nas nossas percepções do lugar […] como esses sistemas afectaram os parâmetros usados para lidar com o planeamento (...)”.18 Para além do prisma do planeador-urbanista, também, do ponto de vista do cidadão que experencia a urbe, tendem igualmente a existir (além das tradicionais landmarks e dos roteiros), outros inovadores SISTEMAS DE NAVEGAÇÃO com vista a permitir lidar com a complexidade da cidade, para permitir aceder em qualquer sítio a informação integrada na arquitectura. E por exemplo para Michael Mensal, “os média, como a arquitectura, são enformadores de ambientes. Se ambos enformadores trabalharem sinergeticamente para um produto integrado, o urbanismo contemporâneo pode descobrir uma chance para manter um largo grau de coerência organizacional e navegabilidade invés de ser segregativo com infinita fragmentação”.19 De facto, na cidade, surgem simultaneamente também novas formas de espaços arquitectónicos e novos usos pautados pela MOBILIDADE. O imperativo da mobilidade e o entendimento do espaço como rede é claramente demonstrada pela densidade de infra-estruturas (auto-estradas, estações de serviço, portagens, parques de estacionamento, terminais de autocarros, aeroportos e torres de controle, terminais portuários, metro, inter-modais e redes de transporte integrados, linhas férreas de alta velocidade, etc) e pela profusão de megaequipamentos (centros comerciais, etc) que se afirmam como fenómenos periféricos de centralidade intimamente relacionados com as redes de comunicação.20
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Do ponto de vista conceptual, a análise do fenómeno urbano necessita de recorrer a várias perspectivas assentes em parâmetros distanciados dos convencionais de permanência e estabilidade. Como notavelmente referiu Solá-Morales, a nova concepção espaço-temporal e a conceptualização da figura de fluxo “(...) começou a ocupar um lugar central na hora de explicar a arquitectura e a cidade contemporâneas”.21 Hoje, o espaço arquitectónico, na crise de uma concepção estável-estática (perante novas noção espaço-temporais), parece procurar já na justaposição de fenómenos e fluxos materiais (pessoas e bens) e imateriais (serviços e informação) redefinir-se, viabilizando novas vivências e formas de relacionamento. (Eurolille pode ser um exemplo óbvio de uma resposta, em que a arquitectura se constitui como suporte das redes e como viabilizador de trânsito. Uma nova centralidade que, apoiando-se no nó do TGV, usufrui potencialmente da sua posição LOCALGLOBAL.) E vivemos uma contemporaneadade em que as redes de infra-estrutura e comunicação (eixos de transporte e informação) e suas interligações representam o suporte em que se apoiam os fluxos das recentes dinâmicas territoriais e conformam a estrutura dactual e inevitavél nova realidade territorial disseminada-alargada. (1999/2000)
vapor que, em finais do século XIX, teria um papel importantíssimo no comércio mundial. Esta renovação dos meios de transporte também exigiu a construção de enormes canais, pontes e ferro vias, e foi paralela à supressão dos direitos aduaneiros. 4
Martha Rosler refere que o filósofo transcendental R.W. Emerson
descrevia o efeito perceptivo da viagem de comboio como uma droga “que desligando o viajante do local, e perdendo a percepção de estabilidade (…) permite uma nova (transcendente) percepção da natureza (…)”. (Veja-se: Martha Rosler, “In the place of the Public”, Centz, 1998, p.33. 5
Sant´Elia cit. in: John Beckmann (ed.), “The virtual dimension: archi-
tecture, representation and crash culture”, New York, Princeton Architectural Press, 1998, p.41. 6
“A cidade contemporânea dinâmica”, in: AAVV, “UIA Barcelona 96,
Col-legi d`Arquitectes de Catalunya, Barcelona: CCCB/Actar, 1996 7
8
Martha Rosler, “In the place of the Public”, Centz, 1998, p.27. Emanuel D. Pimenta, “Teleantropos”, Lisboa: Estampa, 1999,
p.150/151. 9
Hoje prossegue a tendência, surgida na segunda metade deste século,
da emigração das populações para as cidades, que em breve prefazerão 50% da população mundial e dentro de 10 anos várias cidades no mundo (a maioria em países em desenvolvimento) terão 40 milhões de habitantes; i.e., a população de Espanha. (Veja-se: [Entrevistador] em: A. Gomes, J. Malheiros, T. Sousa, “Portugal 2020”, Lisboa: Fenda, 1999, p.329). 10
Emanuel D. Pimenta, “Teleantropos”, Lisboa: Estampa, 1999, p.270.
