lampejo - vol.9 n.1

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revista eletrônica de filosofia e cultura issn 2238-5274 | vol. 9 - nº.1 | 08/2020

artigos ensaios traduções ensaios fotográficos + dossiê geni


In Memoriam de JosĂŠ Valdo Barros Dedicamos a todas as vĂ­timas diretas e indiretas da covid-19


EDITORIAL É em meio à instabilidade, às ameaças, aos sucessivos atentados contra a vida, que a Lampejo publica a sua edição vol.9 n.1, sua décima sétima publicação, que é lançada dentro do caos que cada vez mais nos permeia. Estamos imersos em uma complexidade de acontecimentos que torna mais difícil ainda um habitar. O que hoje vivemos já vem de muito tempo, é uma longa história, que parece estar cada vez mais se aprofundando em seus momentos agônicos, em sua tentativa de desestabilizar forças. Contudo, tentamos no manter minimamente presentes para o que está acontecendo. A presente edição consiste em 29 trabalhos, dentre artigos, ensaios, traduções e um ensaio fotográfico. Além da edição corrente, ainda contamos com um longo dossiê do GENi – Grupo de Estudos de Nietzsche da UECE – Universidade Estadual do Ceará, que teve o seu segundo encontro anual com sede na mesma universidade no final do ano passado (2019). Os trabalhos seguem a já conhecida vastidão de assuntos que permeiam o imaginário da revista, e assim pensamos ser uma maneira interessante de propagá-los. É também com pesar que a presente edição é dedicada a José Valdo Barros Silva Júnior, professor, amigo de muitas das pessoas envolvidas na produção desta revista, um pensador, que nos deixou nos últimos meses e que nos faz falta. Valdo fez parte da última edição da Lampejo com seu artigo Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, mas não só, Valdo contribuiu com a produção de tantos outros acontecimentos desta revista independente fundada por outros que são, também como ele, habitantes das periferias do mundo e que almejam pensar outros modos de vida, que se inquietam, que se interessam pela potência do pensar e pela expansão das experiências. A presente edição ainda conta com um ensaio seu, escrito sob o pseudônimo Joaquim Qualquer dos Prazeres, publicado in memoriam. Valdo permeia vários textos desta revista pelos tantos momentos que se propôs a fazer algo que hoje é cada vez mais difícil: ouvir o outro. Conseguir levar o outro a sério não só tentando escutá-lo, mas também sempre ousando pensar


junto. Tantos textos de alunos, professores e outros sujeitos estranhos que habitam este mundo os quais Valdo perpassa. Valdo continuará sempre presente. Esta é uma revista produzida por professores e pesquisadores cada vez mais precarizados, pelos modos de vida que resolvemos abraçar, pelos ataques que sucessivamente sofremos mas que não nos afastam da nossa empreitada. Assim ressaltamos a importância das atividades dos grupos e coletivos independentes, da sua microfísica dos movimentos, dos pequenos passos que sabemos não ser tão pequenos assim. O que nos mostra de fato é que estes acontecimentos ainda resguardam uma força que talvez não conheçamos tão bem. Uma força que é difícil mesmo de conhecer pela sua complexidade e por isso mesmo elas não se contentam com respostas fáceis. Que lampejos continuem acontecendo. Boa leitura a todas e todos! Os editores


[ p. 212]ZOOPOÉTI CA E ZOONTOLOGI A. A QUESTÃO DO ANI MALENTRE A LI TERATURA E A FI LOSOFI A Mat eusUchôa

Í NDI CE ARTI GOS [ p. 10]ÚL TI MA QUI MERA:AUGUSTO DOS ANJ OS E AUTOFAGI A NACI ONAL Pedr oHenr i queMagal hãesQuei r oz [ p. 24]MODERNI DADES AL TERNATI VAS. DA CRI SE DO PÓSMODERNI SMO ATÉ À TRANSMODERNI DADE DE ENRI QUE DUS DU SEL Bál i ntUr bán [ p. 47]DA VOZ À PALAVRA. . .E DE VOL TA À VOZ: RETÓRI CA E SI MULACRO NA POLÍ TI CA MODERNA Al anDuar t e [ p. 77]NECROPOLÍ TI CA,FI M DO HUMANI SMO E A CRI SE DA DEMOCRACI A CONTEMPORÂNEA Rogér i oLui sdaRochaSei xas [ p. 89]A ESCOLA,A DI SCI PLI NA E AS NOVAS TECNOLOGI AS:APROXI MAÇÕES FOUCAUL TI ANAS Deyvi sonRodr i guesLi ma SannaChr i sMour aNunes [ p. 115]ARTE PÓSMODERNA:ENTRE APROXI MAÇÕES E RUPTURAS Ti agoNunesSoar es [ p. 127]( SER) TÃO NORDESTI NO NA SALA DE AULA: UM NOVO DESENHO SI TUADO DE ENSI NO Adr i anadosSant osPer ei r a J oséRober t oAl vesBar bosa [ p. 142]A CARTOGRAFI A COMO MÉTODO DE PESQUI SA FI LOSÓFI CA.O FI LÓSOFOCARTÓGRAFO MAPEANDO TERRI TÓRI OS,ACOMP OM ANHANDO PROCESSOS E CRI ANDO PROCEDI MENTOS DE PESQUI SA Fr anci scadeJ esusCar dosoMour a Lui zi rdeOl i vei r a [ p. 163]CÉREBRO,CORPO E I NCONSCI ENTE NA FI LOSOFI A DE BERGSON YagoAnt oni odeOl i vei r aMor ai s [ p. 180]NI ETZSCHE CONTRA WAGNER,CONTRA OS FI LÓLOGOS E CONTRA ELE MESMO:CRÍ TI CAS E AUTOCRÍ TI CAS A O NASCI MENTO DA TRAGÉDI A Luí sFr anci scoFi ancoDi as

[ p. 222]O CONCEI TO DE TECNOLOGI A NO PENSAMENTO DE HERBERT MARCUSE: ESTUDO I NTRODUTÓRI O RenêI vodaSi l vaLi ma [ p. 235]VI RTUDE MORAL,SOCI ABI LI DADE E PODER NO GÓTI CO DO SÉCULO XVI I I :RADCLI FFE E LEW I S Mar i anaDi asPi nhei r oSant os [ p. 251]ENTRE A PAI XÃO E O AMOR FATI :ANÁLI SE DO RETRATO COM FRI EDRI CH NI ETZSCHE E LOU ANDREASSALOMÉ Fr anci scoXavi erdeOl i vei r aNet o [ p. 259]A MAGI A NA DI ALÉTI CA DO ESCLARECI MENTO:I NTERLÚDI OS ENTRE ETNOLOGI A E TEORI A CRÍ TI CA J oséYgordeAl mei daBar r os [ p. 266]A J USTI ÇA POPULAR E OS ATOS J URÍ DI COS: O TRI BUNALE SEUS REGI MES DE VERDADE J URÍ DI CA RaquelCél i aSi l vadeVasconcel os [ p. 273]A AÇÃO DA LEI E DO LEGI SLADOR EM DETRI MENTO DA LI BERDADE E DO PODER SOBERANO DENTRO DA SOCI EDADE CONTRATUAL EM J EAN J ACQUES ROUSSEAU Car l osFr eder yckMachadoCaval cant e [ p. 289]CONSI DERAÇÕES SOBRE MORTE E SI LÊNCI O EM A RETORNADA DE LAURA EREBER Dougl asSant anaAr i st onSacr ament o ENSAI OS [ p. 303]J UROS E CULPA:A PAI XÃO NO CORPO DA COI SA J oaqui m Qual querdosPr azer es ( Val doBar r os)I nMemor i am [ p. 307]CRÍ TI CA DA MÁQUI NA MÍ NI MA Ai r t onUchôaNet o [ p. 322]TRÊS ESTRATOS Al exdaRosa [ p. 329]A CRI SE NO SI STEMA EDUCACI ONAL PÚBLI CO BRASI LEI RO:RELATO DE EXPERI ÊNCI A Mar cel oQuei r ozOl i vei r aJ úni or [ p. 333]MONTECCHI OS E CAPULETOS DI ALÉTI CA NEGATI VA E FI LOSOFI A DA DI FERENÇA Thi agoMot a ENSAI O FOTOGRÁFI CO

[ p. 195]O DUALI SMO LI BERALVERSUS REPUBLI CANO [ p. 342]GEOPERCEPÇÕES DO OLHAR:O SER E O SOBRE A QUESTÃO DA LI BERDADE:UMA ANÁLI SE ESPAÇO EM I NTERFUSÃO BASEADA NAS TEORI AS LOCKEANA Tat i anaPr evedel l o E ROUSSEAUNI ANA AnaBeat r i zBor gesR.Duar t e


TRADUÇÕES [ p.355]O SÉCULO E O PERDÃO PorJ acquesDer r i da Tr adução:RobsonBr enoDour adodeAr aúj o [ p.389]PSI QUI ATRI A E LOUCURA PorLeopol doMar í aPaner o Tr adução:Cássi oRobsonAl vesdaSi l va [ p.393]A REFORMA DA I MPRENSA PorAl ber tCamus Tr adução:LeandsondeVasconcel osSampai o

[ p.547]O GÊNI O METAFÍ SI CO NO PENSAMENTO DO J OVEM NI ETZSCHE Davi dRogér i oCost adeLi ma [ p.568]SOBRE UM POSSÍ VELDI ÁLOGO ENTRE LI MA BARRETO E NI ETZSCHE Andr éMesqui t aPennaFi r me [ p.585]SÓCRATES E NI ETZSCHE:ARTE,VERDADE E DÉCADENCE J éssycaAr agãodeFr ei t as MORALI DADE,EDUCAÇÃO E FI LOSOFI A DA CUL TURA

[ p.397]NOTAS SOBRE A “QUESTÃO DOS I MI GRANTES” PorGuyDebor d Tr adução:I náci oJ osédeAr aúj odaCost a

[ p.599]A FORMAÇÃO DA UNI LATERALI DADE POLI TI COMORALDA PEQUENA POLÍ TI CA DO OCI DENTE EM NI ETZSCHE Cr i st i aneMar i aMar i nho

DOSSI Ê

[ p.613]AS I MPLI CAÇÕES DO PENSAMENTO DO J OVEM NI ETZSCHE PARA A EDUCAÇÃO LucasJ osefLi maBr un;Gi ovanniPer r uciRi bei r o Már ci oAcsel r ad;LucasCami nhaCândi doVi ei r a

