EDITORIAL Por que estudamos? Uma pergunta com diversas ressonâncias possíveis e de difícil resposta. Contudo, no meio do autoritarismo e da baixeza que se encontra hoje o Brasil em diversas esferas, enfrentamos também o porquê de continuar uma revista sobre filosofia e cultura no Brasil de hoje. Dentre os tantos motivos, alguns se revelam em maior intensidade. Como havíamos anunciado já no último editorial, seguiríamos firmes e enfrentando o nosso tempo, porque é disso que se trata. A Revista Lampejo continua sua caminhada porque podemos suscitar pensamentos e experiências. Não será qualquer superficialidade que fará a filosofia deixar de se movimentar. Sob constantes ataques aos diversos cursos espalhados pelo país, nos colocamos aqui à disposição de todos, para que os nossos pensamentos nunca sejam subordinados a nenhum governo ou qualquer espécie de instituição dominante e autoritária. E isso fazemos porque é da natureza intrínseca do pensamento ser irruptivo. Em síntese: pensar implica em alguma irrupção. E para isso nós continuaremos publicando artigos, ensaios, fotografias, traduções, etc, para que essas possam seguir seus próprios fluxos. Nosso posicionamento diz respeito não apenas ao pensamento, mas a própria existência. Nesse exato instante diversas vidas estão sendo minadas, e se colocar contra essa matança não é apenas escrever um texto, mas também dizer um sonoro sim a existência, a nossa e a da outra e do outro. Acreditamos que a possibilidade de qualquer um se colocar a pensar e viver do seu modo, é um direito, e tentamos propiciar essa atividade para todos aqueles que ajudam e contribuem para a existência da Lampejo. Não deixaremos calar a voz de ninguém que quer se colocar contra a baixeza do pensamento, o preconceito, o autoritarismo, o fascismo. Dito isso, deixamos bem claro que continuaremos potencializando experiências e experimentando potências, porque é para isso que estamos aqui. O momento urge não só uma resistência, mas que as nossas próprias existências continuem, para podermos enfrentar tudo o que
estamos passando com muita força, vigor e potência. Para nós não se trata de um fim, porque muitos outros estão lutando contra seus fins há muito tempo e os temos como grandes exemplos, mas de que podemos exercer o papel do enfrentamento, da crítica, e assim expandir forças. Os Brasis existem, nem que sejam por lampejos, e com isso também continuaremos uma Lampejo.
Os editores
Í NDI CE ARTI GOS [ p. 05]MATI ZES EM MADAME SATÃ:AL TOS E BAI XOS DE UM MI TO Agnel oBent oLi noFi l ho [ p. 22]AS TARÂNTULAS:NI ETZSCHE E A J USTI ÇA COMO RESSENTI MENTO E VI NGANÇA Fr anci scoFi anco [ p. 38]DI APHONÍ A EI SOSTHÉNEI A:DUAS VI AS PARA A EPOKHÉ Wesl eyRennyerPor t o [ p. 49]DOS TRANSMUNDANOS E O ELOGI O DA TERRA Di egoVi ní ci usBr i t odosSant os [ p. 60]HÁ O ANTI LI MI TE?:SOBRE FI CÇÃO, EQUÍ VOCO E METAFÍ SI CA EXPERI MENTAL LeonelOl i mpi o [ p. 74]LA URBE COMO ESCENARI O DE LA VI OLENCI A DE GÉNERO EM LOS CUENTOS “I NTERI OR <<L>>”DE J ULI O RAMÓN RI BEYRO Y “A LÍ NGUA DO P”DE CLARI CE LI SPECTOR Gust avoCost a [ p. 84]RETORNO DO LEVI ATÃ:CRÍ TI CA DA ECONOMI A POLÍ TI CA DA GUERRA Pedr oHenr i queMagal hãesQuei r oz [ p. 95]AGAMBEN LEI TOR DE FOUCAUL T: PONDERAÇÕES SOBRE A BI OPOLÍ TI CA Di l sonBr i t odaRocha [ p. 114]A UNI ÃO ENTRE FI LOSOFI AE RETÓRI CA EM CÍ CERO J oséVal di rT ei xei r aBr agaFi l ho [ p. 129]SCHOPENHAUER,O GÊNI O EA FI LOSOFI A EM SCHOPENHAUER COMO EDUCADOR,DE NI ETZSCHE Davi dRogér i oCost adeLi ma
[ p. 148]O SUJ EI TO DA I NCOMPLETUDE E O DI ÁLOGO ENTRE DI SCURSOS: A HETEROGENEI DADE E O ATRAVESSAMENTO DE VOZES NA CANÇÃO “UM FADO”DE I VAN LI NS Al exanderSever oCór dobae Éder sonLuí sSi l vei r a [ p. 160]SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O RELI GI OSO E O ÉTI CO NA TEORI A KI ERKEGAADI ANA DOS ESTÁDI OS J oséC.L.Mar ques [ p. 177]O PARADI GMA DE PESSOA E LI BERDADE EM MOUNI ER:A RAI Z DO PERSONALI SMO J oãoFr anci scoCócar oRi bei r o [ p. 192]CI ORAN E A PÓSMODERNI DADE: UMA CRÍ TI CA ÀS METANARRATI VAS Fl ávi oRochadeDeus [ p. 202]SI NTOMAS DE UM POVO, QUALI DADE DA CUL TURA,TAMANHO E CENTRALI ZAÇÃO DO ESTADO – COMPARANDO CONSTI TUI ÇÕES EM UMA PERSPECTI VA NI ETZSCHI ANA Gui l her meFr ei r edaCost a
ENSAI O FOTOGRÁFI CO [ p. 213]O ANI VERSÁRI O QUE NÃO FUI LuanaDi ogo
TRADUÇÃO [ p.216]O SURREALI SMO ESTÁ MORTO OU VI VO? PorGuyDebor d Tr adução:I náci oJ osédeAr aúj odaCost a
Revi st aLampej oI SSN 22385274 Edi t or es LeonelOl í mpi o LuanaDi ogo Thi agoMot a Comi ssão edi t or i al Át i l aMont ei r o Dani elCar val ho Davi dBar r oso F abi enLi ns Gust avoCost a Gust avoFer r ei r a Henr i queAzevedo J ul i anaBr agaGuedes Paul oMar cel oBr i t o Rogér i oMor ei r a RuydeCar val ho Wi l l i am Mendes Consel ho edi t or i al Pr of .Dr .Er naniChaves Pr of .Dr .I vanMai adeMel l o Pr of .Dr .J ai rBar boza Pr of .Dr .J oséMar i aAr r uda Pr of .Dr .Lui zFel i peSahd Pr of .Dr .Lui zOr l andi Pr of .Dr .Mi guelAngeldeBar r enechea Pr of .Dr .J oséOl í mpi oPi ment a Pr of .Dr .Pet erPálPel bar t Pr of .Dr .Rober t oMachado Pr of .Dr a.RosaMar i aDi as Pr of .Dr .Syl vi oGadel ha Pr oj et o gr áf i co edi agr amação Her l anySi quei r a LuanaDi ogo Gust avoCost a
Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21
MATIZES EM MADAME SATÃ: ALTOS E BAIXOS DE UM MITO Agnelo Bento Lino Filho1 RESUMO: Pressupondo-se a existência e a atualização contínua dos arquétipos míticos nas narrativas de sucessos tanto na televisão quanto no cinema, propõe-se discutir como essas características aparecem transmutadas em entidades de matriz afro no filme Madame Satã, de Karim Aïnouz. Defende-se, aqui, também – amparando-se em índice da Escola de Grenoble – a necessidade ontológica dos arquétipos míticos como forma do indivíduo dar vazão aos seus impulsos vitais. Para tanto, utilizamo-nos da mitocrítica como metodologia de rastreamento desse fenômeno na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: Cinema. Arquétipos. Mitologia.
ABSTACT: Presupposing the existence and continuous updating of mythical archetypes in narratives of success in both television and cinema, this essay proposes to discuss how those features appear transmuted in afro matrix entities in the movie Madame Satã, by Karin Aïnouz. Here, is also defended – supported by Grenoble School indexes – the ontological necessity of mythical archetypes as a form of giving vent to the individual vital impulses. Therefore, we use mythcriticism as a methodology for tracking this contemporary phenomenon. KEYWORDS: Movie theater. Archetypes. Mythology.
A concepção que temos de imaginário e arquétipo, para esse estudo sobre o filme Madame Satã baseia-se no aporte teórico herdado de Jung e Durand. Para o primeiro, “o imaginário compreende conteúdos do inconsciente coletivo, imagens primordiais e universais, enquanto os
1 Doutorando FFLCH-USP. Pesquisador em Teoria Literária e Literatura Comparada com bolsa CNPq. E-mail para contato:agnelo.filho@usp.br/agnelovsky@hotmail.com
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 arquétipos seriam conteúdos psíquicos não submetidos a nenhuma espécie de elaboração consciente”.2 Para Durant o arquétipo é algo universal, constante, enquanto que o simbolismo, que o demarca é que possui suas variações. Essas variações são influências e exigências de relações históricas, sociais, culturais e ideológicas. Nesse processo, o arquétipo sofre reduções até chegar ao símbolo, ocorrendo o “estreitamento da sua simbolização” primordial. Referente ao mito, este corresponderia ao nível no qual a narrativa organiza as imagens simbólicas e arquetípicas 3
É importante destacar que Gilbert Durand distingue imaginário de imaginação. Para ele, Imaginação é a faculdade de perceber, distinguir, dinamizar, articular, criar, reproduzir e memorizar as imagens dos objetos do mundo concreto; enquanto Imaginário é o modo como tal faculdade é operacionalizada, é a dinamização particular e individual de criar imagens, ou seja, o modo de estruturar as imagens apreendidas pela imaginação. Partindo do pressuposto duraniano, segundo o qual o mito tem uma função psicosocial, qual seja o de acomodar e ressignificar a ansiedade e inquietude humana diante da morte, e, portanto, do processo de finitude, buscamos, neste trabalho, investigar em Madame Satã, quais mitos são acolhidos e atualizados, e quais as funções da atualização dos respectivos mitos na contemporaneidade. No entanto, para fazer essa demonstração, tomamos o devido cuidado com a obra, a fim de que ela não seja mera demonstração de pressupostos do crítico, previamente estabelecidos. Por isso, apoiamo-nos na observação de Susan Sontag4, especificamente no texto Contra a interpretação, na qual a autora defende a erótica da arte, em vez da hermenêutica da arte. Diz a autora “nossa tarefa é reduzir o conteúdo para que possamos ver a coisa em si. Ela diz mais: “O que importa agora é recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais”5. No entanto, devemos procurar um equilíbrio entre uma esfera (enunciado da forma) e outra (enunciado do conteúdo), mas não exagerar no estudo minucioso de uma e negligenciar a outra. Primeiro, é fato que escavacar a obra buscando comprovar teorias preexistentes, que o crítico quer provar a todo custo, leva necessariamente à mutilação da obra; por outro lado, pressupõe-se que a arte amplia nosso conhecimento sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos, portanto presta-se a fins didáticos também, inclusive, ensina a apreciar o sensorial, o afetivo, como 2 BARROS, Ana Taís Martins Portanova.
A saia de Marilyn: dos arquétipos aos estereótipos nas imagens midiáticas. E-compós – Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v. 12, n. 1, jan-abr. 2009. p.2. 3 BARROS, Ana Taís Martins Portanova. A saia de Marilyn: dos arquétipos aos estereótipos nas imagens midiáticas. E-compós – Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v. 12, n. 1, jan-abr. 2009. p.17. 4 SONTAG, Susan. Contra a interpretação, 1966, 1ª edição; 1987 versão brasileira, São Paulo, LPM editora, p. 23. 5 SONTAG, Susan. Contra a interpretação, 1966, 1ª edição; 1987 versão brasileira, São Paulo, LPM editora, p. 23.
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 também se presta a fins de consciência social, política. O texto de Sontag foi escrito numa época em que estavam muito aflorados os estudos marxistas e freudianos (anos 1960-1970), e foi em reação a essa ênfase interpretativa, que prejudicava as especificidades estéticas das obras, da arte, que ela escreveu veementemente essas exortações. O fato de trazermos Durant para a nossa análise demonstra, por si só, que a pretensão analítica de obras fílmicas, no caso nosso, do filme Madame Satã, baseia-se na concepção e no interesse da arte como conhecimento, além de entretenimento. Há a apropriação, portanto, das teorias do trajeto antropológico das imagens e suas estruturas (Durant), em que o autor Faz um extensivo estudo da produção cultural humana, especialmente das imagens que emergem das narrativas mitológicas, das religiões e das grandes obras literárias e artísticas. Com isso, ele estabelece um trajeto antropológico do imaginário, que pode ser percorrido tanto no sentido do biológico em direção ao social, como do social em direção ao biológico. (...) os gestos e reflexos dominantes: postural, copulativo e digestivo(...)estão diretamente relacionados às estruturas presentes nas atitudes imaginativas do ser humano, e suas forças atuam em vários níveis de formação dos símbolos. (...) 6
Durant categorizou as estruturas do imaginário como heroicas, quando correspondentes ao gesto postural; dramáticas ou sintéticas, quando atinentes ao gesto copulativo; e místicas ou antifrásicas ao reportar-se ao reflexo digestivo. Por sua vez, o gesto postural associado ao posicionamento ereto do ser humano faz remissão aos movimentos de ascensão, que confluem em símbolos de potência e de heroísmo, de ascensão, de elevação e pureza; de confronto e separação. A esse conjunto de símbolos Durand atribui a categoria de Regime Diurno das imagens, constituído geralmente por estruturas heroicas, as quais, geralmente, por meio de um embate intentam suplantar a morte e o devir. As ideias de ações, separação e heroísmo com combates violentos estão associadas ao Regime diurno. A ideia de trevas, escuridão, inferno é oposta ao Regime diurno. Ela compartilha do Regime Noturno, cujas estruturas ligam-se ao reflexo dominante digestivo. No Regime noturno é justamente o inverso, ocorrendo, antes, a eufemização das imagens relacionadas ao pavor da morte e da finitude, provocadas pela inexorável passagem do tempo. Esses aspectos convergem para a estrutura mítica.7
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ANAZ, Sylvio; AGUIAR, Grazyella; LEMOS, Lúcia; FREIRE, Norma; COSTA, Edwaldo. Noções do Imaginário: Perspectivas de Bachelard, Durand, Maffesoli e Corbin. Revista Nexi nº3, 2014, ISSN 2237-8383, PUC- SP. 7 Neste parágrafo, a exposição da teoria de Gilbert Durant passa pela mediação de Sylvio Anaz, Grazyella Aguiar, Lúcia Lemos, Norma Freire e Edwaldo Costa (Noções do Imaginário: Perspectivas de Bachelard, Durand, Maffesoli Corbin), a quem parafraseei.
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 O filme e o mito Satã Madame Satã (2002), filme do cearense Karim Aïnouz, apoia-se na bibliografia do personagem lendário da Lapa carioca, nas primeiras décadas do século passado. O diretor escolhe trabalhar justamente a passagem do personagem do seu anonimato - seu cotidiano, suas relações, seus hábitos, como se fosse uma crônica de Satã - para o momento em que ele se torna o mito Madame Satã. O título remete a dois princípios contraditórios e opostos: madame, remete ao feminino, francês, delicado, sensível; já o satã é masculino, agressivo, cruel. O interesse de Aïnouz era realmente realçar a convivência de opostos nesse personagem complexo, onde reside fortemente o mito Andrógino, sobre o qual discutiremos mais adiante. De todo modo, a fotografia replica a duplicidade do personagem principal, traz uma carga dramática intensa, com forte presença de contrastes, muita sombra e escuridão. Aliás, esse traço da fotografia e do próprio título da obra (Madame Satã) remetem ao símbolo catamórfico, associado à queda, lúcifer, trevas e inferno.
Figura 1. Ao mesmo tempo em que é assassino frio (atira pelas costas), é também pai adotivo sensível. Essas ambiguidades serão replicadas pela fotografia durante todo o filme, por meio, por exemplo, de sombras fortes e altos contrastes8.
Lapa,1932. No palco do Cabaré Lux, Vitória dos Anjos canta um dos muitos sucessos de Josephine Baker, Nuits d’Alger. Nos bastidores, com ar embevecido, seu camareiro João Francisco dos Santos reproduz com os lábios cada palavra da canção. O rapaz ainda é explorado por Gregório, seu patrão e amante de Vitória. Embora João Francisco pareça submisso, na verdade ele se revela altivo e provocador quando deixa o Cabaré e caminha pelas ruas mal iluminadas e de frequência
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Todas as imagens utilizadas aqui são creditas ao DVD Madame Satã, Barueri, SP, Imagem Filmes, 2003.
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 duvidosa do bas-fonds carioca. Seu forte temperamento, sua agilidade na capoeira e a destreza no uso da navalha o fazem uma figura temida e intrigante. É bom de briga, não leva desaforo para casa - de frequentadores da noite ou de policiais. Uma noite, João Francisco dos Santos conhece Renatinho, com quem vive uma paixão. Denunciado por Gregório por um roubo que não cometeu, João Francisco desafia a polícia e é condenado a seis meses de prisão por desacato à autoridade. Ao ser posto em liberdade, consegue convencer amador a fazer um show no Danúbio Azul. Após tantos anos, a sorte parece ter se lembrado dele. No entanto, após uma segunda apresentação apoteótica, João Francisco não resiste às provocações de um cliente e, com uma reação extrema, destrói o sonho de ser artista. Lapa, Carnaval de 1942, após cumprir dez anos de prisão, João Francisco dos Santos está de volta ao seu reduto. Vitorioso e renascido, inventa um novo personagem: Madame Satã.
Figura 2. Satã manifesta repetidamente o gesto postural (ascensão e separação), numa estrutura heroica (de combate).
Figura 3. Enfrenta o delegado com o mandato de prisão a ele destinado. Todos esses ecos trágicos estão relacionados com o impulso dionisíaco de Satã.
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Figura 4. Se revolta contra a opressão: João é como uma onça (Jamaci das matas selvagens) - como ele mesmo se denomina em uma das suas narrativas do final - que briga até sangrar com o tubarão que devorava a todos. Nesse aspecto de valentia e briga o símbolo teriomórficos9 é presentificado na figura de João.
Figura 5. Ameaçado com uma arma, reage ligeiramente (como um bicho rápido) apontando a navalha para Gregório.
Ao mesmo tempo em que é dionisíaco, e, portanto, remete ao tema da indiferenciação (grupo, orgia) a personagem central do filme passa fortemente pelo processo de individuação
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O símbolo teriomórfico, é trazido em Madame Satã com sua carga complexa e contraditória: ele é terrível, devorador, e também é aliado e benéfico (bom amante, bom pai adotivo). Apesar de termos reforçado o aspecto teriomórfico em Madame Satã, é possível também enxergar a constância do símbolo nictomórfico (escuro, obsceno), a fuga das trevas (“voa voa passarinho, voa desse mundo imundo e escuro”- exorta ele ao amante Renatinho); e o símbolo catamórfico com a respectiva queda, decadência do personagem, cuja angústia provoca a reação, isto é, a superação da decadência por uma via de acesse, que no filme é a arte e a honra (formas de pretensão de elevação espiritual).
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 (apolíneo), onde a lógica do combate remete ao heroico. Sendo assim, por reunir e integrar esses dois princípios (regimes), o filme tem a predominância do regime sintético. O mentor em Madame Sata é mais complexo, isto é, mais difícil de se identificar que nas produções audiovisuais mainstream, por exemplo. Não se trata de uma pessoa física, um personagem, mas ele é mais abstrato (uma energia). Aquilo que seria “responsável para preparar o herói para o desconhecido”10, “dando um empurrão nele, para que a aventura possa seguir em frente”, não é um velho ou velha sábio (a), mas sim a própria vicissitude da vida atribulada do protagonista: com as situações ele aprende, muda o rumo, ou entre conversas com Laurita, ou ainda a partir de atitudes que observa entre os companheiros, ele impulsivamente redefine o seu caminho. Por exemplo, primeiro ele está decidido a ser artista, depois, conforme os descompassos no emprego, se demite da empreitada artística. Em uma cena, dialogando com Laurita, diz que vai “levar é rasgada”, mas adiante muda de ideia e consegue brecha no bar do Amador, e depois dessa, mais outra oportunidade. É preso, mas ressurge para brilhar no carnaval carioca. É o personagem que vai abrindo os próprios caminhos, e meio que circunstancialmente ele encontra oportunidades, partindo sempre da sua iniciativa. Nesse sentido, a ausência de um mentor físico, concreto, aumenta mais a figura do herói que se faz, e da particularização, individuação quase apolínea que o filme confere por meio de Madame Satã.
Figura 6. O mito se individualiza e se heroifica sem mentores identificados nitidamente e tendo como sombra uma gama de antagonistas sociais, agentes da segregação e do preconceito.
A sombra (antagonista) é uma “energia” social, ou seja, o preconceito, que o alija da sociedade, dos espaços públicos e privados, da cena artística, punindo- o severamente, já que ele
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VOGLER, C. The Writer’s Journey: Mythic Structures for Writers. 2nd. Ed. Los Angeles: Michael Wiese Productions, 1998. P.39.
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 não se dobra perante as injunções da ordem estabelecida, que o exclui. Nem por isso, os agentes deixam de se manifestar, mas sua aparição é transitória: Vitória e Gregório (patrões) são os primeiros opressores malvados, mas são substituídos facilmente pelos policiais que vão tentar prendê-lo, pelos seguranças do High life club, pelo homofóbico do final (Ricardo Blat), e pela voz-off do juiz (Eduardo Coutinho) que profere a sentença de prisão de João, acusando-o de forma pejorativa e preconceituosa. Dessa forma, a sombra (antagonistas) é volátil, mas constante. A difusão das forças opressivas e antagônicas agiganta a força individual do herói a combater vetores, vindos de muitas direções que se opõem a realização dos seus desígnios pessoais. Alguns dos mitemas predominantes no filme de Aïnouz são o prazer e o sagrado. O prazer é um princípio estrutural que reverbera em formas de hedonismo, como festas (muito frequentes as cenas em bares, com direito a deslocamentos da câmera aos espectadores anônimos) músicas para os sentidos, dança (com preferência dada ao corpo pelos closes- Primeiro planos), sexo (“pelo menos tu gozou direito? ” Pergunta João a Tabu). A graça do sexo é o que desfaz o clima tenso criado entre o “puto” e o cafetão: ambos esboçam um sorriso após a situação de opressão entre “iguais” (negros, pobres e gays). Dez minutos decorridos no filme após essa cena, João coloca na mesma esfera de atividades tanto os afazeres domésticos quanto as práticas sexuais do seu empregado (Tabu), pois depois de enumerar as obrigações de Tabu, precipitando-se para bater nele, acusando-o de não ter cumprido completamente as tarefas, pergunta: “e o cu, já deu hoje”? A pergunta alivia a tensão, e faculta o riso para o espectador, conforme a inclinação para tal humor. Em contrapartida (à ideia do prazer sem culpa, hedonismo), o mitema do sagrado aparece na ideia do enlevo poético da arte (música, dança e narrativa), momentos que se apresentam como transcendência de um cotidiano anódino. Ora, arte é o elemento central do filme, e faz remissão ao filme da linha pernambucana, em que a autor referência (à arte, ao cinema, e mais particularmente ao cinema `margem do sudeste) é uma das marcas distintivas desse movimento, ao qual Aïnouz se filia11. A filmografia desse grupo (do cinema pernambucano) revela a existência de certos traços e “marcas” que permitem o reconhecimento dessa produção, decorrência de um repertório compartilhado e de experiências comuns tecidas em um dado momento sociocultural e, que essas 11
Compreender a trajetória desse grupo é, também compreender o momento atual do cinema pernambucano, a partir inclusive da sua dispersão em outros grupos (...) alguns vínculos foram enfraquecendo, outros ainda estão se moldando, novas parcerias estão se formando e novas práticas colaborativas estão surgindo com outros realizadores com outros realizadores de outros estados e gerações. Marcelo Gomes continua trabalhando com o cineasta cearense Karim Aïnouz e com o grupo de Belo Horizonte, representado principalmente por Cao Guimarães.p.164
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 influências recíprocas, de modo deliberado ou não, manifestam-se na sua filmografia por meio de certas recorrências estéticas narrativas. Tendência expressiva: auto referencialidade - designação de um conjunto de estratégias que, por um lado, revela ou remete a algo associado ao próprio universo cultural cinematográfico e, mais especificamente ao fazer-se dos filmes, seja por remissões aos seus processos, aos seus produtores ou à sua história12.
Como também o uso privilegiado da música: designação de um conjunto de procedimentos de valorização das músicas nos filmes, envolvendo desde o seu aproveitamento como eixo temático das produções à sua regência nos procedimentos de montagem (roteiro e edição orientados pela música); denominação dada a “paralisações” da narrativa (interrupção, suspensão, desvio da ação) para “exibir “a música ou os músicos pernambucanos).13
A música, por sua vez, remete ao mitema prazer, hedonismo, em que as sensações são aguçadas, suspendendo momentaneamente o curso da narrativa para dar vazão aos sentidos, pura e simplesmente, como é a proposta desse tipo de filme, ao qual o filme de Aïnouz se aparenta. O fato de o personagem Madame Satã/João Francisco dos Santos receber um tratamento particularizante, tendo como elemento fundamental a cinebiografia desse personagem real (fato incluído em letreiro no início do filme), deixa a obra eivada pelo mitema heroísmo, em que o herói (ou a ideia de herói) equivale ao um eleito, um messias: observe-se que Satã sofre, cai, mas ressurge, como se estivesse predestinado a ter vitória pela arte, e todas as suas habilidades e competências seriam, em um plano mais abstrato que em outras narrativas, os guardiães do limiar, a partir dos quais ele teria acesso ao mundo mais digno e elevado (a arte), malgrado as opressões sociais que continuariam. O mitema do heroísmo, recuperado por Aïnouz, e formalizado em sua obra, guarda relações com outro traço recorrente no grupo do Cinema Pernambucano, as problematizações identitárias. Discussões sobre subjetividades (narrativas de si) a partir do conflito de uma personagem consigo mesma (geralmente os protagonistas), envolvendo seus processos de reconstrução identitárias, a partir do contato com o outro ou mesmo o reconhecimento de quem é o outro em relação ao qual se afirma como eu; estratégias de afirmação de uma identidade local, alinhada com o regional, que se reconstrói por meio de todos os elementos que fazem
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NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. O novo ciclo de cinema em Pernambuco: a questão do estilo, Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2009.p.24 13 NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. O novo ciclo de cinema em Pernambuco: a questão do estilo, Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2009.p.24
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 remissão a uma cultura pernambucana (lugares, músicas, comportamentos, personagens, etc.)14
Não seria exagero pensar em Madame Satã, o personagem do filme, como uma metonímia de um cinema brasileiro, não pertence ao eixo sul-sudeste (considerado Cinema Pernambucano), que quer seu lugar no mundo, como filme de autor, de arte. O personagem e seu diretor encarnam o mito de Dioniso, na medida em que são estrangeiros, marginalizados, procurando uma integração na coletividade artística. O filme supracitado pode até não seguir uma “gramática” apoiada nas narrativas audiovisuais mainstream, ou ainda naquele tipo de narrativas contemporâneas de sucesso que alcançam um público bem amplo, mas há razões para desconfiarmos de que ele segue uma outra “gramática” de alcance abrangente, de nível internacional, em que tem garantido um nicho específico, talvez muito grande hoje: Mas em alguns aspectos de montagem que me parece ligeiramente forçado, forçando determinadas situações. E, acima de tudo, um certo tique, que se repete e que é uma recorrência de um cinema de autor do mundo contemporâneo, que essa ideia de cortar uma cena no meio, numa tensão dramática, e jogar para uma situação mais calma. Ou ao contrario, sair de uma situação calma e você corta direto para uma ação que já está transcorrendo, você monta antes da cena acabar completamente, ou começa a sequência depois da sequência já ter começado de verdade. 15
Nesse sentido, o filme de Ainouz, se alçando como autoral16, aplica algumas técnicas estilísticas recorrentes em filmes dessa categoria. Tais filmes se estendem a espectadores seletos em todos os cantos, com destaque para os europeus e os asiáticos de cujas influências estéticas o filme Madame Satã é sobremaneira tributário, como atesta essa fala dos críticos, referindo-se tanto à Madame Satã quanto à O céu de Suely: LCOJr: É um filme, sem dúvida alguma[sic. ]... Ele ocupa um nicho de world cinema, de um cinema para circular em festivais internacionais. RG: (...), mas ao mesmo tempo eu acho que uma filiação não quer dizer automaticamente um eximir-se de uma possível repetição de fórmulas, ou de um passe livre que ele ganha só por estar antenado com o que se faz de melhor no cinema contemporâneo. É curioso que, aparentemente, os críticos mais oficiais não estão nada familiarizados, porque insistiram em citar o Wim Wenders como a grande influência de O Céu de Suely, o que significa que a crítica
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NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. O novo ciclo de cinema em Pernambuco: a questão do estilo, Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2009.p.24 15 OLIVEIRA, Luís Carlos. Cinema Falado: os quatro filmes preferidos, Revista de cinema Contracampo, São Paulo, Parte 5., nº 85, 2007. ‹Www.contracampo.com.br/edicoesantigas.html›. Acesso em 20/03/2019. 16 Cinema de autor é uma definição normalmente dada para filmes mais dirigidos a um propósito de expressão artística- de seu diretor- do que o comercial, segmento no qual Hollywood e seus blockbusters de entretenimento são referência máxima. A disseminação do prestígio do cineasta/autor em círculos de intelectuais foi em grande parte promovida por correntes de crítica cinematográfica francesa.
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 brasileira está atrasada pelo menos 20 anos. Mas, sim, Jia Zhang-Ke, Hou Hsiao-Hsien, Claire Denis. 17
Ressalte-se que a esse mitema do heroísmo se soma o arquétipo camaleônico, em que o protagonista encarna, em muitos momentos, o mito andrógino, mistura de homem e mulher. Na verdade, Satã, ora é feminino na voz super aguda, na sinuosidade da dança, nos cuidados de pai adotivo da “princesa, filha de Laurita, mas também muito masculino na voz, na hora da repreensão, da sedução, da briga, no enfrentamento de policiais e de homens violentos. Ele é camaleão que luta capoeira e que dubla a atriz Vitória dos Anjos. Outros exemplos, nas canções “Mulato Bamba” (Noel Rosa) e “Ao Romper da Aurora” (Ismael Silva, Lamartine Babo e Francisco Alves), cantadas juntas no segundo show, a voz (na sua materialidade) é um artifício aproveitado ao máximo por Satã em sua performance: ele mergulha em um profundo grave e facilmente se ergue num falsete agudíssimo inesperado, mostrando a versatilidade do artista; do mesmo modo, o corpo se transmuta em passos rápidos e difíceis, ou seja, um corpo que se reinventa e se recompõe facilmente. À inventividade do corpo se soma a inventividade com a palavra: João Francisco dos Santos/ João Braz da Silva / Gilvan Vasconcelos/ Pedro Filismino / Etambatajá/ Caranguejo da Praia das Virtudes/ Mulata do Balacochê/ Madame Satã reelabora o material literário e artístico a que tem acesso, adicionando suas narrativas fantasiosas, bebendo de fontes menos prestigiadas de literatura e fantasia, de matriz afro. As características assinaladas acima, a respeito de João, dão notas de um comportamento intrínseco a ele, o qual pode ser facilmente identificado como malandragem (historicamente associada a um ethos brasileiro), que num plano arquetípico corresponderia ao pícaro. Sobressai-se algumas artimanhas prontas, tiradas do alforje, prontas para uso, conforme solicite a situação em que ele se encontre. É assim que, a mesma cantada (“você quer uma moça que nem eu, da minha altura, escurinha? sinta aqui as coxas grossas da preta”) para satisfazer o freguês (Álvaro) em uma situação de negócio (golpe do suadouro18) é utilizada no encontro romântico amoroso com Renato. De forma parecida, o livramento que faz da amiga Laurita, mostrando-se corajoso e valente, tinha a intenção de impressionar o enamorado. Ou seja, ali não há idealização nem da amizade nem do jogo
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CAETANO, Daniel, GARCIA, Estêvão, GARDINIER, Ruy, LEVIS, Leonardo, MESQUITA, Raphael, OLIVEIRA, Luís Carlos. Cinema falado: os quatro filmes preferidos, Revista de cinema Contracampo, São Paulo, Parte 5., nº 85, 2007. ‹Www.contracampo.com.br/edicoesantigas.html›. Acesso em 20/03/2019. 18 O golpe do suadouro se resumia a levar um indivíduo para um quarto de pensão, em geral emtroca de pagamento, e durante as atividades sexuais, roubar seus pertences sem que este perceba.
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 amoroso. O cálculo e a racionalidade com que ele opera nesses registros da vida parecem migrar, de um modo bem natural, para a esfera da arte: ele observa atentamente a história contada no teatro, e com curiosidade e inteligência a apreende, copia, repete e a recria. No entanto, pretende-se defender como hipótese (ainda, visto o doutorado se encontra em curso), que em Madame Satã a variação entre experiências estéticas diferentes tem a ver com o modus operandis com que o artista emprega na sua própria vivência prática, cotidiana. Sendo assim, a esfera da arte é contaminada pela malandragem: desce do seu patamar de ascese, e se embriaga com o carnaval barroco, desregrado e com a argúcia calculista do artista. Talvez essa não fosse o desígnio dos criadores, pois em uma cena do filme justamente Satã e Laurita opõem malandragem e arte: - Queria tanto te ver no palco, grande, famoso, com muita gente te aplaudindo (Laurita) - Não adianta ficar querendo conversar comigo, porque eu já conversei comigo mesmo e já resolvi comigo mesmo que não vou ficar tentando ter profissão de artista: cansei de torcer pela minha pessoa. Nasci pra ter vida de malandro, e vou levar é rasgada! (João Francisco) Conforme o filme avança acompanhamos as malandragens (no sentido empregado por ele mesmo) quando dribla a polícia, brigando com os seguranças do High Life Club, dando golpes (em Àlvaro, por exemplo), sendo esperto ao negociar com Amador seu show. Ao mesmo tempo assistimos a sua carreira artística apresentando seus bons resultados. Ora, malandragem e arte não se dissociam como queria o diálogo anterior. De resto, a malandragem (ou esperteza?) é o que catalisa o processo artístico de João no Danúbio Azul, por causa dos arranjos com Amador; este, sendo o superior naquela hierarquia social, por deter o estabelecimento comercial e lucrar mais, é quem aciona, desta vez, o expediente da “malandragem”, comumente atribuído aos despossuídos de bens. A resposta de João àquela exploração é: “Tá pensando que meu dinheiro nasce debaixo do meu colchão, é Amador? ”. O show de João é lucro alto para amador, como demonstra um dos diálogos do filme, pois enche a casa de clientes, e, assim, ele vende mais. Em Madame Satã o anseio de transcendência também está intrinsecamente relacionado à ideia de honra. Por isso, a frase “homem que é homem se defende só com a canhota”, rechaçando a covardia de quem se ampara em uma arma para se defender, é emblemática. A arma é um objeto que circula pelo filme (ele derruba um cliente abusado, de Laurita, de quem lhe toma a arma; depois,
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 dessa mesma arma, Renatinho quer se apossar; Gregório quer livrar-se de pagar o que deve usando uma arma para ameaçar João; Renatinho morre com um tiro pelas costas, sendo traição; João atira com aquela arma, e mata o ofensor da sua honra, pelas costas, à traição) como um leit motif do orgulho próprio e da autodefesa. As lutas de capoeira (“se defender na canhota”) são acompanhadas pela câmera com um interesse de quem está participando delas, seguindo o seu dinamismo (em uma dessas lutas, quando são barrados na entrada no High Life Club, o tango edulcora o heroísmo do protagonista). Digamos então que o filme acompanha a perspectiva de Satã, que está influenciado por aquele momento histórico (anos 1930-1940) em que vigorava a ideia da honra acima de tudo, ainda mais se o pobre era estigmatizado por ser negro, gay, e, por falta de oportunidades, sobreviver à base de malandragens (tirando vantagens, usando-se de muitas astúcias, dos que têm mais recursos e poder). Esses marginalizados não integrados ao progresso prometido à nação, para não se sentirem culpabilizados poderiam facilmente recorrer a um valor como a honra, que os tornariam virtuosos. Não por acaso, o filme se fecha com a morte cometida em nome da honra19, e não por que o agrediram fisicamente. Não por acaso também, o filme se inicia e termina com aquelas acusações ultrajantes emitidas pelas autoridades jurídicas, contra as quais ele não pode reagir. Não agride a patroa por causa da exploração no trabalho, mas sim porque ela o insulta e o desclassifica em todos os sentidos; depois que é procurado pela polícia, por causa desse episódio, foge, mas depois se entrega pelo fato de os amigos estarem sendo presos, principalmente por sua causa. Para Renatinho, se mostra sempre virtuoso, dentro da sua própria idiossincrasia: defende Laurita, lutando contra o cliente abusado, para mostrar sua coragem (da qual se orgulha muito) ao pretendente. Repreende o amante, que quase o afana, requerendo o cumprimento de certos princípios éticos entre os pares, entre esses princípios entra o regulamento imposto a Tabu, de não ser benevolente com “meganha”, mesmo que seja o amante do amigo, e já que o anjo de bondade” de Tabu pagou mal, ele o bate na cara com aquele dinheiro que Tabu não receberia nem um centavo, e ficaria, ainda por cima, de “furico ardendo”. Para Tabu, pouco importaria se ficasse com “o seu ânus assado, ardido e vermelho”; para Satã, também, tudo bem se ele ao menos tivesse gozado direito, ao que o outro assente, gerando um conforto para os dois e uma distensão compensatória
19 Uma
pesquisa sobre este filme aponta ainda o leit motif empregado por Aïnouz, que é o fato de Satã por duas vezes marcar o rosto com a sua navalha para se vingar daqueles que o ultrajaram ultrajes graves: O vermelho do fluido espesso a embaçar a fria lâmina da navalha sinaliza a vingança cumprida, concretizando aquele que é o maior dos valores na ética da malandragem: a honra. A questão da honra é constitutiva da autoimagem que os malandros das décadas de1930 e 1940 cultivavam no exercício da malandragem como um modo de vida, como uma ascese de si. ALOS, Anselmo Peres. A rubra ascese queer de João Francisco dos Santos: Madame Satã, do testemunho às telas.In: Revista Periódicus 1ª edição maio-outubro de 2014.
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 para o espectador. O princípio do prazer (ou o mandato do gozo?) ganha pontos em relação à busca da honra, ou ao menos rivaliza com ela. O mitema mancha é revisitado por meio da ideia da honra, a qual remete a marcas traumáticas de rejeição, preconceito e humilhação, às quais a busca pela honradez (valor moral) prometeria um reinício, uma nova chance, uma purificação para a ovelha tresmalhada do rebanho. Pensamos que o mitema [mancha] honra (típica dos anos 1940) trazida com potência, neste filme de 2002, reforça um humanismo simpático atribuído ao malandro de classe baixa, mas generalizado como ethos brasileiro, muito embora, escape pelas frestas um outro tipo de malandragem que é conduta não só dos pobres não integrados, que precisam inventar expedientes para a sobrevivência, mas de outro superior a esse, como por exemplo, o dono intratável do Danúbio Azul (no filme, amansado pela arte de João/ jamaci/Madame Satã). A estabilidade do valor da honra, no filme, é também abalada, pois esse João Francisco dos Santos, que sempre procurou ser honesto e justo (com suas pequenas contradições) se mostra acovardado ao atirar pelas costas no seu ofensor; Já Renatinho, com sua fama de traidor, morre à traição pelas costas, como João o faz: um espelhamento invertido. Sobre o mitema hedonismo (o prazer/ gozo), pode-se justificar positivamente a reincidente aparição do sexo (tu pelo menos gozou direito? / e o cu, já deu hoje?) no filme, como a defesa do pobre ao deleite sexual, sendo eles já desprovidos de quase todos os outros direitos. Considerações finais: O destaque para o heroísmo de Satã e uma ênfase sensorial nas imagens (câmera e pele se fundem; suor, purpurina, músicas, danças, closes, textura, contrastes de luz e sombras, paetês, cenas de sexo com dicção realista) sublinham um momento específico de neoliberalismo em solo pátrio, no qual sua dinâmica abalaria a produção de filmes, quase extinguindo-a totalmente em 1994. A retomada (associada ao Governo de Fernando Henrique Cardoso: 1995-200) seria pautada por aquilo que muitos críticos de cinema consideram como “afastamento do coletivo em favor do desejo de expressão pessoal”: O que teriam em comum, por exemplo, A terceira margem do rio (Nelson Pereira dos Santos, 1994), Alma corsária (Carlos Reichenbach, 1994), Capitalismo selvagem (André Klotzel, 1994), Veja esta canção (Cacá Diegues, 1994), Carlota Joaquina, princesa do Brasil (Carla Camurati, 1995) e Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995)? Nada, a
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 não ser o tom pessoal, a “autoria” acentuada que será uma das marcas do cinema brasileiro pós-Embrafilme.20
A ênfase na expressão pessoal (do diretor) timbra com a vocação artística de Satã, que suplanta todos os obstáculos que o Estado repressor impunha aos setores socialmente rebaixados da sociedade. O filme Madame Satã foge das imagens dessimbolizadas, constituídas pelos arquétipos, como por exemplo, aqueles que Barros mostra que ocorre com Marilyn Monroe, no filme O pecado mora ao lado (1955), de Billy Wilder. No fim das contas, segundo a análise da autora, a redução do mito da Vênus, sucumbe ao estereótipo de feminilidade, por meio daquela saia esvoaçante. Ainda assim, com sua complexidade e contradições mantidas no personagem Satã, e no modo como o filme se estrutura, bem como na sua linguagem, há a possibilidade de ele guardar (como nas narrativas audiovisuais mainstream) também um estereótipo, nem que seja aquele que diz que filme de “arte” e de “autor” tem de ter, necessariamente, contradições e complexidades, configurando-se uma receita para um nicho específico. Seja como for, o filme quer se filiar a uma corrente estética internacional, se valendo, muitas vezes, de cacoetes21 na fotografia, no ritmo da montagem, na duração de planos, etc., e até mesmo, como sugerimos aqui, na forte presença de ambiguidades (contradições também, próprias do mito), em que a fotografia replica com suas sombras ambivalentes, escondendo muitas faces das figuras (atores, espaços, objetos) . Entretanto, pelas frestas é possível ver outras contradições no filme, as quais tornam o filme mais rico e interessante, por exemplo, as relações insuspeitas entre arte e malandragens, e a face vulnerável da arte, que parecia, e talvez, pela perspectiva do filme, pretendesse ser imbatível e acima das contingências sociais (vide a trajetória ascendente de Satã, coroando, num plano simbólico, a vitória do cinema pós-retomada pernambucano). Esses são sentidos sugeridos para o filme, e que as estruturas antropológicas do imaginário ajudaram a evidenciar.
20
NAGIB, Lúcia. O cinema da Retomada, São Paulo, Editora 34, 2002. p.15. ficou demonstrado no debate entre críticos importantes do nosso país, como Luís Carlos de Oliveira Jr.
21 Como
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 REFERÊNCIAS ANAZ, Sylvio; AGUIAR, Grazyella; LEMOS, Lúcia; FREIRE, Norma; COSTA, Edwaldo. Noções do Imaginário: Perspectivas de Bachelard, Durand, Maffesoli e Corbin. Revista Nexi nº3, 2014 ISSN 22378383, PUC- SP. BARROS, Ana Taís Martins Portanova. A saia de Marilyn: dos arquétipos aos estereótipos nas imagens midiáticas. E-compós – Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v. 12, n. 1, jan. -abr. 2009. ________. O imaginário e a hipostasia da comunicação. Comunicação, Mídia e Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing, ano 10, v. 10, n. 29, set/dez. 2013. CANDIDO, Antonio. “Dialética da Malandragem”. In O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 19-54. CAMPBELLl, J. The Hero with a Thousand Faces. New Jersey: Princeton University Press. 2004. DURAND, Gilbert (2002). As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes. ________. O Imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro, DIFEL, 2001b. ________. Passo a Passo da Mitocrítica. Revista Ao Pé da Letra, 14 (2), p. 131, 2012. ________. “O retorno do mito: introdução à mitodologia (mitos e sociedade) ”. Revista Famecos, pp.7-22, abril de 2004. ________ . A Imaginação Simbólica. São Paulo: Editora Cultrix/USP, 1988. FLUSSER, Vilém. (2007). O Mundo Codificado. Trad. Raquel Abi-Samara. São Paulo: Cosac Naify. JUNG, C. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. MAFFESOLI, M. O Tempo das Tribos. 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. MORIN, E. (1998). O Método 4. As idéias. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Ed. Sulina. NAGIB, Lúcia. O cinema da Retomada, São Paulo, Editora 34, 2002. NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. O novo ciclo de cinema em Pernambuco: a questão do estilo, Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2009. SONTAG, Susan. Contra a interpretação, WUNENBURGER, J. (2007). O Imaginário. Trad. Maria Estela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola. VOGLER, C. The Writer’s Journey: Mythic Structures for Writers. 2nd. Ed. Los Angeles: Michael Wiese Productions, 1998. Material virtual:
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Matizes em Madame Satã: Altos e baixos de um mito, pp. 05-21 CAETANO, Daniel, GARCIA, Estêvão, GARDINIER, Ruy, LEVIS, Leonardo, MESQUITA, Raphael, OLIVEIRA, Luís Carlos. Cinema falado: os quatro filmes preferidos, Revista de cinema Contracampo, São Paulo, Parte 5., nº 85, 2007. ‹Www.contracampo.com.br/edicoesantigas.html›. Acesso em 20/03/2019. Ficha Técnica do filme Madame Satã Gênero: Drama Direção: Karim Ainouz Roteiro: Karim Ainouz Elenco: Emiliano Queiroz, Felippe Marques, Flavio Bauraqui, Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo, Renata Sorrah Produção: Isabel Diegues, Marc Beauchamps, Maurício Andrade Ramos, Vincent Maraval, Walter Salles Fotografia: Walter Carvalho Trilha Sonora: Marcos Suzano, Sacha Amback Duração: 105 min. Ano: 2002 Bibliografia sobre o filme Madame Satã BUSSINGER, Rebeca. Corpo, Gênero e Identidade em Madame Satã, Revista Pscicologia política. Vol. 11. nº 21. pp. 91-107. jan. – jun. 2011. FELDMAN, Ilana e EDUARDO, Cléber. A política do corpo e o corpo político - o cinema de Karim Aïnouz.In:. ‹‹ http://revistacinetica.com.br/nova/››, acesso 03/11/2016. MOURA VERGARA, Daniel Luis. Madame Satã: Através do corpo e sexualidade, se constrói uma identidade. Intercom, Blumenau, 2009. RODRIGUES, Geisa. Madame Satã: a potência de um corpo em cena, Universidade Federal Fluminense, 2014.
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37
AS TARÂNTULAS:
NIETZSCHE E A JUSTIÇA COMO RESSENTIMENTO E VINGANÇA
Francisco Fianco1 RESUMO: O presente texto tem como objetivo abordar o conceito de justiça no pensamento de Friedrich Nietzsche, tomando como textos bases e suas considerações sobre o assunto que constam em duas de suas obras mais célebres, Genealogia da Moral (1887) e Assim falava Zaratustra (1892), de modo a compreender o papel de conceitos como ressentimento, evolução das categorias morais e vingança para uma aproximação crítica do conceito de justiça. Em relação à Genealogia, nos concentraremos mais especificamente na segunda dissertação, intitulada “Culpa”, “Má consciência” e coisas afins por ser o trecho da obra que mormente aborda as questões atinentes à relação entre moralidade e justiça. Já a respeito de Zaratustra, nosso objetivo maior é interpretar as diversas metáforas contidas no capítulo chamado As Tarântulas à luz, por necessidade interpretativa, de conceitos contidos em outras obras de Nietzsche, para melhor entender o que o autor afirma a respeito da justiça neste capítulo de sua obra. PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche. Justiça. Vingança. Ressentimento. Nietzsche and Justice as Resentment and Revenge ABSTRACT: This paper aims to aproaches the concept of justice in Friedrich Nietzsche`s thought, taking as ground texts and his considerations on the matter contained in two of his most celebrated works, Genealogy of Morals (1887) and Thus Spoke Zarathustra (1892), in order to understand the role of concepts such as resentment, the evolution of moral categories and revenge for a critical approach to the concept of justice. Regarding the Genealogy, we will focus more specifically on the second dissertation, entitled "Blame", "bad conscience" and the like to be the part of the work that mainly addresses the issues relating to the relationship between morality and justice. About Zarathustra, our ultimate goal is to interpret the various metaphors in the chapter called The Tarantulas under the light, by interpretative necessity, of concepts contained in other works of Nietzsche, to better understand what the author says about justice in this chapter of his work KEYWORDS: Nietzsche. Justice. Revenge. Resentment.