11
Reyner Banham, “Neonomadismo e nomadismo chic”, em: George
Teyssot (ed.), “Il progetto domestico: la casa dell´ùomo, archetipi e prototipi”, Milão: Electa, 1986, p.240/245.
Notas + 1
(1988), p.7 2
12
Policopiado fornecido pelo autor.
13
Emanuel D. Pimenta, “Teleantropos”, Lisboa: Estampa, 1999, p.294.
14
A crise afecta também a condição do Planeamento, quando se torna
Antonio Escudero, “La revolución Industrial”, Madrid ANAYA, 1997
Laura Kurgan e Xavier Costa (eds.), “You are here”, Barcelona: MAC-
BA, 1995, p.109-111.
um imperativo incorporar a dimensão temporal, tanto no sentido de ponderar as “mobilidades” com o imprevisto. O segundo suscita que surjam
3
Saliente-se também o protagonismo do comboio, que aproveitaria as
novas formas de actuação, colaboração privado-público, gestão e instru-
novas fonte de energia. Desde as experiências de Trevithick ou Stephe-
mentalização urbanística como o “projecto urbano” dos anos 70/80..
son até a êxitos como da Rocket que circulava a 24 Km/h, cria-se uma
15
situação impulsionadora a criação das primeira linhas de ferroviária
Centro Internacional de estudos avançados no campo da Arquitectura
a partir de 1825. Pouco depois generalizou-se o navegação marítima a
e do Urbanismo”, Yona Friedman incluia a teoria dos grafos, a teoria
Podemos referir que já em 1966-68, a propósito do “Projecto de um
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da comunicação e a cibernética na prática arquitectónica e urbanística. (Veja-se: Yona Friedman, “Arquitectura móvil”, Barcelona: Poseidon, 1978) 16
Moses, partiu de múltiplas fontes representacionais (mapas, fotos,
etc.), para realizar uma maquete descomunal de Nova Iorque. Christine Boyer refere na publicação que a opção pela estaticidade foi consciente e tinha como propósito representar os 50 anos de domínio de Moses na construção de New York. Como refere Boyer, ainda que os dioramas, panoramas e mesmo museus de cera tenham sido formas de entretenimento no fim do século XVIII, eles nunca experienciariam uma revitalização de interesse como no final do século XIX. A Feira universal de 1939 possuía dois exemplos opostos - a projecção da kodak numa secção esférica e a imagem móvel projectada num superfície curva na instalação “time and space” - e alguns anos depois, Waller usaria um aparato com som e imagem (cinerama) mais próximo da forma como a mente compreende o espaço. 17
Patricia C. Phillips (ed.), “City speculations”, Boston: Princeton Archi-
tectural Press, 1996 p.38. 18
Patricia C. Phillips (ed.), “City speculations”, Boston: Princeton Archi-
tectural Press, 1996, p.93. 19
Bart Lootsma, Greg Lynn, Bert Muller, Mensal, West , Wegner (eds.),
“Media and architecture”, Roterdam: The Berlage Institute, 1998, p. 80. 20
Estas tipologias, inseridas nas redes de fluxos, expressam estéticas
dinâmicas. Refira-se dois exemplos interessantes: o do “Centro de gestão das auto-estradas” de Odile Decq/Benoit Cornette; e a “Área de descanso” Schinichi Ogawa, um equipamento polivalente junto à estrada que pretende ser uma composição que incorpora o tempo. (Veja-se: AAVV, UIA Barcelona 96, Col-legi d`Arquitectes de catalunya, CCCB/Actar, Barcelona, 1996, p.205). 21
Ignási Solá-Morales, “Present I futurs, Arquitectura a les ciutats”, em:
AAVV, UIA Barcelona 96, Col-legi d`Arquitectes de catalunya, CCCB/ Actar, Barcelona, 1996, p.14.