ARTI GOS LI NGUAGEM,CONHECI MENTO E VERDADE [ p.414]A I NTRANSPONI BI LI DADE DA VERDADE E A NECESSI DADE DA MENTI RA EM UMA PERSPECTI VA NI ETZSCHEANA Rober t oBar r os [ p.434]A TRAMA FI CCI ONAL:PARA ALÉM DA “MENTI RA SAGRADA” Mi guelAngeldeBar r enechea [ p.449]UMA TEORI A EXTRAMORALDA VERDADE? Eval doSampai o [ p.468]DA VERDADE AO PERSPECTI VI SMO: UMA ABORDAGEM NI ETZSCHI ANA APLI CADA À FI LOSOFI A DA CI ÊNCI A Br unoCami l odeOl i vei r a [ p.486]HI STORI CI SMO MODERNO E FI LOSOFI A DA HI STÓRI A:I NTERPRETAÇÕES DE J OVEM NI ETZSCHE Nar aLí vi aTi mbódeOl i vei r a [ p.495]NI ETZSCHE E W I TTGENSTEI N:O ATOMI SMO LÓGI CO E A I MPOSSI BI LI DADE DE UNI VERSALI ZAÇÃO Leandr oMaci eldeLi r a;Mayar aRochadeSousa [ p.512]O PROBLEMA DA VERDADE NO J OVEM NI ETZSCHE:PERCEPÇÃO E CORRESPONDÊNCI A NA CRÍ TI CA DE MAUDEMARI E CLARK Edi l sonMi r andaJ uni or ARTE,VERDADE E LI TERATURA [ p.524]A FI LOSOFI A RENI TENTE AO DESTI NO NOS PENSAMENTOS DE GI ACOMO LEOPARDI : CONTRAPONTO À I NTERPRETAÇÃO NI ETZSCHI ANA SOBRE O PESSI MI SMO LEOPARDI ANO Taí sdaSi l vaBr asi l [ p.535]NI ETZSCHE E A DANÇA:O CORPO COMO OBRA DE ARTE RaquelRodr i guesRocha

[ p.624]NI ETZSCHE COMO PSI CÓLOGO E ARTI STA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CUL TURA QUE TRANSCENDA VALORES Al yssondaSi l vaLopes;Kal l yandr adosSant osNunes [ p.634]O GRANDE ACONTECI MENTO:A MORTE DO DEUSMORAL HedyCar l osSant osdePi na [ p.642]O RESSENTI MENTO ENQUANTO DOENÇA EM NI ETZSCHE I gorAl yssonLemosPi nt o [ p.652]O SENTI DO DA REI NTEGRAÇÃO DO HOMEM NA NATUREZA EM NI ETZSCHE Hel l yLucasBar r osCr i spi m [ p.671]SOFRI MENTO HUMANO E A “PROPOSTA TERAPÊUTI CA”NI ETZSCHI ANA Dani el l yMai adeQuei r oz NI ETZSCHE E A FI LOSOFI A FRANCESA CONTEMPORÂNEA [ p.685]ARTEEXPRESSÃO:QUANDO SE ESTRANHA A VERDADE Gi sel eGal l i cchi o [ p.705]“FI M DO J UÍ ZO”,SI NTOMATOLOGI A E7 EXI STÊNCI A EM DELEUZE Leandr oLél i sMat os [ p.722]HOMEM,ARTE E VERDADE:APROXI MAÇÕES ( DES) NECESSÁRI AS ENTRE NI ETZSCHE E SARTRE Paul oWi l l ameAr aúj odeLi ma [ p.750]NOTAS SOBRE A ANÁLI SE FOUCAUL TI ANA DA PARRESI A E SUA POTENCI ALI DADE NA CRI AÇÃO DE SUJ EI TOS ÉTI COS NA ATUALI DADE Ant ôni oAl exPer ei r adeSousa [ p.767]O DESAMPARO HUMANO E A ESTÉTI CA DA EXI STÊNCI A EM NI ETZSCHE E SARTRE RenanSoar esEst eves


Revi st aLampej oI SSN 22385274 Edi t or es Gust avoCost a LeonelOl i mpi o LuanaDi ogo Thi agoMot a Wi l l i am Mendes Comi ssão edi t or i al Át i l aMont ei r o Dani elCar val ho Davi dBar r oso F abi enLi ns Gust avoFer r ei r a Henr i queAzevedo J ul i anaBr agaGuedes Paul oMar cel oBr i t o Rogér i oMor ei r a RuydeCar val ho Consel ho edi t or i al Pr of .Dr .Er naniChaves Pr of .Dr .I vanMai adeMel l o Pr of .Dr .J oséMar i aAr r uda Pr of .Dr .Lui zFel i peSahd Pr of .Dr .Lui zOr l andi Pr of .Dr .Mi guelAngeldeBar r enechea Pr of .Dr .J oséOl í mpi oPi ment a Pr of .Dr .Pet erPálPel bar t Pr of .Dr .Rober t oMachado Pr of .Dr a.RosaMar i aDi as Pr of .Dr .Syl vi oGadel ha Di agr amação eedi t or ação LuanaDi ogo LeonelOl i mpi o Capa-Li nguagem vi sual J ul i anaDeBoni


ARTIGOS


Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

ÚLTIMA QUIMERA: AUGUSTO DOS ANJOS E AUTOFAGIA NACIONAL

Pedro Henrique Magalhães Queiroz

RESUMO: O presente artigo foi escrito em tom de entrevista e estruturado em quinze tópicos. Pretende-se, com ele, não mais que apresentar alguns elementos de uma possível reflexão entre a lírica do poeta paraibano Augusto dos Anjos e a configuração atual do capitalismo. Largos são os arcos conceituais, apenas pontes possíveis para apontamentos vindouros. Buscou-se o máximo possível o tom prosaico sem sobrecarregar de citações o texto. PALAVRAS-CHAVE: Augusto dos Anjos; Última Quimera; Autofagia Nacional. ABSTRACT: This article was written in an interview tone and structured in fifteen topics. It is intended, with him, no more than to present some elements of a possible reflection between the lyric of the Paraíba poet Augusto dos Anjos and the current configuration of capitalism. Wide are the conceptual arches, only possible bridges for future notes. It was sought either as much as possible or prosaic without overloading citations in the text. KEYWORDS: Augusto dos Anjos; Last Chimera; National Autophagy.

Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: pedro.magalhaes-7@outlook.com.

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 Tome, Dr., esta tesoura, e... corte Minha singularíssima pessoa. Augusto dos Anjos

A humanidade, que em Homero fora um dia objeto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-se objeto de sua própria contemplação. Sua autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível vivenciar sua própria aniquilação como fenômeno estético de primeira ordem. Walter Benjamin

Por que última quimera? Última, uma modulação da vontade de fim. Heidegger falava de um ser para a morte. Benjamin entrevia na caveira barroca uma ambígua oportunidade: se Deus (o pessoal) está morto, então... cabe elaborar ludicamente o luto. Configurando com a segunda versão, alemã, do ensaio sobre a reprodutibilidade técnica: cabe a passagem do sacrifício da primeira natureza a um jogo de segunda, porque, na segunda, repôs-se, em um patamar quantitativamente qualitativo, o sacrifício da primeira nas condições da segunda. O trabalho como sacrifício, como tripalium, como “comerás com o suor do teu rosto”, encontrando uma possibilidade lúdica de jogo com o desenvolvimento das forças produtivas: o reino da liberdade, enfim, travado e entrevado pelo ritual de sacrifício mercantil; nem tão ritual, porque a instrumentalização entre meios e fins há muito quebrou a lâmina, a astúcia da razão há muito opera no inconsciente. Um ritual de sacrifício impessoal – objetivado e autonomizado –, impagável e sem descanso, sem trégua e sem sono/sonho: da guerra finita à infinita; da dívida finita à infinita; do eu finito ao eu infinito, sem entraves, narcísico. Última, várias figuras do fim, de uma morte que já ocorreu e, no entanto, não fizemos o devido enterro, o devido luto prático e crítico – e, assim, o Erisícton de Augusto dos Anjos come seus olhos crus no “cemitério dinâmico” do capitalismo, essa doença crônica –, e o cadáver, que já não se esconde no porão, medo, exala seu cheiro sob a forma de figuras, de tipos a um flâneur no tempo do fim, sob o manto do Cristo Redentor, na cidade pós-maravilhosa; tipos como: a senhora K., por volta dos quarenta anos de idade, negra, vinda do interior de Minas, chamando o primeiro que passa de filho na Praça Quinze, sem fazer nexo sua palavra com os fatos; a jovem N., negra, por volta dos vinte e cinco anos, na parada de ônibus do Amarelinho da Glória, assustada e, assim, assustando, fazendo pessoas se afastarem dela, enquanto um olha para o outro querendo saber quem mais está desempregado, como se se tratasse de uma doença contagiosa. Ambas moradoras de rua, ambas padeciam do esquecimento e a fantasia parecia ser a única maneira de simbolizar o trauma do real abandono, nosso realismo fantástico encontrado nas ruas: quimera, quiprocó e quimera. Várias

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 figuras do fim: último ciclo de modernização nacional, o petista; última etapa da pré-história humana. A nossa pretendida dialética centro-periferia.