1 Dr.
em Estética e Filosofia da Arte Professor PPG-Letras e Curso de Filosofia Universidade de Passo Fundo, RS. fcofianco@upf.br
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37
Introdução O filósofo alemão Friedrich Nietzsche viveu na segunda metade do séc. XIX e suas obras se dedicam majoritariamente a uma crítica por vezes furiosa da tradição filosófica e do desenvolvimento cultural ocidental que o precederam. Isso coloca algumas dificuldades ao seu estudo, uma vez que seu objeto de crítica se estende por aproximadamente vinte e cinco séculos de tradição de pensamento com suas diversas correntes e doutrinas. Em função desta dificuldade de amplitude, vamos delimitar nossa análise à crítica feita por Nietzsche a um dos conceitos mais caros ao período filosófico que lhe precedeu mais imediatamente, o Iluminismo, a saber, o conceito de justiça, no qual está implicado igualmente o conceito de igualdade, especialmente em duas de suas obras mais conhecidas, Genealogia da Moral e Assim Falava Zaratustra. Do primeiro texto, destacaremos principalmente as passagens relativas a uma conceitualização da justiça e sua relação com o ressentimento presentes na segunda dissertação, “Culpa”, “má consciência” e coisas afins, embora tragamos à luz igualmente alguns pequenos trechos relativos ao assunto presentes tanto na primeira quanto na terceira dissertações do referido livro. Em relação a Zaratustra, pretendemos realizar uma interpretação da alegoria da justiça como vingança contida no capítulo Das tarântulas. Além destes textos basilares do próprio autor, buscaremos subsídios em comentadores franceses contemporâneos da obra de Nietzsche, como Michel Onfray e, mais especificamente ao que tange o conceito de justiça, Blaise Benoit. 1. A justiça como um acordo entre potências semelhantes Para Nietzsche (2004, p. 11) a justiça só é possível se entendida como um acerto entre poderes relativamente iguais, ou seja, tendo o equilíbrio de forças como pressuposto da capacidade contratual e, por consequência, de todo o direito. Isso significa exatamente o oposto do que se entende por justiça social, ou seja, conforme o conceito de isonomia, a tentativa de igualação dos não-iguais. É claro que, do ponto de vista teórico e deontológico, todos são iguais perante a lei, mas o próprio Nietzsche (2004, p. 18) faz a ressalva de que o que falta aos moralistas é a historicidade para pensar o ser humano como ele é no quotidiano, e não como ele deveria ser, o que causa toda a enxurrada de preconceitos morais que ele pretende analisar ao longo dessa sua Genealogia da Moral na qual, já na primeira dissertação, aparece a relação entre vingança, justiça e ressentimento:
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 – “Compreendo; vou abrir mais uma vez os ouvidos (ah! e fechar o nariz). Somente agora escuto o que eles tanto diziam: ‘Nós, bons – nós somos os justos’– o que eles pretendem não chamam acerto de contas, mas ‘triunfo da justiça’; o que eles odeiam não é o seu inimigo, não! eles odeiam a ‘injustiça’, a ‘falta de Deus’; o que eles creem e esperam não é a esperança de vingança, a doce embriaguez da vingança, (– ‘mais doce que mel’, já dizia Homero), mas a vitória de Deus, do deus justo sobre os ateus; [...].” (NIETZSCHE, 2004, p. 39, grifos do autor)
Este trecho, que praticamente encerra a seção XIV da Primeira Dissertação e que constitui uma espécie de paródia niilista do mito da caverna de Platão, no qual o sujeito “Curioso e Temerário” desce ao fundo de uma caverna ao invés de se elevar a partir dela para compreender através dos sussurros que ouve em meio a escuridão e o fedor e o processo através do qual, na Terra, se produzem os ideais que norteiam e, de acordo com o pensamento de Nietzsche, escravizam a humanidade, ilustra a relação entre aqueles conceitos de justiça, ressentimento e vingança, conforme colocamos acima, além de antecipar a estreiteza de relação entre eles que será posteriormente desenvolvida no capítulo As Tarântulas em Assim falava Zaratustra. Este “mito da caverna ao contrário” denuncia a maneira como o desenvolvimento histórico dos valores morais inverte as forças criativas e afirmativas em instrumentos de recalcamento, processo intermediado pelos ascetas que elegem a sua fraqueza e impotência em norma de conduta e convencem o rebanho da perniciosidade dos valores da espontaneidade e da vitalidade. Segundo esse raciocínio, a exigência de justiça vai significar uma negação da realidade, uma incapacidade de enfrentar a tragicidade, nos permitindo entrever a estreita relação entre a exigência de justiça e o pensamento transcende de fuga da realidade do discurso religioso. A justiça é mentira ou denegação, pois foge da lucidez, recusa a realidade. A justiça demanda reparação à vida, ao invés de celebrá-la e intensifica-la. Querer a justiça é dar voz à indignação irrisória contra aquilo que é. [...] por consequência, Nietzsche não pode ser um pensador da justiça. (BENOIT, 2006, p. 54)
É dessa maneira que o ressentimento vai contribuir diretamente para a noção de justiça como uma vingança a ser realizada pelo intermédio de um terceiro, uma vez que o sujeito injuriado não aceita seu real desejo de vingança e tende a disfarçá-lo atrás de uma exigência de reparação que desvie o foco do interesse pessoal para o da realização de um equilíbrio moral abstrato e impessoal. Mas, olhando com afastamento, esta justiça sempre será em algum momento o clamor de um desejo de vingança: – E como chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo o sofrimento da vida? – sua fantasmagoria de bem-aventurança futura antecipada? – “Quê? Estou ouvindo bem? A isto chamam de ‘Juízo Final’, o advento de seu reino, do ‘Reino de Deus’- mas por enquanto vivem ‘na fé, ‘no amor’, ‘na esperança’. – Basta! Basta! (NIETZSCHE, 2004, p. 39, grifos do autor)
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 Ou seja, ainda que em um momento posterior e intermediada por uma potência absoluta e impessoal, os fracos, os ressentidos, aqueles que se sentiram ofendidos sem a possibilidade de cobrar a reparação por sua ofensa, querem a oportunidade de substituir os seus opressores, tornando-se, eles mesmos, opressores e gozando dos privilégios desta superioridade. Este é, aliás, o mecanismo psicológico do ascetismo, do adiamento da satisfação presente pelo orgulho de ser melhor que os demais que tanto a religião institucionalizada quanto o estado, através da ideologia da obediência civil, incutem nos sujeitos para mais facilmente dar a eles uma razão pela qual estão realizando seus sacrifícios quotidianos. O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido no sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido! (NIETZSCHE, 2004, p. 149, grifo do autor)
O trecho acima, célebre passagem da terceira dissertação, demonstra a relação do ser humano, segundo Nietzsche, com a possibilidade de satisfação ou adiamento de suas pulsões dentro de um contexto civilizacional que valoriza, sobretudo, o sacrifício da potência do sujeito em prol do benefício da coletividade, o que também foi abordado por Freud em Mal-estar na Civilização. (FIANCO, 2013, p. 61 – 79) E não faltarão, obviamente, os defensores intelectuais de tal sacrifício injustificável, principalmente se estiverem defendendo a validade do sacrifício de desejos que eles mesmos não conseguem realizar, como bem interpretou Michel Onfray ao analisar a conversão histérica de Paulo de Tarso a caminho de Damasco e suas proibições morais à sexualidade, às mulheres e à vida que apenas denunciam a sua obsessão por questões eróticas e seus desejos não realizados. (ONFRAY, 2005, p. 175 et seq.) Estes sacerdotes do ascetismo não hesitam em tecer longas argumentações tortuosas para transformar o desejo de vida em expressão de culpa, assimilando os conceitos de vingança e justiça, principalmente, nesse caso, na exigência de justiça social e igualação dos não-iguais. Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para vingança: quando alcançariam realmente seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes a sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar de sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: “é uma vergonha ser feliz! existe muita miséria!” (NIETZSCHE, 2004, p. 113 et 114, grifos do autor)
A partir de tal passagem podemos perceber o que Nietzsche entende por clamor de justiça: grosseiramente falando, uma tentativa de vingança dos mais fracos em relação aos mais fortes, ou,
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 dito em outras palavras, do ressentidos sobre os felizes e plenamente realizados. Isso nos leva diretamente à necessidade de entendimento do papel do ressentimento para o mecanismo psicológico do clamor pela justiça, o que vai ser mais adequadamente tratado, dentro do texto de Nietzsche, na segunda dissertação, “Culpa”, “má consciência” e coisas afins. 2. Justiça e Ressentimento Na segunda dissertação, Nietzsche se concentra, para falar de justiça, no conceito de culpa: “Mas como veio ao mundo aquela outra ‘coisa sombria’ a consciência da culpa, a ‘má consciência’?” (NIETZSCHE, 2004, p. 52) Segundo o autor, o conceito abstrato e psicologicamente internalizado de “culpa” surge historicamente no desenvolvimento moral humano do conceito contábil, e portanto objetivo e matemático, de débito, e que sua internalização e transformação em um sentimento moral só pode ocorrer se aceitarmos que, e segundo Nietzsche este não é um caso isolado no desenvolvimento da civilização, se aceitarmos que um critério dicotômico como o de débito e crédito possa ultrapassar as suas barreiras de registro contábil e migrar para o campo do julgamento moral, trazendo consigo as noções de bom e mau, agora então não mais vinculadas simplesmente aos atos morais dos sujeitos em questão mas igualmente a sua capacidade de solvência, ou seja, é tido como bom e integro não o que honra suas relações com honestidade e franqueza a despeito das situações desfavoráveis, e sim aquele que goza de situação financeira suficiente para saldar suas dívidas e manter suas promessas, independentemente das condições, estas sim efetivamente morais, nas quais estes bens e direitos que lhe asseguram a “honestidade” foram adquiridos. Tal julgamento ocorre, segundo Nietzsche, a despeito de qualquer discussão de intencionalidade ou responsabilidade, mas de forma simplesmente consequencialista. O pensamento agora tão óbvio, aparentemente tão natural e inevitável, que teve de servir de explicação para como surgiu na terra o sentimento de justiça, segundo o qual “o criminoso merece castigo porque poderia ter agido de outro modo”, é na verdade uma forma bastante tardia e mesmo refinada do julgamento e do raciocínio humanos; quem a desloca para o início engana-se grosseiramente quanto à psicologia da humanidade antiga. (NIETZSCHE, 2004, p. 53, grifos do autor)
Neste trecho vemos ruir dois preconceitos a respeito da justiça, o primeiro sobre a noção de intencionalidade do ato, o que garantiria a possibilidade de responsabilização do agente e sua consequente punição, e o segundo a respeito da maneira através da qual a noção de justiça como reparação surge na história da humanidade, segundo nosso autor, não como uma responsabilização por uma ação, e sim como mecanismo reparatório que deve incidir sobre quem provocou o sentimento de dano, tenha este agido de forma deliberada ou não. Em outras palavras, a punição se dá por parte de um mais poderoso em direção a um menos poderoso como forma de aliviar a tensão, Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 tensão esta que pode ser entendida como desejo de violência ou humilhação, sobre um menos poderoso que tenha provocado a animosidade deste mais poderoso ainda que sem intenção, mesmo que por acidente, por acaso ou mesmo, sem motivo algum, pois é da natureza da força, do excesso de potência, eclodir sem a necessidade de uma justificativa. Dessa forma se fecha o ciclo que traça a equivalência entre o dano causado e a punição física que virá compensá-lo. De onde retira a sua força esta ideia antiquíssima, profundamente arraigada, agora talvez inerradicável, a ideia de equivalência entre dano e dor? Já revelei: na relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de “pessoas jurídicas” e que por sua vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico. (NIETZSCHE, 2004, p. 53, grifos do autor)
Assim sendo, o sentimento de culpa, o sentimento de obrigação moral, mesmo de dever, se origina da mesma fonte e do mesmo tipo de relação que o débito material estabelecido pela relação entre as pessoas, e o que define o ser humano em sua existência gregária primitiva poderia ser entendido como a capacidade de medir-se com os demais a fim de poder descobrir o seu valor e prestar ou cobrar devida vênia. Comprar e vender, juntamente com seu aparato psicológico, são mais velhos inclusive do que os começos de qualquer forma de organização social ou aliança: foi apenas a partir da forma mais rudimentar de direito pessoal que o germinante sentimento de contrato, de troca, débito [Schuld], direito, obrigação, compensação, foi transposto para os mais toscos e incipientes complexos sociais (em sua relação com complexos semelhantes), simultaneamente ao hábito de comparar, medir, calcular um poder e outro. (NIETZSCHE, 2004, p. 59, grifos do autor)
E a consequência imediata dessa capacidade de a tudo medir e comparar, inclusive a si mesmo, é a definição de grupos distintos de pertencimento, geralmente divididos entre aqueles que detém certo poder dentro da estrutura social e aqueles que não o detém e que tem como opção excludente padecer sob o poder dos primeiros. Nos termos de Nietzsche, esse conceito de justiça surge do acordo entre pessoas poderosas e relativamente iguais, os senhores, os aristocratas, que criam regras de ordenamento jurídico e social que beneficiam a si e as impõe sobre os outros, os dotados de menos poder em relação a eles, os escravos, o rebanho. Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre homens de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de “entender-se” mediante um compromisso – e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre si. (NIETZSCHE, 2004, p. 60, grifos do autor)
Tal “contrato” vai criar uma imagem de estabilidade, na medida em que todos os personagens se comportem de acordo com os papéis que lhe são designados. Enquanto tiver interesse em participar da comunidade, desfrutando suas vantagens como proteção, alimento e abrigo, o sujeito manterá com sua comunidade esta bem equilibrada relação do credor com seus devedores. Porém, assim que ele quebra o empenho da palavra dada, ele passa a ser não apenas Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 alguém que não cumpriu com suas obrigações sociais, que não pagou adequadamente pelos benefícios que o grupo lhe adiantou, como igualmente passa o elemento que agrediu diretamente aqueles em relação aos quais é devedor, ou seja, a justiça se torna um mecanismo de reparação contratual, pois priva o ofensor, através da punição ou do isolamento, dos benefícios que ele gozava enquanto era um membro adimplente dessa barganha simbólico-psicológica que é a existência em sociedade. Isso se dará mais radicalmente quanto mais frágil e diminuto for o grupo social dentro do qual a ofensa foi cometida. Um grupo pequeno deve punir rigorosamente qualquer infrator porque ele pode, com o seu ato, desestabilizar a coletividade como um todo. Um grupo maior, por outro lado, pode se dar ao luxo de fazer a passagem do direito privado ao direito público, ou seja, não deixar mais a tarefa da justiça ao encargo dos ofendidos em sua ânsia de reparação, e sim delegar isso ao estado, criando o espaço de um terceiro, de um mediador teoricamente imparcial que se beneficiará da expiação da culpa, não mais como flagelo e sim, o mais das vezes pelo menos, em forma de indenização pecuniária, e que a recolherá e centralizará pretensamente em nome da coletividade, criando, inclusive, as possibilidade de distorção que vemos quotidianamente em termos de justiça e que se explicam facilmente se entendermos que a “justiça” não está especificamente interessada em restaurar o bem-estar do ofendido, e sim em galgar benefícios a despeito do ofensor, ou, em outras palavras, que os desprovidos de recursos aplacam a justiça com a vida em infinitas formas variantes de sacrifício ao passo que os mais abastados pagam em moeda sonante, a despeito do fato de que só o primeiro grupo fica com a pecha moral de criminoso [verbrecher], enquanto os outros saem do processo apenas como um infrator [brecher], alguém que deu uma escapadela e não cumpriu, quase por descuido, um contrato firmado ou uma palavra dada. A justiça, que iniciou com “tudo é resgatável, tudo tem que ser pago”, termina por fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes – termina como toda a coisa boa sobre a terra, suprimindo a si mesma. A auto-supressão da justiça: sabemos com que belo nome ela se apresenta – graça; ela permanece, como é óbvio, privilégio do poderoso, ou melhor, seu “além do direito”. (NIETZSCHE, 2004, p. 62, grifos do autor)
Então, por um lado, os poderosos estão para além do direito, pois suas faltas são sempre passíveis de indulgência na medida em que eles gozem de benefícios socioeconômicos, num movimento em que a justiça realiza a sua auto-supressão; por outro lado, da parte dos mais fracos, a justiça passa a ser entendida como vingança, pois tem a sua base sobre o ressentimento, que tem a intenção velada “de sacralizar a vingança sob o nome de justiça - como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido - e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos” (NIETZSCHE, 2004, p. 62, grifos do autor). Nietzsche propõe um conceito positivo
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 de justiça, que não estaria vinculado a vingança e a capacidade reativa, e sim a uma certa equidade de tratamento em relação àquele que ofende por parte do ofensor, que supera tanto a raiva vingativa da relação pessoal quanto a imparcialidade fria e distante do direito mediado institucionalmente pelo estado. [...]: o último terreno conquistado pelo sentimento da justiça é o do sentimento reativo! Quando realmente acontece de o homem justo ser justo até mesmo com os que o prejudicam (e não apenas frio, comedido, distante, indiferente: ser justo é sempre uma atitude positiva), [...], isto é sinal de perfeição e suprema mestria - algo, inclusive, que prudentemente não se deve esperar, em que não se deve facilmente acreditar. (NIETZSCHE, 2004, p. 63, grifo do autor)
Felizmente, o próprio Nietzsche desconfia da viabilidade dessa justiça enquanto sentimento positivo que ele mesmo propõe, de modo que devamos nos concentrar de forma mais coerente nos conceitos negativos de justiça, como vingança e como privilégio social. A justiça estará mais distante portanto do homem do ressentimento do que daquele que Nietzsche chama de homem ativo, aquele que tem uma relação moralmente mais livre do que aquele, e pode, a partir disso, avaliar os fenômenos de forma menos falsa e parcial. Este homem ativo não conhecerá as noções morais de bem e mal para além daquilo que as leis, como expressão objetiva destas determinações morais, apontam, pois, ao contrário do homem do ressentimento, ele não fica remoendo os acontecimentos, de modo que não esteja em seu horizonte de pensamento a noção de malum per se, ou seja, não existe falta moral subjetiva, acompanhável de seu relativo sentimento de culpa, mas apenas critérios legais, objetivos, de transgressão. Em outras palavras, o sujeito não precisa ser moralmente bom, ele apenas não pode transgredir as leis. Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode ser naturalmente ser algo “injusto”, na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter. (NIETZSCHE, 2004, p. 65, grifo do autor)
Nietzsche faz a distinção, então, entre a dinâmica biológica da vida e as instituições sociais e morais que regulam a justiça e as relações entre os homens. “É preciso mesmo admitir algo ainda mais grave: que do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser estados de exceção, enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, (...).” (NIETZSCHE, 2004, p. 65, grifo do autor) Esta consideração está vinculada à noção de vida enquanto vontade de poder, o que acarreta uma consideração do ser humano como um ser capaz naturalmente, o em si do qual Nietzsche fala nos trechos acima, de agressividade, de expansão, e não o ser bom por natureza e que só ataca quando é agredido, conforme o consideram os moralistas fantasiosos contra os quais se coloca Nietzsche desde o início desta sua Genealogia da Moral. Isso Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 faz com que seja inócua e ineficiente uma ordem jurídica que se pretenda ser a própria anulação de qualquer conflito e não a intermediadora de sistemas complexos e múltiplos de poder que se entrechocam em uma disputa constante. Isso significa que, a um primeiro olhar, a justiça, sustentada pelo direito, seria o antídoto à força. Um olhar mais apurado, porém, perceberia que, muito pelo contrário, o direito não é senão expressão cristalizada da força, ou seja, da vontade de potência, e que esquece paulatinamente o seu estabelecimento violento, a sua afirmação amoral, para justificar-se de acordo com argumentações sutis e mascaramentos de sua verdadeira natureza. (BENOIT, 2006, p. 60 et 61) Ainda uma última palavra a respeito da justiça em sua versão punitiva. Nietzsche quer desconstruir a nossa ideia, de certa forma preconcebida, que vincula a punição ao arrependimento pois, segundo ele, o que a punição consegue fazer é justamente o contrário, retirar do sujeito a culpa pelas suas ações inadequadas. É como se o ato de punir tivesse o poder de reequilibrar para o sujeito a falta cometida; como se, através da punição, ele esteja pagando o que deve à sociedade, saindo desse processo sem a interiorização moral da culpa que o impediria de reincidir em sua ação criminosa. Isso se deve à passagem da punição do corpo para a punição da alma, ou seja, da desistência do estado em punir o corpo dos cidadãos na medida em que ele quer punir os atos e não os sujeitos. No momento em que os castigos físicos são substituídos pelo encarceramento e posteriormente pela ressocialização, troca-se o medo da punição pela ineficiência em criar a noção psicológica de culpa e arrependimento, de modo que a punição, nesta nova modalidade, tenha exatamente o seu efeito invertido, o de eliminar o sentimento de culpa. O castigo teria o valor de produzir no culpado o sentimento da culpa, nele se vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada “má consciência”, “remorso”. Mas assim se atenta contra a realidade e contra a psicologia, mesmo para o tempo de hoje: tanto mais para a mais longa história do homem, a sua pré-história! Justamente entre prisioneiros e criminosos o autêntico remorso é algo raro ao extremo, as penitenciárias e casas de correção não são o viveiro onde se reproduz essa espécie de verme roedor – [...]. Falando de modo geral, o castigo endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância; aumenta a força de resistência. (NIETZSCHE, 2004, p. 70, grifo do autor)
Isto está relacionado ao que Nietzsche chama de mnemotecnia, ou seja, a maneira através da qual os sujeitos recordam as coisas e fixam estas experiências em suas memórias, nunca através de experiências agradáveis mas sempre através da dor. “Consideremos mais precisamente o direito penal. Nietzsche faz dele um problema: punir é ilegítimo, mas pode ter o seu valor segundo a ótica do desenvolvimento da civilização.” (BENOIT, 2006, p. 61) O “verme roedor” é o remorso, etimologicamente aquilo que fica mordendo de forma repetitiva, ou seja, roendo; a culpa que fica
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 se manifestando como projeção interna, como introjeção do castigo, o que, segundo este raciocínio, só se efetivará através do castigo adequado. 4. As Tarântulas Em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche faz uma reconstituição metafórica e poética de diversos aspectos de sua filosofia. Apesar de tornar a compreensão de sua argumentação mais complexa, pois então é necessário um empenho hermenêutico das diversas imagens que o autor utiliza, sua estratégia de filosofar profeticamente, aproveitando a figura do profeta persa que nomeia o escrito, termina por embelezar sumamente o texto filosófico, que sói ser sisudo e frio, proporcionando aos seus leitores passagens que são talvez as mais melífluas de todo o corpus nietzschiano. Isso, porém, não as torna menos agudas, pois, apesar da ênfase retórica, Nietzsche segue seu percurso crítico ao pensamento ocidental e a suas instituições. A respeito da concepção de justiça, por exemplo, o autor usa a metáfora das tarântulas para questionar se quando o pensamento ocidental diz justiça ele não estaria, na verdade, significando vingança. Olha, eis a Caverna da tarântula! Queres ver ela mesma? Aqui está sua teia: toca-a, para que trema. Ai vem ela de bom grado: Bem-vinda, tarântula! Em teu dorso se acha, negro, teu triangulo e emblema; e sei também o que se acha em tua alma. Vingança trazes na alma: onde mordes, cresce uma crosta negra; com vingança, fazes a alma girar! (NIETZSCHE, 2014, p. 95)
Com as palavras acima abre Nietzsche o seu capítulo já questionando a relação entre o que está aparente, aquilo que se percebe no corpo das tarântulas, e o que jaz, disfarçado e escondido, sob sua alma. Nesse caso, o autor afirma que são ambos negros, tanto o corpo das tarântulas quanto sua alma vingativa. Isso denota um dos procedimentos de pensamento de Nietzsche que ele vai chamar de genealogia, e que se exemplifica bem em sua obra Genealogia da Moral, ou seja, tentar entender o que está por trás das verdades e dos valores que são irrefletida e inquestionadamente sustentados pela constituição cultural e social. Segundo Blaise Benoit: Die Gerechtigkeit [a justiça] não seria, então, um conceito a ser escrito entre aspas, para destacar que a justiça provém genealogicamente de uma configuração pulsional fraca, que se recusa a encarar a realidade? A justiça não procederia, por fim, da vontade de vingança? De uma sede de se vingar da hierarquia, à maneira das tarântulas de Assim falava Zaratustra, que desejam instaurar a igualdade a qualquer preço? (BENOIT, 2010, p. 53, grifos do autor)
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 O pensamento genealógico vai levar, portanto, a um desmascaramento das verdades eternas sustentadas por determinada estrutura social e paradigma cultural, nos remetendo novamente aos argumentos da terceira dissertação de Genealogia da Moral, onde afirma: “Todas as coisas boas foram um dia coisas ruins, cada pecado original tornou-se uma virtude original.” (NIETZSCHE, 2004, p. 103) Ou seja, talvez aqueles valores que sustentem a nossa normatividade social como algo plenamente positivo já tenha sido, em determinado estágio do desenvolvimento cultural, algo terrível, dotado de plena negatividade. Porém, se assim é, se faz necessário que aceitemos que por trás de nossos valores positivos se esconde a negatividade primitiva de seus períodos iniciais de desenvolvimento, o que parece subsidiar adequadamente a conexão inconfessada entre nossa contemporânea e luminosa concepção de justiça e sua anterior versão obscura, a vingança. Por isso rasgo vossa teia, para que vossa raiva vos faça deixar vossa caverna de mentiras e vossa vingança pule de trás de vossa palavra “justiça”. Pois que o homem seja redimido da vingança: isso é, para mim, a ponte para a mais alta esperança e um arco-íris após longos temporais. (NIETZSCHE, 2014, p. 95, grifo do autor)
Assumindo sua tarefa de filósofo, de perseguidor enamorado de uma verdade fugidia, Nietzsche confessa que seu desejo é o rasgar das teias, o rasgar dos véus, para fazer brilhar o que está escondido, o que nos remete ao conceito grego de verdade enquanto aletheia, verdade como desvelamento, ou seja, etimologicamente, como uma retirada de véus. O filosofar nietzschiano é, por assim dizer, o de um desnudamento dos valores, uma sedução e um possível atentado ao pudor filosófico. No caso acima, ele argumenta a respeito do instinto de rebanho que identificou como uma tendência deletéria na humanidade, ou seja, a vontade de um conjunto de pessoas mais frágeis e inferiores de agregar-se para ter mais chance de resistir à tentativa de domínio dos tipos psicológicos superiores. A questão a respeito desse instinto de rebanho e sua oposição à moralidade superior, entendida como criativa, em Nietzsche é o que este pensador entendia como a essência da vida humana, a saber, a vontade de potência, ou vontade de domínio. Esta premissa antropológica entende a vida como uma constante expressão de força, de modo que esta força seria uma tendência a dominar o que cerca o indivíduo, muitas vezes de maneira violenta, mas mormente de maneira criativa, produtora, espontânea e livre. O problema seriam os demais sujeitos que, vendo-se enfraquecidos e fragilizados em função de sua pouca capacidade de potência, se agregariam em coletividades para reivindicar o respeito a sua fraqueza, criando a moral da passividade, que tenderia a condenar os fortes em sua potência, fazendo-os sentir culpa pela Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 excelência em relação aos demais, numa apologia da falsa humildade e do sofrimento como acontecimento positivo. Esse é o fundamento moral e psicológico dos processos de vitimização e incentivo ao enfraquecimento da capacidade individual dos sujeitos que compõe o todo social, de maneira a fazer com que eles tenham cada vez menos capacidade de se oporem ao pernicioso e violento processo homogeneizador da totalidade social. Mas as tarântulas querem outra coisa, sem dúvida. “Precisamente isto é justiça para nós, que o mundo seja tomado pelos temporais de nossa vingança” – assim falam umas com as outras. “Vingança vamos praticar, e difamação de todos os que não são iguais a nós” – assim juram os corações das tarântulas. (NIETZSCHE, 2014, p. 95)
Juntamente com a noção de justiça, portanto, critica Nietzsche a noção de igualdade, que é tão cara ao nosso contexto de fraternidade forçada. A queixa das tarântulas a respeito dos que lhes diferem podem ser entendidas efetivamente como queixas aos que lhes excedem, pois o instinto de rebanho condena tudo o que lhe ultrapassa uma vez que cada um que se destaca apenas deixa mais patente a mediocridade dos integrantes do grupo de lamentosos. Então falo convosco por imagens, vós que fazeis rodar a alma, vós, pregadores da igualdade! Tarântulas sois para mim, e seres ocultamente vingativos. Mas porei à mostra vossos pontos ocultos: por isso vos rio no rosto minha risada das alturas. (NIETZSCHE, 2014, p. 95, grifo do autor)
Aqui, entre imagem e igualdade, se perde o trocadilho na tradução, pois os dois termos são, original e respectivamente, Gleichnisse e Gleichheit, ambas composta pela raiz Gleich, ou seja, igual. A crítica de Nietzsche à igualdade pode ser feita, através desta observação, ainda pelo critério da teoria do conhecimento, na medida em que a imagem, Gleichnisse, possa ser entendida como um simulacro, como uma pálida representação da coisa mesma a qual se refere, de modo que qualquer impulso à igualdade, Gleichheit, seja não mais do que uma fosca tentativa de tirar dos sujeitos todas as características e potencialidade que lhes tornam únicos, transformando-os em sombras, no sentido de fazer com que eles se projetem para o meio, para a homogeneidade, na tentativa de serem cada vez mais iguais, cada vez mais massificados. “E ‘vontade de igualdade’- esse mesmo será doravante o nome para ‘virtude’; e contra tudo que tem poder levantaremos nosso grito!” Ó pregadores da igualdade, é o delírio tirânico da impotência que assim grita em vós por “igualdade”; vossos mais secretos desejos tirânicos assim se disfarçam em palavras de virtude! (NIETZSCHE, 2014, p. 95)
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 A proposta de Nietzsche é exatamente o contrário, a de que o ser humano se supere continuamente, não em um movimento para o meio ou para baixo, e sim para cima, para a diferenciação e não para a igualdade. Que cada um tenha consciência de sua singularidade, de suas características únicas e de suas limitações para, através do esforço e da coragem superá-las, esse é o caminho do super-homem nietzschiano, o de quem se pauta pela sua própria capacidade de autodesenvolvimento, e não pela normatividade social ou pela pressão do grupo. A vontade de igualdade é a expressão da mediocridade e da fraqueza, na medida em que os homens não são iguais e querer emparelhá-los seja um processo de rebaixamento dos melhores em prol do mais fracos. Com estes pregadores da igualdade não quero ser misturado e confundido. Pois assim me fala a justiça: “Os homens não são iguais.” E tampouco deverão sê-lo! Que seria meu amor ao super-homem se eu falasse outra coisa? (NIETZSCHE, 2014, p. 96)
Esta tentativa de rebaixar os que se destacam e erigir em norma a mediocridade é o que Nietzsche chamou na Terceira Dissertação de Genealogia da Moral de ideais ascéticos, ou seja, um esforço de mediocridade e uma tentativa de enfraquecimento da vida em sua explosão de potência tanto criativa quanto violenta por parte daqueles que constroem ideais de passividade, de ódio à vida, de além-mundismo e fraqueza. A tarefa do livre pensar seria a de combater aquilo que Nietzsche chama também aí de “l’universelle araignée” (NIETZSCHE, 2004, p. 103), ou seja, a aranha universal, o instinto universal das aranhas arraigado na cultura, o de criar em suas teia armadilhas para impedir os demais de voarem e poderem então se alimentar da energia volitiva e alada que os demais possuem e da qual carecem. Disfarçado de ideal de organização social, dizem que o ascetismo, a doutrina do conter-se e morrer aos poucos, é criada pelo bem da humanidade, quando ela é, no máximo, inspirada no amor que a aranha sente pelas moscas. Se fosse diferente, as tarântulas ensinariam coisas diferentes: e outrora foram justamente elas os melhores caluniadores do mundo e queimadores de hereges. [...] Olhai, meus amigos! Aqui onde se acha a caverna das tarântulas, erguem-se as ruínas de um antigo templo, - olhai para elas com os olhos iluminados! (NIETZSCHE, 2014, p. 96 et 97)
Porém, de onde vêm originalmente tais tendências aracnídeas de ódio à vida que se expressam livremente senão das sacrossantas tradições do passado? Isso desvela o estado laico como uma falácia, como uma brincadeira de mau gosto, pois todos os imperativos morais do nosso estado laico e racionalizado continuam sendo os mesmo interditos comportamentais sacralizados pelos devaneios da religiosidade monoteísta. Ou seja, mudou-se apenas a forma de manipulação
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 retórica e fundamentação argumentativa dos interditos, mas estes, por sua vez, continuam os mesmos, a saber, sistemas de repressão da existência humana em sociedade e arrebatamento da energia reprimida para ser utilizada e manipulada pelos interesses sociais, ou seja, pelos ideais ascéticos sustentados pela massa humana enquanto rebanho, conforme já demonstramos alhures. (FIANCO, 2013) A referência às tarântulas como os melhores inquisidores e queimadores de hereges do passado faz sentido ao pensarmos nos diversos episódios em que a Igreja, enquanto instituição social responsável pela criação e observação dos valores morais e sua introjeção enquanto ideologia, se responsabilizou pessoal e zelosamente pela perseguição dos que ousavam pensar diferentemente, ou seja, aqueles que se permitiam ultrapassar a homogeneidade da massa dos que primavam pela igualdade que, nesse caso, era o alcance universal e equânime do medo. A referência às ruínas do antigo templo no qual habitam as tarântulas pode ser entendida não apenas como uma alusão à casa dos sacerdotes ascéticos responsáveis por criar os valores da mediocridade através do controle religioso das mentalidades como igualmente uma remissão a algo mais antigo, à algo mais primitivo, aos templos greco-romanos com suas colunatas que já nascem como ruínas, uma vez que estão completamente descontextualizados na medida que representam luz e ordem em um mundo de trevas e caos. A apologia da cultura clássica à capacidade da razão de ordenamento e organização da vida humana enquanto exercício filosófico ecoou ao longo da história ocidental e produziu não apenas as maiores esperanças na capacidade humana de realização, como também, senão principalmente, as maiores decepções com a ínfima capacidade dos homens de se autogovernarem, pois com a razão vem liberdade e com ela responsabilidade, algo que a massa e o rebanho não desejam em hipótese alguma, não suportam nem em seus mais suaves pesadelos. Por isso, à luminosidade meridional da Antiguidade se seguiu a treva obscura da teologia medieval, ao renascimento dos ideais humanistas se seguiu o depressivo paradoxo barroco e ao albores da razão iluminista se seguiu o niilismo do desespero da razão que quando cochila cria os monstros do séc. XX. Bom e mau, rico e pobre, grande e pequeno e todos os nomes dos valores: serão armas e ressonantes sinais de que a vida sempre tem de superar-se a si mesma! Em direção às alturas, com pilares e degraus, quer construir-se a vida mesma: para vastas distâncias quer olhar, e para fora, em busca de bem-aventuradas belezas – por isso necessita de alturas! (NIETZSCHE, 2014, p. 97)
O que Nietzsche sugere é, então, uma superação dos valores que sustentam esse ideal de justiça e igualdade como uma vingança e rancor dos que ficaram por sua conta rebaixados no jogo
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As tarântulas: Nietzsche e a justiça como ressentimento e vingança, pp. 22-37 da vida. Talvez possamos nos remeter ao conceito de “grande justiça” ou “nova justiça”, de acordo com trechos de sua correspondência e alguns fragmentos póstumos (BENOIT, 2006, p. 55 et seq.), para falar de uma justiça que tenha feito o percurso através de uma transvaloração dos valores, deixando de ser uma expressão reativa e tornando-se uma afirmação criativa, uma arte de ponderar entre as potências manifestadas dentro da própria realidade, ao invés do estabelecimento de uma realidade alternativa. “Essa nova justiça é um Versuch, como tomada de risco no contexto da interpretação ao mesmo tempo discursiva e produtora.” (BENOIT, 2006, p. 57) Considerações Finais É transparente, no pensamento de Nietzsche, que ele, a despeito do uso que já foi feito de seu pensamento, em nenhum momento fala de superioridade em termos de classe social, etnia, poder aquisitivo ou qualquer outro tipo de proselitismo insensato. (ONFRAY, 2006, p. 29 et seq.) Seus argumentos a respeito de força e fraqueza, superioridade e inferioridade são uma distinção entre constituição moral e posicionamento psicológico, de atitude de enfrentamento ou fuga em relação aos desafios existenciais, à tragicidade da vida. Enquanto os valores morais que sustentam os comportamentos de massa e que terminam, num sistema democrático representativo frágil em seus pressupostos e pervertido em suas ações, se convertendo em sistemas jurídicos que representam por vezes mecanismos de dominação e exclusão social mediante critérios econômicos ou étnicos, por vezes uma cristalização de preconceitos morais oriundos das mais diversas fontes de delírios particulares, como a intervenção da esfera religiosa na legislativo e no judiciário, sem falar das barganhas do executivo, enquanto a ordenação jurídica for a objetivação de um espírito absoluto totalizante e opressivo, que desestimule e mesmo condene a expressão individual e o respeito às diferenças, afirmamos que os valores devem, assim como defendia Nietzsche, serem transvalorados na direção de uma organização moral mais libertadora, de uma legislação mais coerente e racional, de, porque não, uma sociedade mais justa. Só assim poderemos dizer que estamos posicionados nas alturas, com beleza no olhar, olhando a urbe de uma posição de superioridade que não é apenas espacial, como também moral.
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DIAPHONÍA E ISOSTHÉNEIA: DUAS VIAS PARA A EPOKHÉ Wesley Rennyer Porto1
RESUMO: O ceticismo pirrônico é profundamente marcado, sobretudo pela exposição legada por Sexto Empírico, por um vasto encadeamento de razões que visam demonstrar a necessidade da suspensão do juízo. No âmbito desse procedimento argumentativo, o elemento da divergência (διαφονία) e do equilíbrio (ἰσοσθένεια) emergem como fatores de relevo para o discurso cético. Portanto, neste artigo, buscaremos analisar esses dois importantes elementos e esclarecer como eles se articulam no interior da estrutura argumentativa pirrônica. PALAVRAS-CHAVES: Pirronismo, argumentação, divergência, equilíbrio. ABSTRACT: The pyrrhonian scepticism is deeply characterized, mainly by the exposition handed down by Sextus Empiricus, through a vast chain of reasons which seeks to demonstrate the necessity of the suspension the judgement (ἐποχή). Within the scope of this argumentative procedure, the elements of divergence (διαφονία) and equipoise (ἰσοσθενεὶα) emerge as important factors for sceptic discourse. Therefore, in this article, we will analyze these two important elements and clarify how they are articulated within the pyrrhonian argumentative structure. KEYWORDS: Pyrrhonism, argumentation, divergence, equipoise.
Górgias escreveu em seu Elogio de Helena que “o λόγος é um grande senhor”2; mas foram os céticos gregos, séculos mais tarde, que tomaram tal máxima em sua mais profunda acepção. Nossa declaração inicial pode ser justificada mediante uma análise dos escritos de Sexto Empírico, pensador cético do século II d.C. cujos trabalhos representam, indiscutivelmente, a mais importante fonte sobre o ceticismo pirrônico que chegou até nós. Grego, filósofo e médico, Sexto Empírico é o responsável por conferir pela primeira vez ao ceticismo uma estruturação lógica dos seus argumentos, por explicar a finalidade do ceticismo e desvinculá-lo de noções afins.
1 Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Graduando em Letras
Clássicas pela UFPB. E-mail: wesley.rennyer@hotmail.com 2 “λόγος δυνάστης μέγας ἐστίν” (GÓRGIAS, Elogio de Helena, 8).
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 Enquanto membro-chefe da “escola” cética, Sexto Empírico buscou investigar a problemática relativa ao conhecimento e a verdade pelo prisma da tradição pirrônica, o que significa dizer que ele herdou, em maior ou menor grau, lições de pensadores como Pirro de Élis3, Tímon de Fliunte4, Enesidemo de Cnossos5, Agripa6, Menodoto7 e Heródoto8, ninguém menos que os principais céticos da Antiguidade. Em seu empreendimento cético, Sexto Empírico desenvolveu, de maneira sistemática, um incrível conjunto de argumentos voltados ao colapso teórico das teses do que ele denominou de “filosofias dogmáticas”. Os dogmáticos, segundo Sexto, seriam os partidários de alguma doutrina filosófica que afirmam ter descoberto a verdade (ἀλήθεια), ou, se preferirmos, aqueles que julgam ter apreendido a natureza última das coisas. Na realidade, Sexto admite apenas três tipos de filosofia, a dogmática, que como mencionamos acima assegura ter encontrado a verdade, a acadêmica, que diz que a verdade é inapreensível, e a cética, que se mantém na investigação. Τοῖς ζητοῦσί τι πρᾶγμα ἢ εὕρεσιν ἐπακολουθεῖν εἰκὸς ἢ ἄρνησιν εὑρέσεως καὶ ἀκαταλεψίας ὁμολογίαν ἢ ἐπιμονὴν ζητήσεως. διόπερ ἴσως καὶ ἐπὶ τῶν κατὰ φιλοσοφίαν ζητουμένων οἱ μὲν εὑρηκέναι τὸ ἀληθὲς ἔφασαν, οἱ δ’ ἀπεφήναντο μὴ δυνατὸν εἶναι τοῦτο καταληφθῆναι οἱ δὲ ἔτι ζητοῦσιν. καὶ εὑρηκέναι μέν δοκοῦσιν οἱ ἰδίως καλούμενοι δογματικοί, οἶον οἱ περὶ Ἀριστοτέλεν καὶ Ἐπίκουρον καὶ τοὺς στωικοὺς καὶ ἄλλοι τινές, ὡς δέ περὶ ἀκαταλήπτων ἀπεφήναντο οἱ περὶ Κλειτόμαχον καὶ Καρνεάδην καὶ ἄλλοι Ἀκαδημαἴκοί, ζητοῦσι δὲ οἱ σκεπτικοί. (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Υ., I, § 1-3). É natural que quem investiga algo ou descobre aquilo que persegue, ou recusa sua descoberta e confessa ser [aquilo que busca] inapreensível, ou se detém na investigação. Por isso, possivelmente, também acerca das investigações filosóficas, alguns diziam ter alcançado a verdade, outros declaram que ela [a verdade] não pode ser compreendida, enquanto outros continuam investigando. Aqueles propriamente chamados dogmáticos declaram tê-la descoberto, como por exemplo, os discípulos de Aristóteles, Epicuro, dos estoicos e alguns outros; os seguidores de Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos, a declaram inapreensível, porém os céticos examinam. (SEXTO EMPÍRICO, P.H., I, § 1-3).
3
Não apenas nas fontes mais respeitadas da antiguidade, mas também nos textos mais recentes (fruto de exaustivas pesquisas dos documentos e registros históricos) encontramos o parecer de que Pirro (séc. IV-III a.C.) é o legítimo fundador da tradição cética, ou, se preferirmos, do pirronismo. Cf. Sexto Empírico, Hipotiposes Pirrônicas, I, § 7; Victor Brochard, Os Céticos Gregos, I, p. 65; Oswaldo Porchat, Rumo ao ceticismo, p. 281; Mary Mills Patrick, Sextus Empiricus and the Greek Scepticism, p. 88. 4 Tímon, o silógrafo (séc. III-II a.C.), foi discípulo direto de Pirro e reconhecido como “the most important source of our information concerning the philosophical views of Pyrrho” (SVAVARSSON, 2010, p. 37). 5 O cretense Enesidemo de Cnossos (séc. I a.C.) é considerado, junto com Pirro, como o mais ilustre cético da Antiguidade (BROCHARD, 2009, p. 248). Ele fora responsável por dar uma nova vida ao ceticismo, por estabelecer distinções entre o pensamento pirrônico e acadêmico, e, sobretudo, por ter desenvolvido os famosos dez τρόποι do pirronismo. 6 Mesmo que não se saiba praticamente nada além do século que esse filósofo viveu, isto é, século I d.C. e início do século II, é amplamente aceito que Agripa tenha sido célebre em seu tempo. Ele é responsável pela criação dos cinco τρόποι que refinaram o arsenal argumentativo cético. 7 Menodoto de Nicomédia (séc. I-II d.C.) foi o primeiro cético que sabemos ter sido médico. Um dos que junto com Teódas de Laodiceia selaram “definitivamente a aliança do ceticismo com a medicina empírica” (BROCHARD, 2009, p. 315). 8 Heródoto de Tarso (séc. II d.C.) foi predecessor e mestre de Sexto Empírico.
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 Temos, então, mediante o que nos apresenta Sexto, uma caracterização dos céticos como os filósofos que essencialmente investigam. O substantivo grego σκεπτικός (céticos), que pode significar aquele que busca, investiga, inspeciona ou examina, é empregado por Sexto como marca distintiva de um modo singular de filosofar que se propõe não-dogmático. Se a busca é contínua, não há qualquer adesão a dogmas, mas apenas o constante exercício crítico do pensar investigativo. Por isso mesmo Sexto lembra que: “A via cética também é chamada investigativa devido à atividade de investigar e observar” (SEXTO, P.H., I, § 7)9. No intuito de denunciar a temeridade das teses dos dogmáticos, Sexto Empírico não economizou argumentos e estratégias dialéticas para demonstrar que os discursos filosóficos se encontram imersos numa indecidível disputa acerca das mais variadas questões. Infinitamente distantes de uma reconciliação harmoniosa entre suas teorias, as filosofias dogmáticas, absortas pelo fascínio que exerce o λόγος, não se deram conta do imenso, antagônico e insolúvel oceano teórico sobre o qual navegam. Esse quadro de tenaz divergência diagnosticado pelos céticos, representa parte crucial das razões que, segundo a tradição pirrônica, conduzem à suspensão do juízo. É bastante evidente para o leitor de Sexto, principalmente quando se observa o desenvolvimento da crítica sextiana às filosofias dogmáticas, que os céticos conferem uma atenção especial ao discurso – o que justifica a nossa referência inicial à frase de Górgias de Leontinos. Na verdade, antes mesmo de dar início ao ataque frontal aos dogmáticos, Sexto Empírico apresenta, ainda nas passagens iniciais do livro I das Hipotiposes Pirrônicas, uma caracterização do ceticismo que prenuncia o quão fundamental é o papel da capacidade antitética do pirronismo (a qual se manifesta por meio do discurso), e como ela é imprescindível para o estado subsequente de suspensão do assentimento: Ἒστι δὲ ἡ σκεπτικἡ δύναμις ἀντιθετικὴ φαινομένων τε καὶ νοουμένων καθ’ οἱονδήποτε τρόπον, ἀφ’ ἧς ἐρχόμεθα διὰ τὴν ἐν τοῑς ἀντικειμένοις πράγμασι καὶ λόγοις ἰσοσθένειαν τὸ μὲν πρῶτον εἰς ἐποχὴν τὸ δὲ μετὰ τοῦτο εἰς ἀταραξίαν. (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Υ., I, § 8). O ceticismo é a capacidade de contrapor de todos os modos possíveis aparências e pensamentos, de tal forma que através do equilíbrio entre os objetos e as razões contrárias chegamos primeiro à suspensão do juízo, depois à tranquilidade. (SEXTO EMPÍRICO, P.H., I, § 8).
Decerto, o elemento da suspensão do juízo (ἐποχή), ao qual se refere Sexto, é passível de ser considerado como um dos elementos mais importantes do ceticismo pirrônico. Por isso mesmo a
9 “Ἡ σκεπτικὴ
τοίνυν ἀγογὴ καλεῖται μὲν καὶ ζητητικὴ ἀπὸ ἐνεργείας τῆς κατὰ τὸ ζητεῖν καὶ σκέπτεσθαι” (ΣΕΞΤΟΥ, Π.Υ., I, § 7).
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 esmagadora maioria dos argumentos erigidos pela tradição cética visam demonstrar a inevitabilidade da ἐποχή, além de compreendê-la como a condição sine qua non para se alcançar a tranquilidade da alma (ἀταραξία )10. Essa mesmíssima compreensão é atestada pela doxografia antiga, que sobre a escola cética nos informa que: τέλος δὲ οἱ σκεπτικοί φασι τὴν ἐποχήν, ᾗ σκιᾶς τρόπον ἐπακολουθεῖ ἡ ἀταραξία, ὥς φασιν οἵ τε περὶ τὸν Τίμωνα καὶ Αἰνεσίδημον. (ΔΙΟΓΕΝΟΥΣ ΛΑΕΡΤΙΟΥ, Βίων καὶ γνώμων τών ἐν φιλοσοφίᾳ ευδοκιμησάντων, IX, 107). Os céticos dizem que a suspensão do juízo é seu fim, e que a imperturbabilidade a acompanha à maneira de uma sombra, como dizem os discípulos de Tímon e Enesidemo (DIÓGENES LAÉRTIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, 107).
A suspensão do juízo (ἐποχή), ao passo que cumpre com o papel de caracterização da postura dos antigos céticos gregos, acaba estabelecendo, também, uma diferença fundamental entre o ceticismo e as filosofias dogmáticas. Tendo em vista essa importância, faz-se necessário que antes que nos aprofundemos no aspecto da divergência e, por conseguinte, principiemos nossa análise do equilíbrio dos λόγοι, confiramos maior atenção à suspensão do juízo e investiguemos em que consiste propriamente a noção de ἐποχή conforme pensaram os pirrônicos. Nesse sentido, devemos nos perguntar, em primeiro lugar, acerca do que é propriamente um juízo, ou, de maneira mais genérica, devemos nos questionar em que consiste aquilo que os céticos pirrônicos dizem ser necessário suspender para que não incorramos em dogmatismo. Podemos encontrar uma ideia clara desse ponto tão nevrálgico do pirronismo? Uma das maneiras possíveis para respondermos a essa indagação consiste em voltarmos à noção de λόγος ἀποφαντικὸς11 exposta por Aristóteles em sua célebre obra Da Interpretação. A definição de discurso declaratório que o estagirita nos oferece não se distancia, assim presumimos, daquilo que poderíamos entender por juízo, tendo em vista que a declaração, como veremos, afirma ou nega algo de algo, tal como ocorre em um juízo. Aristóteles diz: ἀποφαντικὸς δὲ οὐ πᾶς, ἀλλ’ ὥσπερ ἐν ᾧ τὸ ἀληθεύειν ἢ ψεύδεσθαι ὑπάρχει⸱ (...) τούτων δ’ ἡ μὲν ἁπλῆ ἐστὶν ἀπόφασις, οἷον τὶ κατὰ τινὸς ἢ τὶ ἀπὸ τινός, ἡ δ’ ἐκ’ τούτων συγκειμένη, οἷον λόγος τις ἤδη σύνθετος. Ἔστι δ’ ἡ μὲν ἁπλῆ ἀπόφανσις φωνὴ σημαντικὴ περὶ τοῦ εἰ ὑπάρχει τι ἢ μὴ ὑπάρχει, ὡς οἱ χρονοι διῄρηνται (ΑΡΙΣΤΟΤΕΛΗΣ, Περὶ Ἡρμενείας, 17a, IV, V, VI). Nem todo [discurso] é declaratório, mas só aquele em que subsiste o que é verdadeiro ou o que é falso (...) Dos discursos declaratórios, há, por um lado, a declaração simples, como afirmar algo de algo ou negar algo de algo; enquanto que, por outro lado, há a declaração composta, como por exemplo qualquer discurso já composto. Uma declaração simples é 10
Não trataremos aqui da questão da ataraxia dos céticos, pois isso nos conduziria a discussões que fogem do escopo do nosso trabalho. 11 Trata-se do discurso declaratório, ou, para alguns intérpretes, da proposição. Tomaremos neste artigo as duas terminologias indistintamente, como sinônimas.
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 uma emissão de voz com significado acerca de: se subsiste algo ou não subsiste [em alguma coisa], conforme os tempos são separados (ARISTÓTELES, Da Interpretação, 17a, IV, V,
VI).
Não é difícil entender, para não dizermos que é óbvio, que a noção de λόγος ἀποφαντικὸς em Aristóteles deve ser entendida como uma expressão declarativa produto de um processo mental que aqui tomaremos a liberdade de chamar de “juízo”. Em verdade, a expressão de um juízo se manifesta por meio de um discurso declarativo, e esse, por sua vez, dá origem às nossas afirmações e negações. Desse modo, o juízo acaba se configurando como uma operação mental pela qual aceitamos ou recusamos alguma coisa ou declaramos algo, pois o juízo designa assentimento ou discordância, afirmação ou negação, ou mesmo, para fazermos uso das nomenclaturas mais correntes no pirronismo, atribui valor de verdade ou falsidade a algo. Se se pode entender o significado de juízo dessa maneira, e acreditamos ser plausível essa interpretação, estamos diante daquilo que os céticos visam evitar por meio da ἐποχή, isto é, o assentimento a algo cuja verdade ou falsidade não podemos determinar. Não parece ser outro o sentido que Sexto (conforme exposto no livro I das Hipotiposes Pirrônicas) confere à ἐποχή, pois, segundo o próprio Sexto, a “suspensão do juízo é um estado de repouso do intelecto, em virtude da qual nem rejeitamos nem afirmamos nada” (SEXTO, P.H., I, § 10)12. Esclarecida sucintamente a noção de ἐποχή, precisamos, agora, investigar qual o procedimento argumentativo que os céticos se valem para demonstrar a necessidade de nós assumirmos uma postura suspensiva. Nesse senguimento, como os elementos que conduzem à ἐποχή possuem uma ampla diversidade, trataremos neste artigo apenas de duas das razões que os céticos consideram fundamentais nesse processo, ou seja, o elemento da διαφωνία (discordância) e da ἰσοσθένεια (equivalência)13. No ceticismo pirrônico, a problemática relativa à discordância entre os discursos filosóficos se apresenta de modo diversificado nas obras de Sexto Empírico. Esse tipo de argumento, o primeiro dos cinco τρόποι14 elaborados por Agripa, visa demonstrar a existência de uma universal discórdia entre os discursos dos homens nos mais variados âmbitos. Οἱ δὲ νεώτεροι σκεπτικοὶ παραδιδόασι τρόπους τῆς ἐποχής πέντε τούσδε, πρῶτον τὸν ἀπὸ τῆς διαφωνίας, δεύτερον τὸν εἰς ἄπειρον ἐκβάλλοντα, τρίτον τὸν ἀπὸ τοῦ πρός τι, τέταρτον τὸν ὑποθετικόν, πέμπτον τὸν διάλληλον. καὶ ὁ μὲν ἀπὸ τῆς διαφωνίας “ἐποχή δέ ἐστι στάσις διανοίας δι’ ἣν οὔτε αἴρομέν τι οὔτε τίθεμεν” (ΣΕΧΤΟΥ, Π.Υ., I, § 10). O recorte teórico-metodológico do nosso trabalho fará com que nos concentremos exclusivamente nesses dois aspectos. Todavia, explicitamos ao leitor que as razões para a suspensão do juízo elencadas por Sexto Empírico são abundantes em suas obras. 14 O termo τροπός (ou o plural τρόποι) também é denominado pela tradição cética, segundo o próprio Sexto, de λόγοι ou τόποι. Isso se torna bastante claro a partir do que Sexto nos diz em suas Hipotiposes Pirrônicas: “(...) Eles [os antigos céticos] usam ‘argumentos’ ou ‘esquemas’ como sinônimo de ‘tropoi’” (SEXTO EMPÍRICO, P.H., I, § 36). 12 13
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 ἐστι καθ’ ὃν περὶ τὸν προτεθέντος πράγματος ἀνεπίκριτον στάσιν παρά τε τῷ βίῳ καὶ παρὰ τοῖς φιλοσόφοις εὑρίσκομεν γεγενημένην, δι’ ἣν οὐ δυνάμενοι αἱρεῖσθαί τι ἢ ἀποδοκιμάζειν καταλήγομεν εἰς ἐποχήν (ΣΕΧΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Υ., I, § 164-165). Os novos céticos transmitem os seguintes cinco modos da suspensão do juízo: primeiro, [o modo] que parte da divergência; segundo, [o modo] da regressão ao infinito; terceiro, [o modo] que parte da relatividade; quarto, [o modo] hipotético; quinto, [o modo] do raciocínio circular. O [modo] da divergência é aquele segundo o qual descobrimos que acerca dos assuntos propostos tem surgido, tanto da parte da vida [comum] quanto da parte dos filósofos, uma irresolúvel disputa; por isso nós não somos capazes nem de escolher nem de rejeitar algo, e terminamos na suspensão do juízo (SEXTO EMPÍRICO, P.H., I, § 164-165).
O τρόπος da διαφωνία não nos revela outra coisa senão que os discursos filosóficos (ou mesmo as opiniões das pessoas comuns), encontram-se numa interminável e indecidível disputa acerca de uma ampla variedade de questões. Nessa acepção, a própria história das ideias despontaria como a principal fonte de revelação desse antagônico quadro, o qual não pode ser escamoteado por meio de nenhum expediente, pois a própria história das ideias reforça a percepção de que há uma lógica autofágica e antagônica presente nas doutrinas e nos sistemas filosóficos. À luz dessa compreensão do movimento das ideias humanas, os céticos pirrônicos conceberam que instituir um acordo harmonioso entre as diversas doutrinas filosóficas conflitantes – visto que cada uma delas confessa ser a legítima portadora da verdade –, ser-nos-ia impraticável, tanto ao que concerne ao conteúdo da doutrina em questão, quanto no que concerne nos critérios para julgá-la. Não lhes era difícil, aos céticos, constatar o desacordo permanente entre as diferentes posições da filosofia dogmática da antiguidade, as recíprocas condenações e desmentidos, a infinita multiplicidade de suas opiniões inconciliáveis, a contestação incessante dos argumentos adversários. Polêmica secular e sempre renascente, que concernia, não apenas ao conteúdo material da Verdade procurada e pretensamente descoberta, mas à própria noção de verdade e à natureza do ou dos critérios válidos para estabelecê-la. (PORCHAT, Rumo ao ceticismo, p. 15).
Sumariamente falando, o ceticismo constatou que a filosofia parece inexoravelmente condenada a uma insolúvel divergência entre si. Nisso se baseia o argumento da διαφωνία. A evocação desse argumento por Sexto Empírico parte do entendimento de que ao longo de toda a tradição filosófica o caráter antagônico do lógos deu origem a uma proliferação de posições filosóficas contrárias, visivelmente incompatíveis entre si e jamais conciliáveis. Aos olhos dos céticos, a história da filosofia não seria outra coisa senão a história do interminável conflito entre os diversos sistemas filosóficos. Por certo, na medida em que cada filosofia pretende essencialmente se colocar na condição autodeterminante de portadora ou representante da verdade (ἀλήθεια), elas acabam fatalmente sendo conduzidas a uma recíproca
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 exclusão, pois não parece ser outra a consequência dessa querela, uma vez que “pertence a cada filosofia o dever de impor-se como a única e verdadeira Filosofia” (PORCHAT, 2006, p. 16). Essa realidade antagônica sempre presente nas filosofias, que implica numa abordagem crítica e muitas vezes “desqualificante” das suas adversárias, constituiria, desde a origem do pensamento filosófico, a perpetuação histórica da διαφωνία (discordância). Assim, a manifestação do universo conflituoso dos discursos filosóficos, revela-se, na concepção cética, como um problema de caráter indissolúvel, pois os possíveis critérios de solução do problema fazem eles próprios parte da problemática da indecibilidade do conflito. Portanto, diante desse quadro de divergência colossal, os céticos propõem a suspenção o juízo: [...] se mantemos vivas as exigências de uma racionalidade crítica que nos proíbe a precipitação dogmatizante e o assentimento temerário a um ponto de uma doutrina momentaneamente sedutor, então nenhuma decisão filosófica se faz possível, não vemos como atribuir verdade a qualquer doutrina. Nessa incapacidade crítica de escolhermos verdades, temos retido nosso assentimento, ficamos em epokhé. (PORCHAT, Rumo ao ceticismo, p. 119).
Ora, se pudermos compreender a história do pensamento filosófico como a história da divergência inesgotável, então toda pretensão de verdade da filosofia está aparentemente condenada à ruína. Todavia, aqui uma objeção poderia ser dirigida aos pirrônicos, uma vez que seus próprios argumentos poderiam ser direcionados contra eles mesmos, de modo a inserir os céticos, também, como mais uma voz no coro desarmônico das doutrinas filosóficas. Ora, se a adesão a um discurso P não é mais legítimo do que a adesão a um discurso ~P, por que haveríamos de ouvir o discurso cético em detrimento do discurso não-cético? Sexto Empírico, ainda em sua época, buscou traçar as diferenças entre o discurso cético e o dogmático, de modo a fornecer respostas a tais objeções. A famosa metáfora da escada, utilizada quase vinte séculos depois por Wittgenstein, é um dos modos que Sexto, didaticamente, tenta explicar o teor do discurso cético e distingui-lo do dogmático. καὶ πάλιν ὡς οὐκ ἀδύνατόν ἐστι τὸν διά τινος κλίμακος ἐφ’ ὑψηλὸν ἀναβάντα τόπον μετὰ τὴν ἀνάβασιν ἀνατρέψαι τῷ ποδὶ τὴν κλίμακα, αὕτως οὐκ ἀπέοικε τὸν σκεπτικόν, ὡς διά τινος ἐπιβάθρας τοῦ δεικνύντος λόγου τὸ μὴ εἶναι ἀποδειξιν χωρήσαντα ἐπὶ τὴν τοῦ προκειμένου κατασκευήν, τότε καὶ αὐτὸν τοῦτον τὸν λόγον ἀνελεῖν. (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, A.M., VIII, § 481). E de novo, assim como não é impossível que alguém que tenha subido até um lugar elevado por meio de uma escada depois de subir derrube a escada com o pé, da mesma maneira não é inverossímil que o cético, após ter obtido êxito no emprego do argumento que mostra que não existe demonstração, como que se fosse uma escada, também descarte esse mesmo argumento. (SEXTO EMPÍRICO, A.M., VIII, § 481).
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 Na realidade, o discurso cético, diferente do dogmático, não é positivo, não visa exprimir qualquer verdade. Como nos diz Sexto (P.H., I, § 14), enquanto o dogmático estabelece como existente o objeto sobre o qual dogmatiza, o cético, por sua vez, não dá por estabelecido em absoluto seus enunciados, pois não lhe escapa que, os tipos de enunciado tais como “tudo é falso” ou “nada é verdadeiro”, não são mais verdadeiros que falsos, e, por isso, se anulam a si mesmos15. Dizemos, então, que o discurso cético não é tético, pois não estabelece nada efetivamente, não “põe” como verdadeiro o que profere. περὶ πασῶν γὰρ τῶν σκεπτικῶν φωνῶν ἐκεῖνο χρὴ προειληφέναι ὅτι περὶ τοῦ ἀληθεῖς αὐτὰς εἶναι πάντως οὐ διαβεβαιούμεθα, ὅπου γε καὶ ὑφ’ ἑαυτῶν αὐτὰς ἀναιρεῖσθαι λέγομεν δύνασθαι, συμπεριγραφομένας ἐκείνοις περὶ ὧν λέγονται, καθάπερ τὰ καθαρτικὰ τῶν φαρμάκων οὐ μόνον τούς χυμοὺς ὑπεξαιρεῖ τοῦ σώματος ἀλλὰ καὶ ἑαυτὰ τοῖς χυμοῖς συνεξάγει. (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Υ., I, § 206). Acerca, pois, de todas as expressões céticas, deve-se presumir que nós não afirmamos serem elas absolutamente verdadeiras, visto que também dizemos que elas podem ser destruídas por elas mesmas, sendo circunscritas com aquelas relativamente às quais são referidas, assim como os fármacos purgativos não apenas expulsam os humores do corpo, mas também conduz simultaneamente para fora a si próprios junto com os humores. (SEXTO EMPIRICO, P.H., I, § 206).
O cético usa a linguagem de maneira trivial. Ele narra a sua experiência como uma expressão que tão somente indica sua afecção (πάθος) – assim nos descreve Sexto (P.H., I, § 197). O cético, nomeadamente, relata as coisas conforme lhe aparecem, descrevendo o fenômeno, sem pretender que a linguagem tenha poder de instaurar o que quer que seja (PORCHAT, 2006, p. 126). Muito acertadamente escreve sobre esse quesito Porchat, ao dizer que: Precisamente porque não pode o cético, em suspensão de juízo sobre as doutrinas dogmáticas, pretender que seu discurso exprima a realidade, porque ele o vê necessariamente confinado ao domínio de sua experiência fenomênica, tem ele de apresentá-lo como um discurso, por assim dizer, confessional. (PORCHAT, Ensaios sobre o ceticismo, p. 43).
Apresentadas as devidas ressalvas e explicações sobre o λόγος cético, passemos, então, à apreciação do aspecto da ἰσοσθένεια (equivalência) entre os discursos: elemento bastante caro aos pirrônicos no que diz respeito à obtenção da suspensão do juízo. Conjuntamente ao quadro de dissonância apresentado, ergue-se, como mais uma das razões que conduzem à ἐποχή, o aspecto do equilíbrio ou igual força dos argumentos contrários, que representa, sem dúvida, mais um obstáculo à pretensão dogmática de estabelecer um discurso indubitavelmente verdadeiro sobre a realidade.
15 Não
no discurso pirrônico o que alguns estudiosos denominam de “caráter tético”, isto é, uma afirmação positivo do discurso.
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 De um modo geral, no que diz respeito à ἰσοσθένεια, o cético visa demonstrar que nenhum argumento pode ser categoricamente decisivo num debate, pois contra as razões apresentadas a favor de uma determinada teoria sempre será exequível invocar razões equivalentes em força e credibilidade. Com efeito, se assim se dão os confrontos argumentativos, nenhuma das teorias conflitantes poderia definitivamente suplantar a sua rival, logo não haveria qualquer justificativa racional para optarmos por uma teoria em detrimento de outra, pois ambas seriam equivalentes. Em outros termos, o que ceticismo procura mostrar é que em meio às controvérsias dos argumentos contrários sempre poder-se-ia invocar razões igualmente persuasivas para defender ambas as posições conflitantes. Sexto entende essa noção como um dos princípios constitutivos do ceticismo: συστάσεως δὲ τῆν σκεπτικῆς ἐστὶν ἀρχὴ μάλιστα τὸ παντὶ λόγῳ λόγον ἴσον ἀντικεῖσθαι ἀπὸ γὰρ τούτο καταλήγειν δοκοῦμεν εἰς τὸ μὴ δογματίζειν. (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Υ., I, § 12). O princípio básico da disposição cética é que a todo argumento se contrapõe um argumento equivalente, pois, a partir disso, nós pensamos, se segue o não dogmatizar. (SEXTO EMPÍRICO, P.H., I, § 12).
Ora, se não se pode provar que uma tese é mais digna de crédito do que outra, também não se pode, em decorrência disso, colocar-se a favor ou contra uma ou outra tese. Toda e qualquer escolha diante de um quadro inequívoco de equivalência sempre será, na ótica pirrônica, uma escolha arbitrária e dogmática. Com efeito, dado esse quadro de equivalência, os céticos veem como única alternativa suspender o juízo. Charles Landesman ilustra bem esse estado de impossibilidade de decisão no seguinte trecho de sua obra Ceticismo: O cético pirrônico recomenda que, como as razões usadas para dar suporte a qualquer juízo sobre realidades externas e objetos não-evidentes em geral não são melhores do que as razões usadas para dar suporte à sua negação, devemos suspender qualquer juízo a respeito deles. (LANDESMAN, Ceticismo, p. 103).
Na realidade, em boa parte da obra sextiana nos deparamos com o uso sistemático de uma dialética antinômica, que se volta exclusivamente para o exercício de trazer à tona a divergência e o equilíbrio entre os λόγοι. Para por em prática esse procedimento dialético, Sexto segue a lógica comum dos dogmáticos acerca da argumentação e da prova, utilizando instrumentalmente os argumentos dogmáticos contra o próprio dogmatismo, assim, uma vez instaurada a ambiguidade entre os discursos, a dialética cética faz irromper a ἰσοσθένεια, de modo a solapar, epistemologicamente, ambas as teses em disputa16. 16
Em sua obra Rumo ao ceticismo Oswaldo Porchat expõe uma importante explicação sobre o método de antinomias erigidas pela dialética dos céticos. Lá ele demonstra de que modo o ceticismo se apropria instrumentalmente dos argumentos dogmáticos a fim
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 O cético, ao dizer que “a toda razão se opõe uma razão equivalente”, refere-se a toda razão examinada por eles, que nada tem a ver com a razão em si mesma, mas apenas àquela razão empregada pelos dogmáticos ao endossar algo incerto, quer dizer, algo equivalente no que diz respeito a sua credibilidade ou incredibilidade (SEXTO, P.H., I, § 202). No entanto, essa fórmula da isosthéneia não é ela mesma positiva – como já explicamos –, porém, é válida para o cético enquanto instrumento de problematização gnosiológica, e, como nos diz Sexto, constitui-se como um discurso de natureza fenomênica, relato de suas afecções. ὅταν οὖν ἔιπω “παντὶ λόγῳ λόγος ἴσος ἀντίκειται”, δυνάμει τοῦτό φημι “παντὶ τῷ ὑπ’ ἐμοῦ ἐξητασμένῳ λόγῳ, ὃς κατασκευάζει τι δογματικῶς, ἕτερος λόγος κατασκευάζων τι δογματικῶς, ἴσος αὐτῷ κατὰ πίστιν καὶ ἀπιστίαν, ἀντικεῖσθαι φαίνεταί μοι”, ὡς εἶναι τὴν τοῦ λόγου προφορὰν οὐ δογματικὴν ἀλλ’ ἀνθρωπείου πάθους ἀπαγγελίαν, ὅ ἐστι φαινόμενον τῷ πάσχοντι. (ΣΕΞΤΟΥ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΥ, Π.Υ., I, § 203). Portanto, quando eu digo “a todo argumento se contrapõe um argumento igual”, expresso virtualmente isto: “a todo argumento examinado por mim, que estabelece algo dogmaticamente, aparece a mim opor-se outro argumento, equivalente a ele quanto à credibilidade e incredibilidade, que estabelece algo dogmaticamente”; assim, a enunciação desta expressão não é dogmática, mas um relato de uma afecção humana, que é aparente aos que experienciam isso. (SEXTO EMPÍRICO, P.H., I, § 203).
Por fim, à luz dos elementos que foram apresentados, podemos concluir que a divergência (διαφωνία) e a equipotência (ἰσοσθένεια) constituem aspectos fundamentais para o ceticismo pirrônico, e, ao mesmo tempo, são essenciais para a obtenção daquilo que os pirrônicos chamam de suspensão do juízo (ἐποχή). Vimos também que, na óptica da tradição cética, a suspensão do juízo reflete o estado do cético após a investigação exaustiva empreendida com rigor e espírito crítico, uma vez que frente às inconciliáveis discordâncias entre as filosofias e pelo equilíbrio das razões contrárias, o ser humano encontra-se sem as mínimas condições de escolher ou decidir, afirmar ou negar, assentir ou rejeitar (PORCHAT, 2006, p. 119). A divergência e o equilíbrio, incorporados ao corpus argumentativo pirrônico, impele o homem à suspensão do juízo, que representa, por sua vez, o antídoto que o homem necessita para que possa escapar à precipitação dogmatizante. Suspendendo todo assentimento, as perniciosas inquietações da alma – efeito da precipitação de julgamento – poderia ser evitada, e homem, pensavam os céticos, talvez lograsse viver tranquilo.
de colocados em confronto entre si e assim fazê-los se autorrefutarem: “Os argumentos ‘destrutivos’ são construídos no melhor estilo dogmático, seguem os padrões da lógica e demonstração dogmática, são argumentos dogmáticos, sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmáticos ‘construtivos’ com os quais se fazem conflitar. Por que o que importa aos pirrônicos mostrar é precisamente essa ambivalência fundamental e constitutiva da argumentação dogmática, que implica sua autodestruição, graças à manifestação da isosthéneia e à subsequente inevitabilidade da epokhé.” ( PORCHAT, Rumo ao ceticismo, p. 158-159).
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Diaphonía e Isosthéneia: duas vias para a epokhé, pp. 38-48 REFERÊNCIAS
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DOS TRANSMUNDANOS E O ELOGIO DA TERRA
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Diego Vinícius Brito dos Santos2
RESUMO: O objetivo deste escrito é o de evidenciar a concepção postulada por Nietzsche acerca “Dos transmundanos”. Também é o de trazer para uma reflexão filosófica o teor de importância que emana do ensinamento do Zaratustra acerca do “super-homem” como sentido de Terra. Assim, também, o artigo traz a concepção de super-homem como uma superação da noção dos transmundanos. PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche. Dos transmundanos. Terra. ON THE AFTERWORLDLY3 AND THE PRAISE OF THE EARTH ABSTRACT: The purpose of this paper is to highlight the conception postulated by Nietzsche about "On the Afterworldly". It is also to bring to philosophical reflection the content of importance emanating from Zarathustra's teaching about "superman" as a sense of the Earth. Thus, too, the article brings the conception of superman as an overcoming of the notion of the afterworldly. KEYWORDS: Nietzsche. On the Afterworldly. Earth.
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Abreviações utilizadas:ZA – Assim Falou Zaratustra / Thus Spoke Zarathustra EC – Ecce Home CI – Crepúsculo dos Ídolos GM – Genealogia da Moral GC – A Gaia Ciência ABM – Para Além do Bem e do Mal FF – Fragmentos Finais Pr – Prólogo 2 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia (PPGFIL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: diego_svt@hotmail.com.br 3 Optou-se por uso “On the Afterworldly” em conformidade com a tradução de Walter Kaufmann. (In: ZA, I, On the Afterworldly, 1978).
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 INTRODUÇÃO Este escrito almeja evidenciar a concepção postulada por Nietzsche sobre “Dos transmundanos”, e fazer as devidas apreciações filosóficas acerca de sua obra Assim Falou Zaratustra4, com vistas em evidenciar, ainda, a concepção antagônica à Dos transmundanos: o super-homem. Farar-se-á, pois, uma apreciação descritiva sobre o projeto Zaratustra, com vistas em compreender o super-homem enquanto sentido da Terra – concepção postulada, sobretudo, no item 3 do Prólogo do Assim Falou Zaratustra. Por fim, o foco deste escrito está direcionado na análise acerca Dos transmundanos. Esta concepção encontra-se localizada na primeira parte da obra do Assim Falou Zaratustra. Ainda sobre esta parte do Zaratustra, o estudo focara na visão do sentido de Terra, pois uma vez obtido a concepção Dos transmundanos, espera-se evidenciar a importância contida na relação homemvida-Terra. A caracterização do Zaratustra de Nietzsche Para dar-se-á apreciação sobre a concepção Dos transmundanos5 é preciso, igualmente, oferecer a devida apreciação literária e filosófica ao Assim Falou Zaratustra (Also Sprach Zarathustra6) do filósofo Nietzsche. A obra em si foi escrita em quatro partes. Seu desenvolvimento e percurso gramatical foi detalhado em minuciosos comentários elaborados pelo próprio Nietzsche no Ecce Homo7 (Ecce Homo: Wie man wird, was man ist).
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Para a realização do presente escrito utilizar-se-á o livro Thus Spoke Zarathustra (1978) traduzido para o inglês por Walter Kaufmann e a tradução de Mario da Silva (1986) traduzido para o português. Para diferenciar a tradução de Walter Kaufmann da tradução de Mario da Silva usara-se a sigla corresponde a obra (ZA) e o ano. Assim, enquanto “ZA. 1978” com o ano de publicação corresponde a tradução de Walter Kaufmann, “ZA” sem o ano de publicação corresponde a tradução de Mario da Silva. 5 A tradução em português “Dos trasmundanos” será a tradução acolhida no desenvolvimento do texto, salvo em transcrições textuais, onde é possível se apresentar outra tradução diferente da citada. Para este caso, em especifico, transcrevera-se o texto em conformidade com o original, respeitando a grafia e a formatação do original. A tradução acolhida aqui é proposta por Mario da Silva (In: ZA, I, Dos transmundanos). 6 Para as obras de Nietzsche: ao citar no corpo do texto a tradução em português dos títulos das obras, sempre, na primeira utilização do título da obra, será apresentado a grafia do título em sua formatação original, assim, como consta na Digitale Kritische Gesamtausgabe, edição digital das obras completas de Nietzsche, concebida a partir da edição crítica preparada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: In: Nietzsche Werke. Kritische Gesamtausgabe, Berlin/New York, de Gruyter, 1967-. 7 Quanto ao Ecce Home, acolhera-se a tradução feita por Paulo Cézar de Souza (2008) realizando comparações textuais com a tradução de Duncan Large (2007).
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 O Assim Falou Zaratustra demanda tremenda importância para Nietzsche, o que acabou levando-o a dedicar um dos parágrafos do Prólogo do Ecce Home para realizar uma espécie de elogio, com vistas em firmar a importância de sua obra, e, sobretudo, do personagem Zaratustra. Nietsche descreve sua obra como sendo um “presente à humanidade” ao colocar que: “Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito” (EH, Pr 4). Mesmo que a redação da Ecce Home contemple, na terceira parte, comentários sobre alguns dos demais escritos do autor, a expressividade e o destaque ofertado por Nietzsche ao seu Assim Falou Zaratustra, principalmente no Prólogo, é notavelmente uma forma de o filósofo assegurar, com maior vigor, a importância intelectual de seu escrito. Essa pretensão de Nietzsche, em assegurar a importância intelectual do Assim Falou Zaratustra, é percebido na seguinte caracterização posta no Prólogo do Ecce Home: Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é não apenas um livro mais elevado que existe, autêntico livro do ar das alturas -.o inteiro fato homem acha-se a uma imensa distância abaixo dele –, é também o mais profundo, o nascido da mais oculta riqueza da verdade, poço inesgotável onde baldo nenhum desce sem que volte repleto de ouro e bondade. (EH, Pr 4)8.
É, sobretudo, nesta passagem onde Nietzsche retrata a importância de sua obra, mostrandoa como um poço de inesgotável conhecimento. Contudo, a partir desta visão da obra, é possível que existam aqueles que possam ver nela alguma espécie de mensagem profética, e coisas do gênero. Nietzsche percebe esta questão, e, é, por essa razão, para que não haja um desvirtuamento de sua obra, que ele se esforça em realizar um detalhadamente e uma caracterização dela. Além da obra em si, ele também tece uma visão própria do personagem da obra, daquele que fala e ensina: do Zaratustra. Escreve ele: Aqui não fala nenhum “profeta”, nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões. É preciso antes de tudo ouvir corretamente o som que sai desta boca, este som alciônico, para não se fazer deplorável injustiça ao sentido da sabedoria. (EH, Pr 4).
Assim, ao caracterizar o Zaratustra, Nietzsche deixa escrito a sua preocupação que consiste em uma possível tentativa de se oferecer o caráter de profeta à Zaratustra e a seus ensinamentos. Contudo, Zaratustra é sábio de mais, ele não pode ser confundido como profeta, ou com os fundadores de religiões.
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Todos os grifos nas citações dos textos de Nietzsche constam da redação original.
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 Tendo realizado essa apreciação inicial do Zaratustra, torna-se necessário, agora, realizar uma apreciação do interior do Assim Falou Zaratustra, onde, ao se lançar o balde (no poço inesgotável) espera-se puxar alguns dos mais importantes ensinamentos do Zaratustra. Nietzsche relata aquilo que norteia o Assim Falou Zaratustra: “A concepção fundamental da obra - o pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar” (EH, ZA, 1). No entanto, para chegar-se nesta concepção, o leitor, primeiramente, deverá acompanhar o caminho e o “declínio” de Zaratustra, perpassando, assim, outras concepções filosóficas até chegar ao “pensamento do eterno retorno”9. A concepção filosófica de Terra no Zaratustra Para iniciar a busca pela concepção acerca Dos transmundanos, é valido apresentar uma última apreciação descritiva sobre o personagem Zaratustra. És a descrição: “Zaratustra é um dançarino –: como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade” (EH, ZA, 6). Essa caracterização é importante, uma vez que ela proporciona o entendimento de que Zaratustra é um ser completamente antagônico aos transmundanos. Ao lançar-se nas profundezas textual do Zaratustra, a primeira concepção, trazida no balde, é a concepção de “super-homem”10, é através desta concepção que se pretende inaugurar a busca pela concepção Dos transmundanos. É evidenciado, bem no início do item 3 do Prólogo do Assim Falou Zaratustra que: “O superhomem é o sentido da terra. Fazei vossa vontade dizer: ‘que o super-homem seja o sentido da terra!’” (ZA, Pr 3). Este sentido de “Terra” atribuído por Zaratustra ao “super-homem” é entendido aqui como o sentido de vida terrena, a vida dos homens. Assim, é cabido a afirmação de que esse sentido de Terra é outro antagonismo a concepção de além-mundo, do mundo suprassensível, ou quaisquer ideais de mundo que fujam da noção de vida mundana.
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Na tradução de Duncan Large (2007) aparece a seguinte expressão “thought of eternal recurrence” traduzido como “pensamento da eterna recorrência”. Contudo, adotara-se a expressão de Paulo Cézar de Souza (2008) onde a tradução é: pensamento do eterno retorno, salvo em transcrições. (Cf. EH, ZA, 1, 2007). 10 O termo alemão “Übermensch”, no meio acadêmico, apresenta duas ilustres traduções, são elas: super-homem e além-do-homem. A tradução “além-do-homem” é preferida, dentre outros, por Rubens Rodrigues Torres filho (In: Obras Incompletas. 1983, nota 1, p. 228); por Scarlett Marton (1984, p. 70); e por Oswaldo Giacoia (2000, p 11). Contundo, mesmo que ambas as traduções tragam com si a ideia de superação e de elevação do homem, usara-se aqui a tradução “super-homem”.
