ÍNDICE A NOITE E O DIA DAS IMAGENS NUNO HIGINO
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NEUROPSICOLOGIA DO SISTEMA VISUAL PEDRO CASTRO
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ENTRE A PERCEPÇÃO EFECTIVA E EFICIENTE SÉRGIO CARVALHO
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O QUE VEJO MELHOR VEJO-O MAL PEDRO BISMARCK
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IMAGENS FALADAS ÁLVARO DOMINGUES
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A ARQUITECTURA DO HEDONISMO JOÃO NUNO MARQUES
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IMAGENS E MIRAGENS CÉSAR RODRIGUES
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PRIMEIRO ESTRANHA-SE, DEPOIS ENTRANHA-SE DIOGO AGUIAR
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A EXPLORAÇÃO DA MATERIALIDADE MÁRCIA AREAL
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CONSU(I)MAGEM JOSÉ FELIX
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HAVERÃO MIL PALAVRAS QUE VALHAM POR UMA IMAGEM? ANTÓNIO MARTINS
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AS IMAGENS DA NOSSA VIDA RUI BRÁS AFONSO
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A IMAGEM DA IMAGEM JÁ FOI MINHA E AGORA É TUA RUI BORDALO
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PORQUE SE DESPE BETH DITTO LUÍSA MOURA
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ENTREVISTA A PETER AVERSTEN JOSÉ ALVES
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SODOM AND GOMORRAH ALESSANDRO BAVARI
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A IMAGEM E O MITO DA CAVERNA HOJE JOAQUIM VIEIRA
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PROJECTO E DESENHO MARCO GINOULHIAC
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IMAGINANDO A IMAGEM NUNO VIANA
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COMPUTAÇÃO E IMAGEM RICARDO VELOSO
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PARALELISMOS ANTÓNIO AMORIM
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O SABOR DA IMAGEM MARIA MANUELA PESTANA
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TV NÍVEL MANUEL CRUZ
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O DESPERTAR DA IMAGEM FREDERICO DIZ
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DEDALO 4.1 IMAGEM redacção EUGÉNIO CARDOSO, NUNO CASTRO, NUNO SILVA, PAULO MOREIRA / colaboradores NUNO VIANA, JOSÉ ALVES / edição gráfica PAULO AZEVEDO , PEDRO FALCÃO / capa Adaptação de CBC Test Pattern / contra-capa Adaptação de CBC Test Pattern / distribuição LIVRARIA AEFAUP / tiragem 500 EXEMPLARES / apoios AEFAUP COPYRIGHT © Porto 2008 / DÉDALO 4.1 / dedalo4.1@gmail.com
I PREFER DRAWING TO TALKING. DRAWING IS FASTER, AND LEAVES LESS ROOM FOR LIES. LE CORBUSIER
A NOITE E O DIA DAS IMAGENS NUNO HIGINO
Tomemos como exemplo um retrato: um retrato ‘fiel’ da pessoa retratada. Um retrato ‘tal e qual’. Essa imagem criada a partir de um modelo requer a semelhança como elemento essencial do retrato: sem semelhança seria impossível estabelecer uma relação com o referente dito ‘real’. Na história da pintura o retrato é um género que sempre teve uma finalidade prática: como homenagem, como perpetuação de uma determinada figura, ou simplesmente como satisfação do desejo de ver-se num alter ego. O pintor – seja o retratista, ou um pintor de qualquer outro género – trabalha sempre com imagens e a partir de imagens. Ainda que o modelo ou o motivo estejam diante de si, o que vê o pintor não é o ‘próprio’ mas a imagem que ele expõe de si mesmo. Todos nós construímos duplos. A duplicidade é constitutiva daquilo a que chamamos o ‘real’. O problema é que a nossa tradição de pensar construiu a ideia de que existe um original e uma representação, uma cópia, um sucedâneo, um derivado do original. Se o pintor pinta uma árvore, essa imagem pintada corresponde a uma cópia de uma árvore original, ‘real’. Toda a imagem corresponderia a
um fora absoluto que guarda apenas uma relação de semelhança com a coisa representada.
original, expõe uma realidade que contem um lado inacessível, escuro e obscuro.
Porque não pensar uma representação original? Porque não pensar a realidade já como representação na origem? Porque não superar essa ideia de que o original e a imagem se apresentam como pólos opostos?
Toda a realidade tem um lado escuro, inabarcável, invisível. Mas esse lado não é o oposto do lado apreensível, diurno, visível das coisas. Elas não são, por um lado, visíveis íveis e claras e, por outro ro lado, invisíveis e nocturnas. São visíveis e invisíveis ao mesmo tempo e na sua raiz, na sua natureza ontológica, na sua matriz mais profunda, na suaa matéria.
Estou a recordar-me de uma frase de Cézanne: Je pense en peinture. Podia traduzir-se, talvez, por ‘eu penso pictoricamente’. A pintura não é algo externo que chega [seja pelas razões ou motivações que for] para acrescentar uma determinada qualidade a um pensamento originalmente indeterminado. O pintor pensa pictoricamente. Aquilo que ele pinta não é um aposto da realidade mas a própria realidade, a sua realidade, a realidade tal como se expõe diante de si e tal como esse pintor se expõe a ela. Uma exposição relacional, fora, portanto, de uma mera relação sujeito-objecto. Não há, se bem entendo, uma anterioridade do pen-samento [original] em relação à representação. O pensamento que pensa a representação expõe uma cena
Matéria vem de mater e a mãe é aquela na qual e pela qual começa a diferença, a separação, a ruptura, o corte. Na origem há duplicidade. A matéria expõe a diferença de si, torna pública a diferença, regista-a, matricula-a. A imagem expõe uma matrícula, uma marca, uma distinção. A imagem é o distinto. Não apenas o distinto do refer-
ente real ao qual guarda relação, sem dúvida, mas também o distinto de si, a fractura que permite a chegada do outro, de outra coisa. Não é só o ‘real’ [não podemos falar fora destes conceitos] que é matricial, que dá a matriz, que põe a matrícula. A própria imagem é também matricial, mater, matéria. Jean-Luc Nancy [1940, PROFESSOR
de si. Começamos por falar do retrato, do retrato ‘tal e qual’. Não há retrato ‘tal e qual’. O que o retrato expõe é a diferença. O retrato torna patente uma retirada [re-tracto]. Ainda que seja um retrato figurativo, ‘tal e qual’, o que pinta o pintor não é uma imagem mais ou menos perfeita, mais ou menos semelhante a um original. O que pinta o pintor é a própria pintura.
retracção e uma distracção. A imagem é o distinto. Marca um afastamento e uma dispersão de forças que geram uma divisão em partes, em retalhos.
O pintor pinta o ‘distinto’: o diferente, o separado, o sagrado. O pintor pinta o sagrado. Toda a imagem é sagrada. Um salto mortal.
E separando, fomenta uma relação que, no entanto, não pode controlar nem governar: a relação ao outro. Qualquer imagem é sempre imagem-para-o-outro.
Talvez nem tanto. O sagrado não está necessariamente ligado ao religioso. O aspecto de ‘salto mortal’ que se apresenta em tal afirmação tem a ver com a associação que, em geral, se faz entre ‘sagrado’ e ‘religioso’. Em princípio, aliás, os dois termos repelem-se: o religioso faz referência a uma ligação, um vínculo; o sagrado faz sinal a uma separação, uma segregação. Voltamos ao ‘distinto’. O distinto tem na sua raiz um stigma, quer dizer, carrega um estigma, uma incisão feita com um ferro. Aquilo que é distinto apartase, marca uma diferença, uma
Mas atenção: a imagem não sinaliza apenas o visível de uma determinada realidade. Inscreve também o invisível – já o dissemos. Toda a imagem transporta o outro, a alteridade mais ignota: aquilo que, do outro, é apresentável e visível, e aquilo que, do outro, não é da ordem da apresentação ou da referencialidade. Aquilo que, do outro, numa palavra, não é da ordem do diurno.
Por isso a imagem é sagrada: não porque se afasta e, portanto, separa de um original, de uma integridade original, mas porque abre espaço ao acontecimento da própria separação.
DE FILOSOFIA EM ESTRASBURGO]
diz que as coisas chegamnos pela exposição. E essa chegada, que é o seu modo de ser e de pertença ao mundo, não acontece sem o corte de um qualquer cordão umbilical. A imagem ex-põe o fraccionamento da realidade que, desde o princípio, desde sempre, já está partida, dobrada, habitada pelo outro. Aquele que nasce, que se separa da mãe, está e permanece habitado por ela. Para sempre. E a exposição implica uma retirada: a retirada da mãe para que se apresente o diferente
E já sabemos: no outro há mais noite do que dia. Como na imagem.
NEUROPSICOLOGIA DO SISTEMA VISUAL AO PROCESSO DE (META)CONTRUÇÃO IMAGÉTICA DO CÉREBRO HUMANO PEDRO CASTRO
Uma observação mais atenta da actividade humana e da forma como interagimos com o mundo perceptível leva-nos, invariavelmente, à conclusão de que a nossa espécie é, primordialmente, visio-orientada. A visão é, de facto, o mais nobre dos sentidos. O que este artigo propõe é que nos debrucemos sobre o que é, de facto, a visão, isto, claro está, ancorados a uma perspectiva neuroanatómica – como se forma e onde está localizada a imagem no cérebro– mas também psicobiológica – de que forma percebemos a imagem? No entanto, não queria deixar de dizer que este não é, rigorosamente, um texto científico, com todas as suas barreiras metodológicas, mas antes, uma proposta de reflexão de cariz científico sobre uma simples e sedutora questão: O que se passará por detrás dos nossos olhos?
A NEUROBIOLOGIA DO SISTEMA VISUAL. Tudo começa por um fenómeno de activação neuronal que ocorre numa complexa placa electro-
excitável de fotorreceptores no fundo do nosso globo ocular – retina. São dez camadas de células que totalizam 0.270 mm de espessura cuja face mais interna, contém os fotorrecetores, capazes de serem excitados pela radiação luminosa, e cuja informação segue uma elegante via nervosa de 1 milhão de fibras no nervo ótico, em que a imagem do mundo, em ulterior análise,
alcança o local primeiro de processamento da informação visual – cortéx visual primário – situado no pólo (occipital) mais posterior do nosso cérebro (Figura1). Aqui se forma a imagem que percepcionamos e que, intuitiva mas erradamente, a atribuímos ao meio exterior. Esta é a primeira mensagem, a de que o mundo existe no nosso cérebro. Aquilo que vemos, indubitavelmente, é um fenómeno interno de interpretação do externo. Será então o sistema visual, como se de uma máquina fotográfica se tratasse, um simples decompositor da imagem natural num conjunto de pixéis que são reproduzidos no software neuronal do nosso cérebro? A analogia é tentadora. Mas não poderia ser mais falsa, pois não imaginariam, porventura, o fascinante mecanismo que está por detrás dos nossos olhos, o qual não se limita a
Figura 1 A via visual. Começa na retina, nos seus fotorreceptores, onde há transdução da informação luminosa. O nervo óptico (On) leva informação gânglio geniculado lateral (lgp) donde, nasce a radiação óptica (linhas a azul) que chega ao destino final – córtex visual primário. Figura 2 Influência do contexto na formação da imagem cerebral. O rectângulo cinzento central é interpretado, cerebralmente, de forma diferente consoante a sua ligação aos rectângulos cinzento claros
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transportar e armazenar imagens mas que constrói e desconstrói; corta e cola; interpreta e imagina. Mais do que ver a imagem o cérebro imagina a visão. Os próximos pontos tentaram prová-lo ao analisar certos aspectos particulares da percepção da imagem. OS COMPONENTES DA IMAGEM. A visão/imagem não é um todo indivisível. Antes, trata-se de uma amálgama de informação que compreende cor, reflectância, contraste, forma, movimento. Todos estes elementos são analisados em processos paralelos no nosso cérebro em real-time e que o seu conjunto chamamos imagem. Todos estes aspectos da imagem armazenados em colunas de neurónios que são mais apropriados para determinado tipo de informação. Assim há áreas
para a cor e forma, outras para o contraste e movimento mas que permanecem em constante diálogo. O desafio que é lançado ao nosso cérebro é, mais do que percepcionar, o de perceber o mundo, extraindo dele a informação mais significante. Não importa fotografar, exactamente, o mundo pois esse seria um processo biologicamente dispendioso e não adaptativo. Quero com isto dizer que vemos apenas determinados pontos do espaço, ficando cego a tudo o que não interessa? Mas as imagens de que temos consciência são vividas e sem buracos? Não parece paradoxal? Aqui reside o ponto fundamental. O cérebro percepciona o essencial e o resto é preenchido mentalmente.
ESCOTOMAS NATURAIS. Quando existe uma lesão na retina, a única via receptora da imagem, esse ponto do espaço afigura-se para o cérebro como sendo cego já que não processa aqui a informação luminosa (fica sem fotorreceptores). Este ponto chamamos escotoma. No entanto, a imagem continua a ser completa. Mesmo o leitor que se encontre a ler estas linhas de texto, não vê um determinado ponto espacial, embora não se aperceba disso. Se não acredita proponho-lhe o exercício da Figura 2. Não é razão para consultar o médico pois todos somos assim feitos – chama-se ponto cego da retina e é o local dela donde saiem as fibras nervosas que constituíram o nervo óptico e que é desprovido de fotorreceptores. Nasce então
Figura 3 Triângulo de Kanizsa. Não conseguimos deixar de observar um triângulo imaginário branco que oclui um triângulo delineado a preto, que estará por detrás dele, e três círculos escuros, parcialmente ocluídos. No entanto, podemos reparar que, formalmente, a imagem apenas compreende 6 figuras geomátricas pretas. Esta perspectiva de sobreposição de camadas e preenchimento de imagem com triângulo branco e o suposto triângulo delineado a preto, surge pela forma como as figuras se interceptam e na, orientação coincidente das linhas a preto. Esta forma de ver é uma construção cerebral que não se encontra na realidade exterior mas demonstra a forma como o cérebro constrói a realidade baseada em pistas para percepção do todo – gestalt.
a questão de como é que nunca nos tenhamos apercebido dele. De facto, o cérebro elimina esse ponto do processo de formação da imagem no córtex visual, emprestando informação e continuando-a com a área que percepciona em torno dele. Digamos que adivinha o que estará lá. Este fenómeno normal demonstra bem a capacidade plástica visual do cérebro. A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO. Outro aspecto importante a analisar é de que a percepção não é um simples acto de soma de cada forma da imagem. O contexto em que determinada forma aparece influencia a percepção e interpretação da mesma. O cérebro socorre-se de pistas reveladas pelas superfícies e seu modo de intercepção, interpretando a tridimensionalidade e os planos da imagem.
O triângulo de Kanizsa (Figura3) permite elucidar melhor essa capacidade. O triângulo branco existe ou não existe? Isso depende da perspectiva que quisermos utilizar mas, de facto, o cérebro não consegue deixar de o ver. O cérebro segue-se de
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pistas como a coincidência dos objecto escuros em forma de V e as aparentes superfícies ocluídas das figuras circulares escuras. Este é um caso paradigmático da Gestalt (Do germânico - forma) – o todo é maior que a soma das partes.
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ENTRE A PERCEPÇÃO EFECTIVA E EFICIENTE SÉRGIO HENRIQUE CARVALHO
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Geralmente interpreta-se o estudo da perspectiva e da profundidade pictórica, como base teórica da percepção visual do espaço. Contudo, a imagem representativa é uma planificação restrita de um determinado campo de visão estático no espaço e no tempo. Deveríamos ter sempre presente que o Homem é um animal que apreende o espaço em movimento contínuo de corpo inteiro: a audição, o tacto, o paladar e a visão convergem para uma só experiência. Assim sendo, é incompleto considerar a representação como ponto de partida para a compreensão daquilo que o Homem vê. Será necessário considerar que um observador é uma pessoa que se desloca e que, só excepcionalmente, se detém para contemplar um ponto de fuga. Olhar em redor é uma característica da natureza humana. A noção tridimensional do espaço permite, sobretudo, a acção do Homem no que se refere à sua análise e construção. Merleau-Ponty referia que «Descartes tinha razão em libertar o espaço», para explicar que o sistema de coordenadas cartesiano (x,y,z) é válido para representar e projectar o espaço, mas redutor para o estudo da sua percepção. Esta impossibilidade deve-se a um sistema ausente de «qualquer latência, de toda a profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira». (MERLEAU PONTY) A representação está ligada à faculdade do conhecimento, pois refere-se ao objecto do ponto de vista do acordo ou da conformidade. «Para conhecermos alguma coisa, é necessário não só termos uma representação, mas também sairmos dela “para reconhecer uma outra como estando-lhe ligada”.» (DELEUZE) Ou seja: representar um objecto, não implica somente percebê-lo, mas ter uma acção intelectual sobre ele. Então e o arquitecto, com o produto do seu conhecimento, não terá já uma sensibilidade
distinta do espaço? Provavelmente, desmontar a perspectiva cónica, enquanto sistema de referência da percepção, será reconfigurar a visão omnisciente que o arquitecto tem dos objectos. O “saber ver” faz parte da sua instrução e o léxico da sua aprendizagem permite-lhe olhar para o edifício e lê-lo, vê-lo transparente. Contudo, esta visão educada afasta-o do sentimento infantil que originalmente teria do espaço, o sentimento do leigo. Não se coloca em causa a validade projectual da sua formação, mas antes a deformação ou amputação dos seus sentidos, que, contraditoriamente, o colocam em posição de destaque relativamente aos outros que apenas sentem o espaço. Sentir o espaço, exige não pensar nele com a contrição da análise. «A faculdade de sentir só pode ser superior se desinteressada no seu princípio. O que conta não é a existência do objecto representado, mas o simples efeito de uma representação sobre mim.» (DELEUZE) A sensação não deve aqui ser entendida como sendo mais honesta, no sentido da falta de conhecimento, mas antes como residente naquilo que uma faculdade empírica tem de particular, enquanto resultado da imaginação, do entendimento e da razão. O conhecimento é subjectivo, e o senso comum não se afastará desse princípio, pois exprime a harmonia das faculdades no interesse especulativo da razão, sob o entendimento. Se o arquitecto, além de ter a capacidade de controlar a concepção e a construção do objecto espacial, for capaz de sistematizar as sensações que as superfícies do espaço enquanto dispositivo lhe provocam, poderá automaticamente avaliar no acto de projectar esse dispositivo, nas suas causas e nas suas consequências. O domínio da profundidade é de facto um objecto de trabalho, que não advém das linhas que desenham um espaço, mas das superfícies que o conformam.
Aliás, segundo Deleuze, a representação é um fim determinado por um estímulo ou vontade intrínseco ao objecto representado, seja ele de carácter sensorial ou racional. «Não digo que os corpos se limitam a parecer existir fora de mim… Enganar-me-ia se não visse senão uma pura aparência naquilo que deveria olhar como um fenómeno.» (KANT) Pontos de fuga, planos e linhas de intersecção são vocabulário de geómetras e de artistas. São utensílios da representação, não são a linguagem do corpo nem do seu sistema sensorial. A noção de espaço cartesiana (x,y,z) é controversa relativamente à visão natural, pois não contempla o indivíduo como ser em movimento, no qual a percepção da profundidade advém de mecanismos de percepção inatos, que não são de ordem racional. O Homem não vê as linhas de fuga nem as unidades métricas de um objecto. Vê a realidade em relação a si próprio e em relação aos outros objectos que o cercam; não vê linhas, vê formas resultantes de superfícies expostas à luz. O acto de ver implica a participação do indivíduo na apreensão de uma determinada circunstância: os objectos não estão fixos e um observador raramente é passivo: «Que fazem os objectos neste espaço tão resolutamente quotidiano? Sim, fazem a nossa vida. A sua acção é o prolongamento da malícia da voz que os nomes habitam com a selvajaria vegetal de um paraíso. Se o corpo se levanta do sono, e na própria matéria do adormecimento se formula uma regra do desejo – a palavra torna propício este universo de pedras redondas, águas, madeiras, bichos trémulos, pessoas que nos contemplam de repente. Somos agora a paisagem para esta paisagem.» (HERBERTO HÉLDER, Photomaton & Vox)
O valor das três dimensões concede ao arquitecto a capacidade de projectar um dado espaço, de o emancipar sem conhecer ainda a sua existência, de manter um controlo omnisciente sobre a sua forma: «O espaço de Descartes é verdadeiro contra um pensamento agrilhoado ao empírico e que não ousa construir. Era necessário, primeiro, idealizar o espaço, conceber esse ser perfeito no seu género, claro, manobrável e homogéneo, que o pensamento sobrevoa sem ponto de vista, e que reporta por inteiro sobre três eixos rectangulares, para que se pudessem um dia encontrar os limites da construção, compreender que o espaço não tem três dimensões, nem mais nem menos, como um animal tem quatro ou duas patas, que as dimensões são analisadas pelas diversas métricas com base numa dimensionalidade, num Ser polimorfo, que a justifica a todas sem ser completamente expresso por nenhuma. Descartes tinha razão em libertar o espaço. O seu mal foi o de o erigir num ser todo positivo para lá de qualquer ponto de vista, de qualquer latência, de toda a profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira.» (MERLEAU-PONTY) Para uma aproximação à percepção visual é necessário considerar múltiplos factores. Não é possível discutir a visão sem falar do objecto a percepcionar, aquilo que tem vindo a ser denominado como circunstância. A informação disponível para a percepção visual deverá ser descrita como luz estruturada pelas superfícies do espaço, e o processo de apreensão não deverá ser entendido segundo uma fórmula estímulo-resposta. As entradas sensoriais são convertidas em percepção através de operações mentais inatas. Assim entendida, a percepção é considerada uma faculdade do corpo. Gilles Deleuze explica o conhecimento como uma faculdade que se reporta às diversas relações de
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uma representação genérica, sendo por isso um resultado de sensações, de experiências e de conhecimentos. Contudo, a percepção, como faculdade, é o que designa uma fonte específica de representações e atribui ao corpo a qualidade de receptor de informação.