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CON CUR SOS
PLADUR VENCEDOR
Projecto+
Cláudia Freitas e Marta Oliveira
MENÇÕES HONROSAS Projecto+ Eva Vieira, Mariana Simões e Renata Polónia Projecto+ Tiago Sanches de Castro e Manuel José Rodriguez
ENQUDRANDO AS ESTRELAS
VEN + CE DOR PLADUR
• Conceito de implantação O edifício para observação astronómica está localizado num dos pontos mais alto do Yelmo de la Pedriza. A escolha do local resultou do cruzamento dos requisitos dominantes para este programa: a inexistência de obstáculo visuais e de contaminação por poluição luminosa, de modo a garantir a maior clareza e qualidade da observação dos astros. Sendo o Yelmo de la Pedriza caracterizado por uma beleza incomparável, consideramos que o edifício deve constituir uma plataforma de observação elevada de modo a privilegiar a aproximação com o céu e a conservar as características naturais do território. O edifício, ao elevar-se do solo, possibilita a continuidade de atravessamento físico e visual do território natural [01].
Projecto+ Cláudia Freitas e Marta Oliveira
Acesso ao edifício de observação astronómica a partir da área envolvente
Rio Manzanares YELMO de la pedriza 1717 m OBSERVAÇÃO ASTRONÓMICA (edifício) 1660 m
Collado de la pedriza 1300 m Canto cochino 1100 m
Manzanares el real 978 m
Planta piso 1 • escala 1:500
Alçado principal escala 1:500
Corte aa' • escala 1:500
Corte bb' • escala 1:500
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Acesso à zona nocturna
• Pele O conceito base do projecto é desenvolvido em torno do enquadramento do olhar para o céu. Deste modo, ao privilegiar a contemplação vertical, resulta imperativo dotar o edifício de um filtro que enfatize estas relações. O ripado de madeira que envolve o edifício funciona como uma pele, uma membrana que protege o interior [04]. No interior, o olhar está direccionado para o céu através dos pátios, da cúpula e dos cones do espaço de exposição, enquanto, a contemplação da envolvente é filtrada pela pele do edificio. A madeira constitui o elemento de transição interior/exterior e, igualmente, de identificação do exterior, como acontece na rampa de acesso à cobertura. Deste modo, o olhar para a envolvente é dificultado, enquanto o olhar para o céu é facilitado, direccionado e acentuado. Paralelamente, a pele de madeira é recortada, desenhando-se em baixorelevo círculos que fazem alusão aos principais elementos celestes que orbitam em torno do sol - os planetas do sistema solar.
Concurso Pladur • Dédalo 06 • Centrifugação
Acesso à sala de observação astronómica d2 • Sala de exposições didácticas
d1 • Recepção e zona de espera
[a] • Entrada principal
• Pladur De acordo com o conceito que rege o acabamento exterior do edifício - a pele em madeira - o interior deste assume também uma linguagem contínua. No entanto, esta contrasta com o exterior e assume uma certa neutralidade, transmitida sobretudo pela clareza dos acabamentos. Deste modo, a aplicação dos materiais e sistemas Pladur tanto no sentido vertical como horizontal (paredes e tectos) confere ao interior a coerência pretendida. Para além disso, tanto a sala de observação astronómica, a rampa que lhe dá acesso e os cones da sala de exposições didácticas seguem a mesma linguagem, sendo executados com materiais e sistemas Pladur.