Dialética centro-periferia? Marx diz, n'O capital, que a imagem do país mais desenvolvido é a imagem futura do menos desenvolvido. Noutras palavras, o centro não é mais que a imagem futura da periferia. De modo geral, o que no século XIX se apresentou como autocrítica da ilustração europeia, sobretudo com os três divisores de água, Marx, Nietzsche, Freud, consistia em mostrar um outro lado do pretenso universalismo esclarecido, no caso, a exploração do trabalho (desigualdade e desequivalência) e a alienação mercantil (estranhamento e fetiche); o inconsciente pulsional; a afirmação ou negação da vida como fator originário das verdades e valores morais. Havia um fundo falso que era preciso dar conta. No interior da “tradição crítica” brasileira – tríade Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Celso Furtado, apresentada por Antônio Cândido no segundo prefácio de Raízes do Brasil –, retomando particularmente o Roberto Schwarz de Ao vencedor as batatas, no seu ensaio As ideias fora do lugar, tratava-se de, a respeito do descompasso entre centro e periferia, ou entre metrópole e colônia, situar criticamente o enunciado inicial: o país menos desenvolvido é a verdade do país mais desenvolvido; a periferia, a colônia carrega consigo a verdade, negativa, da metrópole, do centro. Ou, ainda, o lugar de relevância da vida nacional, seu lugar dentro de uma pretensa história universal, é sua contribuição para a crítica, como momento da verdade, do discurso centrista, europeu, esclarecido, universalista. Autocrítica e crítica, em resumo. Talvez, neste momento – século XXI –, trate-se de revertermos as reversões desta dialética, seja na direção centro-centro, centro-periferia, periferia-centro: a imagem do país menos desenvolvido é a imagem futura do mais desenvolvido. E, assim, assinalamos a marca do “nosso tempo” (Drummond): a regressão; o progresso experimentado como refluxo, em que a imagem mais arcaica das relações burguesas, a acumulação primitiva e o despotismo (sob a figura do estado de exceção, de sítio ou de emergência), se apresenta como a verdade, crítica, de nossa experiência mais contemporânea. Nem centro, nem periferia, diriam o Subcomandante Marcos e os zapatistas.

Como situar a noção de autofagia nessa dialética centro-periferia? Há um certo consenso em assinalar a catástrofe (René Girard), a urgência ou emergência (Paulo Arantes), como paradigma do tempo presente, um presente perpétuo, como diria Guy Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 Debord nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo: um presente perpétuo sob o signo da catástrofe e da emergência/urgência. Segundo Benjamin, no Prólogo epistemológico-crítico do Drama barroco alemão, o extremo – teoria também da melancolia – é o momento da verdade e, assim, podemos dizer que torna-se também o trivial, na medida em que esse extremo, a exceção, se apresenta como regra da história humana. Agamben dá sequência no argumento ao dizer que, em Auschwitz, o campo ainda era uma experiência fora do enquadramento e, assim, isolável num topos, num lugar; essa exceção tornarse-ia regra tendencial até esse mesmo campo tornar-se, hoje, o paradigma dominante e generalizado da política. São diagnósticos da extremidade do mal. Mas existe um realmente determinante, o da contradição, do descompasso entre forma e conteúdo no interior da produção capitalista, que Marx assinala como contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção: a tendência deste desenvolvimento de reduzir a um mínimo a substância daquela relação, o tempo de trabalho. Essa é a contradição interna, a autocontradição, por que não a autofagia – trabalho morto devorando o trabalho vivo sem nos libertar –, inerente ao capital. Essa contradição interna, por sua vez, precisa de uma compensação externa; assim, tal compensação vem a aparecer como (i) aumento da produtividade – mais valia relativa; (ii) redução dos salários – em determinados contextos; (iii) expansão colonial – acumulação prévia – e neocolonial – novos mercados, compensação da queda da taxa de lucro pelo aumento da massa de lucro; mas, sobretudo, (iv) a guerra e a especulação – crédito-dívida, capital financeiro, fictício – se apresentam como dois fatores determinantes dessa compensação, que pode receber, ironicamente, o nome de antropofagia.

E onde fica Augusto dos Anjos nesse cenário? Seria preciso situar esses elementos não na passagem biopolítica de Auschwitz ao 11 de Setembro, mas econômico-política da crise de 1929 a 2008. Augusto dos Anjos e sua lírica, e não Machado de Assis e sua prosa, parece ser o fantasma capaz de figurar essa opereta. Existe um problema de forma, outro de conteúdo, e ambos articulados com realidade social e forma literária. Do ponto de vista da forma literária, a relação prosa e poesia, por que optar por uma e não outra; do ponto de vista da realidade social, centro e periferia, modernização e atraso. Mas isso é uma questão que merece uma atenção própria noutro momento.

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 Em resumo, parece que a prosa do mundo aproximou-se mais da lírica de Augusto que do mundo da prosa de Machado. Se estamos lidando com a falência de uma forma-de-vida (Giorgio Agamben), se estamos lidando com a decomposição e autofagia capitalistas (Anselm Jappe), parece que aquilo que aparecia apenas como elemento cosmológico, cosmo-agonia segundo Lúcia Helena, ou mesmo subjetivo, Eu, aquela sua “estranha esgrima” (Charles Baudelaire) com a morte, o verme, a putrefação, as visões de sangue, o urubu, o corvo, enfim, parece ser a paisagem própria, a alegoria que melhor apresenta o “sentimento do mundo”, que melhor capta a “precária síntese” do “nosso tempo” (Drummond). Benjamin, por exemplo, que tomou As flores do mal de Baudelaire como alegoria do século XIX, nos ajuda, metodologicamente, a pensar que Augusto dos Anjos não é em si mesmo a melhor leitura de um tempo e de uma conformação social, mas apenas quando seus versos reagem com o momento em que o télos do progresso falha, sendo como o recalcado que retorna; assim, Benjamin diz, no seu ensaio As afinidades eletivas de Goethe, que o distanciamento temporal é uma condição para a crítica, esse o seu conceito de crítica retirado do primeiro romantismo alemão: o teor de coisa (Sachgehalt) da obra torna-se objeto da reflexão; e o distanciamento, o desdobramento temporal (filosofia da história) é elemento determinante nesta tarefa.

Por que poesia e não prosa? Há uma resposta quanto à natureza dos gêneros; no mundo helênico antigo, a prosa comunicava a história, mas num relato escrito entre dominantes, tendo, portanto, um caráter estatal, vertical; a poesia não estava na escrita, estava na oralidade e, assim, atravessava as camadas populares, além de carregar consigo uma dimensão sublime, inspirada, enquanto a prosa tinha um teor laico. A poesia estava ligada, assim, à épica, às grandes narrativas. A prosa, no sentido que o mundo moderno lhe deu, não como relato do poder, mas como forma de comunicação própria de uma época fundada sob a separação do indivíduo de qualquer comunidade, sendo-lhe, por isso, mais adequada, tem caráter de drama privado. Ainda que em Dom Quixote possamos encontrar o impasse fundamental da cultura no mundo moderno, o da separação entre arte e vida, sonho e realidade, é a poesia moderna – e em alguns uma prosa poética – que apresenta um “programa” de “mudar a vida” (Arthur Rimbaud). Em Marcuse, n'O homem unidimensional, a poesia aparece com o significado dialético de fazer o não-ser vir a ser; entre os situacionistas (Internacional Situacionista), toda revolução nasceu Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 da poesia (All the kings men), ela “Põe em jogo as dívidas da história que não foram pagas”; Maiakovski dizia que sem forma revolucionária não há poesia revolucionária; em solo brasileiro, o elemento poético é determinante na viravolta do conceito de antropofagia; e Benjamin tomou Baudelaire como epicentro das descrições das fantasmagorias de seu tempo. É como se a poesia, algo mais do que versos, fosse de encontro à prosa do mundo, e a tensionasse. Mas isso diz pouco, ainda é preciso situar o problema prosa-poesia na dialética centro-periferia.

Retomando Augusto... É que o problema anterior tem algo do seguinte: é como se, segundo Roberto Schwarz, o romance machadiano fosse a melhor configuração, a melhor unidade literária da eclética e ambígua experiência nacional, sobretudo porque situa-se na sua capital, o Rio de Janeiro, sobretudo porque Machado viveu a ascensão social (elemento sociológico da transição da primeira à segunda fase), mas principalmente porque foi na prosa que a “unidade [precária] do diverso” foi possível; algo que Benjamin pode encontrar, do ponto de vista do centro europeu, Paris, na lírica de Baudelaire – “Mas isso ainda diz pouco:/ se ao menos mais cinco havia/ com nome de Severino/ filhos de tantas Marias/ mulheres de outros tantos,/ já finados, Zacarias,/ vivendo na mesma serra/ magra e ossuda em que eu vivia”. A questão que se apresenta a nós é: a opção por Augusto, de um modo ainda precário, parece ser, hoje, mais fecunda do que encontrar na dialética paternalismo-ilustração os tipos da nossa configuração social. Optar por Augusto é distinto, por exemplo, de optar pela prosa. É como se aquilo que na sua obra poderia ser apenas intuível se tornasse, hoje, algo de bastante perceptível.

Sobre alguns temas na lírica de Augusto. Na Dialética negativa, Adorno ressalta a importância de um real irredutível para o pensamento dialético; de modo geral, a prosa do ensaio tem algo a ver com essa compreensão de uma epistemologia marcada pelo tensionamento com um real irredutível. Falar de Augusto para, com ele, tratar da decomposição capitalista tem algo nesse sentido. O pano de fundo que nos interessa retirar dele é duplo: o niilismo como contrapartida do cientificismo, de seu desencanto do mundo; a figuração alegórica, barroca, da morte como algo histórico, e não meramente natural. É preciso casar esse apontamento com outro: a inscrição da culpa como destino e sua relação com o sacrifício, particularmente no interior da crise capitalista contemporânea. Essa é a constelação. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 Os motivos, para isso, são encontrados: no Poema negro e no Monólogo de uma sombra. No primeiro, a figura do poeta e de seu ofício é central. No segundo, a sombra se apresenta como arcaico. Seguindo adiante, nas Cismas do destino encontramos uma figura do medo e do destino, já de saída: “Recife. Ponte Buarque de Macedo./ Eu, indo em direção à casa do Agra,/ Assombrado com a minha sombra magra,/ Pensava no destino e tinha medo!”. Em Budismo moderno encontramos o par ciência-niilismo que pode nos ser fecundo do ponto de vista da crítica: “Tome, Dr., esta tesoura e... corte/ A minha singularíssima pessoa”. Aqui, a ciência objetifica o sujeito e isso pode ser pensado em três níveis: i) a viravolta paradigmática da medicina de urgência como modelo político (Paulo Arantes); ii) dessubstancialização e esvaziamento subjetivo do “budismo moderno” mercantil; iii) nós somos também o médico, o doutor, a crítica e a clínica a cortar Augusto, encontrar nele narcisismo (Eu), niilismo, melancolia e, assim, diagnosticarmos o caráter de decomposição do cadáver das relações mercantis – a marteladas, a fórceps ou ao bisturi, faremos essa estranha intervenção cirúrgica? Ao bisturi seria uma delicadeza despudorada, certamente. No mesmo poema temos, ainda, a figura do “Ah, um urubu pousou na minha sorte!”: o corvo, em todas as suas nuances, e a paisagem de urubus sobre as jangadas na orla do Fundão. Mas, sobretudo, a Psicologia de um vencido, sua última quimera e pantera.