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Na formação do arquitecto, existe uma atenção centrada na sua capacidade de concretização técnica e formal, e as informações ou discussões efectuadas durante o processo de trabalho revertem sobretudo a favor dessa orientação. Por outro lado, quando o arquitecto se vê perante a possibilidade de resolver um projecto, as questões que permanecem sempre pertinentes relacionam-se, indubitavelmente, com o Homem que vai existir através do objecto arquitectónico. Assim sendo: O arquitecto projecta o objecto, criando uma circunstância para um determinado Homem. O Homem, por sua vez, habita esses objectos fazendo deles a sua circunstância. Este facto estabelece um vector divergente em dois sentidos: do Homem para a Circunstância e vice-versa. Provavelmente, o projecto ideal deverá ter como princípio este pressuposto vectorial em sentido convergente, considerando que o ambiente é uma simbiose entre estas duas matérias, num diálogo entre as superfícies do Homem e as superfícies do objecto arquitectónico. A pessoa é em si mesma um organismo, que interage com o organismo que é o objecto circunstancial. As relações assim estabelecidas são dinâmicas e dispostas numa conformidade que reúne vida e lugar. É aqui que se pode situar então o ponto de partida de um projecto de Arquitectura, ou seja, na criação de um ambiente. O arquitecto é pois um fazedor de realidades e, antes de pensar a forma, deve investigar os recursos que nessa forma se oferecem à experiência. Daí que
o compreender da percepção possa abrir possibilidades no trabalho de um arquitecto: a forma deixa de ser a tónica num projecto, que assim ambiciona fundamentalmente proporcionar situações experienciais específicas a um dado problema. Ou melhor: a forma é trabalhada para além das contingências ou premências materiais, tendo como prioridade o desenvolvimento de um espaço que reaja a um habitante. Neste aspecto, qualquer construção seria entendida como um organismo vivo, activado através da ocupação: a forma é portanto uma resposta e não um ponto de partida. O arquitecto age então como veiculador de espaços: o lugar da criatividade em Arquitectura poderá residir exactamente na proposição de uma circunstância, que extravasa o plano técnico, excede os condicionalismos estruturais e ultrapassa as imposições materiais. Bergson diz-nos ainda que não há verdadeira percepção sem afecto. Este afecto só pode partir do sujeito que ocupa o objecto. De acordo com Frederick Kiesler, o que o arquitecto inventa é o carácter do espaço, que não pode ser mensurável se não a partir de uma experiência individual gratificante. Paradoxalmente, em Arquitectura, só o plano e a execução podem ser quantificáveis e objecto de cálculo económico. «Sendo ele mesmo um ser cuja existência não consiste apenas de músculos, ossos, fluidos, o arquitecto deve conceber uma casa nova, que não seja feita apenas de muros com um tecto e um sistema de aquecimento e arrefecimento, mas como um organismo vivo dotado do poder de reagir próprio a uma criatura em carne e osso. O homem é um entrançado de formas naturais vivendo as suas emoções e os seus sonhos através do seu meio físico.» (KIESLER, 1949)
O QUE VEJO MELHOR, VEJO-O MAL! PEDRO BISMARCK
“Em suma: só vejo o que surge mesmo à minha frente; só vejo o que surge muito perto de mim; o que vejo melhor, vejo-o mal.”Samuel Beckett
ii.Expôr não é re-presentar, é apresentar-se. A exposição é, como diz Giorgio Agamben , o que acontece por uma coisa existir. Este singular evento, a possibilidade de qualquer coisa
a incondicionada pretensão humana à felicidade” . A imagem pressupõe sempre uma reconstrução, a sua natureza é a superação da própria realidade. Não simulação, mas imaginação.
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i.Tudo parte de um equívoco no qual se confunde imagem com exposição. Em que apresentar imagens de uma realidade passou a significar hoje expôr essa mesma realidade. Na esferaholográfica do espectáculo da televisão ou do computador, onde fluem abundantemente as imagens-virtuais, estas passam a ser o próprio objecto, não mais re-presentação, mas sim, simples a-presentação. A imagem passa a ser a própria coisa que quer representar, substituindo-a anula o próprio lugar da coisa. Cria um intervalo, um vazio expectante.
existir e se expôr ao mundo, este ser-dito, não cabe numa imagem, não tem sequer nada a ver com imagens. Expôr, expôr-se, é existir, é revelar-se ao mundo com todos os seus predicados . É ser-no-mundo, é construir no mundo o lugar das coisas. Imagem, não é a-presentar, é representar-se. É o evento intimamente humano de criar figuras, imaginar a realidade, o sonho do Pigmalião: “formar não simplesmente uma imagem para o corpo amado, mas um outro corpo para a imagem, quebrar as barreiras orgânicas que impedem
iii.Nesse movimento sem fim entre as coisas que são e as coisas que nunca foram, as imagens abrem sempre uma possibilidade de acesso, constroi-se o lugar metafísico do homem, mas anuncia-se uma distância, um limite: há sempre uma impossibilidade de tocar. Vejo essa imagem dos teus lábios a suster um beijo, as tuas mãos a suspenderem-se sobre o meu rosto e não posso tocar, não posso tocar-te. Tal como nas imagens demoradas sobre o tempo de Wong Kar-Wai, the past was something that he could see but not touch .
realidade. Projecção de imagens sobre imagens projectadas, é este o não-lugar escorregadio da sociedade do espectáculo. Mas como diz Susan Sontag: “(...) Al poblar este mundo ya abarrotado con su duplicado de imágenes, la fotografía nos persuade de que el mundo es más accesible de lo que en verdade es” .
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Nessa impossibilidade reside também a sua extrema poiesis: a imagem nunca deve ocultar a sua iminente poesia, que é ser não a realidade, mas aquilo que um dia foi produzido como se fosse realidade, aquilo que alguém quis que fosse a realidade. Criar imagens é construir o outro lugar das coisas, o da eterna-possibilidade de as coisas poderem ser sempre uma outra coisa. A beleza da imagem só pode resistir como a beleza impossível de uma coisa que o foi, que existiu, apenas naquele momento, não eternização, mas sim efemeridade. O
abismo suspenso sobre a imagem como impossibilidade de tocar, deve estar sempre aí. iv. A técnica e o espectáculo da abundância transformaram a imagem. Ela já não é transmutação poética da realidade, a possibilidade, o meio de desvendar e compreender criticamente a realidade, mas apenas projecção sem espessura, ilusão de exposição, anulação de espaço. A imagem-fotográfica do século XXI passou a significar o acesso instantâneo à superfície instável e desfocada da
A magia da imagem, o i-mago, o talismã secreto que é a imagem, já não está hoje na imagem em si, mas na abundância generalizada de imagens que povoam o mundo. Confundir o mundo pela aparência das suas próprias imagens, exposição como representação foi o sistema de imunidade encontrado pelo homem para se persuadir que o mundo é muito mais acessível do que na verdade é. A ditadura do espectáculo, esvazia o lugar das imagens, torna-as em espectrosprojecções, torna-as exposição de realidades inexistentes e, por
isso, facilmente manipuláveis (e alienáveis). Este equivoco é a essência do próprio espectáculo. v. Ao confundir a imagem como exposição do próprio mundo, o assassinato é duplo, a imagem perde a sua poiesis, deixa de ser possibilidade para passar a ser certeza, deixa de construir o outro-lugar, ou os lugares (im) possíveis (e metafísicos) da realidade. Ao mesmo tempo, reduz a realidade, o ser e a sua existência, a uma combinação digital de pixels, a uma frágil projecção. Esquece-se o lugar da imaginação e aniquila-se o lugar próprio das coisas. Distância e duração, são substituídas por abundância e instante. A imagem-espectáculo contemporânea já não é a possibilidade de acesso, mas sim, o lugar vazio das possibilidades esquecidas, o terreno vago das imaginações ausentes. Cada imagem é hoje
a projecção paradoxalmente infinita das coisas exiladas do seu próprio lugar. Cada imagem é hoje um lugar abandonado. vi.Esse vazio à espera de ser ocupado. Esse lugar-expectante das coisas que flutuam esquecidas do outro lado do écran, será o lugar que a arquitectura deverá (continuar a) ocupar. Preencher a profundidade destes espaços, habitar sobre essa duplicidade inequivocamente humana, ser exposição e integração do homem no mundo, mas também, imaginação desveladora da realidade. Ser Exposição e Imaginação não homogeneizando, mas sim, operando sobre a íntima distância entre estes dois lugares, é esse o iminente espaço-coreográfico da arquitectura. Construíndo-se também como imagem, a arquitectura deixa de o ser porque ela possui essa distinta capacidade de poder deixar tocar. É esse o
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genius loci da arquitectura, para além da linguagem, da imagem ou da metáfora, só a arquitectura permite que entre a sombra e o desejo que percorre a linha sinuousa entre exposição e imaginação (entre as coisas que são e aquilo que queriamos que elas fossem), o homem possa tocar indelevelmente, simultâneamente, a realidade e o sonho. Não na experiência instantânea do espectáculo, mas na experiência demorada e poética do espaço. “Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que não se compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e duas perpendiculares, mas sim de trés linhas sinuosas, prolongadas no infinito, incessantemente aproximadas e divergindo sem cessar: o que um homem julgou ser, o que ele quis ser e o que ele foi.” [Marguerite Yourcenar]. O espaço entre estas três linhas é o lugar da arquitectura.
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IMAGENS FALADAS QUANTAS PALAVRAS VALEM AS IMAGENS OU QUE SENTIDO É QUE ISSO FAZ. ÁLVARO DOMINGUES
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Diz o tal provérbio oriental que “uma imagem vale mais que mil palavras”. Diz também o senso comum mais ou menos desorientado que quando é necessário dizer alguma coisa sobre um assunto muito complexo, se pode simplificar dizendo tudo “numa palavra” que assim pode substituir mil imagens. Diz Pierre Bourdieu que a fotografia não se entende sem a sociedade que a produz, distribui ou consome, e parece claro embora seja mais difícil perceber como. A questão que me parece latente a esta aparente contradição é a de que se trata, afinal, da produção de sentido acerca das palavras, das imagens ou do
que quer que seja que se tome como significado ou significante. As boas imagens são aquelas que tocam dois extremos: ou nos inquietam profundamente, ou nos apaziguam mais do que um xanax. As primeiras são as que nos confrontam perante mundos que estão para lá da nossa experiência comum, das nossas visões do mundo, ou melhor, perante figurações que nos provocam uma grande sensação de estranhamento, ou até de repulsa, de condenação moral, ética ou estética. As segundas, remetem-nos para representações de ideais de beleza ou de coisas sublimes que produzem sensações que nos são
familiares mesmo que a imagem seja profundamente abstracta mas que, em todo o caso, remeta para universos sensoriais e estéticos que, por alguma razão, sejam “ouro sobre azul” ou “branco sobre branco” para mentes radicais minimalistas. Aqui pode residir a diferença entre uma imagem fotográfica e uma imagem pornográfica , i.e., aquilo que associa à imagem o filtro social ou psicológico que a desvenda (moralista, neste caso). Imagem e construção de sentido andarão, por isso, necessariamente associadas. Façamos uma demonstração com a fotografia que acompanha este texto. Aparentemente não se trata de nada especialmente complicado. Num exercício de desconstrução mais ou menos criativa, podemos afirmar que cada fragmento da imagem pode ser perfeitamente objectivado (sinalética, muros, casa, estrada, guia de passeio, videiras, postes, recipiente para lixo, janelas, portas, etc.). Para muitos de nós, a composição, ao contrário, pode remeter para um grande estranhamento embora, paradoxalmente, se trate de uma fotografia de uma extrema banalidade, sem recursos complexos a exercícios artísticos de luz, perspectiva, texturas, etc. Falta-lhe, dir-se-ia, qualquer tipo de virtuosismo artístico que a converta, de um simples documento, numa obra de arte que, para o ser, teria que ter a tal capacidade da obra artística nos questionar e inquietar profundamente. É neste jogo de espelhos que também se enreda a análise urbanística. Durante séculos bastava subir ao alto da torre da catedral ou do castelo, olhar a cidade em volta e dizer: eis a cidade, as suas formas e sentidos, a sua visualidade. Percorrendo campos e pastagens e subindo a uma colina, podia-se dizer o mesmo de outra coisa: eis o campo e as suas extensões. Agora, pelo contrário, a cidade tornou-se o território “desconfinado” que é o urbano. Já não é uma realidade abarcável numa perspectiva a voo de pássaro; já não cabe numa imagem e nas mil e tantas palavras que essa imagem contém. Mais complicado ainda, o próprio conceito de urbano é, ele próprio, um conceito igualmente desconfinado,
por demasiado impreciso, pela dificuldade em lhe situar os limites conceptuais. Quanto ao “rural” também já se perdeu há muito o seu sentido estável. Existe actividade agrícola que não é sociologicamente “rural” (culturas e práticas tradicionais, fechamento sobre a comunidade e sobre os seus códigos de conduta e valores, etc.) mas empresarial e sociologicamente “urbana”; existe um “rural” que já não tem agricultura funcional do ponto de vista económico ou que está mesmo abandonado e despovoado; existe outro rural que é apenas pano de fundo de paisagem para as economias e os territórios do turismo; etc. É este duplo desconfinamento que a fotografia dá a perceber. Se é urbano? Seguramente. O mais banal de todos, o que se estende sem fim pelas margens das estradas; the road as a generator como diria Leslie Martin se não estivesse a falar de grids (MARTIN, L. 2000. “THE GRID AS A GENERATOR,”. ARQ, VOLUME
É escusado, por isso, associar de forma demasiado precipitada e errada uma ambiência “rural” a esta fotografia só porque se vêem videiras e algumas formas vernaculares de construção. Mais do que os edifícios, interessa questionar a vida entre os edifícios e o que daí se poderá intuir quanto a questões formais, sociais, ecológicas, funcionais ou infra-estruturais.
4, NO. 4., CAMBRIDGE – REPUBLICAÇÃO DE ARTIGO DE 1972).
Voltando à imagem, a sinalética colorida assinala três factos: moinhos, ecocentro e A42. Cortando caminho, poder-se-ia avançar a seguinte interpretação: “moinhos” serão, de facto, moinhos mais ou menos musealizados que se transformaram em recursos patrimoniais. A desagregação do “mundo rural” provoca estes traumas de perda que ajudam a explicar a súbita atenção por elementos outrora genéricos, não excepcionais, e inseridos numa economia quase de subsistência onde os cereais e o fabrico do pão tinham uma importância fundamental para as gentes e para os animais. Os moinhos poderão ser então e apenas uma memória material que evoca um contexto já perdido, mas que funciona como marca identitária resistente ao fenómeno avassalador de uma globalização que vai erodindo
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identidades e especificidades locais; “ecocentro”, pelo contrário, é uma palavra quase fetiche que remete para a “verdolatria” (cf. Alain Roger in: http:// www.hpaysage.levillage.org/vie_en_vert.htm) reinante que caracteriza esta má consciência que hoje se verifica face a tudo que evoque ou ilustre a relação com a “natureza”. Ecocentro e moinhos constituem, por isso, uma combinação fértil de consciência ambiental e identidade cultural de um urbano contemporâneo; “A42” é uma auto-estrada. É escusado dizer o quanto importante ela é. Qualquer ameaça de periferização sociológica ou geográfica se pode ajudar a resolver com uma auto-estrada. A autoestrada diminui o atrito do território, a resistência da distância face ao desejo da mobilidade e, por isso, é um produtor activo de urbanização que, seja o que isso signifique, foi e é sempre uma ideia de movimento e de relação envolvendo escalas territoriais muito diversificadas. A auto-estrada é um dos elementos mais claros dessa lógica hipertextual: ao lado da auto-estrada vive-se num espaço com n dimensões, está-se perto daquilo que se estava antes e, ao mesmo tempo, está-se também perto de um buraco negro do espaço-tempo que tem um campo gravitacional imenso, que distorce a relação convencional tempo/espaço, introduzindo o factor velocidade e o novo campo de mobilidades e relações que daí derivam.
existe uma aglomeração de actividades económicas, equipamentos e serviços. Cidade, portanto. Quanto às entidades nomeadas como “Porto” e “Paços de Ferreira”, os sentidos poderiam ser múltiplos: um jogo do campeonato de futebol, tripas e móveis, a capital do Norte e a capital do móvel, etc.; para lá de pontos nos mapas, os lugares são sobretudo o imaginário que é partilhado sobre o que são ou representam, a experiência que temos deles no quotidiano ou em momentos de excepção. Creio que é tudo. Pretendia no início desta “imagem falada” ensaiar uma aproximação entre a legibilidade do território e a sua inteligibilidade. Sempre que este tema se situa nas formas de urbanização “extensiva” (por contraposição à cidade, ao urbano “profundo”, à ideia de urbano como um contentor legível e territorialmente confinado), tudo o que normalmente se diz a propósito de legibilidade e de inteligibilidade do território é muito pouco, é simplista, é redutor, e está invariavelmente avaliado pela negativa porque contraposto a um suposto ideal canónico de cidade do qual aquilo é negação ou perversão. As adjectivações de “feio”, “caótico”, “ilegível”, “predatório”, etc., são apenas exercícios de apaziguamento para quem não se quer dar ao trabalho de entender (entender é muito mais do que emitir juízo estético e moral...; entender não é sancionar ou deixar de sancionar). Veja-se o livro de Umberto Eco sobre esse feio e como mudou tanto.
Do grupo da sinalética à direita, existem dois sinais: Porto para um lado e Paços de Ferreira para o outro. Em linguagem comum estamos entre um e outro, a caminho de um ou de outro, “entre cidades”, perto de uma zona industrial, da GNR e do cinema. Em linguagem mais abstracta, perto de um lugar onde
Não devem existir “não-coisas” quando somos desafiados a analisar ou a projectar.
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A ARQUITECTURA DO HEDONISMO ESTETIZAÇÃO E AUTENTICIDADE EM MODELOS TURÍSTICOS JOÃO NUNO MARQUES
“Tudo se resume a imagens. Tudo é transportado para um nível estético e valorizado pela sua aparência. O mundo tornou-se estetizado.”1 Até há bem pouco tempo, o papel da arquitectura enquanto promotora de uma determinada imagem qualitativa (autêntica ou simulada), dentro da actividade turística, num contexto português, tinha vindo a ser descurado. Durante a proliferação de equipamentos hoteleiros, iniciada de forma massiva durante a década de cinquenta, a pressão da construção exercida sobre os principais focos turísticos não permitia que os projectos alcançassem uma “maturidade” arquitectónica relevante, limitando-se a responder, na maior parte das vezes, ao cumprimento das funções básicas determinadas por um programa de alojamento. Esta situação conduziu à homogeneização depreciativa da paisagem, pautada por uma construção desprovida de critérios qualitativos, quer em termos arquitectónicos ou urbanísticos. Hoje em dia, e cada vez mais, o sucesso do desenvolvimento de qualquer equipamento turístico depende do potencial atractivo de que dispõe: o papel da imagem a transmitir torna-se fundamental. Estendida ao nível da construção, esta condição, levanta desde logo uma série de problemáticas relativas à ética e retórica arquitectónica utilizadas para defender determinados valores e formas de actuação que visam sobretudo a obtenção de lucro. Se a questão da imagem é assumida na maioria dos modelos hoteleiros, no caso dos resorts, por exemplo, ela torna-se prioritária, pois estes equipamentos apoiamse habitualmente em temáticas específicas ou ambientes singulares na sua caracterização. A linguagem arquitectónica (quando existente) associada a este tipo de equipamentos, varia de acordo com os objec1 2
tivos definidos para ou pelos mesmos: tanto pode ser entendida como parte integrante de um processo de (re) interpretação do programa ou das circunstâncias preexistentes, baseada em premissas de identidade ou autenticidade da própria arquitectura, que procura valorizar culturalmente o meio em que actua; como se pode dissociar destas e acabar por se traduzir em escolhas “catalogadas”, decorrentes de tendências e estudos de mercado. Neste último caso, fala-se de um processo estandardizado, da utilização de layouts previamente configurados em função de um tema definido pelas actividades do equipamento turístico, que procura extrapolar as características próprias do local e/ou envolvente onde actua, de forma a estabelecer com estes um vínculo identitário, ainda que, geralmente, de forma artificial ou descontextualizada. Assim, podemos identificar duas abordagens distintas (à partida) quanto ao papel da arquitectura na promoção de uma determinada imagem associada à actividade turística: a primeira, enquanto elemento central na projecção de marketing; a segunda, enquanto veículo para uma “cenografia” onde se pretendem recriar ou acentuar símbolos que lhe permitam, por exemplo, uma identificação com destinos turísticos longínquos (paradisíacos, exóticos, aparentemente inalcançáveis)2 ou com a arquitectura / cultura local, num gesto que procura uma identidade baseada numa autenticidade. Neste contexto, a primeira abordagem explora o potencial da arquitectura “de autor” e a sua dimensão mediática para promover a sua imagem enquanto produto de “qualidade” e diferenciação – independentemente da forma como os operadores turísticos ou de marketing se “apropriam” das obras e dos discursos adoptados para a divulgação dessa imagem, que pode ou não
LEACH, Neil; A anestética da arquitectura, ed. Antígona, Lisboa, 2005, pág. 19. URBAIN, Jean-Didier, L’idiot du voyage – Histoires de touristes ; ed. Petit Bibliothèque Payot.