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UMA VIA PARA O ESPAÇO Menção Honrosa+
Eva Vieira, Mariana Simões e Renata Polónia
O conceito parte da forma elíptica das galáxias, tomando como referência imagens da Via Láctea. O observatório surge como elemento central da organização do espaço distinguindo e associando duas zonas logísticas: uma de funcionamento de dia, outra de noite. A nascente a entrada e toda a logística diurna, a poente as infra-estruturas nocturnas, mais reservadas com espaços exteriores privados e acesso aos observatórios. O espaço do observatório deveria ser coberto por uma cúpula retractiva que permitisse projecção de imagens no seu interior durante o dia e observação directa através de um telescópio para o céu durante a noite. A intenção arquitectónica é subtil, não pretende evidenciar-se na paisagem, já que o local é por si só, bastante expressivo. A implantação fixa-se num local mais plano, entre alguns rochedos menos altos, num diálogo constante entre o existente e o construído que visa a integração. O edifício expande-se no terreno, entre as rochas. A cúpula é também envolvida por
Concurso Pladur • Dédalo 06 • Centrifugação
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esta forma, de modo a atenuar o impacto na envolvente deixando o tratamento exterior selvagem. Um passadiço que é envolvido pelos rochedos leva-nos a outros percursos nomeadamente em direcção ao Yelmo. Este é conservado como elemento principal da paisagem, preservando todo o montanhismo e escalada que ali se pratica. A linguagem arquitectónica remeteu-nos para um material que fosse expressivo, mas que conjugasse a sua cor com o terreno envolvente. Deste modo, a estrutura do edifício é em betão, revestida no exterior com aço corten, material de que são constituídos também os pequenos observatórios exteriores.
Concurso Pladur • Dédalo 06 • Centrifugação
UM ALTO NO PERCURSO Menção Honrosa+ Manuel José Rodriguez e Tiago Sanches de Castro
• O Programa
• Intenção
Enquadrado no concurso Pladur, o programa de este ano consistia num Posto de observação estelar, que se situaria no Yelmo de La Pedriza, uma cordilheira perto de Madrid. Esta estação deveria ter oito salas de observação, assim como zonas de descanso para cientistas e visitantes – quartos individuais para os cientistas, e uma zona comum de descanso para estudantes/visitantes; e área de suporte àqueles – “cantina” e cozinha, e uma sala de descanso/encontro. O mais importante, um salão onde se situa o posto de observação com cúpula retráctil – para observação nocturna e diurna; zona de exposições, gabinetes, e um auditório. Não esquecendo, claro, a recepção, arrumos, etc.
A intenção passou por criar um objecto que não afectasse visualmente a montanha. Não queríamos matar a montanha, por isso não colocamos o projecto no ponto mais alto. Queríamos fazer algo que não aparentasse ter a dimensão prevista, quase 3000m2. Aproveitando o que conhecíamos do sítio – uma elevação considerável com uma mole rochosa e fissuras profundas. Pensamos em multiplicar essas fissuras a nosso favor e escavar o programa dentro da montanha. O projecto era o espaço dentro da montanha e não um objecto. Enterrado, e de alguns pontos sairiam os pontos de observação, a cúpula retráctil (um pouco) e a entrada, como se de um quartzo que sai de uma pedra de granito.
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Homem
Natureza
Montanha
Depois o posicionamento na montanha respeitava dois parâmetros básicos: primeiro a entrada do edifício deveria fazer parte dos percursos “pedestres” ali existentes. Deveria surgir um volume, um cubo, que sairia da montanha, e levaria quem passasse a penetrar na montanha, percursos que se fariam com a rocha, que se veria pontualmente, e que se esconderia por detrás do pladur.
Planta geral
Concurso Pladur • Dédalo 06 • Centrifugação
Entrada
Localização
• Iluminação A iluminação seria feita através de dois sistemas: um através das fissuras naturais do terreno, que ao interceptar com o projecto criariam pontos de vista bastante controlados sobre a envolvente, e através de “chaminés” desenhadas para esta função. • Postos de observação Os pontos de observação (8) distribuem-se em torno da montanha. Como são caixas de dois pisos, sendo o piso de entrada coberto possibilitando a realização de pequenas aulas ou outras actividades como pesquisas etc. Todas as salas conectam-se através de percursos à sala descanso diurno onde também se podem fazer aulas. Para ir a um conjunto de postos de observação é sempre necessário passar por essa sala, possibilitando um momento de reflexão quando se passa de uma parte da abobada celeste para outra parte (uma vez que a abobada é nunca é vista na sua totalidade em cada um dos postos observação.) Qualquer actuação do arquitecto implica a manipulação mais ou menos agressiva sobre a natureza. A questão era como a fazer. Foi escolhida uma imagem de projecto que respeitasse esta poderosa identidade do lugar. Esconder o projecto sob a montanha, mentir na sua dimensão e manter a identidade do sitio. Como escreveu Nietzsche: - “ O rosto que diz uma mentira está a dizer a verdade”.