E quimera, por que quimera? Fetichismo da mercadoria, o ponto de partida. Se a história humana pode ser compreendida, segundo Robert Kurz, como uma história de relações fetichistas, em que a figura do sagrado ocupava um lugar determinante nas sociedades ditas pré-modernas, esse sagrado torna-se secular no interior das relações modernas, sendo a mercadoria – “nossa velha inimiga” – a célula germinal (Marx) dessa sacralização secular. O fetichismo, segundo Kurz no ensaio Dominação sem sujeito contido no livro Razão sangrenta, pode ser pensado numa articulação entre o conceito de a priori em Kant (i), o de inconsciente em Freud (ii) e a configuração invertida do ser social em Marx (iii); estendendo um pouco mais o assunto, o fetichismo baseia-se em três níveis, ao menos, segundo Anselm Jappe n’As aventuras da mercadoria: projeção, transferência e autonomização. Ora, não é outra a noção de sagrado; sagrado é justamente uma instância que se aparta do todo e a ele se sobressai. O sagrado como as quimeras no percurso da história humana. E inscrito nessa mediação social do sagrado, um terceiro termo que medeia invertidamente as partes, está toda uma história Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 do sacrifício, e por que não uma história da dívida, e assim da culpa, e assim da expiação. Esse é um tema decisivo no último livro de Kurz, Dinheiro sem valor, que se encerra com o capítulo O sacrifício e o regresso perverso do arcaico. No caso, a mercadoria – certamente mediada pelo capital como totalidade negativa – é o arcaico que medeia as relações humanas e seu fetichismo, e seu segredo, é aquele para o qual humanos e natureza tornam-se meros objetos para a sua realização, e hoje cada vez mais sob a forma do descarte e extermínio. É com base nessa noção de sacrifício e regresso perverso do arcaico que precisamos retomar dois textos de Walter Benjamin, O capitalismo como religião e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. De maneira genérica, da noção de capitalismo como (als) religião precisamos retomar: seu caráter ritualístico, sem descanso (permanente) e sem sacralidade; seu caráter impagável, infinito, que nenhuma expiação o encerra, o apazigua – “É a Morte — esta carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo que acha no caminho, come.../ — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o mundo inteiro,/ E o mundo inteiro não lhe mata a fome!” (Poema negro). Do ensaio sobre a reprodutibilidade técnica a relação entre primeira (tendente ao sacrifício) e segunda (tendente ao jogo) técnicas coloca o problema de até que ponto as condições da segunda técnica, no interior do arcaísmo mercantil, atualizam o sacrifício da primeira num patamar high tech e, assim, entramos em uma imagem genérica desse sacrifício: “A humanidade, que em Homero fora um dia objeto de contemplação para os deuses olímpicos, tornouse objeto de sua própria contemplação. Sua autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível vivenciar sua própria aniquilação como fenômeno estético de primeira ordem”. Essa uma possível constelação global da crise.

Qual a relação entre sacrifício e autofagia? Diria que quando Benjamin fala que a “autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível vivenciar sua própria aniquilação como fenômeno estético”, de alguma maneira, é isso que está sendo indicado. Não custa lembrar que, como no ensaio Experiência e pobreza, esse apontamento está tratando da experiência da primeira guerra mundial, na qual o “minúsculo corpo humano” se encontra (se perde) diante de uma batalha técnica de material, retornando sem narrativa, tamanho o trauma. É como se Drummond estivesse certo em seu poema O sobrevivente no livro Alguma poesia: “O último trovador morreu em 1914./ Tinha um nome de que ninguém se lembra mais”. O ponto é: o desenvolvimento das forças produtivas alcançou tal grau de aperfeiçoamento que a “humanidade” encontrou-se com a possibilidade de sua própria autoaniquilação, técnica e Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 estética (caráter contemplativo); com a bomba atômica essa configuração se torna patente. Não à toa ser a segunda guerra mundial o limite de uma guerra entre Estados soberanos; a partir de então a entropia do capital não se escoa mais a uma apoteótica guerra mundial, mas retroage como guerra civil no interior das sociedades nacionais. De par com essa configuração bélica, no terreno do monopólio estatal (e mundial) da violência, está o cerne do problema: o descarte do trabalho humano diante do desenvolvimento técnico, que produzirá o capital fictício como instância compensatória – nossa grande bolha mundial de crédito-dívida, nosso Baal, nosso Moloch, nosso Mamon, nosso Bezerro de Ouro –, como consumo do futuro, e produzirá também uma massa de seres humanos supérfluos, não mais capturáveis nem como exército de reserva. Em resumo, a autofagia do trabalho morto comendo o trabalho vivo tem duplo efeito: descarte humano em larga escala (i), hipertrofia do capital fictício (ii).

Autofagia nacional, enfim. Esse o quiprocó. Em um certo sentido, pensar com Augusto nos leva a perceber que, nele, não há ingenuidade possível, não há um tropicalismo ingênuo (afirmativo), um modernismo ingênuo (afirmativo), uma “alegria como prova dos nove” (Oswald), se assim nos for legítimo colocar a questão; Augusto quase não dá margem a um projeto afirmativo, e isso pode ser, no mínimo, sintomático. Outro ponto é que Augusto está situado no declínio da economia escravocrata e açucareira, sua educação veio deste espólio. Podemos dizer que a República possui nas guerras do Paraguai, externa, e de Canudos, interna, um elemento determinante na construção do militarismo como força modernizadora, seja ideologicamente no positivismo, seja industrialmente de Getúlio Vargas à Ditadura civil-militar de 1964-1985. O espectro desse militarismo é um ponto importante também. Vinculando declínio da economia escravocrata açucareira e dividendos da guerra contra Canudos, é no mínimo sintomático que a origem do termo favela, onde se refugiaram em Exílio – no interior do Reino – os escravos recém-libertos e soldados com promessa de casas próprias, seja proveniente de um morro no interior da Bahia, onde se aquartelou Canudos, a segunda maior cidade do Império, perdendo apenas para a capital nordestina de então, a própria Bahia. Mas o principal problema talvez seja nosso dualismo, nossa interpenetração arcaicomoderno, nosso “arcaísmo como projeto”, nossa autossabotagem e automartírio sacrificial permanente em nome da metrópole, dos grandes centros e de uma elite no momento sem adjetivos e seus caprichos e arbítrios. Falar de autofagia nacional tem esse tom. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

Do capitalismo como religião. A ética protestante dignifica o trabalho e estabelece uma aberta correspondência entre progresso material e benção, predestinação espiritual, ao contrário da conotação cristã negativa do “comerás com o suor do teu rosto”, do tripalium e da usura, ainda que esta não deixasse de possuir terras nem de acumular riquezas com indulgências; e mesmo os mais anacoretas, os religiosos dos mosteiros, deixaram também sua contribuição para o surgimento de um ritual diário baseado num tempo mecânico, quantitativo, hora a hora. Essa religião do trabalho, se assim quisermos chamar, é peça central na modernidade. Falando mais precisamente, é o trabalho, o “dispêndio de nervos, músculos e cérebro humano” (Marx), o sacrificado a um deus secular que tem seu ser no valor, sua essência-fenômeno no dinheiro e seu conceito no capital: D-M-D'. Assim, a dignificação do trabalho é antes sua imolação no altar cotidiano do capital, nos termos de Benjamin (O capitalismo como religião), um culto extremado, sem teologia, sem dogmática, nos seguintes moldes: a) permanente, sem trégua e sem piedade; b) culpabilizador, de caráter não expiatório e universalizante ao ponto de circunscrever “o próprio Deus nessa culpa”; c) oculto, apenas manifesto no ponto máximo, no auge, no extremo da culpabilização. Portanto, segundo Benjamin, o capitalismo tem um caráter cultual em três níveis: permanência, culpabilização, ocultamento. Essa noção do trabalho dignificado como o sacrificado também está fortemente atrelada à experiência das guerras mundiais na primeira metade do século XX. Hoje, na medida de uma consolidação da substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto – elemento autofágico do capitalismo –, a noção de sacrifício vem não apenas com a mobilização exploratória e alienante da força de trabalho, nem apenas com a mobilização das forças produtivas para a guerra, mas sobretudo sob a forma do descarte e extermínio, com clivagens territoriais, de gênero, raça, etnia, daqueles que não podem ser mais sacrificados no ritual do trabalho: desemprego estrutural. Podemos compreender também a partir daqui o elemento da guerra civil, da guerra contra as populações como elemento autofágico.

Três etapas, então, dessa religião: exploração, guerra, descarte. Não necessariamente lineares, mas com uma certa linearidade.

O minotauro global. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 O Minotauro antropófago de Wall Street. Varoufakis, ministro das finanças pelo Syriza na querela grega com a Troika, escreve um livro no qual ele periodiciza o nascimento de um minotauro global da dívida. Após a segunda guerra, no conselho de Bretton Woods acerca dos caminhos que o mundo seguiria a partir de então, há uma polêmica entre Keynes, que defendia um dinheiro mundial sem conotação nacional, e um outro economista em favor dos americanos, que acabam tomando a medida de passarem por cima do conselho, na medida em que eram a potência nacional vitoriosa, militar e financeiramente, e estabelecem o dólar como dinheiro mundial lastreado em ouro. Essa etapa irá fundar os trinta gloriosos (1945-1975), época de ouro do capitalismo em termos de estado de bem-estar social, operando a potência global numa dinâmica superavitária (i). Essa época de ouro declinou, diz Varoufakis, nos anos de 1970, conjuntura de reestruturação produtiva, microeletrônica, retirada do padrão-ouro do dólar (1971), crise do petróleo (1973), e a potência EUA faz nascer o tal do Minotauro, com alguns serviçais, sendo o touro de Wall Street – “preferiria não”, poderia dizer novamente Bartleby a essa altura – sua representação visível. Nessa guinada de época, entra em jogo o elemento da desregulamentação financeira e uma dinâmica deficitária (ii) da potência mundial que, de uma maneira que ainda não conseguimos apontar, faz o mundo inteiro pagar sua dinâmica deficitária. O touro de Wall Street tem, assim, uma natureza antropófoga: “É a Morte — esta carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo que acha no caminho, come.../ — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o mundo inteiro,/ E o mundo inteiro não lhe mata a fome!” (Poema negro). O estouro dessa dinâmica se dá nos anos de 2008, com a crise financeira advinda das hipotecas no setor imobiliário, e desde então o cenário do mundo passa a ganhar novos contornos, teríamos que inserir, no mínimo, China e Rússia no jogo.