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coincidir com a dos autores3. A segunda abordagem visa uma reprodução de cenários (por vezes irreais ou descontextualizados, temporal ou geograficamente) como factor de atracção. Isto deve-se a um desprendimento conceptual acompanhado por uma espécie de “exaltação” arquitectónica, que se baseia numa imagem de carácter excepcional. Esta imagem tanto pode valorizar culturalmente e imprimir uma nova identidade numa envolvente arquitectonicamente descaracterizada ou inexistente, como pode surgir através de uma posição assumida (ou não) de descontextualização e, assim, contribuir para um ambiente cenografado ou simulado. Para além dos simulacros - que tanto evocam novas “urbanidades” como culturas tidas como “exóticas” -, esta faceta de um turismo posmodernista também parece ter visto no passado identitário dos meios onde actua, um veículo para a sustentabilidade de supostos valores culturais que se pretendem defender, procurando integrá-los artificialmente sob várias formas: através da arquitectura e da construção, num primeiro nível; ou em termos do próprio conceito, num contexto mais alargado, partindo de uma apropriação da paisagem em causa e de uma manipulação das identidades subjacentes, com o objectivo de nelas se reflectir e de se apresentar identificado com as características e actividades que tradicionalmente aí se desenvolvem.
que remeta ao seu estado original. Desta forma, a arquitectura, associada à vertente de “encenação” turística, acaba por se basear numa redefinição da autenticidade. Num contexto onde o preponderante papel da imagem acaba por distorcer e deturpar a realidade, parecemos assistir a uma teatralização de certas especificidades, ou a uma extrapolação destas mediante cenários hiper-reais, que acabam por se reflectir na arquitectura desenvolvida para estes meios. São emulados somente determinados signos ou técnicas construtivas da arquitectura tradicional local, dissociando-os de um entendimento da cultura tectónica que os justificou, construída e adaptada ao longo dos tempos segundo técnicas decorrentes das características geográficas dos territórios e das actividades que aí se praticavam.
A questão da busca de uma identidade arquitectónica (simulada) pode ser vista através da aplicação e mimetização de técnicas e modelos construtivos utilizados originalmente nesses locais. Por outro lado, áreas históricas e tradicionais, com uma componente turística mais atractiva, acabam por se converter em recriações de si mesmas. Recriações cuidadosamente elaboradas, baseadas em estudos de mercado, de forma a torná-las turisticamente mais competitivas. A autenticidade enquanto slogan turístico é então relativizada (ou mesmo falseada), quando se vê instrumentalizada nas mãos dos operadores turísticos, de forma a obter um cenário
“Neste resvalo para uma cultura da simulação, o papel da imagem altera-se e deixa de reflectir a realidade, passando a disfarçar e perverte a mesma realidade. Destituídos da própria realidade, resta-nos um mundo de imagens, de hiper-realidade, de puro simulacro. A desanexação destas imagens da sua complexa situação cultural de origem, descontextualiza-as. São fetichizadas e julgadas pela sua aparência, à custa de qualquer leitura mais aprofundada.”4
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A arquitectura daí resultante parece padecer de um certo ecletismo, (con) fundindo identidades, autenticidades, tradições e culturas, através da utilização de uma tecnologia modernizada num programa turístico especializado que é exterior às actividades tradicionais locais. Contudo, a maior prova de simulacro e fragilidade retórica reside provavelmente, e acima de tudo, na volatilidade dos valores de identidade aplicados a estes equipamentos, determinados e renovados mediante os caprichos de um mercado turístico em constante movimento.
“O que é falso cria gosto, e reforça-se através da eliminação consciente de qualquer referência ao autêntico. E o que é genuíno é reconstruído tão rapidamente quanto possível à semelhança do falso…”5
Convém esclarecer e distinguir uma produção ética, dentro de um campo disciplinar arquitectónico, face a uma recepção estética, por parte de um campo regido pelo marketing imobiliário, cujos valores e interesses podem subverter aqueles que estiveram na origem do objecto. 4 LEACH, Neil; opus Cit. 5 DEBORD, Guy, citado in FRAMPTON, Kenneth; Introdução ao Estudo da Cultura Tectónica; ed. Contemporânea, 1998, pág. 53.
IMAGENS E MIRAGENS CÉSAR RODRIGUES COR
Comecemos pela cor. Porque é o sol amarelo durante o dia e vermelho ao entardecer? Porque é o céu azul? Fora da atmosfera da Terra, visto por pilotos de grande altitude, astronautas e satélites, o sol é branco. Poeiras, cristais de gelo e gotículas de água na atmosfera absorvem e dispersam a luz. O fenómeno da dispersão depende do tamanho das partículas e comprimento de onda da luz incidente. Para comprimentos de onda menores que a partícula pode haver interação. Se a onda for maior que a dimensão da partícula a interação é muito pouco provável. Usando uma analogia é possível explicar este fenómeno. As ondas luminosas comportam-se como ondas na superfície do mar e a partícua de poeira como um barco. As ondas mais pequenas (comprimento de onda mais curto) batem no casco do barco e são parcialmente reflectidas. As ondas maiores têem um efeito completamente diferente: carregam o barco com elas para cima e para baixo e continuam o seu caminho sem serem afectadas por ele. Devido à dispersão na atmosfera, a luz solar branca perde sempre parte da sua componente de onda mais curta, correspondente às cores violeta e azul. O extremo vermelho do espectro visível sofre menos dispersão.
Quando o sol ou a lua estão baixos no céu a absorção e dispersão é intensificada por dois efeitos em simultâneo. Primeiro, as raios de luz atravessam a atmosfera obliquamente para chegar a nós e assim percorrem uma distância maior através deste meio, segundo, a camada mais baixa da atmosfera é a mais densa e contem maior quantidade de poeiras. A absorção e dispersão, como visto atrás, ocorre preferencialmente para comprimentos de onda curtos, deixando apenas os comprimentos vermelhos e laranjas. Por esta razão o sol é branco quando visto do espaço, amarelado visto da superfície da Terra e avermelhado quando está muito baixo no horizonte. O fenómeno do avermelhamento do sol e da lua que visualisamos diariamente pode ser demonstrado por uma experiência prática que qualquer um pode realizar na sua cozinha. Queira o leitor pegar num copo transparente e colocar no fundo 1 a 2cm de altura de leite. Todos sabemos que o leite contem gordura. Esta gordura está misturada com a água, estabilisada por outros componentes do leite, formando o que se chama uma emulsão – uma dispersão de gotículas muito pequenas de um líquido no seio de outro líquido. Estas gotículas actuam como as poeiras da atmosfera, disper-
sando a luz.. Como existem muitas gotículas o leite é branco e opaco. Mas se o leitor diluir o leite com água até encher o copo, e observar o sol através dele verá que o sol aparece alaranjado. Vou afastar-me brevement do tema principal para referir que em adição aos factores físicos que determinam a cor, existem também os factores fisiológicos. Apenas a radiação electromagnética com comprimento de onda entre 400nm – 750nm é visível. E mesmo nesta gama a sensibilidade dos nossos olhos não é uniforme. O máximo de sensibilidade ocorre aproximadamente para o valor médio desta gama, correspondendo à cor verde. O comprimento de onda a que corresponde a sensibilidade máxima dos nossos olhos é também próximo do máximo da intensidade do espectro solar depois de filtrado pela nossa atmosfera. Alguns estudos indicam também que existem diferenças na percepção de cor entre europeus e asiáticos. A maior sensibilidade à cor verde não é apenas em termos de intensidade luminosa, mas também em termos da mínima variação de comprimento de onda que reconhecemos com uma cor differente – vemos mais tons de verde do que das outras cores a que somos menos sensíveis. As células nos nossos olhos responsáveis pela detecção da
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cor requerem uma intensidade luminosa relativamente elevada
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para funcionar. À medida que a luz ambiente diminui, deixamos de reconhecer as cores. A última cor a desaparecer é o verde. Depois do crepúsculo não somos capazes de distinguir se um carro na estrada é azul, castanho ou cinzento, mas continuamos a ser capazes de distinguir a cor da relva na berma. A luz da lua é reflexo da luz do sol, e filtrada pela nossa atmosfera da mesma forma perdendo parte da sua componente violeta e azul, mas como a luz da lua é 20 000 vezes menos intensa que a do sol poente, os nossos olhos são muito menos sensíveis à cor e percebemos a luz da lua como branca. Apenas quando a lua está baixa no céu e a perda das cores na região violeta do espectro é muito significativa percebemos a lua como alaranjada. REFRACÇÃO A velocidade da luz depende do meio em que viaja. No vácuo, a luz percorre 2.998 x 108 m/s, mas noutros meios move-se mais devagar. O índice de refração de um meio transparente é o quociente entre a velocidade da luz no vácuo e a velocidade da luz nesse meio, n = c / v. Quando a luz passa de um a substância para outra com outro um índice de refracção maior (maior
densidade óptica), os raios de luz mudam de direcção. O ângulo que os raios de luz fazem com a perpendicular à interface entre os dois meios diminui. Ver figura. Quando os raios de luz viajam de um meio com índice de refracção mais elevado para um meio de índice de refracção mais baixo a mudança de direção que se dá aumenta o ângulo que fazem com a perpendicular à interface. Este é o efeito óptico que faz com que as pernas de uma pessoa parecem mais curtas quando ela está dentro de água. Pela mesma razão, os nativos que pescam com arpão sabem que têm que apontar abaixo do peixe para que a sua pesca seja bem sucedida. Ver figura.
um ângulo superior a max sofre reflexão total de volta para o meio mais denso.
A diferença de índice de refracção entre dois meios provoca também um fenómeno ainda mais interessante. Como foi dito anteriormente, quando a luz viaja de um meio de índice de refracção mais elevado, desvia-se da perpendicular à interface entre os dois meios. Existe um ângulo, max, para o qual a mudança de direcção resulta em raios de luz tangentes à interface. Se a luz vinda do meio de maior índice de refracção atinge a interface com
um espelho a fim de preservar a intensidade da imagem. Mas esta é apenas parte da história, o índice de refracção não depende apenas da substância, també varia com a temperatura e como comprimento de onda e por essa motivo existem alguns efeitos ópticos extraordinários na atmosfera.
Este fenómeno tem aplicações técnicas bem importantes. Uma são as fibras ópticas usadas para o transporte de informação. Sinais luminosos viajam dentro destas fibras, quase sem perdas porque o fenómeno de reflexão total garante que a luz se mantêm no interior de cada fibra. Outra aplicação consiste no facto de que quando é necessário produzir a mudança de direcção dos raios de luz num equipamento óptico (com por exemplo em binóculos ou periscópios) utiliza-se quase sempre a reflexão total num prisma em vez de
MIRAGENS Existem diversas definições do termo miragem. Para os efeitos
deste artigo, consideremos que se trata de uma imagem gerada pela alteração do percurso normal dos raios luminosos através da atmosfera. Assim, obtem-se uma imagem que se encontra deslocada da posição onde deveria aparecer ao observador, podendo mesmo observar-se um objecto que se não se encontra em linha directa de visão. Note-se que em muitos casos a miragem é uma imagem incompleta ou gravemente distorcida. Existem diversos tipos de miragem, aqui farei apenas a explicação de dois tipos: miragem superior e miragem inferior. O fenómeno das miragens involve duas camadas de ar a temperatura diferente. Um exemplo de miragem inferior é o bem conhecido efeito de “estrada molhada” em dias quentes. O asfalto encontra-se muito quente e forma-se uma camada de ar com centímetros ou milímetros de espessura, directamente acima da estrada, a uma temperatura mais elevada do que o ar acima desta camada. Este ar mais quente tem um índice de refração menor e actua como um espelho para raios de luz que atingem a interface com um ângulo muito raso. A diferença de índice de refração é muito pequena, mesmo com um gradiente de temperatura de 40ºC entre as duas camadas de ar. Assim, para que o efeito seja visível os raios de luz têm que atingir a superfície da camade de ar quente com um ângulo de superior a 89º relativamente à vertical. Isto significa que o
efeito será visível quando a geografia do terreno coloca os olhos do observador quase ao mesmo nível da estrada. Cálculos usando a tabela de índices de refracção do ar indicam que se os olhos do observador estiverem 10-30cm acima de uma porção de estrada quente, a miragem da “estrada molhada” poderá aparecer 30-300m adiante, consoante as condições exactas da observação. Se a distância à interface ar quente-ar frio for muito maior, o observador pode ver a miragem de uma altitude maior relativamente ao ponto de reflexão. Para um observador de 1,70-1,80m, numa superfície plana, a miragem da zona molhada apareceria a 800-900m de distância. Este tipo de miragem pode explicar o avistamento no deserto de um aparente oasis ou oceano que desaparece ou que nunca se consegue alcançar. Este tipo de miragem é classificado como miragem inferior porque a imagem reflectida surge abaixo do objecto real, que neste caso é o céu. A miragem superior resulta de um processo semelhante, mas neste caso a camada quente está por cima da camada fria e encontra-se acima do observador. Normalmente a camada de ar até alguns metros acima do solo é a mais quente. Todos sabemos que arrefece à medida que se sobe. Em certas condições dá-se um fenómeno atmosférico chamado inversão térmica, em que uma camade de ar mais frio se posiciona
por debaixo de uma camada de ar mais quente. Uma vez formado este fenómeno pode permanecer por algum tempo, na ausência de turbulência atmosférica, visto que o ar mais frio é mais denso e tem tendência a permanecer por debaixo da camada de ar mais quente e mais leve. Sob estas condições pode ocorrer uma miragem superior em que a interface novamente actua como um espelho relativamente a raios de luz que a atingem a partir do meio mais denso. Este fenómeno é sempre observado junto do horizonte, visto que, também neste caso a pequena diferença de índice de refracção exige que os raios luminosos atinjam a interface com um ângulo superior a 89º relativamente à vertical. O observador vê uma imagem reflectida no céu junto ao horizonte. Se a imagem e o objecto real forem ambos visíveis, a miragem aparece invertida por cima do objecto real. No entanto, enquanto o efeito de “estrada molhada” é uma reflexão num ponto a dezenas ou a centenas de metros de distância do observador, na miragem superior a interface ar quente-ar frio onde se dá a reflexão está dezenas ou centenas de kilómetros de distância e a meio caminho da distância do objecto real. Assim, é possível a formaçao de miragens superiores em que o objecto reflectido se encontra obstruido por névoa ou mesmo abaixo do horizonte do observador e, portanto, invisível. Por esse motivo, este tipo de miragem permitia aos marinheir-
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os ver uma “vela no horizonte” que na realidade correspondia a um barco muito mais distante e fora de alcance visual. Também se compreende a existência de lendas sobre navios fantasma que apareciam e desapareciam misteriosamente ou do “holandês errante” (flying dutchman) e o seu navio fantasma voador. Este tipo de miragem também pode fazer com que formações costeiras fora do campo de visão apareçam no horizonte. Frequentemente a imagem está tão distorcida que não é aparente tratar-se de uma imagem invertida. Surpreendentemente, uma miragem superior também pode criar a ilusão de um oasis no deserto ao projectar no céu acima do horizonte um reflexo do terreno deixando no meio uma faixa de céu azul, que pode ser interpretada como uma massa de água a grande distância do observador. MIRAGENS FORA DESTE MUNDO Uma pesquiza na internet revela muitos websites que professam que imagens não invertidas podem ser geradas quando a refracção da luz na atmosfera faz os raios luminosos curvar mais do que a curvatura da superfície terrestre. Isto exige para os raios luminosos uma trajectória “balística”, em que os raios partem dum ponto na superfície terrestre, fazem um percurso em linha curva e voltam a atingir um observador na superfície. Isto é impossível. A refracção não ocorre num meio uniforme, é necessária a existência de cama-
abaixo deste. Aquilo que observamos é uma imagem que foi deslocada por um fenómeno de refracção, portanto, em suma, uma miragem. Ver figura 5.
das com diferentes temperaturas, e na passagem de cada interface, dá-se um desvio da trajectória dos raios luminosos. Se houver um gradiente de temperatura na atmosfera, também aí pode occorrer um desvio da luz devido à refracção, o qual será gradual, em efeito curvando a trajectória da luz. Mas, mesmo na presença de um gradiente de temperatura é impossível obter uma trajectória balística para os raios luminosos. Ver figura Na ausência de uma reflexão numa interface situada acima do observador, a refracção por um gradiente na atmosfera não pode, por si só criar, imagens não invertidas de objectos na superfície da Terra visíveis de outro ponto da superfície. Ver figura 4. No entanto, a refração por gradiente pode criar uma imagem de um objecto fora do horizonte de visão, se este objecto se situar fora da atmosfera da Terra. Voltamos assim, quase que ao início deste artigo, analisando de novo o Sol poente. Mas desta vez, chegamos à conclusão surpreendente de que se trata de uma miragem. O Sol que nos parece ainda tocar o horizonte, encontra-se na realidade já
Este fenómeno não depende das condições locais, como por exemplo, inversões térmicas, os quais são fenómenos da baixa atmosfera. A refracção resulta do facto de que a densidade (e o índice de refracção da atmosfera) diminuem com a altitude. Assim, pode garantir-se que todo e cada por do sol é uma miragem, e que nos instantes finais de observação o sol se encontra já abaixo do horizonte. Um outro fenómeno interessante qu epode por vezes ser observado no por do Sol, é o aparecimento de um raio verde (ou por vezes, azul). Este resulta do facto de que, quanto maior o comprimento de onda, maior o índice de refração. A imagem do sol nas diferentes cores encontra-se assim “descentrada”, com o vermelho mais baixo no horizonte do que o violeta. O sol poente perde a maior parte das cores violeta, azul, e por isso apenas o verde é geralmente no topo do disco solar, resultando que a última porção visível do disco solar pode apesentar esta cor – o chamado “raio verde”. Mais raramente, é possível ver um raio azul como o apresentado na figura 5.
Assim termina este artigo, apropriadamente, com uma imagem do Sol poente.
PRIMEIRO ESTRANHA-SE, DEPOIS ENTRANHA-SE A IDENTIFICAÇÃO COM O ESTRANHO MUNDO DA ARQUITECTURA DO DIGITAL, NA PROCURA DE UM NOVO BELO DIOGO AGUIAR
“A beleza não é um conceito do objecto, nem o juízo de gosto um juízo de conhecimento” Mais do que numa fase de aceitação tecnológica – esta já aconteceu, sem que quase déssemos por isso – parece ser inequívoco estarmos perante uma fase de identificação tecnológica, já que a construção da nossa identidade/individualidade depende, indiscutivelmente e cada vez mais, da tecnologia, e, por isso, parece fazer algum sentido que comecemos, desde já, a identificar-nos com ela, nomeadamente também no campo da Arquitectura. A propósito de “formas tecnológicas aparentemente mais alienantes”, Neil Leach lembra a inegável faculdade humana de ‘adaptação’ ao meio envolvente, trabalhando o conceito de ‘mimese’ . O referido processo de ‘apropriação’ progressiva, ou ‘familiarização’, parece, assim, dotar a noção de estética, enquanto ciência cujo objectivo é o juízo de apreciação relativo à distinção entre o belo e o feio , de possibilidade/ capacidade de divergência e, acima de tudo, continuada mutação. A estética não será, portanto, uma condição estática, afirmando-se como um processo dinâmico, evolutivo, que deverá, pois, encontrar-se em concordância com a realidade actual, lutando por um conceito de beleza capaz de integrar no presente o potencial que os avanços tecnológicos já permitem, pois só assim será verdadeiramente contemporânea. Interessa agora perceber que potencial é esse e identificar qual a sua pertinência e relevância no campo da Arquitectura.