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 O aspecto do discurso, usado pelo Zaratustra, expressa a definição de Terra a qual tange uma visão de valorização da vida, do “Sim”11 à vida, e na importância da aliança que o homem deve firmar com sua própria vida, e, além desta, com a realidade do mundo, a qual o homem se liga. Consequentemente, a partir desta concepção, não é admissível atribuir um ideal metafísico como sentido e fundamento da vida, estabelecido na noção de um além-mundo, e, consequentemente, desvinculado da vida, pois o sentido de vida só pode ser demonstrado na realidade, no mundo terreno. Desta forma, haja vista a importância emanada da noção de Terra, o Zaratustra roga aos homens: “permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas!” (ZA, Pr 3). É neste ponto onde Zaratustra tece seu alerta sobre os que discursam acerca de esperanças ultraterrenas; os moribundos e desprezadores da vida, aqueles que cortejam e oferecem “mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra!” (ZA, Pr 3). Esses trasmundanos da existência tornam-se aqueles que não reconhecem a concepção de vida enquanto fenômeno da experimentação humana, e se detêm a buscar e constituir ideias que se encontram alicerçadas distantes, para além da noção de vida, chegando ao estabelecimento das “verdades absolutas e imutáveis” as quais, pretensiosamente, determinam uma (pseudo) verdade e uma (pseudo) realidade de vida, de maneira acabada, o que acaba por estabelecer uma negação da experimentação humana. Uma noção antítese a concepção de Terra No presente momento, torna-se necessário explicitar aquilo que Nietzsche concebe por “moral dos fortes” (moral afirmativa da vida) e a “moral dos fracos” (moral negadora da vida), relacionando-os, ainda, aos ensinamentos antítese a vida gerados por doutrinações e instituições que atuam no modo de agir e pensar do homem, sobretudo, pelo cristianismo, o qual desenvolveu a mais odiosa negação de vida.
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Um leitor de primeira viagem que preiteia uma apreciação literária e corriqueira do conjunto de obras de Nietzsche, certamente, em algum momento irá deparar-se com as expressões: Não e Sim. Embora, aparentemente, essas expressões, em uma leitura inicial, não demostrem ou não emanem qualquer importância ou preocupação filosófica, elas expressam, por sua vez, exatamente a noção da concepção que esse artigo preiteia evidenciar, e, além disto, também se dirigem a outra concepção, ensinada, sobretudo, no Assim Falou Zaratustra, o pensamento do eterno retorno. Analisara-se, no decorrer do presente artigo, ambas expressões. Contudo, incialmente, é importante ofertar uma trivial noção destas, para guiar tanto a análise quanto a leitura feita posteriormente. Ao colocar-se ou usar-se a expressão Não, sempre será designado uma intenção literária de negação e inibição, paradoxalmente a essa intenção, o Sim, será usado como um antagonismo (literário ou filosófico), designando, assim, uma afirmação, acrescentando, ainda, em certos casos, do valor de afirmação e valorização.
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 Para Nietzsche, por mais de dois séculos, o cristianismo ofereceu uma moral-metafísica, onde, valendo-se da noção de negação, a religião acabou por “adoentar”12 o homem. Nietzsche relata que: “Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual” (ABM, 47). Desta forma, percebe-se que o cristianismo tornou o homem doente, a partir de coibição de seus impulsos e de suas paixões. A religião a partir de sua disciplina “pôs a ênfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez do domínio, da cupidez, da ânsia de vingança)” (CI, V, § 1). O que leva Nietsche a afirmar que “atacar as paixões pela raiz significa a atacar a vida pela raiz: a prática da igreja é hostil a vida...” (CI, V, § 1). A partir de sua análise acerca da moralidade, Nietzsche chega a “procedência”13 do adoecimento moral do homem, aludindo que o antagonismo da moral sadia, a moral de fracos, entrou em uma espécie de guerrilha contra aquele tipo de moralidade à qual não pode se igualar, assim como afirma Nietzsche em um fragmento final, onde: Tendência da evolução moral. Cada um deseja que nenhuma outra doutrina e apreciação das coisas venha a se impor que não seja aquela em que ele próprio se dá bem. Portanto, tendência básica de os fracos e medianos de todas as épocas tornarem mais fracos os mais fortes, puxando-os para baixo: principal meio, o juízo moral, sendo estigmatizada a atitude do mais forte em relação aos mais fracos: os condicionamentos superiores dos mais vigorosos recebem epítetos maldosos. (FF, 2(168), p. 108).
Nietzsche percebe que na moral dos fracos reside o “ressentimento e a má consciência14”, dois estados decadentes, derivados a partir da coibição posta pelo ideal acético. Esse homem do ressentimento e de moral fraca pretende “transformar em força a própria fraqueza. Transmuta-a em virtude, pretendendo ser deliberadamente fraco e atribuindo o mérito da renúncia, da paciência, da resignação” (MARTON, Scarlett. 1993, p. 55). Assim, a partir da negação, ou como coloca Nietzsche, do Não à vida, as pulsões, aos desejos e ao mundo terreno, este homem do
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A questão sobre o adoecimento do homem moderno, encontra-se, diretamente, relacionado a decadência da moral. A expressão “doença” [Krankheit] foi utilizada 318 vezes nas unidades textuais de Nietzsche, por essas razões, ofertara-se certa atenção e apreciação filosófica a respeito desta questão. 13 A expressão “procedência” (Herkunft) é utilizado neste ponto, para denotar a finalidade do método genealógico empregado por Nietzsche. Recusou-se empregar o termo “origem” (Ursprung), considerando as indicações de Michel Foucault, onde, o referido retrata que “termos como Entestehung ou Herkunft marcam melhor do que Ursprung o objeto próprio da genealogia”. (FOUCAULT, Michel. 2008, p. 20, grifos do autor), 14 Sobre estes dois conceitos, o presente trabalho não pretende se estender tanto, ao fazer uma análise profunda e detalhada sobre eles, desta forma, em respeito ao conhecedor (o leitor), sugere-se a leitura e apreciação da Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, onde Nietzsche trabalha as questões de “Culpa”, “Má consciência” e coisas afins.
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 ressentimento “cria”15 os (pseudos) ideais de mundo, tais como, um “mundo-verdadeiro” ou um céu – figuras de uma recompensa final em troca da renúncia. E, no auge do absurdo, crê-se nas ideias de Deus, alma e verdade. É diante da criação destes ideais que Nietzsche afirma que “em suma, os ideais até agora vigentes, todos ideais hostis à vida, difamadores do mundo, devem ser irmanados à má consciência” (GC, 382). É notório que os ideais e a moral criados no solo religioso, e, ainda, com o hediondo aroma da metafísica platônica, difamaram, negaram e proporcionaram a decadência dos instintos mais humanos, o que levou Nietzsche a relatar que: ‘O que ocorre exatamente, você está erguendo ou demolindo um ideal?’, talvez me perguntem... Mas nunca se perguntaram realmente a si mesmos quanto custou nesse mundo a construção de cada ideal? Quanta realidade teve de ser denegrida e negada, quanta mentira teve de ser santificada, quanta consciência transtornada, quanto ‘Deus’ sacrificado? Para se erigir um santuário, é preciso antes destruir um santuário: esta é a lei. (GM, II, 24).
Assim, a partir dessa passagem Nietzsche evidência, nitidamente, o seu empenho humano em derrubar esses ideais. Contudo, cabe-se questionar qual as possíveis consequências que podem decorrer da ausência dos ideais que presidiram por mais de dois milênios a história da humanidade. O que Nietzsche pretende (re)alocar no lugar dos fúnebres ideais? Uma provável hipótese encontrase na sequência da referida passagem, onde Nietzsche, a partir de uma “visão extemporânea”, alude que algum dia virá uma espécie de “homem futuro”, onde: Esse homem futuro, que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade do nada, do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolver à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem que vim dia... (GM, II, 24.).
Embora Nietzsche esteja, metaforicamente, realizando uma espécie de profecia, é notório que suas palavras vão de encontro com a concepção de super-homem, retratado, principalmente, na obra Assim Falou Zaratustra. Desta forma, confirma-se que o homem futuro é uma espécie de analogia ou uma pré-apresentação do super-homem, uma vez que, na sequência deste aforismo, Nietzsche alude que: – Mais que estou a dizer? Basta! Basta! Neste ponto não devo senão calar: caso contrário estaria me arrogando o que somente a um mais jovem se consente, a um ‘mais futuro’, uma mais forte do que eu- o que tão-só a Zaratustra se consente, Zaratustra, o ateu... (GM, II, 24.).
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É importante frisar que os homens do ressentimento “não criam propriamente valores; limitam-se a inverter os que foram postos pelos nobres” (MARTON, Scarlett. 1993, p. 55).
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 Assim, o super-homem é um possível “produto da criação de novos valores” (MACHADO, Roberto. 2011, p. 55). A partir do declínio da moral de escravos e da queda dos “Ídolos” 16, a concepção de super-homem tomaria o lugar de destaque na vida do homem, possibilitando a retomada da afirmação da vida, da valorização da Terra e na busca pela vontade de potência, assim como apontado, anteriormente, nas falas do Zaratustra. Zaratustra e os transmundanos Neste ponto, a concepção do que Nietzsche compreende e designa por trasmundanos já começa a ser desvelada, contudo, para torna-la ainda mais clara, é fundamental realizar uma apreciação literária e filosófica do item titulado “Dos transmundanos” na primeira parte do Assim Falou Zaratustra. Zaratustra adentra esse item retratando um sonho que tivera em outrora, onde se figurava a visão de um (outro) mundo, um mundo imperfeito; Sobre esse mundo fala Zaratustra: “eternamente imperfeito, imagem, também imperfeita, de uma eterna contradição – inebriante prazer de seu imperfeito Criador” (ZA, I, Dos transmundanos). Zaratustra, em seu sonho sobre o (outro) mundo, realiza aquilo que fazem os transmundanos, ao projetar uma imagem antagônica e surreal do mundo aparente. Contudo, ao perceber isso, – ao fazer comparação com outro tempo, onde projetava ilusões para além do homem –, Zaratustra logo descobre que suas ilusões não passavam de “obra humana e humana loucura” (ZA, I, Dos transmundanos). Essa projeção de ilusão, aludida pelo Zaratustra, e, denunciada por Nietzsche, assemelha-se ao processo de conservação de individuo através da razão ou do estabelecimento de verdades universais. O mundo-verdadeiro nada mais é do que uma crença necessária para a conservação da felicidade dos homens pequenos, destes transmudamos que gritam Não à Terra. No entanto, fala Zaratustra, “‘aquele mundo’ acha-se bem oculto dos homens, aquele mundo desumanado e inumano, que é um celestial nada; e o ventre do ser não fala absolutamente ao homem, a não ser como homem” (ZA, I, Dos transmundanos). Aqui Zaratustra retoma sua ideia posta no início do item, constatando que esse outro mundo, não pode ser descoberto, ele oculta-se por não passar de uma ilusão. A ilusão transformada em verdade é ocultada ao homem, pois: Não temos nenhum órgão para conhecer, para a ‘verdade’: nós ‘sabemos’ (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto poder ser útil ao interesse da grege humana, da 16
Nietzsche, em Ecce Homo, oferece uma definição do que seja os “ídolos”. Expõe ele: “o que no título se chama ídolo é simplesmente o que até agora se denominou verdade. Crepúsculo dos Ídolos – leia-se: adeus à velha verdade...” (EH, CI, 1).
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 espécie: e mesmo o que aqui se chama ‘utilidade’ é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pareceremos. (GC, 354).
Nietzsche, assim mostra que a ilusão – ou crença – mesmo sendo posta pelo fator de necessidade, oculta-se ao homem por este não possuir órgãos para conhecer abstrações de verdade derivadas de loucura humana. Assim, Zaratustra fala: “ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas, sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena que cria o sentido de terra!” (ZA, I, Dos transmundanos). Assim, o homem deve perceber que não há verdades absolutas, e que os ideias postos, só serviram para denegrir a realidade e negar a vida. Para o Zaratustra, o homem deve se tornar o super-homem, este tipo de homem que é artista, dono de si, um ser criador e ao mesmo tempo destruidor de ídolos, capaz de suportar o eterno retorno e afirmar a vida em sua totalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A concepção Dos transmudamos perpassa vários dos mais importantes pontos conceituais da filosofia de Nietzsche. Sua concepção permiti o leitor compreender a tarefa e empenho filosófico que emana dos escritos de Nietzsche. Ao fim deste escrito, compreende-se que Nietzsche utilizou seu Zaratustra para desenvolver o potencial pleno de suas propensões filosóficas, sobretudo, no que concerne a sua crítica aos transmudamos que desprezão a noção de Terra e proporcionam um Não categórico ao mundo aparente. Nietzsche, sobre a máscara do Zaratustra, consegue desenvolver uma espécie de elogio à Terra, proporcionando uma transformação antagônica do pensamento que guiou o homem ao desprezo da Terra, e na criação de ilusões imanadas da loucura humana. Entende-se que ao combater a noção de mundo-verdade ou qualquer ideia que ponha em xeque a validação do mundo aparente, o filósofo desenvolve um ensinamento que comina na restauração na aliança sistemática entre homem e mundo. Os transmudamos são todos aqueles que afiguram e prologam no mundo a decadência niilista, uma vez que, negar o sentido mundano e inverter valores nobres configuram-se meios de fugir da dureza que há na vida. Contudo, Nietzsche ver neste tipo de pensamento inquietudes filosóficas, haja vista sua visão extemporânea acerca do homem. Para Nietzsche, o homem é algo
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Dos transmundanos e o elogio da terra, pp. 49-59 que deve ser superado, na medida em que este homem, como foi em outrora, não consegue mais suporta o fardo existencial, transformando sua vontade de vida em decadência doentia. REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ______. Microfísica do poder. 25 ed. Tradução, organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2008. p. 15-37. GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Editora Moderna, 1993. (Coleção logos). _______. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. _______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _______. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. São Paulo: Círculo do livro, 1986. _______. Crepúsculo dos Ídolos: ou como se filosofar com o martelo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _______. Digitale Kritische Gesamtausgabe. Edição digital das obras completas de Nietzsche (concebida a partir da edição crítica preparada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Nietzsche Werke. Kritische Gesamtausgabe, Berlin/New York, de Gruyter, 1967-). EditorGeral: Paolo D'Iorio. Disponível em: <http://www.nietzschesource.org/texts/eKGWB> (website gerenciada pela Association HyperNietzsche e hospedada pela École normale supérieure, Paris). _______. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. _______. Ecce Homo: How To Become What You Are. Translated with an Introduction and Notes by Duncan Large. New York: Oxford University Press Inc. 2007. _______. Fragmentos Finais (compilação de fragmentos póstumos). Seleção, tradução e prefácio de Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. _______. Genealogia da moral: uma polemica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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HÁ O ANTI-LIMITE? :
SOBRE FICÇÃO, EQUÍVOCO E METAFÍSICA EXPERIMENTAL
Leonel Olimpio1
RESUMO: O artigo pretende explorar o conceito de limite para uma experiência de pensamento da ficção enquanto uma teoria do anti-limite. Inicia-se delineando um entendimento do conceito de limite, trazido em grande parte por filósofos da modernidade, como Kant e Fichte. Tal conceito é utilizado para entendermos uma radicalização (ou sua quebra) nas ficções literárias com a criação de mundos possíveis, e a partir disso esboçar um pensamento do anti-limite. Trata-se propriamente de tentar compreender como as ficções são uma das experiências possíveis de “borrar” os limites da própria experiência. Ficção trataria diretamente de duas coisas: anti-limite e experiência. Desse modo expondo como que as ficções transpassam ou perpassam o que comumente chamamos de natureza, ou o mundo da experiência. Por fim, aponta para a possibilidade de uma compreensão de filosofia enquanto uma metafísica experimental. PALAVRAS-CHAVE: Ficção. Limite. Metafísica Experimental. Filosofia. ABSTRACT: The article aims to explore the concept of limit for an experience of thought as an antilimit theory. It begins by delineating an understanding of the concept of limit, brought to a large extent by the philosophers of modernity, as Kant and Fichte. Such a concept is used to create a radicalization in its literary fictions with the creation of possible worlds, and from there a sketch of the anti-limit. It deals properly with the intent to comprehend fictions as a experience of "blurring" the limits of one's own experience. Fiction would deal directly with two things: anti-limit and experience. Thus exposing as if the fictions transpass or perpass what we usually call nature, or the world of experience. Finally, it points to the possibility of an understanding of philosophy as an experimental metaphysics. KEYWORDS: Fiction. Limit. Experimental Metaphysic. Philosophy.
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Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará UECE. E-mail: leonelolimpio@outlook.com
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia." Guimarães Rosa
1. Limite: por uma zona segura Ora, qual é esse alhures, por onde corre a fronteira visível de nossa cultura, em qual etapa do caminho encontra-se o limite de nosso domínio, o límen onde começam as coisas diferentes, os sentidos novos? Pierre Clastres
A filosofia kantiana trouxe o problema do limite para o centro do debate filosófico; suas distinções sendo disso um exemplo: fenômeno e coisa em si, conhecer e pensar, uso teórico e uso prático permeiam toda a modernidade filosófica. Dirá o próprio Kant no prefácio da Crítica da razão pura: “deste modo não podemos nunca ultrapassar os limites da experiência possível, o que é precisamente a questão mais essencial desta ciência[a metafísica]”(KANT, 2013, pág. 21). Dito de outro modo: metafísica trata de limite. O papel central das antinomias da razão teórica da mesma pode ser lido como um sintoma de que não se deve ultrapassar certos limites. As questões kantianas “que posso saber?” (Metafísica), “que devo fazer?” (Moral), “que me é permitido esperar?” (Religião) e “que é o homem?”(Antropologia), são mais que indicadores que o problema do limite não se trata apenas de uma questão teórica, mas também de um sentido prático (vide a própria revolução copernicana), e portanto o conceito de limite é intrinsecamente ligado ao conceito de experiência. Desse modo conectamos metafísica, limite e experiência. Por isso o conceito de limite é fundamental para a compreensão da modernidade, pois ele aparece de diversas formas em relação à natureza (por exemplo: quais limite da experiência externa do sujeito), que também será um denominador comum2 das culturas, como se fosse a construção de um solo para o crescimento de um sujeito, um tipo de sujeito que pode emitir diferentes representações de cultura. Tal conceito, limite, não deixa de aparecer sempre que nos remetemos à modernidade, ele nos parece uma noção que medeia o pensamento dos filósofos modernos. Não é à toa que muitos definem a Crítica da razão pura como um livro que trata justamente de definir todo e qualquer limite do pensamento (puro) e do conhecimento em relação à experiência. Por isso, trataria especificamente de traçar linhas e contornos para o humano. Desse modo seria possível assim obter uma segurança com relação aos intentos humanos em diversos aspectos: metafísicos, epistemológicos, morais, políticos, culturais, etc. Assim se dá a dobra do pensamento kantiano com seus conceitos tão importantes como 2 Viveiros de Castro
utiliza tal expressão em O Nativo Relativo, pág.120.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 coisa em si, numeno, fenômeno, limite, experiência e sensibilidade. Pois acreditamos aqui que tais conceitos de uso tradicionalmente epistemológicos tratam também diretamente de problemas políticos, e vice-versa. Por isso, a revolução copernicana não seria apenas uma revolução de caráter epistemológico, mas político também. Assim para compreendermos melhor como entendo que Kant delineia o conceito de limite com relação ao que chamamos de realidade talvez seja necessário explicitar algumas questões. Kant sustenta que a principal categoria para a apreensão da realidade (fenomênica), é a sensibilidade. No processo hylemórfico de constituição, as categorias somente podem atuar uma vez tendo a sensibilidade lhe fornecido o material3, conteúdo (Inhalt). Em linguagem kantiana: intuições sem conceitos são cegas, conceitos sem intuições são vazios. O que isso quer dizer? As categorias nada conhecem a partir de si mesmas, elas são alienantes em si e por si. Isto é primordial para a compreensão da antropologia kantiana, pois assim se sustenta como que o sujeito transcendental precisa da experiência, esse é processo de “transformação do homem”. Seria então a razão por si mesma impotente no processo de conhecimento. Com a razão pensamos, mas nada conhecemos. A razão por si mesma é produtora de antinomias. Nesse sentido o conhecimento é totalmente dependente da articulação entre sensibilidade e entendimento, com a mediação da imaginação. Prova isso a distinção entre conhecer e pensar, formulada por Kant já no prefácio da Crítica da razão pura. Tal distinção é feita no famoso prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura, em que Kant distingue o que é pensar e o que é conhecer uma coisa. Nós podemos até pensar os objetos como coisas em si, embora não possamos conhecê-los. O que está sendo dito aqui? Para conhecer um objeto é preciso poder provar a sua possibilidade, seja pela experiência ou a priori pela razão. Exemplo, diria Kant: o espaço, o tempo e a causalidade. Mas pensar, você pode pensar no que quiser, não entrando em contradição consigo mesmo, ou seja, que seus conceitos sejam possíveis, embora esses conceitos não precisem ser necessariamente correspondidos a um objeto. Exemplo: Deus e Alma. Como Kant parte da experiência possível, embora interessado fundamentalmente na dimensão formal dessa experiência, então não se pode prescindir da sensibilidade, faculdade receptiva, apesar do objetivo kantiano estar justamente voltado para a explicitação das condições subjetivas de possibilidade desta recepção. Como dirá o próprio Kant nos prolegômenos: 3 Aqui está
um exemplo claro de como no pensamento kantiano afetamos e somos afetados pela realidade externa.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 A experiência consiste na conexão sintética de aparecimentos (percepções) em uma consciência, na medida em que essa conexão é necessária. (Kant, Prolegômenos, IV: 305 pág.81)
Bem, eu me remeti diretamente a essas questões apenas para darmos uma noção do que Kant concebe como conceitos e problemas necessários para pensar a problemática epistemológica. Isso feito, e assim se percebe a tensão desse problema da relação direta da crítica kantiana não só com a ciência da época, especificamente a física, mas também com a própria noção de metafísica. Entre a crítica e a possível metafísica enquanto crítica existe a possibilidade da metafísica como teoria do conhecimento, como teoria da representação. Mas qual o problema? Parece ser preciso uma metafísica enquanto fundamentação do discurso científico. Mas isso não era novo, algo inédito o que Kant estava falando, outros mesmos já haviam feito, exemplo enorme: Descartes. Contudo, Kant tenta enfrentar eles mesmo, os racionalistas e os empiristas. Ou seja, o início da modernidade é altamente criticado, a chamada metafísica da subjetividade é epistemologicamente excessiva. Outros também vão comentar que Kant estaria fazendo uma metafísica da subjetividade na medida em que tenta explicitar as condições do que ele chama de sujeito transcendental, contudo como será exposto mais à frente no texto, utilizarei tal noção para dialogar diretamente com as ideias de Gabriel Catren, que vê no sujeito transcendental uma das maiores heranças do pensamento kantiano. Kant chega a afirmar que a metafísica e a matemática contem princípios a priori, os da matemática conseguem se referir sempre a objetos de uma possível intuição sensível, mas que ela não consegue ascender do conhecimento do sensível para o supra-sensível, e assim a ciência que consegue avançar do conhecimento do sensível para o do supra-sensível é a metafísica4. Ora, mas a ciência seria em si o procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro, pois é estritamente demonstrativa e baseia-se em princípios a priori seguros. Isso Kant aceita. Contudo, é estritamente contra o que chama de dogmatismo, que é a presunção de seguir por conhecimentos puro por conceitos, apoiado em princípios sem perguntar como e com que direito os alcançou. De quem ele está falando? Da filosofia. Ou seja, aqui Spinoza, Leibniz, Descartes: auf wierdesehen. O dogmatismo de que Kant fala é a associação com essa metafísica da modernidade que não havia feito a crítica. O que Kant não para de dizer, de insistir é que sem a crítica, sem a filosofia transcendental ninguém caminha nem pra frente nem pra traz. Não tem mais por exemplo, como
4
KANT, I. Os Progressos da Metafísica. Pág.95.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 fazer filosofia, após Newton, do mesmo jeito que se fazia antes. Ou você admite que está fazendo outra coisa ou admite que Newton tem sua relevância. Resumindo: o dogmatismo opera sem uma crítica prévia da sua própria capacidade. E assim Kant coloca a noção de limite, através do criticismo, no centro do debate. Contudo, precisamente onde chegamos agora no nosso problema da relação de discurso do mundo? Ou seja, da própria possibilidade de alguém ou algo falar do(s) mundo(s)? Sejam filósofos, literatos, cientistas, poetas, etc. Para Kant os cientistas não tratam do mundo. Para Kant os cientistas tratam dos fenômenos, que não é o mundo em sua completude. Do mundo talvez tratem os deuses, entidades divinas, ou alguma coisa do tipo, e Kant diria, “eu não sou Deus”. A filosofia crítica seria então a preparação necessária para o estabelecimento de uma metafísica sólida. Qual o problema que está sendo levantado aqui? De que o mundo em sua completude não é apenas fenômenos. Passíveis de conhecimento científico, os fenômenos não descrevem o mundo em sua totalidade, e até porque a ciência mesma não consegue conhecer as coisas em si mesma (numeno). Ficthte, Schelling, Hegel Schopenhauer tomarão isso para si de modo que tornará a coisa em si objeto de conhecimento. Poderíamos dizer que estes se perguntavam: qual o nome da coisa em si? Que tem sido então a metafísica para Kant? Uma ontologia não criticada. É preciso passar por aquilo que nunca aconteceu, por aquilo que nunca aconteceu à metafísica, uma coisa que para Kant não podia esperar mais: a Crítica. Lebrun defende, por exemplo, que a Crítica é uma metaontologia que deve mostrar a futilidade de todas as disputas metafísicas. Meta-ontologia no sentido de leituras e explicitações dos discursos ontológicos. Lebrun utiliza o termo ontologia como o que seria o objeto da crítica kantiana se tornar, assim, para o francês a Crítica enxerga uma luz no fim do túnel dessas lutas infindáveis, se chama ontologia. O intento kantiano seria o de elucidação ontológica daquela metafísica não criticada. Ou seja, o que Kant pretende é torcer, fazer uma dobra daquilo que é chamado de metafísica por autores como Leibniz, Spinoza, Descartes. Assim seria explícito para Kant que dos fenômenos trata o conhecimento científico, mas quem ficaria então no lugar para discutir os conceitos, problemáticos e conhecimentos metafísicos? E assim compreendemos quão sério é o estatuto do numeno para tais pensadores. Contudo, o que nos chama a atenção é que a coisa em si, pode ser tratada praticamente como um conhecimento de ficção. A coisa em si é ficção, justamente no sentido de que presumimos que aquilo que chamamos de “mundo real” (fenômenos) nos atingem e nos impactam, mas atrás deles está o
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 seu caráter ficcional, as coisas em si, que nunca vemos, nunca conhecemos, mas experienciamos 5. A coisa em si apareceria não como uma extrapolação (da polarização sujeito-objeto), mas sim no entre. Ela é uma existência do entre, do limite. E assim, como tudo que se encontra numa experiência de equivocidade não existe enquanto tal, porque se equivoca. A coisa em si, no fundo, é um equívoco. Percebe-se então como se instaura o limite no discurso filosófico. O limite seria preciso para saber até onde podemos ir enquanto humanos. Trata justamente de estabelecer que o limite nos limita, que tal noção é condição de possibilidade para estabelecer uma crítica da metafísica tradicional. Por que? Diria Kant: porque tais metafísicos não entenderam os limites que nos atingem e nos afetam. Portanto, a questão que se pode desdobrar daqui é que há movimentos do limite. Seguindo então as intuições expostas no parágrafo anterior, e tentamos nos mover junto a elas,o que acontece se presumirmos que há movimentos de todos os lados? Como experienciamos o que se coloca justamente contra aquilo que intenta nos limitar, o limite? E se há um anti-limite?
2. Um outro limite, ou: ficção e equívoco A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Guimarães Rosa
Tratarei nessa parte de explicitar as noções de ficção e equívoco, que irão nos propor a possibilidade de um transpassar pelo conceito de limite. Tais noções se tornam potentes para se pensar um outro conceito de (anti-)limite porque podem ser catalisadoras de uma outra compreensão de problemas não só metafísicos, como também políticos, pela possibilidade de entendimento de diversas formas do que comumente chamamos de “prática”, e assim isso impulsiona a uma maior abertura à experiências que a própria filosofia possibilita enquanto uma atividade de confrontar, enfrentar e experimentar. Tomamos assim a experiência da ficção, não só enquanto criação de mundos6, mas também a própria experiência da leitura dessas ficções, que acabam tocando também no que já tratamos aqui como limite. Por isso, dentre as tantas possíveis interpretações sobre as criações de mundos ficcionais, elas passam e cruzam o conceito de limite. Podemos compreendê-las como uma 5 Compreendo
que a noção utilizada aqui de ficção dialoga bastante com as concepções de Hans Veihinger, como em Philosophie Des Als Ob, contudo entrar em tais questões seria nos alongar demais, e para tratar com a devida atenção esse autor necessário deixo para um momento futuro. 6 Ver Fictional worlds de Thomas Pavel, e Possible Worlds in Literary Theory de Ruth Ronen.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 radicalização de uma experiência-limite, tornando assim problemático tal conceito. Portanto, não trataria justamente de impor limites ou de tentar buscar uma zona segura possível de leitura e de experiência, mas justamente o contrário, de uma zona de turbulência e de um rompimento de barreiras. Assim tais experiências-limite se tornam equívocas. E aqui equívoco é entendido justamente como falado por Viveiros de Castro, “o equívoco é uma categoria propriamente transcendental, uma dimensão constitutiva do projeto de tradução cultural próprio da disciplina”7. Porque o equívoco, pode parecer ligado a uma noção de causa e efeito, ainda mais na experiência ficcional, ou seja, eu leio e me equivoco, mas não apenas isso, pois não se trata propriamente de uma causalidade, mas de uma intempestividade. Pela própria existência do equívoco é que é possível ler e experienciar. Em síntese: a irrupção das experiências-limite não só causam equívocos, mas o equívoco mesmo é que é condição de possibilidade do anti-limite. Portanto, não se trata de assegurar uma experiência perfeita em questão de ordenamento das relações envolvidas, não é uma simetria de polos e de ressonâncias. Por isso que nesse sentido toda ficção é um traço da imperfeição, é uma assimetria. Contudo, a ficção não é uma imperfeição porque é comparada com o real, pois assim o que entendemos como “real” é ele mesmo assimétrico, mas porque ela é um borrar8 dela mesma. A ficção para ser ficção sempre borra a sua própria linha, a sua própria existência. Além de nunca ser reduzida em si, ela rompe as linhas das fronteiras. Se definíssemos a ficção como um funambulista caminhando em sua corda, ela pode até partir de um limite, o ponto A de onde inicia seu trajeto, mas o final é sempre outro, não porque é outro local no espaço e no tempo, mas porque quando se coloca o pé na corda é a irrupção do limite, é a quebra de fronteira. A experiência literária da ficção, se tiver que ser de algum modo definida, é ela mesma a passagem do limite para a inconstância. A inconstância daquele que não sabe mais em que mundo está pisando. A experiência da ficção parece assim ser uma inconstância em intensidade. O problema parece passar pelo momento que Catren aponta quando diz “ali onde a existência é exposta à intempérie da turbulência trans-mundana9”. A própria experiência do sujeito é colocada em dúvida porque trata de uma irrupção do limite da experiência única. Trata-se ao mesmo tempo de uma transformação do sujeito e um confrontamento com outra natureza, outra 7 VIVEIROS DE CASTRO,
E. Metafísicas Canibais, pág. 90. Agradeço aqui a Alexandre Nodari pelo uso do termo “borrar”, por ter me atentado enquanto que eu insistia em termos como “transbordar” ou até “extrapolar”, em alusão às quebras de fronteiras não só das possíveis e diversas experimentações do sujeito em si, mas também às “linhas de contorno” da experiência (ficcional). 9 CATREN, G. Pleromática o las mareaciones de elsinor, 2017, pág. 85. 8
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 realidade, outro mundo. Para irmos de encontro diretamente com o que foi falado na primeira parte desse texto, podemos explicitar a noção de sujeito transcendental utilizada por Catren. O conceito de sujeito transcendental falada pelo autor argentino se liga diretamente com a noção de perspectivismo transcendental dita por ele mesmo. Dirá: Perspectivismo transcendental: não apenas toda experiência depende do estado (da posição, do movimento) do sujeito empírico no espaço-tempo, mas também a posição definida por seu tipo transcendental no (que denominaremos) espaço K dos tipos transcendentais possíveis. (Catren, 2017, pág.17)
O que podemos interpretar daqui é que o sujeito transcendental é um sujeito capaz de mudar, digamos assim, sua própria “transcendentalidade”. Em suma: há diversos sujeitos transcendentais que experienciam de diversos modos. E com isso não muda apenas o sujeito, mas propriamente o conceito de experiência. Ou seja, há diversas formas de experienciar algo. Como dirá o autor em outra passagem: a experiência se diz de diversas formas. O que também nos leva ao conceito de fenoumeno colocado por Catren, uma junção dos conceitos de fenômeno e numeno de Kant. De certa forma poderíamos dizer que se Fichte intenta uma junção dos polos ( o próprio sujeito e a coisa sem si) advindo da categoria da imaginação, ela seria ainda do polo do sujeito. Tal embricamento falando por Fichte seria tratado por Catren de forma “desbordante” para fora, e não para dentro (Fichte). Trataria não apenas de uma fusão ou extra-polação (dos polos), mas uma interpretação em excesso dos meios também. O que de certa forma também é chamado por Kant de fenômeno. Fenoumeno seria propriamente a noção de que o campo experimental, um plasma10 é condição de possibilidade de confronto de mundos. Isso implica em diversos problemas da própria experiência literária. Como no caso de que o parece ser o ponto da experiência não se trata de nenhum dualismo ou de polaridades, mas sim entremeios, ou seja, a experiência ficcional ela consiste, por ser ela mesma encontro de mundos, em ser uma expressão do fenoumeno. Também implica no problema de como que aquele mundo ficcional nos influencia, e também até que ponto nós influenciamos aquele mundo ficcional. Como assim? Por exemplo, se partirmos do pressuposto de que o mundo daqui (presumidamente “real”) não influencia o outro, toda leitura, toda linguagem exposta em qualquer texto não mudaria de interpretação11 com o tempo. Aqui compreendemos o sentido de ficção do mesmo modo como atribuímos às ficções do 10
Ibid, pág. 22.
11 Não é à toa que poderíamos hoje muito bem ler, se quiséssemos,
Dom Quixote através do acontecimento das fake news. Seria assim as fake news um problema (além de político) metafísico, ontológico, epistemológico por lidar diretamente com a experiência direta do que comumente chamamos de “realidade”? Contudo, o prolema é demasiado extenso para podermos comentar melhor aqui.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 que ocidentalmente convergimos em chamar de mito, por exemplo, o mito de Narciso. Narciso nunca existiu, sempre foi um “mito”. Contudo, o narcisismo existe e o tomamos inclusive como algo de grande impacto no ocidente. As ficções não existem, mas nos atingem, nos afetam e nos transformam. Nunca uma experiência ficcional deixa de transformar quem a experimenta. Assim, percebemos como a ficção, que não é presumidamente real, produz efeitos no real. Aqui vemos explicitamente como se dá a relação de coisa em si (numeno) e fenômeno. Ou seja, podemos de diversas maneiras pensar o numeno, pensar as ficções, diria Kant, mas nunca conhecêlas. Mas qual a ressonância disso? Tais ficções é que de fato nos atingem12. Por isso a noção de fenoumeno de Catren é importante para podermos pensar em algo como uma irrupção não só do limite, mas da própria capacidade de compreensão da experiência do sujeito transcendental. Assim, o limite é aquilo que como diríamos no sertão cearense, é resvaloso. E assim o fenoumeno também é uma possibilidade do resvalar do limite. Todo limite não é limite em si, ele só é o que é porque resvala, porque não limita de fato, apenas atinge e afeta outras bolhas, outras bordas, outros movimentos. Todo movimento resvala porque todo limite é resvaloso. Por isso o limite não existe, apesar de ser real. O limite seria aquilo que se dá no entre das coisas, é sempre uma passagem sem ponte apesar de às vezes imaginarmos estar atravessando uma ponte. Ele é justamente aquilo que quando apontamos e pensamos estar passando sob ou sobre, não existe mais, tornou-se borrado. Trata-se assim, de experimentar o que não se vê, como dito por Guimarães Rosa, “eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo!”13. Toda experiêncialimite ou contatos-limite são assim equívocos. Como define Viveiros de Castro o movimento de equivocidade controlada: A imagem de um movimento de equivocidade controlada - “controlada” no sentido em que se pode dizer que andar é um cair continuamente para rente de um modo controlado. O perspectivismo indígena é uma doutrina do equívoco, isto é, da alteridade referencial entre conceitos homônimos; o equívoco aparece ali como o modo por excelência de comunicação entre diferentes posições perspectivas, e portanto como condição de possibilidade e limite da empresa antropológica. (Viveiros de Castro, 2015, 87)
Nesse sentido o limite trataria de zonas de transgressões. O limite se torna uma ficção porque seria ele mesmo uma zona de turbulência de diversos sujeitos e mundos. Lembremos dos diversos problemas implicados pela experiência ficcional, não se trata apenas de que uma vez se colocado nela, não se sai o mesmo, mas de que além disso há uma confusão (co-fusão) de mundos e da própria
12 13
Não é à toa que Schopenhauer irá chamar a coisa em si de Vontade. Ela que faz e perfaz todo o mundo, inclusive não só o humano. ROSA, G. Grande Sertão: Veredas, 2019, pág. 32.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 noção de eu e sujeito. Diria novamente Viveiros de Castro: Um equívoco não é um 'defeito de interpretação', na medida em que não percebemos que há mais de uma interpretação em jogo. E, sobretudo, essas interpretações são necessariamente divergentes, elas não dizem respeito a modos imaginários de ver o mundo, mas aos mundos reais que estão sendo vistos. Nas cosmologias ameríndias, o mundo real das diferentes espécies depende de seus pontos de vista, porque o “mundo em geral” consiste nas diferentes espécies, é o espaço abstrato de divergência entre elas enquanto pontos de vista. (Viveiros de Castro, 2015, 92)
Assim, os modos imaginários de ver o mundo tornam-se uma multiplicação de mundos, pois toda experiência ficcional acaba sempre sendo uma multiplicação de relações e de afetações causadas por quem se atreve a dar o passo no entre, e que assim se arrisca a romper e tornar irruptiva a experiência do limite. Não se trata de tornar o limite uma zona segura e que seja possível delimitar cada passo, mas de que as experiências se confundem (co-fusão). A experiência ficcional é ela mesma um anti-limite.
3. De uma literatura como antropologia especulativa a uma filosofia como metafísica experimental “este mundo é muito misturado...” Guimarães Rosa
Como diz Nodari, “a literatura é, hoje, no Ocidente, um dos poucos espaços em que ainda podemos experimentar isso – experimentar o que significa dizer eu”, da mesma forma tiramos essas conclusões para afirmar outras: a filosofia é também uma das experiências possíveis não só de significação do eu, mas também dos mundos e diversas naturezas. Ou seja, a experiência filosófica é ela mesma uma mudança de mundos, uma alternância (in)constante de mundos. Por isso, diríamos analisando outra afirmação discutida por Nodari, se chegamos à conclusão de que a literatura é uma antropologia especulativa14, parece que podemos dizer também que, em suas diversas atribuições, a filosofia é uma metafísica experimental. Tal expressão que utilizo aqui tomo de Oswald de Andrade, de um texto intitulado Escolas & Ideias15. Os dois conceitos juntos parecem ser uma mistura potente para se pensar a própria experiência de pensamento que a filosofia pretende fazer não apenas enquanto uma disciplina que pretende ser um saber, mas também enquanto a ação do filósofo como um experienciar e enfrentar mundos. As metafísicas se tornam experimentais justamente porque se torna necessária uma 14
NODARI, A. A Literatura Como Antropologia Especulativa, 2015. Manifesto Antropófago e outros textos, 2017, pág.18.
15 ANDRADE, O.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 experimentação transunweltica dos diversos mundos. Sem ela, caímos no monismo dogmático e não só colonizamos diversos outros mundos com a noção clássica de identidade, como também não permitimos nós mesmos experienciá-los das diversas formas possíveis. E por isso não adianta analisar tais pensamentos pela própria noção de limite moderna, mas sim de um transgredir do que limita. Para uma experiência do anti-limite é preciso inclusive uma outra noção de experiência. Oswald de Andrade escreve em A crise da filosofia messiânica que há uma contraposição entre filosofia do patriarcado, e do matriarcado; uma messiânica, a outra antropofágica; uma em que há um luta pela identidade pura, a outra pela troca como valor. Se a murta tem razões que o mármore desconhece16, a filosofia antropofágica tem experiências que a filosofia messiânica nega. Não se trata também apenas de uma experiência ser considerada metafísica, mas também de uma metafísica ser possível de ser experimentada. Ou seja, não estamos em um “enclausuramento” metafísico. Nesse sentido, há diversas experiências ocidentais que tornam possível experiências outras. Se caracterizarmos então que há diversas metafísicas e diversas ontologias, acho isso plausível, mas talvez para melhor compreensão seja possível dizer que a ontologia é a experiência metafísica por excelência da filosofia ocidental, pois outras, como as ameríndias, não estão baseadas no conceito de ser. Assim, quem sabe, a metafísica, talvez ainda mais após Nietzsche, seja uma tentativa de “desontologizar” a metafísica, tornando-a não-clássica, em tentativa de romper com seus criadores, os gregos. Assim, como seria possível multiplicar as metafísicas? Transmundando. A experiência de diversos mundos é que faz possível inclusive a crítica da clássica metafísica ocidental. Pode assim, as guerras de mundos serem enfrentadas por uma filosofia como metafísica experimental. Evidente, as guerras de mundos ocorrem há diversos séculos, e eles mesmos, os que venceram muitas batalhas dessas guerras, sabiam que essa experiência não era apenas metafórica de “invasão do mundo dos outros”17. O filósofo não como um diplomata de mundos, mas como um experienciador de mundos. Assim, a viagem é sua morada. Em um expresso transunweltico, é preciso reinventar inclusive aquilo que não se é, para no momento que se intentar sê-lo, já termos que viajar mais ainda. Metafísicas e viagens só são possíveis porque também toda experiência do anti-limite é tal como uma experiência ficcional. Tais possibilidades de experiência do sujeito (uma expressão moderna demasiada moderna)
16 VIVEIROS DE CASTRO, 17 A
E. A Inconstância da Alma Selvagem, 2017, pág. 191. experiência colonizadora na América é um excelente paradigma da guerra de mundos.
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 não se dá à toa, como percebemos que tal problema ressoa inclusive em Lévi-Strauss, quando este mesmo diz que as Mitológicas se aproximam dos intentos kantianos, “Ao deixar-se guiar pela busca dos imperativos mentais, nossa problemática se aproxima da do kantismo, embora caminhemos por outras vias, que não conduzem às mesmas conclusões”18. Fazendo o próprio antropólogo reconhecer que estaria tratando de um kantismo sem sujeito transcendental, como diz, “reconhecemos perfeitamente esse aspecto de nossa tentativa nas palavras de Paul Ricouer, quando a qualifica, com razão, de 'kantismo sem sujeito transcendental'”19. Por isso ressalta-se mais ainda a importância decisiva da compreensão das condição de possibilidade da experiência para a compreensão do limite e do anti-limite. Porém, a primeira se dá pela sua necessidade de segurança, a segunda pela necessidade da intempestividade. Remetemos assim ao que é falado por Catren, quando o ponto seria justamente de que a maior herança seria a da noção de sujeito transcendental, pois ele, de diversas formas, torna-se por excelência o conceito de condição de possibilidade da experiência. Contudo, talvez trate-se mais de que tais variações do sujeito, o exercício da crítica já é uma mudança da estrutura-transcendental do sujeito, já é um trans-variar do sujeito. Por isso “um sujeito crítico tem a possibilidade de tornar-se um sujeito especulativo, um sujeito capaz de trans-variar suas estruturas transcendentais”20, isso sim nos parece um ressoamento movimento crítico kantiano. A própria imaginação sempre propõe uma imagem extramundana (no sentido de multiplicar mundos). Quase do modo falado por Fichte, toda imaginação é "emergenciativa"/emergencial. No fundo seria preciso ir de encontro a noção da condição de possibilidade do limite, a noção de que possibilidade a experiência (sem ser a categoria da sensibilidade), ou seja, o sujeito transcendental. E assim o sujeito transcendental é um sujeito “borrante”. A variação das experiências se dá justamente por um “borrar” do limite. É possível borrar o limite. Não só as ficções nos ensinam e nos proporcionam isso, como tantas outras experiências, inclusive ocidentais, para não termos que nos alongar mais e falar diretamente do xamanismo e das práticas ameríndias. Compreender as travessias das nossas experiências é no fundo uma criação de tantas outras. Só se caminha em uma travessia porque ela deixou de ser uma travessia, mas tornou-se um mundo mesmo. Não se trata assim de uma filosofia que se torne explicitamente “da experiência”, até porque explicitar em demasia é fazer inclusive que as coisas deixem de exercer seus diversos 18
LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido (Mitológicas vol.1), 2010, pág. 29. pág. 30. 20 CATREN, G. Pleromática o las mareaciones de elsinor, 2017, pág. 35. 19 Ibid,
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Há o anti-limite?, pp. 60-73 movimentos. Porém, seria sim de poder experimentar algo além das linhas, dos contornos, dos limites. O anti-limite se põe porque às vezes não cabemos em lugar nenhum. Dentro, fora, meios. REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald. A Crise da Filosofia Messiânica. In Obras Completas VI. 2ed. Introdução de Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Civilização Brasil, 1978. ______. Manifesto Antropófago e outros textos. Organização e coordenação editorial Jorge Schwartz e Gênese Andrade. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017. CATREN, Gabriel. Pleromática o las mareaciones de Elsinor. Buenos Aires: Hekht Libros, 2017. ______. The “Trans-Umweltic Express”. Disponível em http://www.glass-bead.org/article/thetrans- umweltic-express/?lang=enview , 2016. CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado – pesquisas de antropologia política. Tradução Theo Santiago. São Paulo: Ubu Editora, 2017. DELEUZE, Gilles. A Filosofia Crítica de Kant. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horionte: Autêntica Editora, 2018. FOUCAULT, Michel. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Edições Loyola, 2011. ______. O que é a Crítica? seguida de A Cultura de Si. Tradução de Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2017. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 8 Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. ______. Escritos pré-críticos. Tradução de Jair Barboza... [et al.] - São Paulo: Editora Unesp, 2005. ______. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. ______. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2014. LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 2016. LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica, tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. Sobre Kant. Tradução de José Oscar Almeida Marques, Maria Regina Avelar Coelho da Rocha, Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 1993. LÉVI-STRAUSS, Levi. O cru e o cozido. (Mitológicas v.1). Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2010. NODARI, Alexandre. A Literatura como Antropologia Especulativa. Revista da Anpoll no 38, p. 7585, Florianópolis, Jan./Jun. 2015 ______. Limitar o limite: modos de subsistência. Disponível em: www.osmilnomesdegaia.eco.br. Acesso em: 22/12/2018. ______. Alterocupar-se: obliquação e transicionalidade na experiência literária. estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 57, e5715, 2019. ______. “A vida oblíqua”: o hetairismo ontológico segundo G.H. O Eixo e a roda, Belo Horizonte, v.24, n.1, p. 139-154, 2015. PAVEL, Thomas G. Fictional worlds. Cambridge: Harvard University Press, 1986. TORRES FILHO, R. R. O Espírito e a Letra. São Paulo, Ática: 1975. Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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LA URBE COMO ESCENARIO DE LA VIOLENCIA DE GÉNERO EN LOS CUENTOS “INTERIOR <<L>>” DE JULIO RAMÓN RIBEYRO Y “A LÍNGUA DO P” DE CLARICE LISPECTOR Gustavo Costa1 RESUMEN: “Interior <<L>>” fue publicado en la obra Los gallinazos sin plumas del autor peruano Julio Ramón Ribeyro y “A língua do P” publicado en la obra A via crusis do corpo de la autora brasileña Clarice Lispector. Este ensayo tiene como objetivo describir y analizar, por medio de imágenes urbanas, la violencia de género hacia la mujer a través de las protagonistas. El cuerpo de la mujer es observado en ambos cuentos como un “bien público” que puede ser tomado y abusado por el sexo opuesto. Destacaremos el espacio urbano como punto fundamental en el abordaje de la violencia de género, ámbito situado dentro de un contexto donde la condición femenina se presenta infringida en estos espacios públicos. PALABRAS-CLAVE: Violencia de Género. Ramón Ribeyro. Clarice Lispector. Literatura Latinoamericana. The city as the scene of gender violence in the tales "Interior << L >>" by Julio Ramón Ribeyro and "A língua do P" by Clarice Lispector ABSTRACT: "Interior << L >>" was published in the work Los gallinazos sin plumas by the Peruvian author Julio Ramón Ribeyro and "A língua do P" published in the work A via crusis do corpo by the Brazilian author Clarice Lispector. This essay aims to describe and analyze, through urban images, gender violence against women through the protagonists. The woman's body is observed in both tales as a "public good" that can be taken and abused by the opposite sex. We will emphasize the
1 Titulação: Mestre em Estudos Hispânicos - Doutorando em Espanhol. Vínculo profissional ou acadêmico: Texas Tech University Lubbock /Texas – E.U.A E-mail para contato: gustavo.costa@ttu.edu .
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La urbe como escenario de la violencia de género, pp. 74-83 urban space as a fundamental point in the approach of gender violence, an area located within a context where the female condition is violated in these public spaces. KEYWORDS: Gender Violence. Ramón Rybeiro. Clarice Lispector. Literatura Latinoamericana.
Querían decir: ¿Te fijaste en la muchacha bonita? Ya lo vi todo. Es linda. Me la echaré al plato. (Lispector, traducción nuestra)
El espacio urbano y la violencia se conectan en ambos cuentos, sea en una casa en una zona periférica de una metrópoli sea dentro de un tren en movimiento. Sin embargo, esa violencia va dirigida a una figura esencial: la mujer. Según Fachin “La literatura puede servir como un instrumento poderoso para la descodificación de la condición humana, lo que constituye un recurso valioso para la comprensión de los derechos humanos en su dimensión libertadora” (apud BENTES, 2016, p. 149). Por esta razón, el objetivo de esta investigación no es solamente que el lector perciba la violencia hacia la mujer a lo largo de los cuentos, sino también una forma de denunciarla a través de la literatura y procurar entender las razones por las cuales ocurre, además de fijarnos en como la figura masculina es responsable por la violencia en los espacios donde suceden los hechos. Podemos definir la violencia de género como actos o comportamientos de un determinado género hacia el otro que puede causar el óbito, disturbios psicológicos y físicos a la persona que sufre ese tipo de violencia. Es principalmente evidenciado en el poder patriarcal masculino, su abuso de poder comparado al rol de la mujer en la sociedad. La literatura puede ser considerada una vía a través de la cual la denuncia logra ser constatada. Aunque la obra literaria sea una creación del autor por veces fantástica, igualmente fomenta la realidad vivida y la reflexión hacia esa realidad. La literatura tiene distintas funciones, como la exposición de significados y sentidos dentro de un texto, de expresión u opinión, de denuncia. Por ende, a través del arte literario logramos percibir el espacio social, incluso, por veces, el arte que miente. Clarice Lispector publica la obra A via crucis do corpo en 1974. Empezaremos esta investigación con la presentación de uno de los cuentos de la obra de Lispector “A língua do P”. La violencia de género es un tema abordado en los días actuales. Pese a ello, Lispector presentó esa discusión en los años 70. La escritora fue muy criticada en Brasil en aquel entonces debido a la Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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La urbe como escenario de la violencia de género, pp. 74-83 temática de los cuentos de esa obra que “[…] generó duras críticas, siendo usados términos como “basura” y “pornografía” para definirlo en la prensa nacional” (apud FERNANDES, 2015, p. 341, traducción nuestra). El cuento analizado presenta la historia del personaje Cidinha, profesora, de clase media, que vive en Minas Gerais. Ella toma un tren que va hacia la ciudad de Rio de Janeiro para, desde ahí, tomar un avión con destino a Nueva York. Dos hombres en el tren empiezan a asediarla sexualmente, ella, a su vez, se encuentra en un callejón sin salida, teniendo que hacerse de prostituta para que no la violen en este mismo tren “Entonces pensó: si yo me hago de prostituta, ellos desisten, no les gustan las putas” (LISPECTOR, 1974, p. 77, traducción nuestra). Consecuentemente, notamos el dominio masculino sobre la mujer, así como el hecho de que la mujer es víctima de la violencia no sólo sexual, sino también moral. La violencia moral puede ocurrir a través de gestos, de acciones, por medio escrito, es decir, formas simbólicas donde el insulto y la calumnia ofenden la integridad del otro. Es igualmente intimidante, como en el caso del personaje Cidinha, que tiene que fingir ser algo que no es para que no sufra la violencia. El espacio urbano es fundamental para discutirnos la violencia en contra de la mujer en el cuento. Según Lefebvre “el espacio es mucho más que un mero escenario, receptáculo pasivo, de la realidad social y en sí mismo es un actor activo de pleno derecho […] para Lefebvre el espacio se convierte en un ámbito privilegiado para la interacción social […]” (EZQUERRA, 2014, p. 122). En el cuento estudiado, la acción se pasa en un tren, considerado un espacio público de derecho, de ir y venir a todos los individuos. Sin embargo, las personas están sujetas a sufrir distintos tipos de violencia en estos ámbitos urbanos, principalmente las mujeres, consideradas vulnerables con relación a la supremacía masculina. Por ende, nos damos cuenta de que el cuerpo de la mujer es tratado como un simple objeto del deseo masculino. En el cuento, según Carlos Magno Gomes “[…] hay tanto la violencia verbal cuanto la física. La autora describe como el deseo de la violencia se confunde con el deseo sexual, mostrando las tenues fronteras de esas ansias masculinas” (apud BENTES, 2016, p. 161, traducción nuestra). La violencia física se debe al hecho de que, por haberse fingido ser prostituta, al personaje Cidinha la sacaron del tren y la pusieron en la cárcel por tres días. Cuando finalmente pudo salir, llegó a Río de Janeiro. En un quiosco, leyó en un periódico que habían violentado y matado a una chica que había entrado en el tren donde la habían detenido (a Cidinha) “En la pequeña estación pintada de azul y rosa estaba una joven con una maleta (la joven que sería asesinada). Miró a Cidinha con desprecio. Subió en el tren y ese se marchó” (LISPECTOR, 1974, p. 78, traducción nuestra). En consecuencia, el haberse fingido ser prostituta salvó a la protagonista de Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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La urbe como escenario de la violencia de género, pp. 74-83 la muerte, aunque le hayan mandado a una cárcel. No obstante, a la otra muchacha que probablemente era una chica común y corriente, de poca edad, le tocó la muerte. El cuerpo de la mujer, entonces, se convierte en una posesión del hombre, donde es comparado a un objeto el cual ese mismo hombre puede jugar, tomándolo y dejándolo cuando se le apetezca. La mujer y su presencia en el espacio público es propicia a la cultura de la violación. Cidinha es una mujer autosuficiente y nos enteramos de ello por el hecho de que viajaba sola en el tren, siendo su destino final los Estados Unidos. El tren, como espacio público, puede ser considerado un entorno del miedo para las mujeres, donde su seguridad está en juego, de ese modo, el simple hecho de ser mujer se convierte en un peligro para el sexo femenino. El uso cotidiano del espacio tiene que ver con la percepción que cada individuo tiene de esos entornos. El espacio social es el ámbito de encuentros, donde se puede gozar de un simple paseo, a la vez, ser víctima de un asalto o de acosos sexuales. Luego, el ir y venir en el espacio urbano es un reto diario que las mujeres tienen que enfrentar, sin saber qué es lo que les puede pasar, así como Cidinha y la otra chica del cuento, que son ejemplos de mujeres que intentan protegerse en un entorno donde el hombre tiene el poder. Es importarte fijarnos en la perspectiva de la protagonista mediante su manera de pensar. Fingirse de prostituta es el modo que encontró de salvarse la propia vida, es decir, creyó que si los hombres la encontrasen tierna o temerosa sería más fácil que lograsen violarla, así que, fingiéndose de prostituta, no les llamaría tanta la atención, sino les causaría rareza “Sacó de su bolso el lápiz labial y se pintó exageradamente. Y empezó a canturrear” (77, traducción nuestra). Vale señalar que los hombres en el tren hablaban una lengua inventada con la letra P. Pensaban que únicamente ellos la entendían. Lo que pasa es que Cidinha entendía aquella lengua y se enteró del plan “Cidinha fingió no comprender: entenderles sería peligroso para ella. El lenguaje era aquel, que usaba cuando era niña, para defenderse de los adultos” (76, traducción nuestra). Por lo tanto, ¿Cómo denunciaría estos hombres a los policías si en el tren ellos hablaban la lengua del P?. La protagonista no iba a lograr explicarles a los agentes lo que le había pasado, por esta razón, la llevaron a la cárcel, la insultaron y se quedó allí por tres días antes de que la dejasen ir. Se nota que el problema fue la “aparente” falta de compostura de la protagonista en el espacio social que es simbolizado por el tren. No hubo una consideración por parte del billetero o del policía, no pensaron que allí pudo haber pasado un caso de violación. Su autoayuda muestra que la mujer está sola y es juzgada sea por su apariencia sea por su comportamiento.
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La urbe como escenario de la violencia de género, pp. 74-83 Lispector, no obstante, en el final del cuento dice que Cidinha tenía ganas de que la violasen, además de que a lo largo de la narración nos enteramos que la protagonista era virgen. Después de haber dejado la cárcel, se quitó el maquillaje y ya no se veía como una “prostituta”. Sin embargo, algo raro pasaba por su mente “cuando los dos hombres habían hablado de violentarla, ella había tenido ganas de que lo hicieran. Era una descarada” (78, traducción nuestra). Por consiguiente, esas palabras evidencian la libido femenina tanto como la masculina, aunque en este caso, la protagonista sentía la culpabilidad por pensar en que le hubiese gustado el acoso sexual “Epe sopoupo upumapa puputapa”2 (78). Por lo tanto, es víctima de sus propios deseos y de la sociedad que enjuicia a la mujer y su moralidad. Se percibe, por ende, que la mujer tiene sus propios deseos sexuales. Pensarlo es aceptable, sin embargo, decirlo seria un crimen en su contra, lo que hace con que la propia Cidinha, en este caso, piense que tener ciertos deseos sea inadmisible en su papel de mujer. Seguimos con el cuento “Interior<<L>>” de Julio Ramón Ribeyro. El cuento fue publicado en su obra Los gallinazos sin plumas en el año de 1955. Ribeyro nasció en Lima, capital del Perú, siendo aquella ciudad el espacio donde se ubican las historias de su escritura. El contraste social urbano es uno de los temas más conectados a su literatura, principalmente en aquel entonces del crecimiento urbano de Lima, en los años 50. Mario Vargas Llosa, escritor peruano, comenta sobre los cuentos de Ribeyro “Son fragmentos de una sola alegoría sobre la frustración fundamental del ser peruano: frustración social, individual, cultural, psicológica y sexual” (apud TERRONES, 2014, p. 3). Abarcaremos, a través del cuento de Ribeyro, así como lo hicimos por medio del cuento de Lispector, la denuncia con relación a la violencia de género en el espacio urbano. El cuento relata la historia de la familia Enriquez: una niña de quince años llamada Paulina y su padre colchonero. El hermano y la madre de Paulina murieron, así que ella vive sola con su padre. El padre se entera de que hace dos meses que Paulina no va a la escuela, encontrándola dormida por la tarde en la casa “Paulina prorrumpió a llorar, mientras trataba de cubrir sus piernas y su vientre impúdicamente al aire” (RIBEYRO, 1955, p. 37). A partir de esta actuación de la niña donde su cuerpo es descrito con detalles, su padre se entera de que está embarazada “- Estás muy barrigona - dijo acercándose- ¡Déjame mirarte!” - y a pesar de la resistencia que le ofreció logró descubrirla” (37). El impacto que tiene el padre al enterarse del embarazo de su hija menor de edad se engrandece
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Y soy una puta (traducción nuestra).
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La urbe como escenario de la violencia de género, pp. 74-83 cuando descubre por su propia hija que Domingo Allende, maestro de obras de una edificación cercana, la “violó”. El espacio urbano en este caso es observado por medio de la imagen de la construcción del edificio, además de la propia ocupación del personaje en aquel espacio arquitectónico. La representación de la ciudad acarrea la inseguridad y el miedo de la rutina diaria en el espacio social urbano. Este espacio se ve reflejado en los entornos en los cuales la actuación de los personajes de la obra tiene lugar. No dejemos de mencionar la propia casa de la familia donde Paulina denuncia la “violación sexual” que sufrió por parte de Allende. Al analizarnos el simbolismo de la casa como escenario de violencia, percibimos “Em geral, a casa expressa a estrutura do habitar nos seus aspectos físicos e psíquicos. Está pensada, ou deve ser pensada, como um sistema de actividades concretizado como um espaço que engloba lugares de carácter distintos3” (RODRIGUES, 2015, p. 21). La casa, por ende, no es solo considerada un espacio físico, sino también psicológica, donde el residente se enfrenta a su regocijo o a sus infortunios. La “violación”, según Paulina, ocurrió en la casa, siendo este el entorno de su fatalidad “Una tarde que yo dormía se metió en el cuarto, me tapó la boca con una toalla, y…” (RIBEYRO, 1955, p. 38). De acuerdo con Paulina, Allende tendría aprovechado del hecho de que su padre no estaba en casa para abordarla y violentarla. La voz femenina en el cuento se da a través de Paulina, quién sufrió la “violación”. No tiene testigos, sólo su propio testimonio. Su padre va detrás de Allende a exigirle explicaciones, este le echa la culpa a la chica “- ¿Qué tengo que ver yo? ¡Ella me buscaba! Pregunte no más en el callejón. Me citó para su cuarto. “Mi papá no está por las tardes” dijo ¡Y lo demás ya sabe usted…!” (39). Se percibe, en el discurso de Allende, la violencia moral al decir que la niña se aprovechó de la situación en la búsqueda de sexo. Además, el hecho de que Domingo haya citado el callejón nos proporciona la idea de espacio social, donde los individuos pueden ser testigos sea de violencia sea de sugerencias sexuales. Encontramos, por ese motivo, la incertidumbre. ¿Quién estará diciendo la verdad? El único hecho concreto es el embarazo de Paulina. Claro está que Allende comete un crimen, dado que tiene relaciones sexuales con una chica menor de edad “- ¡Te vas a fregar! Ya fui donde mi abogado ¡Te
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En general, la casa expresa la estructura del habitar en sus aspectos físicos y psíquicos. Está pensada, o debe ser pensada, como un sistema de actividades concretizado como un espacio de lugares de carácter distintos (traducción nuestra).
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La urbe como escenario de la violencia de género, pp. 74-83 vamos a meter en la cárcel, por abusar de menores! ¡Ya verás!” (40), dice el padre que busca justicia al defender a su hija. En otro momento del cuento, el colchonero, a la vez, es autoritario y tiene a su hija como si fuera su sirvienta. Con un tono de ordenanza, le pide que vaya a comprarle cerveza, en seguida, cuando regresa, con este mismo tono, le ordena que la destape. Se confirma, entonces, el machismo que se ve presente en el habla del padre Quando falamos relações de Gênero, estamos falando de poder. À medida que as relações existentes entre masculino e feminino são relações desiguais, assimétricas, mantêm a mulher subjugada ao homem e ao domínio patriarcal 4 (SILVA, 2012, p. 2).
Por ende, Paulina está sometida a los decretos del colchonero no sólo como padre, sino también como hombre, siendo este el género social dominante. Domingo Allende y un ingeniero se dirigieron a la casa de la familia a proponer un acuerdo financiero para que el padre no denuncie Allende a las autoridades. En este momento, el padre de Paulina hizo con que su hija les sirviera la cerveza a los dos hombres “Aquella vez Paulina también llegó con la cerveza pero, cosa extraña, hubo de servirle al ingeniero y a su violador” (RIBEYRO, 1955, p. 42), lo que evidencia, una vez más, no sólo el poder masculino sobre el femenino, sino también la vergüenza a la que el personaje es sometida ante a su “violador”. Tanto el padre como la hija aceptan el dinero, corrompiéndose “Ella también bebió un dedito y los cuatro brindaron por “el acuerdo” (42). Por ende, la dignidad humana se degenera a través del dinero. El padre dejó de trabajar por semanas y empezó a gastar el dinero en los ámbitos urbanos que empezó a frecuentar, por ejemplo, en una chingana5, jugando en el hipódromo o haciendo compras en la feria. En este escenario, por lo tanto, se conecta la corrupción con la violencia contra la mujer, sea por el hecho de que el padre piense solo en sí mismo y en sus comodidades sea por parte del individuo que embarazó al personaje Paulina que, a través del dinero, los calló. Al final, el dinero les sirvió para la compra de medicina para Paulina después de que abortó a su criatura “Los restos de su pequeño capital se fueron en remedios. Cuando por las noches el farmacéutico le envolvía los grandes paquetes de medicina, ¡él no dejaba de inquietarse por el tamaño de la cuenta” (45). El dinero se fue, la criatura no vio la luz del sol, Paulina siguió haciendo el trabajo doméstico mientras su padre se sentía agraviado con la vida por el destino que les tocó. Después de todo lo que le pasó a Paulina, el colchonero, sórdidamente, le propone lo siguiente “- Paulina, estoy cansado, 4
Cuando hablamos de relaciones de género, estamos hablando de poder. A medida que las relaciones existentes entre masculino y femenino son relaciones desiguales, asimétricas, mantienen a la mujer subyugada al hombre y al dominio patriarcal (traducción nuestra). 5 Una forma de teatro popular chileno del siglo XIX. Las chinganas eran hosterías, restaurantes y cafés que rebosaban la vida nocturna e imbuidos del espíritu de las repúblicas latinoamericanas recién independizadas (traducción nuestra).