Esquema de iluminação
DPA Texto+ Sérgio Cardoso
Estágio Dominique Perrault Architecture. Feito. Gosto destas introduções à Gordon Ramsay. São tão mais simples, tão mais fáceis, espremem tudo à sua essência. De facto, poderia apenas dizer isto, desejarvos um bom resto de tarde e ir-me embora. Não ignorando que há quem não tenha paciência ou interesse sobre o que vou dizer, falarei ainda assim. Está feito o estágio, 6 meses passados depressa, a ser mais exacto diria que voaram. Houve quem me tenha perguntado se estava a ser fixe, se recomendava. Agrada-me a agência, especialmente esta nova onde estamos agora, uma antiga fábrica, remodelada para um escritório de Arquitectura, grande open space, repleto de luz mesmo em dias com pouco sol, suficiente para caberem todos. Os colegas de trabalho, sem excepção, são todos bem dispostos, simpáticos, permitem-se a sua pausa para mais nada que não seja ir dar duas de conversa. Gera-se um bom ambiente de trabalho, e o trabalho nunca estraga o ambiente. Gosto dos pots (pequenos lanches de fim de tarde) erráticos, porque o Dominique foi a Espanha e trouxe um presunto, porque alguém foi ao seu país e trouxe qualquer coisa, sempre regado com, diria, um bom vinho. Agrada-me o pot sempre que alguém sai da agência, uma espécie de última reunião com toda a gente, que te deixa sempre um presente que sabem
DPA • Sérgio Cardoso • Dédalo 06 • Centrifugação
que tu vais gostar porque te conhecem bem. De muitas formas é bom o choque com o profissionalismo, depois de 5 anos a tratar de tudo à minha maneira, agora sei de facto como tratar de alguma coisa. Tudo é organizado, da mais pequena encomenda à maior organização de uma exposição, tudo a tempo, a funcionar. Agrada-me, com ironia, o encontro com a realidade do dinheiro, esse todo-poderoso do nosso tempo. Porque nunca o tinha sentido com tal intensidade, e como tal é mais uma lição a aprender. E desagrada-me no mesmo modo. Controla tudo, não sobra espaço. Desagradam-me algumas coisas, obviamente. Invejo quem tem Autocad 2009, e eu tenho Autocad LT 2006. É amargo às vezes, quando te pões a propôr alguma coisa, vejas filtrada a ideia pelo teu chefe de projecto, ou pelos outros arquitectos e o produto final que chega à reunião já vai manco na sua essência, por vezes sem metade do sumo. De igual modo fico contente quando não o fazem, assim recebe-se a opinião do que de facto foi a tua ideia. Irrita-me o pouco tempo, especialmente dos concursos, 1 mês, 2 meses, o que lhes retira algum período de maturação. Suponho que seja o mesmo em muitos escritórios, e no final até acabo por perceber, é um concurso, não é um projecto, talvez seja a desintoxicação dos projectos anuais a que estava habituado na FAUP. A confiança que te depositam, em proporção directa à quantidade e responsabilidade de trabalho mas inversa à margem de erro, coloca sempre alguma
pressão. E desagradam-me os horários das 9 às 19.30, 20 horas, sempre. Ai arquitectura. Não me desagradam muitas coisas porque gosto de trabalhar aqui. Agrada-me ver o monsieur Perrault, ou o Dominique, como queiram, na agência. Não pensava vê-lo às vezes todos os dias, muito menos falar com ele. Agradame ver que todo e qualquer projecto parte dele, passa por ele, é discutido, confirmado ou mudado por ele, e não sai da agência sem aprovação dele. Se Dominique Perrault é bom arquitecto? É, acho que sim. Há também quem ache o contrário. Pelas obras feitas – a minha bitola para julgar, ai palavra tão forte, um arquitecto – é bom. Talvez tenha perdido um pouco de coragem nos concursos, a coragem mostrada nas primeiras obras, nos manifestos. A “violência do neutro” perdeu-se um pouco nos concursos. Ou talvez a tenha reservado para outro tempo, fora desta história dos blobs e dos anti-blobs, que se proclamam e expandem e saturam. Ou talvez seja eu a querer enterniza-lo num método e estilo, e negarlhe o direito a evoluir. Mas no meio de ensaios bons, mas direi menores, surgem jóias de vez em quando, fascinantes, interessantes, de impacto – e leiam-me por favor os adjectivos como significantes de alguma qualidade arquitectónica – que ainda retomam a reflexão iniciada no Velódromo e Piscina de Berlim, o seu manifesto maior.