Apesar da tecnologia digital poder, efectivamente, afectar, de um modo profundo a prática, a técnica e a tectónica da arquitectura contemporânea, a grande maioria dos arquitectos ainda limita o seu envolvimento com o computador, utilizando-o unicamente por questões de rentabilidade ou de representação/ visualização e consequente comercialização. Contudo, começa a existir de um modo cada vez mais significativo, por parte de algumas instituições académicas e de alguns escritórios ditos de ponta, ou vanguarda, um crescente interesse em explorar o potencial dos avanços tecnológicos a um nível metodológico. Aqui, o recurso ao computador deixa de ser entendido apenas como uma simples adaptação dos instrumentos tradicionais de desenho ao meio digital, passando a ser aceite como mais uma participação activa no acto criativo e no método projectual, assente numa posição inovadora na concepção, comunicação e até gestão de arquitectura. De facto, a utilização para arquitectura de software proveniente da industria naval, automóvel e de animação (tal como CATIA®, Rhinoceros®, Maya®, Top Solids®, etc.), veio permitir aos arquitectos não só um maior controlo e ‘domínio’ de geometrias complexas, como também a inclusão de diferentes parâmetros (sejam eles funcionais, programáticos, tipológicos, volumétricos, geométricos, ambientais, sociais, construtivos, estruturais, financeiros, etc.) e, ainda, o desenvolvimento iterativo de diversas variantes, que os ajudarão a delimitar positivamente o modelo arquitectónico durante todo o processo criativo, que aqui opera sempre a três dimensões, na procura de uma
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definição cada vez mais consciente da formalização final. Efectivamente, o processo digital proporciona uma arquitectura espacial que já existe mesmo antes de ser construída, pois, embora num mundo virtual, ela é já capaz de estabelecer infinitas relações espaciais com o usuário que a visita. Assim, o computador revelar-se-á, cada vez mais, como um parceiro, ainda que por vezes restritivo (positivamente para uns e não tanto para outros), num desenho que tende a ser feito a ‘duas mãos’. Em estratégias projectuais mais radicais – chamadas generativas ou evolutivas - , ele poderá mesmo ganhar a autonomia suficiente para fazer emergir modelos arquitectónicos, autorizados a evoluir dentro de condições-limite (os parâmetros) predeterminadas pelo arquitecto, num contexto virtual que poderá retratar e considerar as condicionantes reais do mundo concreto (contexto físico, humidade, orientação solar, etc.). A concepção projectual demanda, assim e cada vez mais, por uma ‘complexidade informada’ a que só a tecnologia digital parece ser capaz de dar resposta. Esta complexidade não será, como vimos, unicamente geométrica, mas também ambiental, social, etc. e será capaz de considerar, logo à partida, factores outrora distantes do processo criativo como, por exemplo, a gestão, a fabricação e a construção. Aliás, será, precisamente, na integração CAD/CAM que reside o grande potencial das tecnologias digitais, revelado pela redefinição de todo processo metodológico, explorando a relação directa, não linear, entre a modelação geométrica tridimensional e
os diferentes processos tecnológicos de fabricação computadorizada (refiram-se os processos subtractivos de Controlo Numérico Computadorizado – CNC - e os processos aditivos de Prototipagem Rápida – RP) , libertando os modelos arquitectónicos a conceber dos constrangimentos racionais impostos pela sistematização, pela geometria euclidiana e, também, pela estandardização. Note-se, pois, que o recurso às tecnologias digitais não tem necessariamente que estar associado a ‘formas alienantes’, geometricamente complexas, a ‘materialidades futuristas’, ou à criação de ‘imagens impressionantes’, podendo, muitas vezes, servir para repensar positivamente os interesses preestabelecidos, mesmo que tradicionais ou convencionais, através de uma pertinente e informada complexificação. Garantindo um maior domínio do arquitecto nas diversas áreas do projecto e evidenciando novos métodos de colaboração com diferentes disciplinas, a incorporação das tecnologias digitais na prática arquitectónica permitirá, isso sim, alterações significativas na gestão e no controlo globalizado de um novo processo projectual. Deste modo, uma eventual ‘arquitectura do digital’ jamais se constituirá num estilo arquitectónico único e consensual, garantindo, portanto, uma noção diversificada e híbrida de estética, que também considera o tecnológico, e reflectindo a multiplicidade e o pluralismo da sociedade em que vivemos.
A EXPLORAÇÃO DA MATERIALIDADE MÁRCIA AREAL
A exploração da materialidade, da imagem e da sua representação têm sido dos campos mais explorados da arquitectura contemporânea. Na verdade, esta questão não é exclusiva da arquitectura dita contemporânea, no entanto, é nos dias de hoje que adquire maior relevo. A imagem revelou-se preponderante numa comunicação que cada vez mais se pretende imediata, apelativa e, acima de tudo, sedutora. Mas nem sempre foi assim. Apesar da diversidade, do engenho e da arte aplicados na representação visual da arquitectura, esteve sempre presente uma preocupação em relação ao objecto. E, a uma relação em que exigências de racionalidade e objectividade na apropriação e aplicação da matéria correspondem a uma manifestação visual consentânea desses valores, sobrepôs-se uma relação pouco atenta a essa adequação da imagem. O objecto moderno, autêntico materialmente e expressivo visualmente, esmoreceu face à desconstrução dessa relação estruturante do pós-movimento moderno. No entanto, é esse desajuste entre a natureza do material e a sua representação visual, é essa impossibilidade de estabelecer de forma directa e transparente essa correspondência, que propicia uma maior flexibilidade conceptual e sustenta um progressivo interesse na actual exploração da materialidade arquitectónica. Esta consciência progressiva por parte dos arquitectos contemporâneos, apesar de não raras vezes limitar o exercício de projecto ao objecto arquitectónico, instiga a criatividade e incentiva à exploração de novos campos e novas matérias. Como tal, materiais de natureza sintética e híbrida, inicialmente associados ao uso exclusivo da Moda, ultrapassam as barreiras auto-impostas e passam a movimentar-se em áreas tão diversas como o design e a arquitectura. Profissionais destas áreas começam a ter ao seu dispor materiais e tecidos capazes de resolver questões práticas da sua disciplina de um modo
cada vez simples e eficaz. Por outro lado, também estilistas se aproveitam de materiais tipicamente utilizados noutros domínios, adoptando-os nas suas colecções. Esta consciência permite o desvanecimento de barreiras e a agregação da arquitectura a outras áreas. Ao longo dos anos, as relações entre Arquitectura e Moda, especialmente na vertente de Alta-Costura, estreitaram-se e tornaram-se progressivamente mais evidentes. A partilha de estratégias e técnicas das duas disciplinas potencia uma relação interdisciplinar, promovendo potenciais desenvolvimentos em cada uma, abrangendo processos criativos e o desenvolvimento de métodos. Roupa e edifícios partilham desde sempre a capacidade de proteger e de abrigar o Homem, à medida que simultaneamente lhe providencia meios para expressar a sua identidade. A geometria também se tem dividido entre a Arquitectura e a Alta-Costura, auxiliando ambas na concepção de formas, muitas vezes auxiliadas pelo computador, usufruindo do seu rigor e das suas múltiplas possibilidades. Sendo duas disciplinas essencialmente construídas através de materiais bidimensionais com resultados tridimensionais, não é surpreendente que criadores de ambas as disciplinas se inspirem nas técnicas, formas e superfícies da outra área. Na Arquitectura recentemente tem-se assistido à adopção de técnicas convencionalmente da AltaCostura, tais com imprimir, plissar, dobrar, adornar, e tecer, desenvolvendo peles ou superfícies exteriores mais complexas para os seus edifícios; enquanto que a Alta-Costura procurava na Arquitectura maneiras de “construir” roupas com maior volume, e a manipulação da estrutura e do ornamento como uma identidade única. Os arquitectos encontram assim na Alta-costura técnicas que lhes permitem criar efeitos visuais mais interessantes no exterior do edifício e manipular as formas volumétricas do seu
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interior. Por seu lado, a Alta-Costura procura na Arquitectura a tão desejada condição de perenidade e seriedade, a manipulação do volume, e a integração da estrutura no ornamento. Criadores de ambas as áreas têm desenvolvido recentemente “peles” estruturais que incorporam a estrutura, ou esqueleto, na superfície dos edifícios ou da roupa.
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A paisagem urbana e arquitectónica respondem positivamente a este apelo da imagem, da diferença e da heterogeneidade, mas, paradoxalmente, sob os “liftings faciais” escondem-se interiores comuns, tipologias repetidas e uma estandardização de usos. O cumprimento rigoroso de normas e regras bem estabelecidas, de medidas mínimas e máximas prédefinidas, tornou o espaço privado (e por isso menos visível) pouco atractivo para grandes experiências e pouco receptivo a alterações efectivas, compensando a uniformização do “corpo” com um maior investimento na sua aparência. Assim, o interior standard é abafado por um envelope livre e imaginativo, residindo na fachada a tão desejada diferença. Os edifícios são entendidos como cabides citadinos, capazes de envergar a roupagem mais original, mudando de “roupa” as vezes que forem necessárias, sem comprometer a estrutura ou a vivência interior. A estrutura desliga-se do compromisso com a fachada, a imagem exterior desliga-se do compromisso com a imagem interior, tornando-se o edifício num objecto social. A fachada torna-se mero envelope, e os arquitectos, tal como os estilistas, trabalham apenas as peças destinadas a vestir os corpos de medidas estandardizadas. A cidade contemporânea, como consequência da actual exploração da materialidade arquitectónica e face à introdução de conceitos emergentes, é um dos temas de discussão interdisciplinar. Profundas mudanças sociais, culturais e tecnológicas rede-
finem os seus domínios, limites e práticas, enquanto se assiste a uma reestruturação do seu conceito, imagem e valor. Simultaneamente, anuncia-se a metrópole do futuro próximo, sabendo que as coordenadas de espaço e de tempo se têm vindo a comprimir, fazendo nascer um novo espaço público, global e virtual, ilimitado e fluído com repercussões evidentes na nossa percepção sobre a cidade. Neste contexto, vários são os designers e arquitectos que têm vindo a reflectir sobre a cidade emergente e as novas habitabilidades. O progressivo desvanecimento das barreiras entre Arquitectura e Alta-Costura fomentou acima de tudo o desenvolvimento de expressões híbridas. Archigram, Ana Rewakowicz, Martin Ruiz de Azúa, Lucy Orta, ou Issey Miyake,
são exemplos de artistas, que independentemente da sua formação em Arquitectura, Alta-Costura, Arte ou Design, se concentram na relação interdisciplinar de partilha de estratégias e técnicas das várias disciplinas. Desafiam maneiras convencionais de pensar Arquitectura e Alta-Costura, revelando o potencial latente no diálogo entre as duas disciplinas. Inspirados pela avalanche de imagens, novos criadores de ambas as áreas estão empenhados em desenvolver modos de adaptar e adoptar estratégias e formas de cada uma das disciplinas, o que transformará a própria natureza dos edifícios e das roupas. “Se a Arquitectura é ainda pesada, lenta e dispendiosa, terá de se tornar mais rápida, mais barata, e mais impressionável. (…) A Arquitectura terá de descobrir como tirar vantagem de uma sociedade em que a diferença não é mais algo apenas para os muito ricos, mas é agora para todos.” Ruth Hanisch, Absolutely Fabulous! Architecture and Fashion, Prestel, Nova Iorque, 2006, pág. 138
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CONSU[I]MAGEM JOSÉ FELIX “Tudo se resume a imagens. Tudo é transportado para um nível estético e valorizado pela sua aparência. O mundo tornou-se estetizado. Tudo foi apropriado como arte” (LEACH, Neil. 1999. A Anestética da Arquitectura: p. 19).
Provavelmente todos nós, já ouvimos dizer, em variados contextos, que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Se repararmos, quer nos outdoors publicitários que passamos todos os dias, quer nas recordações televisivas que temos, ou capas de liv-
ros pelos quais passamos os olhos, são as imagens que permanecem e que maior impacto instantâneo provoca. Quem não se lembra das imagens da guerra do golfo (1990), com visão nightshot, onde os mísseis se cruzavam à nossa frente, no pequeno ecrã?.. ou das torres gémeas a caírem em directo, na manhã do dia 11 de Setembro de 2001? As próprias revistas de arquitectura ou de design parecem muitas vezes concebidas com o intuito de serem folheadas rapidamente, onde olhamos para as imagens dos objectos, todos eles tão fotogéni-
cos, evitando as letras! Os shots fotográficos são estudados rigorosamente, no caso dos escritórios do star system por profissionais de renome, de forma a que a imagem seja apresentada sem defeitos, do melhor ponto de vista, com a melhor luminosidade,
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para que, mesmo de relance, seja uma fotografia “bonita”, marcante, com um propósito, tal como escreve Ignasi Sola-Morales, em Terrain Vague (1995). Reconhece-se, sem receio, uma compreensão da arquitectura mediatizada pela fotografia. “[...] as manipulações dos objectos captados pela câmara fotográfica, seu enquadramento, a composição e o detalhe, têm uma incidência decisiva na nossa percepção das obras de arquitectura. Não é possível fazer hoje uma história de arquitectura do século XX sem se referir os nomes dos fotógrafos de arquitectura [...]” (SOLÀ-MORALES, Ignasi. 1995. “Terrain Vague”, Territórios: p.183).
É este olhar rápido, instantâneo, mediático, em favor da aparência, que nos caracteriza, que marca a nossa cultura, onde predominam, inevitavelmente, os produtos pré-fabricados, as notícias just on time, o show off, a uma velocidade espantosa, cheia de informação. Numa sociedade também ela de informação e de consumo onde, por sua vez, se manifesta a sociedade do espectáculo, cuja meta em relação ao mercado é a transmissão de imagens, tal como Débord (1967), descreve no seu Societé du spetacle.
Esta correria de informação faz com que tudo mude rapidamente: as tendências alteram-se, os gostos diversificam-se, as utilidades renovam-se. A prova disto é que a arquitectura sempre teve como principal função, o abrigo e a protecção. Vitrúvio defendia os três princípios fundamentais da arquitectura: firmitas, utilitas e venustas, no entanto, parece que cada vez mais nos encaminhamos para a passagem da utilitas para a venustas. Apercebemo-nos que com o passar do tempo, as funções básicas qualificaram-se, sofrendo mutações, adaptando-se às épocas e aos interesses, até ao ponto de deixar de servir exclusivamente como protecção, parecendo imprescindível, a condição de despertar “prazer estético” e vontade de consumir. Desta forma, a imagem tornou-se numa questão de utilidade, assim como a função, “dissolvendo-se, acompanhando as outras artes, as fronteiras da disciplina, até agora, apesar de tudo, fundamentada na trilogia vitruviana…” (COSTA, Alexandre Alves. 2007. Textos Datados: p.58). Mas esta passagem progressiva da utilitas para a venustas, não se verifica só na arquitectura. Na moda, contextualizada no universo de produção e do consumo de bens simbólicos, também o papel original mudou e se foi qualificando. Descaracterizou a função utilitária do vestuário, função essa de protecção do corpo em relação ao exterior, e redimensiona-a, convertendo-a num referencial de status, valorizando a imagem. A imagem como rótulo, a imagem de marca, a imagem para consumo. Seguindo a mesma tendência surge também, uma arquitectura como rótulo, arquitectura de marca, arquitectura para consumo. A arquitectura parece-nos ser consumida através da imagem que cria. Aparentemente o critério não é mais, ter o objecto principalmente pela comodidade ou pelas vantagens que poderá trazer, mas possuir o objecto pelo objecto, como imagem, como obra de arte. Eventualmente, em vez de ouvirmos dizer: “Tenho um apartamento na Foz do Douro e uma casa de férias em Miami”, segue-se, “Tenho um Souto Moura na Foz e um Herzog em Miami”, da mesma forma que ouvimos falar de um quadro de Andy Warhol ou um Polock. É curioso verificar esta mudança, da descontextualização da utilidade para a exaltação da aparência e
da criação de um certo status a partir da aquisição de um objecto arquitectónico. Mas não menos interessante é a questão de, para além do valor do objecto em si, também os desenhos computorizados que o representam tendem a assumir-se como “peças” relevantes, não só como parte de um processo, mas principalmente como um resultado. Podemos, inclusivamente, verificar que os renders ou fotomontagens de Zaha Hadid, por exemplo, têm um determinado valor no mercado, podendo ser vendidos como desenhos de projecto para pendurar numa parede ou pura e simplesmente, esperar que valorizem. É neste sentido que, a arquitectura, apesar de ser um bem que pressupõe preocupações sociais, tem vindo a tornar-se mais passageira, rápida, a ganhar um carácter de mercadoria, muitas vezes direccionada para o consumo de uma “arquitectura produto”, acentuando a importância da “atractividade” da sua imagem, valorizando crescentemente o impacto instantâneo. A questão da mensagem e da estética do consumo não é, uma problemática de agora, pois segundo Josep Maria Montaner (2002), já nos anos
de 1920 se começou a utilizar a expressão cultura do consumidor, período no qual se estabeleceram e afirmaram as agências de publicidade. E também, mais tarde, em finais dos anos de 1960, muitas tendências da produção arquitectónica insistiam na arquitectura como comunicação, mas o facto é que “nas últimas três décadas tornou-se exponencial o reducionismo do feito arquitectónico ao visual” (FURTADO, Gonçalo. 2002. “Transitoriedade e Apocalítica”), seduzindo-nos quase que através do hipnotismo via imagens “espectaculares”, sedutoras, mediáticas. Os objectos arquitectónicos são estetizados, tornando-se “produtos de consumo”, muitas vezes com fins políticos e económicos, encomendados por grandes organizações, como instituições governamentais, que pretendem dinamizar a economia, pelas conhecidas marcas de automóveis e até marcas de alta-costura, vendendo assim, não só os bens ao qual se propõe e estão direccionados, mas a própria “embalagem”, o espaço que os alberga, o arquitecto. Cria-se, desta forma, uma “imagem de marca”, facilmente reconhecida pelo público, que permite aos autores serem identificados com determinadas marcas, despertando o interesse nas pessoas, que associam automaticamente a profissão, ao espaço, à marca. Mas este interesse pela imagem, esta sedução, estetização ou “venustização” e até a mediatização, são características completamente contextualizadas com os acontecimentos actuais, com a tendência do pensamento actual, com a sociedade. Enraizadas no consumo, no espectáculo, nas modas e na criação de necessidades artificiais para fomentar novos hábitos, novas formas de estar. No entanto, nada nos obriga, apesar de muitas vezes fascinados e entusiasmados com o resultado de uma imagem, e do seu possível sucesso, a aceitá-la incontestavelmente, quando desprendida da procura de verdade, sem significado, vazia. É o sentido crítico em relação à forma como se constrói a imagem, a interpretação do seu processo e do seu resultado que mais contribui para uma análise cuidada, e para a consciencialização da pertinência que cada imagem poderá ter em determinado contexto.
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Não. |OBRIST, Hans Ulrich, “...dontstopdontstopdontstopdontstop”, les presses du réel & JRP|Ringier, 2007.