A sociedade autofágica. Varoufakis parece não ter uma teoria do valor de fundo, sua análise é bastante fenomenológica. Encontraremos esse elemento em falta na crítica do valor (Wertkritik), em Robert Kurz e Anselm Jappe, por exemplo. Apontaremos, mas não desenvolveremos aqui, os dois circuitos da dívida que Kurz nos diz – na coletânea de ensaios sobre poder mundial e dinheiro mundial: i) do Pacífico, entre EUA e China; ii) o da Europa, entre Alemanha credora e os países sulistas endividados: “Cresce o buraco negro entre a criação de valor real no passado e o futuro ficticiamente antecipado. Esta construção de uma conjuntura de déficit global tem dois eixos principais: um maior, o circuito de déficit Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 do Pacífico, entre China/Ásia Oriental e Estados Unidos, e um menor, entre a Alemanha e o restante da União Europeia, ou melhor, a Zona do Euro”. São apontamentos que ainda precisam de mais atenção. Particularmente Anselm Jappe, depois de apontada as principais contribuições da Wertkritik acerca de crise e crítica no seu livro As aventuras da mercadoria, insiste em pensar a correspondência subjetiva à dinâmica autofágica do capitalismo – que ele retoma a partir de um outro mito, o de Erisícton, um rei que devorou a si mesmo – a partir do paradigma narcísico-fetichista, epicentro do seu livro A sociedade autofágica. Longa, dura caminhada apresentar seu percurso (i) acerca de Descartes, Kant, Sade, Stirner, Quincey como tipos subjetivos de um narcisismo moderno e seus contornos em vias de consumação em nosso tempo, ou seja, o percurso que leva a um diagnóstico do sujeito não mais à Ética protestante e o 'espírito' do capitalismo (Max Weber), paradigma neurótico, mas a um paradigma narcísico que passa a ser retomado nas discussões psicanalíticas desde os anos de 1970. Longa, dura caminhada (ii) o percurso das posições acerca do narcisismo. Longa, dura caminhada (iii) percorrida por Jappe de Freud a Cristopher Lasch, passando por Fromm, Reich, Marcuse, enfim, por aqueles que não se limitaram a compreender o paradigma narcísico como privado, meramente clínico, mas público, social, marca de uma forma histórica de subjetividade. A contribuição de Jappe será inserir a relação do narcisismo com o fetichismo da mercadoria e, assim, encontrar a chave do niilismo autofágico em curso.

As ideias fora ou em seu devido lugar? Walter Benjamin pensa o mundo, com Baudelaire, a partir de Paris como a capital do século XIX. Roberto Schwarz escreve em Paris, exilado no contexto ditatorial brasileiro, o ensaio As ideias fora do lugar, contido no livro sobre José de Alencar e a primeira fase do romance machadiano: Ao vencedor as batatas; está, nele, o problema do descompasso entre centro e periferia e, particularmente, que forma social e ideológica – mediação do favor, paternalismo esclarecido –, literária – romance machadiano – e subjetiva – volubilidade de caráter consolidada na segunda fase, com Brás Cubas – nos é própria na passagem do século XIX ao século XX. José Ramos Tinhorão escreve, no Rio de Janeiro, um texto intitulado A província e o naturalismo, no intuito de pensar como, no Ceará-Fortaleza, no mesmo século XIX, uma geração de escritores das camadas médias – a partir dos anos 70 – encontra no naturalismo sua principal forma literária, tendo muitos deles ido estudar na Escola do Recife, ou seja, na capital da metrópole da província Fortaleza, Recife; ora, é a experiência da seca o principal elemento que estabelece as continuidades e rupturas dessa geração, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23 e marca seu tom. Descompassos por descompassos, descontinuidades por descontinuidades, centros e periferias relativos para chegar ao trato de um paraibano chamado Augusto dos Anjos, e dar-lhe o trunfo lírico – nem tão triunfal – do Abgesang das relações de mercado contemporâneas, sua política da morte tendo como raiz a voracidade da acumulação de capital, que gravita no entorno de um vazio chamado valor.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

MODERNIDADES ALTERNATIVAS. DA CRISE DO PÓSMODERNISMO ATÉ À TRANSMODERNIDADE DE ENRIQUE DUSSEL Balínt Urbán1

RESUMO: Partindo da crise e da crítica do pós-modernismo, presente estudo, depois de apresentar um panorama de propostas teóricas da reflexão contemporânea sobre a modernidade, pretende dar uma leitura da teoria da transmodernidade de Enrique Dussel. O filósofo argentino-mexicano elabora um modelo original da modernidade da perspectiva do Sul subalterno que além de desconstruir os princípios eurocêntricos da modernidade singular propõe uma reavaliação crítica da história européia e do colonialismo. Deste modo, a transmodernidade de Dussel, articula-se como um caso exemplar das modernidades alternativas cujo objectivo é criar um diálogo entre o pensamento ocidental e as epistemologias marginais. PALAVRAS-CHAVE: modernidade, pós-modernismo, transmodernidade, epistemologias do Sul, Enrique Dussel

modernidades

alternativas,

ABSTRACT: Departing from the critic of post-modernism this study focuses on the theory of transmodernity elaborated by the Argentinian-Mexican philosopher, Enrique Dussel. In my opinion Dussel’s approach on modernity can be understood from the perspective of alternate modernities and their critical stance towards the Eurocentric narrative of modernity. Transmodernity provides not only a complex ideology to deconstruct the singular-occidental character of modernity but also

1 Universidade Eötvös Loránd de Budapeste. E-mail: urbanbalintmail@gmail.com

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 opens up a space where emancipation and local epistemologies can interact in order to create a new, alternative form of modernization. KEYWORDS: modernity, epistemologies of the South

post-modernism,

alternative

modernities,

transmodernity,

Apesar da tese vastamente propagada e aceita sobre o fim definitivo da modernidade enquanto complexo período histórico-político e econômico-social, ideologia e epistemologia particular de origem e inspiração europeia, parece que a cultura mundial não se quer separar do paradigma do moderno que continua fazendo parte dos modelos descritivos destinados para interpretar o estado atual das sociedades e dos sistemas econômicos vigentes. „Modernist culture has come to penetrate the values of everyday life; the life-world is infected by modernism.”2 Formulou um dos principais pensadores do debate sobre o desfecho da modernidade nos anos oitenta do século passado, enfatizando a penetração incondicional da vida pelas mais diversas manifestações da modernidade, supondo uma indissociabilidade evidente entre a vida e a própria máquina metafórica da modernidade. Portanto, ainda hoje, as mais diversas tentativas de definição com a ajuda das quais pretendemos compreender a complexidade dos fenômenos socioeconômicos e tecnológicos da era contemporânea, dum modo ou outro, se relacionam com a grande narrativa da modernidade, e procuram inventar novas formas alternativas para continuar, superar, criticar, reposicionar ou simplesmente expandir a herança da própria modernidade histórica, remetendo-nos para a acima referida inseparabilidade ontológica da humanidade do paradigma moderno. O facto de que a maioria dos modelos sintéticos das últimas décadas que tentaram formular respostas à questão da transformação radical do espaço socioeconômico nos finais do século XX e no início do novo milénio, define-se em relação à modernidade clássica (classical modernity)3, torna-nos evidente por um lado a viabilidade da tese sobre a impossibilidade de conclusão e de terminação do projeto emancipatório moderno, defendido entre outros por Jürgen Habermas4 e Anthony Giddens,5 e por outro lado revela uma certa obsessão cultural com o paradigma da modernidade que assombra a consciência das sociedades e dos sujeitos já há vários séculos.

2 HABERMAS, Jürgen. Modernity – an incomplete project. In: FOSTER, Hal (org.). The Anti-Aesthetic. Essays on Post-modern Culture. Port Townsend-Washington: Bay Press, 1983, p. 6. 3 PEUKERT, Detlev. The Weimar Republic: The Crisis of Classical Modernity. New York: Hill & Wang, 1992. 4 HABERMAS, 1983, pp. 12-13. 5 GIDDENS, Anthony. The Consequences of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1996, pp. 47-48.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 Uma série de autores que por motivos diferentes manifestaram uma certa aversão para com o paradigma popularizado e vastamente usado do pós-moderno enquanto estado socioeconômico e cultural do capitalismo tardio,6 sugeriu e elaborou matrizes distintas para substituir o pósmodernismo e para suprir suas falácias. Enquanto Anthony Giddens compartilhando as mesmas premissas com Jürgen Habermas acerca do caráter incompleto do movimento emancipatório, fala sobre uma modernidade tardia (late modernity) enquanto uma fase autêntica do projeto moderno que se baseia na separação do tempo e do espaço, no desencaixe das instituições sociais e na apropriação reflexiva do conhecimento,7 Gilles Lipovetsky opta pelo termo da hipermodernidade (hypermodernity) e define-a como o segundo período moderno ou o próprio cumprimento total do projeto capitalista em cujo centro se encontra o conceito do excesso8 (daí a preferência pelo prefixo –hiper em vez do prefixo –pós que sugere a conclusão dum certo tipo de desenvolvimento). Zygmunt Bauman cunha o conceito da modernidade líquida (liquid modernity) para referir à substituição da antiga solidez das instituições, formas de produção, relações interpessoais, etc. por uma incerteza total e desconcertante,9 e Marc Augé de acordo com as bases teóricas de Lipovetsky, no seu livro Non-Places – Introduction to an Anthropology of Supermodernity elabora uma teoria da supermodernidade (supermodernity) enfocada na expansão excessiva das fronteiras do tempo, do espaço e da individualidade e que apresenta como o outro lado mais positivo do pós-modernismo niilista-desconstrucionista.10 Tanto Lipovetsky como Bauman e Augé tomam como ponto de partida nas suas análises o fenômeno da aceleração incondicional e a consequente extremização do processo moderno. Para eles o desenvolvimento e o movimento da modernidade considera-se um facto inquestionável o que os leva para rejeitar a suposição do fim definitivo do projeto iluminista e a conclusão do progresso moderno explicado duma posição nietzschiana por Gianni Vattimo. 11 Como Bauman enfatiza As time flows on, ‘modernity’ changes its forms in the manner of the legendary Proteus… What was some time ago dubbed (erroneously) 'post-modernity' and what I've chosen to call, more to the point, 'liquid modernity', is the growing conviction that change is the only permanence, and uncertainty the only certainty. A hundred years ago 'to be modern' meant to chase 'the final state of perfection' -- now it means an infinity of improvement, with no 'final state' in sight and none desired. 12