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La urbe como escenario de la violencia de género, pp. 74-83 estoy muy cansado… ¡Necesito reposar!… ¿Por qué no buscas otra vez a Domingo? ¡Mañana no estaré por la tarde!” (47). Se observa, entonces, la falta de carácter del padre que busca prostituir a su hija, vendiéndola a Domingo Allende. Por si fuera poco, Paulina le contesta “Lo Pensaré” (47). Se observa, una vez más, la violencia moral hacia el personaje femenino, de esta vez, por el propio padre que quiere hacer del cuerpo de su hija un negocio. Lo que se percibe con la respuesta de Paulina es que posiblemente Domingo Allende no le haya violado, sino que ella estuvo de acuerdo con la relación sexual, dado que, anteriormente, había aceptado el acuerdo e, incluso, había brindado con él. A pesar de ello, hay otro posible escenario: ¿Estaría físicamente y emocionalmente cansada del trabajo doméstico que el padre le encargaba? ¿Estaría dispuesta a sacrificarse para tener un poco más de comodidad? La condición de mujer inferior y sierva es lo que podemos visualizar en este cuento de Ribeyro. Se observa el género femenino siendo capaz de querer cambiar a todo costo su realidad por una mejor calidad de vida. Por ello, tenemos en este cuento a un arte que engaña, un espejo que distorsiona la realidad, siendo el lector el que va a enjuiciar las acciones de la protagonista. En conclusión, ambos cuentos demuestran la realidad de la mujer y la violencia que sufren en los distintos espacios de la ciudad latinoamericana, por ejemplo, en el transporte público, en la cárcel, en la calle, en el callejón, es decir, espacios sociales donde la mujer necesita estar atenta a que no sea víctima de la violencia contra su cuerpo. El deseo sexual que ambas protagonistas de los cuentos sienten es reprimido. Cidinha llega a pensar que le gustaría haber sido violada mientras Paulina posiblemente haya mentido para que su padre no le pusiese la culpa por estar embarazada. El miedo y la vergüenza por ser mujer y tener deseos es constante en la vida de los personajes femeninos. No obstante, en ambos cuentos, el hombre cree ser dueño del cuerpo de la mujer, tratándolo como un simples objeto sexual. La ciudad es el entorno donde sucedieron los hechos, siendo el escenario de las posibles violaciones, ámbitos públicos propicios al acoso sexual, donde la mujer no tiene control de su propio cuerpo. En los años 70, en Brasil, todavía no se conocía la expresión “violencia contra las mujeres”. Para que se pudiera entenderlo y debatirlo se tuvo que, primeramente, crearlo. Por fin, el machismo en el espacio urbano es constante e intolerante, lo que hace con que su dominio sea absoluto, mientras la mujer es vista como un ser inferior, donde sus deseos no tienen un mínimo valor.
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RETORNO DO LEVIATÃ:
CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DA GUERRA Pedro Henrique Magalhães Queiroz1 RESUMO: Existe uma crise de valorização real do Valor, tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias que é a substância social do Capital como fim em si mesmo (ou, ainda, como Conceito em si e para si), concepção esta expressa na fórmula de Marx acerca de uma inversão basilar ocorrida na sociedade moderna, em seu modo de produção, a saber: D-M-D’. O dinheiro, que é fenômeno do Valor como Ser, ao tornar-se alfa e ômega, princípio e fim deste modo de produção, instaura uma dinâmica pulsional, uma espécie de carência fundamental, uma autocontradição inseparável da guerra como mecanismo instaurador, mantenedor e compensatório desse cavalo de eletricidade chamado progresso. Diagnosticar, em alguma medida, as linhas gerais desse enlace de economia e guerra é o intento deste artigo. PALAVRAS-CHAVE: Leviatã. Economia. Guerra. ABSTRACT: There is a crisis of real appreciation of Value, socially necessary labor time for the production of commodities, which is the social substance of Capital as an end in itself (or as Concept itself and for itself), this concept expressed in the formula of Marx about a basic inversion that took place in modern society, in its mode of production, namely: D-M-D '. Money, that is a phenomenon of Value as Being, when it becomes alpha and omega, the beginning and end of this mode of production, establishes a drive dynamics, a kind of fundamental lack, a self-contradiction inseparable from war as an instituting, maintaining and compensatory mechanism of that horse of electricity called progress. To diagnose, in some measure, the general lines of this link of economy and war is the intent of this article. KEYWORDS: Leviathan. Economy. War. 1 Mestre em
Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Email: pedro.magalhaes-7@outlook.com.
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microcopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite. (DRUMMOND, Sentimento do mundo).
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 1. Prelúdio tupiniquim “Ao vencedor, as batatas!”, disse o filósofo Joaquim Borba dos Santos, o Quincas Borba, personagem de Machado de Assis, e fundou o humanitismo. A luta pela sobrevivência, na sua visão, seria produto de uma escassez natural, e a vida mera demonstração de força. Borba é uma expressão pitoresca, ao mesmo tempo séria e cômica, do modo como no século XIX alastrava-se na cultura uma compreensão naturalizante, biologizante da experiência social, aquilo que viria a ser chamado de darwinismo social. Não custa lembrar que o território no qual Machado escreve sua prosa ganhará uma conformação nacional, a brasileira, a partir do modo como o militarismo destas terras se sairá vitorioso no Paraguai (1864-1870) e em Canudos (1896-1897), carregando nas suas entranhas a ideologia do progresso em matiz positivista. Não à toa a transição conciliada à República ter sido levada a cabo pelos marechais, que acabaram por inscrever na bandeira o emblema: ordem e progresso. O que não é outra coisa senão: segurança armada e desenvolvimento econômico. Positivismo, no sentido de uma naturalização do social, e guerra estão inseparavelmente articulados. O que faz um autor brasileiro como Paulo Arantes, dialogando com os apontamentos do projeto homo sacer de Giorgio Agamben, associar o estado de emergência, de sítio ou de exceção a um estado de necessidade, a uma espécie de anterioridade da necessidade frente à liberdade da decisão política, é algo que pode nos ajudar a compreender o fenômeno da guerra em um sentido até, em um primeiro momento, aparentemente similar ao do primeiro filósofo, o Borba, mas precisamente distinto: Por mais que Clausewitz tenha se esforçado por entroncar a violência cega da guerra na rota política da razão e da vontade, ela nunca deixou de emanar do reino mesmo da necessidade, expresso na ilimitação inerente a todo esforço bélico. Daí a relutância que os Estados pelo menos precisam aparentar quando lançam mão desse último recurso. Afirmar que a guerra é um mal necessário é mais do que apenas parolagem edificante, é admitir que ela procede dessa esfera inferior e tenebrosa em que as sociedades estão cruamente empenhadas em impedir sua destruição. 2
Existem dois possíveis caminhos para compreendermos a vigência desse estado de necessidade socialmente produzido. De um ponto de vista político-jurídico, está associado à emergência das lutas sociais proletárias no interior do Estado republicano burguês, instaurando a necessidade de sua contensão para além dos marcos da regulamentação jurídica – problema que 2
ARANTES, Extinção, [Diante da guerra], p. 27.
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 pode ser estendido à questão indígena, das populações negras periféricas, dos imigrantes refugiados. De um ponto de vista econômico-financeiro, está associado aos contextos de crise da forma de produção e de reprodução social baseada no capital. Por hora, precisamos nos ater apenas ao segundo ponto. Se pudermos tomar um paralelo histórico como ponto de partida para a compreensão do significado contemporâneo da guerra, esse paralelo está na semelhança entre o contexto do entreguerras, na primeira metade do século XX, e o contexto atual, as duas primeiras décadas do século XXI. O denominador comum de ambos chama-se: refluxo. O primeiro como refluxo do universalismo ocidental expresso nos valores iluministas de igualdade, liberdade e racionalidade, de autonomia e felicidade a partir do progresso material da civilização industrial, no contexto da crise econômica de 1929, da mobilização nazifascista que lhe sucedeu e, enfim, na guerra mundial. O segundo como refluxo do discurso de integração mundial pelo mercado no contexto da globalização expresso nos atentados de 11 de Setembro, na ocupação de Iraque e Afeganistão até seu ponto culminante na crise de 2008 e na intensificação da economia de guerra nas guerras civis pelo mundo, como no caso da Síria. O movimento que está na base de ambos não é bem o da instância biopolítica, da relação entre poder soberano e vida nua enquanto relação de matabilidade; isso é a expressão de um estado de coisas que tem sua origem na contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e o caráter das relações sociais de produção; precisaríamos, antes, de uma crítica da economia política da guerra. Precisaríamos situar essa dimensão do problema recorrendo a Walter Benjamin, inserido no primeiro contexto, e seu diálogo com a crítica da economia política de Karl Marx; e recorrendo também a Paulo Arantes, inserido no segundo contexto, particularmente seu diálogo com o teórico e estrategista militar prussiano Carl von Clausewitz. Articulado a esses dois autores, poderíamos recorrer, enfim, aos apontamentos de Robert Kurz sobre a relação entre dinheiro mundial e poder mundial, entre o capital mundial e as suas guerras de ordenamento mundial. 2. Pacto entre Hydra e Leviatã (...) ontologia do antigo secretário de Defesa norte-americano Donald Rumsfeld: as coisas que nós sabemos que sabemos; as que nós sabemos que não sabemos; e, as mais inquietantes, as que nós não
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 sabemos que não sabemos. Como estas últimas lhe tiravam o sono, acordava atirando a esmo (...) (ARANTES, Depois de junho a paz será total). Em outros tempos até se poderia dizer: busco uma morte honrosa. O ethos guerreiro fundamentou-se em uma época na qual a guerra seguia o mesmo princípio da atividade produtiva, o artesanal. Assim como ao “homem” cabia a virtude do bem-fazer o seu ofício, a sua téchne, na guerra cabia ao guerreiro demonstrar sua coragem, sua força, sua destreza. A guerra era o momento de afirmação da potência individual e de um povo; ainda que atroz, permitia uma realização subjetiva e cultural. Outra é a configuração da guerra técnica3, que tem sua origem no invento e uso das armas de fogo e seu vértice na Grande Guerra (1914-1918), que modifica substancialmente as noções de tática e estratégia. Isso porque assim como na esfera da atividade produtiva, no caso do mundo moderno o trabalho4, a maquinaria industrial vai gradativamente eliminando a centralidade do “homem” o tornando um apêndice da máquina, seu supervisor, até o ponto atual de torná-lo cada vez mais supérfluo, na guerra o conflito passa a depender cada vez menos do “minúsculo corpo humano”5 e cada vez mais do aparato técnico-científico. Na guerra de trincheiras não havia mais tarefa humana que não a imobilidade (imobilidade na infantaria), ao mesmo tempo em que a sociedade civil, o maquinário industrial, as redes de comunicação, enfim, todo o aparato produtivo, comunicativo, de transporte6 e humano era mobilizado massivamente para a destruição. A imobilidade no interior de uma cova quilométrica se contrastava com a mobilidade dos aeroplanos que arremeçavam bombas e gás. Não há honra, não há virtude, não há um grande feito, apenas descarte e morte, silêncio e impotência diante do aparato destrutivo tornado maior que seu criador, a anulação do “homem” diante da máquina. 3
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“Ei-la, a guerra: a guerra, tanto a ‘eterna’, de que tanto se fala, como a ‘última’ – a mais alta expressão da nação alemã. A essa altura, já deve ter ficado claro que atrás da guerra eterna há a ideia da guerra ritual e, atrás desta, a ideia da guerra técnica, e também que os autores não conseguiram compreender essas relações. Mas a última guerra tem uma característica especial. Ela não foi somente a guerra das batalhas de material, foi também a guerra perdida. Perdida, num sentido muito particular, pelos alemães” (BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [Teorias do fascismo alemão], p. 64). “O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração (...)” (MARX, Grundrisse, [Introdução], pp. 57-58). “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano” (BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [Experiência e pobreza], p. 115). “A revolução no modo de produção da indústria e da agricultura tornou, sobretudo, necessária uma revolução nas condições gerais do processo social de produção, isto é, nos meios de comunicação e de transporte” (MARX, O capital, [Desenvolvimento da maquinaria], p. 440).
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 O limite desta anulação é posto no culminar da segunda Grande Guerra (1939-1945), com o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Com ela a humanidade se encontra diante de sua pulsão autodestrutiva e a concebe como fenômeno estético de primeira ordem7; a sua extinção, não mais o feito de um corpo estranho viajando desde um lugar tão-tão distante, nem mesmo sua fraqueza em adaptar-se no curso da seleção natural das espécies, como feito seu, para consigo mesma, torna-se iminente, presente, e faz soar um alarme que soa sessenta vezes a cada minuto, instaurando o tempo da emergência, fazendo iniciar a abertura do sétimo selo, uma contagem regressiva até o possível dia da consumação não redentora dos tempos. No final das contas, as guerras mundiais, tais como se apresentaram na primeira metade do século XX, são produto de algo denominado imperialismo. A corrida do ouro pelo monopólio econômico, consolidado pelo mercado financeiro, que se estende, funda e é fundado, na disputa pelo monopólio da violência, esse o significado da primeira Grande Guerra. No conflito subsequente, a segunda Grande Guerra, entra em cena o elemento nem tão novo da crise econômico-financeira, em que a guerra se apresenta como a salvaguarda da valorização do capital, a indústria bélica, a mobilização das forças produtivas para a destruição, como o ponto de sustentação da magia do mundo moderno: D – M – D’. Seu milagre de (trans)consubstanciação do valor, como representação abstrata do trabalho, em dinheiro, e de sua multiplicação em mais dinheiro, esse o significado de capital. Após o lançamento da Bomba (atômica), abre-se o período no qual vivemos até hoje. A potência nacional que se sobressai no conflito mundial chama-se Estados Unidos, que detém uma vitória financeira, no financiamento da reconstrução das nações perdedoras, e militar, a primeira a fabricar e usar a Bomba. No entanto, esta potência não aparece sem uma força oposta, o bloco da economia de comando estatal soviética, a URSS. É esta polarização, e a impossibilidade de um conflito direto entre as forças destrutivas e os exércitos nacionais dos sistemas de Estado vitoriosos, que instaura o período conhecido por guerra fria. É a partir daqui que a guerra entre nações passa a
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“A humanidade, que em Homero fora um dia objeto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-se objeto de sua própria contemplação. Sua autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível vivenciar a sua própria aniquilação como um deleite estético de primeira ordem” (BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica], p. 94).
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 dar lugar à guerra civil, às guerras por procuração, à produção do globo terrestre como espaço de ocupação e conflito8. A polarização da guerra fria se dissolve quando da queda do muro de Berlim e desmanche da URSS, entrando em cena a globalização hegemônica e assimétrica do capitalismo à americana. É por isso que logo em seguida, nos anos noventa (1990), forma-se o bloco da União Europeia, com integração política e econômica e moeda própria, o euro, sem, no entanto, poder fazer frente ao domínio assimétrico americano. O mesmo intuito se faz presente quando o bloco dos países emergentes, BRICS9, entra na cena da economia mundial no contexto da crise econômico-financeira americana, em 2008, sedimentada no significado da desregulamentação financeira desde os anos de 1970 – o significado da suspensão do padrão ouro ao padrão dólar-armamento como lastro do câmbio mundial10 – e estourada a partir da crise no setor imobiliário, e da subsequente crise de insolvência do euro na relação entre a Alemanha credora e os países sulistas, PIGS 11, endividados. Tanto o bloco da UE quanto o bloco BRICS não conseguem fazer frente ao monopólio econômicofinanceiro-militar americano12, pois seu significado diz respeito ao modo como o padrão de valorização do capital mundial está sustentado na produção de guerras de ordenamento mundial. Assim, não é bem a mudança de paradigma na política com o eventos de Auschwitz ou do 11 de Setembro que precisam ser postos como fio condutor, mas o significado da contradição apontada por Marx entre o desenvolvimento técnico, das forças produtivas e o tempo de trabalho socialmente necessário – dinheiro não é mais do que um desdobramento seu – para a produção das mercadorias em um determinado nível dessa produtividade como a contradição interna, o móvel, a pulsão lógicohistórica do capital – dinheiro que se valoriza mediante o processo produtivo ou especula lucros 8
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“Não só há anos nenhuma guerra é mais declarada (realizando assim a profecia de Schmitt, segundo a qual toda guerra se tornaria no nosso tempo uma guerra civil), mas até mesmo a invasão aberta de um Estado soberano pode ser apresentada como a execução de um ato de jurisdição interna” (AGAMBEN, Meios sem fim, p. 83). Bloco de cooperação econômica e política dos países emergentes Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. “O dólar conservou a sua função de dinheiro mundial ao metamorfosear-se de dólar-ouro em dólar-armamento. E o caráter estratégico das guerras de ordenamento mundial, nos anos 1990 e após a virada do século, no Oriente Médio, nos Balcãs e no Afeganistão, consistia em primeira linha em perpetuar o mito do ‘porto seguro’ e, com ele, o dólar como moeda mundial através da demonstração de capacidade de intervenção militar global” (KURZ, Poder mundial e dinheiro mundial, pp. 28-29). Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha. “O aparelho militar norte-americano, edificado nos tempos do boom do pós-guerra, não tem concorrência. Ano após ano, o orçamento militar dos Estados Unidos é mais de vinte vezes superior ao alemão. Não existem condições nem militares, nem políticas, nem econômicas para uma nova potência concorrente” (KURZ, Poder mundial e dinheiro mundial, [Imperialismo de crise], p. 43). Poderíamos colocar, aqui, a questão de até que ponto a China, entre as civilizações mais antigas da Terra, poderia reaparecer no cenário do fim da história como a última potência ao lado dos Estados Unidos. Precisaríamos, para respondê-la, levar em consideração o apontamento de Kurz a respeito de dois circuitos de déficit, predominantes no contexto da globalização do capital: “Cresce o buraco negro entre a criação de valor real no passado e o futuro ficticiamente antecipado. Esta construção de uma conjuntura de déficit global tem dois eixos principais: um maior, o circuito de déficit do Pacífico, entre China/Ásia Oriental e Estados Unidos, e um menor, entre a Alemanha e o restante da União Europeia, ou melhor, a Zona do Euro” (KURZ, Poder mundial e dinheiro mundial, [O clímax do capitalismo], p. 110).
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 futuros – que nos permite situar o significado das crises de 1929 e de 2008. A soberania política marcada pela exceção, pela emergência é um sintoma, funda e é fundada, pelo desdobramento dessa pulsão. Isso porque não é bem, como diria Clausewitz, situado num período de guerra simétrica, de reconhecimento jurídico do outro (Estado) e equivalência militar, a guerra que é uma continuação da política por outros meios, ou mesmo, como nos diz Paulo Arantes, que hoje, num contexto de guerra assimétrica, de não reconhecimento do outro (Estado), de permanente ocupação militar e caça13 dos inimigos – pois não se trata bem de um conflito, que pressupõe forças similares em condições de disputa –, é a política que se apresenta como continuação da guerra por outros meios; mas sim de compreender, como nos lembra Kurz, que a guerra é a continuação da concorrência econômica por outros meios. Mas assim como a primeira Grande Guerra não foi consequência imediata de uma crise, o 11 de Setembro também não o foi. Ainda assim, podemos retomar a articulação entre o contexto do entreguerras e o nosso. Não sem antes apontar a dimensão política do problema. O que faz um autor como Carl Schmitt colocar a exceção como conteúdo, como fundamento da norma, não se separa da sua compreensão do próprio contexto excepcional do entreguerras. No caso do 11 de Setembro, já temos, como diz Paulo Arantes, um estado de necessidade – que funda a emergência – desejado14. Isso porque enquanto as crises e conflitos nos quais estava situado Carl Schmitt, como nos lembra Arantes, estouravam, eram acontecimentos imprevisíveis, assim como temporalmente situados, já que, como fala Clausewitz a respeito da guerra real, trata-se de um conflito simétrico que caminha para uma resolução, algum vitorioso, a figura atual da guerra, o estado de sítio – poder soberano que costuma ser conferido à autoridade militar – não mais como fenômeno apenas interno, mas mundial, uma soberania militar mundial, se apresenta como algo planejado, quisto, pois trata-se de um mecanismo de fim em si mesmo, um estado de exceção militar permanente e infinito, pois 13
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“Desde os primeiros dias que se seguiram ao 11 de Setembro, George W. Bush prevenira: os Estados Unidos iam se lançar em um novo tipo de guerra, ‘uma guerra que requer de nossa parte uma caça ao homem internacional’. O que a princípio soava simplesmente como um slogan pitoresco de caubói texano foi depois convertido em doutrina de Estado, com especialistas, planos e armas. Em uma década constituiu-se uma forma não convencional de violência de Estado que combina as características díspares da guerra e da operação de polícia, e que encontra sua unidade conceitual e prática na noção de caça ao homem militarizada” (CHAMAYOU, Teoria do drone, [Princípios teóricos da caça ao homem], p. 41). “A guerra do Iraque não veio a nosso encontro. Ela não ‘estourou’, como se dizia em tempos que hoje parecem antediluvianos. Aliás, nenhuma das atuais guerras norte-americanas ‘eclodiu’. Muito menos essa. (...) Trata-se, em suma, de uma guerra preventiva, como se diz na doutrina oficializada em setembro de 2002. (...) Era de se imaginar, desde que a ideia bárbara de guerra justa voltou a circular a partir da Guerra do Golfo. Assim, não pode mesmo ‘estourar’ – a menos que se tenha em mente uma operação relâmpago de ‘decapitação’, no pentagonês do dia – uma guerra por tanto tempo ‘desejada e planejada’, como lamenta o pró-norte-americano confesso Günter Grass, acabrunhado com a decadência moral da primeira potência planetária” (ARANTES, Extinção, [Diante da guerra], p. 26).
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 fundado na assimetria, na impossibilidade de uma resposta equivalente, como uma doutrina de segurança autofundadora. É importante perceber que a primeira guerra que marcará o novo período da assimetria, no contexto da globalização do capital, é a Guerra do Golfo (1990-1991). Ela marca, de um lado, a mudança da figura do inimigo – não mais o comunismo, mas agora certas nações e povos associados ao terrorismo; mudança fundamental no sentido da geopolítica econômica: a disputa por recursos estratégicos, ou ao seu acesso –, e de outro, tem ainda uma aval, um reconhecimento de sua justeza frente ao direito internacional, ao conselho de segurança da ONU, e assim em diante, pois foi uma resposta à ocupação do Kwait por Saddam Husseim liderando o Iraque – é bom não esquecer como a crise do petróleo marca a entrada em cena no novo período. Com o 11 de Setembro, retoma-se uma antiga lição de Estado, o terrorismo indireto15, que vigora até hoje (da antiga Al Qaeda até o atual Estado Islâmico), e funda-se uma espécie de missão civilizatória, humanitária a partir de um maniqueísmo de bem e de mal, como se estivéssemos retornando aos tempos das Cruzadas, das guerras santas e, assim, como o outro não é nem gente, nem um ser a ser reconhecido, como há uma justificação moral, então não há que se seguir ordenamento algum, trata-se apenas de uma autolegitimação da força, para sustentar os padrões de rentabilidade e perpetuar-se como potência, perpetuando e sustentado, assim, a acumulação global de capital. Entramos aqui na Doutrina Bush, na sua Doutrina de Segurança Nacional, na guerra preventiva e permanente (sua outra face é a guerra ao narcotráfico) que talvez seja a espinha dorsal de como o Leviatã vai tentar salvar o mundo da barbárie, afundando-se nela. É como se o 11 de Setembro, como desejo pelo estado de necessidade, de emergência, fosse já uma antevisão, uma preparação para a gestão da barbárie que é a incapacidade de integrar parcelas cada vez maiores da população, seu processo de desmanche pelo trabalho, de desintegração social, com o desmanche do Estado bem-estar social e aumento do paradigma securitário, do velho problema da segurança como legitimadora do pleno poder, da polícia política que marca o atual estado de guerra contra as populações pobres, desempregadas, periféricas, 15
“Todos os atos de terrorismo, todos os atentados que tiveram e têm poder sobre a fantasia dos homens, foram e são ações ofensivas ou ações defensivas. Se fazem parte de uma estratégia ofensiva, a experiência há muito demonstrou que estão sempre condenados ao malogro. Se, pelo contrário, fazem parte de uma estratégia defensiva, a experiência mostra que estes atos podem obter algum sucesso, que no entanto é momentâneo e precário. (...) são sempre e unicamente os Estados que recorrem ao terrorismo defensivo, quer porque se encontram mergulhados numa grave crise social, como o Estado italiano, quer porque a temem como o Estado alemão. O terrorismo defensivo dos Estados é por eles praticado direta ou indiretamente, com as suas próprias armas ou com as de outrem. Se os Estados recorrerem ao terrorismo direto, o mesmo será dirigido contra a população (...) Se, pelo contrário os Estados decidirem recorrer a um terrorismo indireto, este deverá parecer dirigido contra o próprio Estado” (SANGUINETTI, Do terrorismo e do Estado, pp. 76-77).
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Retorno do Leviatã, pp. 84-94 imigrantes, negras, em situação de rua, indígenas e assim em diante. Não se trata bem de um desejo subjetivo, porque o soberano não decide por vontade própria, mas como resposta a um estado de emergência, de necessidade, que bem pode ser desejado, ou que necessita ser desejado. O fato é que sem o complexo industrial-militar não haveria como sustentar os níveis de rentabilidade do capital mundial; sem guerra, especulação e superexploração – mais valia não apenas relativa, mas absoluta – do que resta de postos de trabalho. Com o estouro da crise de 2008, é como se o Leviatã selasse a todo custo seu pacto de sangue com a Hydra capitalista. Aquilo que se desdobrou de guerra civil de 2008 até aqui precisa ser visto em sua relação com a resposta mundial à crise interna da maior potência capitalista do globo, e de seu papel na máquina de valorização mundial. Guerra civil na Ucrânia, na Síria, em países do continente africano, na Venezuela; golpes parlamentares na América Latina; desmanche da exploração e dos rendimentos nacionais de reservas de petróleo16, recursos estratégicos, desmonte do social para o pagamento de dívida com o mercado financeiro, o mercado de ações que rege os níveis de investimento a nível mundial. A crise de refugiados, de imigrantes, que nos lembra os tempos de Auschwitz e da seca nordestina, está sendo produzida no interior dessa dinâmica. Onde estamos? Que horas são? Como anda a situação no front desse limiar histórico? São questões que merecem ser desdobradas. No lado interno da guerra, a guerra ao narcotráfico, o tráfico de armas e de drogas, como dispositivo para se lidar com uma população indesejada, pois supérflua, desnecessária, o resto rejeitado pela imagem de felicidade que uma civilização decadente forjou como seu sonho, sua imagem de perfeição, como a marca central de um mercado altamente rentável. A emergência nos países da América Latina é inseparável de sua guerra aos pobres como guerra às drogas, inseparável do encarceramento e do extermínio; particularmente no Brasil, inseparável da herança da fratura entre casa-grande e senzala-quilombo, inseparável do fato de a mão de obra negra recém-liberta não ter sido integrada no trabalho assalariado, e sim a imigrante. Essa é a face da nossa guerra interna.
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“Vista desse ângulo, a atual guerra por energia fóssil – ou, se preferirmos, para lastrear pelo poder das armas o dinheiro mundial, também ele under attack – produz igual dose de entropia e caos sistêmico, como uma nova desertificação” (ARANTES, Extinção, [Diante da guerra], p. 27). “O que está em causa é menos o fluxo material do petróleo, que estaria garantido mesmo sem a intervenção militar, mas a salvação dos mercados financeiros no curto prazo” (KURZ, Poder mundial e dinheiro mundial, [Imperialismo de crise], p. 47).
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AGAMBEN LEITOR DE FOUCAULT: PONDERAÇÕES SOBRE A BIOPOLÍTICA Dilson Brito da Rocha1 RESUMO: Michel Foucault (1926-1984) nos legou uma suntuosa reflexão sobre a biopolítica e, mais precisamente sobre o que ele vai alcunhar, num sentido irrestrito, de biopoder. Tal conceituação foi tomada em exame pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (1942), de maneira que este herda o pensamento daquele, mas não sem perscrutar questões não enfrentadas de modo minucioso por Foucault, nem tampouco sem endereçar críticas. A propósito, as duas compreensões sobre biopolítica não podem ser hibridizadas, sem se fazer imprescindíveis discriminações e entender os desdobramentos. Grosso modo, um de seus distintivos em relação a Foucault é o fato de Agamben dissecar temáticas concernentes ao direito e teologia, sendo tal fator impactante. Ocorre que o termo “biopolítica” já era usual no século XIX, todavia, é consagrado a partir do século XX, sobretudo com a engenhosa obra foucaultiana. O francês sustentará que a política do Estado se torna domínio ou controle sobre a vida, que é concomitante e paradoxalmente promoção da vida, a partir do século XVIII, ao passo que Agamben emblema que a política desde sempre é biopolítica, remontando, de forma pontual, ao início da história do Ocidente. PALAVRAS-CHAVE: Agamben. Foucault. Biopolítica. Controle. AGAMBEN FOUCAULT READER: PONDERATIONS ON BIOPOLITICS ABSTRACT: Michel Foucault (1926-1984) has begoted us a sumptuous reflection on biopolitics and, more precisely, on what he will carve, in an unfettered sense, of Biopower. his conceptuation was taken by the Italian philosopher Giorgio Agamben (1942), so that he inherits the thought of that, but not without scrutinizing questions not faced in a meticful way by Foucault, nor without addressing criticism. By the way, the two understandings about biopolitics cannot be hybridized, without 1
Mestre em Filosofia pela UNESP/Marília; Mestre em Teologia pela PUG/Roma, Itália. Docente nas Faculdades Integradas de Bauru (FIB). E-mail: dilsondarocha@hotmail.com
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 making indispensable discriminations and understanding the consequences. Roughly speaking, one of his distinctives in relation to Foucault is the fact that Agamben dissect themes pertaining to law and theology, being such an impactful factor. It occurs that the term "biopolitics" was already usual in the nineteenth century, however, it is consecrated from the twentieth century, especially with the ingenious Foucaultian work. The Frenchman will sustain that the policy of the State becomes dominion or control over life, which is concomitant and paradoxically promoting life, from the eighteenth century, while Agamben emblem that politics is always biopolitical, reassembling, in a punctual way, to the beginning of the history of the West. KEYWORDS: Agamben. Foucault. Biopolitics. Control. 1. PREÂMBULO Os dois autores se conheceram pessoalmente, o que decerto facilitou a continuidade crítica no estudo da temática biopolítica, desde uma visão mais larga, sobre o que versaremos neste ensaio. Seja dito de passagem, os italianos se referem a Agamben, em tom de anedota, como sendo o mais francês de entre os italianos, isso pelo fato de ser mais conhecido fora da Itália (entre os alemães, ingleses, franceses, brasileiros, argentinos etc.) do que nos centros acadêmicos italianos. De todo modo, Agamben é muito lido e traduzido em vários países. Foucault sugere que biopolítica significa tornar a atividade política controladora dos corpos das pessoas, ou se quisermos, é uma atividade estatal, isto é, a ação de governo sobre a vida biológica dos indivíduos e, sobremaneira, de quando é uma ação do Estado sobre a vida de um grupo populacional e, sendo mais específico, de uma espécie humana. “(...) de maneira consequente, isso fará com que o Estado tenha o controle dos corpos biológicos dos sujeitos nas sociedades particulares.” (FOUCAULT, 2004, p. 59). Uma vez tendo o controle se promove a vida dos indivíduos e da população como todo. É por este motivo que a partir do século XVIII brotarão políticas públicas, significando que o Estado passa a se atarefar do cuidado da saúde das pessoas e a fazer, pari passu, exigências, como por exemplo, que todos frequentem a escola (obrigatoriedade da escolarização), o que é legitimado a partir desta época. Cuidar do problema da saúde, como as epidemias, é tarefa do Estado, por intermédio da medicina social. Isso ficou nítido na Alemanha e na Itália, onde a polícia não tinha outro empenho senão aquele. É neste cenário que se situa a gênese da Estatística como saber do Estado, que tem o controle dos indivíduos e da população, a fim de que os corpos humanos resultem em dóceis e produtivos. (cf. FOUCAULT, 2008, p. 19). É a chamada revolução industrial e a civilização urbana. O conjunto destes fatores, que tem saberes subjacentes, configura, pois, no que se pode denominar de ação biopolítica.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 Neste particular, Agamben, que erige uma obra estruturada antiteticamente,2 aponta uma ambivalência: por um lado se promove a vida dos sujeitos, mas, em contrapartida, ao fazê-lo, se paga um preço exorbitante, que é o controle, o governo da vida não pelas próprias pessoas, mas advindo da potestade estatal. O poder disciplinar centra-se no corpo como máquina (esfera individualizante), enquanto que a biopolítica tem o controle do corpo social (esfera totalizante). A despeito da peculiaridade, ambas fazem parte do biopoder. “[...]estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanta da vida, ou que se incumbiu, se vocês preferirem, da vida em geral, com o polo do corpo e o polo da população” (FOUCAULT, 2005, p. 302). Perante isso, temos que biopoder significa a estatização da vida biológica das pessoas, por isso é interessante ao poder disciplinar e docilizar os corpos, ficando mais fácil exercer o poder sobre eles. Por sua vez, as pessoas legitimam o fato de o Estado cuidar da segurança delas, ou seja, de seus corpos, entendendo que seja positivo o fato do Estado ser biopolítico, malgrado o controle que, como queremos enxergar, nem sempre é notado. A história do direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades (direitos humanos) tem haver, segundo Foucault, com a revolução moderna e com a biopolítica. Por isso, tanto Foucault quanto Agamben são críticos aos direitos humanos, havendo nesta acepção, um parecer consensual. Pois bem, os direitos humanos declaram que as pessoas são dominadas pelo Estado, sendo esta conditio sine qua non para que elas sejam tidas como cidadãs. Isso nos remete, incontinenti, ao pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que já no seu tempo atestava que ser cidadão é uma condenação, denotando que somos condenados a ser cidadãos, status que as pessoas reivindicam para si, mas que, de forma síncrona, equivale estar submetido a uma lei, a um governo central. Tal constatação nos leva a fazer uma inferência: é engendrada uma crítica endereçada ao fato da duplicidade dos direitos humanos, aferida por ambos pensadores em exame.
2. PANORAMA GERAL O conceito relacionado à biopolítica é biopoder, que por uma questão técnica reclama uma diferenciação, e por isso o faremos no decorrer deste ensaio. Via de regra, Agamben usa somente o termo biopolítica, de sorte que Foucault faz uso das duas locuções. Mas, o próprio Foucault utiliza tal terminologia tão somente durante um período lacônico de cinco anos. Ele passa a aplicar o conceito somente a partir de 1974, por ocasião de uma conferência acerca da medicina social que 2
Em seu labor, o italiano se vale de conceitos antitéticos, como: lei-exceção, vida-morte, reino-glória etc.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 proferiu na Bahia. Então, nesta feita ele emprega pela primeira vez aquela locução. Ainda assim, no início identificava biopoder com biopolítica, estando uma imbricada na outra. Mais tarde discrimina os vocábulos, ficando apreciado que biopoder é um nome genérico que se atribui à ação do Estado sobre o indivíduo, caracterizando o que o francês nomina de “poder disciplinar”, que torna cada corpo humano obediente a um binômio: docilidade-produtividade, fazendo-o por meio da escola e uma gama de outras instituições, que culminará nas fábricas. (cf. FOUCAULT, 2004, 68). Verifica-se que bem anterior a Agamben, que passa a usar o termo biopolítica em 1995, e mesmo antes de Foucault, que faz uso somente entre os anos 1974-1979, uma filósofa alemã de origem semítica, Hannah Arendt (1906-1975), em sua obra titulada A condição humana, datado de 1958, a mais prestigiada, sem usar o termo biopolítica, já tocou no assunto, fazendo-o numa espécie de motu proprio. Ela aborda que toda vez que a vida, precisamente a categoria vida, se torna a categoria central, há um problema, pois significa que a modernidade estabeleceu de modo definitivo a redução do ser humano em um animal que trabalha, correspondendo ao enaltecimento da vida biológica. Se transforma o ser humano em mera vida biológica, mero corpo que funciona, em detrimento de outras dimensões, o que ab-roga Hannah Arendt. Mas, poder-se-ia dizer que o estudo da biopolítica somente é tomado a sério, nas mais variadas áreas, cerca de 30 anos atrás. A biopolítica passou a ser importante quando estava sendo ruída a rigidez dicotômica da distinção ideológica tradicional da política, que é a questão vulgar “ou você é de direita ou você é de esquerda”. A partir de um dado momento esta questão passou a ser insipiente. Isso explica, quiçá, o porquê do termo biopolítica passar a ser nevrálgico para se entender melhor o que está sucedendo nos tempos hodiernos, ao menos no mundo ocidental. Foucault, num texto intitulado Filosofia analítica da política3, assegurará que se fizermos uma análise acurada, depreenderemos que a justiça é o tema central das áreas de estudo dos teóricos de grande envergadura do século XIX. É desta forma pelo fato de que, sobretudo aqueles que trabalhavam nas fábricas eram os mais pobres e os que não trabalhavam eram os ricos, gerando, consequente e inevitavelmente a injustiça, mormente quando na modernidade se enaltece o trabalho como fonte de riqueza e único meio de liberdade. Esta é a razão da tese principal em Karl Marx (1818-1883) ser a questão da justiça, para ficarmos num exemplo mais próximo a nós. Nesta seara, Foucault indaga se no século XX continua sendo a justiça ou a injustiça o grande problema a ser encarado? Sem hesitar, argumenta que não. Para ele o grande problema do século 3
Texto do período em que ele proferia sobre a acepção de biopolítica.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 XX gira em torno do fato de que as pessoas são governadas de maneira demasiada. Assevera que quanto menos formos governados, melhor seria. A questão crucial em Foucault circuita em torno das seguintes indagações: qual o motivo de obedecermos tanto? Ser obediente é ser virtuoso? Para ele os grandes problemas da sociedade não podem ser localizados, de maneira simplória, nos que governam, mas são causados pelos que são governados, os obedientes. Assim, a responsabilidade dos problemas é deslocada daqueles para estes últimos. Foucault dirá que não se poderá entender o que estava acontecendo (injustiças), sem suscitar a pergunta pelo motivo que levava as pessoas a obedecerem sem reservas, e a razão pela qual a obediência era considerada, ainda naquele contexto, a virtude excelsa. A que isso se devia? Inquirição que, para ele, se impõe com urgência e imprescindibilidade (cf. FOUCAULT, 2005, p. 107). Foucault dirá que o problema fulcral não está no abuso de poder, mas no abuso de obediência.4 Evidentemente, no contexto europeu alemão, se experimentou o excesso do mando com o Nazismo, e na Rússia com o Stalinismo. Cenários estes em que a possibilidade de não obedecer resultaria em problemas muitíssimos sérios. Foucault pondera que o Nazismo e o Stalinismo não são simples excrescências ou exceções na história do mundo moderno ocidental, mas são experiências que se inscrevem dentro da lógica dominante da história ocidental. Por isso, o totalitarismo, como Hannah Arendt chamará, não é tão diferente de experiências democráticas, uma vez que, tal-qualmente, na democracia há quem governa e quem é governado.5 Tanto Foucault quanto Agamben consideram que a lógica do Nazismo e do Stalinismo continua em vigor nos tempos hodiernos, nos sistemas democráticos. Tal lógica continuou, ad exemplum, quando da ocasião de Guantánamo, no contexto do governo norte americano. Neste seguimento, se nos vem uma indagação: qual a diferença entre Guantánamo e o campo de concentração? Logo, as características do Nazismo perduram até hoje, feitas as devidas ressalvas. É razoável proferir que há uma diferença no entendimento da biopolítica em Foucault e em Agamben. No primeiro, o conceito de biopolítica ou biopoder é possível ser averiguado em seu texto Segurança, Território, População: [Biopolítica] é essa série de fenômenos, que me parece bastante importante, a saber, é um conjunto de mecanismos através dos quais aquilo que na espécie humana constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia 4
Problemática que, stricto sensu, tem um nuance kantiano, já que o próprio Immanuel Kant (1724-1804) denunciava que era tão fácil obedecer e tão difícil mandar, e tão cômodo obedecer, pois em obedecendo e em não dando certo, a culpa é sempre de outrem. Equivale não se responsabilizar pelos acontecimentos (cf. KANT, I. Resposta à pergunta: “O que é esclarecimento?” Textos seletos. Tradução: Floriano de Sousa Fernandes. 3ª ed. Vozes: Petrópolis, RJ, 2005). 5 A despeito desta asseveração de Hanna Arendt, no último capítulo de sua obra Origens do totalitarismo ela afirma que o totalitarismo é uma ruptura com tudo que ocorreu antes na política (cf. ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Companhia de bolso, 2018).
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 política, numa estratégia geral do poder. Como a sociedade, ou melhor, as sociedades ocidentais modernas, a partir do séc. XVIII voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana. (FOUCAULT, 2008, p. 56, grifo nosso).
Biopolítica é para Foucault o exercício do poder sobre a vida. O que acontece na modernidade ocidental, de maneira mais específica, é a estatização da vida biológica. Implica na estatização do ser humano como ser vivo. É a ação exercida pelo Estado, não só sobre indivíduos como tais, mas sobre populações na qualidade de espécies.6 Isso coaduna no que Foucault, de maneira implacável, defende: a modernidade é contemporaneamente um processo de individualização e de totalização. Modernidade é a fabricação do indivíduo como indivíduo. Desta maneira, o sujeito torna-se indivíduo. Foucault quer saber as diferentes formas pelas quais fomos tornados sujeitos. Neste atinente, contesta a estrutura central do contratualismo de Thomas Hobbes (1588-1679), Rousseau, John Locke (1632-1704) etc., para os quais todos nascemos como indivíduos, com direitos humanos, livres e iguais. Foucault dirá que ninguém nasce livre, nem igual, mas que isso é um ideal a partir do qual se tenta justificar o exercício do poder por parte do Estado, através de um contrato entre indivíduos que se combinam, a fim de se sentirem mais seguros, pondo alguém para governar, onde todos obedecem e todos adquirem a individualidade. Então, isso é o que as pessoas ganham por um lado, mas que sofrem por outro, como aludimos. O processo de totalização significa sociedade, que para Foucault não é algo construído pelos seres humanos, pois não nascemos seres sociais, como quiseram o Estagirita Aristóteles (384 a.C.322 a.C.), o escolástico Tomás de Aquino (1225-1274) e Baruch Espinoza (1632-1677). Para o francês, a sociedade é uma criação humana, uma soma de indivíduos, uns postos ao lado dos outros e unificados, por exemplo, pelo Estado, um processo de estatização, portanto. Não existe população sem Estado. Então, quando alguém nasce, é de praxe, sem tardar, documentar por meio do registro cartorial, selando tal união, numa espécie de coação. Há necessidade do aval do Estado desde o nascimento, o que moralmente é ambíguo. Isso acontece na democracia. Quando autores, como é o caso de Alexis de Tocqueville (1805-1859), a título de ilustração, reclamam da democracia como sendo a grande invenção dos governos dos medíocres, e que os Estados Unidos dizem que é seu grande orgulho, denunciam aquela ideia. Neste conducente, a democracia tem uma tendência forte para a mediocracia. Então, em definitivo, Tocqueville e outros de tamanha envergadura não defendem o totalitarismo, mas chamam atenção ao fato de que a democracia não é tão salutar como
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Não se pode restringir ao Estado a atuação na regulação da vida, mas há um conjunto de outras práticas não estatais, de outros saberes, como a estatística, a demografia, a medicina social etc., como pujantes dispositivos de poder.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 se apresenta ou como é crida, ao transmitir uma imagem de via única para solucionar os problemas da humanidade. A definição foucaultiana de que a modernidade é um processo de individualização e totalização é que está intrinsecamente vinculada à ideia da biopolítica. Não é sem intenção que Foucault explana pela primeira vez o termo biopolítica em seu estudo chamado História da Sexualidade, delimitada em quatro tomos,7 onde no final do primeiro aborda do direito de vida e do direito de morte,8 o que para ele transparece pela maneira como a partir do século XVIII aparece o dispositivo da sexualidade, um complexo de saber-poder indexado à verdade e à identidade. Portanto, a sexualidade, além do racismo, do liberalismo, da segurança, é uma expressão daquilo que ele designa de biopolítica, quando dirá que é a partir do século XVIII que se passa a controlar (mais uma forma de controle, de entre um arsenal de outras) o comportamento sexual das pessoas. Isso não só em termos de saúde pública, mas também para que as pessoas fossem mais produtivas braçalmente. Por isso a exigência e a conveniência em ser monogâmico, significando o controle sobre a vida do corpo, para que, verbi gratia, as pessoas tenham mais produtividade nas fábricas, de sorte que o mecanismo da fábrica é um exemplo de biopolítica que salta aos olhos, não obstante haja outros. Foucault vai pôr em xeque a filosofia aristotélica no que tange a este particular. Durante milênios o homem continuou sendo o que era para o Estagirita: um animal vivo e que era capaz de existência política; um animal que fala (racional – logos) e animal político (politikós). Acontece que o homem moderno é um animal em cuja política, sua vida está em jogo. Claro, o que todos exigem do Estado é para que a vida biológica (segurança ao corpo) seja garantida, mais do que educação, por exemplo. Foucault diz que o Estado, a partir do século XVIII, ao invés de decidir quem deve morrer, passa a ser um Estado que faz viver (promoção da vida), mas que, inobstante, deixa morrer. Então, fazer viver tem em seu seio esta ambivalência. Isso fica claro em sua análise sobre o Nazismo. Para ele o Nazismo é um racismo estatal. Nele se matam pessoas que biologicamente são de um grupo específico, não para matar simplesmente, mas para promover a vida de outros, em detrimento de tantos. Nesta lógica, fazer viver é fazer morrer, de modo síncrono e contraditório. Para Foucault a biopolítica rompe, ainda que não de maneira total, com a teoria da soberania ou, no mínimo, faz com que ela não seja tão relevante como pretendia. Aqui Agamben não consente, 7 Deixamos
sinalizado que o quarto tomo foi publicado no ano de 2018. Cf. FOUCAULT, M. História da sexualidade: A vontade de saber. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 10ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 8
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 pois dirá que ao invés de haver uma ruptura entre biopolítica e “poder soberano”, a biopolítica é a contribuição original do poder soberano: Pode-se dizer que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano.9 A biopolítica é, neste sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana; pondo a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno nada mais faz do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à “vida nua”, 10 reatando assim, com o mais memorial dos arcana imperii. Foucault diz que a partir do século XVIII se deixa de considerar o exercício do poder político como exercício sobretudo de soberania. Mas se passa a atribuir ao Estado uma função “positiva”, não de negar a vida a alguém, mas de promover a vida das pessoas (o nascimento da população), o que não é melhor do que matar a vida das pessoas, mas há, notoriamente, uma mudança de perspectiva. Em Agamben, soberania significa que a vida biológica, em primeiro lugar, se encontra sempre exposta a violência e ao poder da morte, isto é, sempre que se tem política se tem uma espécie de jogo entre inclusão e exclusão das pessoas, um paradoxo.11 Por isso é que o estado de exceção12 é o que marca para Agamben a teoria da soberania ou a própria soberania como tal. Então, se para Foucault a biopolítica é uma característica da modernidade, para Agamben a biopolítica é uma característica de toda história ocidental. Para o italiano, a história é marcada por esta ambígua situação. Ou seja, ao manter uma ordem de convivência, ao mesmo tempo se está muito próximo de matar as pessoas.13 Neste singular, toda manutenção da vida é feita às custas da morte. Por conseguinte, a afirmação da vida de uns implica, por força, na morte de outros. E isso aconteceu sempre, quando se fala de alguma forma de política, de soberania. Há algo que é essencial na política e que não é simplesmente diferençável através de momentos históricos diversos. Designa que não é tão nítida para Agamben a distinção entre governo ditatorial e governo democrático, visto que é
9 Agamben pensa o soberano valendo-se analiticamente da concepção de Carl Schmitt (1888-1985), o jurista filiado ao partido nazista,
que considerava soberano aquele que decidia sobre o estado de exceção. A decisão sobre o estado de exceção partia do soberano. Ele estaria, concomitantemente, fora e dentro do ordenamento jurídico. Então, soberano é aquele que tem a capacidade de decidir se o outro vai viver ou não, que governa totalmente o outro, expressão examinada por ele também no âmbito teológico em suas obras, ao que aplica à política. (cf. AGAMBEN, 2002, p. 76). 10 O projeto filosófico de Agamben reza que “vida nua” é caracterizada como elemento político originário da contemporaneidade. 11 Stricto sensu, se trata da tese da filologia do bando, do abandono, do homo sacer, a vida banida ou bandida. 12 O estado de exceção se daria quando ocorria a suspensão da normalidade jurídica. A regra, ao suspender-se, dá lugar a exceção. E somente dando lugar a exceção é que ela vai se constituir enquanto regra, enquanto norma. A exceção não se limita a distinguir o que está dentro ou o que está fora do ordenamento jurídico, ou o que está dentro da situação de normalidade ou o que está do lado do caos. Mas ela procura abrir um espaço, uma zona limítrofe, um limiar em que o que está dentro e o que está fora, inclusão e exclusão, o direito e os fatos da vida normal, se tornam indistinguíveis. Se trata, deveras, de uma zona de indiferença. As pessoas que estão dentro do estado de exceção ficam numa relação que Agamben designa de bando; são abandonadas pelo direito, pelo ordenamento jurídico. Elas não são meramente postas fora da lei, mas abandonadas por ela, concernindo que a relação de exceção seria de abandono. (cf. AGAMBEN, 2004, 46, p. 65). 13 Agamben aborda de uma espécie de sacralidade da vida na exceção soberana.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 possível identificar elementos similares em ambos.14 (cf. AGAMBEN, 2004, p. 208). Portanto, entre Foucault e Agamben há duas compreensões de biopolítica ou entre poder e vida. Em Foucault a vida é um efeito do biopoder, ao passo que para Agamben tem a ver sobretudo com o conceito de “vida nua”.15 Para Agamben toda política é o confronto, uma guerra intestinal entre o soberano e os cidadãos, sendo esta guerra permanente e que ele caracteriza com o conceito técnico de “vida nua”. O italiano vai tomar tal expressão emprestada do direito romano antigo, que era o que ele chamava de homo sacer (homem sagrado).16 (cf. AGAMBEN, 2002, p. 73). Em Agamben temos que, o que não o distingue do sentido teológico da palavra, sagrado é aquele que é retirado da vida normal e posto à parte, num lugar separado e distinto. Significa sair do uso comum e passar a servir para outro uso, o sagrado. No caso inerente ao homo sacer examinado por ele, emblema seres retirados da vida normal pelo fato de terem sido condenados por algum crime e se tornam seres especiais17 (para Agamben este é caso próprio da “vida nua”). Implica que, 14
O italiano dirá que existem espaços de exceção não somente nos totalitarismos, mas é inerente também ao estado moderno, ao estado nação, o estado de direito e, portanto, pode ser encontrado nas democracias, evidentemente, feitas as devidas ressalvas. Podemos encontra-lo em Guantánamo, nos campos clandestinos, cárceres secretos etc. Neste sentido, a tese de Walter Benjamin (1892-1940) é de que o estado de exceção para os oprimidos é regra. Para ele, precisa ser criado um “estado de exceção” que ponha fim a este primeiro estado de exceção. Para tanto, evoca a imagem da “exceção da exceção”. Em suma, o estado de exceção não é simplesmente aquela análise de uma exclusão social, mas é algo mais complexo, é uma exclusão inclusiva e uma inclusão exclusiva. As pessoas são excluídas do ordenamento jurídico e incluídas no campo, no espaço de exceção, e lá ficam vulneráveis, o que equivale a tanatopolítica. Elas são incluídas no espaço de exceção através da exclusão e do ordenamento jurídico, da norma. A norma jurídica normal, embora seja suspensa pelo estado de exceção, não é abolida, não deixa de estar em vigor. Apesar de não se aplicar, ela permanece vigente. Então, o que vigora dentro dos campos de concentração são normas e regras que não são leis, não são legais, mas que tem aplicabilidade, sendo por este motivo que Agamben dirá que o estado de exceção é um espaço de anomia, no qual vigora uma força de “lei sem lei”. 15 Para erigir seu suntuoso projeto “vida nua” (ou “vida sacra”), o pensador toma em exame dois termos gregos, problematizando-os: zoé e bios. Para os gregos zoé seria a mera vida dos seres vivos, dos animais, a vida biológica, que todos os seres vivos tem, ao passo que bios seria o inverso, aquele meio de vida próprio a um indivíduo, a um grupo, aos homens, que seria a vida política, que se refere às dimensões social, moral, política, para além daquela existência biológica, além da zoé. A zoé ficava restringida ao âmbito da casa (oikos) e a bios, como vida política, estaria centrada na polis, precisamente na ágora, o locus onde se fazia política na Grécia clássica. Agamben pondera a bios como se segue: “uma vida qualificada, um modo particular de vida” (AGAMBEN, 2002, p. 9). 16 Homo sacer é uma figura do direito romano arcaico que significava aquela vida humana que era matável e insacrificável, a vida que poderia ser morta por qualquer um (matabilidade), somado ao fato de que aquele que matasse não sofreria nenhuma espécie de punição, ou seja, não poderia ser punida por aquele ato, e sem que fosse sacrificada por algum tipo de ritual (insacrificabilidade), seja ele jurídico ou de âmbito religioso. Estamos aqui em um terreno limítrofe na estrutura social romana, que pode ser localizado entre o profano e o sagrado, isto é, entre o jurídico e o religioso, respectivamente. (cf. AGAMBEN, 2002, p. 81). O homo sacer é, então, excluído tanto do âmbito jurídico quanto do religioso. Soma-se a isso que, perante o homo sacer, todos são soberanos. 17 Quem vai ser essa vida capturada pelo poder soberano, quem vai estar dentro do estado de exceção decretado pelo soberano vai ser o homo sacer. Não pode ser punida a pessoa que o mata, e a possibilidade do sacrifício é vetada. Existe aqui uma relação entre a figura do homo sacer e a figura do soberano. Elas são simétricas e correlatas pelo fato de que o soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente homini sacri e, por outro lado, homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem ou podem agir enquanto soberanos, por isso todos os homens podem mata-lo, sem que com isso incida em crime. Agamben vai problematizar que essa figura jurídico-política do estado de exceção, que de início havia sido criado para situações de perigos factuais, acaba se tornando a regra e confundindo, por isso, com a própria norma, se tornando paradigma, que para ele é uma técnica de governo no interior da política dos tempos contemporâneos. Quando Agamben trabalha com a ideia de vida indigna de ser vivida, quando aborda da eugenia ou da possibilidade da tanatopolítica, a política da morte dos deficientes mentais e depois dos demais, considerados impuros pela raça ariana, ele pensa o campo de concentração como espaço ou zona em que o estado de exceção se torna norma e que o homo sacer é capturado pelo poder soberano (cf. AGAMBEN, 1998, p. 94). O campo de concentração é o lugar onde as pessoas ficam vulneráveis a todo tipo de violência. O italiano procura identificar quais os dispositivos jurídico-políticos que conseguiram capturar a vida nua dentro de tais zonas de exceção. Por isso ele diz que as prisões não se incluem nesses paradigmas,
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 toda vez que alguém mata uma pessoa que já está condenada à morte não incorre, com isso, em crime algum. Isso era peculiar ao direito romano, que caracteriza a “vida nua”. É o que aconteceu, ad exemplum, no campo de concentração nazista: aquele que aí entrasse era ciente de que estava fadado à morte. Porquanto, caso um colega cigano matasse outro colega cigano que já estava condenado, não cometeria nenhum crime, haja vista que, em tese, já está morto, esperando tão somente a hora. É o “estar morto” que Agamben denomina como sendo “vida nua”. Ele atestará que estamos sempre vulneráveis ou expostos a experiência da “vida nua”, a violência. Ainda nos ocorre que Agamben, ao adentrar na discussão acerca da “morte de Deus”, constata que ele não morreu ainda, entendendo que se tornou dinheiro. Para o italiano a modernidade matou um Deus, precisamente a ideia metafísico-ontológica de Deus, mas consequentemente criou outro. Neste teor, há um texto de Walter Benjamim (1892-1940), intitulado de O Capitalismo como religião, onde defende que o Capitalismo é a pior das religiões que se poderia ter. É uma religião onde todo mundo é culpado, havendo uma dívida impagável (= culpa no ad intra da religião), tendo uma evidente combinação entre economia e teologia. Por isso, no ritual litúrgico, o pedido de perdão a Deus, pois os fiéis são sempre devedores para com ele, ideia que faz a religião se sustentar de forma milenar. Eis o motivo pelo qual se pede absolvição pelas culpas, pelas dívidas. Nesta esteira, Benjamim dirá que o Capitalismo é uma religião onde todo mundo é culpado e que não há um desígnio soteriológico. Foucault e Agamben estão concordes quanto ao fato de que para entendermos o que acontece nos tempos hodiernos não devemos nos restringir a falarmos simplesmente de política, mas da relação entre economia e política e, no caso de Agamben, da trilogia: teologia-políticaeconomia, o que ocorre também com o controverso jurista e filósofo alemão Carl Schmitt (18881985). Outrossim, o campo econômico transforma todos em seres corporais numerados. Nesta lógica, não somos mais do que corpos produtivos, que dão resultados financiais. Daí o triste fato de os idosos serem postos à margem. Os seres humanos somam enquanto são seres econômicos, envolvidos em um jogo, cujo centro é o dinheiro e o lucro. Em sua obra O Reino e a Glória Agamben investiga, num recorte sobre os quatro primeiros séculos do Cristianismo, a compreensão que se tem do termo grego oikonomia.18 Na Grécia Antiga Aristóteles entendia que oikonomia significa gestão da vida privada, ligado à sobrevivência física. Já não são campos considerados enquanto espaço de exceção, pois as prisões estão dentro do modelo jurídico regulado pelo direito penal, pelo direito carcerário, pela execução penal. 18 Cf. AGAMBEN, G. Il regno e la gloria. Per una genealogia teologica dell'economia e del governo. Homo sacer. Vol 2/2, Neri Pozza, 2007.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 na tradição cristã dos primeiros séculos,19 enquanto se constitui todo conjunto de dogmas da igreja católica, também se instaura a doutrina da Trindade, onde se decreta que Deus é trino. Nesta teologia trinitária, não obstante o Catolicismo seja monoteísta, se considera que há três pessoas (hypostasis), onde o Deus Pai fica em outra esfera e a segunda e terceira pessoas vem ao mundo incumbidos de uma missão (Filho e Espírito Santo, respectivamente), dado a crida Encarnação do Logos divino, o verbo de Deus. Com isso se separam o que é quem é (o Deus Pai é) e os outros, que agem (são seres que agem). Então, por um lado há o ser, e a práxis por outro. A ação das duas pessoas do mesmo Deus (o Filho e o Espírito Santo) é cunhada pela Tradição teológica dos primeiros séculos de oikonomia (economia – o governo do mundo exercido por Deus, neste caso particular, de acordo com a fé dos cristãos). (cf. AGAMBEN, 2007, p. 38). Evidentemente, tem-se aqui um uso teológico do termo economia, onde não se perdendo o sentido original se adapta para a defesa de uma crença particular. Tal noção impacta Agamben e o ajuda a entender o motivo pelo qual a sacralização da economia sucedeu. Outrossim, há leis da economia que no senso comum não se entende qual sua origem e que, em não se obedecendo tais leis se está “condenado”. É, analogamente, uma lei divina do mercado, onde os mecanismos econômicos se confundem com os teológico-eclesiais, sendo que, enquanto no âmbito teológico se proclama que extra ecclesiam nulla salus, onde prevalece uma espécie de teonomia, no quesito econômico se reforça a ideia de que “fora do mercado não há possibilidade de salvação.” Verifica-se ainda que, no que concerne a medicina social, perpetrada pela comunidade científica, para Foucault era uma forma de biopoder, isto é, uma forma instrumental de incutir uma determinada maneira de pensar. (cf. FOUCAULT, 1977, p. 57). A questão da medicina social configura apenas um dos dispositivos de instrumentalização dentro de uma gama de outros, elucidados por Foucault, passando uma imagem de salubridade urbana, de um controle sanitário, quando implicitamente há um controle maior e de outra natureza. À vista disso, ainda que para a sociedade chegasse a ideia de que se estava implementando uma sociedade hígida, na realidade se estava secularizando os costumes por meio de uma medicina normatizadora. Foucault vai se valer do termo medicalização, a fim de defender a ideia de que a medicina estava infiltrando vários aspectos da vida das pessoas. Para ele a medicina, por artifício de seus estatutos científicos sobre a saúde e as doenças, normalidade e patologia, controlava o dia-a-dia das
19
Estamos remetendo à Patrística (Filosofia Cristã datada dos três primeiros séculos, onde os Pais da Igreja, os primeiros teóricos, elaboram o grosso do pensamento teológico que herdamos do Catolicismo).
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 pessoas, em várias dimensões. É claro, a medicina social surge com vistas à salubridade, todavia seu alcance extrapola o do curativo/preventivo, tendo como meta latente o controle da vida das pessoas. Para Foucault a medicalização tem o papel de fazer com que os corpos dos indivíduos sejam feitos objetos, equívoco acometido pela medicina. Ela interfere nos costumes, vestimentas, alimentação, construção (já que segundo Foucault também a arquitetura se transformou num instrumento de normatização da sociedade, quando hierarquiza as zonas urbanas, caminhando pari passu com a medicina) e na forma de higienização dos lares das pessoas. Ocorre que para o francês, a fim de que as relações de poder sejam estabelecidas é necessário que haja uma concomitância entre produção, acumulação e circulação de saberes, o que nos leva a inferir que a produção e transmissão de verdades são efeitos das relações de poder, de sorte que isso infiltra, todos os setores da sociedade com bastante astúcia. (cf. FOUCAULT, 1980, p. 61). O francês fala de uma atitude normativa da medicina como tendo surgido depois do século XVIII, quando esta passa a intervir na vida física e moral dos indivíduos e da sociedade, onde a medicina cumpre uma passagem, a saber, da medicina para a medicina social, que, no seu entender, é um estatuto forjado pelo saber/poder. (cf. FOUCAULT, 1980, p. 37). A medicalização para ele tem uma função política, uma estratégia biopolítica. (cf. FOUCAULT, 2005, p. 189). Nela há o controle do número de nascimento, óbitos, longevidade – a biopolítica da população por meio da medicina social. Então, a medicina social é uma forma de técnica de poder que age sobre a população, normatizando condutas, produzindo uma espécie de cartilha do bem viver, promovendo saúde e moral nas pessoas, que acatam, com isso, o controle. Desta forma, a medicina curativa e social se converte em um pujante dispositivo de poder, dissimulado de preceitos higienizadores. Ademais, para Foucault as moradias das pessoas, a partir do controle sanitário, passam a ser visitadas (vigiadas), resultando na invasão da privacidade. Então, a segurança pública é uma ação biopolítica. O caso da medicina social é peculiar aqui, pois segundo Foucault ela vai, paulatinamente, tomando espaço na sociedade e fazendo parte das grandes decisões estatais, agindo dentro das cidades, no controle da vida, onde os médicos, a partir de então, se tornam os higienizadores das sociedades. (cf. FOUCAULT, 2008, p. 99). A postura audaciosa e crítica de Foucault lhe rendeu hostilizações. A criticidade, que ele tanto estimava, pode ser aferida primeiramente no modo como em suas primeiras obras versa acerca da loucura, para sermos mais precisos, sobre a doença mental. Ao estuda-la defende uma teoria
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 histórica que reza que a história é contada comumente pelos vencedores. 20 Destarte, rompe, tão logo, com os conceitos preconcebidos pelo senso vulgar no que concerne aos registros históricos. Mas, ele se torna famoso pela sua obra História da loucura na idade clássica, datada de 1961, na qual demonstra historicamente os motivos pelos quais o doente mental passa a ser enclausurado nos manicômios. Foucault descobre que tal prática e que tais dados não são achados ou localizados na história da loucura, senão na era moderna, ou seja, se trata de uma construção decorrente de interesses outros.21 Tal ideia foucaultiana não foi quista, mas rechaçada por seus contemporâneos. Ao se deter sobre as humanidades, precisamente sobre as ciências sociais, numa obra intitulada As palavras e as coisas, de 1966, que, sem generalizações, os acadêmicos das ciências sociais tiveram dificuldade de acatamento, pois, somado ao fato de que é um livro intrincado, há a ideia de que o próprio discurso das explicações sobre a realidade social, este próprio discurso é viciado por aqueles que detém o poder. Tal ideia para o campo das ciências sociais era confusa, pois sempre se postou com o status de ciências revolucionárias. Então, Foucault começa a romper com a própria academia, uma espécie de rejeição da ciência da qual ele mesmo estava inserido. Sucede que Foucault está denunciando o fato de que o discurso do vencedor ou o discurso da normalidade infiltra em todas as instâncias e instituições sociais, o que há de ser repensado, pois as ciências socias, que tem o dever da criticidade, não estavam desempenhando este seu papel imprescindível. É isso que ele defende no livro As palavras e as coisas. Evidentemente, isso acarreta numa ruptura com a academia. Foucault não recua perante o clima hostil. Ele sempre entrou em atrito e discordou dos colegas. Até com o próprio Deleuze, seu discípulo, ele atrita. Na década de 1960, o que sucede com o Movimento de Maio na França, era comum as ciências sociais e a filosofia dialogarem com a Revolução marxista. E o próprio Foucault passou por essa tradição, mas muito rapidamente se deu conta dos limites do socialismo, como ideal da sociedade comunitária imaginada. Então ele estabelece uma ruptura, se revelando um pensador além de sua sociedade. Ia, de fato, na contramão do consuetudinário, mesmo em relação ao meio acadêmico.