AS IMAGENS DA NOSSA VIDA RUI BRÁS AFONSO A nossa vida hoje encontra-se balizada por três atractivos aos quais é difícil escapar. Futebol, consumo e espreitadelas. O desporto preencheu a nossa vida centrando as nossas conversas brejeiras em torno dos golos, das transferências, dos apitos, transformando em figuras públicas personagens que são simples cidadãos sem capacidade intelectual para serem referênciais para uma sociedade. Veja-se o caso do treinador do Sporting, do qual até eu, que não acompanho as notícias do futebol, sei o nome e que se transforma em protagonista de uma novela da qual, desconfio, não sei o enredo. A culpa é da televisão, dos media como explicou McLuhan há quarenta anos, mas eu acrescentaria que é o idiota como protagonista que faz sentir os que se sentem idiotas, menos idiotas ou até heróis, em casa. Pelas imagens nos chega o ideal a seguir, a coragem do desportista, a sua capacidade em mobilizar desejos que outros não conseguem mobilizar, e até amores e desamores nos chegam desses personagens que passamos a comentar com todo o à vontade, como se da nossa intimidade se tratasse. Recentemente destaquei uma notícia do Público, jornal com responsabilidade social, onde se dizia que com a suspensão da corrida Lisboa-Dakar se perdeu uma ponte cultural entre dois continentes. Cultural? Assim se constroem os ideais para a sociedade. Ora bem, são estas as imagens subliminares que a imprensa vai passando, e que nós vamos assumindo como referências para a nossa vida. Bem bem é andar a partir carros no deserto em aventuras de que alguns países africanos se lamentam pelos encargos que suportam, como destruição de estradas e pistas, e consumos exagerados de alguns bens, que depois a organização paga com dinheiro. Bem bem é ter uma rica mansão nos arredores de Londres ou uma casa num paraíso Caraibenho. E se a imprensa, onde se pode parar para reflectir nos conteúdos, assim
faz, como evitar esse efeito na televisão, onde não se pode reflectir e nos dão às vezes três notícias no mesmo ecran? Os homens logo se tornam fas-cinados por qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles mesmos. É o mito de Narciso, da imagem refletida. Ou Narciso como narcose, como McLuhan definiu o fenómeno. E na atitude perante o consumo? Não há apresentador de televisão que não seja vestido por alguém cujo nome vem referido no final do programa, ou delicadamente em cima da mesa do cenário encontra-se um pacote de qualquer produto com marca bem visível. Estamos a ver o programa mas subliminarmente estamos a assumir aquele produto e aquela marca comercial. Há alguns anos observava o Prof. Marcelo numa das suas tentativas de fazer opinião através da televisão, comentando a vida política, social, cultural e desportiva da nossa terra, dizer que chegou atrasado ao programa porque tinha parado para comer na Bairrada e com a maior desfaçatez colocou em cima da mesa uma caixa com um leitão a qual teve o cuidado de virar para a câmara de modo a que não houvesse dificuldades de leitura na marca comercial impressa na dita caixa. Nunca mais quis ver o programa mas soube há pouco tempo que tem uma secretária para tratar dos livros que mostra nesses programas, e com uma fila de espera muito longa. Quem não quer associar um livro seu a uma figura eventualmente séria como a dele? Não tenho nada contra, mas cada macaco deveria estar no seu galho. Os macacos andam fora dos seus galhos e nós permitimos ou até queremos. E no consumo o sistema financeiro dá um jeito a ocupar o galho que não é o nosso. No cinema e na televisão, para além da transmissão de imagens subliminares visíveis, é possível introduzir uma imagem que não vemos mas que recebemos. A persistência retiniana com uma velocidade de cerca de um dezasseis avos de segundo não consegue ler uma imagem que esteja exposta um tempo de vinte e quatro avos, como no cinema ou vinte e cinco como na televisão, pelo que é possível introduzir uma imagem numa sequência sem que a retina a retenha. Mas o cérbero pode recebê-la. São conhecidos os efeitos de no cinema, durante a projecção e antes do intervalo, introduzir uma imagem, uma só, de uma bebida fresca, aumentando
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assim o consumo de bebidas no intervalo, sem disso ter consciência o público. Apetece sem saber porquê, porque um sentido foi estimulado subliminarmente. Um filme de animação canadiano dos anos setenta, L’affaire Bronswik, punha em evidência casos de pessoas que não tinham automóvel mas compraram peças sobressalentes ou pessoas que não tinham animais mas inexplicavelmente compraram comida para animais num supermercado. A explicação era a transmissão de imagens subliminares na televisão promovendo certos produtos e que em algumas pessoas desencadeava uma vontade indómita para comprar. Recentemente foi publicado um estudo comparativo sobre os preços de bens de consumo essenciais num supermercado de Londres e num de Lisboa e a conclusão que foi publicada mostra claramente que dos bens alimentares não se encontraram grandes diferenças de preço excepto na água mineral, mas nos detergentes e desodorizantes em Lisboa são mais caros que em Londres, cinco e duas vezes respectivamente. As empresas portuguesas que mais gastam em publicidade são os fabricantes/ importadores desses produtos. Mas está por apurar de que publicidade se trata. E quanto à espreitadela? Ouvi o Prof. Bernardo Secchi dizer há uns anos que com a Tatcher nos enriquecemos, depois veio o Berlusconi mostrar as mãos calejadas e dizer - eu consegui, e o lema das eleições americanas é - vamos conseguir, que agora ZP também adoptou para Espanha, e todos queremos ser ricos, ou seja possuidores de muitos bens, em geral inúteis, mas cresce a dita insegurança claro, na medida em que aumenta a disparidade social. Em estudo recentemente publicado Portugal e a Grécia estão entre os países de maior diferença no acesso a bens e serviços entre ricos e pobres. Como explicava o Prof. Bruto da Costa, este fosso tem vindo a aumentar em Portugal, o que faz com que cada vez haja mais excluídos do consumo e como todos acham que têm direitos, ideia que o consulado Cavaquista nos meteu na cabeça, sente-se ainda mais a exclusão. O modelo de vida difundido pelos media tem fortemente contribuído para este estado de coisas, a TSF até tem um anúncio a um Jaguar sem entrada e sem juros em suaves prestações mensais. Como
dizia o Sérgio Godinho, andam-nos a vender danças regionais, televisores, rabanetes, em suaves prestações mensais, e dizem que a fortuna cresce nas cidades mas com falas dessas as esperanças são poucas. Bem então estamos todos ricos e cheios de medo que os media fomentam com transmissões directas de assaltos, tão bem parodiadas pelo Herman que contratou um assalto para poder fazer uma transmissão em directo, e com alarmes por todo o lado. Mas ao fechar-se em casa, a propensão ao consumo diminuiu e portanto havia que encontrar uma nova atracção – a ilusão de ser capaz. Para isso a televisão deu-nos o big brother, onde se junta publicidade com voyeurismo, explorando sentimentos antes não revelados socialmente. Põe-se um idiota como protagonista vinte e quatro horas, com câmaras na sala na cama e na casa de banho e quem está em casa percebe que, embora sentindose idiota, se sente menos idiota que o idiota do big brother. Claro que entre nós houve o cuidado de fazer ganhar o primeiro concurso a um modesto empregado de Barrancos, mas a segunda edição do concurso já pôde ser ganha por um desempregado da Brandoa. Então, é definir o ideal pela negativa, é o Narciso que não gosta do que vê reflectido mas não resiste a vestir jeans iguais aos da Cinha Jardim, namorada de primeiro ministro, pessoa de referência, que não resistiu à proposta de uma marca de jeans para fazer aquele sacrifício durante uns dias, participando no big brother. E a imagem lá passou, e nós lá comprámos. Claro que a tal marca teve o cuidado de pôr vendedores na rua antes e durante o tempo em que o programa foi transmitido para impingir as tais calças iguais às da pessoa de referência. Desta vez tudo o que já era vem associado com o rebuçado da espreitadela. Olha que calças tão giras. Será que a vou ver despi-las? Sei com Umberto Eco que a variabilidade das interpretações é a lei base das comunicações de massa, e que isso joga a favor de quem estuda as formas de ilusão em proveito de uma maior capacidade de penetração no mercado, como se costuma dizer. E nesta ilusão de ser ricos e inteligentes lá nos dão a palha a comer, pois o marketing tem a capacidade de saber dar a palha a comer a todos os burros.
A IMAGEM DA IMAGEM JÁ FOI MINHA E AGORA É TUA RUI PEDRO BORDALO
Estar no sítio certo, no momento certo e registar a imagem conferem ao autor um direito relativo de uso da imagem. Relativize-se o direito de propriedade da imagem face à importância da mensagem veiculada e considere-se a sua dimensão pública, consequência da sua publicação. A seguir, folheio ao acaso e encontro-a, e consumo-a em privado entre as estantes abertas da biblioteca pública. Olho-a novamente e leio a informação transmitida. Re-dimensiono o assunto à escala da minha compreensão. Re-enquadro uma perspectiva que se revela comum. E toca-me. Re-vejo-me como parte do problema e de uma solução possível. E então penso: Re-produzo-a? Na impossibilidade de dizer o mesmo de forma tão clara, faço da mensagem a minha própria mensagem. Decido e repito-a. Porque acredito nela – e na economia de meios – aproveito a oportunidade de a tornar pública mais uma vez, insistindo, como se ela fosse nossa, para que aqueles que compõem a imagem antes e depois da fotografia acontecer (para além do fotógrafo), não seja esquecidos nenhuma vez. Motins por comida estavam na ordem do dia quando as reservas acabavam em Goma, perto do acampamento de refugiados de Mugunga, no Zaire; fotografia de Yunghi Kim, Contact Press Images, publicada no World Press Photo Year Book, 1997 *
* O autor da primeira imagem é co-autor desta imagem outra.
PORQUE SE DESPE BETH? LUISA MOURA
Ao mesmo tempo que se problematiza paternalisticamente a questão do abuso da imagem do corpo da mulher nos media, Beth Ditto, vocalista dos “The
Gossip”, lésbica assumida com bastantes quilos a mais, posa nua para a revista Rolling Stone. Desde sempre que a imagem feminina é usada. É inato à existência feminina o uso da sua imagem como instrumento de poder seja por outro, seja por ela mesma. O corpo feminino é quem protege, alimenta e acolhe um novo ser, é quem assume fisicamente o acto de procriação e talvez por isso, pelo seu corpo acolher a origem, a sua imagem sempre foi muito mais apelativa que a dos homens. Na história da beleza de Umberto Eco, os temas da Vénus nua e vestida, o seu rosto e penteado e a virgem Maria são o que maioritariamente constitui o seu estudo ao contrario do seu outro livro “História do Feio” em
que a imagem masculina prolifera. Talvez por isso a palavra “beleza” seja feminina e “feio” masculina. Durante a história e principalmente nas culturas de raiz judaico-cristã percebe-se que a mulher como ser é subjugada mas a sua imagem não. Há uma duplicidade, um desdobramento entre significado e significante que se torna para ela própria um instrumento de poder, assumido apenas no séc. XX. É curioso perceber que a mediatização da imagem do corpo da mulher acontece paralelamente a sua emancipação exactamente porque é ela própria quem o cultiva. É uma capacidade inata, talvez por sobrevivência, que só recentemente surgiu no universo masculino com os chamados metrosexuais. Durante todo o século XX a imagem feminina acompanhou as sucessivas ideologias e correntes artísticas. Primeiro através da criação masculina. Picasso explora o cubismo nos corpos de Les Mademoiselles d’Avignon (1907), Egon Schiele treina o seu traço expressionista no corpo de prostitutas vienenses, Warhol banaliza a cara Marilyn Monroe. Depois ela própria usa a sua imagem para criar. Frida Kahlo constrói toda a sua obra baseada no seu corpo mutilado e impossibilitado de procriar, Cindy Sherman expõe a sua intimidade, Sofia Coppola retrata o mundo segundo uma visão totalmente feminina. Recentemente surge uma nova abordagem na
imagem feminina: a anti-imagem. Os valores estereotipados da beleza, do corpo e da sexualidade feminina, passam agora uma fase de inversão. As figuras andróginas das campanhas de CK nos anos 90 assim como o ideal de beleza anoréctico de Kate Moss antecipavam esta tendência. Peaches, cantora canadiana, curiosamente antiga educadora de infância, faz dos seus concertos a apologia da não beleza feminina: vomita, canta letras obscenas e lambe as suas axilas não depiladas. Amy Winehouse fascina massas com a sua voz arrastada, maquilhagem borratada, cabelo desgrenhado, corpo magro e mal tratado E a grande Beth Ditto é eleita pelo New Musical Express como “coolest person in rock” em 2006. Seria de esperar que em pleno séc. XXI, depois de tantos soutiens queimados e femininistas intolerantes, da conquista da sua liberdade de direitos e suposta igualdade face aos homens, a imagem da mulher perdesse protagonismo. Mas não. Beth despe-se porque sabe que vai ser vista e ouvida. Porque quer mostrar ao mundo que a sua homosexualidade e gordura não devem ser discriminadas. Porque podia dar conferências e organizar colóquios mas nem todas as lésbicas e gordas deste planeta se iriam sentir melhor. No fundo ela simplesmente assume aquilo que é: mulher e o efeito que a sua imagem obscena produz.
MESHMEN
www.aversten.com
Peter Aversten Stockholm, Sweden
EXPOSIÇÕES PINTURA/ ESCULPTURA, Sweden
EXPOSIÇÕES ARTE DIGITAL
PRÉMIOS...
1997/ Caput Mortuum, Orebro 1999/ 3d Festival, Malmoe 2001/ Paynes grey, Stockholm 2002/ Paynes Grey, Orebro
2000/ Digital nights of magic, Nightclubb, Orebro 1998/ Digital hal of fame exhibition, Gothenburg, Stockholm, Milano, Tokyo, Paris, Cleveland, Malmoe
2006/ Roy Award King Kong commercial, Sylvester 2001/ Digital hero award at 3d festival in Copenhagen 2001/ Member of SAN, Super Artist Network in Tokyo 2001/ Tutorials for the Japanese magazine design Graphix 1999/ Member of Digital Hall of Fame exhibition 1997/ Present, Artist doing both traditional and 3d art.
“it was horrible renderings sometimes but we did it almost everyday... quick n dirty...” ENTREVISTA A PETER AVERSTEN
JOSÉ ALVES José Alves / How did you come to 3D? Peter Aversten / A long time ago in a galaxy far far away...I was working with 2d retouch and wanted to incorporate some 3d and mainly use it as a guide for my retouches... Then it evolved and I started to like it to that degree that it became my profession full-time... In the midst of this I came to write about 3d for a magazine called “Efx art & design or mac art & design” that the original name was... That magazine doesn’t exist anymore. It was founded by an artist and musician here in Sweden called Anders F.
Rönnblom, me and an artist colleague Fredrik Fogelqvist wrote under the synonymous “The Meshmen”. We did quick Bryce rendering everyday that reflected what was happening in our life and published daily on the web... just for fun... it was horrible renderings sometimes but we did it almost everyday... quick n dirty... JA And what are your main sources of inspiration? PA Everything that inspires me, music silence light and the lack of
light... Exhibitions, deserted places, games, movies you name it... but most of all the old masters that lived during the 1600 century... Rembrandt, Velázquez... JA Are you particularly interested in architecture? PA Architecture is nice but I love old ruins more that the new shiny things that pops out of the soil... An old house without a roof that has a big oak grooving out of the living room is very inspiring for me... You can
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JA You’re working with 3D or 2D software. So I’m wondering what motivates you to use 3D or 2D tools? PA Food on the table is one motivation, the other is the constant need to work with form and function that has been present in my mind from day one... JA What’s the most important aspect of 3d graphics, and why did you chose this medium to express yourself? PA Most important... hmmm that was a though one, it depends what you think is important or what your client thinks is important... in my case its mostly to make things look good and therefore it’s important for me that I get a fast response both from the client and the software so I don’t waste precious time... speed is the most important aspect in 3d for me... that way I work more freely in the end... I came to like 3d cause it combines the artistic and the technical... 37 JA What do you think of this new CGI productions like “Beowulf”, “Renaissance”, etc?
imagine what is was, who lived there and maybe discover some lost artifacts left behind... Nature will claim all things man made in the end... JA / How important are sketches, drawings,... to your artworks? PA Its very important sometimes and sometimes I just doodle direct in 3d. JA I was asking... Sometimes it is said that in order to be a good 3D artist, you don’t have to have traditional art skills... what are you
thoughts on this? PA It depends what field of 3d you are working in... well if you are writing some pipeline related stuff maybe drawing won’t help you that much or maybe it does... you have to sketch a pipeline tree on paper some time anyway... But hey 3d is art and tech combined so it will definitely help you, in some parts of 3d you will be very happy if you have a traditional art skill in your backsleve... Such as modelling, lighting, rendering or even animation. Its all about analysis, so is traditional art...
PA I have not seen Beowulf nor Renaissance... but from what I have seen Beowulf trailers and behind the scene material, I don’t like it... Call me boring but why do you hire a bunch of actors and try to replicate them to play themselves in the end... creepy ‘cause if it doesn’t hold I think it will collapse... mocap and all bells and whistles if you can’t do it to a 100 percent don’t do it at all. But in the case of Beowulf they surely took a hard subject to crack. I think the most problematic subject regarding 3d is humans ‘cause we are used to look at them all day. If something is off we pick that up immediately... JA What you think about the future of digital arts? PA Shiny and glorious expanding and fullfilling.
SODOM & GOMORRAH ALESSANDRO BAVARI
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Many things have been said about Sodom and Gomorrah but still nobody knows anything.
The only the only “plentiful” evidence that Sodom and Gomorrah actually existed has been handed down to us by the Book of Genesis. Some think that they are submerged under the heavy waters of the Dead Sea, destroyed by a natural disaster as was Pompeii. In fact, according to geological studies, the area where they stood
appears to be rich in sulphur, bitumen and oil (not yet found). When it is said that Lot’s wife (Lot was the only inhabitant fearful of God and was therefore saved from Divine wrath), overwhelmed by the seed of doubt and second thoughts, was transformed into a pillar of salt upon looking behind her as she
was fleeing, one could understand her to have been struck by a scorching gust of sulphur and ashes, as with the petrified bodies of the ancient Pompeiians. So as not to have to face the colossus of Archeology, I have decided to approach the subject by following a precise itinerary, imagining landscapes, portraits, environments and objects, and by following almost the same path that Italo Calvino took thirty years ago in his Le Citta’ Invisibili [The Invisible Cities] (1972, Einaudi) where, through Marco Polo’s eyes, he visited these seemingly believable cities. He wrote:
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All cities were invented; I have given each one a woman’s name: Procopia, Zenobia, Chloe, Hypatia, Zora, Phyllis, etc (...). The book was created one piece at a time, at intervals which were sometimes lengthy (...). I keep a file on objects, a file on animals, one on individuals, one on historical figures and another on mythological heroes. I have a file on the four seasons and one on the five senses; in one I collect pages related to the cities and landscapes of my life and in another, imaginary cities, outside of space and time. I have the habit of taking photographs of everything wherever I go: human and animal matter, objects, landscapes and architecture. Materials that I have accumulated and catalogued of things photographed in museums and on the street, on trips outside Europe and on brief afternoon outings.
Materials presented in this imaginary journey, the journey which launched me into the metaphor of these two forbidden and damned cities where people happily live in a total absense of morality, devoted to vice and lust, where every kind sexual perversion is part of everyday life. In Sodom and Gomorrah, sexual perversion is considered a virtuosity. Virtuosity in which genetic crossbreeding from one generation to the next accumulates over time. Yet it did not cause shame; on the contrary, for the New Progeny it was the rule to show off with pride and irony an evermore unique body. I have imagined these two cities as a kind of amusement park for visionaries, where my gaze is neither accusing nor benevolent, but simply amused and curious, open to taking in as much as possible. An enormous freak
show designed with kitsch and geometrical rationality, like that of crib, where one can get lost, and scrutinize an intimate daily life as hybrid as it is metaphysical, and then find one’s path, perhaps to get lost again. In short, I have wanted the people of Sodom and Gomorrah to be happy, creative and imaginative up to the very day of the apocalypse in which God omnipotent, vexed by their excessive exuberance, decided to spread forevermore his immense black veil. “Sodom and Gomorrah” is an open-ended project, to which I will continue to add artworks. It is an always expanding project, like Sodom and Gomorrah would be if they had survived the Divine Wrath: an irrational expansion, chaotic, exuberant and spontaneous. Just like that of all modern cities.
O MITO DA CAVERNA E O MITO DA IMAGEM HOJE JOAQUIM VIEIRA “Uma vida sem pesquisa não é digna de ser vivida pelo homem” PLATÃO/SÓCRATES Admite-se que o texto, A República, o mais conceituado e vasto da obra de Platão, nascido em 428, AC, tenha sido escrito ou agrupado cerca de 358. Trata da ética na vida da cidade, da política e da sociologia. Seguindo a numeração das folhas da antiga edição platónica de Enrique Estéfano, (Paris 1578), encontramos entre os números 500 e 530 reflexões sobre o conhecimento, a forma como se realiza e como apreendemos as imagens da realidade e as consideramos. É particularmente famoso, pois é muito divulgado, o texto iniciado na página 514 e referido como o “mito da caverna”. Irei transcrever, com a minha tradução, a edição em castelhano de José Manuel Pabón e Manuel Fernández-Galiano, na edição da Alianza Editorial, Madrid, 1988. Divulgo um excerto do texto e em seguida procuro polemizar ou enredar num imaginário tão singular na história da cultura intelectual humana. 514 – I. – E na continuação, compara com a seguinte cena o estado em que, com respeito à educação ou à falta dela, se encontra a nossa natureza. Imagina uma espécie de cavernosa vivenda subterrânea com uma grande entrada, aberta à luz que se estende até ao fundo da caverna e uns homens que estão nela desde meninos atados nas pernas e no pescoço de modo que têm que estar quietos e olhar unicamente para a frente, pois as ligaduras impedem que movam a cabeça; detrás deles a luz de um fogo que arde perto em plano superior e entre o fogo e os prisioneiros um passadiço situado mais alto; nesse caminho tem um parapeito como nos teatros de fantoches acima do qual os artistas exibem as suas maravilhas.
– Já estou a ver – disse Glaucón – Pois bem, contempla agora, ao largo desse passadiço, uns homens que transportam todo o tipo de objectos, estátuas de homens, de animais, feitas em pedra e madeira e de toda a classe de materiais; e entre esses portadores haverá uns que vão falando e outros não. 515 – Que estranha cena descreves – disse – e que estranhos prisioneiros! – Iguais a nós mesmos – digo – porque, em primeiro lugar, crês que terão visto outra coisa de si mesmos e ou dos seus companheiros senão as sombras projectadas pelo fogo sobre a parede da caverna que estava à sua frente? Como não? – disse – se durante toda sua vida foram obrigados a manter imóveis as suas cabeças? – E dos objectos transportados, não terão visto o mesmo? – Que outra coisa poderiam ver? – E se pudessem falar uns com os outros, não pensas que pensariam em falar das sombras que viam passar diante deles? – Forçosamente. – E se a prisão tivesse um eco que viesse da parte da frente? Pensas que cada vez que falasse algum dos que passavam, julgariam eles que o que falava não seria outra coisa senão a sombra? Claro que sim, por Zeus – disse. – Então não há dúvida – digo eu – que eles não terão por real outra coisa senão as sombras dos objectos fabricados. – É inteiramente forçoso – disse. Examina, pois – digo eu –, que se passaria se fossem libertados das suas algemas e curados da sua ignorância e se, conforme a natureza lhes aconte-
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cesse o seguinte. Quando um deles fosse desatado e obrigado a levantar-se subitamente e a mexer o pescoço e a andar e a olhar a luz e quando, ao fazer isto, sentisse dores e por causa dos raios solares, não fosse capaz de ver aqueles objectos cujas sombras tinha antes visto, crês que contestaria se lhe dissesse alguém que antes não via mais do que sombras inanes e que é agora quando, estando mais perto da realidade e de frente dos objectos mais reais goza de uma visão mas verdadeira, e se fora mostrando os objectos que passam e obrigando a responder acerca do que era cada um deles? Não crês que estaria perplexo e que o que antes havia contemplado lhe pareceria mais verdadeiro do que aquilo que via agora? – Muito mais – disse.