6 JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 2001. 7 GIDDENS, 1996.; vide também LUVIZOTTO, Caroline Kraus: Modernidade e modernidade tardia. In: LUVIZOTTO, Caroline Kraus: As tradições gaúchas e sua racionalização na modernidade tardia. São Paulo: Editora UNESP, 2010, pp. 60-61 (53-63) 8 LIPOVETSKY, Gilles. Hypermodern Times. Cambridge: Polity Press, 2005, pp. 31-32. 9 BAUMAN, Zygmunt. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2012. 10 AUGÉ, Marc. Non-Places – Introduction to an Anthropology of Supermodernity. London-New York: Verso, 2000, pp. 24-37. 11 VATTIMO, Gianni. La fine della modernitá. Milano: Garzanti, 2011, p. 176. 12 BAUMAN, 2012, viii.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 Nas esteiras da ideia do caráter proteano da modernidade e da sua transformação permanente Robert Samuel, Alan Kirby e os autores holandeses Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker partem da tese de que o novo milénio trouxe não só o fim do paradigma pós-moderno mas também e a necessidade da sua superação. Todos eles expressam uma forte insatisfação para com o código vigente do pós-modernismo e ressaltam a inadequação deste com o estado socio-cultural e tecnológico do século XXI. As suas propostas, assim, consideram-se reações à crise epistemológica do pós-modernismo e procuram formular modelos alternativos de descrição e de análise. Alan Kirby declara a morte do pós-modernismo e acredita que através da reestruturação dos espaços digitais e da emergência do assim chamado web 2.0 que aposta muito mais na representação visual e na própria criatividade interveniente dos usuários, entramos num período além do reino pós-moderno que podemos chamar modernismo digital (digimodernism). Segundo Kirby o modernismo digital constitui „the dominant cultural, technological social and political expression of our times.”13 Robert Samuel, por sua vez, argumenta que a abordagem e a análise da cultura, da identidade e da tecnologia não se pode basear mais nas dicotomias tradicionais da modernidade como a oposição entre as esferas públicas e privadas, a separação cartesiana do objeto e do sujeito e a relação hierárquica entre o humano e a máquina. As novas formas da mídia e da tecnologia e os modos como a humanidade as usa diariamente exigem um repensamento dinâmico das narrativas correntes da modernidade. Portanto, em vez de ver e interpretar a liberdade individual e a alienação mecanizada como forças sociais opostas, temos que reconhecer que o sujeito contemporâneo recorre à automatização para expressar e desenvolver a sua própria autonomia. Além disso, na opinião de Samuel no caso da automodernidade (automodernity) não se trata da aceleração e da extremização acima descrita do avanço do projeto moderno, senão de uma certa unificação numa estrutura globalizada e altamente tecnicizada das esferas do capitalismo, da democracia e da ciência cuja separacao constitui um dos passos fundamentais do nascimento do discurso da modernidade.14 Finalmente os teóricos holandeses Thimoteus Vermeulen e Robert van den Akker declaram que os tempos pós-modernos do último quartel do século XX que cultivaram um forte relativismo cultural e fizeram da ironia e da paródia autênticos modelos ontológicos e interpretativos tanto do passado como do presente, definitivamente acabaram. Na perspectiva deles o novo milênio caracteriza-se muito mais por uma certa reativação de determinados traços da modernidade clássica dezenovista 13 KIRBY, Alan. Digimodernism: How New Technologies Dismantle the Postmodern and Reconfigure our Culture. London-New York: Continuum, 2009, p. 2. 14 SAMUELS, Robert. New Media, Cultural Studies, and Critical Theory after Postmodernism: Automodernity from Zizek to Laclau. New York: Palgrave Macmillan, 2009, pp. 3-27.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 como por exemplo o idealismo, a esperança, a participação política e ética, e por uma nova disposição pela sensibilidade, pelo sentimentalismo, pelos horizontes pessoais e pela integridade das histórias (vinculadas parcialmente pelo uso incondicional das redes socias).15 Além do pendor de ultrapassar e criticar o pós-modernismo típico dos anos 70, 80 e 90, o que relaciona estes conceitos mais recentes do moderno é a influência e a penetração das novas formas de telecomunicação que redimensionaram não só as interações sociais mas também as formas de perceber, conceber o construir a realidade. Enquanto as grandes teorias do pós-modernismo frequentemente usaram como metáfora principal a televisão e o vídeo,16 estas novas abordagens que propagam a superação do pós-modernismo, tornam-se aos produtos mais recentes da revolução tecnológica, nomeadamente à internet e ao mundo das redes socias, para explicar a transformação da modernidade. Este panorama com as mais diversas tentativas de redefinir e reinterpretar a modernidade, a meu ver, representa dum modo axial a tese inicialmente exposta sobre a obsessão e a inseparabilidade da cultura do paradigma da modernidade. No entanto, a maioria das soluções apresentadas continua a pensar a modernidade como um projeto essencialmente eurocêntrico, ou seja, a modalidade econômico-política e socio-discursiva do espaço simbólico da zona euro-atlântica. O modelo da transmodernidade elaborado pelo filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel constitui um certo contraponto da reflexão eurocêntrica da modernidade, aconselhando uma crítica dos princípios do projeto moderno e uma reformulação deste da perspectiva do assim chamado Sul global, tendo em conta não só a tensão entre o epistemicídio colonial e as formas de saber locais,17 e as possibilidades de construir uma modernidade própria, diferente da versão ocidental consagrada, mas também as contribuições históricas do Sul para a própria modernidade e a para o estabelecimento do seu discurso simbólico. Para entender a argumentação de Dussel e a essência da sua teoria da transmodernidade temos que ver primeiro os paradoxos inerentes da própria modernidade. Segundo as narrativas e teorias principais da modernidade, o padrão substancial do progresso socioeconômico cujos pontos referenciais e constituintes são a reforma religiosa, a revolução

15 VERMEULEN, Timotheus – AKKER, Robin van den. Notes on Metamodernism. Journal of Aesthetics & Culture. Vol. 2., n. 1., 2010. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.3402/jac.v2i0.5677 16 WOODS, Tim. Postmodernism, film, video and televisual culture. In: WOODS, Tim. Beginning Postmodernism. Manchester-New York: Manchester University Press, 1999, p. 194. 17 SANTOS, Boaventura de Sousa – Meneses, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 10.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 científica de Copernico, Galileu e Newton, a filosofia cartesiana do sujeito, a corrente cultural do Iluminismo, a revolução industrial, a emergência do capitalismo enquanto sistema econômico dominante, a organização burocrática dos estados e a crescente desencanto do mundo e o controle biopolítico das sociedades através das forças invisíveis do bio-poder, tem a ver com uma consciência e uma história exclusivamente européias. O ponto comum dos fenômenos acima-referidos, sem qualquer dúvida, é o funcionamento duma certa racionalidade teleológica – Zweckrationalitat na formulacao de Max Weber18 – que penetra até medula todas as esferas da experiência e da realidade partindo da ciência até à economia e à sociedade. O sujeito moderno, tanto como a ciência, a tecnologia e a política modernas, está baseado na crença incondicional na razão instrumental e nas suas potências inquestionáveis de conhecer, conceber, interpretar e controlar.19 No entanto, já durante o período da modernidade clássica do século XIX, surgiram algumas dúvidas quanto a essa racionalização total do ser e da dominação absoluta da razão que fazem da modernidade um fenômeno bastante paradoxal. Por um lado, a complexidade das esferas ontológicas, epistemológicas e discursivas envolvidas com o projeto moderno produz uma complexidade extensa dentro da própria dinâmica do moderno que nos permite falar não de só diversas fases cronológicas como modernidade precoce (early-modern age/frühe Neuzeit), modernidade clássica e modernidade tardia, mas – seguindo a lógica do título da monografia magistral de Matei Calinescu Five Faces of Modernity20 – também de faces diferentes que refletem certas posturas ideológicas. A metáfora antropológica de Calinescu permite-nos, então, fazer distinções nítidas entre as faces diferentes da modernidade. Dilip Gaonkar, por sua vez, enfatiza uma dualidade primordial da narrativa moderna que segundo ele lembra as duas faces de Jano, ou seja, a modernidade tem um lado afirmativo, positivo e emancipatório, mas ao mesmo tempo dispõe de um outro lado sinistro, cruel e dominador. The bright side of societal modernization anticipated by Enlightenment philosophers (…) refers to the palpable improvement in the material conditions of life as evident in economic prosperity, political emancipation, technological mastery, and the general growth of specialist knowledge. The dark side refers to the existential experience of alienation and despair associated with living in a disenchanted world of deadening and meaningless routine. This is the Sisyphean world of repetition devoid of a subjectively meaningful telos.21