20 Ao proferir que a história é escrita pelos vencedores, Foucault nega a ideia corriqueira que temos de que a história é uma linha reta,
uma continuidade causal, ou seja, que um evento histórico leva necessariamente a outro, de forma sucessiva. Isso incute a quimera de uma linearidade na explicação histórica da vida humana e das ciências sociais que ele vai superar por estar eivada de equívocos. Para ele há de se rever este disparate, caso contrário, ao invés das ciências sociais serem críticas elas farão parte do jogo do poder. 21 É oportuno fazer notar que até o Renascimento, ou se quisermos, até o século XVII as pessoas doentes mentais andam de modo natural pelas ruas e muito raramente provocavam qualquer tipo de conflito social que a própria sociedade não pudesse incorporar e enfrentar.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 Para Foucault, poder não reside apenas no Estado. Ele conceitua o poder como relações de poder, que existem em todos os lugares e em todos os momentos, bastando que haja dois ou mais indivíduos juntos. Muitas vezes, nem sequer percebemos que a relação entre as pessoas são relações de poder. Isso se deve, segundo o filósofo, pelo fato do próprio poder não nos deixar perceber isso. Destarte, pensamos que temos relações naturais. E o são pelo fato de em havendo duas pessoas juntas já estão fazendo política, na medida em que a própria sobrevivência é sempre agradar ou não agradar o outro, atender ou não as demandas do outro, imagem que pode ser remetida, ressalvadas as devidas particularidades, a Marx Weber (1864-1920). Essas relações de poder criaram outro conceito crucial em Foucault, aquilo que se tornou uma máxima, alcunhada de “microfísica do poder”. E há uma obra editada no Brasil com este título; se trata de uma coleção de textos do filósofo, que abarca trechos explicativos de doenças mentais, questões sobre prisões, extraídas da obra Vigiar e punir: nascimento da prisão, livro publicada originalmente em 1975.22 Nesta obra se poderá notar como que historicamente a questão do julgamento e da prisão vai ocorrendo ao longo do tempo, mostrando que isso está inserido dentro de um sistema e que existe um interesse em trancafiar pessoas, mas que depois há interesses em libertá-las. Tanto é verdade que a pena de morte, punição mais constante até o século XVII, deixa de sê-lo e as pessoas passam a ser presas. Depois, o direito no século XIX sofre uma reforma na Europa,23 havendo uma tendência a libertar o preso para que ele tenha a possibilidade de se reinserir na sociedade. Isso tem um motivo, dirá o filósofo, que não é pelo fato da sociedade se tornar mais humana no século XIX e passar a olhar o preso por outra ótica. Antes, se deve ao fato de que o preso é uma mão de obra barata que soma em favor do consumo e produção. Desta maneira, o poder não é de modo necessário o Estado e não é só o Estado, mas está distribuído nos capilares da sociedade. Então, nos lugares mais inimagináveis que poderíamos pensar que o poder pudesse estar, é exatamente ali onde ele se faz mais abrangente e robusto, inclusive pelo fato de que é onde é mais difícil de enxerga-lo. Ocorre que quando temos o Estado como parâmetro é fácil perceber os mecanismos de poder, mas quando, a título de exemplo, estamos em um hospital, há a exigência de um maior esforço para perceber que há ali no ad intra tal-qualmente mecanismos de poder. O mesmo se dá em outras instituições, mercado etc. O Estado, por um lado, segundo o francês, está aí presente,
22 23
Título original: Surveiller et Punir: Naissance de la prison. Assinalamos aqui que Foucault se debruça com afinco sobre o direito penal francês.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 indiciando que o Estado contemporâneo não consegue, devido a complexidade da nossa vida e a complexidade das tecnociências, desenvolvimento empresarial, das ciências e novas tecnologias em geral, estar presente em todos os lugares, e por outro lado, o Estado não consegue dar conta das especificações dos conhecimentos tão particulares, isto é, naquelas decisões pertencentes às áreas dos vários saberes humanos. O Estado não estará presente para decidir, tampouco tem o conhecimento especializado ou especificação técnica para tanto. O Estado “apenas” delega à instituição especializada para a prerrogativa de decidir sobre aqueles particulares. Porém, por outro lado, o Estado se faz presente quando há a necessidade de recorrer ao juiz, nos valendo nesta hora do caso particular do direito. Assim, “o Estado estar presente não estando.” Evidentemente, há uma avalanche de outras instituições onde o exemplo acima se faz congruente, como é o caso da escola. Pierre Félix Bourdieu (1930-2002), na década de 1980 no Brasil foi bastante deturpado e contestado pelo fato de afirmar que a escola é o principal mecanismo pelo qual as relações de poder se dão dentro da sociedade. Isso se deu no contexto da ditadura, onde se acreditava que a educação fosse o lócus onde se processa a consciência da luta contra o despotismo. Por seu turno, Foucault olha para a escola como uma instituição capilar, onde existem relações de poder e que não necessariamente são aquelas relações que estamos acostumados a entender que sejam somente do Estado, mas ali existem relações próprias daquele ambiente onde há necessidade de disciplina e domesticação.24 Isto posto, cumpre evidenciar que a microfísica do poder e as relações do poder não podem ser restringidas ao Estado, mas se fazem presentes nas instituições e permeiam todas as relações. Se isso acontece, depende muito mais dos sujeitos perceberem os mecanismos, ao invés de procurar o dragão, o vilão, o bode expiatório, que é o Estado, ou se quisermos, também o direito, o ordenamento jurídico, na parte processual do direito. Aqui o foco se desloca da instituição para os indivíduos. Pois bem, direito não é somente lei, mas tem jurisprudência, doutrina, costumes. O direito, para nos atermos a este campo, é também onde o Estado parece estar e não estar de forma concomitante. No direito é fácil a decifração de que o Estado se faz presente. Por exemplo, o acórdão tem impresso o símbolo da República que o juiz assina. Então, não obstante o direito não seja somente lei, pois tem jurisprudência, o que faz o juiz ter autonomia, no momento em que ele assina tal papel carimbado (com selo oficial), está assinando, deveras, algo timbrado com o símbolo 24
Foucault faz uso irrestrito do termo “domesticação” em sua obra, o que sucede também com seus seguidores, como Deleuze, Jacques Derrida (1930-2004) etc., que fazem parte desta escola de pensamento e que, diversamente dos filósofos da escola alemã, descambaram para a psicologia, ciência confortável para se decifrar aqueles mecanismos, desde um corte crítico-filosófico.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 da república, que somente tem jurisdição pelo fato de fazer parte do dever de cumprir a lei, parte do conceito de jurisprudência. Caso contrário não valeria nada. Então, o Estado outorga ao juiz o poder de julgar, mas é ele quem chancela, que configura numa espécie de ação oculta do Estado. Se as relações de poder também estão presentes nas instituições, e o direito entende que está, mas por outro lado a decisão é do juiz, significa que, de modo abrangente, a subjetividade de poder decidir eticamente por aquilo que está fazendo é do próprio indivíduo. Em última análise, é o indivíduo que está decidindo e são as relações de poder que estão decidindo. Não é o próprio Estado como figura política e entidade, que tem o direito de fazer moedas etc., o que se estuda na teoria do Estado, que decide, quer dizer, não é o Estado em si mesmo que está tomando aquela decisão, mas é uma pessoa investida de poder estatal. Então, as relações de poder estão na microfísica e estão espalhadas pelos pequenos capilares achados por Foucault. Nesta esteira, poder-se-ia pensar no fato de que somente somos sujeitos quando adquirimos Registro Geral (RG), que tem o aval ou a firma do Estado. De forma que, sem RG é impossível existir nestes critérios. Dessarte, somente se torna um sujeito jurídico e se adquire personalidade jurídica (sentido legal), exceto aqueles casos que se pode ter exclusão de licitude, quando se obtém o RG. Desta maneira, inferir-se-ia que estamos sujeitados às chancelas e rubricas do Estado.25
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante o exposto, poder-se-ia inferir que, feitas as devidas ressalvas, as quais explanamos, há um consenso entre Foucault e Agamben que não pode passar desapercebido. Estamos nos aportando ao fato de que a biopolítica tem como lugar privilegiado, o que auxilia em seu entendimento, a tradição liberal. O filósofo e economista Adam Smith (1723-1790), quando verte sobre o econômico, assere que para tanto há de se apelar para a “mão invisível de Deus”. Segundo ele não daria para entender o econômico sem se apelar para algo misterioso. Ela somente é compreensível a partir de uma assimilação teológica. Isto posto, precisamos sublinhar que Agamben escreve em O Reno e a Glória, como reportamos, sua teologia econômica. Pois bem, da religião advém a palavra crédito que, de maneira pormenorizada, quer dizer crença, confiança. Nesta sequência, a tradução mais fiel ao conceito de banco de crédito é banco da fé. Daí a concepção 25 Foucault brinca com a palavra “sujeito”. Para ele não se trata do indivíduo ou do cidadão, mas
do sujeitado. Este não é um indivíduo livre, que pode escolher amplamente. No senso comum o sujeito é entendido como aquele que é pleno de direitos, já o francês executa um giro nesta lógica, induzindo que o sujeito é aquele que não tem direito algum. O sujeito não consegue ser livre, pois todas as instituições reproduzem as máquinas de poder que controlam os desejos alheios, fazendo um discreto aceno, neste momento, a Sigmund Freud (1856-1939).
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 agamberiana de que Deus não morreu, mas se tornou dinheiro, havendo, neste bojo, uma apropinquação das duas áreas em questão (teologia e economia). Em Foucault notou-se que ser crítico é ter a arte de não ser governado demais, o que o distingue de Kant, quando este último, em sua empreitada intelectual, instaura seu suntuoso “tribunal da razão”: uma crítica que a razão endereça a si mesma, impondo limites no que tange a questão epistemológica, ou seja, a capacidade cognitiva do sujeito. A despeito do fato de na vida não ter como não ser governado, há um erro: ser governado demais ou sempre só ser governado, sem a coragem da autonomia, a qual o próprio Kant estimava. Não significa deixar de obedecer, mas que, quando se obedecer, ter algum motivo para fazê-lo. Não pode ser simplesmente o motivo que o outro tem para mandar, ou seja, não obedecer simplesmente pelo fato do outro imperar, de acordo com seu desígnio. A última vez que Foucault usou o termo biopolítica foi no curso sobre o nascimento da biopolítica em que o foco da análise é o Liberalismo e o Neoliberalismo. Depois de tal curso ele passou a tocar em outros temas, como o cuidado de si, do governo de si e dos outros, e a coragem da verdade. Verifica-se que alguns leitores de Foucault vão denomina-lo de liberal crítico. Se pode presumir contanto, que o francês passou a ser lido por aqueles que afastaram da tradição da esquerda e passaram a usá-lo para além das teorias revolucionárias. Para Foucault não dá para entender a biopolítica a não ser no contexto do Liberalismo e do Capitalismo como tal, pois este é o lócus onde se dá a relação entre: biopolítica e racismo, biopolítica e sexualidade, biopolítica e segurança. A elaboração do recente livro de Agamben, O mistério do mal: Bento XVI e o fim dos tempos (2013),26 foi instigada pela renúncia do Papa Bento XVI ao mandato pontifício, logo, ao cargo de epíscopo da importante diocese de Roma. Agamben opera tomando o exemplo particular de Joseph Aloisius Ratzinger (1927) a fim de que se possa fazer uma análise hodierna dentro da política entre a legalidade e a legitimidade. Segundo Agamben o chefe pontífice se deu conta de que não basta ser papa legalmente para ainda ter legitimidade. Pois o mesmo não conseguia mais governar, ao que abdica daquele cargo. O filósofo indaga o motivo pelo qual os governantes seculares não têm a mesma atitude? Depreende que hoje na democracia vale mais a legalidade do que a legitimidade. (cf. AGAMBEN, 2013).
26 Título
original: Il mitero del male: Benedetto XVI e la fine dei tempi.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 Enfim, o último texto que Foucault escreveu foi sobre o conceito de vida. O mesmo se dá com Gilles Deleuze (1925-1995). Então, o verbete “vida” perpassa a filosofia de Foucault, de Deleuze e de Agamben. Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) reclama em sua obra o fato de que a história ocidental é uma repressão à vida, mas não precisa efetivamente o que foi reprimido. Não diz o que é a vida. Agamben aduz que vivemos hoje um processo de economicização e juridicização de todas as relações humanas, elaborando novas leis de modo desenfreado. Quanto ao fato de querer juridicizar tudo tem ligação com o fato de querer erigir novos cânones e, a fortiori, tornar tudo sempre mais econômico. São processos concomitantes, assim como o é com a teologia, conforme aduzimos.
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Agamben leitor de Foucault, pp. 95-113 FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980. FOUCAULT, M. O sujeito e o Poder In DREYFUS H. e RABINOW P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FOUCAULT, M. Segurança, Território, População: Curso no Collège de France (1977-1978). Trad. de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Trad. de Raquel Ramalhete. 28º ed. Petrópolis: Vozes, 2002. GROS, F. Desobedecer. Brochura, 2018. KANT, I. Resposta à pergunta: “O que é esclarecimento?” Textos seletos. Tradução: Floriano de Sousa Fernandes. 3ª ed. Vozes: Petrópolis, RJ, 2005.
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128
A UNIÃO ENTRE FILOSOFIA E RETÓRICA EM CÍCERO José Valdir Teixeira Braga Filho1
RESUMO: Este artigo trata sobre a orientação política presente na Filosofia e na Oratória de Marco Túlio Cícero, bem como seus desdobramentos. O autor romano ampliou os horizontes destes saberes no seu tempo, e assim, adotou uma postura distinta em relação à tradição que até então, argumentando em favor da união de todos os saberes referentes à cultura humana. A união e o cultivo da Filosofia e a Oratória é defendida pelo autor, em função da possibilidade de contribuir para a vida coletiva, e portanto, defende uma concepção de orador que tem por objetivo não a mera persuasão, mas sim, o agir político. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Oratória. Cultura. ABSTRACT: This article is about the political orientation present in the Philosophy and in the Oratory of Marcus Tullius Cicero, and also its implications. The roman author amplyed the horizons of these sciences in his time, and therefore, adopted a distinct position in relation the tradition, arguing in defense the union of all human sciences. The union of Philosophy and Oratory is defensed by him on purpose of the possibility of a contribution for the collective life, and therefore, Cicero presents a conception of orator that have the aim not persuasion, but the political acting. KEYWORDS: Philosophy. Oratory. Culture.
1 Mestrando em Filosofia na Universidade Federal do Ceará. Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. Contato: valdirdrummer@gmail.com
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 1.Introdução Este artigo trata sobre a união entre Filosofia e Retórica no pensamento de Marco Túlio Cícero, buscando explicitar quais os elementos que o distinguem da tradição grega. Em Cícero, verifica-se a presença de um ideal enciclopédico que orienta a Retórica, não como mera arte de persuasão, mas como um projeto cultural. O autor rompe com a posição prevalente da tradição que concebia a Filosofia e a Oratória como atividades distintas em função da distinção que ambas possuem no que diz respeito aos seus fins e métodos. Por sua orientação ética, Cícero defende que estes e outros saberes devem ser cultivados e exercitados, pois, podem contribuir para a vida coletiva e para o bem comum. Juntas, Filosofia e Retórica, podem auxiliar os homens na condução da sua vida pública e privada. Esta temática exige, ter em conta certo traços característicos, para deste modo, pontuar o caráter específico que tais ramos do saber exercem no universo romano. Na antiguidade, tanto na Grécia como em Roma, a formação do homem alcançava o seu ápice com o aprendizado da Retórica, mas há uma distinção entre ambas. Na cultura grega, os oradores possuíam uma atuação limitada na política pela via dos seus auxílios, em Roma, os oradores eram detentores das posições políticas mais importantes.2 Isto é, apesar da influência grega a oratória romana desenvolveu-se de modo distinto em função do caráter social e político específico da cultura romana, Roma foi palco de muitas controvérsias em função das constantes disputas entre patrícios e plebeus.3 Sendo permitido contar com o auxílio de oradores mais eloquentes que eram proibidos de cobrar pelos serviços prestados, na Grécia, os litigantes não podiam contar com representação, como nenhum outro podia discursar no seu lugar, eles memorizavam e declamavam os discursos construídos pelos oradores. 4 Por este motivo, a oratória era imprescindível para aqueles que desejavam seguir carreira política, ou mesmo cultivar outras atividades. Um ponto comum entre a oratória latina e a grega é que ambas contam com uma dimensão prática e teórica, sendo esta última a que exerceu mais influência na formação latina do orador. Por fornecer um método para bem conduzir os debates políticos a oratória tornou-se um elemento crucial na vida romana. 5
2NIETZSCHE.
Friedrich. Escritos Sobre Retórica. Madrid: Editorial Trotta S.A, 2000. pp.81-82. KENNEDY. George Alexander. A new History of Classical Rhetoric. New Jersey. Princeton University Press. 1994. p.102. 4 O amparo se dava muitas vezes em conformidade com os laços sociais e políticos estabelecidos Trata-se da relação Patrão e Cliente, sobre este tema, ver: Cf. KENNEDY. George Alexander. A new History of Classical Rhetoric. p.103. 5HERRICK, James. The History and Theory of Rhetoric. Boston: Allyn & Bacon, 1996. p.92 3Cf.
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 A época de Cícero consiste num ponto de viragem no âmbito da Filosofia e da Oratória no universo latino. De acordo com Tácito, a oratória romana não se desenvolveu apenas em função da sua presença na atividade política, mas também na sua participação em questões de cunho ético. Neste contexto, além do estudo da oratória havia também interesse pelo pensamento da escola peripatética e da estóica.6 Esta é a riqueza da contribuição de Cícero, que defendeu apenas a junção de novos saberes para o exercício da oratória, como também no caráter do orador. No modelo ciceroniano, o estudo não é restrito a oratória, tornando então necessário o estudo da Filosofia e da Ética e demais disciplinas, pois, na sua concepção, a formação do orador confluía para a atividade política.7 Para que isto se torne evidente é necessário um excurso pelas obras filosóficos e retóricas de Cícero 2. O novo gênero de Oratória no Pro. Archia. No discurso Pro Archia, pode-se verifcar a presença de certos elementos que contribuem para amplitude que a Oratória assume na orientação de Cícero. sem contar com a novidade que o discurso apresenta em relação aos gêneros retóricos vigentes. Para além das questões legais, Cícero tece um elogio às studiis humanitatis ac literatum, (estudos humanísticos e literários, ou da humanidade e das letras).8 e os seus benefícios para a vida privada e coletiva, ao argumentar em favor da contribuição do poeta Áquias nos seus primeiros anos de formação.9 Como pode ser indicado: [...] Se eu tenho algum talento, Juízes e bem sinto quanto ele é escasso, se tenho alguma prática da oratória, na qual não nego ser medianamente versado, ou se tenho algum conhecimento desta matéria oriundo do estudo sistemático das artes liberais, estudo do qual, confesso, jamais me afastei em época alguma de minha vida, de tudo isso, quase por direito próprio, deve mais do que ninguém exigir-me o fruto Aulo Licínio, aqui presente.10
De acordo com esta passagem é possível verificar a posição de Cícero, em favor de uma formação que abarcar saberes diversos. Aquilo que Cícero compreende por artes liberais, consiste nos estudos que constituíam a formação do “homem livre”11, sendo assim: dalética, retórica,
6 TACITUS.
Agricola and Germany of Tacitus and the Dialogue on Oratory. Tradução de Alfred Jhon Church e William Jackson. London: Macmillan and Co, 1877. pp.194-195 7 Ver ainda HERRICK. James. The History and Theory of Rhetoric.pp.98-99. 8 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, trad. port. Maria Isabel Rabelo Gonçalves, Lisboa: Editorial Inquérito, 1986, 2ed, p. 19. 9 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 17. 10 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p.15. 11 Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995 p, 17.
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 gramática e aritmética.12 Neste sentido que Cícero indica que há também uma relação entre estas ciências com a arte poética, daí ele argumenta:“[...] todos os conhecimentos relativos à cultura humana têm como um vínculo comum e estão ligados entre si por uma espécie de parentesco”.13 É possível indicar como exemplo desse elo, o costume dos antigos poetas em criar versos sobre eventos históricos.14 Outro exemplo, pode ser identificado no seu diálogo De Oratore, conforme nota, ainda que sejam atividades distintas, oradores e poetas compartilham em comum a característica de que ambos não possuem limites em relação às temáticas que podem tratar.15 Nesse sentido, Cícero defende a importância e a necessidade de se cultivar as Letras, explicitando assim a contribuição que tais estudos para a eloquência.16 Conforme ele argumenta: “[...] que se envergonhem os outros todos os que se embrenham nas letras sem nada delas extraírem para o benefício geral e sem nada apresentarem à opinião pública”.17 Trata-se aqui de um lugar comum nas obras de Cícero, por isso tece críticas àqueles que se dedicaram aos estudos buscando apenas honras e prestígio político, pois, no seu entender, o estudo das coisas humanas é necessário à vida coletiva.18 Daí Cícero destacar a importância de valer-se dos escritos dos autores gregos19,
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Sobre esse ponto, é importante ressaltar que, durante a antiguidade clássica, Platão posicionava-se contrário à noção de uma formação geral, ou Paidéia, apresentando a Filosofia como único meio para educação. Ao contrário, Isócrates defende a importância da formação em conformidade com a Paidéia ao lado do estudo da Filosofia. Na antiguidade tardia, as artes que compõem a studia liberalia assumem papel propedêutico à Filosofia. O plano contava com a gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia. Nesse sentido, ver: CURTIUS, Ernst Robert. European Literature and the Latin Middle Ages, trad. ing. Willard R. Trask. New York: Harper Torchbooks, 1963, pp. 35-37. 13 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 17. 14 No discurso em questão, Cícero expõe que Árquias narrou a Guerra Mitridática. Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 41 Na obra ciceroniana República, é possível também identificar um argumento a favor da relevância histórica das Letras: “[...] A própria inteligência, as vozes, que pelo seu som pareciam antes infinitas, assinalaram-se e se expressaram todas com poucos sinais e caracteres, com os quais se tornou possível falar com os ausentes, manifestar os movimentos de nossa alma e esculpir nos monumentos a lembrança das coisas que se foram”. Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Re Publica. In: Antologia de Textos: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca. trad. br. Agostinho da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 167. 15 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Oratore ad Quintum Fratrem Dialogui Tres, trad. ing. E. W. Sutton, Cambridge: Harvard University Press,1948, p.51. 16 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Oratore ad Quintum Fratrem Dialogui Tres, p.51. 17 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 31. Vale lembrar que no quinto Paradoxo, Cícero argumenta: “Apenas o sábio é livre, todo insensato é escravo”. Nesse escrito, Cícero defende que, em contraposição ao sábio, aquele que é insensato tornar-se escravo dos seus vícios, pois não consegue refreá-los e controlar a si. O autor também reafirma a relevância da Filosofia e do cultivo das Letras, ressaltando a contribuição que ambas podem exercer na vida política e privada. Ver: CÍCERO. Marco Túlio. Paradoxa Stoicorum. In: Textos Filosóficos. trad port. J. A. Segurado Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 22. 18 A mesma tese é também apresentada na sua obra Hortensius: Cf. CÍCERO. Marco Túlio. Hortensius. In: Textos Filosóficos. trad port. J. A. Segurado Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 39. 19 Vale aqui lembrar que Cícero, apesar da forte identidade romana presente em seu pensar exorta ao estudo da filosofia grega levando em consideração que há muito nelas que pode ser mais proveitoso. Como é possível observar no discurso de Cipião, pertencente ao seu diálogo República: “[...] Suplico-vos, portanto, que não me escuteis como a um ignorante, completamente estranho às teorias gregas, nem tampouco como a um homem inteiramente disposto a dar-lhes preferência; sou romano antes de mais nada, educado pelos cuidados de meu pai no gosto dos estudos liberais”. Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Re Publica. In: Antologia de Textos: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca. trad. br. Agostinho da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 146.
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 levando em consideração a riqueza do saber ético.20 Segundo ele explicita: “[...] todos os livros estão plenos de obras assinaláveis, plenas estão as lições dos sábios, plena a Antiguidade de exemplos: todos ficariam nas sombras, se lhes não valesse a luz das letras.” 21 Por este motivo, Cícero afirma que os autores clássicos devem servir de modelo, 22 sustentando também que o cultivo das Letras contribui para a disposição natural.23 Desse modo, percebe-se a importância dos estudos,24 unidos ao cultivo da virtude, pois confere louvor às coisas humanas, por serem as Letras tão dignas quanto as demais artes. Conforme Cícero comenta: [...] Na verdade, se as letras em nada os auxiliassem na aprendizagem e no cultivo da virtude, nunca eles se teriam consagrado ao seu estudo. E ainda que tão grande fruto se não mostrasse e que de tais estudos apenas se reclamasse o simples deleite, mesmo assim, segundo me parece, haveríeis de considerar bem digno de homens livres este refrigério do espirito. É que os outros nem são de todas as ocasiões, nem de todas as idades, nem de todos os lugares, ao passo que estes estudos nutrem a juventude, distraem a velhice, realçam os momentos felizes, propiciam refúgio e conforto nos infelizes, deleitam-nos em casa, não nos estorvam na rua, dormem conosco, conosco viajam. 25
Se vem atribuído mérito e admiração aos homens que cultivam as demais ciências, também deve-se fazer o mesmo aos homens das Letras, e mesmo os poetas que, destituídos de uma arte, leve-se em consideração a utilização que eles fazem dos estudos para contribuir com o sua aptidão natural.26 Ao considerar a posição privilegiada que o orador ocupava na atividade política na Roma, Cícero, ao estabelecer uma relação entre a oratória e as Letras, atribui-lhes uma relevância e, desse modo, apresenta um ideal do agir humano. Embora Cícero evoque saberes gregos, ele se reporta a uma identidade romana. Daí Cícero operar uma ampliação do universo da oratória, bem como a noção de studia humanitatis 27 e, assim, identificar nas Letras, uma relevância política, quando elas tratam dos benefícios que podem fornecer aos homens e aos estados. Ao demonstrar a relação entre as coisas humanas e incentivar, não o estudo de alguma, em específico, mas o cultivo da diversidade, pode-se reconhecer o ideal enciclopédico no pensamento ciceroniano e de sua concepção retórica.
20
Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 21. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 31 22 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 31. 23 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 31 24 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 33. 25 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 35. Algo que revela a diferença entre Cícero e certa orientação dos saberes gregos, pois, enquanto Cícero reconhece, na atividade dos poetas e no cultivo e estudo das Letras, algo capaz de atribuir prestígio, por sua vez Platão expulsa os poetas da sua república ideal. Ver, nesse sentido, PLATÃO. A República, pp. 331-366. 26 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 37. 27 Noção esta que mais tarde contribuirá para o surgimento dos estudos humanísticos na Renascença italiana. A respeito desse tema, ver aqui: KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. trad. port. Artur Morão, Lisboa: Edições 70. 21 Cf.
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 Como é possível observar, Cícero assume uma posição crítica em relação à tradição oratória em seu tempo, buscando explicitar a relação entre as coisas humanas, ele demonstra que a Oratória não atua em função de si mesma.28 Ademais, esse discurso revela certo ideal de orador profundamente nutrido, como já aqui abordado, de uma cultura ‘humanista’ e, igualmente o reconhecimento do valor da eloquência que, por sua vez, não se apresenta apenas como instrumento de persuasão, mas também como expressão artística e literária. Ao assumir determinada postura, Cícero também assume uma particularidade no que concerne à Filosofia e à Oratória, tema este abordado no tópico a seguir. 3. A orientação filosófica e oratória de Cícero Certamente Cícero configurou uma ampliação da relação entre Oratória e Filosofia na tradição, tanto que ambas se encontram na sua reflexão em sentido cultural e político: algo que representa uma ruptura da cisão presente nos pensadores que o antecederam. Platão29 rechaçou a Retórica em favor de sua dialética e Aristóteles a pensou como um método de descoberta do que pode ser persuasivo no discurso30. Cícero, por sua vez, embora adotasse algumas teses desses pensadores, expressa uma posição diversa em relação à conexão entre Filosofia e Oratória. Neste momento da exposição é preciso explicitar determinadas teses, presentes no pensamento ciceroniano, a fim de uma melhor compreensão daquilo que ele postulou sobre tal relação.31 Em primeiro lugar, é importante abordar o que a reflexão de Cícero apresenta no universo epistemológico. Antes de mais, pode-se sustentar que Cícero considera que o gênero humano não dispõe daquilo que é necessário, seja do ponto vista da razão seja da sensibilidade para alcançar com segurança a verdade. Este princípio o leva a adotar, em certa medida, a máxima estoica de que nada pode ser compreendido. No entanto, ao admitir por essa via a possibilidade de se cair no erro, mesmo
28
Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Pro A. Licino Archia Poeta Oratio, p. 17. A problemática da Retórica no pensamento platônico possui muitos desdobramentos em diálogos diversos, por isso, foi tratada em perspectivas distintas. Para esta exposição, pode-se referenciar aqui a crítica no seu Górgias (ou Da Retórica) De acordo com a crítica de Platão, o orador possui apenas a aparência do conhecimento, daí construir os seus discursos com base em teses verossimilhantes. Por essa razão, a Retórica não seria uma arte, porém, uma habilidade experimentada, uma vez que as suas noções e métodos não teriam sido construídos com base na investigação e segundo um rigor lógico, mas apenas segundo a rotina empírica. Valendo-se desta concepção, Platão busca uma definição mais acurada da Retórica. Daí ele sustentar que as suas práticas se apresentam de dois modos: aquelas que ignoram o saber e não visam nada além do prazer, e aquelas racionais. Górgias. In: ______. Dialogos II: Gorgias (ou da retórica). Tradução de Edson Bini. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2016. 30 Cf. ARISTÓTELES. Retórica, Trad. Manuel Alexandre Junior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel Do Nascimento Pena, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa Da Moeda p. 95. 31 Para esta pesquisa optou-se pelo uso do título original das obras de Cícero a fim de se evitar confusões causadas pela tradução. 29
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 por meio da reflexão, Cícero, em seu diálogo Academia Priora, não se considera sábio, justificando que diferente do sábio, ele emite opiniões.32 Isso ocorre, também, em razão do seu desejo de dedicar-se à atividade filosófica. Conforme ele sustenta em Academia Priora: “[...] não só me move o desejo de encontrar a verdade, mas também dizer aquilo que penso”.33 Pressupondo aqui tal formulação, pode-se compreender que, no entender de Cícero, assentir, também integra parte da atividade filosófica, isto é, ao considerar como impossível a segurança necessária que evidencie uma tese de certa natureza como verdadeira, ele identifica a probabilidade de se conceber o falso como verdadeiro. Por essa razão, ele ressalta o emprego de um método que possa servir de auxílio para empreender a busca da verdade com a finalidade de se evitar o erro.34 O procedimento adotado por Cícero, em sua tentativa de contornar os obstáculos existentes para conhecer a verdade, pode ser encontrado em sua Academia Priora. Nela Cícero adota, como procedimento das suas investigações, o levantamento de teses distintas, mas que versam sobre uma mesma temática, pois compreende que, desse modo, esteja apto para descobrir, no curso de sua reflexão, uma tese que possa ser verdadeira ou verossímil35. Segundo ele argumenta: “[...] nas minhas discussões apenas pretendo exprimir e escutar as razões de ambas as partes, de modo a chegar-se a uma conclusão que seja verdade, ou que desta se aproxime”.36 Daí se identificar aqui uma das razões de Cícero não aderir a nenhuma escola específica. Conforme ele expõe, muitos se veem obrigados, ao pertencer a alguma doutrina, a aderir a teses, mesmo as considerando incoerentes, em consonância com a orientação deles, sem as limitações impostas pelas orientações filosóficas. Nesse sentido, Cícero defende a autonomia para o seu pensar e, segundo ele acrescenta mais adiante: “[...] não me vejo obrigado a defender teorias que sejam prescritas, e como se impostas à força”37 Em conformidade com a sua obra Hortensius, segundo narra Agostinho, obra hoje perdida, tinha por objetivo incentivar a prática “[...] não os ensinamentos desta ou daquela escola, mas sim a sabedoria em si”.38
32
Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora. In: Textos Filosóficos. trad port. J. A. Segurado Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 143 33 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 141. 34 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, pp. 141-142. 35 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Officiis, Trad. Ing. Walter Miller. London: William Heinemann, 1967 p.175. 36 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 100. 37 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 100. 38 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Hortensius. In: Textos Filosóficos. trad port. J. A. Segurado Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 48..
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 Daí ser possível afirmar o comprometimento de Cícero com a Filosofia e não com alguma corrente filosófica específica. Conforme ele escreveu: tinha como objetivo expandir a cultura dos seus concidadãos e “[...] nenhum modo mais apropriado encontr[ou] do que explanar para os [s]eus concidadãos a forma de aceder às mais nobres artes, isto é, estudo e prática da filosofia”. 39 Em virtude de ter como base o princípio de que nada pode ser compreendido, mesmo aquelas determinadas orientações filosóficas aceitas como verdadeiras, Cícero as concebe apenas como verossímeis. Como se pode observar na seguinte passagem: [...] entre mim e os que julgam saber alguma coisa a única diferença é que estes não hesitam em declarar verdadeira a tese que defendem, enquanto para mim muitas ideias são meras probabilidades, que podemos aceitar com facilidade, mas não podemos garantir serem verdade.40
De acordo com Cícero, é possível efetuar nosso assentimento sobre certas temáticas, como, por exemplo, às de natureza ética, ou física, embora, segundo ele ressalta, não haja como assegurar que sejam verdadeiras. Enquanto personagem do diálogo, Cícero revela concordar com Carnéades, ao argumentar que as representações sensoriais podem ser divididas em duas: as traduzidas em conhecimento e as que não podem, ou as verossímeis e as inverossímeis. No seu entender, “[...] não existe nenhuma representação sensorial que possa traduzir-se em conhecimento, mas há muitas de que decorrem opiniões verossímeis”
41.
Cícero não nega a
possibilidade de se obter conhecimento, mas a de assegurar como verdadeiro. Deve-se levar isso em consideração nos muitos conhecimentos oriundos dos sentidos.42 Nesse sentido, Cícero argumenta que o sábio também assente, mesmo sobre o que é incerto. No seu entender, isso configura uma condição possível para conduzir a vida. Pode-se identificar a ampliação da ideia de verossímil na sua filosofia, ao sustentar que um fenômeno pode ser considerado como tal, na medida em que não há uma tese que destitua o seu valor. Por isso, Cícero compreende que um fenômeno pode ser acatado como verossímil caso não haja uma tese que o contradiga: algo que configura uma condição aceitável para conduzir a vida. Ademais, ele defende também que o sábio pode emitir opiniões, pois: “[...] Se o sábio não aceitar, tornará de todo impossível a vida”.43 Isso porque, conforme ele argumenta, a Filosofia não se limita apenas a questões especulativas sobre a natureza, uma vez que ela pode também refletir sobre questões 39 Cf.
CÍCERO, Marco Túlio. Hortensius, p. 40.. Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 100. 41 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 168. 42 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 168. 43 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 168. 40
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 relativas aos modos de conduzir a vida.44 De acordo com a sua teoria, com a ausência do critério do verossímil, torna-se impossível dar prosseguimento à vida no que concerne às escolhas e tomadas de decisão, pois o único critério que nos resta é o do verossímil. Para Cícero, assentir também abarca tomar decisões45 e parece conceber o verossímil como algo que possibilita nossas ações, sem a necessidade de uma deliberação anterior. De acordo com as suas considerações em Academia Posteriora: [...] “provável” ou “verossímil” chamam os acadêmicos ao que nos pode levar a agir mesmo sem o nosso assentimento; digo “sem assentimento” quando aquilo que fazemos nem o imaginamos, nem estamos seguros de que sabemos ser conforme a verdade, mas mesmo assim fazemo-lo. 46
Em verdade, Cícero não deixa claro o seu vínculo com uma escola filosófica específica. Enquanto personagem do diálogo, Cícero sustenta determinadas teses em comum com a Nova Academia, dentre elas a da dificuldade de se alcançar a verdade. Conforme ele explicita: “[...] nós não negamos que exista a verdade, negamos sim, a possibilidade de conhecê-la”.47 Isso significa dizer que não há como apreender o verdadeiro com segurança. Ao se considerar que Cícero não negou em seus escritos a existência do verdadeiro, no entanto, ele assume certa postura cética como parte do processo de reflexão filosófica. Para ele, a tese de que nada pode ser compreendido, está em harmonia com o pensamento socrático. Daí se poder identificar certa influência platônica no seu pensamento. Segundo ele escreve: [...] Sócrates entendia nada poder saber, com exceção deste facto, desde único facto: que sabia que não sabia nada. E que dizer de Platão? Decerto que ele não repetiria esta ideia em tantas de suas obras se porventura não estivesse de acordo com ela. 48
Ainda sobre as correntes filosóficas, Cícero alerta que, pelo fato de elas discorrem muitas vezes sobre as mesmas temáticas e chegarem assim a diferentes conclusões, isso implica necessariamente que entre duas teses contrárias apenas uma é verdadeira. Porém, ele não vê nisso um obstáculo para uma vez ou outra concordar com alguma escola.49 Lembrando que Cícero se revela consciente da possibilidade de cometer enganos, pois se pode assentir sobre determinadas
44
Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 140. Ver aqui CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 175. 46 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Posteriora. In: Textos Filosóficos. trad port. J. A. Segurado Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 240 47 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 148. 48 CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 149. 49 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 195. 45
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 temáticas, entretanto, isso não assegura poder se evitar erro, mesmo naquilo que se concebe como verdadeiro, pois é no máximo verossímil. Como ele afirma: [...] Não creio que haja uma doutrina à qual eu adira sem receio de estar a acreditar numa coisa que às vezes até pode ser falsa, porque nenhuma representação existe que garantidamente permita distinguir o verdadeiro do falso, sobretudo porque carecem de valor os critérios proposto pela dialética.50
É preciso indicar a particularidade da postura de Cícero em relação à Oratória, pois ele trata das questões de oratória, não enquanto orador, mas como filósofo. Por isso, ele concebe as suas obras sobre oratória como obras filosóficas. Isso porque: […] Considerando, Aristóteles e Teofrasto, ambos foram admirados pelo entusiasmo do intelecto e particularmente, pela copiosidade do discurso, uniram retórica e filosofia, parece-me também adequado localizar meus livros retóricos na mesma categoria; por isso devemos incluir os três volumes De Oratore, o quarto intitulado Brutus e o quinto chamado Orator.51
Ao interpretar os filósofos antigos, Cícero identifica neles o caráter oratório. Daí ser possível identificar a amplitude que a oratória assume na concepção de Cícero, ao orientá-la para além dos limites estabelecidos para o uso desta arte em seu tempo. Sustentava-se que o seu emprego cabia apenas ao âmbito da jurisprudência, entretanto, o estilo e tudo mais que concerne à arte do discurso não cabe somente ao orador judicial, uma vez que os filósofos também dispunham dela. Neste sentido, podemos indicar no De Oratore um trecho do discurso de Cévola que argumenta em favor da filosofia, conforme ele sustenta: “[...] Aristóteles e Teofrasto não escreveram apenas melhor, mas também muito mais que todos os professores de retórica juntos”.52 Contudo, na réplica de Crasso, defende-se que mesmo Platão, no Górgias, ao atacar a Retórica, identificando-a com a sofística, termina por se apresentar como um ótimo orador. De acordo com o discurso de Crasso: “[...] ao ridicularizar os oradores que ele mesmo pareceu para mim o orador consumado”.53 Daí se observar que a utilidade da oratória ciceroniana não auxilia apenas nas disputas jurídicas, mas, igualmente, presta serviços à Filosofia. Por isso, ele defende que o valor da oratória não está nela mesma, mas
50
Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Priora, p. 202. pode ser verificado no início do segundo livro do De Divinatione, onde Cícero faz alusão algumas de suas obras, com um breve comentaria sobre o conteúdo. Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Divinatione, trad. eng. William Armistead Falcaoner. Cambridge: Harvad University Press, 1969, p. 373: “[...] Inasmuch as Aristotle and Theophrastus, too, both for whom were celebrated for the keenness of intellect and particularly for their copiousness of speech, have joined rhetoric with philosophy, it seems proper also to put my rhetorical books in the same category; hence we shall include the three volumes On Oratory, the fourth entitled Brutus and the fifth called The Orator”. 52 CÍCERO. Marco Túlio, De Oratore ad Quintum Fratrem Dialogui Tres, p. 33: “[...] Aristotle and Theopharastus wrote not only better but also much more than all teachers of rhetoric put together”. 53 CÍCERO. Marco Túlio, De Oratore. pp. 35-37: “[...]when making fun of orators that he himself seemed to me to be the consummate orator”. 51 Como
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 na Filosofia. Em seus termos, ele escreve: “[...] qualquer habilidade que eu possua como orador, não procede das oficinas dos retóricos, mas dos terrenos da Academia”.54 Não obstante o auxílio que a Filosofia pode realizar sobre a oratória, Cícero explicita que os filósofos descuidaram do gênero jurídico, ao criticar que eles não requereriam uma arte. Para Cícero, isso explicaria a razão pela qual algumas vezes os filósofos podem ser obscuros, pois eles não aprenderam a comunicar-se com as multidões.55 Ele acrescenta ainda que: “[…] Eles deixaram isto para as Musas rudes”.56 Em virtude disso, pode-se ainda indicar outro ponto importante concernente à filosofia de Cícero, a saber: o da relação entre Filosofia e Oratória possuir também uma dimensão política. A união entre ambas seria necessária para que seja possível a vida em comunidade e, também, para a busca da verdade.57 Por isso, a sua concepção de eloquência não diz respeito apenas à habilidade do discurso, pois ela possui uma dimensão política.58 Logo tal união não possui caráter unilateral, mas uma relação de reciprocidade. Aquilo que é pensado pela Filosofia para o bem comum pode ser expresso melhor ao contar com a oratória. Nesse sentido, ele acrescenta: […] muitas cidades foram fundadas, e as chamas de múltiplas guerras foram extinguidas, e que as mais fortes alianças e as mais sagradas amizades foram formadas não apenas pelo uso da razão, mas também foram facilitadas pela ajuda da eloquência. 59
Como se pode observar até aqui, existem traços específicos no pensamento de Cícero que definem a originalidade de seu pensamento. A sua postura de não aderir a uma escola filosófica, de modo específico, permite o trato com teses distintas as quais podem auxiliar a busca da verdade. Ao considerar a multiplicidade delas, ele demonstra que o verossímil tem uma utilidade filosófica. Cícero identifica na Filosofia e na Oratória uma relação de contribuições mútuas. Daí ele não escrever sobre oratória como orador, mas como filósofo, ou seja, as suas obras sobre oratória são, também, filosóficas. Ademais, é preciso não esquecer que a união entre as duas ciências possui, para Cícero, uma ligação orientada ao âmbito político. Cícero escreveu sobre Filosofia tendo como fim principal, divulgar e incentivar a filosofar60, valendo-se da tese de que a Filosofia é também um guia para a
54
CÍCERO. Marco Túlio, Orator ad M. Brutum, trad. ing. H.M. Hubbel. Cambridge: Harvad University Press, 1952, p. 313: “[...]whatever ability I possess as an orator comes, not from the workshops of the rhetoricians, but from the spacious grounds of the Academy”. 55 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Orator ad M. Brutum, p. 315 56 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Orator ad M. Brutum, p. 315: “[...] They left this to the ruder Muses”. 57 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Officiis, pp.13-15. 58 Sobre a conclusão de um argumento desenvolvido, ver aqui: CÍCERO, Marco Túlio. Orator ad M. Brutum, p. 317. 59 CÍCERO, Marco Túlio. Orator ad M. Brutum, trad. ing. H.M. Hubbel. Cambridge: Harvad University Press, 1949, p.3: “[...]many cities have been founded, that the flames of a multitude of wars been extinguished, and that the strongest alliances and most sacred friendships have been formed not only by the use of the reason but also more easily by the help of eloquence”. 60 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Hortensius, p. 40.
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 vida.61 Embora ele trate da importância da língua grega no Pro Archia, Cícero incumbiu-se da tarefa de tornar acessível em latim o pensamento grego,62 contrariando, assim, a orientação corrente em seu tempo, a qual defendia que quem se interessasse pelo estudo de tal ciência, devesse buscar os escritos gregos.63 Por sua vez Cícero explicita a necessidade a qual deve possuir aquele que se dedica à investigação filosófica, ou seja, buscar o conhecimento de tudo quanto possível. Segundo ele expõe: “Na filosofia é difícil a alguém conhecer um pouco se não conhecer bem também quase tudo, ou mesmo tudo. É que pouco só faz sentido se for resultado de uma escolha entre muitas coisas, e quem perceber pouco não pode deixar de tentar conhecer tudo o mais com o mesmo empenho”64.
Tal concepção também pode ser identificada na sua reflexão sobre a Retórica. Como se pode observar, Cícero investiga e escreve sobre uma variedade de autores, mas não adere a alguma escola.
No De Inventione, ele reconhece que os autores acertaram em determinados aspectos,
assim como falharam em outros, por isso, uma única obra é insuficiente para servir de modelo. Dito isto, Cícero explica que a produção de um discurso se assemelha a de um quadro,65 pois o pintor que busca representar um ideal de beleza, não encontrará referências necessárias ao consultar apenas um modelo, desse modo pode contar com o que há de melhor em cada um dos autores. 66 Cícero escreve: “[…] depois de coletar todas as obras sobre o tema eu escolhi aquilo que me pareceu os preceitos mais apropriados de cada um, e colhi a flor de muitas mentes. Para cada um desde escritores os quais ricos de fama reputação aparentam dizer qualquer coisa melhor do que qualquer um, mas não prevalecem em todos os pontos.”67
Cícero estima variados autores, pois pressupõe que, apesar de certos erros, pode-se buscar, no pensamento deles, algo de valoroso. Daí ele sustentar: “[…] Parece tolice, portanto, recusar a seguir as conquistas de quaisquer autor, apenas porque eu incomodei-me com alguma falta em seu trabalho, assim como seguir os erros de quem me atraiu por algum preceito correto”.68 Nessa perspectiva pode-se avistar a relevância que Cícero atribui as coisas divinas e humanas na sua 61 Cf.
CÍCERO, Marco Túlio. Hortensius, p. 85. Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Posteriora, p. 212. 63 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Academia Posteriora, p.216. 64 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Hortensius, p. 37. 65 Sobre este ponto, ver: CÍCERO, Marco Túlio. De Inventione, p. 169-171. 66 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Inventione, p. 171. 67 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Inventione, pp. 169-171:“[...] but after collecting all the Works on the subject I excerpt what seemed the most suitable precepts from each, and so culled the flower of many minds. For each of the writers who are worthy of fame and reputation seemed to say something better than anyone else, but not to attain pre-eminence in all points. 68 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Inventione, p. 171: “[...] I was able to set out before me the store of wisdom of all who had written from the very beginning of instruction in rhetoric down to the present time, and choose whatever was acceptable” 62
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 República, a exemplo de Sócrates, que direcionou as suas reflexões ao que diz respeito às questões dos costumes, o qual Platão, uniu na sua doutrina aos saberes da filosofia natural e metafísicos.69 De acordo com Platão: “[...] uniu o enlace e a sutiliza da eloquência socrática à profundidade e obscuridade de Pitágoras”. 70 Até este momento, pode-se identificar que no pensamento de Cícero está presente a tese de que o indivíduo deve viver em vista do bem-comum, exigindo, assim, conhecimentos adequados em Oratória e Filosofia. Isso justifica a sua concepção de uma formação ampla que envolve vários saberes, pois, no seu entender, mesmos os saberes que aparentemente não possuem relação com a vida coletiva, como a filosofia natural e a metafísica, exercem forte contribuição. Nesse sentido, o diálogo o De Re publica apresenta Péricles como exemplo de homem dotado de cultura, o qual, graças aos seus conhecimentos em filosofia natural e retórica, conseguiu apaziguar os ânimos do povo aterrorizado pela ocorrência de um eclipse.71 Destarte, Cícero defende, por meio da Oratória, tornar o saber acessível aos demais indivíduos, pois, ao contrário dos demais saberes, tem por dever permanecer disponível, a todos os níveis. Conforme ele comenta: “[...] os temas das outras artes procedem como que por regra de fontes escondidas e remotas, enquanto toda arte oratória permanece acessível, e está em certa medida importase com a prática comum, costumes e discurso da humanidade, ao passo que, em todas as outras artes o mais excelente o que é extraído para longe da compreensão e capacidade metal dos não treinados, na oratória o maior pecado é separar-se da linguagem do dia-adia, e do uso aprovado pelo senso de comunidade.72
Por isso, Cícero ressalta a importância de o orador aprender lógica, em conjunto com o cultivo da eloquência73 e, igualmente, os demais saberes filosóficos, pois a Filosofia é essencial para uma completa exposição dos objetos, levando em consideração que as temáticas, que muitas vezes apareciam nos debates, estão sob o seu domínio, sejam eles: “[...] referentes à religião, morte, piedade, amor à pátria, bem e mal, vícios e virtudes, deveres, dor, prazer, perturbações da alma e os erros”.74 Daí a síntese que Cícero apresenta no Brutus, ser possível verificar que sem o estudo das
69 Cf.
CÍCERO, Marco Túlio. De Re Publica, p.142 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Re Publica, p.142 71 Cf. CÍCERO, Marco Túlio. De Re Publica, p.142 p. 144. 72 CÍCERO. Marco Túlio, De Oratore ad Quintum Fratrem Dialogui Tres, p, 11: “[...]the subjects of the other arts are derived as a rule from hidden and remote sources, while the whole art oforatory lies open to the view, and is concerned in some measure with the common practice, custom, and speech of mankind, so that, whereas in all other arts that is most excellence which is farthest removed from the understanding and mental capacity of the untrained, in oratory the very cardinal sin is to depart from the language of everyday life, and the usage approved by the sense of the community” 73 Cf. CÍCERO, Marco Túlio.Orator ad M. Brutum, p. 389. 74 CÍCERO, Marco Túlio.Orator ad M. Brutum, p. 393: “[…] they concern religion, death, piety, patriotism, good and evil, virtues and vices, duty, pain, pleasure, or mental disturbances and errors”. 70
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A união entre filosofia e retórica em Cícera, pp. 114-128 Letras não se adquire a eloquência plena. Ao lado da Filosofia, ele põe ainda a Jurisprudência e considera ambas como necessárias para a função do orador.75Ademais, é preciso recordar ainda que não basta ao orador o trato de variadas questões, uma vez que ele deve tratá-las de modo que os saberes sejam acessíveis. Nesse sentido, ele sustenta: “[...] é eloquente aquele que pode discutir as matérias dos lugares-comuns de modo simples”.76 Conforme aqui se explicita, Cícero não propõe a investigação e o cultivo de um saber específico, tanto a Filosofia e a Oratória, bem como as ciências a elas relacionadas, pois ocupam um papel importante na sua concepção de um orador, assim como o seu objetivo de ampliar a cultura de seus concidadãos 4. Considerações finais À guisa de conclusão podemos aqui destacar novamente os argumentos desenvolvidos ao longo desta investigação. De início, indicou-se o novo horizonte ciceroniano da oratória, explicitando a relevância de sua defesa do poeta Arquia, a qual se expressa com base em um novo gênero da eloquência. Não se pode desconsiderar, igualmente, a presença de certo ideal enciclopédico que orienta a Retórica como projeto cultural em Cícero, pois rompe com a posição prevalente da tradição retórica, a qual concebia a filosofia e a oratória como atividades que deveriam ser empregadas distintamente em função de possuírem fins e métodos diversos. Cícero, por sua vez, parte do princípio de que o cultivo e o exercício dos saberes, que compõem as ciências em um sentido amplo, podem contribuir para a vida coletiva e para o bem comum, uma vez que a Oratória só é bem quista em função da Filosofia. Daí se identificar no pensamento de Cícero uma dimensão cultural e política, no que concerne à união entre tais ciências, pois a sua concepção de Oratória não se reduz à mera persuasão e, igualmente, um discurso com forte orientação ética, porque pode auxiliar os homens na condução da vida política. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Olavo Vinícius Barbosa de. O Brutus de Marco Túlio Cícero: estudo de tradução. 2014. 208 f. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-06052015-121442/pt-br.php>. Acesso em: 03 abr. 2019. 75
Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Brutus. In ALMEIDA, Olavo Vinícius Barbosa de. O Brutus de Marco Túlio Cícero: estudo de tradução. 2014. 208 f. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-06052015-121442/pt-br.php>. Acesso em: 03 abr. 2019. 76 Ver CÍCERO, Marco Túlio.Orator ad M. Brutum, p,379.
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SCHOPENHAUER, O GÊNIO E A FILOSOFIA EM SCHOPENHAUER COMO EDUCADOR, DE NIETZSCHE David Rogério Costa de Lima1 RESUMO: O presente artigo buscará analisar como a visão de Nietzsche de homem schopenhaueriano, influencia na sua noção de gênio apresentada em sua terceira consideração extemporânea: Schopenhauer como educador. Veremos, adiante, de que maneira o nascimento, a formação e a preservação do gênio devem ser, segundo Nietzsche, o objetivo máximo da cultura. Por fim, analisaremos como Nietzsche extrai, a partir da vida de Schopenhauer, exemplos práticos que guiarão a formação do gênio, e o papel fundamental que a filosofia deve ocupar nesse processo perante à Universidade e ao Estado. PALAVRAS-CHAVE: Educação. Formação. Cultura. Gênio. Filosofia.
SCHOPENHAUER, THE GENIUS AND THE PHILOSOPHY IN SCHOPENHAUER AS EDUCATOR, BY NIETZSCHE ABSTRACT: The present article will analyze how, Nietzsche's of schopenhauerian man, influences his notion of genius presented in his third untimely meditation: Schopenhauer as educator. We shall see how the birth, formation, and preservation of genius must be, according to Nietzsche, the ultimate goal of culture. Finally, we will analyze how Nietzsche extracts, from the life of Schopenhauer, practical examples that will guide the formation of the genius, and the fundamental role that philosophy must occupy in this process before the University and the State. 1 Titulação:
Graduado em filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestrando em filosofia pela mesma instituição. E-mail para contato: davidrogerio91@gmail.com
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KEYWORDS: Education. Formation. Culture. Genius. Philosophy. Introdução O século XIX trouxe muitas inovações no campo da ciência, da política e da economia. A filosofia em voga, segundo Nietzsche, colocava o Estado como o fim último da humanidade. Exaltavam-se cada vez mais as ciências particulares, reflexo da divisão do trabalho, em detrimento da visão de totalidade, que somente a filosofia é capaz de oferecer. Com o enfraquecimento da Igreja, que mantinha sob controle as forças antagônicas, pelo advento da Reforma, e o fortalecimento dos proprietários e militares; os homens entraram desenfreadamente em conflito uns com os outros, fazendo transparecer toda sua covardia, seu egoísmo, em suma, sua animalidade. Nos meios acadêmicos reinava o espírito jornalístico, que orientava a uma pseudoerudição e uma inconsequente liberdade aos estudantes. Levantando-se contra todo esse estado de coisas, Nietzsche escreve sua terceira consideração extemporânea, Schopenhauer como Educador. Nietzsche travou um forte embate contra o espírito de sua época, representado em crenças e dogmas que ele chamou de “barbárie da modernidade”. Na contramão dessas ideias, Nietzsche propõe não o Estado, como pretendia a filosofia em voga na época, mas o conhecimento como o fim último da humanidade, e todo o esforço da cultura, e dos homens que trabalham para realizar a cultura, deve ser canalizado para o engendramento do gênio, ou seja, daquele que, através do conhecimento, vem redimir a natureza de sua falta de significação, de seu caráter absurdo, realizando assim seu objetivo supremo. A falta de um modelo moral e ilustre era mais um ponto que incomodava Nietzsche até então, já que a Ciência, abstração inumana segundo ele, é que havia tomado a responsabilidade de educar os homens daquela época. Um formalismo puro tomou o lugar nas escolas e Universidades, e a virtude se tornou apenas uma palavra vazia, da qual se ri Em meio ao ambiente universitário, aparece para Nietzsche, Arthur Schopenhauer. E foi justamente a honestidade de Schopenhauer que lhe chamou atenção, em um ambiente em que os intelectuais pareciam mais deleitar-se e regozijar-se perante seus escritos como narciso diante de um espelho. Escritos esses que esbanjavam de paradoxos e meios artificiais de retórica. Schopenhauer, longe disso, parecia escrever para si mesmo, o que lhe atribuía, pelo menos à primeira vista, uma certa credibilidade, havia na sua fala algo de paterno. Ele conseguia ser elegante Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 sem imitar o estilo francês, científico, mas não pedante como os alemães. Nesse ponto, foi sobretudo a vida de Schopenhauer que chamou a atenção de Nietzsche. Distante de qualquer compromisso para com o Estado, a Religião e a Universidade, assumindo para si o “heroísmo da verdade”, ele tornou-se o exemplo a ser seguido para se alcançar o ideal de homem superior, e consequentemente, o perfeito educador para aqueles que perseguem o objetivo que é a formação de gênio. Veremos, adiante, como Nietzsche busca demonstrar como esse ideal é realmente capaz de educar para tal objetivo.
O homem schopenhaueriano Nietzsche disse sobre o seu século: “vivemos o período dos átomos, do caos atômico” (UB/CoEx – III § 4, p.195). Isso quer dizer que se na Idade Média a Igreja mantinha sob controle as forças antagônicas, com o advento da Reforma, o avanço das ciências particulares, o fortalecimento dos proprietários e militares; os homens entraram desenfreadamente em conflito uns com os outros, fazendo transparecer toda sua covardia, seu egoísmo e sua animalidade. No entanto, ainda havia naquele século, três modelos em que os homens puderam se apoiar e tirar deles as forças necessárias para enfrentar suas lutas e também transformar totalmente suas vidas, foram eles: Rousseau, Goethe e Schopenhauer. O homem de Rousseau é, sem dúvida, o mais popular entre os três e também o que é capaz de produzir o maior fogo. É ele, segundo Nietzsche, quem se esconde por trás das revoluções violentas e das revoltas socialistas. Esse homem, que pelo desprezo de si mesmo aprendeu a clamar pela natureza e pelo “homem natural”, é capaz de tomar as atitudes mais radicais e temerárias, mas também aquelas que são as mais nobres e belas. O homem de Goethe é o inverso do homem de Rousseau, apesar de Goethe ter sido influenciado por Rousseau em juventude, Nietzsche chega mesmo a dizer que ele é o “corretivo, o sedativo destas emoções perigosas às quais o homem de Rousseau está preso” (UB/CoEx – III, § 4, p.197). O homem de Goethe é contemplativo por excelência, é um viajante, um espectador do mundo, se alimenta de tudo que é belo e grandiosos sobre a Terra. Sobretudo, ele é o contrário do homem de ação: “o homem de Goethe se separa do homem de Rousseau; pois ele odeia toda violência, todo salto brusco – quer dizer: toda ação” (UB/CoEx – III, § 4, p.198). Portanto, o homem de Goethe, de natureza aristocrática, é contrário a toda grande mudança, é conservador e conciliador, tem pouca habilidade para cargos públicos e vida política, além do que, possui pouco
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 vigor físico. O homem de Schopenhauer, ou homem schopenhaueriano é mais próximo ao homem de Goethe do que daquele de Rousseau, mas possui uma capacidade que falta a este último, a de se irritar com o mundo. Ao contrário das correntes otimistas que reinavam na época, ele admite a vida como dor e sofrimento e acredita que somente através da negação de si poderá alcançar um objetivo mais elevado: “o homem de Schopenhauer assume para si o sofrimento voluntário da veracidade, e este sofrimento lhe serve para mortificar sua vontade pessoal e para preparar a subversão, a total transformação do seu ser, alvo que constitui o objetivo e o sentido verdadeiros da vida” (UB/CoEx – III, § 4, p.199). Os homens modernos, que buscam conservar acima de tudo sua mediocridade, rejeitam e ridicularizam essa ferocidade na busca pela verdade, sobretudo eles se acostumaram a rejeitar toda a negação. Mas o que há nessa negação de Schopenhauer, para Nietzsche, é justamente uma aspiração à salvação e à santificação, ou seja, a busca por um sentido metafísico para a vida e para sua atividade: “toda existência que pode ser negada merece também ser negada; e ser verídico significa crer numa existência que não poderia absolutamente ser negada, crer numa existência que é ela própria verdadeira e sem mentira” (UB/CoEx – III, § 4, p.200). Portanto, essa atividade, destinada à realização de algo distinto e superior pode mesmo ser entendida num sentido afirmativo, mesmo que por todos os lados ela só encontre um enorme sofrimento, também o sofrimento aqui perderá sua conotação unicamente negativa, já que ele é também uma forte ferramenta para chegar à perfeição: Assim, devo pensar que aquele que põe diante de sua alma uma tal orientação de vida sente seu coração desabrochar e nascer nele um desejo ardente de ser este homem schopenhaueriano: quer dizer, ser puro para consigo e para com seu bem pessoal, de uma serenidade admirável no que diz respeito ao conhecimento, ser cheio de um fogo forte e devorador e estar bem longe da neutralidade fria e desprezível do pretenso homem de ciência, muito acima de uma contemplação tristonha e desagradável, oferecendo-se sempre ele próprio como a primeira vítima da verdade reconhecida e penetrada, no mais profundo da consciência, pelos sofrimentos que nascerão necessariamente de sua autenticidade (UB/CoEx – III § 4, p.200-1).
A trilha que Schopenhauer propõe é cheia de obstáculos e dores, mas ela também promete uma vitória, a vida heroica. Já que a felicidade é certamente algo impossível de se alcançar na Terra, o que resta é viver sua vida com heroísmo. Por não se acovardar perante o mundo, aos homens e às Instituições, o homem schopenhaueriano enfrentará o ódio, a injustiça, mas sobretudo a solidão. Sua postura permanece, no entanto, a de um herói invencível. Talvez, no futuro, construam uma estátua sua e celebrem sua memória, ele sabe, entretanto, como é estúpida a Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 percepção dos pequenos sobre ele. Os homens pequenos, ao admirar os grandes homens, atribuem sua superioridade a um impulso ou talento inato, ele sabe, entretanto, o quanto teve que forjar em si mesmo essa dor e o caminho mais árduo, fugir da comodidade da vida comum. O seu heroísmo consiste justamente em fugir desse jogo das relações comuns, enquanto todos se preocupam em se tornar bons cidadãos, maridos, filhos, funcionários, eruditos, o homem schopenhaueriano é centrado em si mesmo e se preocupa com as questões referentes à sua existência, “como me tornei o que sou?”, por exemplo. Para Nietzsche, portanto: Aquele que não compreende sua vida senão como um ponto no desenvolvimento de uma espécie, ou de um Estado ou de uma ciência, e quer portanto integrar-se plenamente na história do devir, por conseguinte na história e nada mais, este não entende a lição que a existência lhe dá e deve aprendê-la novamente (UB/CoEx – III § 4, p.203).
Quando o homem schopenhaueriano procura o conhecimento, ele não o faz como o homem de Goethe, que buscava sua preservação e sua satisfação, ele, pelo contrário, se oferece como vítima e sacrifício, sua vida é o seu experimento, sem se preocupar com sua felicidade, sua paz ou até seu bem-estar, e ele está disposto a levar seu experimento até as últimas consequências: “sua força reside no esquecimento de si, e se ele pensa em si, compreende a distância que há entre ele e o seu objetivo mais elevado, e tem o sentimento de ver atrás e embaixo de si um pequeno monte miserável de escórias” (UB/CoEx – III, § 4, p.203-4). O nascimento do gênio como o objetivo da cultura; o gênio como filósofo, artista e santo. O próprio Nietzsche reconhece que não é o bastante simplesmente descrever o modelo de Schopenhauer, o tipo de homem que ele foi. É necessário provar que esse modelo realmente é digno de ser seguido, ou seja, que esse modelo realmente educa. Além do que, há ainda uma tarefa, segundo Nietzsche, muito mais complicada a se realizar, que é: “dizer como se extrai deste ideal um novo ciclo de deveres e como pode, com um propósito além do mais transcendente, colocar-se em contato com uma atividade regular, em suma, mostrar que este ideal educa” (UB/CoEx – III § 5, p.204). Ou seja, é preciso criar uma cadeia de atividades realizáveis que nos aproxime ao tipo de homem schopenhaueriano. Surge-nos então uma dúvida (cada um deve senti-la intimamente): nós somos mesmo dignos e capazes de nos elevar e seguir este ideal de Schopenhauer, ou aqui nos deparamos com nossa “condição limitada”? Como Nietzsche lembra das palavras de Goethe, o homem nasceu para almejar objetivos próximos e simplórios alcançados mediante uma atividade regular. Para
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 Nietzsche, a maioria dos homens é aí barrada pela preguiça e negligência; também os mais fortes e corajosos são derrotados pelos perigos de se almejar algo superior. O que Nietzsche procurou atender com mais urgência foi justamente em conceber esse novo ciclo de deveres com o qual nós poderemos nos conectar, de alguma forma, com o objetivo superior da natureza, o nascimento do gênio. É de suma importância tratarmos nesse momento daquilo que, num primeiro olhar, parece ser uma digressão de Nietzsche antes de tratar do problema do nascimento do gênio propriamente dito, mas que logo em seguida vai ao encontro do mesmo. Nietzsche passa a analisar como o sofrimento do animal parece de todo insuportável aos homens profundos e de maior sensibilidade, justamente pela falta de razão que nele há, pela impossibilidade de imprimir no sofrimento deles (os animais) uma significação metafísica, assim como o homem fez com o seu próprio. Chegou-se mesmo a se criar diversas teorias míticas que pudessem justificar o sofrimento dos animais, como a que diz que, na verdade, nos animais estão aprisionadas as almas de homens que em outra vida cometeram pecados ou crimes, tudo isso simplesmente pelo fato de que o sofrimento sem sentido parece aos homens como algo inaceitável. De fato, a vida dos animais é cheia de dores e adversidade inelutáveis, mas o homem está livre desta impiedosa sina. É no homem que a natureza busca se livrar do seu caráter irracional e encontra uma significação. Portanto, para Nietzsche, o homem é necessário para que: “a existência coloque diante de si mesma um espelho, no fundo do qual a vida não se apresente mais como absurda, mas, ao contrário, na sua significação metafísica” (UB/CoEx III, § 5, p.207). Essa divisão entre o homem e animal não é, no entanto, tão clara, para Nietzsche, o homem que só busca a satisfação imediata de seus desejos, que, em suma, busca tão somente a felicidade, não superou de todo o animal. Desse modo, segundo Nietzsche, a maioria dos homens passará a vida toda dentro desse limitado domínio que é o do animal, nos seus instintos, nos seus desejos e, também, no seu sofrimento sem sentido. Assim como a natureza se esforça pelo homem, nós também devemos nos esforçar por ele, para que, através dele, nos ergamos acima de nós mesmos. É então que, para Nietzsche, pode-se abrir os olhos para ver como tudo que chamamos de cultura não foi mais do que a continuidade da nossa animalidade2: 2
Neste ponto, Nietzsche se refere à miserável condição animal: “Na verdade, é um pesado castigo viver assim como um animal, submetido à fome e ao desejo, e além disso não alcançar a menor consciência quanto a esta vida”. (UB/CoEx – III § 5, p.206). Passando a refletir, logo em seguida, como nós, homens, não saímos geralmente dessa mesma condição: “Até onde alguém reivindicou a vida como uma felicidade, não elevou ainda seu olhar acima do horizonte animal, se é que ele não quer com mais consciência o que o animal procura num impulso cego. Mas é assim que ocorre com todos nós, durante a maior parte da nossa vida: geralmente, não
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 A monstruosa mobilidade dos homens no grande deserto da terra, as cidades e os Estados que eles fundam, as suas guerras, sua atividade ininterrupta de acumulação e gasto, sua balbúrdia, suas maneiras de entrar em contato uns com os outros, de se enganar e de se penitenciar mutuamente, seus gritos de angústia, seus clamores de vitória – tudo isso é o prolongamento da animalidade; como se o homem devesse ser propositadamente retrógrado na sua educação e frustrado pelo engano da sua disposição metafísica, e, para dizer tudo, como se a natureza, depois de ter durante tanto tempo desejado o homem e trabalhado por ele, tremesse agora diante dele e preferisse retornar à inconsciência do instinto (UB/CoEx – III § 5, p.207).