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II. – E, se o obrigassem a fixar a vista mesmo na luz, crês que lhe doeriam os olhos e que fugiria para aqueles objectos que podia contemplar sem dor e que consideraria que eram mais claros que aqueles que agora lhe mostravam? – Assim é – disse. – E, se o levassem dali à força – digo –, obrigando-o a percorrer a áspera e escarpada subida e não o deixarem antes de haver-lhe arrastado até à luz do sol, não crês que sofreria e levaria a mal o ser arrastado e, uma vez chegado à luz, tenderia os olhos tão cheios dela que não seria capaz de ver nem uma só das coisas que agora chamamos verdadeiras. 516 – Não, não seria capaz – disse –, ao menos no momento. – Necessitaria de acostumar-se, creio eu, para poder conseguir ver as coisas de cima. O que veria mais facilmente seriam, antes de tudo, as sombras; logo as imagens dos homens e de outros objectos reflectidos nas águas e, mais tarde, os objectos mesmo. E depois disto seria mais fácil o contemplar da noite as coisas do céu e o céu mesmo, fixando a sua vista na luz das estrelas e da lua, como o ver o sol de dia e o que lhe é próprio. – Porque não? – E por último, creio eu, seria o sol, mas não as suas imagens refletidas nas águas ou em outro lugar estranho a ele, senão o próprio sol no seu próprio domínio e tal qual é em si mesmo, o que ele estaria em condições de olhar e contemplar. – Necessariamente – disse.
– E, depois disto, coligiria com respeito ao sol, que é quem produz as estações, os anos e governa tudo que está na região do visível e é, de certo modo, o autor de todas as coisas que se vêm. – É evidente – disse – que teria de pensar nisso tudo. – E não só. Quando tomasse consciência da sua anterior habitação e da ciência de lá e dos seus companheiros de cárcere, não crês que se consideraria feliz por ter mudado e que teria pena deles? – Efectivamente. – E se tivesse havido entre eles algumas honras e recompensas que se concederiam aqueles que, por discernir com maior penetração as sombras que passavam e compreender melhor quais de entre elas as que passavam diante ou detrás ou junto com outras, fossem os mais capazes de profetizar, baseado nesse conhecimento o que se fosse passar, crês que sentiria aquele nostalgia destas coisas ou que tentaria solicitaria aos que gozaram de honras e poderes entre aqueles, ou melhor que lhes sucedesse como dizia Homero, isto é “ser servo no campo de qualquer lavrador sem meios”?,(citação, da Odisseia, das palavras pronunciadas pelo espírito de Aquiles no Hades. Platão sugere que a caverna é a região do mortos) ou sofrer qualquer outro destino antes que viver aquele mundo do opinável. - Isso é o que creio eu – disse – que preferiria qualquer outro destino antes que aquela vida. – Agora fixa-te nisto – digo eu – se tendo voltado lá ao fundo ocupasse de novo o mesmo assento, não crês que se os seus olhos ficassem cegos como aquele que deixa subitamente de ver a luz do sol? – Certamente – disse. 517 – E se tivesse que competir de novo com os que tinham permanecido agrilhoados, opinando acerca das sombras, aquelas que, por não estar habituado a ver, via agora com dificuldade – embora não fosse muito o tempo para se habituar a vê-las – não daria para rir e não se diria dele que por ter subido acima, voltou com os olhos estropiados, e que não valia a pena tentar uma semelhante ascensão? E não o matariam se encontrassem maneira do o fazer a quem intentasse fazê-los subir? – Claro que sim – disse. III. – Pois bem – digo eu – esta imagem há que aplicá-la toda ela, oh amigo Glaucón!, ao que se disse antes; há que comparar a região revelada por
meio da vista com a vivenda-prisão e a luz do fogo que há nela, com a luz do sol. Enquanto à subida ao mundo de cima e à contemplação das coisas deste, se as comparas com a ascensão da alma até à região inteligível não errarás no que respeito ao meu vislumbre, que é que tu desejas conhecer e eu, só a divindade sabe se por acaso está certo. Enfim, eis aqui o que a mim me parece: no mundo inteligível o último que se percebe, e com trabalho, é a ideia do bem, mas uma vez percebida, há que compreender que ela é a causa de tudo o que é recto e belo que há em todas as coisas: que o mundo visível engendrou a luz e ao soberano desta, (pois o sol é filho do bem – nota do editor), no inteligível é a soberana e a produtora da verdade e do conhecimento, e que tem por força de a considerar quem quiser proceder sabiamente na sua vida privada e pública. (…) Um comentário a um texto desta singularidade literária, poder conceptual e relevância histórica, ou é uma obra muito fundamentada ou é uma oportunidade, estimável, mas modesta para, no seu regaço, abordar algumas ideias. É este o caso. Este excerto tem sido citado, ou comentado, por inúmeros autores, por exemplo, Susan Sontag, no livro, On Photography, 1973/77. A fotografia, o cinema e a imagem vídeo digital serão a concretização contemporânea da caverna, como não é difícil imaginar na utópica ou premonitória descrição de Platão e como é interpretada, ou considerada por diversos leitores qualificados desta obra. A recusa da imagem, e por isso da representação, por certas culturas e civilizações ainda contemporâneas é um fenómeno estranho à cultura racionalista e humanista grega. Por isso não a considero aqui. É nessa dimensão filosófica que dizemos que Platão é o homem da Ideia e não é o homem da Imagem. Este é um texto contra a imagem. O poder ou a força da Ideia, da doutrina da Política e da Ética – o centro da matéria de, A República – são as bases da filosofia platónica. Porém, a criação de imagens, o seu culto e por fim a sua necessidade, parecem ser um dos atributos mais específicos do ser humano. A percepção visual ou qualquer outra, como a percepção ultra-sónica dos morcegos produzirá na mente analogons àquilo que designamos imagens visuais. A imagem gráfica
manual, ou hoje electrónica, tem para o homem um poder e um perigo que tem marcado civilizações e culturas. Como seria a cultura humana ou o homem sem o exercício produtivo do repositório das imagens gráficas desde as cavernas ou dos rochedos? No entanto, a imagem será o que haverá de mais incompreensível ou mais opaco ou equívoco. A palavra, o texto muitas vezes vêm em seu auxílio. Como sabemos o lado esquerdo e o lado direito do cérebro humano sempre lutaram para se articular depois de separados. O valor que fomos capazes de atribuir a essas configurações mentais para a nossa orientação, auto-satisfação, reconhecimento e sentido real e transcendente não é fácil de compreender. Nenhum outro ser animal o faz, mas a suas mentes processam imagens semelhantes às nossas, como bem o sabemos com um cão, por ex. Nós necessitamos de ver sombras tal como necessitamos de conhecer as coisas em si mesmas. Há, porém, uma diferente funcionalidade mental entre a cognição e a fruição, como o há entre o sentimento e a intuição, e entre todas essas funcionalidades da mente. Embora as imagens das sombras não sejam exactamente iguais às imagens que possuímos dos objectos ao nível do mito/metáfora da caverna podem assim ser dadas, pois se virmos uma imagem de Marte pouco saberemos sobre Marte e o mesmo sobre uma concha ou uma pessoa. A percepção tanto da imagem, como do real não nos diz nada sobre a complexidade e integridade dos seres e das coisas. Só o diz a nossa capacidade de elaboração conceptual a partir do seu conhecimento concreto e da sua vida. O próprio sentimento que surge conjuntamente da percepção emocionada e dos juízos assentes em conceitos não desponta em qualquer imagem ou coisa, ou ser. Porém a tentação para supor que os conceitos nos ajudam a ver as imagens, que só com eles podemos ver, é muito mais falacioso, pois tende a ignorar a realidade que não é só senão imagens, sejam visuais, tácteis, sonoras ou outras. Claro que os prisioneiros não sabiam ver bem. Não dominavam as capacidades perceptivas nem cognitivas, pois não as tinham feito cultivar pela reflexão. A Percepção é a função psicológica que comanda a gestão das imagens. Podemos adquirir uma experiência muito detalhada de uma porção do real mas não
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compreendemos nada do que estamos a ver. Isso é muito apreciável e é muito importante na arte e no desenho, por exemplo. É porém restrito, limitado ou abstractizante. Duma obra de arte, falamos da sua fruição e da sua compreensão. Alguns dizem que a obra de arte sente-se e não se compreende. Outros dizem “que não procuram, (análise) encontram.” (síntese). Outras dizem que a obra não se explica, outros, ainda, dizem que só o conhecimento profundo e detalhado de todos os aspectos da obra nos permite compreendê-la e, concomitantemente, vê-la. A Percepção da Imagem e a Cognição ou Conhecimento da realidade concretizam-se em termos de imagem gráfica com o desenho e a pintura. Por isso são representação. A obra é sempre o resultado da complexa capacidade de elaboração, percepção e compreensão dos elementos e dos fenómenos e da forma como passam a ser imagens gráficas. A fotografia como imagem não produz ou compreende a Cognição. É só apresentação. A fotografia pode ser realizada só por uma máquina sem a decisão ou a intervenção do homem ou de um autor. A imagem fotográfica pela sua natureza é só o resultado de um processo óptico e electrónico ou físico-químico. Uma máquina colocada num certo local onde um conjunto de eventos se produzirá, se disparar a uma cadência de 5 segundos irá produzir, seguramente, imagens notáveis, alguma vez vistas, a que poderemos atribuir todo o tipo e valores documentais, comunicativos, artísticos, etc. Nunca saberemos se são o resultado de uma vontade humana ou do acaso. As imagens, porém, são o suporte, a “realidade mental”, de um quadro emotivo, e em seguida sentimental, como nos assegura António Damásio. Nós não acedemos profundamente às imagens pela razão mas pela emoção. As imagens não possuem ética, tal como o real e a vida e nós não podemos ajudar que a tenham. Só o conhecimento fenomenal. Isto é, o verdadeiro nexo entre as partes do ser ou do conjunto e a lógica dessas relações, dos seus efeitos, nos podem dar essa dimensão. As emoções não nascem do conhecimento, mas da vivência. Parece que duma vivência conjunta e complexa do corpo e da mente. Isto é, ver a fotografia do meu pai morto não é igual a estar presente com o corpo do meu pai morto. Mas é
verdade que nos podemos emocionar com a imagem de qualquer coisa. Viver sempre na contemplação das sombras, isto é, das imagens que não são coisas susceptíveis de permitir a cognição é hoje mais fácil. No mundo das imagens virtuais e digitais em video, hoje muito presente em certos âmbitos da nossa vida estamos, pois, na caverna. As pessoas vivem agrilhoadas e com a cabeça rigidamente fixada num só sentido e num só ecrã, onde tudo acontece. Dão tiros, lutam, correm, saltam, voam e julgam que isso é a realidade. Quando forem soltos e voltarem à luz do dia ou ficarão cegos por olhar o sol ou então terão pena dos que continuam na caverna. E estes pensarão que eles estão tontos por darem tanto valor ao que se passa fora da caverna. A imagem é aquela realidade mental que nós aceitamos como sendo a representação de algo que conhecemos ou admitimos a possibilidade de existência. Mas pode não existir. No entanto tudo o que somos capazes de imaginar só pode ter origem no existente. Daí as imagens patéticas dos hipotéticos seres extraterrestres, que por mais estranhos que pareçam à primeira vista, têm sempre tudo da vida tal como a conhecemos. O mundo dos juízos e o mundo das opiniões são duas dimensões abordadas pelo texto de Platão. As pessoas que consideram que a realidade é acima de tudo a imagem não podem fazer juízos; têm opiniões. Conhecemos bem essas pessoas no domínio artístico que exprimem geralmente opiniões e consideram que o “gosto não se discute”. Desprezam o conhecimento e evitam o debate e temem as ideias. Tudo é imagem. O juízo sobre a imagem é sempre a superação da imagem. A percepção e a análise e conhecimento do fenómeno que está na sua base, seja ele a realidade exterior ou a “realidade interior”, revelará o que a imagem espelha sempre, em absoluto e em especial, a imagem gráfica desenhada. Só o desenho permite representar e conhecer algo que dizemos que temos como imagem mental. Mas não nos garante “que é a ideia do bem, mas uma vez percebido, há que compreender que ele poderá ser a causa de tudo o que é recto e belo que há em todas as coisas.”
PROJECTO E DESENHO VERDADE E INTERPRETAÇÃO MARCO GINOULHIAC
“O scrittore, con quali lettere scriverai tu con tal perfezione la intera figurazione qual fa qui il disegno(...) quanto più minutamente descriverai, tanto più confonderai la mente del lettore e più lo rimoverai dalla cognizione della cosa descritta. Dunque è necessario figurare e descrivere.” Leonardo da Vinci
O seguinte texto procura organizar um território de aproximação entre os processos de legitimação presentes no âmbito do projecto de Arquitectura e uma teoria hermenêutica baseada sobre o primado da interpretação. Neste contexto esta abordagem é feita através da noção de representação, mais especificamente do desenho, enquanto instrumento de negociação processual capaz de conservar uma elasticidade e uma duplicidade epistemológica sobretudo num contexto cultural caracterizado pela multiplicidade de posicionamentos possíveis. Defende-se, por outras palavras, que a representação utilizada ao longo dos processos de projecto de Arquitectura, quando encarada enquanto instrumento de natureza hermenêutica, desempenha um papel insubstituível na definição, estruturação, compreensão e legitimação de uma possível verdade projectual e representa, por estas razões, a verdadeira força retórica da acção projectual. Um projecto de Arquitectura pode ser considerado como um conjunto de processos cujo produto é um posicionamento epistemológico exclusivo do sujeito sobre o mundo. O seu objectivo é, portanto, a formulação de um conjunto de enunciados de carácter prescritivo, que articulam um sistema de relações, considerado como “a forma através da qual são organizados e fixados, em sentido arquitectónico, os elementos de um determinado problema” . Neste contexto, o âmbito da organização espacial resulta
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como um plano de imanência subjacente a um conjunto de outros sistemas que lhe são interdependentes. Sistemas como, por exemplo, o económico, o social, o tecnológico, etc., encontram no sistema espacial uma própria implementação formal e tecnológica. Quem projecta está, desta forma, a propôr uma determinada organização espacial para uma parte do planeta. Todavia, de um ponto de vista intelectual, qualquer organização é, antes de mais, uma constituição de um sistema de relações baseado numa rede de conhecimento. Projectar é organizar o espaço segundo um conjunto de princípios de natureza teórica. A proposta projectual é a passagem de ideias abstractas para intenções formuladas. Nesse sentido um projecto de Arquitectura é, antes de mais, um acto de natureza epistemológica ao representar uma organização de um conhecimento cujo derivado será uma organização espacial. Nesse sentido, enquanto posicionamento de natureza epistemológica do sujeito, o projecto de Arquitectura resulta da produção de um conjunto
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de enunciados prescritivos. Esquiços, desenhos, imagens, textos ou comunicações verbais participam para uma definição e uma comunicação unívoca de algo que poder-se-á apelidar de verdade projectual. Uma verdade propositiva, mesmo que exclusiva e contingente, que implica, como já afirmado acima, um posicionamento e uma organização epistemológica do sujeito diante de um problema. Logo, uma verdade projectual enquanto resposta intencional a uma pergunta que, no caso específico da Arquitectura, pode ser considerada como oriunda de uma exigência (parafraseando Heidegger) habitacional. Uma pergunta que manifesta uma necessidade de alteração positiva de um estado de facto considerado insatisfatório para quem exige essa alteração. O projecto é, desta forma, uma resposta a uma pergunta; pergunta essa que possui no seu interior as linhas de força da alteração, em suma, as linhas orientadoras do próprio projecto. Parece portanto possível afirmar que o resultado de um projecto de Arquitectura é a formulação de um conjunto de enunciados prescritivos que visam a definição unívoca de uma verdade de natureza organizacional e, mais especificamente, espacial em resposta a uma necessidade de alteração e de melhoramento de uma condição existente. Nesse sentido e ao longo do projecto, existe um processo de formulação de uma verdade através de uma articulação da pergunta com a resposta. Considerando este cenário processual como aceite, poder-se-á abrir outra linha de raciocínio e afirmar que o projecto, considerado manifestação particular das condutas de antecipação, é, de um ponto de vista filosófico, uma ideia filha da modernidade. Uma modernidade que acredita no progresso como consequência do imparável processo de acumulação de conhecimento e que acredita, portanto, no projecto como sua manifestação operacional por excelência. Uma modernidade, considerada por Leonardo Benevolo como aquele “prolongado período de desenvolvimento em condições estáveis e de sólidas convicções intelectuais”, cujo início poder-se-á colocar no século XV e cujo fim nas últimas décadas do século XX, que perseguiu a verdade projectual como fruto de um rigoroso processo
de natureza científico/positivista. É desta união conceptual que surge a união ontológica que fez, e ainda faz do projecto de Arquitectura, algo que se coloca no domínio do futuro, do possível e do naturalmente positivo, herdando assim uma dinâmica de relações recíprocas e circulares: enquanto estrutura de relações fortemente organizada e enquanto manifestação do paradigma do progresso. Todavia o sucesso do projecto, segundo uma óptica moderna, encontra-se na sua capacidade de habitar no domínio da incerteza. O projecto trabalha na incerteza e com ela revelando ser o instrumento da modernidade para dominar, com a força do conhecimento, as possíveis zonas de desconhecimento que o futuro reserva. De um ponto de vista cognitivo, o projecto manobra em zonas de ignorância uma vez que é um instrumento intelectual de investigação. Se o sujeito já conhecesse o seu futuro ou se este estivesse de alguma forma já determinado, não precisaria do projecto. Projecta quem quer, e pode, mudar o natural decorrer dos eventos. Neste sentido a ideia de projecto agrega os traços dominantes do progresso com o desconhecido. Aspecto que lhe garante ser um veículo de inovação. Inova quem altera uma condição existente para outra que, antes do projecto, é desconhecida, pois não existe inovação quando se assiste a uma passagem de um estado conhecido para outro também conhecido. A modernidade, ao servir-se do projecto como instrumento de investigação em zonas de indeterminação, garantiu a existência de um elemento que lhe fornecesse a garantia de legitimação processual. A criação de uma ligação ontológica unívoca é bem visível, por exemplo, nos tratados. Textos onde o lugar da arbitrariedade era reduzido a favor da construção de uma verdade, cuja legitimação encontrava-se, tanto numa sintaxe, como num vocabulário considerados universais. Para conseguir formular respostas universais parte-se do pressuposto que existem perguntas fixas, inalteráveis e, também, absolutamente unívocas: o conceito de tipologia, de grelha compositiva, de elementos construtivos e decorativos, etc. Foi ao longo da modernidade que se solidificou uma muita boa parte das heurísticas projectuais, do pensamento do projecto: as formas
de raciocínio que, ainda hoje, se encontram na base da esmagadora maioria dos projectos de Arquitectura. Diante deste cenário, o problema surgiu quando a modernidade deixou de fornecer uma referência estável para as condutas intelectuais que habitam e organizam a ideia de projecto. Por outras palavras, e sem querer aprofundar demasiado a querelle pós-moderna, quando a univocidade deixou o lugar para uma abertura interpretativa. Para citar Ludwig Wittgestein, cuja contribuição foi determinante neste debate, quando “tudo aquilo que vemos poderia também ser de outra forma. Tudo aquilo que, em qualquer caso, podemos descrever, poderia ser de outra forma “ e “não existe uma ordem a priori das coisas” . Acabam as certezas quando, como afirmou Nietzsche, não existem factos, apenas interpretações. Esta abertura interpretativa, quando projectada nos processos de construção conjunta da pergunta e da verdade projectual, manifesta-se numa dificuldade em fixar, de forma inequívoca, tanto uma como outra. A construção de uma verdade projectual parte do pressuposto que exista uma clareza unívoca entre esta e o que a pergunta lhe requer. Coloca-se, portanto, o problema de não existirem as condições para que seja possível formular uma pergunta unívoca, que não possa ter um significado diferente do que lhe foi atribuído pelo sujeito que a formula. No atávico binómio da filosofia que viu, ao longo da história, confrontar-se verdade com interpretação, quando as certezas absolutas enfraquecem, avançam a dialéctica, as interpretações e as incursões abdutivas. Esta configuração epistemológica revelase particularmente contagiosa para com o âmbito do projecto de Arquitectura uma vez que contamina as bases sobre as quais este edificou os seus processos de legitimação. Como já foi afirmado, a modernidade, e nesta o positivismo, tinha garantido a presença de um elo unívoco entre pergunta e resposta projectual. Legitimar um projecto significava garantir a conformidade entre este e um referente fornecido, tendo em conta um determinado universo de casuísticas, cuja validação era feita através de processo de aceitação colectiva. O grau de incerteza
interpretativa encontrava-se extremamente reduzido e a noção de verdade projectual não se limitava a ser de carácter propositivo, chegando a ser uma verdade como correspondência a um referente. A abertura interpretativa, ao quebrar este elo, quebrou parte das ligações epistemológicas que a Arquitectura tinha com as chamadas ciências exactas. Poder-se-á afirmar, sem receios, que a actual condição epistemológica (e também social e cultural) da Arquitectura encontra nessa ruptura as suas características dominantes, sobretudo no que respeita uma colocação fronteiriça entre (para utilizar termos de Gadamer) as ciências da natureza e as ciências do espírito. No âmbito do projecto de Arquitectura a interpretação, que por definição é a atribuição de significado a um signo, representa a leitura e a compreensão da pergunta projectual. Uma pergunta cuja compreensão, diante de uma abertura interpretativa, ganha um cariz dialéctico ao poder ser considerada como um acto de negociação de sentido entre a própria pergunta e a hipótese projectual. Quando não existem certezas, a verdade projectual, o conjunto de enunciados prescritivos acerca dos quais se falou mais acima, é fruto de uma negociação. Uma negociação ao longo da qual a solução proposta e a pergunta colocada negoceiam uma hipótese projectual considerada como verdade de significado unívoco. Uma negociação que se desenvolve através de uma dialéctica encarada, numa acepção platónica, como processo de busca de uma definição verdadeira. Processo este bem visível ao longo das sucessivas negações efectuadas pelo projectista e que participam em contínuos processos de redução da variedade projectual. O arquitecto não se limita a negociar um significado, uma forma, uma hipótese, mas constrói-os através do mesmo processo negocial. Um processo onde tanto a alternância dialéctica como o ajuste das regras de negociação são contínuos e em estado fluido. O arquitecto, num diálogo monológico que em tudo se parece com uma maiêutica socrática, negoceia para poder construir, apreender e compreender a própria hipótese projectual. A negociação é, desta forma, um acto de compreensão considerado como desvendamento de uma
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verdade projectual. Mas compreender, como afirma Ricoeur, é unicamente uma parte da construção de uma verdade. Ao compreender sucede, de forma contínua e circular, o acto de explicar. Nos processos de construção de uma verdade, explicar pode ser considerado como a manifestação metodológica da compreensão: como acto de desenvolvimento e de organização da compreensão. Explicar e compreender articulam a negociação e, com ela, a formulação da pergunta e da resposta projectual num processo circular virtualmente infinito. Explicação e compreensão fecham aquele “arco hermenêutico” entendido como “estrutura insuperável de conhecimento” e, enquanto tal, instrumento de construção de verdade. Desde o princípio tudo se encontra envolvido num jogo de compreensão e explicação de tal forma profundo e abrangente que pode chegar a pôr em causa, em certos casos, o próprio processo projectual.