18 WEBER, Max. The Vocation Lectures. Indianapolis-Cambridge: Hackett Publishing Company, 2004. 19 CASCARDI, Anthony J. The Subject of Modernity, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 16-17. 20 CALINESCU, Matei. Five Faces of Modernity. Durham: Durham University Press, 1987. 21 GAONKAR, Dilip Parameshwar. On alternative modernities. In: GAONKAR, Dilip Parameshwar (org.). Alternative Modernities. Durham-London: Duke University Press, 2001, p. 9.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 Entre os aspetos mais negativos do avanço moderno Gaonkar menciona a alienação e o tédio produzidos pelo desencanto e pela burocratização do mundo, descritos ambos amplamente por Weber. O que o autor do estudo não refere é a própria perversão da razão e da abordagem racionalizante da realidade. Estas constituem a base duma certa crítica da modernidade que surge depois da Segunda Guerra Mundial, da experiência do terror absoluto dos campos de extermínio e das câmaras de gás. Na tradição do pensamento européia foi provavelmente o filósofo alemão, Martin Heidegger que numa palestra sua proferida alguns anos após o fim da guerra, falou do Holocausto como de um projeto industrializado, como de uma fábrica de morte. Giorgio Agamben no terceiro volume da série Homo Sacer em que escreve sobre a catástrofe do Holocausto e as suas consequências socio-culturais aponta que „ad Auschwitz non si moriva, venivano prodotti cadaveri. Cadaveri senza morte, non-uomini il cui decesso è svilito a produzione in serie”22 Ou seja a tecnicização e a industrialização que constituíam os eixos principais da modernidade e em princípio serviam a emancipação da humanidade, passaram a ser usados e abusados para cumprir objectivos mais sinistros, para realizar aquilo que antes era completamente impensável: o assassinato racionalmente organizado de milhões e milhões de pessoas. Sem qualquer dúvida, a crítica mais elaborada desta faceta macabra da modernidade foi desenvolvida no livro de Adorno e Horkheimer publicado sob o título A dialética do Esclarecimento. Embora Adorno e Horkheimer façam uma avaliação crítica do Iluminismo, a sua argumentação pode ser aplicada sem problemas para a grande narrativa da modernidade, sendo o Esclarecimento eminentemente inseparável do discurso moderno e às vezes até identificado com ele.23 O que Adorno e Horkheimer declaram logo no início do livro é que o próprio discurso ideológico do Esclarecimento na verdade se define como uma autêntica construção totalitária.24 Na análise deles é a própria razão moderna e a ocupação gradual mas quase completa da realidade por ela que faz funcionar a lógica perversa do Terceiro Reich e a organização sistemática do genocídio. Desta forma, aquela razão em que o Século das Luzes colocou todas as esperanças para emancipar a humanidade, junto com a tecnologia se tornou afinal no próprio destrutor dessa mesma humanidade. Nas esteiras das teses de Adorno e Horkheimer sobre a dialética do Esclarecimento e a perversão da razão moderna, Zygmunt Bauman falando já diretamente de modernidade e não de Iluminismo, salienta que „the Holocaust was a unique encounter between the old tensions which modernity ignored, slighted or failed to resolve -- and the 22 AGAMBEN, Giorgio. Quel chi resta di Auschwitz. L’archivio e il testimone. Torino: Bollati Boringhieri, 2000, p. 66. 23 GERAS, Norman – WOKLER, Norbert (Org.). The Enlightment and Modernity. London: Macmillan Press, 2000. 24 ADORNO, Theodor Wiesengrund – HORKHEIMER, Max. Dialektik der Aufklärung. Philosphische Fragmente. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2006, p. 12.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 powerful instruments of rational and effective action that modern development itself brought into being.”25 O pensador polonês, na verdade, aprofunda de uma perspectiva weberiana as idéias dos filósofos da escola de Frankfurt e analisa a relação íntima entre o desenvolvimento da civilização moderna, a revolução industrial, o estabelecimento das instituições burocráticas públicas e a tragédia do Shoah, afirmando que o extermínio industrializado dos judeus foi o fruto orgânico das sociedades modernas e que nele se revela uma certa verdade da modernidade (truth of modernity).26 Uma outra anomalia da modernidade que dum certo modo se liga às teses críticas acima expostas é revelada por Charles Taylor. O filósofo canadiano distingue dois modelos principais e paralelos da modernidade: um modelo cultural e particular e um outro modelo aculturado e universal. Dos dois conceitos aquele que conseguiu se afirmar como a narrativa primordial e dominante da modernidade é a versão aculturada o que, na opinião de Taylor, tem a ver com o facto que a ideologia emancipatória e salvacionista da modernidade na verdade nasceu da cultura cristã que desde o início se tinha inscrito num horizonte eminentemente universal27 (basta só lembrar as cartas de São Paulo sobre as pretensões universais da expansão da fé e do catolicismo, palavra cuja etimologia grega aliás se refere à própria universalidade) e depois desenvolveu-se sob a égide universalista e humanista do Iluminismo. Esta variante aculturada da modernidade quer eliminar as diferenças religiosas, epistemológicas e culturais entre as mais diversas regiões do mundo e pretende criar um mundo homogêneo e universal baseado nos mesmos valores ideológicos, nas mesmas instâncias políticas, nas mesmas tecnologias de produção e nas mesmas estruturas socioeconômicas. (…) traditions impede development. Over against the blazing light of modern reason, all traditional societies look alike in their immobile night. What they hold us back from is ‘‘development,’’conceived as the unfolding of our potentiality to grasp our real predicament and apply instrumental reason to it. The instrumental individual of secular outlook is always already there, ready to emerge when the traditional impediments fall away. Development occurs through modernization, which designates the ensemble of those culture-neutral processes, both in outlook (individuation, rise of instrumental reason) and in institutions and practices (industrialization, urbanization, mass literacy, the introduction of markets and bureaucratic states) which carry us through the transition. This outlook projects a future in which we all emerge together into a single, homogeneous world culture. In our traditional societies, we were very different from each other. But once these earlier horizons have been lost, we shall all be the same.28

25 BAUMAN, Zygmunt. Modernity and the Holocaust. Ithaca: Cornell University Press, 1989, p. xiv. 26 Idem, p. 6. 27 TAYLOR, Charles. Two theories of modernity. In: GAONKAR, Dilip Parameshwar (org.). Alternative Modernities. DurhamLondon: Duke University Press, 2001, pp. 174-175. 28 Idem, p. 181.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 Fredric Jameson, por sua vez, escreve também dessa versão aculturada da modernidade. Como localiza a essência da modernidade no capitalismo global e na sua expansão mundial, na leitura dele a modernidade, desde a sua germinação, é necessariamente universal e singular, e assim permanecerá para sempre.29 Para o teórico marxista todas as manifestações da modernidade têm a ver com o capitalismo e com as pretensões hegemonizantes do sistema da capital o que não permite o desenvolvimento de modernidades locais que não seguem fielmente o padrão da versão euroatlântica e não cumprem rigorosamente as suas normas. Jameson basicamente rejeita a possibilidade de existência de modernidades diferentes e declara que só pode existir uma modernidade singular (singular modernity) que funciona de acordo com as mesmas leis e princípios por todos os lados.30 Jameson não defende nada a narrativa eurocêntrica da modernidade, senão só constata que apesar das esperanças de questionar e deslocar essa narrativa, ela continua sendo vigente nas dinâmicas econômicas do mundo globalizado. Por isso mesmo, neste ponto vale a pena voltar às ideias de Taylor e Gaonkar que ao contrário de Jameson apoiam a tese da possibilidade de outras modernidades. Taylor, por sua vez, argumenta que as assim chamadas variantes culturais da modernidade como se desenvolveram de tradições e epistemologias diferentes, são (e serão) inevitavelmente diferentes.31 A modernidade como sempre supõe uma base cultural à qual se sobrepõe, e na realidade não se pode livrar da influência desse substrato local. "Each repetition of the sign of modernity is different, specific to its historical and cultural conditions of enunciation"32 Ressalta Homi Bhabha no seu livro The Location of Culture, ou seja, em vez de falar de uma só versão da modernidade em que se refletem os valores culturais, políticos e econômicos do continente europeu e as ideologias do eurocentrismo, teríamos de falar sobre várias modernidades diferentes que seguindo a sugestão de Taylor e de Gaonkar podemos chamar de modernidades alternativas (alternative modernities). Essas modernidades alternativas que desconstroem a narrativa de uma modernidade singular e eurocêntrica apresentam iterações características e regionais da dominante européia. Desta forma, como Matei Calinescu sugere „(…) one should not speak of one modernity, one way or pattern of modernization, one unified concept of modernity which would be inherently universalist and would presuppose universal and uniform standards, independent of temporal and geographic coordinates. If modernity is indeed creative-whether economically as development or, at the other end of 29 JAMESON, Fredric. A Singular Modernity. Essay on the Ontology of the Present. London-New York: Verso, 2002, p. 12. 30 Idem, p. 13. 31 TAYLOR, 2001, p. 182. 32 BHABHA, Homi. The Location of Culture. New York: Routledge, 1992, p. 247.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 the spectrum of possibilities, as growth of knowledge and of insight through unpredictable discoveries- then it cannot but be plural, local, and non-imitative.”33

Luís Madureira, tratando dos casos específicos da modernidade da região do Caribe e do Brasil fala sobre modernidades periféricas ou marginais, e partindo da teoria derridiana ressalta o elemento da criatividade no processo da construção da modernidade nos territórios pós-coloniais. Na interpretação de Madureira, no caso destas modernidades periféricas, temos sempre que contar com um forte potencial crítico que consegue deslocar a narrativa tradicional da modernidade singular euro-atlântica e que é capaz de reescrever os eixos discursivos desta da perspectiva das epistemologias locais.34 A teoria da transmodernidade de Enrique Dussel, por um lado encaixa-se na ordem das modernidades alternativas que propagam a legitimidade e a autenticidade das variantes nao consagradas e nao centrais do avanço socioeconômico e político-cultural, e por outro lado aposta naquele potencial crítico das modernidades periféricas que Madureira realça. O modelo da transmodernidade de Dussel é uma abordagem crítica da modernidade que nasceu duma perspectiva crítica e pós-colonial latino-americana, mas que se aplica para todos os territórios do Sul global que enfrentaram e ainda estão enfrentando a necessidade da modernização e da elaboração de agendas próprias quanto ao estabelecimento e cumprimento do projeto moderno. A inspiração latino-americana da transmodernidade é importante mas não impede o alargamento dela para outras regiões periféricas. No entanto o facto de que no caso da América Latina não se trata só dum conflito dialético entre a cultura indígena e o mundo do colonizador, mas antes de mais, de uma estrutura mais complexa por causa da instituição da escravatura e a forte presença das tradições africanas, faz desta região uma conjuntura especial para a modernidade. „Históricamente, encontramos que la modernidad en Latinoamérica está llena de contradicciones y, por decirlo de algún modo, de paradojas.”35 O objetivo de Dussel com a elaboração da transmodernidade, portanto, é dupla. Quer situar a América Latina – e num contexto mais vasto o Sul periférico – na história mundial, e ao mesmo tempo reinterpretar e reescrever radicalmente a narrativa tradicional desta mesma história mundial. Com essas premissas pretende-se, então, nao só a desconstrução da dialética e da hierarquia entre o mundo euro-atlântico, detentor de uma modernidade singular, mas 33 CALINESCU, Matei. Modernity, Modernism, Modernization: Variations on Modern Themes. In: Symploké, vol. 1., n. 1., 1993, p. 17. 34 MADUREIRA, Luís. Cannibal Modernities. Postcoloniality and the Avant-garde in Caribbean and Brazilian Literature. CharlottesvilleLondon: University of Virginia Press, 2005, pp. 2-5. 35 ANAYA, Mario Magallón. América Latina y la Modernidad. In: Archipélago, n. 62., 2008, p. 46.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 também o questionamento das representações e narrativas do continente europeu que foram sendo construídas desde a modernidade, fazendo deste território não só o dominador simbólico do mundo inteiro, mas também um exemplo autêntico que as outras regiões devem seguir. Deste ponto de vista a empresa de Dussel reflete a influência das teses de Walter Benjamin sobre o conceito da história. Para o filósofo alemão a história não é outra coisa que a própria narrativa interpretativa do poder, dos fortes, dos vencedores que são capazes de construi-la e de dar-lhe sentido segundo as suas premissas políticas e visões ideológicas. O processo histórico é uma mera construção narrativa nas mãos do poder, é uma “presa”, uma certa colonização narrativa do passado. O poder tem a capacidade de construir uma narrativa forte e totalizante com que se apodera do passado, criando dele uma versão única e colonizada. “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo «como ele de fato foi». Significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung).”36 Para podermos chegar ao desmantelamento da visão totalizante da história escrita pela perspectiva dos vencedores, Benjamin sugere escovar a história a contrapelo,37 ou seja, concentrar-se naqueles eventos, manifestações e sujeitos que passaram a ser excluídos da versão oficializada do processo histórico. O próprio Dussel afirma a forte influência do pensamento de Benjamin na elaboração dos seus conceitos: Benjamín con su «mesianismo materialista» y su interpretación de la teología como el enano oculto debajo del tablero de ajedrez del turco, al decir del propio Michel Löwy anticipando la crítica que efectuaría la teología de la liberación latinoamericana, abre nuevos debates (en los que me encuentran preparado, ya que ha sido la orientación de toda mi vida): el elfrentamiento del helenocentrismo filosófico y su desarollo, como eurocentrismo moderno (…).38