Em todo o envolvimento na vida cotidiana, no trabalho e nas instituições, há a fuga e o esquecimento de si, daquilo que é duro demais para o homem suportar: “entregamos precipitadamente nossa alma ao Estado, ao lucro, à vida social ou à ciência, simplesmente para não mais possuí-la [...]” (UB/CoEx - III § 5, p.208). O homem teme a interiorização, teme a reflexão e a consciência de si e todos os incômodos que isso certamente iria causar, escondendo-se assim na vida social de sua pequenez e mediocridade. É então que podemos dar-nos conta, nesses raros momentos de recolhimento e reflexão, que, de fato, não somos nós aqueles por quem a natureza trabalha para engendrar, deparamo-nos com nosso limite, e já é grande atitude chegar a essa consciência. No entanto, até mesmo para alcançar o nível em que estamos, necessitamos ser guiados por quem é superior a nós, esses por quem de fato a natureza se esforça em engendrar. Tratemos, portanto, dos três tipos superiores de homem, são eles: os filósofos, os artistas e os santos. Nietzsche jamais concordou com a ideia de “saltos” na natureza, como pregavam algumas doutrinas filosóficas de sua época, no entanto, aqui ele se permite falar também de uma espécie de “salto”, mas, segundo ele, um “salto de alegria”, que é aquele que a natureza dá ao alcançar seu objetivo supremo, que é o engendramento desses três tipos superiores de homem, como já dito: filósofo, artista e santo. Com eles a natureza se transfigura e se eleva, alcançando um novo nível de beleza e de compreensão sobre si. Pode-se imaginar o quão feliz tornou-se o homem que ali chegou, ao mesmo tempo o quão infeliz é o homem que passou a vida inteira sem sequer vislumbrar esse estado de coisas, aquele que vê crescer o gênio ao seu lado sem jamais poder alcançá-lo. Pois bem, é preciso, para que esse homem não caia em total desespero e miséria, tratar da questão de que se é possível estipular uma nova escala de deveres realizáveis que venham conectar esse homem ao homem superior (ao homem schopenhaueriano, mais propriamente tratado aqui).
saímos da animalidade, somo inclusive estes animais que parecem sofrer sem razão”. (UB/CoEx - III § 5, p.207). O mundo criado pelo homem em tais condições, em todas as suas relações econômicas, bélicas, e também em tudo o que se chamou de cultura, não é nada mais do que a nossa animalidade externada, ou seja, a continuidade de nossa animalidade.
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 Mais do que simplesmente incontáveis regras a serem seguidas, Nietzsche procurou estipular um pensamento fundamental unitário e um objetivo supremo: Uma coisa sobretudo é certa: estes novos deveres não são os deveres de um homem isolado; ele participa, pelo contrário, com os outros de uma poderosa comunidade, cujas ligações não são de maneira nenhuma as formas e as leis exteriores, mas um pensamento fundamental. Este é o pensamento fundamental da cultura, na medida em que esta só pode atribuir uma única tarefa a cada um de nós: incentivar o nascimento do filósofo, do artista e do santo em nós e fora de nós, e trabalhar assim para a realização [Vollendung] da natureza (UB/CoEx – III § 5, p.210).
A natureza, portanto, tem necessidade do filósofo e do artista para um fim puramente metafísico, ou seja, para alcançar um nível mais elevado de conhecimento sobre si mesma. Do outro lado, ela também tem necessidade do santo, em que acontece a total dissolução do eu na natureza, onde nada mais é sentido como individual, mas em completa unidade com o mundo, portanto, é justamente no santo: “a quem o jogo do devir não alcança jamais esta humanização final e suprema à qual toda a natureza aspira e conspira para se livrar de si mesma” (UB/CoEx - III § 5, p.211). Podemos ter, cada um de nós, algo de semelhante com estes tipos superiores de homem, há também em nós, segundo Nietzsche, algo que nos impele a nos aproximar cada vez mais deles. Acontece, porém, que por nossa condição limitada, somos muitas vezes levados a nos desprezar e mesmo a nos odiar por não sermos esses homens ou por não podermos contribuir para seu nascimento. Esse descontentamento e ódio para consigo mesmo é em todo caso bom (e teremos a oportunidade de tratar melhor dele mais adiante); e para Nietzsche, ele é a raiz do pessimismo que Schopenhauer buscou trazer de volta à sua época, mas que está presente em todo desejo de verdadeira cultura. Sobre ele, Nietzsche ainda diz: Sua raiz, mas não sua flor, em todo caso, seu estágio mais profundo, mas não sua engrenagem, o início de sua carreira, mas não seu fim; pois um dia será preciso ainda que aprendamos a odiar algo diferente e mais geral, e não mais a nossa individualidade e sua miserável limitação, sua flutuação e sua inquietude, neste estado superior onde amaremos também algo diferente do que sabemos amar atualmente (UB/CoEx – III § 5, p.212).
Isso, no entanto, parece estar implícito nas palavras de Nietzsche, está reservado ao futuro, quando também nós nos tornaremos homens superiores como o filósofo, o artista e santo: “um fim novo será fixado para nosso amor e para o nosso ódio – por ora, temos a nossa tarefa e o nosso ciclo de deveres, o nosso ódio e o nosso amor. Pois sabemos o que é a cultura” (UB/CoEx - III § 5, p.212). Portanto, conhecendo a cultura e conhecendo o homem schopenhaueriano, é preciso então trabalhar e lutar para colocar os dois em conexão, buscando criar as condições propícias para seu engendramento e, principalmente, combatendo o que lhe pode ser pernicioso. Para Nietzsche,
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 portanto, o que a natureza quer de nós é: “que infatigavelmente lutemos contra tudo aquilo que nos privou, a nós, da realização suprema da nossa existência, nos impedindo de nos tornar em pessoa estes homens de Schopenhauer” (UB/CoEx - III § 5, p.212). As consagrações da cultura. É importante, para dar seguimento em nosso assunto, abordarmos a questão da aristocracia de espírito em. De fato, Nietzsche chegou mesmo a desejar para os homens a mesma ordem das espécies vegetais e animais que, segundo ele, guiam-se sempre pelo exemplar superior, ou seja, o mais forte, complexo, incomum etc. Se isso não se repete na ordem humana, deve-se aos preconceitos enraizados por nossa educação, que não permitem aos homens encarar seus verdadeiros deveres e a verdadeira finalidade da comunidade humana: É sobretudo fácil compreender que o objetivo do desenvolvimento de uma espécie reside lá onde ela alcança seu limite e se transforma numa espécie superior, e não na massa de exemplares e ou na sua prosperidade, ou mesmo nos exemplares que parecem, segundo a cronologia, ser os últimos, e que este objetivo está bem mais nas existências aparentemente dispersas e contingentes, que surgem aqui e ali na ocasião de circunstâncias favoráveis; e deveria apesar de tudo ser muito fácil compreender que, posto que a humanidade pode tomar consciência da sua finalidade, ela tem de buscar e instaurar as circunstâncias favoráveis que permitam o nascimento destes grandes homens redentores (UB/CoEx – III § 6, p.213).
Certamente, essa finalidade é muitas vezes dissimulada, ora pelo bem comum de todos, ora pelo bem de uma comunidade inteira. Entretanto, não podemos, segundo Nietzsche, cair aqui em uma simples relação quantitativa, ao pensar que seria mais sensato dedicar a vida a uma coletividade, ao Estado, por exemplo, em detrimento do indivíduo raro e superior: “como se fosse mais razoável deixar sobressair o número, quando se trata de valor e importância” (UB/ CoEx – III § 6, p.213). Pois, para Nietzsche, a própria vida desses seres comuns só alcançaria um nível mais elevado, só não seria de todo desperdiçada, enfim, só teria algum significado quando tomarem o homem superior, único, de exceção, como modelo e guia. Ressalva-se ainda a importância de imprimir nos jovens a consciência de que, mesmo não sendo a obra de maior grandeza que a natureza busca, eles podem e devem participar dessa grandeza, trabalhando para favorecer o nascimento do gênio. Este é, portanto, o primeiro passo para adentrar no domínio da cultura, conhecer a si, sua limitação e miséria, para então almejar elevar-se a níveis mais altos, prontificar-se, também, a ser um servidor daquele que também deseja alçar voos mais altos, para que no fim, os esforços de todos sejam recompensados ao ver nascer o homem superior que a natureza e os homens que reconheceram sua missão tanto desejam e esperam. É, entretanto, algo de difícil realização levar os Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 indivíduos a um nível tão alto e refinado de entendimento, pois, para isso seria necessário algo que não se pode ensinar, o amor. Para Nietzsche: “é no amor que a alma adquire, não somente uma visão clara, analítica e desdenhosa de si, mas também este desejo de olhar acima de si e buscar com todas as suas forças um eu superior, ainda oculto não sei onde” (UB/CoEx - III § 6, p.214). Chegamos, portanto, ao que Nietzsche chamou de primeira consagração da cultura, ou seja, conectar-se (de coração) a um grande homem e, em consequência disso, adquirir esse descontentamento de si, para com sua própria condição limitada, sem ódio nem ressentimento, o que resultará disso outra coisa não é do que a luta apaixonada daqueles que se consternam ao ver a natureza ansiosa pelo momento em que seu fruto mais belo poderá brotar sobre a terra. Pois bem, dito isso, podemos perceber que a primeira consagração da cultura, está no âmbito do indivíduo, é uma relação do homem consigo mesmo. Já a segunda consagração da cultura, seria o passo adiante, o momento em que o homem passa a interferir efetivamente no mundo exterior: “o olhar deve se desviar para o entorno, para buscar no grande mundo em movimento este desejo de cultura que se conhece por estas primeiras experiências [...]” (UB/CoEx - III § 6, p.215). É, portanto, o momento do embate, de ter seu conhecimento como arma, sua condição e convicção interior como uma sempre renovável força para encarar a pequenez do mundo, pois: A cultura exige dele não somente esta experiência interior, não somente o julgamento sobre o mundo, cujo fluxo o cerca; definitivamente, ela exige dele sobretudo ação, quer dizer, a luta pela cultura, a hostilidade com relação às influências, aos hábitos, às leis, às instituições nas quais ele não reconheça seu objetivo: o engendramento do gênio. (UB/CoEx – III § 6, p.215).
As condições para o nascimento do gênio. Chegamos num ponto muito importante para nosso tema, tratar propriamente das condições necessárias para o nascimento desse homem superior, o gênio, aqui inspiradas a partir de exemplos empíricos retirados da vida de Schopenhauer. No entanto, ainda nos resta aqui uma centelha metafísica para tratar. Para Nietzsche: “a crença numa significação metafísica da cultura não teria, afinal, nada de tão assustador; mas antes, algumas consequências poderiam ser extraídas dela para a educação e o sistema escolar” (UB/CoEx – III § 6, p.231). Nietzsche considerava uma tarefa para os próximos séculos (ou milênios), a criação de novas instituições de ensino que para sua época (e também para a nossa), pareceriam algo de total estranheza. Estranho, no entanto, somente para uma época decadente, pois para Nietzsche, uma educação deveria se atentar em fazer o que é mais natural (já que ele considera essa educação que forma eruditos, funcionários,
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 filisteus etc., antinatural), e, por conseguinte, mais fácil. É preciso ter em mente as dificuldades e os sacrifícios necessários, pois se sabe o quanto os homens se agarrarão aos seus costumes e conceitos e lutarão com unhas e dentes contra qualquer novidade. Portanto, a luta deve começar desde já: “pois é preciso antes que uma geração qualquer comece o combate no qual uma outra vencerá” (UB/CoEx - III § 6, p.232). Passemos a tratar agora, seguindo o procedimento do próprio Nietzsche, em vez do futuro longínquo, daquele que está imediatamente diante de nós. É certo que Schopenhauer esteve exposto, se não a excelentes, pelo menos às mínimas condições necessárias para o crescimento de seu gênio. Mas seria mesmo o bastante expandir essas condições a um maior número? Como evitar as inúmeras adversidades que se interpõem no caminho? Nietzsche adverte, nesse momento que vamos adentrar no “domínio do prático e do espinhoso” (UB/CoEx - III § 7, p.234). Quando se analisa com mais cuidado a natureza, segundo Nietzsche, não é difícil perceber o seu caráter desregrado. Ela emprega mal seus meios e aplica métodos equivocados, em geral, comete inúmeros erros antes de um acerto. Quando ela se ocupa do filósofo também não é diferente, pois aqueles que, de fato, cumprem a missão que a natureza deseja (dá um significado para a existência), realmente, são um número bem reduzido: “o comportamento da natureza tem toda uma aparência de desperdício, porém, não o desperdício de uma exuberância criminosa, mas o da inexperiência [...]” (UB/CoEx - III § 7, p.235). Pode-se dizer que a natureza possui um péssimo, ou mesmo nenhum “sentido prático”. Ela é, para Nietzsche, “uma má economista”, e pode, segundo ele, chegar mesmo a se destruir algum dia. A natureza cria as condições propícias para o nascimento do filósofo sem se preocupar com sua recepção; e menos ainda com a capacidade que o resto terá de entendê-lo. Muitas vezes, ele é então condenado a vagar solitário a vida inteira. Para Nietzsche, Schopenhauer sofreu pelos dois lados da moeda: primeiro pela total indiferença de seus contemporâneos, e, em seguida, pela insensibilidade e incapacidade dos primeiros que o leram e se pronunciaram sobre ele. A completa, ou quase completa incompreensão sobre Schopenhauer vem a testemunhar, novamente, sobre a inexperiência da natureza ao criar o filósofo (também o artista). Mesmo quando há sucesso em seu engendramento, ele nunca consegue atingir senão um número muito reduzido de pessoas. Sobre o filósofo e o artista, Nietzsche lembra: “eles só afetam poucas pessoas, quando deveriam afetar a todas e mesmo estas poucas pessoas não são afetadas pela força que o filósofo e o artista deram a seu projétil” (UB/CoEx - III § 7, p.235). Ao se deparar com esse caráter irracional da natureza, deve-se prontamente procurar repará-
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 lo. Para isso, como primeiro passo, Nietzsche aconselha àquele que tomou para si essa tarefa, divulgar Schopenhauer aos espíritos livres da época, àqueles que são capazes de sofrer e se indignar com seu tempo, e assim: “reuni-los e produzir através deles uma corrente cuja força deverá vencer a inépcia da qual a natureza dá comumente prova, e hoje ainda, na utilização do filósofo” (UB/CoEx - III § 7, p.237). Essa corrente deve se estender a todos os obstáculos que dificultam a criação de uma grande filosofia e a formação de um grande filósofo, unidos em torno de um objetivo, eles poderão, através de Schopenhauer, realizar “o ressurgimento do gênio filosófico” (UB/CoEx - III § 7, p.237). Em nenhum momento haverá tranquilidade durante todo o processo. Nietzsche nunca deixa de ressaltar a estupidez que deverá ser combatida, a insanidade humana que os grandes homens deverão extirpar de si próprios. O mundo, naquele momento, via-se governado por ideias vãs e dogmas religiosos como “progresso”, “Estado moderno”, “cultura geral”, caráter “nacional”, etc. Tudo isso é, para Nietzsche, carregado de tom antinatural e sinal de barbárie de uma época “cheia de noções tão excêntricas e necessidades tão quiméricas” (UB/CoEx - III § 7, p.238). Tão distante da simplicidade com que o gênio (assim como os antigos), apresenta imprimido em si, o objetivo da natureza. Aquele que possui em si o gênio filosófico terá necessidade, para se desenvolver, de estar exposto a certas condições favoráveis que, em geral, foram as mesmas a que esteve exposto Schopenhauer. A sua figura paterna, segundo Nietzsche, ofereceu-lhe (em contraponto à má influência exercida pela figura materna), o primeiro requisito necessário a um filósofo “uma virilidade inflexível e rude” (UB/CoEx – III § 7, p.239). Com seu pai, Schopenhauer viajou a outros países, conheceu outros homens e culturas, livrando-se assim do perigoso sentimento nacionalista alemão (Schopenhauer considerava o “orgulho nacional” a mais estúpida das honras3). Quanto ao Estado, ele concebia seus objetivos e deveres de forma bem limitada (em geral para a proteção, externa ou interna), e no fundo, nunca se importou com essa questão, já que, como afirma Nietzsche, a “inspiração filosófica” e a “inspiração política” não podem coexistir em um homem. E Schopenhauer, nós sabemos bem que inspiração possuía.
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“O tipo mais barato de orgulho é o orgulho nacional. Ele trai naquele que por ele é possuído a ausência de qualidades individuais, das quais poderia se orgulhar; caso contrário, não recorreria àquelas que compartilha com tantos milhões”. (SCHOPENHAUER, 2009. p. 72). Schopenhauer ainda prima pelas qualidades do indivíduo em detrimento dos de uma nação: “de resto, a individualidade sobrepuja em muito a nacionalidade e, num determinado homem, aquela merece mil vezes mais consideração do que esta. Como o caráter nacional fala da multidão, jamais se dirá de modo honesto muita coisa boa em seu louvor. Trata-se, antes, apenas da limitação, da perversidade e da maldade humanas, que em cada país aparecem sob formas diferentes, e que chamamos de caráter nacional. Desgostosos com um, louvamos outro, até o momento em que este também nos desgosta. Cada nação escarnece da outra, e todas têm razão”. (SCHOPENHAUER, 2009. p. 72,73).
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 Em seguida, temos mais uma condição favorável da qual Schopenhauer pôde gozar: “ele não foi previamente orientado para ser um erudito ou educado com esta intenção” (UB/CoEx - III § 7, p.240). É importante frisar aqui o quão Nietzsche considerava prejudicial a educação erudita para aquele que pretende se dedicar à filosofia (segundo Nietzsche, o próprio Kant nunca se tornou de fato um filósofo, entendendo como filósofo um homem real e completo, e não somente um homem teórico4). Schopenhauer teve também o privilégio de viver às custas de seus bens, sem ter a necessidade de se agarrar a um cargo na Universidade ou algo do tipo5. Schopenhauer teve a oportunidade, mas também a capacidade, de se dedicar à única tarefa digna de um verdadeiro filósofo, ou seja, a busca pela verdade. Quanto a isso ele não fez concessões, ele sabia que lhe cabia a mais elevada das tarefas, que é ser o juiz da existência. Para Nietzsche, toda a filosofia de Schopenhauer, todos os seus métodos, não são outra coisa senão instrumentos utilizados na tentativa de expressar essa visão tão singular, tão rara e de tanto valor: “ele somente tomou para si uma única tarefa e um milhão de meios para resolvê-la: um único sentido e inúmeros hieróglifos para expressá-lo” (UB/CoEx - III § 7, p.241).
O Estado, a universidade e a filosofia. No último tópico tratamos das condições que favorecem o nascimento e o engendramento do gênio (filosófico), retiradas a partir da vida e das experiências de Schopenhauer. O próprio Nietzsche nos oferece um resumo dessas condições: Liberdade viril do caráter, conhecimento precoce dos homens, educação que não visa a formação de um erudito, ausência de qualquer estreiteza patriótica, de qualquer obrigação de ganhar seu pão, de obediência ao Estado – em suma, liberdade, sempre liberdade: este mesmo elemento extraordinário e perigoso no seio do qual os filósofos gregos puderam crescer. (UB/CoEx – III § 8, p.242).
Essa liberdade da qual os filósofos necessitam gozar, pode muito naturalmente ser vista com maus olhos por aqueles que não a possuem e que também não a suportariam, mas, principalmente, não teriam nada para fazer com ela, pois: “esta liberdade é, na realidade, um grave pecado; e este
4 Aqui há um ponto de desencontro entre Schopenhauer e Nietzsche. De fato, enquanto Nietzsche nunca poupou suas críticas a Kant,
Schopenhauer nutriu uma grande admiração por ele, chegando mesmo a considerará-lo o maior dos filósofos, partindo em sua defesa, ao passo que atacava, muito ferozmente, Fichte, Schelling, e, principalmente, Hegel. 5 Cabe aqui citar a passagem em que Schopenhauer lembra da famosa acusação de Sócrates aos filósofos sofistas “[...] que a filosofia não seja própria para o ganha-pão, já o provou Platão em suas descrições dos sofistas, que ele contrapõe a Sócrates, e principalmente no início do Protágoras, em que descreve a prática e o sucesso dessa gente com comicidade e graça insuperáveis. Entre os antigos, o sinal que diferenciava os sofistas dos filósofos sempre foi ganhar dinheiro com a filosofia. A relação dos sofistas com os filósofos era, por isso, bem análoga àquela entre as moças que se entregavam por amor e as prostitutas”. (SCHOPENHAUER, 2001 p.27). Nietzsche, no entanto, nunca chegou a compartilhar desse preconceito para com os filósofos sofistas, e pareceu até mesmo a nutrir uma certa admiração para com eles.
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 só pode ser expiado pelas grandes obras” (UB/CoEx III § 8, p.242). O Estado moderno (trata-se aqui sempre do Estado Prussiano, século XIX) para Nietzsche, dava-se como tarefa incentivar a filosofia, permitindo a alguns homens essa dita liberdade. Será necessário, portanto, avaliar com que qualidade e com que seriedade o Estado executa essa suposta tarefa. Afinal, o Estado pode mesmo ser um auxiliar no nascimento do gênio filosófico? Nesse momento, Nietzsche lança mão do hoje famoso tratado Sobre a Filosofia Universitária6, de Schopenhauer. Seu esforço aqui é, sem dúvida, intimamente conectado ao de Schopenhauer e procura dar continuidade aos argumentos utilizados por ele nesse tratado. Portanto, respondendo à questão antes levantada, Nietzsche afirma “[...] nada se opõe mais à produção e à perpetuação dos que são grandes filósofos por natureza, do que os maus filósofos pela graça do Estado” (UB/CoEx - III § 8, p.244). Segundo Nietzsche, essa liberdade que o Estado confere a alguns filósofos de fazerem e se sustentarem de sua filosofia, nada tem a ver com a verdadeira liberdade, é tão somente uma característica de um emprego qualquer, que seria cortado logo que essa liberdade pusesse em risco a legitimidade de seus superiores. Nietzsche ainda lembra que somente o fato de buscar a verdade não autoriza o “viver dela”, ou seja, aqueles privilégios que são necessários para efetuar essa busca. Antes é a qualidade da natureza do indivíduo que autorizaria essa exigência. O que acontece é que são justamente as naturezas mais estreitas que são favorecidas pelo Estado, e nunca naturezas como a de Schopenhauer, pois: Todo Estado tem receio deles, e só favoreceria os filósofos de quem ele não tivesse medo. Ocorre de fato que em geral o Estado tem medo da filosofia, então, neste caso, ele buscará, cada vez mais, atrair para si o maior número de filósofos que puder, o que lhe confere a ilusão de ter a filosofia do seu lado – e assim ele tem ao seu lado estes homens que se valem dela, mas não inspiram nenhum medo. (UB/CoEx III § 8, p.245).
Aquele que busca a verdade sem se importar com as consequências deve estar preparado para ter como inimigo o Estado, assim como sua religião oficial, enfim, tudo aquilo que a verdade deve atacar e ofender: “se alguém aceita, então, ser filósofo por concessão do Estado, é preciso
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Sobre a importância deste tratado de Schopenhauer, em contrapartida ao seu pequeno impacto entre seus contemporâneos, Nietzsche afirma: “[...] nada se opõe mais à produção e à perpetuação dos que são grandes filósofos por natureza, do que os maus filósofos pela graça do Estado. Não seria este um argumento molesto? Aquele mesmo argumento, como se sabe, sobre o qual Schopenhauer inicialmente lançou o olhar, no seu famoso tratado sobre a filosofia universitária. Retorno a este argumento: pois é preciso obrigar os homens a levá-lo a sério, quer dizer, para que, por seu intermédio, se sintam induzidos a agir; e considero como inútil qualquer palavra que tenha sido escrita sem ter como respaldo esta incitação à ação; é bom, em todo caso, demonstrar mais uma vez os princípios eternamente válidos de Schopenhauer, e isto justamente para a crítica de nossos contemporâneos mais próximos, pois um homem benevolente poderia pensar que, a partir das graves acusações que ele fez, tudo mudou para melhor na Alemanha. Nem mesmo este ponto insignificante sua obra alcançou”. (UB/CoEx – III § 8, p.244).
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 também que aceite ser considerado como se tivesse desistido de perseguir a verdade nos últimos refúgios” (UB/CoEx - III § 8, p.245). Pois o Estado, assim como a religião, se coloca acima da verdade7, e o filósofo, enquanto um simples empregado, deve baixar a cabeça e aceitar de bom grado essa imposição. É perigoso, segundo Nietzsche, deixar a cargo do Estado a tarefa de distinguir entre bons e maus filósofos, assim como também sobre quantos filósofos são necessários para suprir as necessidades acadêmicas. A burocracia do Estado tem ainda o direito de decidir sobre o quando e o “a quem” algo deve ser ensinado, ou seja, aquela “liberdade” que o Estado supostamente oferecia aos seus filósofos já não é tão “liberta”. Assim, o Estado expurga, através da burocracia, toda a autonomia de que a filosofia necessariamente deve gozar “[...] ele obriga aqueles que escolhe a permanecer num determinado lugar, entre homens determinados, a aí exercerem uma atividade determinada; eles têm de instruir, todos os dias, em horários fixos, todos os jovens acadêmicos que manifestem desejo de instrução” (UB/CoEx - III § 8. p.246-7). O mais preocupante, em todo caso, é que a filosofia só se manifesta nessas condições, quando muito, sob a forma de erudição, no enfadonho estudo da história da filosofia. O professor de filosofia, quando se presta a esse papel, será relegado ao posto de um historiador, filólogo, mas jamais ao de filósofo8. Tudo isso nutre nos jovens um profundo sentimento de aversão à filosofia, além do que são obrigados a memorizar um incontável número de esquemas filosóficos, de outras épocas que eles não conheceram, com o único intuito de realizar uma prova, e a partir daí, procurar esquecer esse conhecimento obtuso e impertinente. Para Nietzsche, o que se ensinou na Universidade sempre foi, tão somente, a “crítica das palavras pelas palavras”, enquanto que, uma filosofia com a qual se possa experimentar e viver de acordo, foi sempre miseravelmente ignorada. Deixemos as palavras de Nietzsche sobre o resultado desse ensino na mente dos estudantes: E agora, que se imagine uma mente juvenil, sem muita experiência de vida, em que são encerrados confusamente cinquenta sistemas reduzidos a fórmulas e cinquenta críticas 7
“Mas, se estamos de algum modo convencidos de que a verdade total e plena está contida e proferida na religião do Estado, então paremos por aí e renunciemos a todo filosofar. Não se deve querer parecer o que não se é. É insuportável pretextar uma investigação parcial da verdade, com o intuito de fazer da religião do Estado seu resultado, sua medida e seu controle. Uma filosofia presa à religião do Estado, como o cão de guarda preso ao muro, é apenas uma irritante caricatura do mais elevado e nobre esforço da humanidade”. (SCHOPENHAUER, 2001, p.10). 8 Ainda sobre os professores de filosofia, em seu tratado Sobre a Filosofia Universitária, Schopenhauer aponta nessa mesma direção: “Eles jogam com esses pensamentos para lá e para cá e procuram eventualmente combiná-los como as pedras de dominó; comparam o que disse este, aquele, um outro e mais um outro, e então procuram chegar a alguma compreensão do assunto. Em vão procurarse-ia em tais pessoas alguma visão fundamental, firme e coerente das coisas e do mundo, que repousasse sobre uma base intuitiva; por isso mesmo, não têm sobre nada uma opinião decisiva ou um juízo determinado com firmeza. Mas andam às apalpadelas, como na neblina, com seus pensamentos, opiniões e objeções. É que também só trabalharam no saber e na erudição com o intuito de continuar ensinando. Pode até ser assim, mas então não devem brincar de filósofo, e sim aprender a separar o joio do trigo”. (SCHOPENHAUER, 2001 p.39).
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 desses sistemas – que desordem, que barbárie, que escárnio quando se trata da educação para a filosofia! De fato, todos concordam em dizer que não se é preparado para a filosofia, mas somente para uma prova de filosofia, cujo resultado, já se sabe, é normalmente que aquele que sai desta prova – eis que é mesmo uma provação – confessa para si com um profundo suspiro de alívio: “Graças a Deus, não sou um filósofo, mas um cristão e um cidadão do meu país!”. (UB/CoEx – III § 8, p.249).
Podemos entender mais claramente que, ao incentivar a filosofia, o Estado, antes de desejar o nascimento do gênio filosófico, trabalha justamente para impedir o seu nascimento. Os jovens acabam, portanto, desviando-se da filosofia, e isso se deve também, em grande parte, à natureza limitada e à qualidade duvidosa daqueles que se ocupam da filosofia no âmbito universitário. Soterrados pelas crescentes ciências particulares, esses filósofos acadêmicos parecem se contentar com seu papel coadjuvante, e mesmo nos domínios propriamente filosóficos, como a metafísica e lógica, que caminham, quando muito, timidamente. Essa extrema falta de coragem e competências levou mesmo Nietzsche a dizer: “hoje, sem dúvida, do lado das ciências particulares, se é mais lógico, mais prudente, mais modesto, mais inventivo, em suma, se age mais filosoficamente do que naqueles que se autodenominam filósofos [...]” (UB/CoEx - III § 8, p.251). Os filósofos acadêmicos, segundo Nietzsche, principalmente na Alemanha, em suas abstrações vazias, foram tirados de sua inércia pelas ciências particulares, e agora procuram nelas se apoiar para dar a falsa impressão de que eles também fazem algo parecido com ciência. O grande problema e a grande preocupação de Nietzsche não reside, no entanto, no fato de esses filósofos serem eles mesmos uns ridículos, mas que a própria filosofia torna-se então motivo de piadas, essa falsa filosofia legalizada pelo Estado que mancha e desonra todos os grandes feitos desse fruto sagrado da natureza que é a verdadeira filosofia. A única solução para esse impasse é, portanto, a retirada da filosofia do âmbito do Estado e da Universidade “[...] é uma necessidade da cultura privar a filosofia de qualquer reconhecimento do Estado e da Universidade e dispensar absolutamente o Estado e a Universidade da tarefa insolúvel para ambos de distinguir entre a verdadeira filosofia e a filosofia aparente” (UB/CoEx - III § 8, p.253). Acabando com a remuneração pela atividade filosófica e com os benefícios que o Estado cede aos profissionais da filosofia, acontecerá um processo natural de “purificação”, em que os falsos e medíocres filósofos se afastarão dela, e então a filosofia poderá voltar a ser objeto daqueles que amam a verdade e sua busca9.
9 “[...] eu me inclino cada vez mais à opinião de que seria mais saudável para a filosofia se ela cessasse de ser uma profissão
e não mais entrasse em cena na vida civil representada por professores. Ela é uma planta que, como o rododendro e a flor dos penhascos, só medra no ar puro da montanha, mas degenera sob cuidados artificiais”. (SCHOPENHAUER, 2011 p.31). Em outro ponto, Schopenhauer ainda afirma: “...a retrospectiva de todas as atividades filosóficas nas universidades desde Kant, firmam cada vez mais em mim a opinião de que, se deve haver em geral uma filosofia, ou seja, se deve ser permitido ao espírito humano poder dirigir suas
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 O divórcio entre filosofia e Estado deve consumar-se, uma vez que a filosofia não se submeta mais a reconhecer e legitimar o Estado, e o Estado reconheça na filosofia a sua mais antiga e perigosa inimiga. No entanto, Nietzsche acreditava que em vez de eliminar definitivamente a filosofia, o Estado continuaria tratando-a como insignificante, alimentado o desprezo a ela pelos jovens através do ridículo ensino, das provas e exames etc. A Universidade, para Nietzsche, também não deveria temer essa separação, uma vez que a falta de prestígio de uma só vem a agravar mais ainda a falta de prestígio da outra. De fato, a Universidade há muito deixou de ser respeitada e vista pelo público geral como um lugar sagrado do conhecimento, mas antes como uma mera associação de empregados do Estado covardes e bajuladores. Nós já sabemos de quem se trata esses empregados e como Nietzsche os tratava “[...] foi o espírito dos jornalistas que invadiu cada vez mais a universidade, e não foi raro que isto se fizesse usando o nome de filosofia [...]” (UB/CoEx - III § 8, p.257). É somente com a filosofia livre do Estado e da Universidade, portanto, que o verdadeiro filósofo poderá tomar o seu lugar como o legislador da cultura e da educação, e, enfim, da vida, como Schopenhauer queria: Esta é a razão por que me parece de suma importância que surja fora das universidades um tribunal supremo que possa controlar e julgar estas instituições, no que diz respeito também à educação que elas ministram; e logo que a filosofia se tenha divorciado das Universidades, e por conseguinte fosse purificada de todas essas precauções e de todas essas indignas obscuridades, unicamente ela poderia constituir este tribunal: sem poder de Estado, sem emolumentos e sem honrarias de qualquer espécie, ela poderia cumprir suas funções, liberta tanto do espírito do século, como do medo deste espírito – em suma, tal como Schopenhauer viveu, como juiz da autoproclamada cultura que o cercava. Desse modo, também o filósofo pode ser útil à universidade, se longe de se confundir com ela, ao contrário, ele a vigiasse com uma certa e respeitosa distância. (UB/CoEx III § 8, p.257).
É momento de pôr valor em cada coisa e elevar a filosofia novamente ao degrau mais alto das construções humanas, de se colocar objetivos audaciosos e perigosos, de realizar a grande obra do homem, de preparar o nascimento do novo homem, pelo qual a natureza tanto espera. De fato, pergunta-se Nietzsche qual a importância de um Estado ou de uma Universidade “quando o nascimento de um filósofo na terra é indizivelmente mais importante do que a conservação de um Estado ou de uma Universidade?” (UB/CoEx - III § 8, p.257). Se a filosofia perdeu o respeito e se viu ridicularizada ao ser usurpada pela filosofia universitária10, graças a esses homens que Nietzsche
forças mais altas e nobres para o problema incomparavelmente mais importante de todos, isso só pode ocorrer com sucesso quando a filosofia ficar livre de toda influência do Estado”. (SCHOPENHAUER, 2001 p.68,69). 10 “[...] tais filósofos universitários se esforçam sobretudo para dar à filosofia a direção que corresponde aos propósitos que estão no seu coração, ou antes, que ali foram postos. E para isso, se necessário, até deturpam as doutrinas dos genuínos filósofos antigos e, em caso extremo, chegam a falseá-las para produzir só o de que necessitam. Já o público é tão infantil em sempre lançar mão do mais novo, e já que tais escritos levam o título de filosofia, a consequência é que, dada a falta de gosto, a perversão, o disparate ou, no
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 poderia muito bem chamar de “anões do conhecimento”, então, não valeria a pena lutar para devolver a dignidade a ela, como o próprio Nietzsche a chama, essa “deusa da verdade”? Se algum homem escolheu viver sua vida sob o exemplo de Schopenhauer, não terá outra resposta para essa pergunta senão um grande e sonoro sim.
Considerações finais. A natureza precisa, portanto, do gênio (artista, santo e filósofo) para chegar a uma melhor compreensão de si mesma, para alcançar, através deles, uma significação metafísica. É necessário, porém, que aqueles que reconheçam a importância e a seriedade dessa missão se coloquem no âmbito da cultura, naquilo que Nietzsche chamou de consagrações da cultura. A primeira consagração da cultura seria o descontentamento para consigo mesmo, sem ressentimento. A segunda consagração da cultura seria o momento em que o homem se coloca efetivamente no combate pela cultura. Através da vida de Schopenhauer podemos retirar valiosos exemplos sobre as condições necessárias para o engendramento do gênio. Em suma: liberdade viril do caráter, conhecimento precoce dos homens, ausência de sentimento patriótico, de educação erudita, de necessidade de ganhar o pão e de obediência ao Estado. Mas sobretudo, liberdade. É somente com essa posição de coragem perante à Universidade e ao Estado que Schopenhauer defendia que a filosofia pode novamente exigir seu lugar como a mais alta das construções humanas. Não submetida a essas instituições, mas de fora delas, agindo como legisladora e reguladora.
ABREVIATURAS UB/CoEx-III
Unzeitgemäβe Betrachtungen III: Schopenhauer als Erzieher /Terceira consideração extemporânea: Schopenhauer como Educador.
mínimo, o tédio martirizante deles, boas cabeças que sentem uma inclinação para a filosofia recuam apavoradas diante dela. Assim, a própria filosofia cai em descrédito como agora acontece”. (SCHOPENHAUER, 2011 p.70,71).
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Schopenhauer, o gênio e a filosofia em Schopenhauer como educador, de Nietzsche, pp. 129-147 REFERÊNCIAS NIETZSCHE, Friedrich. Terceira Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador. In: Escritos sobre Educação. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. 7. Ed. – Rio de Janeiro : PUC – Rio ; São Paulo : Ed. Loyola, 2011. (Abreviada como UB/CoEx – III).
_______________. Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino. In: Escritos sobre Educação. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. 7. Ed. – Rio de Janeiro : PUC – Rio ; São Paulo : Ed. Loyola, 2011. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos Para a Sabedoria de Vida. Trad. Jair Barbosa: revisão da tradução Karina Janini. 3°. Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. _______________. Sobre a Filosofia Universitária. Trad. Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola, Márcio Suzuki. – 2° ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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O SUJEITO DA INCOMPLETUDE E O DIÁLOGO ENTRE DISCURSOS: A HETEROGENEIDADE E O ATRAVESSAMENTO DE VOZES NA CANÇÃO “UM FADO” DE IVAN LINS Alexander Severo Córdoba1 Éderson Luís Silveira2
RESUMO: Este artigo tem o intuito de refletir sobre o conceito de heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso fundamentando-se teoricamente em Authier-Revuz, que articula abordagens do dialogismo bakhtiniano e da psicanálise freudo-lacaniana, a fim de analisar a canção “Um fado” de autoria do compositor e cantor Ivan Lins cuja canção pertence a seu trabalho discográfico intitulado “Todos somos iguais esta noite” (1977). A análise permitiu apreender na estrutura material da língua a escuta de ressonâncias não intencionais que rompem a suposta homogeneidade do discurso atestando a existência da heterogeneidade constitutiva. PALAVRAS-CHAVE: Heterogeneidade; Discurso; Dialogismo. THE SUBJECT OF INCOMPLETENESS AND DIALOGUE BETWEEN DISCOURSES: THE HETEROGENEITY AND THE CROSSING OF VOICES IN THE SONG "A FATE" OF IVAN LINS ABSTRACT: This paper is intended to reflect on the concept of constituent heterogeneity of the subject and discourse based theoretically in Authier-Revuz, which articulates the Dialogic approaches bakhtiniano and Freud and Lacanian psychoanalysis, in order to analyze the song a "fado" written by the composer and singer Ivan Lins whose song belong to his work album "We're all like tonight" (1977). The analysis allowed to seize the material structure of language listening for 1 Mestre em
Linguística Aplicada pela Universidade Católica de Pelotas – UCPEL. E-mail: severo.cordoba@gmail.com Doutorando e Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. E-mail: ediliteratus@gmail.com 2
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 unintended resonance that break the alleged homogeneity of the discourse attesting to the existence of constituent heterogeneity. KEYWORDS: Heterogeneity; Discourse; Dialogic. 1. ANCORAGENS TEÓRICAS Authier-Revuz, a partir de uma série de conferencias proferidas entre novembro de 1980 e janeiro de 19823, publica um artigo relacionando duas maneiras de lidar com a alteridade no discurso: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva. Sobre a primeira, são as linguisticamente descritíveis relacionadas ao discurso direto, indireto, aspas, glosas, etc; que questionam a existência de uma suposta homogeneidade do discurso introduzindo o outro no discurso. Em relação à segunda, a autora afirma que esta possui a característica da não marcação em superfície, sendo um princípio que fundamenta a própria natureza da linguagem. No Brasil, o texto foi publicado em 1990 no periódico Caderno de Estudos Linguísticos da Unicamp sob o título Heterogeneidade(s) enunciativa(s). A tradução é de Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. Neste texto, a autora baseia-se em pressupostos bakhtinianos para tratar do que ela intitula uma heterogeneidade do sujeito e do discurso. O “dialogismo” do círculo de Bakhtin, como se sabe, não tem preocupação com o diálogo face a face, mas constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso. As palavras são sempre e inevitavelmente as “palavras dos outros” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26, grifo da autora).
Pretende-se enfocar, neste artigo, no pressuposto teórico voltado à heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso. Assim, entende-se como heterogeneidade constitutiva a presença de um outro que está nos constituindo e, ao mesmo tempo, constituindo a linguagem clivado pelo inconsciente (AUTHIER-REVUZ, 2004). Para isso, Authier-Revuz procura uma ancoragem exterior à linguística apoiando-se, portanto, em duas abordagens não-linguísticas da heterogeneidade da palavra e do sujeito: o dialogismo bakhtiniano e a psicanálise freudo-lacaniana. Em relação aos trabalhos de Bakhtin interessam as reflexões sobre o princípio básico do dialogismo enfocando no lugar que o outro possui no discurso enquanto que, em relação à psicanálise, o interesse está em abordar um sujeito que é produzido pela linguagem, clivado pelo inconsciente. Sem se perder ou se diluir, mantendo-se em seu terreno, parece-me que a linguística deve levar em conta, efetivamente, esses pontos de vista exteriores e os deslocamentos que eles operam no seu próprio campo (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 1000).
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O artigo mencionado foi publicado pela revista Langages n. 73 em 1984 e a tradução para o português, que consta na listagem de referências ao final do presente trabalho, data de 1990.
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Além disso, é importante destacar, desde já, que ambas as exterioridades abordadas por Authier-Revuz, oriundas de concepções diferentes, questionam profundamente a imagem de um locutor que por meio da língua se manifeste conscientemente, sendo aquela, ao mesmo tempo, um instrumento de comunicação utilizado pelo locutor. Então, os dois pontos de vista: o dialogismo e a psicanálise permitem a interfase de uma teoria da heterogeneidade linguística à outra do descentramento do sujeito (TEIXEIRA, 1998). Na literatura percebe-se uma série de trabalhos lidando com a importância das reflexões de Bakhtin sobre a presença do outro na enunciação discursiva tornando-se cada vez mais destacável, dentro da linguística, o estudo relacionado às interações e relações entre textos, discursos e ideologias (BARRETO, 2004; TEIXEIRA, 1998; 2000). Entende-se por dialogismo como uma ciência das relações e a sistematização do conhecimento em que a linguagem possui um princípio constitutivo próprio e condicional ao sentido do discurso. Assim, o conceito de linguagem toma uma nova definição: ela é uma criação coletiva, produção social e historicamente localizada (BARRETO, 2004). Em relação ao signo linguístico este possui um caráter ideológico, consequentemente está enraizado nele, um caráter histórico e uma interação verbal com os demais dentro de uma cadeia dialógica (BARRETO, 2004). Bakhtin (2011) considera a língua viva, concreta, dialógica, o que significa que as palavras são sempre perpassadas pelas palavras de um outro. Neste contexto, cada enunciado está atravessado por enunciados outros revelando o discurso do outro em sua constituição. Trata-se não de uma troca entre palavras de um interlocutor para um receptor, mas de uma dialogização interna do discurso possibilitando que seus estudos adentrem o campo dos estudos do texto e do discurso. Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (2002), observa-se a diferença entre as concepções de língua dada por Bakhtin/Volochinov e aquelas resultantes do corte saussuriano a partir do Curso de Linguística Geral4 para a Linguística: Bakhtin coloca, em primeiro lugar, a questão dos dados reais da linguística, da natureza real dos fatos da língua. A língua é, como para Saussure, um fato social, cuja existência se funda nas necessidades de comunicação. Mas, ao contrário da linguística unificante de Saussure e de seus herdeiros, que faz da língua um objeto abstrato ideal, que se consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas manifestações (a fala) individuais, Bakhtin, por sua vez, valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não 4
Vale destacar que a descoberta de novos manuscritos do linguista e a publicação de Écrits de Linguistique Générale trouxe à tona outro Saussure, diferente daquele que muitos estudiosos reconheciam até então como aquele que assentou a Linguística contemporânea no estruturalismo a partir da exclusão da fala e do corte epistemológico que teria excluído o sujeito e a história dos estudos da linguagem. Não se trata do foco deste trabalho, mas para mais informações acerca da temática podem ser consultados Arrivé (2007), Bouquet (2009), Piovezani (2008), Puech (2004; 2005) e Starobinski (1974).
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais (LAHUD & VIEIRA, 1999, p.14).
É importante salientar que o sujeito não têm, sob este viés, controle dos enunciados que profere, pois há um atravessamento de diferentes vozes sociais que o compõem produzindo, por meio do deslocamento do seu inconsciente, dois tipos de interação concomitantemente: 1) entre os interlocutores, o enunciador e o receptor e 2) entre os sujeitos e a sociedade (BARRETO, 2004). Portanto, os seres humanos são influenciados (direta ou indiretamente) por alguma coisa que já aprenderam antes e, na maioria das vezes, não percebem que certas ideias chegam a suas mentes sem saber onde e como elas surgem. Por outro lado, há outro polo da exterioridade abordada por Authier-Revuz relacionado à psicanálise freudo-lacaniana. Segundo Freud (2014), quando um ser humano nasce, não existe nele uma unidade comparável ao Eu, e sim, o que há é um tipo de caos resultante de um corpo ainda fragmentado e descontínuo. Então, o ser humano pode somente apreender essa unidade por meio de um esquema mental gradativamente. Por sua vez, Lacan afirma que esse esquema mental tratado por Freud não é um dado natural, mas antecipado pelo bebê por um “Outro”. Nesta perspectiva esse Outro (escrito com maiúscula) possui um significado diferente, ele está relacionado com a linguagem e os significantes que dela se produz (TEIXEIRA, 1998). E, também, é anterior ao sujeito porque o determina, permitindo lhe estabelecer diferenças entre aquilo que aparenta ou imagina ser, como por exemplo, as diferenças entre os sexos. Então, a mãe é a pessoa quem ocupa esse lugar do Outro pela criança. Por meio da releitura de Freud feita por Lacan (1978) é possível compreender a constituição do inconsciente como lugar do Outro assim como as relações do inconsciente com a linguagem. Assim, a psicanálise freudo-lacaniana é caracterizada por Authier-Revuz (1998) pela dupla concepção que apresenta de uma fala fundamentalmente heterogênea e de um sujeito dividido. Desse modo, é de suma importância destacar aqui a finalidade do trabalho psicanalítico que auxilia no ressurgimento de conflitos esquecidos, demandas recalcadas que agem sem que o sujeito tome conhecimento na sua vida (AUTHIER-REVUZ, 2004). Neste contexto, a palavra “divisão” emerge para caracterizar tanto o fato de ser o sujeito clivado, cindido entre consciente e inconsciente como para ressaltar a multiplicidade de personagens que o sujeito põe em cena, atravessamento do outro a partir das rupturas enunciativas que revelam as não-coincidências do dizer.
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 Assim, as palavras de Lacan produzem reverberações em Authier-Revuz (2004, p. 50) quando ela retoma as palavras do psicanalista francês em sua obra: O inconsciente é esta parte do discurso concreto enquanto transindividual, que não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente [...]. O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um vazio ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado.
Com base na citação acima, Authier-Revuz pretende mostrar, naquele artigo em que ela cita Lacan, que não há um discurso próprio ao inconsciente, pois a veracidade do discurso do inconsciente se faz na materialidade da língua, então, é nesse caminho que a interpretação analítica tem destaque (TEIXEIRA, 1998). Assim, o que tem relevância para um analista é observar o trabalho de escuta sobre a materialidade da língua. Esta reflexão sobre “um inconsciente-linguagem” é baseada em uma teoria formulada por Lacan em um período pós-saussuriano (AUTHIER-REVUZ, 2004). Dessa forma, a heterogeneidade enquanto viés teórico reconhece como inevitável a intervenção de um exterior constituinte da linguagem, que diz respeito às relações entre sujeito e a linguagem. O fechamento da exterioridade se dá quando há suposição de pretenciosa autonomia e completude no campo da linguística. Assim, tem-se o reconhecimento do exterior ao mesmo tempo em que se reconhece que a língua tem uma ordem que lhe é própria e isso não inviabiliza o que é da ordem do discurso, o atravessamento de discursos e a heterogeneidade fundante das práticas linguageiras.
Ivan Lins – Todos somos iguais esta noite (1977) Ivan Lins é considerado um dos compositores e músicos mais completos da Música Popular Brasileira (MPB). Durante seus 30 anos de carreira, Ivan Lins possui diversos prêmios nacionais e internacionais, tais como, diversos Grammys (2007-2009), inúmeras gravações de sua obra pelo mundo, e, também, por sua harmonia diferenciada e arranjos rebuscados. Sendo um dos artistas brasileiros vivo mais gravado no exterior, o compositor começou a tocar piano aos dezoito anos e foi muito influenciado pela música que ouviu em sua infância nos Estados Unidos: o Jazz e a Bossa Nova. Destaca-se a influência da realidade política dos anos 70 na sua carreira e sua postura extremamente ética e idealista a partir desse momento. Nessa época lança quatro álbuns marcantes e complementares entre si: Somos Todos Iguais Esta Noite, Nos Dias de Hoje, A Noite e Novo Tempo.
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 Teve inúmeros sucessos como cantor e como compositor como é o caso de Abre Alas, Somos Todos Iguais Essa Noite, Começar de Novo. A canção Começar de Novo reflete bem a postura artística da dupla de compositores e amigos Ivan Lins e Vitor Martins, música e melodia muito bem elaboradas. Esta canção traz em sua letra original um lindo poema que pode ser entendido como um recomeço amoroso e pessoal de alguém que passou por muitos desagrados numa relação. A letra, que não traz definição de gênero, ou seja, não aborda as questões de gênero: tanto o masculino como o feminino, na verdade era uma profunda e criativa crítica à ditadura militar, mas elaborada de maneira que a ambiguidade não prejudica nem a crítica política e nem o sentido amoroso da canção, além de ter conseguido driblar a terrível censura que sofriam os artistas da época. Dentro dessa perspectiva, pretende-se categorizar as canções de Ivan Lins de cunho políticosocial dentro do conceito de engajamento que pode ser substituído pelos termos “canção engajada”, “música participante” e “canção de protesto”. Cujos termos têm sido amplamente utilizados para explicar a Música Popular Brasileira produzida a partir da década de 1960-70 (LOPES, 2008). No final da década de 60, a sigla MPB ganha contornos de um gênero ou estilo musical, delimitando um tipo de música popular brasileira, que passa a ser identificada a uma produção musical de contestação social. Enquanto que sobre os anos 70, Lopes (2008) caracteriza a MPB como um complexo cultural que incorpora diversas tendências musicais, e ainda a autora cita Napolitano (2001) em que este classifica a nossa música popular como um sinônimo de resistência cultural ao regime militar. Sobre o regime militar no Brasil pode ser destacado que o fim da década de 60 foi caracterizado por ter sido o período mais conturbado e violento durante o regime militar instaurado desde 1964. A vigência do AI-5 (Ato Institucional nº5) entre os anos 1967-69 outorgou poderes ilimitados ao governo do General Médici, tais como: o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado, estender a censura prévia à imprensa e aos meios de comunicação, entre outros (HABERT, 2001). Consequentemente, a censura estava institucionalizada no país, as torturas aumentavam consideravelmente e o povo sentia-se literalmente sufocado devido à repressão e o clima de terror imposto pelo governo militar em nome da “Segurança Nacional” e do “combate á subversão comunista”. Pode-se observar, então, que em boa parte da discussão acadêmica em relação a trabalhos envolvendo a MPB produzida entre as décadas de 1960-70 e seu contexto social, tem-se privilegiado o aspecto político – a repressão e a censura – e o posicionamento dos artistas contra a ditadura
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 militar, o que, certamente, pode ser evidenciado em muitas letras de canções do período, como, por exemplo, as de autoria de Ivan Lins.
Análise da canção Um fado Na literatura observam-se estudos da heterogeneidade constitutiva discursiva através da análise de diversas tipologias textuais como, por exemplo, em canções do cantor e compositor Chico Buarque (TEIXEIRA, 1998), e em propagandas do tipo Outdoors (Barreto, 2004). Nesses estudos torna-se preponderante a identificação do/no discurso do sujeito um outro. A canção Um Fado5 foi selecionada dentro do trabalho discográfico Todos somos iguais esta noite (1977), devido a que nele encontram-se composições cuja temática está ligada ao período contextual da ditadura militar brasileira. E, também, naquela canção escolhida, identificam-se traços da heterogeneidade constitutiva do sujeito e do seu discurso. Para tal análise, pretende-se desenvolver alguns versos da canção Um Fado comprovando suas relações com o pressuposto teórico apresentado. Em primeiro lugar, é importante salientar, a interpretação que se faz a letra da canção Um Fado ligado ao contexto da ditadura militar e, nela, identificar o outro que constitui esse sujeito do discurso6 (TEIXEIRA, 1998) que trata de construir seu próprio discurso valendo-se das ferramentas teóricas expostas: o SD do dialogismo de Bakhtin e da psicanálise freudo-lacaniana. Em uma primeira análise, é interessante analisar o título da canção: Um Fado. De acordo com o dicionário da Língua Portuguesa Aurélio (2008): há duas definições para a palavra fado: 1) Substantivo masculino que tem o mesmo significado da palavra destino e sorte e 2) Canção popular portuguesa, dolente e triste; música e dança que acompanham essa canção. Além disso, observase, nessa canção o afastamento do SD de dentro do contexto do discurso, ou seja, ele cumpre a função de contar certos acontecimentos sem envolver-se, literalmente nos fatos. Então, pelo título dessa canção, pressupõe-se que o SD nos leva a refletir que esse fado não se identifica, aparentemente - marca registrada, gramaticalmente falando, por ser um artigo indefinido: “um” - ou seja, não especifica literalmente de que fado está se referindo. Por isso há, no título da canção essa contradição que influencia e permeia no discurso do SD. E, ao mesmo tempo,
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Cuja letra encontra-se disponível em: http://www.letras.com.br/ivan-lins/um-fado diante.
6 SD daqui em
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 o destino que constitui o SD podendo ser considerado bom ou ruim é acompanhado pelo ritmo dessa canção que é a de um fado. Entretanto, há marcas no SD desde o primeiro verso dessa canção em que o destino está relacionado a aspectos negativos ou fatos negativos em/de sua vida como no primeiro verso: “Nenhuma esperança à vista”. A primeira palavra do primeiro verso, “nenhuma”, é uma palavra feminina que pode ser designada gramaticalmente como um pronome adjetivo que se define pela falta ou ausência total de. Então, observa-se, o SD caracterizado desde um ponto de vista negativo, pois ele expressa uma falta de esperança que ainda não fui identificada por causa dessa marca pronominal nenhum. Logo, identifica-se um traço da heterogeneidade constitutiva do sujeito e do seu discurso nos seguintes versos (v. 3 e 4): “Não haverá mais conquistas/ E nem quem as conte”. Nesses versos, o SD está constituído por outros que constituem sua linguagem mostrando que ela é: uma criação coletiva; produção social e está historicamente localizada (Barreto, 2004). Bem, ao abordar sobre a primeira característica da linguagem: uma criação coletiva relaciona-se nesses versos, um sujeito que representa e constitui a outros: esses outros são a representação de um grupo social da sociedade brasileira durante os anos de chumbo que viveu oprimido e sob pressão por não possuir os bens primordiais tais como a liberdade e a igualdade para poder construir sua vida social dignamente. Em relação ao segundo aspecto, a linguagem como produção social que constitui o SD, nasce de uma inspiração coletiva relacionada a um grupo de indivíduos de uma sociedade a qual exerce uma função ou está em busca dos seus ideais. Isto é, os oprimidos contrários ao regime militar cumprem uma função determinada dentro da sociedade e isso, aflora na constituição da linguagem por meio do discurso de um SD cuja função é a de representar aquele grupo social por meio da constituição dos outros. Deve ser destacado também que o terceiro ponto, ligado aos anteriores, em que a linguagem está historicamente localizada, comprova que a linguagem é fruto de acontecimentos sociais que se desenvolvem em um período histórico de tempo determinado, também, envolvendo um lugar onde ocorreram esses acontecimentos; assim, fazendo sentido na construção de diversas vozes que o compõem entre o sujeito e a sociedade (Barreto, 2004). Dentro dessa perspectiva, encontra-se uma marca da alteridade dentro do SD que o constitui através da presença de um outro que está nos constituindo bem como a nossa linguagem clivado
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 pelo inconsciente (AUTHIER-REVUZ, 2004). Então, nos versos apresentados a seguir, identifica-se no SD produzido pela linguagem basicamente clivado pelo inconsciente (v. 5, 6, 7 e 8): Mulheres gastaram as contas Do terço em Salve-Rainhas Contando nos dedos os filhos Que faltam nas vinhas
Percebe-se, nesses versos identificados e analisados, uma marca da heterogeneidade constitutiva do sujeito e do seu discurso por meio do seu inconsciente como lugar do outro assim como as relações do inconsciente com a linguagem. Por isso, Authier-Revuz menciona a concepção de um sujeito divido e por apresentar uma fala fundamentalmente heterogênea. Então, aqui, vê-se a ideia da alteridade do sujeito para explicar essa dualidade do sujeito relacionado à função do ‘Eu’ e sua complexa estrutura presente no SD, assim, envolvendo os conceitos do outro. Também, o ‘Eu’ do SD não deve ser tratado de forma fechada, porém está interligado com um exterior que o determina. O SD apresenta seu discurso, nos versos mencionados acima, clivado pela linguagem do seu inconsciente, pois, de acordo com Lacan, o inconsciente aparece nesse discurso não para estabelecer uma interligação com o seu discurso propriamente dito, ou seja, o consciente; porque o inconsciente, nesse caso, pode ser tratado como uma parte de minha história, devido a um acontecimento acontecido que é marcado por um vazio que se manifesta na sua linguagem através do seu inconsciente: um inconsciente-linguagem (AUTHIER-REVUZ, 2004). Dessa forma, O fato enunciativo apresenta heterogeneidades que articulam, no dizer do um, o outro a quem ele se dirige e o outro do já-dito. Para tanto, fundamentando-se no dialogismo de Bakhtin, traz para a discussão uma alteridade discursiva que se estabelece em dois planos solidários: o da alteridade representada por formas observáveis na linguagem e o da alteridade constitutiva, apontando para a relação com o outro que o dizer produz (AUTHIERREVUZ, 2011, p. 06).
Essa alteridade fundante revela a presença de uma heterogeneidade mostrada e constitutiva que emergem a partir da análise de enunciados que não podem ser vistos como desvinculados das práticas linguageiras sociais. Para Authier-Revuz (2011) isso significa que há uma ligação profunda com a experiência humana que funda a linguagem a partir do dizer do outro e do dialogismo. Isso ocorre porque “sempre nas palavras, outras palavras são ditas e [...] é a estrutura material da língua que permite a escuta dessas ressonâncias não intencionais que rompem a suposta homogeneidade do discurso (TEIXEIRA, 2000, p. 150).” Por isso não tomamos por referência um indivíduo que tem existência particular na análise dos enunciados, mas um sujeito do discurso porque sua voz é
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O sujeito da incompletude e o diálogo entre discursos, pp. 148-159 atravessada por diversas vozes e porque é impossível que esteja fora das relações linguageiras que revelam que está situado histórica e socialmente no mundo que o cerca. Trata-se, portanto, de um sujeito cindido, atravessado pelo inconsciente e em contínua relação com o outro. Isso porque a heterogeneidade authier-revuziana abala a homogeneidade imaginária de um sujeito fundante e de seu dizer porque é uma heterogeneidade fundante. Sendo fundante, é de suma importância que seja considerada no terreno das não-coincidências do dizer. Daí a escolha da teoria para a análise que foi proposta no presente trabalho.
Considerações (in) conclusas O presente artigo teve o intuito de abordar a heterogeneidade constitutiva do sujeito e do seu discurso tomando como alicerce, de acordo com Authier-Revuz, duas abordagens nãolinguísticas da heterogeneidade da palavra e do sujeito: o dialogismo bakhtiniano e a psicanálise freudo-lacaniana. Assim, por meio da análise da canção Um fado, de composição do autor e cantor Ivan Lins, foi visado apreender marcas que identificam nela essas duas abordagens desenvolvidas para a análise daquela canção através do contexto histórico-político-social relacionado aos “anos de chumbo” no Brasil. Assim, tal trabalho busca apresentar uma interface entre as duas abordagens não-linguísticas, exploradas aqui, dentro do SD da canção analisada, articulando-se com outros textos de análise de temáticas similares a partir da fundamentação teórica utilizada, podendo servir de mote para futuros trabalhos na área.