É um bom arquitecto porque aprendeu com os erros, destaco a Biblioteca Nacional de França, edifício ícone mas atroz na sua falta de funcionalidade, odiado por tantos. A transição temporal BNF – Berlim – Luxemburgo, edifícios com programas que não se admite falha, denota reflexão para não ser condenado outra vez pelo mesmo erro. Aprendeu, e isso deve ser bom, acho eu. E é um bom Arquitecto porque eu gosto das suas obras. Ontem foi o último dia que trabalhei lá. Gostei. Vou ter saudades disto, e de Paris. E sim, é fixe e recomendo. Notas + Texto publicado anteriormente em www.ideiainteligente.blogspot.com
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FAUP LÁ FORA
BREVEMENTE...
CrĂŠditos+
Álvaro Domingues+
Miguel Brochado+
Geógrafo, Professor Associado na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Cláudia Feitas+
Miguel Tavares+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Eva Vieira+
Pedro Gadanho+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Arquitecto, Professor Auxiliar na Faculdade de Arquitectura da UP.
Fábio Cunha+
Pedro Leão Neto+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Arquitecto, Professor Auxiliar na Faculdade de Arquitectura da UP.
Francisca Durão+
Pedro Neto+
Recém licenciada, Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Francisca Teixeira+
Pedro Pita+
Estudante de Arquitectura na Escola de Arquitectura da Univ. Do Minho
Arquitecto recém licenciado na Faculdade de Arquitectura da UP.
Paulo Rebelo+ Guilherme Sepúlveda+
Arquitecto recém licenciado na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Renata Polónia+ Gonçalo Furtado+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Arquitecto, Professor Auxiliar na Faculdade de Arquitectura da UP.
Ricardo Leal+ João Gaspar+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 3º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Ricardo Pinto+ João Margalha+
Estudante do 3º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Licenciado em Planeamento Regional e Urbano, mestre em Projecto do Ambiente Urbano pela FAUP; possui obra fotográfica premiada e patente em diversas colecções.
Ricardo Sousa+
Luís Grilo+
Sérgio Cardoso+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Luísa Magnani+
Sérgio Pinto+
Estudante na Facoltà di Architettura del Politecnico di Torino.
Estudante de Arquitectura na Escola Univ. das Artes de Coimbra.
Manuel Graça Dias+ Arquitecto, Professor Arquitectura da UP.
Estudante do 3º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Sofia Granjo+ Auxiliar
Convidado
na
Faculdade
de
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Tatiana Trindade+ Manuel José Rodriguez+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante de origem espanhola ao abrigo do intercâmbio “Erasmus” a frequentar o 5º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Tereza Siza+ Licenciada em Filosofia, directora do Centro Português de Fotografia.
Marcos Cruz+ Arquitecto, Professor na Bartlett School of Architecture, University College London.
Tiago Casanova+
Mariana Simões+
Tiago Pinheiro Dias+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante de Fotografia na Escola Superior Artística do Porto.
Marta Oliveira+
Tiago Sanches de Castro+
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 6º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.
Estudante do 3º ano na Faculdade de Arquitectura da UP.