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Para negociar a verdade, para poder compreendêla e explicá-la, é necessário um suporte que sirva de plataforma para a transmissão de significados entre as entidades envolvidas na negociação. Neste sentido o desenho, considerado como ferramenta de representação, é uma plataforma de organização e de explicação através de um método representativo que funciona como objecto de aproximação ontológica entre a pergunta e resposta. Quem desenha, desenha para compreender e, enquanto tal, adapta a própria forma de representação, de comunicação, ao contexto e aos objectivos. Este manobrar do desenho no território da indeterminação é bem visível, por exemplo, nos esboços que procuram percorrer uma ou várias soluções formais na tentativa de explicá-las e, consequentemente, compreendê-las. Existe um claro arco hermenêutico entre compreensão e explicação. Quem desenha está, por outras palavras, a explicar uma verdade. Entendendo por explicar, com Ricoeur, um libertar a estrutura, libertar as relações internas de dependência, e por compreender, um começar um caminho na direcção indicada. Existe assim uma ligação biunívoca entre representação e direcção projectual. Sobretudo nas fases incipientes do projecto, a baixa resolução do desenho, onde a resolução é a
quantidade de informação por unidade de medida do meio de comunicação, permite ao sujeito oscilar entre explicação e compreensão. Um baloiçar que cria as inércias necessárias para que o processo avance em alguma direcção e não fique retido num dédalo de caminhos interpretativos sem saída. Nesta perspectiva os processos dialécticos resultam ser contaminados, quando não determinados, pela natureza da representação adoptada. O desenho varia assim o seu grau de interpretabilidade através de uma “relação directa entre a natureza de um dado desenho e a sua função projectual” e com este varia, naturalmente, a sua univocidade. Quanto mais unívoca for a representação menos livre será a negociação projectual. A acção projectual na Arquitectura necessita do desenho na medida em que este “procura definir a relação dialéctica entre o não-ainda-formulado e o materializado, relação característica daquilo que constitui toda a acção que se quer intencional.” Pois “a este título, o projecto é uma maneira de instaurar um elo dinâmico entre o não-formulado intencional e o materializado projectado.” Um não-formulado intencional que se constrói sobre e com a construção da sua representação feita pelo desenho. Um desenho capaz de ter o dúplice papel de enunciado prepositivo que, através de uma lógica de negação, funciona segundo um método positivista, mas que também resulta ser um elemento aberto à contínua interpretação e, com isso, compreensão. Mas também um desenho capaz de se tornar unívoco ao longo do desenvolvimento do processo projectual. Neste cenário, o desenho, como suporte capaz de veicular tanto rotinas de natureza positivista como posicionamentos de cariz interpretativo, ganha um papel fulcral no processo de projecto. Poder-se-á chegar a afirmar que o desenho, considerado como “linguagem natural da Arquitectura”, representa o elemento que permitiu e que ainda permite uma convivência disciplinar entre um paradigma científico, baseado numa univocidade, e um artístico, fundado sobre a complexidade e multiplicidade da acção interpretativa. Esta duplicidade que o desenho possui, esta capacidade de servir de plataforma dialéctica entre
paradigmas intelectuais e epistemológicos até então exclusivos, abre uma interessante pista de investigação sobre as rotinas intelectuais presentes ao longo do projecto de Arquitectura. O desenho de projecto, considerado como ferramenta e não como produto, implementa uma comunicação que balança entre o descritivo e o prescritivo, veiculando e construindo verdades projectuais. O desenho, como ambiente de compreensão e explicação, é uma forma de diálogo de geometria variável, capaz de se adaptar aos requisitos epistemológicos do contexto sem, com isso, ganhar arbitrariedade em detrimento de legitimidade ou pertinência. O desenho processual não tende a ser afirmativo em relação à verdade, mas sim em construí-la progressivamente. Baloiça entre o rigor da explicação e a multiplicidade da compreensão, numa virtualmente infinita busca de verdade. Ao considerar o desenho um instrumento de pensamento de elevada flexibilidade e adaptabilidade ontológica e epistemológica, poder-se-á atribuir ao campo do projecto de Arquitectura um renovado estatuto de território de confluência das rotinas legitimadoras de natureza positivista e interpretativa. Um estatuto de campo intelectual onde possam conviver, num regime de complementaridade, os diferentes paradigmas da contemporaneidade. Nesse contexto o desenho representa verdadeiro suporte retórico do projecto de Arquitectura. O seu camaleonismo cognitivo permitiu à disci-
plina sobreviver a toda e qualquer mudança nos paradigmas intelectuais que pautaram o vigamento filosófico subjacente à cultura e à sociedade. A sua hibridez epistemológica é uma das características que permite à Arquitectura resistir às contínuas e cada vez mais profundas intrusões disciplinares. O desenho do projecto é uma manifestação visível e partilhável de um pensamento individual e exclusivo. Observar as acções de um Arquitecto desde os primeiros esboços até ao projecto final é observar o manobrar do seu pensamento. Se o projecto é a acção do arquitecto, então o desenho é o instrumento que o pensamento adopta quando empenhado na tarefa do projecto de Arquitectura. Em suma poder-se-á dizer que o desenho representa o pensamento específico e exclusivo do Arquitecto. A sua verdadeira ferramenta profissional enquanto elemento que diferencia a Arquitectura dos outros âmbitos. Uma cultura do desenho é uma cultura do pensamento e é uma cultura da e para a verdade projectual. Cada vez que existem intromissões e amputações nessa cultura, existem intromissões e amputações no aparato de legitimação do projecto e, com ele, da Arquitectura. Manter o desenho no centro disciplinar da Arquitectura significa conservar não só um instrumento operacional mas, antes disso, a essência do pensamento arquitectónico considerável como uma forma específica e exclusiva de acção cognitiva.
Legenda da imagem: Estudos planimétricos de villas de Andrea Palladio em: Puppi, Lionello. 1986. Andrea Palladio. Milano: Electa p. 32 (Londra, R.I.B.A., XI, 22v: part.) Anotação de Leonardo da Vinci num dos seus cadernos de anatomia. Em: Scritti scelti di Leonardo in Vinci. A cura di Anna Maria Brizio, Torino: UTET. 1952, p. 508 Gregotti, Vittorio. 1993. Il territorio dell’architettura. Milano: Feltinelli Editore p. 11 – tradução livre Heidegger, Martin. 1951. Building, Dwelling, Thinking. Em: Leach Neil. 1997. Rethinking Architecture. London: Routledge pp. 100-109. Boutinet, JeanPierre. 1996. Antropologia do projecto. Lisboa : Instituto Piaget. Benevolo, Leonardo. 1985. O último capítulo da Arquitectura Moderna. Lisboa: Edições ’70. p 133 Calvo, Francesco. 1992. “Projecto”, em Enciclopédia Einaudi. Vol. 25. Organizado por Ruggiero Romano (ed. Italiana) e Fernando Gil. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Maldonado, Tomás. 1992. La speranza progettuale. Ambiente e società. Torino: Einaudi Ludwig Wittgenstein. Tractatus logico-philosophicus. Milano : Fratelli Bocca, 1954. 5.634 tradução livre Gadamer, Hans-Georg. 1983. Verità e método. Milano: Bompiani. P. Ricoeur. Logica ermeneutica? Em aut-aut, n 217-18, 1987, p. 24 Ricouer, Paul. 1989. Dal testo all’azione. Saggi di ermeneutica. Jaka Book: Milano Ricouer, Paul. Idem. Carneiro, Roberto. 2002. Conceituando ao redor deste desenho. Em Desenho projecto de desenho. Instituto de Arte Contemporânea, catálogo. 2002 Boutinet, Jean-Pierre. 1996. Antropologia do projecto. Lisboa : Instituto Piaget. P 15 Durand, Jean-Nicolas-Luis. 2004. Lezioni di Architettura. Milano: Cittá Studi. Edição Original: 1817. Précis des leçons d’architecture données a L’École Royale Polytechnique. Mitchell, William. 1998. The logic of architecture. Design, computation, and cognition. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.
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IMAGINANDO A IMAGEM
Nuno Viana
O
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corpo estremece num rodopio interno: são os olhos que escavam para dentro. O reflexo da epiderme no sangue a borbotar informação etérea. Mas fundamental. Na direcção de si, tentando arrebanhar os resíduos neuronais de um sabor, de uma cor pálida, de um fio alinhando a ciência da abstracção, esse ser de musculatura líquida despe-se da temporalidade enfrentando o demónio da invenção, o cão negro que debilita o inteligir no mar revolto da sensibilidade. Neste espaço indimensional, as mãos não estão fora, a pele não absorve moléculas, os sons turbinam cardíacos de claridade nesse percurso de mineiro. Agora perscuta com os dedos: a imagem é a ponte que linguagem atravessa para a boca da palavra. A parede intransponível pelo sonho, edificada na voz rarefeita que o real canta aos sentidos adormecidos. Apenas a nave da emoção acende a luz da incoerência narrativa, pois só aquilo que vive tem a sombra incompleta. Não existe imagem sem carnalidade, sem os limites impostos pela melodia continuamente desatada da electricidade cerebral. As sinapses violinando. O diamante infernal do vazio escavado na antítese funda os alicerces desses limites, dessas barragens neotéricas na constituição do ser, elevando-o ao altar dos deuses: a vontade consciente. O Homem só repousa contra a gravidade. É uma luta de descanso. Uma luta de apaziguamento com a mesma pulsação terrestre que o define inteiro em cada gesto, em cada movimento. O devir é o coelho branco condenado a existir sem toca. E que somente sobrevive à faca etérea da plenitude nas recônditas caves do irracional por prescutar. O núcleo vital da imagem é a esperança. A esperança do objecto em ser alcançado ou aprisionado pelos tentáculos da percepção. Porque tudo o que é terreno consome ou é consumido. E os trâmites da visualização interior anseiam em apoderar-se da instância unificada. Em perfurar o fundamento intrínseco ao mundo e que num advento de segredo por desvelar no desconhecido, a descodificação emerge como interminável, como fome de fome. Contudo a grande dissidência da imagem é a sua relação com o espaço. Podemos referir a espacialidade imagética, como espécie de musa impávida pronta a ser retratada pelo mestre celebrante da forma, dimensão adormecida pelo olhar virgem no confronto, sustendo-se à tona num silêncio de monte parado; ou no espaço interior, no onírico fosforescente que celebra a sua fonte no idioma da matéria. Porque o sonho é somente visualização de carne. Olhos que se olham. Exaltação pura de quem totaliza a crença de céu numa abóbada espraiada na pele, no punhal ocular. Mas como poderá animar a carne a metamorfose, a associação consciente e inconsciente, sem o segredo, a dimensão do sagrado, da energia combustível ao sopro do acto criativo?
O âmago do olho é pleno de chão tapetado por abismos de brevidade. E apoderar significa que estenderei o meu perante o alguém que quero unificar. Expor-me ao leão doce da condenação do outro. A imagem sustem-se numa essência ptolomaica a dirigir o processo, o acto, a nomeação da ordem, mas sem o indesvendável, o ritual de passagem com que é caracterizada a visualização do sonho (base de comando para toda a constituição do indivíduo como si): sem o inominado a sua formação seria amputada na realidade. Porque a realidade e a irrealidade seduzem-se, totalizam-se na fronteira do uivo arrepiante, do alinguístico. No fundo, o ser é para o desejo. E o desejo é a fonte da imagem. E o seu espelho. Exemplo: - Estende a mão. - Estendo a mão para onde? - Estende a mão para ti. E o braço incorporando a sede, os lábios dinamitados pelo deserto constante da linguagem quando a insónia tece lentamente do cotovelo, as borrascas alagando tudo, menos os lábios, os lábios secos destru indo toda a irrealidade que não possui nome [sim, porque também o irreal é linguístico] - Gostarias de conhecer o que está por detrás da luz? e os flamingos caindo em pétalas de neve, em revoadas inconstantes nas vértebras salientes de mim, perfurando o colchão, os ossos rasgando afiadamente a roupa com que dispo habitualmente a pele [eu sou aquilo] - Sonho? questionando a possibilidade de me poder chamar nesses campos rarefeitos do onírico, uno sem corpo [haverá unidade sem materialidade?] - O sagrado unificou-se nesses súbditos que anseiam e o entrelaçar dos dedos, sentindo-te a forma, o edifício da apoderação, expondo-me ao nome do silêncio, estruturado, limitado intervalo de nada. Corrente de associação orgânica, sanguínea, pontificando o desejo, a esperança de cada segundo latejante nas têmporas de quem anseia. Esse é um lugar onde barcos não navegam, onde atmosferas se ferem, onde a mão puxa para dentro. É o inverso remendo das labaredas aquáticas no ventre da lâmina casuística da finitude eterna. O mar da confluência é calmo quando a imagem não consome. Contudo, quem cria, quem interroga, quem humaniza não suspira por marés vazas. Do irracional destila-se a verdade, e aí a imagem é a casa. E certo, certo, é que no jardinzinho da minha casa plantarei uma vasto campo de cenourinhas suculentas para o meu branco coelhinho se saciar.
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A COMPUTAÇÃO E A IMAGEM RICARDO VELOSO na terra e de um outro em órbita, que é usada para que nos orientemos no dia-a-dia com um GPS, ao princípio da indução que nos permite usar lanternas que não precisam de baterias, há uma miríade de “nuances” intrigantes nas ferramentas à nossa disposição hoje em dia. Perante estas podemos ter a atitude prática do “desde que funcione, não me interessa como o faz” ou então podemos ter o prazer de ver como elas são “under the hood”. Passando a um prisma mais particular da coisa, nos tempos que correm, a informática, no que se refere ao nosso avanço tecnológico, tem vindo a desempenhar dois papeis distintos, um de provocador de mudança, através das ferramentas que vai permitindo criar, e outro de suporte a áreas distintas do conhecimento, que vão precisando do auxílio dos computadores. As comunicações são um claro exemplo do primeiro caso, em que a uma ferramenta que criamos para outro fim, a Internet, entre tantas outras coisas, veio a poupar tempo no envio de mensagens, dinheiro nos telefonemas e tempo em pesquisa de informação. Sendo mais específico, o processamento computacional de gráficos tem-nos ajudado a analisar, criar Peter Frankfurt com Greg Lynn/FORM e Alex McDowell, New City for MoMA
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Dado o actual desenvolvimento em áreas como a Física, a Biologia, a Química, a Informática, e todas as combinações e derivações que estas podem ter, não arrisco muito ao dizer que as potencialidades das engenhocas ou “gizmos” que produzimos (nuns casos há muito esperadas pelo imaginário científico, e noutros tão inesperadas que ainda conseguem surpreender mesmo um fã de Sci-Fi), ultrapassaram já a complexidade passível de ser compreendida por um qualquer comum mortal. Pelo menos por aqueles que ainda têm vida social e esperança de vir um dia a procriar. Mas, se há quem defenda que o saber não ocupa lugar e nunca é demais, então mais ainda defenderão que uma compreensão sobre o que se passa em todas estas áreas que em tantos momentos nos auxiliam, ainda que sem os “gory details” das especificações técnicas e fórmulas matemáticas, é desejável. Aproveitamos a oportunidade para trazer à luz alguns conceitos e mecanismos por detrás das cortinas e ao mesmo tempo desmistificar outros. Desde a discrepância, derivada da teoria da relatividade, entre o “tamanho de um segundo” de um relógio
e transformar a imagem, com aplicação em praticamente todas as outras actividades humanas. Exemplos disso são os comuns programas de CAD, que no limite manipulam a simulação até a um nível de detalhe extremo e difícil de distinguir da realidade, os métodos de autenticação biométrica que aceleram os processos de segurança ou a visão computacional que permite a representação do nosso corpo através da ressonância magnética. NATUREZA DA COMPUTAÇÃO / IMAGEM PARA UM COMPUTADOR De modo a compreender um pouco mais o que se passa por trás do processamento informático da imagem, é preciso ter em mente o contexto tecnológico actual da computação. Primeiramente, um computador só “conhece” dois símbolos, o 1 e o 0 (o binário), e com estes dois representa tudo o resto, dado que os seus circuitos eléctricos só possuem estes dois estados (com corrente e sem corrente). Embora as recentes descobertas da física quântica nos prometam sistemas que aproveitam outros possíveis estados da matéria, continuamos a ter o contratempo de traduzir uma informação contínua, como a infinidade de cores da nossa realidade, para uma linguagem que os computadores compreendam. Com 1’s e 0’s ainda se pode representar qualquer número finito, mas a nossa infinidade de cores já foge a esta condicionante. É desta barreira que surge o velho contraste entre o analógico (o mundo como o conhecemos) e o digital (o mundo dentro de um computador). um computador). Por outro lado, os computadores actuais (não quânticos) são determinísticos, ou seja, sempre que lhes é dada uma tarefa com os mesmos dados, o resultado é o mesmo, o que difere mais uma vez com o que sabemos da realidade: na escala das partículas quânticas, nada é previsível. No entanto, o efeito desta imprevisibilidade não é relevante ao nível macroscópico e, na prática, 99,99999999(...)% das vezes, uma maçã de Newton dirige-se para o solo quando se desprende da árvore e o modelo do com-putador serve bem para representar estas ocorrências “normais”. Tendo em conta as condicionantes gerais da
computação, a representação da imagem para um computador é concretizada por conjuntos de valores numéricos e tudo o que é processamento desta são operações sobre esses números. Para guardar uma imagem são usadas algumas estruturas de representação, entre as quais se encontram os conhecidos sistemas cromáticos (como o RGB) que guardam as cores sob a forma de valores, o uso de vectores que representam formas, a divisão da imagem por conjuntos de píxeis ou a sua representação por recurso a definições matemáticas ou, no caso concreto destas, a fractais. Especificamente, o fractal tem a característica de ser relativamente conhecido, mas poucas vezes compreendido. O fractal como o conhecemos graficamente é uma consequência da evolução da matemática e é criado com recurso a fórmulas e definições. A ideia base é criar formas e estruturas que, subdivididas, mantenham as propriedades originais. Guardando a definição de como estas formas e estruturas se relacionam com as suas subdivisões, podemos guardar a representação de um objecto infinitamente complexo numa simples instrução de cálculo. O mesmo acontece no caso mais geral de uma qualquer definição matemática comum (que não descreva um fractal). Uma das consequências da possibilidade de guardar informação gráfica desta forma é a compactação da imagem com recurso a fórmulas matemáticas, ou seja, em vez de armazenarmos detalhadamente cada pontinho de cor de uma imagem ou cada informação dos traços que esta contém, apenas mantemos uma expressão de cálculo. Nos tempos que correm, em que é dado um grande prioridade à mobilização da tecnologia, o problema da comunicação da informação torna esta poupança de espaço da maior importância. No que toca às aplicações práticas, há dois métodos a ter em mente: o primeiro é o de criação de imagens com a expansão de expressões (no qual geralmente se tenta que estas ganhem um aspecto interessante) e o segundo envolve o reconhecimento de fractais e suas definições em imagens de outras origens de modo a representá-las apenas recorrendo a essas definições. Aproveitando-se do primeiro método, tem-se vindo a desenvolver uma comunidade de programadores
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e artistas gráficos (que por sua vez evoluiu de uma outra de “crackers” de programas) conhecida como “demo scene”, que conseguiu criar inacreditáveis animações 3D com detalhes de cor, reflexo, brilho, sombra, etc. (juntamente com uma banda sonora a acompanhar) em meros 64KB de informação, ou seja, aproximadamente o mesmo que ocupa uma imagem de cor sem compressão de 148 por 148 píxeis normal (formato BMP 24bit). Por outro lado, espera-se que o segundo método, devido ao desenvolvimento actual de computadores capazes de satisfazer os exigentes requisitos de processamento ao encontrar fractais numa imagem, venha a revolucionar a portabilidade dos nossos ficheiros de vídeo. Ainda na problemática de utilização de recursos informáticos na representação da imagem, estes recursos começam já a dar aso a trabalhos não centrados na modelação da nossa realidade, mas sim à criação de modelos marginais às regras do mundo que nos rodeia. Um exemplo disto é uma instalação no museu de arte moderna de Nova York, onde um arquitecto e um produtor cinematográfico se uniram para criar uma cidade completamente concebida de raiz para a experiência multimédia, e em nada limitada pela a gravidade ou as propriedades dos materiais, mostrando como o âmbito da aplicação das ferramentas que o computador nos disponibiliza é facilmente alargado. RECONHECIMENTO DE PADRÕES E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Entre outras ferramentas que automatizam processos tradicionalmente efectuados por humanos, é de salientar o reconhecimento computacional de padrões, quer seja em dados gráficos, sonoros, ou de qualquer outra origem. Hoje em dia podemos perfeitamente delegar para os nossos sistemas informáticos o reconhecimento dos caracteres (manuscritos ou não), assim como a identificação de pessoas através de imagens das suas faces ou das suas assinaturas. Este processo de reconhecimento de padrões pode ser feito com recurso a diferentes métodos, cada um comportando diferentes desafios.