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SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O RELIGIOSO E O ÉTICO NA TEORIA KIERKEGAADIANA DOS ESTÁDIOS José C. L. Marques1
RESUMO: A elevação feita por Kierkegaard do estádio religioso à mais autêntica modalidade de existência pode, inicialmente, ser entendida como um desprezo do filósofo de Copenhague em relação à dimensão ética, valendo-lhe epítetos como relativista e solipsista. Assim, o presente trabalho tenciona encontrar um ponto de equilíbrio entre os estádios ético e religioso conforme desenvolvidos pelo dinamarquês. Para tal, três conceitos fundamentais serão discutidos, a saber, a ideia de Suspensão teleológica da ética, a categoria de Indivíduo e o conceito de Amor ao próximo. Por fim, será discutida a tese que procura aproximar a ética do amor kierkegaardiana ao imperativo categórico kantiano. PALAVRAS-CHAVE: Ética. Subjetividade. Amor. Dever. ABSTRACT: The increase made by Kierkegaard of religious stage the most authentic form of existence can initially be understood as a Copenhagen philosopher's contempt for the ethical dimension, earned him epithets like relativistic and solipsistic. Thus, this study intends to find a balance between the ethical and religious stages as developed by the Danish. To this end, three key concepts will be discussed, namely the teleological suspension of the ethical, the category of
1 Doutorando
em filosofia pela Universidade Federal do Ceará. markvani18@yahoo.com.br
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 Individual and the concept of love of neighbor. Finally, the thesis that seeks to approximate the Kierkegaardian ethics of love to the Kantian categorical imperative will be presented. KEYWORDS: Ethics. Subjectivity. Love. Duty. Considerações iniciais Em palestra proferida por ocasião da XIII Jornada Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (SOBRESKI) na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), o pesquisador brasileiro Ricardo Quadro Gouvêa ressaltou os problemas advindos de uma interpretação estanque da famosa teoria kierkegaardiana dos estádios existenciais – estético, ético e religioso. Tal compreensão, convenhamos, já se constitui em uma tentativa sutil de sistematizar o pensamento do autor nórdico, proposta um tanto quanto injusta quando se trata de um pensador que se destacou por suas críticas às filosofias sistemáticas. Segundo esta compreensão, o rompimento entre os estádios significaria o aniquilamento de um estádio em relação àquele que o precedera. Noutros termos, a existência autêntica do religioso só poderia se efetivar quando nada mais existisse dos estádios anteriores – estético e ético – marcados pela inautenticidade. De fato, uma leitura apressada da famosa teoria kierkegaardiana dos estádios existenciais – estético, ético e religioso – pode sugerir uma heterogeneidade radical entre tais instâncias. O rompimento entre os estádios significaria o aniquilamento de um estádio em relação àquele que o precedera. Noutros termos, a existência autêntica do religioso só poderia se efetivar quando nada mais existisse dos estádios anteriores – estético e ético – marcados pela inautenticidade. À luz desse entendimento, haveria um abismo instransponível entre estas esferas, acenando a impossibilidade do homem ético ser religioso ou do religioso valorizar a ética. Vê-se, portanto, que a tese da heterogeneidade radical entre os estádios, nomeadamente, entre o ético e o religioso, conduz a sérios equívocos em relação ao pensamento do filósofo dinamarquês. Nesta perspectiva, por exemplo, vê-se a passagem do ético para o religioso como uma anulação completa do primeiro estádio. A ética seria, então, descartada pelo cavaleiro da fé como parece sugerir o exemplo de Abraão analisado por Kierkegaard em Temor tremor (Frygt og bæven). A Suspensão Teleológica da Ética (Teleologisk Suspension af det Ethiske) proposta pelo dinamarquês no texto de 1843 passa a ser entendida como como uma abolição da ética diante do dever do indivíduo em relação a Deus, cabendo-lhe, muitas vezes, o epíteto de relativista e até mesmo
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 antinomista. Por outro lado, a fé em seu caráter subjetivo, elemento essencial do estádio religioso, parece indicar a impossibilidade de qualquer discussão sobre conceitos como alteridade e comunidade no pensamento kierkegaardiano, rendendo a Kierkegaard o estereótipo de solipsista. Diante do exposto, a presente pesquisa abraçará como hipótese inicial a aproximação entre o ético e o religioso em Kierkegaard, rejeitando, em princípio, o entendimento aludido acima, o qual aponta para uma cisão radical entre tais instâncias. Desde que os conceitos de Suspensão Teleológica da Ética, de Indivíduo (den Enkelte) e Subjetividade (Subjektivitet) sejam definidos corretamente e desde que seja possível pensar a ética de modo distinto da consagrada concepção hegeliana, entendemos ser possível situar o discurso ético, mesmo a partir daquilo que Kierkegaard designa como estádio religioso. Para tal, reconhecemos a necessidade de trabalhar a noção de Éticasegunda (Etiske sekunders) empregada pelo dinamarquês na sua polêmica contra Hegel. Seguiremos, neste sentido, a tese já apontada por André Clair em Une Éthique de l’amour e Hélène Politis em Le vocabulaire de Kierkegaard, os quais postulam a existência de um Estádio Éticoreligioso em Kierkegaard. Diante do exposto acima, o presente trabalho pretende revisitar a teoria kierkegaardiana dos estádios, não a partir de um levantamento conceitual e sistemático daquilo que caracteriza cada estádio separadamente, mas procurando estabelecer conexões entre tais instâncias, especificamente, a relação entre o estádio ético e o religioso. 1 – Suspensão sem Supressão O esclarecimento da problemática enunciada acima deve concentrar-se, em seu percurso inicial, exatamente em esclarecer um conceito-chave do vocabulário kierkegaardiano: a ideia de Suspensão Teleológica da Etica2. O conceito é trazido à luz por Johannes de Silentio, pseudônimo usado por Kierkegaard para assinar Tremor e temor3. O problema é colocado por Silentio em forma de pergunta: o salto de fé e, portanto, a entrada no estádio religioso implica uma Suspensão Teleológica da Ética? Este conceito aparece em muitos textos kierkegaardianos, fato que evidencia a sua centralidade. No Pós-escrito, por exemplo, o filósofo dinamarquês declara que a Suspensão consiste no fato de que o Indivíduo se encontra a si mesmo em um estado completamente oposto 2
France Farago, em sua obra Compreender Kierkegaard, declara que o filósofo dinamarquês empresta de Pascal a ideia da suspensão teleológica da moralidade, considerando que o filósofo francês já havia afirmado que a verdadeira moral zomba da moral. 3 As referências a essa obra serão feitas a partir da tradução francesa de Paul-Henri Tisseau Crainte et Tremblement (1946). Diferente das traduções portuguesas, está versão tem o mérito de traduzir direto do original dinamarquês. Cabe salientar que o autor é um dos pioneiros no estudo sobre a obra kierkegaardiana fora da Dinamarca.
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 daquele que o ético requer. (KIERKEGAARD, 2013). A todo momento, o ético encontra-se presente, mas, por conta de seu dever absoluto para com Deus, o Indivíduo é incapaz de cumpri-lo plenamente. No entanto, é no texto assinado por Silentio que tal conceito é aprofundado. Enquanto pai, Abraão possui um compromisso ético, uma obrigação moral em relação ao filho; deve protegêlo de qualquer perigo. Nos termos kierkegaardianos, “a relação que Abraão possui com Isaque se exprime dizendo que o pai deve amar o filho” (KIERKEGAARD, 1946, p. 1965). No entanto, e aí reside a fonte da Angústia do patriarca, a comissão divina obriga-o a colocar Isaque em perigo. Qual o motivo dessa Suspensão? Tal fato ocorre porque o Indivíduo possui um dever absoluto para com Deus. Este dever, esclarece o autor pseudonímico, pode levar à realização daquilo que a moral proibiria. No comentário de Le Blanc (2003), “o homem que opta pela fé, pela relação absoluta com o Absoluto, responde à ordem divina correndo o risco de entrar em ruptura com os outros homens e com a moral. Ao empregar este conceito, acrescenta Stewart (2011), Kierkegaard intenta demonstrar que existe uma esfera superior àquela da Moralidade (Sittlichkeit) hegeliana. É precisamente nesta esfera que opera Abraão para satisfazer o mandamento divino de sacrificar o próprio filho. Noutros termos, a ética de Hegel não teria estrutura suficiente para manejar nestes casos. Em nome do dever absoluto do Indivíduo para com Deus a utilidade da norma moral é suspensa. Após o esclarecimento do que o próprio Kierkegaard entende por Suspensão Teleológica da Ética, duas observações sobre esse tema não podem ser negligenciadas. Em primeiro lugar, é preciso ter o cuidado para não extrapolar o sentido etimológico de “suspensão”. Aqui, deve-se levar em conta uma observação precisa de Hélène Politis. Segundo a pesquisadora da Sorbonne, é preciso deixar claro que “Kierkegaard fala de Suspensão Teleológica da Ética e não de supressão teleológica da ética. De fato, continua a estudiosa francesa, muitos leitores não percebem esta distinção fundamental entre suspender provisoriamente e suprimir definitivamente” (POLITIS, 2002, p. 56. Tradução nossa). Como se vê, a observação da pesquisadora parisiense demonstra que o estádio religioso kierkegaardiano não representa uma abolição completa do ético. A Suspensão ocorre em um momento específico, frente a um telos mais elevado. Antes de tudo, é preciso salientar que há uma necessidade transcendente que justifica, em um caso específico, a Suspensão. Kierkegaard não está defendendo que a ética deva ser suspensa em todo e qualquer caso ao alvitre do Indivíduo. Dito de outro modo, é somente em momentos em que o Indivíduo se depara com o seu dever absoluto para com Deus que a norma moral pode ser suspensa. Além disso, segundo sugere De Paula (2014) Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 a história de Abraão deve ser melhor compreendida como a Suspensão do telos da ética e não como uma abolição completa da ética. A compreensão de que o religioso compromete a instância ética, portanto, baseia-se em uma leitura rasa de Temor e tremor, bem como em uma interpretação fragmentada da teoria dos estádios. De fato, inúmeras passagens do texto de 1843 expressam que o filósofo dinamarquês não tem por finalidade a supressão do ético. O dever absoluto pode levar o cavaleiro da fé a realizar feitos que a moral convencional proibiria, no entanto, jamais poderia incitálo a deixar de amar (KIERKEGAARD, 1946). Em outra passagem, o autor de Prática do cristianismo é ainda mais preciso:
De qualquer forma, isso não significa que a moral deva ser abolida, mas recebe uma expressão completamente diferente, a da paradoxo4, de sorte que, por exemplo, o amor para com Deus pode levar o cavaleiro da fé ao dar ao seu amor para com o próximo a expressão contrária do que, do ponto de vista moral, é o dever (KIERKEGAARD, 1946, 64. Tradução e grifos nossos).
Se tomarmos como referência o que Kierkegaard fala por meio de Johannes Climacus5 no Pós-escrito, as dúvidas sobre uma possível desqualificação do ético são completamente dissipadas. No texto de 1846, as passagens ressaltando o lugar elevado da ética se multiplicam. É, por exemplo, nesta obra que encontramos a emblemática definição da ética como a suprema morada do homem. Em outra passagem, por meio de uma analogia poética, Climacus nos diz que “o ético é a respiração eterna e, em meio à solidão, a comunhão reconciliadora com todo ser humano” (KIERKEGAARD, 2013, 157). É óbvio que não podemos nos esquecer que, neste texto pseudonímico, Kierkegaard redefine a ética, deslocando-a do âmbito da essência e da generalização abstrata para o âmbito da Existência e do Indivíduo. Não obstante, não há como como negar o seu caráter vital. Assim, o divórcio entre ética e existência, no seu sentido autêntico, não se justifica à luz da filosofia
4
O conceito de Paradoxo (Paradoks) é um dos mais centrais no pensamento de Kierkeggard, estando presente em muitas de suas obras. Embora o paradoxo possua íntima relação com a fé, ele não deve se restringir a essa categoria. Para perceber que a noção de Paradoxo no dinamarquês é muito mais abrangente basta lembrar a famosa definição de O conceito de angústia, onde a angústia é, paradoxalmente, a simpatia antipatizante e a antipatia simpatizante. Uma boa definição de paradoxo aparece nas Migalhas filosóficas. Neste texto, o conceito é definido com aquilo que a inteligência do pensamento. O Paradoxo é portanto o limite do pensamento. 5 É através desse pseudônimo que Kierkegaard aprofunda a sua crítica à filosofia hegeliana. Trata-se de uma figura central no seu pensamento, o que se evidencia na preocupação de Kierkegaard em escrever para esse pseudônimo uma espécie de biografia. É preciso duvidar de tudo (De omnibus dubitandum est), publicado postumamente, demonstra como o jovem estudante de filosofia Johannes Climacus se frustra ao tentar iniciar o seu percurso filosófico por meio da dúvida cartesiana e dos sistemas filosóficos. Gouvêa (2006) acrescenta que Climacus é uma espécie de cético religioso na mesma tradição de Montaigne, Pascal, Bayle e Hamann.
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 kierkegaardiana. Por fim, é sempre bom relembrar a declaração do próprio Kierkegaard (2007) em As obras do amor segundo a qual a Tarefa ética é, para o Indivíduo, a origem de todas as tarefas. Deve ser considerado, em segundo lugar, que o conceito kierkegaardiano de Suspensão Teleológica da Ética deve sempre ser analisado à luz de sua polêmica contra a filosofia hegeliana. Ou seja, Kierkegaard tem em mente um modelo específico de ética contra o qual direciona sua crítica. É neste sentido que devem ser interpretadas as inúmeras acusações irônicas de Climacus a Hegel no Pós-escrito, segundo as quais o autor da Ciência da lógica teria edificado um sistema sem ter elaborado uma ética. É óbvio que o filósofo dinamarquês leu Os princípios da Filosofia do direito de Hegel, estando familiarizado com a distinção hegeliana entre Direito abstrato, Moralidade e Vida ética. A propósito, Kierkegaard faz questão de retomar o texto hegeliano em muitas de suas obras. O conceito de ironia, Temor e tremor e Prática do cristianismo são exemplos disso. A declaração kierkegaardiana é, portanto, uma recusa do modo como o filósofo de Berlim concebe a ética. Uma abstração que, no seu entender não dá conta da existência singular. Evidência dessa recusa é, por exemplo, a reclamação apresentada em Temor e tremor segundo a qual Hegel havia transformado a consciência individual em uma espécie de mal6, bem como a primazia dada pelo idealista alemão ao exterior (das Aeussere) em relação ao interior (das Innere). (KIERKEGAARD, 1946). A Suspensão proposta por Kierkegaard é, portanto, de um modelo específico de ética, como destaca com propriedade Gouvêa (2009, p. 139) em sua análise do conceito: A ética que é suspensa na história de Abraão é estritamente a ética racionalista, uma que não pode supor qualquer outra instância de valor ético superior ao julgamento do intelecto. Mas a história de Abraão fala-nos de um telos superior, uma instância mais elevada de valor ético à qual a razão tem que se submeter humildemente. Esta humilhação da razão humana é o que Johannes chama absurdo.
2 – Subjetividade sem Solipsismo Uma vez explicitado o conceito kierkegaardiano de Suspensão Teleológica, atestando que o mesmo não pode ser entendido como uma abolição sumária da ética, são delineados os primeiros contornos da relação entre o ético e o religioso em Kierkegaard. Contudo, temos aí apenas o princípio da jornada. Nosso estudo deve concentrar-se agora na noção de Indivíduo (den Enkelte) e conceitos mais diretamente relacionados como, Subjetividade (Subjektivitet), Interioridade
6 Provavelmente,
Kierkegaard tem em mente o parágrafo 139 dos Princípios da filosofia do direito, onde Hegel afirma: “Na vaidade de todas as determinações exteriormente válidas e na pura interioridade da vontade, a consciência de si é a possibilidade de aceitar por princípio tanto o universal em si e para si como o livre-arbítrio individual, o que constitui o predomínio do particular sobre o universal e a realização dele na prática. É por conseguinte a possibilidade de ser má” (HEGEL, 1997, p. 123).
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 (Inderlighed) e Solidão (Ensomhed). O habito que Kierkegaard tinha de dedicar muitas de suas obras ao Indivíduo é uma indicação da centralidade desse conceito em seu pensamento. Em uma declaração extraída do Pós-escrito, o dinamarquês assevera que o seu “papel em ética relaciona-se incondicionalmente com a categoria do Indivíduo” (KIERKEGAARD, 2013, p. 115). Na asserção pertinente de Gusdorf, tendo como referência o Ponto de vista explicativo, a categoria kierkegaardiana do Indivíduo aponta para o coração da existência subjetiva; é a categoria do espírito, da revelação do espírito (GUSDORF, 1963. Tradução nossa). Entretanto, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo em que aparenta relativizar a ética, a esfera religiosa, supostamente, impossibilita o reconhecimento da comunidade e da alteridade, posto que elege a fé como categoria privilegiada do Indivíduo. Aqui, o problema se apresenta nos termos seguintes: ao deslocar a ética da esfera geral, do estado por exemplo, para a esfera do Indivíduo não estaria o filósofo de Copenhague advogando o subjetivismo, o solipsismo e o egoísmo? O questionamento suscitado acima torna imperativa a discussão da categoria do Indivíduo, sob pena de ofuscarmos o elo entre o ético e o religioso em Kierkegaard. Como é sabido, em Temor e tremor, o cavaleiro da fé é definido como o cavaleiro da solidão. Nos termos do dinamarquês, “um cavaleiro da fé não pode absolutamente socorrer outro. Ou o Indivíduo se transforma em cavaleiro da fé, carregando ele mesmo o Paradoxo, ou nunca chegará realmente a sê-lo. Definitivamente, nessas regiões não se pode pensar em companhia” (KIERKEGAARD, 1946, p. 65). Não bastasse o silêncio e isolamento entre um Indivíduo e outro que o movimento da fé parece exigir, encontramos na segunda cessão do Pós-escrito, a controvertida definição kierkegaardiana da verdade enquanto Subjetividade. A categoria da Solidão e o caráter subjetivo da verdade parecem impossibilitar o reconhecimento da alteridade e o caráter tênue dos laços entre o ético e o religioso é denunciado. Primeiramente, é preciso reconhecer que a categoria da Solidão que caracteriza o Cavaleiro da fé (Troens Ridder) enquanto Indivíduo singular não representa um isolamento final ao ponto de eliminar a responsabilidade ética em relação ao outro. A propósito, em momento algum Abraão nega que possui um compromisso moral para com Isaque. É precisamente esta consciência aguda de seu dever paternal que lhe angustia. Esta impressão se evidencia em uma das formas como Kierkegaard descreve a chegada do patriarca hebreu ao Moriá, o monte escolhido para o sacrifício. Segundo ele, Abraão “lançou-se em terra e pediu perdão a Deus pelo seu pecado, perdão por ter querido sacrificar Isaque, perdão por ter esquecido o dever paternal para com o filho” (KIERKEGAARD, 1946,). A Solidão, portanto, não é o alvo do Cavaleiro, é apenas a condição para Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 que o Indivíduo seja capaz de ver o outro no seu real valor. Dito de outro modo, antes de colocar-se diante dos homens, cada Indivíduo necessita colocar-se sozinho diante de Deus. Na história emblemática de Abraão costuma-se enfatizar a sua viagem de ida ao Moriá e, quase nunca, é lembrado o seu retorno do monte fatídico, quando o patriarca é devolvido ao seio da comunidade. No monte do sacrifício, em Solidão, Abraão se faz verdadeiramente Indivíduo para poder desfrutar da autêntica vida comunitária. Como mais uma vez nos lembra Politis (2002, p. 20), “o Indivíduo singular kierkegaardiano participa de uma autêntica vida ética”, conclusão semelhante àquela proposta por Almeida (2010) quando postula a responsabilidade como o eixo nodal da Subjetividade individual. Chegamos, então, ao Pós-escrito de 1846, reconhecendo que o entendimento do conceito de Indivíduo em Kierkegaard passa, necessariamente, pela polêmica definição de verdade apresentada nesta obra. Se a verdade é a Subjetividade, em que sentido, o Indivíduo, na posse dessa verdade, não seria levado aos extremos do subjetivismo e do egoísmo? O esclarecimento dessa questão requer uma retomada literal do texto kierkegaardiano. Eis aqui uma tal definição de verdade: a incerteza objetiva, sustentada na apropriação da mais profunda interioridade, é a verdade, a mais alta verdade que há para o existente. Lá onde o caminho se desvia (e onde este ponto não se pode estabelecer objetivamente, pois ele é, precisamente, a subjetividade), o saber objetivo é suspenso. Objetivamente ele tem, então, apenas incerteza, mas é exatamente isso que tenciona a infinita paixão da interioridade, e a verdade é justamente a ousada aventura de escolher, com a paixão da infinitude, o que é objetivamente certo (KIERKEGAARD, 2013, p. 215).
Algumas observações sobre a citação acima são pertinentes ao propósito deste estudo. Antes de tudo, é preciso situar esta definição kierkegaardiana no contexto da polêmica com Hegel acerca da possibilidade de se estabelecer um sistema da existência. Sendo a Existência algo em aberto, em devir, seria impossível que ela fosse confinada à objetividade de um sistema. É na Existência atravessada pela contingência que o Indivíduo se relaciona com a verdade. Assim, dizer que a verdade é a Subjetividade é o mesmo que afirmar o caráter existencial dessa verdade. Kierkegaard está, por conseguinte, retirando a verdade do campo da abstração e da objetividade pura e procurando situá-la no âmbito da Existência. O dinamarquês está reconhecendo que na pura objetividade “o indivíduo singular é sacrificado naquilo que constitui o fundamento de sua razão de ser: existir enquanto escolhe a si mesmo no interior da existência, existir eticamente” (ALMEIDA, 2011, p. 116). Deve ser mencionada ainda a ênfase dada no texto à relação entre a verdade e a Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 Decisão (Beslutning). A verdade é Subjetividade porque é o Indivíduo singular quem decide em relação a ela. Ora, se apenas o Indivíduo pode decidir, e a decisão é condição para ética, o Indivíduo é o único que pode agir eticamente. De fato, explicita mais uma vez Almeida (2011, p. 113) “Sendo impedido de realizar-se subjetivamente o indivíduo é impedido de agir eticamente e transforma-se em coletivo, multidão, público, que significa anonimato, impessoalidade, uniformização e alienação”. Por fim, é mister destacar a relação entre a Subjetividade e a Interioridade (Inderlighed), o que, convenhamos, é uma nota bastante recorrente no texto assinado por Johannes Climacus. O sentido de Interioridade reporta-nos à autenticidade do Indivíduo, não podendo ser entendido como isolamento e solipsimo. Tal conceito está muito próximo da ideia de amor consciente a qual o filósofo dinamarquês aprofundará em As obras do amor. Adorno, em seu brilhante estudo sobre o estético kierkegaardiano destaca com muita nitidez esta proximidade ao asseverar que “em Kierkegaard, o amor transforma-se na qualidade da pura interioridade” (ADORNO, 2010, p. 314). Em outros termos, a Subjetividade não impossibilita o amor, antes, é o sujeito plenamente edificado, que tornou-se verdadeiramente Indivíduo, que está apto a amar. Do exposto acima, deduz-se que a noção kierkegaardina de Indivíduo não implica um comprometimento em relação à ética, muito menos, uma negação da alteridade. O Cavaleiro tem sempre diante de si o compromisso moral com o outro e, depois de isolar-se do mundo diante de Deus, retorna para o convívio com os homens. Por outro lado, a noção de Subjetividade, longe de advogar o solipsismo e o egoísmo é, na verdade, aquilo que possibilita o verdadeiro agir ético. Ademais, a autêntica Subjetividade é aquela que está em condições de reconhecer a sua responsabilidade em relação às outras subjetividades. Tal pensamento está de acordo com a afirmação Paul-Henri Tisseau, grande estudioso do pensamento kierkegaardiano, segundo a qual o Indivíduo é o homem plenamente consciente das categorias existenciais e de seu dever diante de Deus e dos homens (TISSEAU apud SAINT-SAUVEUR, 1993). Viallaneix, mesmo preferindo traduzir den Enkelte como L’Unique (O único), assevera que o conceito kierkegaardiano aponta para aquilo que existe de mais elevado no homem. 3 – A recusa da Ética Primeira, não da Ética ... Após o esclarecimento dos conceitos de Suspensão Teleológica da Ética e de Indivíduo, passando por termos relacionados como Solidão e Subjetividade, chegamos ao ponto crucial de nossa pesquisa: a noção kierkegaardiana de Ética-segunda. O propósito no tratamento dessa
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 questão é fundamentar a relação entre o ético e o religioso kierkegaardianos. Embora o conceito de Ética-segunda soe estranho, em princípio, salienta Almeida (2005), ele ocupa um lugar fundamental nos escritos do dinamarquês, servindo como um elo entre o humano e o divino, o indivíduo e o social, o singular e a comunidade. A expressão é encontrada pela primeira vez em O conceito de angústia, assinado pelo pseudônimo Vigilius Hafniensis. Nesta obra, tendo como referência a problemática acerca do pecado original, Kierkegaard rejeita a chamada Primeira ética de inspiração hegeliana e introduz a Ética-segunda, a qual tem como pressuposto a Dogmática (KIERKEKEGAARD, 2010). Conforme o comentário de André Clair (2002), o motivo da recusa kierkegaardiana da primeira ética está no fato de ser ela baseada em categorias antropológicas da imanência e não dar conta de explicar a culpabilidade individual. No texto de 1844, entretanto, Kierkegaard não aprofunda a discussão acerca da Ética-segunda. Mesmo assim, não estaríamos cometendo nenhuma arbitrariedade interpretativa se considerássemos As obras do amor como a materialização daquilo que o pensador nórdico denominou de Ética-segunda. Esta tese tem sido apresentada por vários estudiosos do pensamento kierkegaardiano, dentre eles André Clair, no texto supracitado, Philliphe Chevallier em La doctrine kierkegaardienne de l’amour e o próprio Adorno em seu estudo Kierkegaard: a construção do estético. Dentre os estudiosos brasileiros, Jorge Miranda de Almeida tem defendido esta tese em muitas publicações. Segundo ele, “Se a segunda ética identifica-se com a interioridade como descrito no Post-Scriptum conclusivo; se o amor é uma determinação da subjetividade, é possível afirmar que o fundamento da ética da alteridade é o amor” (ALMEIDA, 2011, p. 106). Nesta última empreitada partiremos, portanto, da tese enunciada e fundamentada acima, a saber, o Amor (Kjerlighed) como elemento fundante daquilo que Kierkegaard designa como Éticasegunda. Para tal, as atenções dessa pesquisa voltam-se agora para a análise de As obras do amor. O caráter prático do Amor é ressaltado pelo filósofo logo no início do texto por meio da analogia bíblica da árvore que só pode ser conhecida mediante seus frutos, tal qual o ágape cristão que só pode ser manifesto por meio de ações amorosas. Seguindo o esboço do texto de 1847 deve ser considerada a crítica feita pelo dinamarquês aos chamados amores prediletivos Kierkegaard tem em mente o eros (elksov) da concepção platônica e a filia (venskab) esboçada pela filosofia aristotélica. Nos termos de sua crítica, O Cristianismo entende melhor do que qualquer poeta o que seja o amor e o que seja amar; justamente ele também sabe aquilo que escapa aos poetas, que o amor que eles cantam, ocultamente, é o amor de si [...] O amor natural ainda não é o eterno, ele é a bela vertigem da infinitude (KIERKEGAARD, 2007, p. 34).
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 Segundo o discurso de Sócrates no Banquete, o eros é definido como o desejo de possuir sempre o que é bom e belo (PLATÃO, 2001). Em consequência desse caráter prediletivo o amor só pode ser pensado como um sentimento que se nutre em direção a um objeto desejável. De fato, a relação entre o ato de amar e o prazer sensível torna impossível que o eros seja direcionado a um objeto desprezível. À luz da crítica kierkegaardiana, a sensação aprazível que caracteriza o amor natural, ao modo platônico, diverge radicalmente do caráter exigente do ágape cristão. O poeta, na compreensão do dinamarquês, é tal qual uma criança mimada, incapaz de aceitar a ordem solene do Amor (KIERKEGAARD, 2007). Por isso, como em uma espécie de fuga, emprega todos os seus esforços apenas para cantar o amor. Obviamente, Kierkegaard também tem palavras pouco amistosas em relação ao conceito de amor enquanto filia (amizade). Na compreensão aristotélica, a reciprocidade é uma das marcas fundamentais da amizade. Segundo suas próprias palavras, “para serem amigas, as pessoas devem conhecer uma a outra desejando-se reciprocamente o bem, por uma das razões mencionadas” (ARISTÓTELES, 2001, p. 164). A existência da reciprocidade garante que a relação seja regida pelo princípio do prazer, terreno propício para crescer a afeição entre os amigos. Obviamente, o autor dos Discursos edificantes manifesta seu desacordo em relação a essa compreensão. Seguindo de perto a declaração paulina segundo a qual “o amor não busca os seus próprios interesses” (I Co. 13:5), ele qualifica a amizade, em sua reciprocidade, como uma forma sofisticada de egoísmo. Para Kierkegaard (2007), o verdadeiro amor deve eliminar a troca, deve suprimir o “meu” e o “teu”, fato que não corre em uma relação marcada por um vínculo recíproco. Deve-se vigiar, já falara o dinamarquês nos Discursos edificantes de 1843, para não ceder à inclinação de tomar de novo aquilo que doamos (KIERKEGAARD, 2010). De fato, em substituição à ideia de reciprocidade, Kierkegaard desenvolverá em As obras do amor o conceito de Triplicidade (Threeness). Para o autor de Doença para morte, quando o amor não está ligado à eternidade só é possível falar em reciprocidade, um relacionamento marcado pela troca entre o amante e o amado. Quando, porém, o amor passou pela transformação da eternidade não há mais apenas os dois, mas três: o amante, o amado e Deus, a própria essência e fundamento do amor (KIERKEGAARD, 2007). O amor que não está amparado pela Triplicidade, mas baseia-se apenas na duplicidade da reciprocidade, mantém as portas abertas para o surgimento do amor egoístico já descartado pelo filósofo dinamarquês. Outro ponto importante para nossa discussão acerca da noção de Ética-segunda será a controvertida relação estabelecida pelo filósofo da existência entre Amor e dever. “O amor já existia Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 no paganismo”, afirma Kierkegaard (2007, p. 41), “mas isto de se dever amar constitui uma mudança da eternidade”. A declaração kierkegaardiana suscita muita discussão, fato percebido, por exemplo, na crítica de Christoph Schrempf ressuscitada por Adorno (2010, p. 318) o qual “protesta contra a proibição da predileção que, para ele, é algo belo, e polemiza contra a doutrina da abnegação, posto que nenhum amante verdadeiramente se nega, mas se realiza a si mesmo”. Schrempf deixa de considerar que Kierkegaard tem como referência o conceito cristão de Amor, e no ágape, comenta Valls (2012, p. 80) não há uma relação erótica, pois, neste caso, não há beleza no objeto amado. A discussão sobre a relação entre o Amor e o dever enquanto tentativa de fundamentar a Ética-segunda obriga-nos a algumas considerações em torno de uma aludida relação entre Kierkegaard e Kant. Obviamente, nesse ponto, não pretendemos dar um tratamento exaustivo sobre a doutrina do filósofo de Köningsberg, apenas, em linhas gerais, apresentar tal aproximação que pode ser expressa no questionamento seguinte: o Amor-dever kierkegaardiano teria alguma relação com o imperativo categórico kantiano? Segundo conhecida tese enunciada por Alasdair MacIntyre em After virtue, as concepções éticas de Kierkegaard apontariam para uma dívida em relação ao filósofo prussiano. Nos termos do pensador britânico, “é fácil demais não observar a dívida positiva de Kierkegaard para com Kant. Com efeito, é Kant em quase todas as áreas quem aponta o cenário filosófico para Kierkegaard” (MACINTYRE, 2007, p. 43). É óbvio que certos paralelos podem ser estabelecidos entre os dois pensadores como, por exemplo, o caráter universal do dever e a ideia de que o Amor cristão não pode ocorrer a partir de uma inclinação prévia ou predileção. Como é afirmado na Fundamentação da metafísica dos costumes, o amor significa que “devemos amar, mesmo quando não somos impelidos a isso por uma inclinação, e até mesmo quando a isso resiste uma aversão natural e invencível. O amor prático está situado na vontade e não no pendor da sensação” (KANT, 2009, p. 125). Tal pensamento seria facilmente endossado por Kierkegaard. Não obstante, a tese macintyreana, vista isoladamente, pode apontar para uma dependência excessiva do pensador dinamarquês em relação a Kant, posição bastante problemática. É pertinente sempre considerar a divergência acentuada entre os dois filósofos. Enquanto que, no filósofo prussiano, o imperativo categórico possui sempre uma justificação racional, em Kierkegaard, comenta De Paula (2012, p. 177), “o dever de amar advoga a tese paulina do escândalo, motivo pelo qual o amor não pode ser alcançado plenamente pela razão”. Em um trocadilho empregado por Adorno (2010, p. 315), o amor kierkegaardiano é o credo quia absurdum transformado em amo quia absurdum. André Clair (2202), por sua vez trará à tona em seu estudo a Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 crítica feita pelo autor dinamarquês nos Papirer de 1850 acerca do conceito kantiano de autonomia. Vale, por fim, ressaltar que, ao postular a tese da dependência de Kierkegaard em relação a Kant, MacIntyre parte exclusivamente da análise de Ou – Ou, desconsiderando As obras do amor. Partindo do Amor como solo da Ética-segunda, dois conceitos devem ser explicitados, a saber, a noção de Próximo (Næsten) e Reduplicação (Fordoblelse). Quem é o meu próximo? A pergunta emblemática feita pelo fariseu a Jesus no Evangelho é retomada por Kierkgaard. Em sua análise sobre esta questão, ele afirma que o Próximo não deve ser pensado em um sentido seletivo ou exclusivista. O seu caráter é muito mais abrangente do que o amigo ou o amado no sentido erótico. Em termos bastante enfáticos Kierkegaard (2007, p. 37), “se há apenas dois homens, o segundo é o próximo; se há milhões, cada um deles é próximo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 37). O Próximo é, por conseguinte, todos os homens. O conceito não admite exceção, nele estão englobados todos os homens, mesmos os mais indesejáveis. Conforme destaca Jonas Roos (2007), ao se reconhecer o dever, implicado no conceito de amor cristão, aprende-se a ver o Próximo em toda e qualquer pessoa. Na compreensão kierkegaardiana, o conceito de Próximo também aparece vinculado à ideia de Reduplicação. Esta expressão aponta para uma profunda identidade com o próximo. Deve-se amá-lo como a si mesmo. O Próximo é, por assim dizer, uma espécie de segundo eu. É com ele que, no entender do filósofo dinamarquês, compartilhamos a igualdade dos homens diante de Deus (KIERKEGAAD, 2007). A categoria da Reduplicação é, nos termos de Chevallier (2001), o inimigo mortal de todo amor egoísta, permitindo o reconhecimento da alteridade, de toda e qualquer alteridade. Para que o Amor seja capaz de reconhecer o Próximo ele precisa, nos termos de Kierkegaard, experimentar a transformação da eternidade. Tal fato deve nos levar a considerar o conceito de Seriedade (Alvor). Na superação do amor egoístico bem como na relação com a eternidade, é indispensável a Seriedade. Conceito central do pensamento kierkegaardiano, a Seriedade consiste em usar a vontade para dominar a si mesmo, tornando-se o que estava destinado a ser desde a eternidade e exprimir a eterna beatitude em cada ação de forma que o existente, existindo, transforme tudo na sua existência como prova de respeito ao Bem-Supremo (ALMEIDA, 2009, p. 50). Por outro lado, o Amor-dever, desfruta de uma independência feliz, da verdadeira liberdade. Este Amor, declara Kierkegaard, “jamais pode tornar-se dependente no sentido não verdadeiro, pois
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 a única coisa de que ele depende é o dever, e o dever é a única coisa que liberta. O amor imediato torna um ser humano livre, e no instante seguinte dependente” (KIERKEGAARD, 2007, p. 56). Vê-se que o filósofo existencial retomará aquilo que já fora expresso por Agostinho no seu Comentário à I Epístola de João: “Ama e faze o que quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor; se falas em tom alto, fala por amor; se corriges, corriges por amor; se perdoas por amor. Tem no fundo do coração a raiz do amor: dessa raiz não pode sair senão o bem” AGOSTINHO, 1989, VII, 8). Considerações finais Diante do cenário apontado acima, esta pesquisa postula uma aproximação entre o ético e o religioso em Kierkegaard, rejeitando, em princípio, o entendimento aludido acima, o qual aponta para uma cisão radical entre tais instâncias. Desde que os conceitos de Suspensão Teleológica da Ética, de Indivíduo e Subjetividade sejam definidos corretamente e desde que seja possível pensar a ética de modo distinto da consagrada concepção hegeliana, entendemos ser possível situar o discurso ético, mesmo a partir daquilo que Kierkegaard designa como estádio religioso. Para tal, reconhecemos a necessidade de trabalhar a noção de Ética-segunda empregada pelo dinamarquês na sua polêmica contra Hegel. Neste sentido, endossamos a tese já apontada por André Clair e Hélène Politis, os quais postulam a existência de um Estádio Ético-religioso em Kierkegaard. Da conclusão enunciada acima decorrem duas premissas de natureza secundária. Em primeiro lugar, o religioso kierkegaardiano, mesmo a despeito da Solidão inerente ao Cavaleiro da fé, possibilita a discussão da alteridade. Costumeiramente, diante do estereótipo de solipsista e subjetivista, a filosofia de Kierkegaard parece não encontrar espaço para a discussão de conceitos como alteridade e comunidade. Os estudiosos do dinamarquês veem-se, então, em uma posição desconfortável e costumam invocar a autoridade de outros filósofos para salvar a reputação do autor de Temor e tremor. Ultimamente, Emanuel Levinas, com sua defesa contundente da alteridade, tem sido convocado com bastante assiduidade. Quase sempre, procura-se estabelecer relações entre Kierkegaard e o pensador lituano para, a partir daí, tentar justificar uma ética da alteridade no pensador de Copenhague. Obviamente, os pontos de contato entre os dois filósofos são muitos, fato que o próprio Levinas fez questão de reconhecer em muitas de suas obras. No entanto, a tese abraçada por esta pesquisa é um pouco mais arrojada. Ela defende a possibilidade de fundamentar a noção de alteridade a partir do próprio Kierkegaard, tomando como referência, sobretudo a categoria do Próximo, trabalhada pelo dinamarquês em As obras do amor.
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Sobre a relação entre o religioso e o ético na teoria kierkegaadiana dos estádios, pp. 160-176 Em segundo lugar, reconhecemos que o estádio religioso, conforme categorizado por Kierkegaard, postula uma ética do dever, do dever absoluto. O Amor-dever em relação ao próximo asseverado pelo pensador nórdico não admite, em seu caráter não prediletivo, qualquer possibilidade de exceção. No entanto, nesta discussão, deve ser evitada uma aproximação mais acentuada entre o imperativo do amor kierkegaardiano e o imperativo categórico kantiano como sugere, por exemplo, Alasdair MacIntyre em After virtue. Embora o pensador britânico seja feliz ao apontar traços comuns entre os dois filósofos, nossa compreensão é que tais propostas são destoantes em pontos fundamentais. Se em Kant, o imperativo justifica-se racionalmente, em Kierkegaard, a noção de Amor-dever pressupõe o Escândalo; no primeiro, temos uma defesa da autonomia, no segundo, da heteronomia.
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191
O PARADIGMA DE PESSOA E LIBERDADE EM MOUNIER: A RAIZ DO PERSONALISMO João Francisco Cócaro Ribeiro1
RESUMO: O artigo vislumbra realizar o escrutínio da filosofia de Emmanuel Mounier, isto é, explicitar a “raiz do personalismo”, paradigma exposto nos livros O Personalismo e Introdução aos Existencialismos; o estudo proporciona uma discussão teórico analítica da concepção de pessoa, liberdade e condição humana. PALAVRAS-CHAVE: Emmanuel Mounier. Pessoa. Liberdade. Condição Humana. THE PARADIGM OF PEOPLE AND FREEDOM IN MOUNIER: A ROOT OF PERSONALISM ABSTRACT: The article aims to carry out the scrutiny of the philosophy of Emmanuel Mounier, that is, to explain the "roots of personalism", a paradigm exposed in the books Personalism and Introduction to Existentialisms; the study provides an analytical theoretical discussion of the conception of person, freedom, and human condition. KEYWORDS: Emmanuel Mounier. Person. Freedom. Human Condition. INTRODUÇÃO As tentativas filosóficas da história, na sua maioria das vezes, consideraram o ser humano como composto de dois elementos independentes e justapostos: um material e outro espiritual.
1 Graduando em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus de Santo Ângelo. email: joaococaro@hotmail.com
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 Diante disso, a significação filosófica do Personalismo de Mounier está exatamente na concepção unitária da pessoa como corpo e espírito. É preciso, segundo Mounier, superar essa dissociação perniciosa e pensar o ser humano de forma integral, se se quiser realmente entender o que seja a pessoa humana. Superar, portanto estes ‘resíduos cátaros da filosofia’, é fundamental para se pensar a pessoa em sua totalidade. Na perspectiva personalista de Mounier o ser humano é “integralmente ‘corpo’ e é integralmente ‘espírito’” (MOUNIER, 1960, p. 36). O ser humano se encontra profundamente enraizado na natureza. Há uma série de elementos que o condicionam: determinações psicológicas, natureza material, participações sociais não personalizadas (MOUNIER, 1960, p. 38). Trata-se de um conjunto de condicionamentos que não podem ser tomados como simples circunstâncias acidentais, mas como componentes fundamentais da realidade humana. O meu feitio e a minha maneira de pensar são amoldados pelo clima, a geografia, a minha situação à face do globo, a minha hereditariedade, e talvez, até, pela ação maciça dos raios cósmicos. Para além destas determinações influenciais, temos ainda posteriores determinações psicológicas e coletivas. Nada há em mim que não esteja imbuído de terra e sangue (MOUNIER, 1960, p. 36).
Segundo Mounier, o pensamento cristão sempre pensou esta unidade: “nunca opôs ‘espírito’, ‘corpo’ ou ‘matéria’, na acepção moderna deste termo” (MOUNIER, 1960, p. 36). Para a base do cristianismo o próprio espiritual é carnal. Por isso, “o cristão que fala com desprezo do corpo e da matéria, fá-lo contra sua mais central tradição” (MOUNIER, 1960, p. 37). O corpo, a matéria, contudo, na acepção dos gregos, ao contrário da base do cristianismo, foi considerado com desprezo. Desconsiderou-se que o ser humano é um ser corporal. É através do corpo que o ser humano se enraíza, faz parte concretamente na natureza. O ser humano é integralmente corpo e espírito. Daí a importância de se considerar o inconsciente psicológico, a natureza exterior como constituinte da existência humana. Nesta perspectiva não há mais lugar para dualismo. É pela corporeidade que o ser humano se insere na dinâmica da natureza, seguindo os impulsos da corrente da vida. Quer dizer, o desenvolvimento espiritual do ser humano se encontra profundamente ligado com o corpo, a matéria: “estudos vários demonstram que as grandes religiões seguem os mesmos caminhos que as grandes epidemias” (MOUNIER, 1960, p. 36). Trata-se, portanto, de um pensamento que toma a pessoa como expressão bivalente de uma unidade fundamental. Não posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo: através dele, exponho-me a mim próprio, ao mundo, aos outros, através dele escapo à solidão dum pensamento que mais não seria do que pensamento do meu pensamento. Recusando-se a entregar-me a mim próprio,
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 inteiramente transparente, lança-me sem cessar para fora de mim, na problemática do mundo e nas lutas do homem. Através das solicitações dos sentidos lança-me no espaço, através do seu envelhecimento ensina-me o tempo, através de sua morte lança-me na eternidade. A sua servidão pesa-me, mas ao mesmo tempo é base para qualquer consciência e para toda a vida espiritual. É mediador omnipresente da vida do espírito (MOUNIER, 1960, p. 47).
Mounier quer, na verdade, desfazer a ideia, segundo a qual tudo o que se aproxima da alma e do espírito é divino e tudo o que se aproxima do corpo é superficial e, por que não dizer, maligno. Pois, segundo ele, “já nos Evangelhos a malícia e as perversões do Espírito provocaram mais maldições do que as da ‘carne’, no sentido restrito da palavra” (MOUNIER, 1960, p. 37). É através do corpo que o ser humano se acha em profunda sintonia com a natureza. É através dele que se manifesta, que se mostra o espírito humano. Enfim, “efetivamente, existir subjetivamente, existir corporalmente são uma única e mesma experiência” (MOUNIER, 1960, p. 47).
A PESSOA: IMERGENTE/EMERGENTE NA/SOBRE A NATUREZA A existência pessoal encontra-se profundamente enraizada na natureza, mas também é mais do que simples determinismos. Não há, com certeza, como negar que a pessoa está mergulhada na natureza. Agora, a pessoa é capaz de transcendê-la. A pessoa imersa na natureza, emergindo dela, transcende. É essa dialética do contínuo compromisso entre a natureza e a transcendência humana uma das mais fortes expressões do Personalismo de Mounier. Há toda uma série de determinismos que asseguram, que limitam o ser humano. A natureza, devidamente encarada, como dizia Mounier, resume-se “num feixe infinitamente complicado de determinações (MOUNIER, 1960, p. 39). Contudo, qualquer tentativa de redução da pessoa em artifícios lógicos de relações não expressa mais do que um belo artifício de laboratório. Porque a pessoa além de ser natural, é um ser humano. O ser humano não é apenas natural, não é um simples joguete da natureza. É capaz de transcender a natureza, por isso, somente pode ser captado a partir de um exercício vivo de sua atividade global. A dificuldade, porém, é fazer este exercício de transcendência. O espírito humano tem uma certa tendência de resistência “à representação duma realidade que esteja inteiramente inserida numa outra, na sua existência concreta, e que, no entanto, lhe seja superior em nível de existência” (MOUNIER, 1960, p. 38). O ser humano é uma permanente tendência para o nivelamento. Agora, para além dessa tendência negativa, o ser humano tem uma capacidade distintiva que o impulsiona à transcendência. Ele é capaz de romper com os determinismos, com a inércia de movimentos, com
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 os automatismos, porque é capaz de conhecer esse universo que o absorve e, por isso, pode o transformar. Além do mais, possui capacidade de amar, de liberdade, de superar rígidos determinismos. Não há como negar a natureza. Esse é fator essencial da situação pessoal. A pessoa, contudo, não se mantém imersa, não se contenta com sofrer a ação da natureza. É capaz de voltar a ela e impor a capacidade de seu universo pessoal. É neste sentido que Mounier afirma que as descobertas dos numerosos e estreitos determinismos que encerram o ser humano são sempre fator de libertação para o homem que, buscando, transcender a natureza, pode servir-se de seus determinismos. O homem não é encerrado no seu destino pelo determinismo. Se nos mantemos concretamente ligados a numerosos e estreitos determinismos, cada novo determinismo que os sábios descobrem é mais uma nota na gama de nossa liberdade. Enquanto se desconheceram as leis da aerodinâmica, os homens sonhavam voar; quando o seu sonho se inseriu num feixe de necessidades, voaram. Sete notas são pequeno registo: no entanto, foi com estas sete notas que vários séculos de invenção musical se estabeleceram. Aquele que invoca fatalidades naturais para negar as possibilidades do homem, abandona-se a um mito ou tenta justificar uma demissão (MOUNIER, 1960, p. 41).
Mounier destaca que “desde as formas mais elementares de minha existência me afirmo como pessoa e, nunca sendo fator de despersonalização, muito pelo contrário, a minha existência incarnada é fator essencial de minha situação pessoal” (MOUNIER, 1960, p. 47). Contudo, apesar de ter presente que facilmente o ser humano pode alçar voos que permitem a personalização, sabe que muitas vezes os homens têm se jogado na multiplicidade das determinações naturais, deixando-se levar pelo automatismo, hábito, rotina, ideia geral, etc. Por isso, uma das principais atitudes do personalismo é de consciência pessoal diante o meio natural. A primeira atitude de grandeza está na aceitação do real. Sem se adaptar aos condicionamentos dos determinismos que se descobre, a pessoa pode transcendê-los, fazer deles pedestal para a personalização. “Numa primeira fase, a consciência pessoal afirma-se assumindo o meio natural. A aceitação do real é a primeira tentativa de toda a vida criadora. Aquele que a recusa delira, e a sua ação perde-se” (MOUNIER, 1960, p. 49). Porém, este é apenas o primeiro passo. Não se pode parar na aceitação dos determinismos da realidade humana. Pois, a exploração da natureza tem como fim articular sobre ela, perante a liberdade, possibilidades de humanização, não apenas compreensão dos feixes dos determinismos. É a força da afirmação pessoal que destrói os obstáculos e rasga novos caminhos. É por isso que devemos negar a natureza como dado, para a afirmar como obra, como obra pessoal,
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 suporte de toda a personalização. Então a dependência da natureza torna-se domínio da natureza, o mundo insere-se na carne do homem e no seu destino (MOUNIER, 1960, p. 49).
Da forma como foi exposto acima, contudo, poderia parecer uma entrega do ser humano a uma desenfreada submissão da natureza ao seu domínio. Por isso, é preciso dar um sentido a esta ação sobre a natureza. Caso contrário, corre-se o risco de impulsionar o desenvolvimento de catástrofes. Não se trata de um delírio de afirmação pessoal, delírio manifesto por Ford quando o perguntaram por que o desenvolvimento incessante das suas empresas, respondendo “Porque não posso parar”, mas de uma libertação da humanidade a partir da natureza. Não pode ser tomado como uma relação de senhor e escravo, pois “a pessoa só se liberta, libertando. E é chamada tanto para libertação da humanidade, como as coisas” (MOUNIER, 1960, p. 49). Não se mantém, dessa forma, uma relação de exterioridade com a natureza. O ser humano se apoia nela para vencê-la. Humanizando-a o ser humano também se humaniza. Sob essa concepção, o desenvolvimento técnico assim como a produção, adquirem um sentido profundo. A técnica e produção precisam possibilitar o instaurar de um mundo de pessoas, desde que não se entregue em interesses parasitas ou à sua própria embriaguez. Se tornará libertante na medida em que for modelada às exigências do “ser” pessoal. Neste sentido, produzir é uma atividade essencial da pessoa, desde que demos à produção essa total perspectiva que faz com que ela arraste as mais humildes tarefas no sopro divino que impele a humanidade. [...] É verdade o poder de abstração da máquina é assustador: rompendo os contatos humanos, pode fazer esquecer, mais do que nenhuma outra força, os homens que compromete, que por vezes esmaga; perfeitamente objetiva, inteiramente explicável, faz perder o hábito da intimidade, do segredo, do inexprimível; dá aos imbecis meios inesperados; e, acima disto, diverte-nos fazendo-nos esquecer as suas crueldades. Entregue ao seu peso cego, é uma poderosa força de despersonalização. Mas não o é senão desligada do movimento que a suscita, como instrumento de libertação do homem das servidões naturais e de reconquista da natureza (MOUNIER, 1960, p. 51-52).
Não obstante a todas as investidas do universo pessoal ante a natureza, esta, também se apresenta em constante ameaça de despersonalização. Todo movimento de personalização traz em si inúmeras dificuldades, pois “a matéria é rebelde e não somente passiva; ofensiva e não somente inerte” (MOUNIER, 1960, p. 53). Nada da relação pessoal com a natureza permite uma harmonia. “Em toda a parte onde a pessoa leva a sua luz, a natureza, corpo e matéria, insinua a sua opacidade: debaixo das fórmulas do sábio, debaixo da claridade da razão, debaixo da transparência do amor” (MOUNIER, 1960, p. 53). O ser humano não pode se entregar a ideia de que um dia irá submeter totalmente o mundo. Pois, o ser humano se encontra num “otimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta” (MOUNIER, 1960, p. 54).
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 A pessoa, portanto, não é apenas dado. Ela é também projeto, capaz de superar os condicionamentos que a natureza lhe impõe. Não se trata de pura passividade, é um chamado a existência. Cada ser humano precisa se humanizar. É um chamado à responsabilidade. “O inseto que se confunde com um ramo, para se fazer esquecer na imobilidade vegetal, prefigura o homem que se enterra no conformismo para não assumir as responsabilidades próprias, o que se entrega as ideias gerais ou às efusões sentimentais para não ter que afrontar fatos e homens” (MOUNIER, 1960, p. 19). A pessoa é capaz de se libertar, de se apossar de si e se tornar disponível aos outros. Mas, somente assim o faz aquele que não se entrega à morbidade vegetal. Para Mounier, o ser humano, em oposição às coisas, manifesta o pulsar incessante de sua riqueza. Ele pode, sem dúvida, viver conforme uma pedra. Pode viver, como destacaram vários filósofos: no divertimento, no estado estético, na vida inautêntica, na alienação, na má-fé (MOUNIER, 1960, p. 78). Mas pode transcender. É chamado a transcender. Voltando-se à natureza, o ser humano é capaz de se lançar nos mais recônditos recantos do universo. Se recua é para poder saltar melhor. Essa rica dimensão de ultrapassamento do ser humano a partir da natureza é bem destacada por Mounier, através da metáfora do avião e da bicicleta: “tal como a bicicleta ou o avião só se equilibram quando se movem para lá duma dada força, o homem só se mantém de pé com um mínimo de força ascensional” (MOUNIER, 1960, p. 124). Sendo assim, a busca da transcendência da pessoa não se dá numa simples agitação, mas na negação do ser isolado no seu brotar. “A vida pessoal começa com a capacidade de romper contatos com o meio, de ripostar, de recuperar” (MOUNIER, 1960, p. 78). Uma das manifestações de que o ser humano não é simples joguete nas mãos da natureza, é a sua singularidade, individualidade. A pessoa não é simples ‘coisa’ que pode ser captada ao final de suas análises. A pessoa é “inconfundível com os objetos ou com os seres da natureza, cada pessoa é um universo pessoal” (LORENZON, 1996, p. 70). Ela traz o seu segredo, é capaz, através de um só golpe, romper com os aguilhões que a prendem, sem, porém, libertar-se por completo. Mounier, portanto, destaca a impossibilidade de se chegar aos santuários da pessoa sem atravessar a vida vegetativa. Por isso, é também preciso estar sempre vigilantes para que o peso vegetativo não abafe a capacidade de romper, de ir além, enfim, de transcender a realidade dada. Muitas vezes, buscou-se um ideal de existência onde nada mais pesaria. Tal ideia se apresenta completamente contra uma genuína afirmação da existência. Aquele que nega os Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 condicionamentos a que o ser humano se encontra submetido, nega também a vida. Por isso, transcender é lutar contra o sono vital, à inércia material. Acontece, porém, que “a maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco na independência, a vida material e vegetativa à aventura pessoal” (MOUNIER, 1960, p. 103). Isto também revela a facilidade de se deixar levar pela vida vegetativa. O homem é um perene compromisso, uma constante melodia tocada simultaneamente em dois teclados. Por isso, quando se encara a melodia tal qual soa como se viesse de um único teclado, foge-se, deixa-se escapar sua realidade. Percorridos os diversos pontos em que se mostra a condição do homem, pode-se dizer que ele é um ser encarnado, situado, imerso na natureza, mas é forçoso reconhecer que em cada um destes pontos onde se vê realçada esta imersão, tem-se o reverso da medalha, tem-se a nota da transcendência do homem (SEVERINO, 1983, p. 58).
É nesta noção de pessoa que vai se situar a liberdade humana. Liberdade enquanto transcendência da natureza dada. A CONDIÇÃO HUMANA E A LIBERDADE O sentido da liberdade, em Mounier, está profundamente enraizado na sua noção de pessoa. Todo o desenvolvimento anterior, neste sentido, foi necessário para a compreensão do sentido que Mounier dá para a liberdade. A liberdade, para Mounier, não é algo de volátil, mas se dá na emergência da pessoa sobre a natureza. Trata-se, no fundo, de uma liberdade com condições, sendo a mais alta expressão da transcendência humana. A liberdade, na verdade, já recebeu muitas conotações. Os liberais se proclamam os maiores defensores. Marxistas os combatem defendendo “verdadeiro ‘reino da liberdade’ para lá das caricaturas” (MOUNIER, 1960, p. 105). Existencialistas e cristãos, por sua vez, também colocam a liberdade no centro de suas reflexões, embora suas concepções não coincidam e, ainda, diferem-se das duas anteriores. Vê-se a dificuldade do tratamento da questão. A causa da dificuldade está, para Mounier, no fato de se isolar a liberdade da estrutura total da pessoa, exilando-a em alguma aberração (MOUNIER, 1960, p. 105). Decorre daí, uma concepção de liberdade, em Mounier, completamente vinculada a sua noção de pessoa. O ser humano, desde sua emergência até os nossos dias atuais, sempre teve consciência de sua profunda ligação com as determinações naturais. Essa ligação, contudo, nem sempre foi expressa de maneira muito clara. Neste sentido, o ser humano primitivo projetava em seres sobrenaturais a origem dos acontecimentos desses determinismos. Mas, apesar de se sentir
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 profundamente escravizado, preso às forças naturais, o ser humano sempre manifestou a possibilidade da liberdade. Pois, o fato de projetar em seres sobrenaturais a explicação dos determinismos, já manifesta um certo inconformismo com o determinismo. A explicitação cada vez mais clara do que consiste à liberdade, impulsionou a criação de instituições que procuram assegurar o pleno exercício das liberdades. Trata-se de uma noção que busca proporcionar liberdade eliminando determinações concretas. A mais alta manifestação dessa ideia é a Revolução Francesa. Esta, de certa forma, sintetiza todas estas aspirações à liberdade, promulgando o direito à liberdade (SEVERINO, 1983, p. 57). Conscientizado dela, afinal “se não existe liberdade, que somos nós? Joguetes em pleno universo” (MOUNIER, 1960, p. 105), o ser humano procura determiná-la. Sente vontade de tocá-la, tal como toca num objeto ou, se assim não o fosse possível, pelo menos demonstrá-la em um teorema, a fim de fugir da angústia de não a ter. Agora, todos os seus esforços são em vão. Querer sentir a liberdade em suas mãos é uma ideia ilusória do ser humano, pois ela jamais tolera qualquer determinação. A liberdade, pois, não pode ser assentida numa observação objetiva. Para Mounier, “não há no mundo objetivo senão coisas dadas e situações que se cumprem” (MOUNIER, 1960, p. 106). Esta impossibilidade de assentar definitivamente que há liberdade no mundo, provoca uma terrível angústia. É-se forçado a crer que o ser humano se encontra entregue ao sabor dos determinismos. Mesmo que a procure, jamais a encontrará em meio às coisas no mundo dos objetos. Diante desta situação angustiante, acabou-se formulando uma concepção negativa da liberdade humana, entendendo-a como falhas nos determinismos causais, a fim de que encontre a existência objetiva da liberdade. “Mas o que posso fazer com lacunas? E é assim que nunca chegamos a descobrir, não diremos na natureza, mas ao seu nível, mais do que duas formas malentendidas de liberdade” (MOUNIER, 1960, p. 106). Quer dizer, os mais variados argumentos que se possa tirar dessas lacunas presentes no determinismo, não se poderá concluir daí senão duas formas bastante diminuídas de liberdade: uma da indiferença, onde reinaria a indeterminação total; outra, baseada numa eventual falha dos determinismos. “Fez-se um grande alarde com as novas perspectivas que a física moderna veio abrir, quis-se obrigá-la a ‘provar’ a liberdade. Era uma ideia totalmente errada de liberdade. A liberdade do homem não é ‘resto’ duma adição universal” (MOUNIER, 1960, p. 106). Mas, o que garante que o Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 indeterminismo físico constatado não seja simples lacuna do conhecimento humano? Antes de ser uma autêntica afirmação da liberdade humana, é a plena manifestação do quanto a ciência moderna e/ou o positivismo se encontram assentados sob frágeis pretensões de perscrutar os mais recônditos rincões do universo. Pois, a “liberdade não se ganha contra os determinismos naturais, conquista-se por cima deles, mas com eles” (MOUNIER, 1960, p. 107). Que isto quer dizer? A liberdade não é simples coisa, relegada aos pequenos espaços de indeterminismos. Contudo, ela não se dá contra os determinismos. A liberdade está situada sobre eles. Sendo assim, da mesma forma que a pessoa transcende a natureza, também a liberdade transcende os determinismos. A liberdade prolonga-se na natureza. Determinismo e liberdade não são da mesma ordem, mas se interpenetram; não se opõem senão por transcendência. Ente eles há uma relação de apoio e condicionamento. A liberdade deverá apoiar-se sobre suas próprias condições para construir-se, mas exercendo-se, superará a natureza, sendo para o homem, uma característica original e insuperável (SEVERINO, 1983, p. 68). A ciência, portanto, nada tem a dizer a favor da liberdade. Sendo assim, também não tem como renunciá-la, contestá-la. A única coisa que ela mostra é que o universo não é totalizável no plano do determinismo e que ela prepara, lentamente, condições de liberdade. Quer dizer, estas pequenas partículas materiais jamais podem ser tomadas como prova da existência da liberdade no mundo. Esse indeterminismo, no máximo, revela uma preparação lenta e contínua das condições de liberdade como bem o mostra a própria história da evolução. Todavia, A liberdade não resulta destes preparativos como fruto da flor. No mistério das forças naturais que os atravessam e misturam, foi reservado para a insubstituível iniciativa da pessoa reconhecer os declives cúmplices da sua liberdade, escolhê-los e neles se comprometer. É a pessoa que se faz livre, depois de ter escolhido ser livre. Em parte, nenhuma encontrará a liberdade dada e constituída. Nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da liberdade (MOUNIER, 1960, p. 108).
Não se pode cair, porém, ao outro extremo. Uma vez afirmado que a liberdade não é uma coisa, muitos a reduzem a pura subjetividade, como faz Sartre. Este defende que o em si (ser objetivo) seria sempre idêntico, imóvel. O para si (ser subjetivo), ao contrário do em si, manifestação sempre espontânea, existência livre sempre renovada, auto invenção, sem limitação alguma, enfim, subjetividade absoluta. A liberdade tomada dessa forma é um mito, pois não responde a apelo algum. Está certo que a noção de natureza, que inclui permanência e objetividade na ideia de liberdade, encontra-se Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 repleta de confusões. Mas, nem por isso deixa de ter algo que seja realmente real. Mas, na medida em que assim se toma, a liberdade não responde a nada anterior a ela, pois se assim acontecesse deixaria de ser liberdade. A pessoa não seria mais do que aquilo que ela a si própria se faz, “nela e por ela invento meus motivos, os valores e o mundo comigo, sem apoio de auxílio” (MOUNIER, 1960, p. 109). Segundo Mounier, afirmar que o ser humano é um ser que existe é afirmar que ele é incessantemente aquilo que se faz. Trata-se de uma “existência que nada mais pesaria; existência contra a natureza, que leva à falha ou à inumanidade” (MOUNIER, 1960, p. 85). A noção de natureza, sem dúvida, é confusa e, por isso, precisa ser repensada. Afirmar que a liberdade não é pura espontaneidade é afirmar que o ser humano não é somente aquilo que se faz, é assumir que “a existência, ao mesmo tempo que é manifestação espontânea, é também espessura, densidade; ao mesmo tempo que é criação, é dado” (MOUNIER, 1960, p. 109), como se viu ao falar de imergência e emergência da pessoa. O ser humano faz parte do mundo. O mundo é anterior ao homem. “Não sou simplesmente o que faço, o mundo não é somente o que quero” (MOUNIER, 1960, p. 109). Caso assim não o fosse nem seria possível de falar de humanidade, de história. Somente há humanidade porque perfaz a condição humana ser encarnado, viver situado, que exige limitações em seu ser, em sua liberdade. Se não se leva em consideração a condição global do ser humano, então facilmente se cai em ideias sem fundamentação, onde se explica toda a realidade a partir de uma ideia unilateral. Agora, na medida em que se assume a condição humana, então torna-se visível que Há na própria liberdade um peso múltiplo, o que lhe vem de mim próprio, do meu ser particular que a limita, o que lhe vem do mundo, das necessidades que a constrangem e dos valores que a primem. A sua gravitação é verdadeiramente universal. Quando o esquecemos, subtiliza-se e tende a transformar-se numa sombra, numa ideia de consistência, num sonho impossível; é amorfa e pensam-na absoluta (MOUNIER, 1960, p. 109).
Ainda, uma liberdade que brota como puro fato é uma natureza cega. A liberdade, neste sentido, é tomada como uma condenação. Sendo assim, como a liberdade pode ser do homem se ele não a pode recusar? Vê-se o tamanho da confusão. Para Mounier, a liberdade não é uma condenação a qual o homem está sujeito. Ao contrário, é um dom. O ser humano pode aceitá-la, como recusá-la. Ou seja, o ser humano livre é aquele que pode escolher por aceitar ou escolher por errar. Caso a liberdade fosse uma condenação “as liberdades não mais cooperariam mutuamente,
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 porque a única modalidade de união seria a escravização de uma liberdade por outra” (SEVERINO, 1983, p. 69). Poder-se-ia, ainda, perguntar o que aconteceria num mundo onde cada liberdade surgisse de forma isolada. Citando Bakounine, Mounier afirma: “Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me rodeiam, homens e mulheres, forem igualmente livres [...] Só me torno livre através da liberdade dos outros” (MOUNIER, 1960, p. 111). Agora, essa visão é completamente excluída, segundo Mounier, de uma concepção que toma a liberdade como não sendo possível de se unir a outra. Pois, a liberdade é cooperação. “A liberdade da pessoa cria à sua volta liberdade, por uma leveza contagiosa – tal como inversamente a alienação engendra a alienação” (MOUNIER, 1960, p. 111). Tanto se falou aqui de liberdade, mas quase somente no seu sentido negativo. Se a liberdade não é uma coisa nem manifestação espontânea, então o que é liberdade? Para Mounier, “a liberdade é afirmação da pessoa, vive-se, não se vê” (MOUNIER, 1960, p. 106). Ao tratar da liberdade, Mounier a trata a partir da condição total da pessoa. Irredutível a uma coisa natural ou a uma espontaneidade vital, a liberdade, nesta perspectiva personalista de Mounier, é “fonte viva do ser” (MOUNIER, 1960, p. 111) e como tal atinge todo e qualquer ato humano, transfigurando-o. “Neste sentido e somente neste sentido, o homem é inteiramente livre e sempre livre, interiormente e quando o quiser” (MOUNIER, 1960, p. 111). Vê-se que a liberdade está em profunda relação com a condição global da pessoa. A liberdade “do homem é a liberdade duma pessoa, desta pessoa, assim constituída e situada em si própria, no mundo e perante os valores” (MOUNIER, 1960, p. 112). Que isto quer dizer? Que a liberdade se encontra estreitamente condicionada pela nossa situação concreta. Isto é, da constituição e limitação humana resulta a concomitante limitação da liberdade humana: ela é condicionada. Neste sentido, o primeiro passo é de tomar consciência de sua situação e aceitá-la. Nem tudo será sempre possível. Por isso, somente é possível se libertar de suas servidões, aquele que toma consciência de que está sendo escravizado. A liberdade, portanto, possui condicionamentos. Por isso, [...] antes de proclamarmos a liberdade nas constituições, ou de a exaltar em discursos, temos que assegurar comuns condições de liberdade, biológicas, econômicas, sociais, políticas, que permitem às forças médias a participação nos mais elevados apelos da humanidade; temos que nos preocupar com as liberdades, tanto como com a liberdade. Defender ‘a liberdade’ sem outra indicação, sempre que um ato do poder ou um estado de
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 coisas a limitam, é condenarmo-nos a tomar posição ao lado de forças do imobilismo contra as forças dos movimentos (MOUNIER, 1960, p. 113).