No entanto, há um passo que é obrigatório em praticamente todas as aproximações que se faça ao reconhecimento genérico de padrões, que é o de fazer o computador “aprender” a distinguir os traços que identificam o padrão. Para resolver esta tarefa, recorre-se frequentemente a mecanismos da área de inteligência artificial. Apesar de haver outras soluções de inteligência artificial, uma é aqui abordada em maior profundidade pelo facto de ser bastante comentada (e muitas vezes mistificada), e por se relacionar com outras áreas do conhecimento humano. Falamos de redes neuronais. Apesar do nome pomposo, as redes neuronais seguem princípios bastante simples, obviamente inspirados pela descoberta e compreensão dos mecanismos do sistema nervoso. A ideia base é que a informação do nosso sistema nervoso está armazenada na existência ou não de ligações (as sinapses) entre as suas unidades funcionais (os neurónios), e entre os quais há comunicação através dessas ligações. As sinapses podem, por sua vez, enfraquecer ou fortalecer, equilibrando o sistema para que este, idealmente, aprenda. Uma vez explicado o conceito base, falta agora explicar que, ao contrário do que se possa inicialmente deduzir, as redes neuronais na inteligência artificial funcionam de maneira completamente diferente das redes neuronais biológicas e que não são simulações destas. As primeiras, para começar, utilizam recursos informáticos, usualmente bastante mais limitativos do que os recursos biológicos, pois um computador tem à sua disposição um (ou pouco mais) processadores, o que, numa realidade em que tudo são operações matemáticas sobre números, significa que só uma operação é processada de cada vez e apenas um neurónio tem a sua oportunidade para “pensar”, enquanto que os milhões de neurónios de cérebro normal funcionam independentemente e ao mesmo tempo. Por outro lado, não considerando o problema dos recursos, o neurónio informático é uma simplificação extrema do neurónio biológico, sem nenhuma das propriedades biológicas inerentes ao primeiro. No que toca a aprendizagem, as versões computacionais utilizam apenas funções de grau de sucesso que, a posteriori, lhes indica se “ra-
ciocínio” que está a efectuar se adequa ou não ao problema que lhes é proposto, consequentemente equilibrando as ligações para melhor responderem à pergunta. Na maioria dos casos, a aprendizagem das redes informáticas é feita em função de dados externos. No reconhecimento de assinaturas, por exemplo, ela constitui-se pela procura de semelhanças estatísticas num conjunto de assinaturas de uma pessoa. O processo de aprendizagem biológico, no entanto, compreende-se por uma infinidade de interacções entre químicos de origem interna e externa, e pela chamada plasticidade sináptica, em que as ligações são equilibradas não ao nível global por causa de um “output” de uma função, mas sim ao nível individual do neurónio. Adicionalmente, e também na maioria das implementações de redes neuronais, o processamento do “input” é feito por camadas, ou seja, um grupo de neurónios envia informação ao grupo seguinte, este ao próximo e assim sucessivamente até ao “output”, que em nada se compara com o fluxo caótico e recorrente nos nossos cérebros. Dadas todas as limitações de flexibilidade da aproximação tradicional das redes neuronais, tornase imperativo referenciar, a título de comparação, um projecto recente da IBM (o “Blue Brain”), que pretende simular modelos computacionais verdadeiramente comparáveis a neurónios biológicos, aproveitando os conhecimentos actuais sobre o funcionamento destes. Neste projecto, que é um esforço conjunto da neurologia e da informática, um supercomputador (o Blue Gene) é utilizado para simular uma versão “anatomicamente correcta” do sistema nervoso ao nível molecular (todas as moléculas de um neurónio são representadas) e, nesta fase inicial, são já simulados com sucesso 10 mil neurónios de um mamífero menor (um rato). No entanto, esta simulação recorre quase ao uso de um processador por neurónio, pelo que o computador utilizado contém 8000 processadores. Embora o âmbito principal do projecto seja estudar as doenças do sistema nervoso, pode também vir a ser este o caminho a tomar nas áreas de inteligência artificial e, mais especificamente, na visão computacional. Contudo, a verdade é que as redes neuronais que temos hoje em dia são bastante
eficientes para as tarefas de reconhecimento de padrões e o maior desafio consiste em extrair informação suficientemente específica para que os mecanismos estatísticos neuronais consigam distinguir entre duas assinaturas, ou seja, encontrar números de traços carregados, diagonais ou horizontais, por exemplo, de uma assinatura. Por fim, um paradigma que também é usado hoje em dia em muitas aplicações de inteligência artificial e que pode ser aqui facilmente introduzido é o do recurso a unidades independentes de processamento chamadas de agentes. Uma das ideias base dos agentes é que há um certo comportamento contido numa unidade computacional face a input ao ambiente que o rodeia. Podemos também recorrer a várias unidades com vista a resolver uma tarefa, e até dotar estes agentes da capacidade de comunicação e de cooperação. Certos problemas são assim resolvidos facilmente, quando uma unidade só não consegue, por falta de recursos ou de conhecimento, resolver um problema razoavelmente complexo, emergindo por vezes comportamentos inteligentes a partir de unidades relativamente “burras”, como, no mundo animal, no caso da formiga e do formigueiro. Encontramos já exemplos da aplicação deste conceito na imagem, onde já se fazem sistemas multi-agente que interpretam mais facilmente esquissos de arquitectura, ou até mesmo agentes que modelam o comportamento de uma massa numerosa de indivíduos e se deslocam num modelo virtual de um edifício de modo a testar o os possíveis futuros fluxos pelo edifício. Entre todas as novas tecnologias intrigantes desenvolvidas na área da imagem, desde a criação do 3d a partir de 2d, passando pelo interface entre o sistema biológico humano e o computador, até à criatividade gráfica computacional na área de inteligência artificial, muito é dito sobre os benefícios que estas tecnologias nos trazem, muitas ficam por abordar. Talvez valha a pena gastar um pouco de tempo a verificar como elas funcionam, pois quem sabe um dia não haverá uma hipótese de as melhor aplicar para um qualquer fim nas nossas vidas, já com boa noção dos seus benefícios e limitações. 2
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PARALELISMOS ANTÓNIO AMORIM
“Quando o imperador fitou o espelho, o seu rosto tornou-se numa mancha vermelha de sangue e depois numa caveira donde escorria mucosidade. O imperador, horrorizado, desviou o rosto. Majestade não desvie o vosso rosto, só vistes o princípio e o fim da vossa vida. Continuai a olhar para o espelho e vereis tudo o que existe e poderá existir. E quando tiverdes alcançado o máximo de enlevo, o próprio espelho mostrar-vos-á até mesmo coisas que não existir…”. in: CHIN NUNG’s ”tudo sobre espelhos”. Olhar o mundo como se de um espelho se tratasse. Procurar por entre os reflexos aquilo que nos torna o que somos na tentativa de encontrar um espaço com que nos identificamos. Ver o mundo com uma visão fixa é mau, mas não entender que ele muta e que temos que mutar com ele é ainda pior, há que avaliar o que pode estar escondido em cada olhar e tentar projectar esses paralelismos numa nova idealização do espaço que nos rodeia, mais dinâmico e fugaz. Ao desdobrar a visão desta maneira deparei-me com novas formas, novas texturas, novas linhas, novos espaços, que aparecem e desaparecem com as sucessivas reflexões, cada imagem “impossíveis” retirada duma realidade “possível” que assim se altera numa infinidade de novas possibilidades. A energia do espaço altera-se e assim também a nossa simbiose com ele.
Caracteres Kanji para “Su” e “Shi”
O SABOR DA IMAGEM
MANUELA BAPTISTA mmnelinha@hotmail.com A sedução que exerce uma imagem é estímulo suficiente para nos levar a procurar novas experiências, e isto é especialmente válido no mundo gourmet. Verdadeira obra-prima da culinária japonesa, o sushi é delicado em aroma e sabor, possuindo uma estética única e apurada, suportada pela regra e pelo rigor, pela cor, forma, textura e composição, o que o torna fortemente cativante ao olhar. Com as suas raízes no Oriente, surge como produto de uma fórmula particular de conserva do peixe em arroz com vinagre, um conservante natural. A apresentação e o consumo foram variando através do tempo, e é só a partir do séc. XX que assume a
imagem que lhe reconhecemos. A primeira abordagem ao tema nunca se faz sem uma certa estranheza, pela falsa ideia de que é apenas “peixe cru”. Nada poderia estar mais longe da realidade. È um tipo de alimentação complexo, baixo em calorias, seguro e saudável (se preparado com cuidado), sendo servido a par de alimentos com qualidades anti-bacterianas, como o gengibre, a soja ou o wasabi. Porque a imagem é uma construção complexa daquilo que observamos, e porque ao experimentar construímos conceitos associados ao estímulo da visão, da próxima vez que se sentir tentado, arrisque... e petisque!
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Nigiri sushi de salmão (aprox. 20 unid.) 300g de arroz de grão curto para sushi; 5dl de água;
Cobertura: 350g de filetes frescos de salmão, limpos e regulares.
Tempero avinagrado:
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4 c.s. de vinagre de arroz, 1 c.s. de vinho “mirin”, 2 c.s de açúcar, 1+1/2 c.s. de sal;
Pasta de wasabi, gengibre e molho de soja para acompanhamento e guarnição.
O primeiro passo é a preparação do arroz: Lave o arroz até a agua sair limpa e deixe escorrer durante 1 hora. Em seguida, coloque-o numa panela bem tapada juntamente com a água. Deixe levantar fervura e cozer na temperatura máxima durante 5 min. Baixe a temperatura para um valor médio e deixe cozer durante 12-15 min sem mexer. Retire do lume, destape a panela e cubra-a com uma toalha de algodão fino durante 15 minutos. Enquanto o arroz está a cozer, misture os ingredientes para o tempero numa caçarola e aqueça suavemente até que o açúcar se dissolva, mexendo sempre. Retire do lume e deixe arrefecer. (nota: pode substituir-se pelo tempero já preparado que se encontra em lojas especializadas, nas doses indicadas no rótulo). Espalhe o arroz uniformemente sobre um recipiente baixo, não metálico, separando delicadamente os grãos com uma espátula. O passo que se segue é de extrema importância para o sucesso da receita, e pode precisar de ajuda de um segundo “chef”: ao acrescentar lentamente a mistura de vinagre ao arroz, deve com a espátula envolver os ingredientes suavemente, e ao mesmo tempo produzir um arrefecimento rápido do mesmo, por meio mecânico, seja através de um leque ou de uma ventoinha, para que o arroz absorva os ingredientes, mantendo os grãos separados e brilhantes. O arroz deve ser então deixado arrefecer à temperatura ambiente, coberto com uma toalha fina de algodão humedecida em água até à altura de o utilizar. O arroz do sushi dura apenas UM dia, e não deve ser guardado para ser servido depois.
O segundo passo é a preparação do peixe: Irá precisar de uma faca afiada (sem serra), portanto cuidado! Lembre-se que a frescura do peixe é essencial para a obtenção de um bom resultado. Pegue no filete de salmão e retire-lhe qualquer espinha, pele ou escamas, deixando-o completamente limpo. Coloque-o sobre a tábua de cortar e observe-o: A medida ideal para trabalhar é com pedaços que tenham cerca de quatro dedos travessos de comprimento e o mesmo em largura. Em seguida pode começar a cortar as 20 fatias de cobertura tendo sempre em atenção que o corte deve ser efectuado perpendicularmente aos veios do peixe. As fatias devem ter cerca de 8mm de espessura e deve-se manter o ângulo de corte para que apresentem sempre as mesmas proporções. A faca deve ser limpa entre cada corte e humedecida com vinagre de arroz. Terceiro passo: a montagem. Finalmente tem ao seu dispor os ingredientes já trabalhados, agora deve organizá-los de uma forma que facilite o trabalho. Pegue numa pequena porção de arroz (aproximadamente o tamanho de uma bola de ping pong), com a mão humedecida e forme pequenas bolinhas, sem as pressionar demasiado. Com o dedo indicador, espalhe uma pequena quantidade de wasabi (cautela, muito picante mesmo!) sob a fatia de salmão e em seguida coloque-a sobre a bolinha de arroz, e fixe-a, novamente sem pressionar demasiado. Coloque num prato com a cobertura voltada para cima e repita o mesmo método para todas as peças. Agora o sushi está pronto a saborear. Deve acompanhá-lo com molho de soja e um pouco de gengibre em conserva como guarnição...Itadakimasu!
///O/// DESPERTAR/// DA IMAGEM// ///FREDERICO DIZ///
Z
é é um homem, igual a outros tantos, trabalha e possui hábitos de pequeno burguês, no final do dia liga a tv, o seu templo de inércia surge como um remédio que lhe conforta o corpo e o espírito, sentado confortavelmente em frente do dispositivo que segrega substâncias lumìnicas tóxicas, deixa que as imagens o invadam, quase consegue sentir as imagens, pelo ritmo do zapping que provoca mudanças repentinas, tanto de imagens como de sons numa floresta que encandeia os sentidos. Inerte, apenas move o polegar no comando da tv a um ritmo mais ou menos constante, num gesto repetitivo que o encaminha em direcção a uma completa anestesia. Com o olho parado a sua atenção está completamente focada no monitor, ou para lá dele. À medida que vai vagueando pelos canais, interliga as imagens, divertindo-se a elaborar narrativas ocas e fragmentadas, a partir de imagens desconexas; um exercício idêntico ao de desfolhar um jornal e construir um texto com as gralhas que nos saltam à vista. A pouco e pouco sente-se cada vez mais cansado, as imagens começam a perder o sentido e já só se deixa levar pelo ritmo dos acontecimentos, incapaz de qualquer emoção Zé nunca esteve tão perto de se tornar uma pedra. Completamente dormente, oscilando entre
o sono e a razão a única resistência que consegue oferecer, é pestanejar os olhos, já só consegue ver cores e rastros das imagens que lhe ferem os olhos, até que adormece embalado pela canção de embalar da tv. No dia seguinte Zé acorda sem perceber o que se passou, não se lembra de nada, nem dos próprios sonhos, os quais lhe davam a energia e cor aos seus dias. Decidido a mudar, Zé sai de casa vagueando perdido na cidade onde nasceu e cresceu, depois de algumas horas a caminhar em silêncio e completamente vazio, Zé começa a recordar alguns episódios da sua infância cheios de emoção e inocência, mas também de clareza. A cidade percorrida transformase num valioso instrumento que lhe permite lembrar outras ideias e projecções, a cidade torna-se a imagem da cidade. Como forma de registar esses momentos, Zé começa por tirar fotografias de pormenores de elementos arquitectónicos, de lugares e pessoas, de objectos, que agrupa num mesmo suporte formando um mosaico de imagens que confunde o olhar, pelas inúmeras possibilidades de boas continuações possíveis, que permitem estabelecer vários sentidos; algo como um teste à memória fotográfica. O simples facto de olhar para as coisas tornase uma surpresa, que faz com que veja caras em manchas informes, e outras deturpações da mesma ordem aumentam cada vez mais a sua capacidade de imaginar. Ele fica mar-
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avilhado com os seus azulejos de 2ª categoria, são sempre os mesmos e estão sempre no mesmo sítio mas, dia após dia ele vê novas formas nessas manchas que não mudam. Começa a pensar em arranjar maneira de registrar todas essas projecções, para isso reúne todos os recortes de revistas e jornais, fotografias de álbuns de família e das suas viagens, imagens de imagens, reproduções de obras de arte… de modo a criar uma espécie de museu imaginário. Empenhado no seu novo projecto e sedento de imagens, Zé começa a trabalhar na sua constelação, um painel de cortiça que lhe ocupa toda a parede da sala onde dantes se encontrava o seu templo de preguiça. Como um autêntico louco, Zé começa por dispor as suas imagens por constelações, por géneros que melhor sirvam os seus desígnios, decidido a mudar a sua dieta, Zé procura arranjar formas de se alimentar de imagens, ao invés de deixar que estas o consumam. Sobre cada imagem, vai projectando ideias que são anexadas à imagem que lhe corresponde, aumentando assim os seus potenciais para interrelacionar imagens. Uma complexa teia vai-se formando,
aproximando cada vez mais coisas entre as quais existia um abismo imenso. Este processo prolonga-se até a uma completa dissolução da imagem original, transformada pela própria memória que ele tem das imagens. Assim emergem novos sentidos, novas imagens, novas formas, digeridas por essa espécie de arqueologia da memória, que permite recuperar/restaurar sentidos e especular sobre possíveis localizações de outros tesouros; fazendo uso de mapas cognitivos e documentos, que permitam analisar essas obras inexistentes, tal como acontece na cripto história da arte. A sua curiosidade está cada vez mais aguçada, fazendo com que ele se interesse e pesquise sobre os mais variados temas, as imagens tornaram-se as suas palavras, que dispõe no seu alfabeto e enriquecem a sua gramática. Agora a canção é outra. Dorme embalado ao ritmo das ideias que lhe invadem o espírito, desperta a meio da noite para registar sonhos e ideias, e quando acorda de manhã sente-se entusiasmado pelo que ainda está por descobrir.
COMPREENDE-SE, SOBRE SAGEM DE CRENÇAS E E DA PELA IDEOLOGIA DA DO MUNDO SEJAM CON PRIO MUNDO, QUE O MA O TERRITÓRIO E QUE A R COMO ALGO A DE-COMP E RE-CONSTRUIR. ESQUE TECNO-IDEOLOGIA, ESSA ESSES MODOS DE MASS LÉGIOS QUE O CORPO AD SENSORIAL QUE ME SAL DAS DA REALIDADE, EST GRO IDEAL DA PRODUTIV
(LISBOA, Fernando. 2001. “Alguns comentários acerca da Arte, da Ciência e da Tecno-ideologia”, in: “Arquitectura - Prótese do Corpo”. Org. por Gonçalo
ETUDO, QUE, NUMA PAIEXPECTATIVAS, DOMINATÉCNICA, OS MODELOS NFUNDIDOS COM O PRÓPA SEJA TOMADO COMO EALIDADE SEJA INTUÍDA PÔR E A DE-CONSTRUIR, ECE-SE, ENFIM, QUE NA A AMBIÇÃO DE PRECISÃO, SIFICAÇÃO, ESSES PRIVIDQUIRE, ESSA ANESTESIA LVA DAS ARESTAS AGUTÃO AO SERVIÇO DO NEVIDADE E DO CONSUMO.”
o Furtado e Inês Moreira e Helena Limas. Porto, 2001: p. 28)
2008 DÉDALO 4.1