A nossa liberdade é liberdade de pessoas situadas, e é também liberdade de pessoas valorizadas. Não se é livre apenas quando se exerce a espontaneidade, torna-se livre se se der a essa espontaneidade o sentido duma libertação, ou seja, duma personalização do mundo e de si próprio. A pessoa, portanto, é chamada a se libertar e libertar os outros. Essa libertação não significa a eliminação de todos os condicionamentos. Ao contrário, os condicionamentos são apoio para melhor avançar. Por isso, a liberdade não pode ser usada de forma arbitrária, como simples manifestação espontânea, mas sim deve ser dirigida, conclamada, invocada. Mounier defende a necessidade de não se negar os condicionamentos, pois a liberdade precisa ser conquistada com eles. Tal como é preciso se inserir na história se se quer conhecê-la, é necessário procurar a forma da natureza para daí buscar a libertação. Não se pode, porém, aderir em demasia aquilo que condiciona. A liberdade humana, na verdade, é tomada de forma muito modesta por Mounier, pois é condicionada por todos os lados, mas nem por isso deixa de ser intrépida e audaciosa. Embora modesta, a liberdade do homem dever ser intrépida. Tem-se denunciado o espírito de evasão que descia das tarefas viris. Numa época cada vez mais vergada ao peso do que supõe serem fatalidades, de tal forma roída de preocupações e angústias que está pronta a vender a sua liberdade por um mínimo de segurança, não é menos urgente denunciarmos o espírito de escravidão e suas formas larvadas (MOUNIER, 1960, p. 116).
O espírito da liberdade, apelo original da existência pessoal, está sempre em luta com o peso da gravidade que sempre atrai os homens para a alienação. O ser humano está sempre em busca da libertação, mas jamais a atingirá em definitivo. Através da liberdade são destruídas muitas alienações, isto é, situações que esmagam a pessoa humana, entregue a forças impessoais. Não se pode negar absolutamente esta característica da autonomia da consciência pessoal diante dos condicionamentos. Por aí se manifesta a transcendência da pessoa sobre a natureza: a retomada pessoal dos valores mostra o domínio do homem sobre a natureza. Mas, toda manifestação de transcendência humana traz consigo a alienação. “Sempre que a liberdade tenta seus voos, a natureza prende-a com mil laços” (MOUNIER, 1960, p. 53). As sujeições que atingem a nossa existência impõem a qualquer situação humana uma alienação mais ou menos difusa: pertence à condição humana aspirar indefinidamente à autonomia, tentar sem cessar atingi-la, e sem cessar falhar na sua procura. Para que fossemos libertados de qualquer ocasião de alienação, era preciso que a natureza fosse inteiramente inteligível, a comunhão permanente, universal e perfeita, e total a posse de
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 nossos ideais. Mesmo as alienações históricas, as que só duram algum tempo, nos deixam sem tréguas; destruída uma, outra, nova, surge; toda a vitória da liberdade se vira contra ela própria e atrai novos combates; a batalha da liberdade não termina (MOUNIER, 1960, p. 117).
A liberdade humana, portanto, tem essencialmente elevação e queda. Consegue despertar e arrancar os espíritos do mais profundo sono. Mas, na medida em que comemora, já é lançada a começar novamente a batalha, a fim de lutar contra a alienação da nova situação conquistada. “Assim, de luta em luta, de queda em queda, de vitória em vitória, nesta interminável dialética da fragilidade da pessoa, a liberdade deve ser sempre reconquistada” (SEVERINO, 1983, p. 71). Tratase de uma liberdade que combate. Aqui reina uma atitude de ‘otimismo trágico’, onde se encontra a justa medida num clima de grandeza e de luta. Esta luta constante pela liberdade contra as alienações é marcada pelo ‘batismo da escolha’. O ser humano tem o poder de escolher. “Optando por isto ou por aquilo, opto de cada vez indiretamente por mim próprio, e na opção me edifico” (MOUNIER, 1960, p. 118). Com as escolhas torna-se possível de romper com as fatalidades, criando uma ordem e uma nova inteligibilidade. Mas, toda escolha exige do ser humano o arriscar-se na incerteza, sendo somente por ela que o mundo avança e se forma. Se não fosse a liberdade não haveria criação de novas ordens para além dos jogos de força. O centro da liberdade, porém, não é o poder de escolha, como o quis afirmar uma certa ‘miopia filosófica’. A soberania da liberdade está no seu poder de libertação da pessoa. Neste sentido, “a liberdade humana não se confunde com liberalismo, mas é também adesão” (RUEDELL, 1985, p. 41). Esta nunca poderá ser imposta do exterior, mas sempre conquistada, assumida interiormente. Neste sentido, reduzir a liberdade a ideia do poder de opção, é fazer com que a liberdade perca o seu ímpeto. Caso assim não o fizer, a liberdade logo perderá o que tem de mais precioso. Pois, a liberdade, como afirma Mounier em Qu’est que le personnalisme? É viva, sentida num esforço de libertação mais do que em facilidades herdadas, uma liberdade dramática, conquistada e disputada contra suas próprias obras, uma liberdade devotada em que o sentido do trabalho e da salvação em comum, são os sacrifícios necessários do indivíduo à comunidade e das comunidades presentes aos amanhãs melhores, terão a primazia sobre a reivindicação egocêntrica e imediata” (SEVERINO, 1983, p. 72).
A liberdade, em Mounier, portanto, não pode ser somente encarada como ruptura, conquista da autonomia. Liberdade é adesão. Eis porque ela “não é o ser da pessoa, mas o modo como a pessoa é tudo o que é, e é-o mais plenamente do que por necessidade” (MOUNIER, 1960, p. 119). Neste Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 sentido, a liberdade pessoal não é, de modo algum, desligada da existência comunitária das pessoas. A liberdade assim tomada não constitui anarquia, porque é adesão, é compromisso, uma vez que o ser humano “só se liberta libertando”. CONCLUSÃO Esta investigação tinha por objetivo central verificar a possibilidade e os condicionamentos da liberdade em Mounier. Procurando sempre se libertar de visões redutoras do ser humano, Mounier propõe uma nova noção de pessoa, buscando contemplá-la para além de suas manifestações exteriores. O libertar-se de interpretações enviesadas, contudo, sempre exige um grande esforço, pois, sabe-se que é mais difícil se libertar de uma crença do que de aderir uma nova. Por isso, toda a exposição de noção de pessoa e, consequentemente, de liberdade em Mounier, é acompanhada de uma constante crítica a concepções redutoras do ser humano. A pessoa, segundo Mounier, possui duas dimensões fundamentais: imergência e emergência. Essa dialética entre imanência e transcendência constitui uma das mais altas expressões do personalismo de Mounier. O espírito humano é limitado, imerso na natureza por uma série de determinismos. Mas, para além de sua imergência, o ser humano é capaz de transcendência. O ser humano pode viver e, de certa forma, tem tendência de viver no nivelamento, no divertimento, na má-fé, na alienação, na inautenticidade, estados de vida que diversos filósofos denominaram como sendo estados de despersonalização, mas também é capaz de abarcar o universo, de ripostar, de transcender, de lançar luz nos mais recônditos rincões do universo. É nesta noção de pessoa que se dá a liberdade humana. A liberdade, em Mounier, está em profunda relação com a condição global da pessoa. A liberdade encontra-se estreitamente ligada com os condicionamentos humanos e, por isso, é sempre condicionada. Não se trata de uma espontaneidade vital nem de uma lacuna nos condicionamentos, tal como muitas vezes se tem pretendido, mas de um chamado à libertação. A liberdade precisa ser conquistada, conclamada, invocada e após todo este esforço, precisa ser re-conquistada, re-conclamada, re-invocada, pois toda libertação traz em seu bojo a alienação. Este otimismo trágico, este clima de elevação e queda que, para muitos, poderia parecer negação do ser humano, é a sua maior grandeza. Da mesma forma como a limitação humana tem sido expressa por Kant na Crítica da Razão Pura, “a pomba ligeira agitando o ar com seu livre voo, cuja resistência sente, poderia imaginar que seu voo fosse mais fácil no vácuo” sem se dar conta que Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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O paradigma de pessoa e liberdade em Mounier, pp. 177-191 é a própria resistência do ar que lhe possibilita voar, assim também muitas vezes não se percebe que é justamente a limitação que faz do ser humano um ser capaz de transcender, de amar e, enfim, capaz de liberdade. Depois de percorrido este caminho, tem-se a convicção, por um lado, de que os objetivos da investigação foram alcançados e, por outro, do quando ainda falta percorrer. Sabe-se que o binômio pessoa e comunidade foi fonte inspiradora de toda a temática de Mounier. Além do mais, a própria liberdade humana somente pode ser compreendida na sua existência comunitária. A relação desse binômio, contudo, não tem sido contemplado em sua amplitude e, portanto, pode vir a ser objeto de uma nova investigação.
REFERÊNCIAS MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Trad. João Benard da Costa. Lisboa: Morais, 1960. _________. Introdução aos existencialismos. Trad. João Benard da Costa. São Paulo: Duas Cidades, 1963. LORENZON, Alino. Atualidade do pensamento filosófico de Emmanuel Mounier. Ijuí: Unijuí, 1996. RUEDELL, Aloísio. Lições políticas para a América Latina: um estudo do pensamento político de E. Mounier. Canoas: La Salle, 1985. SEVERINO, A. J. Pessoa e existência: iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier. São Paulo: Cortez, 1983.
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201
CIORAN E A PÓSMODERNIDADE: UMA CRÍTICA ÀS METANARRATIVAS Flávio Rocha de Deus1
RESUMO: Apesar da diversidade de percepções do que vem a ser a pós-modernidade, existe um ponto de convergência entre uma parte significante dos estudiosos do tema, que é caracterização desta época como um período de falência e descrença em ideias totalizantes. Através do olhar de Emil Cioran, enxergamos as grandes ideologias e metanarrativas como escatologias desejadas, definidas pelo autor como utopias, em que, não apenas se compõe uma possibilidade de fim racionalizado, mas também uma forma adequada de fim. Neste trabalho, pretendemos extrair conceitos para o que vem a ser a modernidade e a pósmodernidade, para apresentar características da concepção desta e como estas mesmas características encontram-se presentes nos escritos de Emil Cioran, especificamente em seus ensaios “Genealogia do fanatismo” e “Mecanismo da utopia”. PALAVRAS-CHAVE: Cioran. Pós-modernidade. Metanarrativas. Utopia. CIORAN AND THE POSTMODERNITY: A CRITIC OF THE METANARRATIVES ABSTRACT: Despite the diversity of perceptions of what postmodernity is, there is a point of convergence between a significant part of the scholars of the theme, which is characterizing this period as a period of bankruptcy and disbelief in totalizing ideas. Through the eyes of Emil Cioran, we see the great ideologies and metanarratives as desired eschatologies, defined by the author as utopias, in which, not only is a possibility of a rationalized end composed, but also an adequate form of end. In this work, we intend to extract concepts for what modernity and post-modernity become, to present characteristics of the conception of this and how these same characteristics are present in the writings of Emil Cioran, specifically in his essays “Genealogy of fanaticism” and “Mechanism of utopia”.
1 Graduando em Filosofia pelo Departamento de Educação do Campus I da Universidade do Estado da Bahia. Bolsista PIBID vinculado
ao Núcleo de Filosofia e Cinema na Educação Básica, atuando no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Email: rocha.iflavio@gmail.com
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 KEYWORDS: Cioran. Postmodernity. Metanarratives. Utopia.
Introdução Vislumbrando as pretensões da modernidade, o século XX se depara com o colapso das ideologias do ocidente e a descrença na razão como farol para guiar as sociedades a uma compreensão total dos fenômenos, surgindo ai o que chamamos de pós-modernidade. JeanFrançois Lyotard caracterizará a pós-modernidade como o fim das metanarrativas, uma grande narrativa com o objetivo de explicar de forma totalizante os acontecimentos e, principalmente, sua projeção futura através de um único discurso. Partindo deste ponto, podemos nos perguntar se Emil Cioran pode ser classificado como um pós-moderno? Apesar de não existir uma concordância sobre em que período começa de fato o pós-modernidade, foi com Lyotard e a sua publicação de A condição pós-Moderna (1986), que a ideia de pós-modernidade passou a ser usada de forma mais precisa, sendo, portando, as obras de Cioran anteriores ao movimento, porém, mesmo sendo questionável vincular os escritos de Cioran ao movimento dito pós-moderno, é possível encontrar algumas aproximações, sendo esta a nossa intenção. Neste trabalho, pretende-se apresentar características do movimento pós-moderno e como estas mesmas características encontram-se presentes nos escritos de Emil Cioran, especificamente, em seus ensaios “Genealogia do fanatismo” e “Mecanismos de Utopia”. Através do olhar de Cioran, enxergamos as grandes narrativas como escatologias desejadas, definidas pelo autor como utopias. Se no passado, filósofos acreditavam ter descoberto o código da história e sua ordenação para o futuro, colocando na passagem do tempo uma objetividade, Cioran desdenha dessa pretensão, ajudando-nos a ver a história como uma série de acasos e imune aos planos teóricos. As pretensões da modernidade O prefixo pós é usado ordinariamente para designar a ideia de ruptura ou ultrapassagem, por isso, antes de falar de pós-modernidade, faz-se necessário definimos o que vem a ser a modernidade, para em seguida abordarmos o que seria sua formação posterior, e diante de diversas possíveis interpretações, delimitarmos nosso entendimento destes termos para os fins deste trabalho. Como o historiador Perry Anderson nos aponta em As origens da pós-modernidade, o termo modernidade, é originário da América hispânica e surgiu “para designar um movimento estético a um poeta nicaraguense que escrevia num periódico guatemalteco sobre um embate literário no Peru”, movimento este, que inspirado em escolas francesas clamava a autonomia cultural em relação à Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 Espanha (ANDERSON, 1999, p. 9). Posteriormente, com a “globalização” do termo e do movimento, que, opondo-se ao tradicionalismo em diversos campos das artes e dos costumes, propunham à criação de uma nova cultura, o termo moderno também adquiriu o significado de algo oposto à tradição, ou à antiguidade, podendo também ser entendido como um sinônimo de contemporâneo. Apesar da divergência conceitual do que seria a pós-modernidade, pode-se dizer que existe um consenso do que foi a modernidade: uma grande crença no futuro, na ordem e no progresso contínuo. Como disse Arnold Toynbee (1889-1975), em uma de suas publicações, graças a um estado de prosperidade e progresso nunca antes visto, considerava-se lógico pensar “que o fim de uma era da história de uma civilização era o fim da própria história, [imaginava-se que] uma vida moderna sadia, segura e satisfatória tinha milagrosamente chegado para ficar, como um eterno presente”. (ANDERSON, 1999, p. 11-12). Para Zygmunt Bauman (1925-2017), o que moveu os pensadores da modernidade foi a insatisfação com a solidez de seus conhecimentos. Os modernos acreditavam que não eram suficientemente sólidos, e a verdadeira ordem que iriam construir – a modernidade – seria diferente, pois seria realmente sólida. E o que significaria ser verdadeiramente sólido? Segundo o próprio Bauman, significaria ser uma sociedade perfeita. Seria a época das verdades totalizantes guiadas pela razão e pela ciência, das dúvidas erradicadas, do progresso contínuo e da ordem social. Em Modernidade e Ambivalência, Bauman demostra o quanto a modernidade esteve em busca da eliminação da ambiguidade e conceituar suas disposições de forma precisa e universal, pois, se “classificar, em outras palavras, é dar ao mundo uma estrutura [...] a função nomeadora/classificadora da linguagem tem, de modo ostensivo, a prevenção da ambivalência como seu propósito” (BAUMAN, 1999, p. 9-11). Uma das premissas de partida do mesmo é o desconforto que a desordem nos provoca; próximo de uma noção sartreana de angustia, Bauman nos apresenta o mal-estar da incerteza, o que justificaria a busca do homem moderno por conclusões irrevogáveis. O sociólogo Marx Weber (1864-1920) cunhou o conceito de desencantamento do mundo, “a eliminação da magia como meio de salvação” (WEBER, 2004, p. 106), para designar um período de transição das sociedades em que o progresso deixa ser pensado como algo misterioso ou ordenado por entidades superiores, mas sim através da razão e do pensamento metódico, portanto, sem a crença em milagres, o homem trouxe para suas mãos a responsabilidade de ordenar o mundo. “A Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 humanidade partiu de um universo habitado pelo sagrado, pelo mágico, excepcional e chegou a um mundo racionalizado, material, manipulado pela técnica e pela ciência” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA; 2009, p.131). A ruptura com o místico e crenças não cientificas é um ponto nevrálgico para definir a modernidade, [...] a modernidade foi puramente racionalista. São autores como Thomas Kuhn que mostraram isso. [...] a partir do século 17, a Europa seguiu a via recta, a estrada reta da razão. Quer dizer, um só valor. E para seguir a estrada reta da razão, deixou-se à beira da estrada toda uma série de bagagens inúteis - o sonho, o jogo, o simbólico, o imaginário - para ser eficaz. O resultado disso foi a sociedade moderna. (MAFFESOLI in BARROS, 2013, p. 14).
Pós-modernidade: fim das metanarrativas Vislumbrando as pretensões da modernidade, o século XX deparou-se, como diz o sociólogo francês Michel Maffesoli, com o colapso das ideologias do Ocidente, e a descrença na razão como farol para guiar as sociedades a uma compreensão total dos fenômenos. É um consenso que a noção de fracasso de ideais totalizantes é um ponto de convergência entre os teóricos para conceituar a pós-modernidade. Em 1955, o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills, seguindo esta percepção de fracasso das grandes narrativas para o futuro, caracterizou a pós-modernidade como “uma época na qual os ideais modernos do liberalismo e do socialismo tinham simplesmente falido, quando a razão e a liberdade se separam numa sociedade pós-moderna de impulso cego e conformidade vazia” (ANDERSON, 1999, p. 18). Se podemos definir o desencantamento do mundo como a negação de pilares transcendentes superiores e a afirmação intensa da superioridade da razão, sendo o mesmo uma importante condição para a formação do espírito da modernidade, o que ocorre quando o desencantamento desta vez não é mais com as crenças da tradição, mas com as promessas da razão? Podemos dizer que ai surge o que chamamos de pós-modernidade. Jean-François Lyotard (1924-1998) caracterizará a pós-modernidade como o fim das metanarrativas, os principais exemplos que o mesmo usa são: o iluminismo, o idealismo e o marxismo. O conceito de metanarrativa foi desenvolvido pelo mesmo para caracterizar uma grande narrativa com o objetivo de explicar de forma totalizante os acontecimentos e, principalmente, sua projeção futura através de um único discurso. Desde o momento em que se invalidou o enquadramento metafísico da ciência moderna, vem ocorrendo não apenas a crise de conceitos caros ao pensamento moderno, tais como “razão”, “sujeito”, “totalidade”, “verdade”, “progresso”. O pós-moderno enquanto condição da cultura nesta era caracteriza-se exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizastes. (BARBOZA, in LYOTARD, 1988, p. viii).
Com os conceitos de modernidade e pós-modernidade já definidos, podemos nos perguntar: Emil Cioran (1911-1995) pode ser classificado como um pós-moderno? Categorizar Emil Cioran como um pós-moderno talvez possa ser considerado um anacronismo, pois, apesar de não existir uma concordância sobre em que período começa de fato o pós-modernidade, foi com Lyotard e a sua publicação de A condição pós-Moderna (1986), que o conceito de pós-modernidade passou a ser usada de forma mais precisa. Deste modo os escritos de Cioran são “anteriores ao movimento [...] mas é possível encontrar algumas aproximações” (OLIVEIRA, 2016, p. 67). Sendo, portanto, nossa intenção, não a de classificá-lo como um pós-moderno, mas encontrar possíveis aproximações com as concepções de outros autores sobre esta fase, dando ênfase a concepção de Lyotard sobre a pósmodernidade como fim das metanarrativas. Em Breviário de decomposição, primeiro livro do autor escrito em língua francesa, Cioran dedica seu primeiro ensaio, “Genealogia do fanatismo”, à construção de uma forte crítica ao fanatismo. Já em História e utopia, como nos diz Thomaz Brum, é onde se encontra “a exposição mais clara do que pensa Cioran da política, história e sociedade” (CIORAN, 2014) Em um dos seus ensaios: “Mecanismo de utopia” ele mostra as semelhanças entre as religiões e as utopias, podendo também ser entendidas como ideologias, discursos totalizantes e, principalmente, metanarrativas. A ingenuidade da razão na história Durante a história da filosofia tivemos diversos pensadores propondo sistemas racionais para uma compreensão da história, entretanto, a filosofia hegeliana é considerada por muitos, como Sartre na Critica da razão dialética, como o mais completo sistema elaborado e que mais realizou na modernidade a ambição da totalidade de sistema absoluto; o que torna Hegel um contraponto ideal para demostrar a descrença de Cioran em uma possibilidade de história racional. Para Hegel, a compreensão histórica presente, apenas se dará em um estágio mais avançado da humanidade, quando olharmos para os acontecimentos do passado. Ele compreende que a história não é absolutamente aleatória, pelo contrário, ela está caminhando para um lugar determinado. Com uma percepção dialética, Hegel desenvolveu uma escatologia que visa o alcance de um estado de plena liberdade pelos caminhos razão. Como o mesmo diz,
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 O único pensamento que a filosofia aporta é a contemplação da história; é a simples ideia de que a razão governa o mundo, e que, portanto, a história universal é também um processo racional [...] o estudo da história universal resultou e deve resultar em que nela tudo aconteceu racionalmente, e que ela foi a marcha racional e necessária do espírito universal. O espirito cuja natureza é sempre idêntica e que a explicita na existência universal. (HEGEL, 1999, p. 17-18).
Se, no passado, filósofos como Hegel acreditavam ter descoberto o código da história e sua ordenação para o futuro, que aponta para onde a mesma vai, ou melhor: para onde ela deve ir, colocando na passagem do tempo uma objetividade, Cioran desdenha dessa pretensão, ajudandonos a ver a história como uma série de acasos e imune aos planos teóricos. Uma racionalização de uma totalidade que prevê o futuro é, para ele, uma utopia. Para Cioran, utopias são escritas por “uma multidão de arrebatados que querem o mundo aqui e agora”, e não nos permite esquecer que o significado de utopia quer dizer algo que vai acontecer “em parte alguma” (CIORAN, 2014). Segundo Cioran, é necessária uma grande dose de tolice e ingenuidade para conceber um plano teórico de tamanha magnitude como uma verdade. Em “Mecanismos de utopia” ele reitera o constante ato da história em jogar no precipício do fracasso de toda grande metanarrativa. Como ele conclui: Ninguém quer aceitar que a história se desenvolve sem nenhum motivo, independentemente de uma direção determinada, de um objetivo [...]. As teorias podem fazer nada, já que o fundo da história é impermeável às doutrinas que marcam sua aparência, a era cristã foi algo muito diferente do cristianismo; a era comunista, por sua vez, não saberia evocar o comunismo enquanto tal. (CIORAN, 2014).
Aplauso ao ceticismo As grandes narrativas produzidas pela modernidade são o alvo de fortes críticas de Cioran, suas principais premissas para este desgosto é sua visão sobre o sentido histórico. Segundo o mesmo, essas metanarrativas, independente de suas singularidades encontram-se enquadradas em um mesmo desejo: dar um novo sentido a história. Partindo deste pressuposto, poderíamos enquadrar diversos movimentos e correntes do pensamento como o iluminismo, o cristianismo, o socialismo, o liberalismo, o hegelianismo dentre muitos outros “ismos” como sinônimos, já que em todos estes casos introduzem nos problemas das sociedades um determinismo teórico como solução ou análise. Cioran afirma, em “Breviários da Decomposição”, que a história confirma o ceticismo. Ou seja, qualquer questão que se faz às crenças (religiosas ou ideológicas), elas, as questões, são confirmadas pelo tempo, ou seja, pela história. Na visão de Cioran, confirmadas historicamente, mas em uma perspectiva negativa [em que] o homem é um animal cismático por natureza e o futuro não se processará afastado destes desejos cismáticos.
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 Mesmo assim a história está aí, somos e estamos sujeitos a ela, para bem ou para o mau, a nosso gosto ou não. (SCHLENKER, 2015)
Cioran dá inicio a sua obra Breviário de decomposição com o seu ensaio “Genealogia no fanatismo”. Segundo o mesmo “em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima” (CIORAN, 1989, p. 11), projetando nas suas ideias suas paixões, virtudes e pecados, o homem transforma sua vazia ideia em uma crença e dá início às metanarrativas ideológicas. Próximo a um rio que tem que desaguar no mar, uma ideia lógica, ou não, muito valorizada é quase sempre condenada a desaguar em um epilético oceano de utopias, em que de fato, como diz o autor, a história se encontra condenada a ver um eterno desfile delas, um eterno desfile de falsos absolutos. Se perguntássemos para Cioran se a modernidade foi o fim da religião, talvez o mesmo olhasse para nós com um semblante risonho dizendo-nos que migramos a fé para outro deus: a razão. Mantemos a fé, entretanto, nosso objeto de culto não é mais uma entidade sobrenatural que exerce milagres pelo misticismo, a nossa fé está agora em diversas profecias acadêmicas, em silogismos muito bem fundamentados, que servem como um passo a passo para alcançar em terra, através de uma práxis, uma sociedade perfeita. É interessante analisarmos a forma como Cioran se apresenta a estas construções metanarrativas, em História e utopia ele se propõe a refletir sobre as fundamentações das utopias, principalmente, as ideológicas, e como estas mesmas são capazes de provocar a esperança da perfeição e a justificação de atos, por exemplo: os violentos. A busca por um mundo sem ambivalências, o vislumbre do mundo através de uma unidade, é dai que surge os grandes ismos. Se a religião cristã provocou nos homens a noção de que todas as nossas ações na terra é um mero intermédio em direção a um fim último, já predeterminado, ao lado do criador, Cioran caminha ao lado de pensadores como Albert Camus, que concorda que grandes teóricos como Karl Marx destronam a deidade pela concepção de progresso, sendo assim, marxistas, tal como cristãos, acreditam que a história segue um caminho para uma finalidade social sem ambivalências. “Com o mesmo romantismo cego, Marx por sua vez profetiza a sociedade sem classes e a resolução do mistério histórico. Mais cauteloso, contudo, não marca uma data” (CAMUS, 2017, p. 243). Albert Camus, em seu ensaio “Democracia, um exercício de modéstia” nos apresenta sua cética visão a pensamentos totalizantes, mostrando-nos dois posicionamentos que apesar de opostos, segundo o mesmo, são iguais em um ponto nevrálgico: “ambos expressam-se com absoluta certeza”. Acredito que possamos definir essas duas classes que Camus nos apresenta como Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 deterministas passivos e deterministas ativos, sendo este o que mais nos importa no momento. Enquanto o passivo crê na inevitabilidade dos acontecimentos, o ativo acredita que tais determinações podem ser mudadas, mas tais mudanças dependem “desse ou daquele fator”, ou seja, saímos de um determinante para outro, e se dependemos deste fator para alavancar a história ou realizar esta utopia, torna-se lógico oprimir: 1) aqueles que pensam que nenhuma mudança é possível; 2) aqueles que não concordam com o fator; 3) aqueles que, embora concordem plenamente com o fator, não concordam com os meios a serem usados para modificar o fator; 4) todos aqueles, em geral, que acham que as coisas não são tão simples assim. (CAMUS, 2001, p. 13, tradução nossa).
Camus, vivendo no conturbado período político que viveu, com as experiências e exclusões políticas que sofreu, não discordaria de Cioran, quando este diz que “o espirito do mal reside em na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania profética de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções.” (CIORAN, 1989, p. 12). Para Cioran, um remédio contra a enfermidade do fanatismo e consequentemente da formulação de utopias (metanarrativas) é o ceticismo; pois da lepra do desejo de criar um grande futuro idealizado, segundo o mesmo, só estão salvos os céticos, preguiçosos e os estetas, já que estes mesmos não realizam propostas, provavelmente por não se considerarem próximos o suficiente do sucesso de uma verdade totalizante. Como o mesmo reitera, “sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada” (CIORAN, 1989, p. 12). Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer “nós” com um tom de segurança, invocar os “outros” e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado. (CIORAN, 1989, p. 13).
Em formas gerais, se pudéssemos estruturar uma postura ética em Cioran, essa filosofia prática seria baseada moderadamente no quietismo e fortemente nutrida pela dúvida e constante descrença de um ceticismo. Como o mesmo diz, “O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade” (CIORAN, 1989, p. 11). Considerações finais Cioran nos apresenta um ceticismo na ideia de progresso histórico, predeterminações racionais ou teorias escatológicas. Essa postura é o ponto de ligação que nos permite aproximar Cioran da pós-modernidade.
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 Se, em Genealogia do fanatismo, Cioran nos apresenta uma crítica aos indivíduos que elegem uma ideia como seu deus e oferta um elogio aos céticos, em Mecanismos de utopia ele, ao assemelhar ideologias a religiões, já estabelece uma crítica as metanarrativas e reitera seu pessimismo cético, ou seja, para Cioran elas tendem unicamente ao caminho do fracasso, o que é um ponto de conexão com as teorias da pós-modernidade. Em ambos os casos, grandes pretensões para o futuro, sistemas totalizantes e qualquer noção de absoluto, já não são mais acreditadas como nos palcos da modernidade. REFERÊNCIAS ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. BARROS, Eduardo Portanova. Michel Maffesoli: a pós-modernidade se orienta para “algo de anarquista”. Tradução: Ana Taís Barros. In: Em Questão, v. 19, n.2. 2013. pp. 12-19. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/EmQuestao/article/view/41958/31044> último acesso: 17 de outubro de 2018. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. CAMUS, Albert. Democracy is an exercise in modesty. Tradução: Adrian van den Hoven. In: Sartre Studies International, vol. 7, n. 2, 2001. pp. 12-14. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/23510953?seq=1#page_scan_tab_contents> último acesso: 13 de outubro de 2018. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução: Valerie Rumkanek. 2ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017. CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Tradução: José Thomaz Brum. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. CIORAN, Emil. História e Utopia. Tradução: José Thomaz Brum. [On-line]. 2014. Disponível em: <http://lelivros.love/book/baixar-livro-historia-e-utopia-emil-cioran-em-pdf-epub-mobi-ou-leronline/> último acesso: 09 de setembro de 2018. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. Tradução: Maria Rodrigues e Hans Harden. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução: Ricardo Corrêa Barbosa. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. OLIVEIRA, Fernando Santarosa. O pessimismo de Cioran e Céline: o desafio de pensar sem utopia. 120 p. [Dissertação de mestrado em Letras]. Universidade Federal de São João del-Rei, 2016. Disponível em: <https://www.ufsj.edu.br/portal2repositorio/File/mestletras/Dissertacao%20Fernando%20Santarosa.pdf> último acesso: 18 de outubro de 2018. Revista Lampejo - vol. 8 nº 1
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Cioran e a pós-modernidade: uma crítica às metanarrativas, pp. 192-201 SCHLENKER, Rodrigo. Conhecimento histórico na obra “História e utopia” de Emil Cioran. In: Anais do II Congresso Internacional de História UEPG-Unicentro. [On-line]. 2015. Disponível em: <http://www.cih2015.eventos.dype.com.br/site/anaiscomplementares?AREA=6> último acesso: 05 de setembro de 2018. QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia Monteiro. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. WEBER, Max. Ética protestante e o espirito do capitalismo. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212
SINTOMAS DE UM POVO, QUALIDADE DA CULTURA, TAMANHO E CENTRALIZAÇÃO DO ESTADO – COMPARANDO CONSTITUIÇÕES EM UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA Guilherme Freire da Costa1
RESUMO: Partindo do método genealógico consolidado ao longo da obra nietzschiana e das afirmações relacionais entre Estado Moderno e Cultura, se estabelece uma análise comparativa entre duas Constituições do Estado Republicano brasileiro tendo como fio condutor o tamanho e o grau de centralização dos estados, assim como a riqueza criativa das manifestações culturais que deles se seguem. PALAVRAS-CHAVES: Estado. Constituição. Cultura. ABSTRACT: Starting from the genealogical method consolidated throughout the Nietzschean philosophy and the relational affirmations between Modern State and Culture, a comparative analysis is established between two Constitutions of the Brazilian Republican State having as a guiding thread the size and the degree of centralization of the states, as well as the cultural wealth creative events that are to follow. KEYWORDS: State. Constitution. Culture. Introdução Aprofundamentos e acelerações das mudanças que se processam nas configurações organizacionais e culturais das sociedades a partir da formação dos Estados Nacionais Europeus são, no mínimo, merecedoras de meus melhores esforços genealógicos, tal como sinto e interpreto o 1 Mestrado
em andamento no PPGF / UFRJ.
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 método expressado em A Genealogia da Moral. Afinal, estou vivendo e sendo afetado por elas, pelas forças geradas desse movimento. E, mesmo levando em conta as transformações, acomodações e abandonos de algumas conquistas, usufruo ou pago um preço pelos valores e modos de avaliação que então foram criados, cultivados, defendidos e impostos. Não participam da lei do fluxo e refluxo as expressões que suspeitam e investigam os custos e os incrementos de forças, quando transmutadas em vontades, para se manterem os movimentos de superação permanente da humanidade? Não pretendo aqui analisar e comparar as diferenças ou gradações das diversas resultantes de poder a nível global, mas tão somente do caso particular brasileiro, nas perspectivas configurativas e funcionais de dois tipos do Estado republicano brasileiro: o estabelecido a partir da primeira Constituição e o estabelecido a partir da última, que é o nosso atual. Partindo dos valores nietzschianos sobre Grande e Pequena Política, Democracia Moderna e, principalmente, Estado2, vou comparar os textos constitucionais de 1891 e 1988, tendo como fio condutor as expressões culturais que se efetivaram durante o período de vigência de cada Constituição e o tamanho e grau de centralização defendido e estabelecido para ““o mais frio de todos os monstros frios”” (NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, pág. 48). Se ao final do processo analítico-comparativo tiver alcançado o direito de expressar uma mensuração conjuntiva-quantitativa que venha a se tornar qualitativa e se efetive inversamente proporcional entre criação cultural e agigantamento estatal, terei conquistado uma importante ferramenta de avaliação para os processos humanos no âmbito da filosofia histórica, tornando-se instrumentalidade pronta a adaptações e superações diante de outras análises comparativas que queiram se expressar diante dos fatos históricos de povos, nações e mesmo indivíduos. Conquista que não será mais apenas minha, mas de qualquer um que a assuma e combata para sua superação permanente. Antes de começar, porém, gostaria de assinalar de antemão uma questão de valor: se fica claro em O Crepúsculo dos Ídolos que a cultura se apresenta mais elevada que o Estado, isso não exclui que ele possua não apenas sua elevação própria, mas também sua necessidade, quando nos referimos ainda ao humano, demasiadamente humano. E que, na lei do fluxo e refluxo, cada um possua seu instante de plenitude e dependa do outro em seu movimento próprio e temporal, para
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Tomo como base os textos de Povos e Pátrias, de Além do Bem e do Mal, e os capítulo V a X de O Crepúsculo dos Ídolos.
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 se efetivar enquanto expressão mensurada da vontade de potência3. Em suas realidades humanas, um não pode existir sem o outro4. Será também assim quando do experimentar da sobrehumanidade?
Comparando Constituições Aqui decidi, por questões de método, não proceder à exposição e avaliação de um e outro texto constitucional separadamente, mas coloca-los desde o princípio lado a lado, já os comparando com os valores nietzschianos acima citados. O Brasil, enquanto país, pode apenas ser comparado com outros países criados no e pelo mesmo processo histórico do que chamo de I Movimento Colonizador Europeu. E ao fazermos essa comparação, encontramos um primeiro conhecimento, importante para a análise que se seguirá: que os países americanos, à exceção dos Estados Unidos da América, são pródigos em promover novos textos ou reformas constitucionais. Apenas no Brasil foram sete textos após seu processo de independência, um monárquico e seis republicanos. Os Estados Unidos, ao contrário, mantêm seu primeiro texto constitucional, tendo acrescentado aos sete artigos de 1787, vinte e duas modificações, sendo as dez primeiras a conhecida Carta de Direitos. Porém, o mais interessante é que, ao se configurar, essa constituição restringe drasticamente, como nenhuma outra, o poder do governo, fato único nas organizações americanas e que remonta a 1215, ao reinado de João Sem Terra em terras britânicas. Passemos à comparação. Eis o que nos diz o início de cada texto constitucional: 1891: “Nós, os Representantes do Povo Brazileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regimen livre e democratico, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL Art. 1º A Nação Brazileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a Republica Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitue-se, por união perpetua e indissoluvel das suas antigas provincias, em Estados Unidos do Brazil 5”. 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e 3
Esclareço que considero a vontade de potência uma proposta metodológica ampla para a mensuração de hierarquia de forças configuradas. Pois se qualidades são conjuntos hierarquizados de quantidades mensuradas (Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral) e o mundo visto de dentro, tornado inteligível, é vontade de potência e nada mais (Além do bem e do mal), sou levado a interpretar a expressão nietzschiana como uma proposta de construção metodológica para mensurar as forças humanas, em uma dimensão própria da vida. 4 Se em Além do Bem e do Mal Nietzsche cunha a expressão que “depois de um mais forte sempre vem um mais forte”, em O Crepúsculo dos Ídolos o filósofo afirma, enquanto imoralista, que uma das nuances que o diferencia dos moralistas cristãos é não apenas desejar seus antagonistas, mas defende-los. 5 Texto Constitucional de 1891, extraído de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político6”.
Aqui já podemos ver uma primeira diferença de perspectiva de Estado, tanto em seu tamanho como na proposta de centralização. Enquanto o texto de 1891 é conciso, apontando apenas para a forma de governo (republicano) e o tipo de composição e liberdade dos entes federativos, o texto de 1988 expressa uma necessidade de exposição minuciosa e, mais, de fundamentação de algo que já deveria estar aí há muito tempo, chegando inclusive a apelar afigura de um divindade monótono-teísta. E, se levarmos em conta a máxima nietzschiana de que o que precisa se fundamentar ou justificar tem pouco valor, ou, ainda, que se configura uma das maiores, se não a maior estultice, querer, como pensador, se apresentar como um advogado da verdade, como se esta precisasse de advogado, podemos já avaliar e afirmar que não existia muita segurança entre os constituintes de 1988 em relação à força das instituições, muito menos à realidade e efetividade do conjunto de valores dos e entre os cidadãos. Pois o texto exige de si todos os valores que já deveriam estar de antemão instituídos, não sendo necessária suas efetivações e exposições. Ao proclamar algo que deve ser, não seria porque, no fundo, ainda não se sente como algo que já tenha sido ou esteja sendo? São forças fracas e não devidamente cultivadas que clamam por fundamentos. Aquilo que já impregna, que já é posse e mais que posse – como atavismo, talvez? – precisaria ainda ser defendido? Ser postulado ou fundamentado? A Constituição de 1891, ao contrário, ao se expressar de forma concisa e econômica, revela sentimentos que já vinham se cultivando há tempos, e que por isso já apresentavam um grau de segurança e mesmo uma capacidade de esbanjamento. Sentimentos que começaram a ser cultivados desde antes da independência e que não foram totalmente esgotados ou esbanjados com esse fato histórico, pois que houve continuidade de um regime monárquico. Assim, quando em 1889 é proclamada a República, podemos perceber um pico específico de forças no movimento
6 Texto
Constitucional de 1988, extraído de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 configurativo do povo brasileiro7 naquele grau processual próprio, muito próprio. E o texto constitucional de 1891 é reflexo daquele acúmulo de forças que se cultivava desde a independência norte americana, primeiro entre as oligarquias, mas que, pouco a pouco, conquistou cada vez mais adeptos, até impregnar os círculos militares de pensamento positivista e os círculos da burguesia, com certas características do liberalismo econômico e autodeterminação dos povos8. Em outro sentido, o texto de 1988 surge após mais de duas décadas de governos de generais, com eleições apenas para o Legislativo e, mesmo assim, reduzida a um sistema bipartidário. Não vou entrar no mérito da nomeação histórica do período, fato que novamente se exacerba nos dias atuais. Não é o objetivo desse estudo e guardo minhas avaliações para mim mesmo. Me apresento como homem de cultura e, por isso mesmo, dou pouco valor ao Estado, aos homens de Estado ou, ainda, a ideologias de Estado. Nesse sentido, o que me apresenta como necessário assinalar é um pathos que se configura entre os constituintes de 1988: um pathos do medo. Tal pathos, acompanhado de uma memória recente carregada de traumas que, ao invés de escolher confiar na cultura para superação de um período histórico indigesto, prefere apostar todas as suas fichas no Estado e, para isso, acredita precisar criar um grande monstro frio, um monstro de funcionalidades e penetração em todas as dinâmicas sociais que então se podiam perceber, inclusive pretendendo criar novas, apenas para garantir sua ingerência e poder. E esse é um dos elementos que distingue os dois tipos de Estado. O outro é um ethos: o ethos centralizador, de uma união baseada não nos valores e expressões populares ou na confiança mútua, a se defenderem desse monstro, mas no poder de um ente abstrato que, inchado de burocratas e muitos demais, luta permanentemente para enfraquecer e submeter os entes federativos a um poder central. O grau de liberdade que se impõe abrir mão para a garantia dos direitos chega quase ao limite da própria perda de liberdade, massacrando indivíduos e entes federativos sobre a tutela centralizadora e poderosa do poder central. Avançamos um pouco mais e eis as declarações de direitos colocadas lado a lado. Em nossa análise genealógica, se se faz necessário elencar direitos para muito além daqueles básicos de proteção contra o monstro, é porque eles ainda não se encontram efetivamente estabelecidos.
7 Na verdade, não considero que até hoje possamos afirmar que exista um povo brasileiro. Mas, dentro das situações e configurações
do período, era o que tínhamos, um povo constituído de oligarcas e, em pequena escala, de comerciantes e libertos, profissionais liberais e prestadores de serviços. 8 O Brasil se apresenta como um caso bastante específico dos movimentos republicanos americanos, dada, de um lado, a preponderância permanente e quase absoluta de interesses oligárquicos, de outro a ausência radical de participação voluntária do grande número. Os movimentos jamais serão configurados e realizados pela população, mas apenas por uma ínfima parcela.
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 Também ajudam a revelar ainda mais que tipo de Estado se está querendo configurar e impor ao povo, aos cidadãos. E eis que a declaração de 1891 reúne trinta e quatro parágrafos, que são expostos apenas no Título IV do texto constitucional. E desse total, apenas quatorze tratam efetivamente de garantias e liberdades individuais, outros de deveres individuais e outros ainda de deveres e funcionalidades do Estado. Já a de 1988 é bem mais extensa, procurando cobrir e se defender em muitas questões sequer aventadas em 1891. Nela temos, pasmem, setenta e oito artigos de direitos e deveres individuais e coletivos, mais trinta e quatro sociais, quatro sobre organização sindical e outros tantos sobre direito político, criação de partidos, etc. Significaria esse gigantismo constitucional uma elevação do povo ou um ato de sua vontade? A garantia de um Estado mais justo? Me parece exatamente o contrário: que o Estado estaria tentando se precaver de uma tomada de consciência desse povo e sua consequente luta própria por realização de direitos e deveres. Se há tanto o que elencar, se há tanto a exigir nos termos da lei, me parece mais porque não haja nenhum sentimento do cidadão quanto ao cumprimento espontâneo do preconizado, nenhuma internalização dos valores e preceitos defendidos pelo texto constitucional. Mais: se nomeio o que deve ser, se já coloco anseios e valores que não se efetivam, não seria porque no fundo desejo que o povo sinta que tem, embora não o experimente de fato? Uma promessa que, por não se efetivar, permanece promessa e, por isso mesmo, alimenta um sentimento de esperança e abertura para discursos e promessas que apenas servirão para manter tudo como está? Uma estratégia para perpetuar oligarquias atrasadas e pequenas parcelas de privilegiados de uma classe média burocrática? E tal afirmação é possível pela aplicação do método mensurador de forças da vontade de potência. Basta aplica-lo às expressões configuradas de misticismo e fé que se efetivam em nossa população e encontraremos hierarquias de forças ou de falta delas nos graus de confiança e respeito ao monstro frio. Estaríamos então distantes de sequer nos postularmos como um povo? Nos configuraríamos um amontoado de indivíduos sem aproximação de costumes e valores? E por isso o Estado, na figura de seus homens políticos, temesse tanto por ele mesmo e sua continuidade, tal como se apresenta e sempre se apresentou? Mas por que apostar mais no tamanho do Estado que na força da cultura? O que isso pode revelar e significar afinal?
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 A Criação Cultural Brasileira entre 1891 e 1930 Vejamos o que nos diz a criação cultural entre 1891 e 1930. Havia se promulgado a República. Era a vitória de um sentimento republicano sobre outro, monárquico. Com a família real deposta, o Brasil deixava de ser um império. Não havia uma prevalência de temores, mas sim um esbanjamento de forças de autodeterminação e liberdade. Com um tal sentimento de confiança e a fragmentação de interesses oligárquicos, não pareceu possível ou necessário criar um Estado agigantado. Cada ente federativo criaria suas leis com um alto grau de autonomia, desde que não contrariasse as leis federais, que em verdade eram bem poucas. Foi nesse grau de liberdade que se começou o movimento criativo que ficaria conhecido como modernismo brasileiro. Nomes como Villa Lobos na música, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti nas artes plásticas, os “irmãos” Mario e Oswald de Andrade9, Lima Barreto e Manoel Bandeira na literatura, entre outros, mergulharam nas manifestações culturais europeias. Porém, se em um primeiro momento as obras de arte criadas não apontavam para uma cultura tipicamente brasileira, pois que ainda carregadas e sobrecarregadas de elementos “estrangeiros” do pósimpressionismo e neocolonialismo, a partir dos anos 1920 cada vez mais essa preocupação se tornou flagrante. E tal fato histórico se processa justamente quando esses artistas invadem Paris, para aprimorarem suas técnicas e se inserirem nos círculos criativos europeus. Por exemplo, é em Paris que Di Cavalcanti começa a pintar mulatas. E se agora observamos mais detidamente a relação entre Estado e Cultura de acordo com a tese nietzschiana do antagonismo entre ambos, podemos afirmar que, graças à descentralização, fraqueza e pequenez do Estado de 1891, o Brasil pôde esbanjar profundas forças criativas. Outro fator muito importante era a luta por maior autonomia política dos entes federativos, como atesta o discurso de Rui Barbosa (nosso Thomas Jefferson talvez?) no Congresso Nacional em 16 de dezembro de 1890, contrário a uma liberdade ainda maior do que foi efetivamente promulgada pelo texto constitucional de 1891. Não poderia se configurar um grande monstro frio. Mais ainda, essa luta por autonomia em relação ao poder central, ao contrário da norte-americana, que impunha limites à sanha central, pode indicar um fato que até os dias atuais ronda nossa realidade: a falta do sentimento de que constituímos um só povo. Muitas vezes, antes de nos referirmos a nós como brasileiros, apontamos para uns e dizemos nordestinos, para outros, sulistas, nortistas, etc., antes
9 Apesar
de suas inovações estéticas, Mario e Oswald não eram irmãos. E seu curto período de amizade quase foi decisivamente suplantado pelo longo período de inimizade.
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 de expressar brasileiro. Às vezes, ainda mais dramático, quando associamos um termo pejorativo após o ente federativo. Por exemplo, carioca malandro, mineiro jeca, baiano preguiçoso, etc. Porém, se nossa força cultural até hoje não conseguiu superar tal divisão, se é que tenha desejado fazê-lo através de seus criadores, naquela época, entre 1891 e 1930, pôde elevar nosso país ao reconhecimento ocidental. O melhor exemplo, para tomarmos a música tão cara a Nietzsche, é a obra de Heitor Villa-Lobos, até hoje insuperável.
A Criação Cultural Brasileira após 1988 Antes de abordarmos o texto de 1988, precisamos rapidamente passar pelo de 1967. O Brasil viveu uma ditadura militar após a derrubada e deposição do governo de João Goulart. As eleições passaram a ser indiretas, realizadas em um Congresso engessado no bipartidarismo e de todo cerceado. Esse texto de 1967 sofreu importantes modificações em 1968 e 1969, tornando o poder ainda mais centralizado, graças às manobras dos generais da linha dura, liderados por Costa e Silva. A democracia foi suspensa em nome do combate à “ameaça comunista”. Sem entrar no mérito, para essa investigação importa expressar as seguintes interpretações, a partir da aplicação do método genealógico: 1) que os textos constitucionais do período, apesar de radicalizarem a centralização do poder na figura do Presidente da República, não incharam o Estado em sua estrutura ministerial, mas na criação ou ampliação de estatais, autarquias e outras organizações da administração indireta, o que impulsionou o surgimento de uma nova classe média, de uma ampla burocracia secundária; 2) que mesmo funcionando uma ferrenha censura, ela não se apresentava das mais inteligentes, facilitando que a força criativa crescesse entre os anos de 1964 e 1980. Pois além de precisar mais do que nunca da criatividade para burlar os censores, o próprio sistema oferecia uma fonte quase inesgotável de realidades inspiradoras para as forças artísticas – um Estado superdimensionado em funcionalidades específicas e subdimensionado em outras. Surge o movimento tropicalista; a Bossa Nova, música de grande qualidade surgida no final dos anos 50, se consolida; a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos traz o rock para o cenário brasileiro. No teatro, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, José Celso Martinez Correa e Chico Buarque são alguns dos grandes do período. Temos o aprofundamento do Cinema Novo de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, os artistas plásticos José Roberto Aguilar e Wesley Duke Lee, os escritores Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, entre outros; e 3) que os generais estavam muito mais preocupados em perseguir os
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 membros históricos dos partidos comunistas e demais ativistas políticos, ficando a criação cultural um pouco mais “livre” para se expressar. E como se expressou em experimentos rítmicos, plásticos, etc. Vejamos agora as manifestações culturais de 1988 aos dias atuais em relação à chamada e tão protelada Constituição cidadã. O que primeiro nos chama a atenção é o fato dos expoentes ainda vivos dos anos 60 e 70 continuarem sendo os expoentes da cultura no século XXI. Na música, podemos comparar Caetano Veloso a Mamonas Assassinas? No cinema temos a boa surpresa de José Padilha. Mas podemos comparar Carla Camurati a Glauber Rocha? Na literatura, Paulo Coelho a Dias Gomes? – Mas o Estado constituído a partir de 1988 é o Estado cidadão, o Estado mais centralizador que o dos militares, agigantado, que em tudo se mete, em tudo se intromete, prometendo tudo e não cumprindo nada. Escrever leis compulsivamente ou inflar o mais frio de todos os monstros frios a grandezas desmensuradas não é garantia de civilidade. Pelo contrário, mais parece estimular a indolência e a estupidez de uma sociedade. Um povo, para se sentir povo, necessita de valores e costumes comuns, não de leis e ideais abstratos. Por exemplo, afirmar como fundamento a dignidade humana ou como objetivo fundamental erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, não seria justamente a prova que jamais tivemos uma realidade de dignidade ou sem bolsões de extrema pobreza? Nietzsche apostava suas fichas na cultura para a superação do homem, pois seria pelo cultivo e educação superior que se poderiam configurar as condições de acúmulo de forças em indivíduos talentosos, parte necessária do vir a ser dos gênios. Não no Estado. Também é notório seu desprezo pela educação oferecida pelo Estado (Erziehung), valorizando o que nomeou de educação superior (Bildung). – Talvez por maldade a Kant? E, diante do mais frio de todos os monstros frios, os privilegiados pela educação superior deveriam antes se porem em guarda e suspeitarem do que adorarem esse monstro. Mais, deveriam mesmo se contraporem à ânsia de poder desse monstro, lutando pela sua contínua diminuição, para um florescimento cada vez maior da cultura. Nesse sentido, talvez não seja descabido afirmar que, para Nietzsche, a cultura alcançaria seu ápice, em um ciclo na lei do fluxo e refluxo, no momento em que o Estado alcançasse uma realidade do que hoje conhecemos como minarquia10.
10
Já encontrados em Lao-Tsé e Confúcio, valores de um menor Estado possível ressurgiram com força na Europa no século XVIII, primeiro na Inglaterra, berço da revolução industrial, e depois se espalhando por todo o continente. Entretanto, foi os Estados Unidos da América que chegaram mais próximos de um sistema minarquista, entre finais do século XVIII e 1913, superando uma realidade agrária primitiva para alcançar a de país mais rico do mundo e economia mais poderosa e pujante.
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 Enfim, é com um profundo sentimento de melancolia que preciso atestar que estamos em um momento da lei do fluxo e refluxo de decadência cultural. Os próprios expoentes dos anos 60 e 70 se deixaram corromper pela bestialidade política e querem se engajar em uma esfera que jamais deveria ser a deles. Pior, defendem eles mesmos o agigantamento e intervencionismo do Estado. O artista, criador genuíno, não precisa se posicionar em discursos ou eventos políticos. Sua atuação é plástica e moral, a arte é seu engajamento, o fluxo criativo que pode superar a realidade, pois que percebe muito à frente dessa realidade e realça aquilo que lhe desperta o sublime. Seu significado só poderá ser compreendido algumas gerações depois. Mas quando esse artista abandona sua arte para fazer política, o que ele se torna? Uma excreção, talvez? Algo que já não se satisfaz a si mesmo e já não consegue satisfazer o transbordamento e esbanjamento de forças da sua tarefa maior, que é a criação do sublime e promessa do gênio? Porém, ainda pior que esses que se tornam degenerados, são aqueles que não conhecem outra realidade, os que já surgem na degenerescência. Aqueles que não criam, pois que incapazes de perceber com amplitude, apenas refletindo valores e comportamentos não estéticos, não oriundos da criação artística. Do Estado, talvez? Ou da imprensa, essa outra efetivação moderna tão “elogiada” na filosofia nietzschiana. E quando filósofos do futuro olharem para o nosso tempo e valorarem valores e atos, o que poderão eles expressar? Talvez sejam condescendentes conosco? Mais certo é que nos acertem com o martelo destruidor de ídolos. Com certeza já não terão entre eles tantos aduladores desse ídolo da modernidade. Terão criado novas hierarquias e funcionalidades nas relações entre Arte, Filosofia e Ciência: - hierarquias liberadas de convicções, pois que cientes de se efetivarem em solidificações fluidas11 que, acima de tudo, não se desejam a si mesmas, mas à própria superação permanente. Uma atitude, entretanto, afirmo como necessária à atualidade de momento na lei do fluxo e refluxo: - enquanto filósofo, se torne também artista e cientista. Seja uma força de contrapeso ao Estado, não um vira-lata ou papagaio do monstro frio e suas ideologias.
11
Criei o termo para expressar o fluxo espaço-temporal de estabilizações provisórias e fluidas nos tensionamentos hierárquicos e hierarquizantes de forças. Nesses períodos, mais ou menos curtos, poderíamos não apenas perceber, mas até mesmo mensurar pelo método da vontade de potência os conjuntos configurados em hierarquias de forças em combate com outros, mas também nas tensões próprias.
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Sintomas de um povo, qualidade da cultura, tamanho e centralização do Estado, pp. 202-212 REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, F. W. Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral. Tradução de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Editora Hedra, 2012. ______. Humano, Demasiado Humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. ______. Humano, Demasiado Humano II. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. Aurora. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. ______. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ______. A Gaia Ciência. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2010. ______. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. ______. Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ______. Beyond Good and Evil. Tradução de Judith Norman. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2002. ______. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. ______. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Textos Constitucionais Pesquisados na Internet
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
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O aniversário que não fui, pp. 213-215
O ANIVERSÁRIO QUE NÃO FUI Luana Diogo
Um filme 35mm com registros que agora me pertencem. Um aniversário onde desconhecidos meus se confraternizam. Lembrança palpável e perdida. Essa família não é minha, nem a vela nem o bolo. Eu não fui convidada para esse aniversário. Nem mesmo conheço o aniversariante. É tudo acaso.
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O SURREALISMO ESTÁ MORTO OU VIVO? Por Guy Debord Tradução: Inácio José de Araújo da Costa1
A questão “O surrealismo está morto ou vivo?” foi escolhida como o tema de uma conferência-debate pelo Cercle Ouvert, ocorrido em 18 de novembro de 1958, sob a presidência de Noël Arnaud. Foram anunciados como participantes Robert Amadou, Guy Debord, Henri Lefebvre, Jacques Sternberg e Tristan Tzara. Mas uma má sorte parecia pairar sobre o debate: Lefebvre e Amadou acamados pela gripe, Sternberg sofrendo de intoxicação alimentar e Tzara ausente, sobrou apenas Guy Debord. A contribuição de Debord ao debate foi gravada em fita magnética e seu discurso foi acompanhado por violão. Uma transcrição abreviada de seu discurso apareceu no texto “Suprême levée des défenseurs du surréalisme à Paris et révelation de leur valeur effective”, na revista Internationale situationniste nº 2 (dezembro de 1958). *************************************************************** Evidentemente, o surrealismo está vivo. Seus criadores ainda não morreram. Novos membros, cada vez mais medíocres é verdade, o reivindicam. O surrealismo é conhecido pelo grande público como o extremo do modernismo e, por outro lado, tornou-se objeto de julgamentos acadêmicos. Trata-se de uma dessas coisas que ainda vivem ao mesmo tempo que nós, como o catolicismo e o general de Gaulle. A verdadeira questão é, então: qual é o papel do surrealismo hoje? A atividade surrealista, apesar de sua intenção fundamental em transformar a vida, teve sua principal aplicação na arte e na escritura poética. Um julgamento sobre o sentido do surrealismo é,
1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC), vinculado ao Instituto de Cultura
e Arte (ICA) da mesma instituição. Contato: inaciojosecosta@gmail.com
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O surrealismo está morto ou vivo?, pp. 216-221 portanto, um julgamento da cultura moderna e das modificações ocorridas através do movimento histórico particular do surrealismo, o movimento geral da cultura, sua interação. O dadaísmo pode ser considerado como o momento do fim da cultura dominante, da cultura burguesa. Foi corretamente apontado que Dadá não era, como às vezes é ativamente definido, um produto direto da Primeira Guerra Mundial. Algumas correntes especificamente dadaístas apareceram no período pré-guerra. A Primeira Guerra Mundial e Dadá são dois produtos contemporâneos das contradições extremas de uma sociedade. A destruição dadaísta, tomada de consciência do esgotamento das superestruturas culturais que conhecemos, não marcou até agora seu desaparecimento prático. Enquanto a insubstituível crítica das armas não arruinar a infraestrutura econômica de exploração, uma espécie de posfácio cultural sobreviverá na repetição. No entanto, as novas forças produtivas condenam, junto com as antigas relações de produção, todo o espetáculo cultural que as acompanhava. Devemos agora procurar realizar construções superiores de nosso meio e dos acontecimentos de nossa vida, ao nível do desenvolvimento material da época, ao nível de seu progresso na dominação da natureza. As pesquisas nessa perspectiva são objetivamente inseparáveis da empreitada de transformação revolucionária do mundo. O surrealismo, que se constituiu imediatamente após a crise do dadaísmo, com a vontade de passar a uma ação positiva, soube responder a tais necessidades? Desde a origem, há no surrealismo, nesse sentido comparável ao romantismo, um antagonismo entre as tentativas de afirmação de um novo uso da vida e uma fuga reacionária para fora do real. O lado progressista do surrealismo, em seu início, reside em sua reivindicação de uma liberdade total, e em algumas tentativas de intervenção na vida cotidiana. Em suplemento à história da arte, o surrealismo está para o campo da cultura como a sombra do personagem ausente está para uma pintura de Chirico: torna visível a falta de um porvir necessário. O lado retrógrado do surrealismo se manifestou imediatamente em sua superestimação do inconsciente, e em sua monótona exploração artística; o idealismo dualista que tende a compreender a história como uma simples oposição entre os precursores da irracionalidade surrealista e a tirania das concepções lógicas greco-latinas; a participação nesta propaganda
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O surrealismo está morto ou vivo?, pp. 216-221 burguesa que apresenta o amor como a única aventura possível nas condições modernas de existência. Essa ambivalência do surrealismo durou cerca de dez anos, somente. A pressão de circunstâncias exteriores — particularmente a regressão da revolução mundial e o êxito da arte surrealista — levou nesse período ao triunfo das características retrógradas no interior do surrealismo. O surrealismo hoje é profundamente maçante e reacionário. O irracional, que serviu por algum tempo contra os valores lógicos dominantes, serve no presente à irracionalidade dominante de um regime cada vez mais decomposto, cuja confusão é a arma ideológica primordial. O ocultismo, a magia, a platitude humorística, a paixão por um insólito sempre idêntico a si mesmo são os escombros nos quais o surrealismo nos encobriu durante seus longos anos de velhice. O surrealismo é doravante enlatado e saudado como um belo escândalo insuperável pelo conformismo de uma época tão desgastada que seus próprios movimentos de libertação devem ser comidos por traças. Os sonhos surrealistas correspondem à impotência burguesa, às nostalgias artísticas, e à recusa de considerar o emprego libertador dos meios técnicos superiores de nosso tempo. A partir de uma apropriação de tais meios, a experimentação coletiva e concreta de ambientes e de comportamentos novos corresponde ao começo de uma revolução cultural, fora da qual não pode haver cultura revolucionária autêntica. É nesse sentido que avançam meus camaradas da Internacional Situacionista.
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O surrealismo está morto ou vivo?, pp. 216-221 Le Surréalisme est-il mort ou vivant? Par Guy Debord:
Le surréalisme est évidemment vivant. Ses créateurs ne sont pas encore morts. Des gens nouveaux, de plus en plus medíocres il est vrai, s’en réclament. Le surréalisme est connu du grand public comme l’extrême du modernisme et, d’autre part, il est devenu object de jugements universitaires. Il s’agit bien d’une de ces choses qui vivent en même temps que nous, comme le catholicisme et le general de Gaulle. La véritable question est alors: quel est le rôle du surréalisme aujourd’hui? L’activité surréaliste, malgré son intention fondamentale de changer la vie, a eu sa principale application dans l’art et l’écriture poétique. Un jugement sur le sens du surréalisme est donc un jugement de la culture moderne, et des modifications survenues à travers le mouvement historique particulier du surréalisme, le mouvement général de la culture, leur interaction. Le dadaïsme peut être consideré comme le moment de la fin de la culture dominante, de la culture bourgeoise. On a justement souligné que Dada n’était pas, ainsi qu’il est parfois activement défini, un premier produit direct du premier conflit mondial. Quelques courants spécifiquement dadaïstes avaient apparu dans l’avant-guerre. Le premier conflit mondial et dada sont plutôt deux produits contemporains des contradictions extremes d’une société. La destruction dadaïste, prise de conscience de l’épuisement des superstructures culturelles que nous connaissons, n’en marque pas pour autant la disparition pratique. Aussi longtemps que l’irremplaçable critique des armes n’aura pas ruiné l’infrastructure économique d’exploitation, une sorte de postface culturelle survivra dans la répétition. Cependant les nouvelles forces productives condamnent, avec les anciens rapports de production, tout le spectacle culturel qui les accompagnait. Il faut maintenant chercher à réaliser des constructions supérieures de notre milieu et des événements de notre vie, au niveau du dévelopement matériel de l’époque, au niveau de son progrès dans la domination de la nature. Les recherches dans cette perspectives sont objectivement inséparables de l’entreprise de transformation révolutionnaire du monde.
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O surrealismo está morto ou vivo?, pp. 216-221 Le surréalisme, qui s’est constitué immédiatement après la crise dadaïste, avec la volonté de passer à une action positive, a-t-il su répondre à de tels besoins? Dès l’origine, il y a dans le surréalisme, qui par là est comparable au romantisme, un antagonisme entre les tentatives d’affirmation d’un nouvel usage de la vie et une fuite réactionnaire hors du réel. Le côté progressif du surréalisme à son début est dans sa revendication d’une liberté totale, et dans quelques essais d’intervention dans la vie quotidienne. Supplément à l’histoire de l’art, le surréalisme est dans le champ de la culture comme l’ombre du personnage absent dans un tableau de Chirico: il donne à voir le manque d’un avenir nécessaire. Le côté rétrograde du surréalisme s’est manifesté d’emblée par la surestimation de l’inconscient, et sa monotone exploitation artistique; l’idealisme dualiste qui tend à comprendre l’histoire comme une simple opposition entre les précurseurs de l’irrationnel surréaliste et la tyrannie des conceptions logiques gréco-latines; la participation à cette propagande bourgeoise qui présente l’amour comme la seule aventure possible dans les conditions modernes d’existence. Cette ambivalence du surréalisme a duré une dizaine d’année seulement. La pression des circonstances extérieuses — particulièrement une regression de la révolution mondiale et la réussite d’un art surréaliste — entraîna dans ce délai le triomphe des caractères rétrogrades à l’interieur du surréalisme. Le surréalisme aujourd’hui est parfaitement ennuyeux est réactionnaire. L’irrationnel, qui a servi quelque temps contre les valeurs logiques dominantes, sert à présent l’irrationnalité dominante d’un régime toujours plus décomposé, dont la confusion est l’arme idéologique primordiale. L’occultisme, la magie, la platitude humoristique, la passion d’un insolite toujours pareil à lui-même sont les déchets dont le surréalisme nous a encombrés dans sa longue vieillesse. Le surréalisme est désormais mis en conserve et salué comme un beau scandale indépassable par le conformisme d’une époque si usée que ses mouvements de libération même doivent être mangés aux mites. Les rêves surréalistes correspondent à l’impuissance bourgeoise, aux nostalgies artistiques, et au refus d’envisager l’empoi libérateur des moyens techniques supérieurs de notre temps. A partir d’une mainmise sur les tels moyens, l’expérimentation collective, concrète d’environnements et de
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O surrealismo está morto ou vivo?, pp. 216-221 comportements nouveaux correspond au début d’une révolution culturelle en dehors de laquelle il n’est pas de culture révolutionnaire authentique. C’est dans cette ligne qu’avancent mes camarades de l’Internationale situationniste.
DEBORD, Guy. Le surréalisme est-il mort ou vivant? In. BÉRREBY, Gérard (org.). Textes et documents situationnistes (1957-1960). Éditions Allia: Paris. 2004. p. 85-86
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