Além da profunda insatisfação para com a versão eurocêntrica da modernidade e da narrativa histórica escrita e estabelecida por ela, Dussel, como a maioria dos teóricos mencionados neste estudo, expressa um descontentamento profundo no que diz respeito ao paradigma pós-moderno. O problema de Dussel com o pós-modernismo não é só o niilismo ético, o relativismo e o perspectivismo radical que impossibilitam o estabelecimento de qualquer tipo de identidade ou posição firme mas crítica ao mesmo tempo, mas também o desaparecimento do horizonte da salvação. Além disso, na interpretação do filósofo argentino-mexicano, o pós-modernismo, na verdade, apesar da sua aparente sensibilidade para com o ex-cêntrico, continua sendo uma

36 BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Obras escolhidas de Walter Benjamin. Lisboa:Assírio & Alvim, 2010, p. 11 37 Idem., pp. 12-13. 38 DUSSEL, Enrique. Filosofías del Sur y Descolonización. Buenos Aires: Editorial Docencia, 2014, p. 9.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 construção teórica fortemente eurocêntrica que não faz outra coisa de que repetir o hubris inicial e constitutivo da modernidade singular. Na verdade, a partir da problemática „pós-moderna” sobre a natureza da Modernidade – que, em última análise, é uma visão ainda europeia da Modernidade – começamos a perceber que, o que chamávamos como pós-moderno era algo diferente do que aludiam os pós-modernos nos anos 1980 (ao menos davam uma definição diferente do fenômeno da Modernidade daquela que eu havia entendido a partir dos trabalhos realizados para situar a América Latina em confronto com a cultura moderna observada a partir da periferia colonial). Por isso, sentimos a necessidade de reconstruir a partir de uma perspectiva „exterior”, ou seja, global (nao proviniciana como eram as perspectivas europeias), o conceito de „modernidade” que era – e ainda é – na Europa e nos Estados Unidos, uma conotação claramente eurocêntrica, desde Lyotard ou Vattimo até Habermas e, de maneira mais sutil, Wallerstein – que chamamos de segundo eurocentrismo.39

Dussel, então, chegou ao reconhecimento de que aquilo que nas universidades européias e americanas estava circulando a partir dos finais dos anos setenta sob o rótulo do pós-modernismo, não correspondeu aos seus objetivos, nem constitui uma crítica adequada da modernidade. No seu estudo Un diálogo con Gianno Vattimo: de la Postmodernidad a la Transmodernidad que nasceu de uma troca de idéias fértil com o filósofo italiano, Dussel esclarece que compartilha com Vattimo certos aspectos da sua interpretação da modernidade e do pós-modernismo, mas ressalta que as propostas dele são criticamente insuficientes por não reconhecer a centralidade dos paradigmas epistemológicos europeus.40 Portanto, o que Dussel detecta nos maiores pensadores do pósmodernismo é uma certa cegueira no que diz respeito à periferia e ao papel constitutivo da periferia no processo da modernidade e no nascimento da Europa moderna e colonial, ou seja, o pósmodernismo, dum certo modo, prolonga aquela ignorância total do Sul Global que a modernidade tinha criado no século XVI. A propósito deste levantamento crítico sobre a insuficiência do pósmodernismo em corrigir os defeitos e os crimes da modernidade, Ramón Grosfoguel acrescenta ainda que „enquanto projetos epistemológicos, o pós-modernismo e o pós-estruturalismo encontram-se aprisionados no interior do cânone ocidental, reproduzindo, dentro dos seus domínios de pensamento e prática, uma determinada forma de colonialidade do poder/conhecimento.”41

39 DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretacao a partir da filosofia da libertacao. In: Revista Sociedade e Estado, vol. 31., n. 1., 2016, pp. 56-57. 40 DUSSEL, Enrique. Un diálogo con Gianni Vattimo: de la Postmodernidade a la Transmodernidad. In: A Parte Rei – Revista Filosófica, n. 54, 2007, pp. 16-17. 41 GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. 80., 2008, p. 117.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 Ao lado do discurso eurocêntrico da modernidade e da pós-modernidade, a outra referência fundamental de Dussel é a teoria de sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. Na interpretação do histórico e economista americano a partir da colonização, através da ligação de zonas antes complematente isoladas, testemunhamos a criação gradual de um sistema económico global que envolve na sua dinâmica capitalista a integridade do mundo. De acordo com a lógica do capitalismo o sistema é profundamente hierarquizado e divide-se economica, social e culturalmente em dois territórios principais: o centro onde se concentra e aculuma a capital e a periferia desmesuradamente explorada, ou seja, enquanto o centro euroatlântico do hemisfério norte dispõe de tecnologias avançadas para fabricar produtos sofisticados e complexos, a periferia do Sul participa no funcionamento do sistema como fornecedor de matérias primas e mão-de-obra baratas, sendo explorado permanentemente pelo centro. Core-periphery is a relational concept. What we mean by core-periphery is the degree of profitability of the production processes. Since profitability is directly related to the degree of monopolization, what we essentially mean by core-like production processes is those that are controlled by quasi-monopolies. Peripheral processes are then those that are truly competitive. When exchange occurs, competitive products are in a weak position and quasimonopolized products are in a strong position. As a result, there is a constant flow of surplusvalue from the producers of peripheral products to the producers of core-like products. This has been called unequal exchange. (…) Core-like processes tend to group themselves in a few states and to constitute the bulk of the production activity in such states. Peripheral processes tend to be scattered among a large number of states and to constitute the bulk of the production activity in these states. Thus, for shorthand purposes we can talk of core states and peripheral states, so long as we remember that we are really talking of a relationship between production processes. 42

O estabelecimento do sistema-mundo, sem qualquer dúvida, é um passo fundamental na definição da identidade da modernidade singular, e de um certo ponto de vista, até poder ser interpretado como a dinâmica constitutiva dessa mesma. Para Dussel esse momento da criação de um centro e de uma periferia através do descobrimento do Novo Mundo e da sua colonização é de importância fundamental no que diz respeito à sua visão sobre a modernidade e à crítica dela. O que o filósofo enfatiza é que „la periferia es igualmente creadora de la Modernidad”43 e reconhecendo esta verdade encoberta podemos (e devemos) chegar à revisão e à inversão das dinâmicas culturais e económicas entre o centro e a periferia e à „descoberta de uma nova visão crítica das culturas periféricas, a até mesmo da própria Europa.”44 O ponto de partida dessa revisão e inversão ideológica é a descoberta do Novo Mundo. Para Dussel a descoberta e o consequente

42 WALLERSTEIN, Immanuel. World-Systems Analysis – An Introduction. Durham-London: Duke University Press, 2004, p. 28. 43 DUSSEL, 2007, p. 16. 44 DUSSEL, 2016, p. 56.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 estabelecimento do sistema-mundo profundamente hierarquizado considera-se não só o início cronológico da modernidade, mas também o evento originário que contribui para a constituição da própria identidade da modernidade enquanto discurso triunfante, singular e exemplar.45 O autor localizando o começo da narrativa moderna e a emergência da subjetividade moderna no evento da descoberta das Américas, tenta reescrever as leituras convencionais da modernidade que ligam a germinação e a constituição dela a eventos exclusivamente europeus. Na opinião de Hegel, e na esteira dele para Habermas, os episódios decisivos da formação da identidade moderna são a reforma religiosa de Luther e o surgimento da ética laboral protestante, a corrente cultural e filosófica do Esclarecimento e finalmente a Revolução Francesa e a consequente reestruturação social com consolidação da classe burguesa.46 A estes Jameson acrescenta ainda o nascimento do cogito cartesiano, a revolução científica de Galileo Galilei e a solidificação do capitalismo nas dinâmicas econômicas nacionais e internacionais, e chama a atenção ao facto de que a modernidade sempre supõe o estabelecimento dum novo início e que na verdade existem várias narrativas possíveis do moderno tendo em conta perspectivas, disciplinas e ideologias diferentes. Tudo isso leva Jameson a supor que „modernity is not a concept, philosophical or otherwise, but a narrative category.”47 Sendo categoria narrativa, conceito ou ideologia ou todas estas ao mesmo tempo, na opinião de Dussel, a modernidade não se quer livrar de uma leitura essencialmente eurocêntrica e nem quer reconhecer a importância constitutiva das descobertas e a 37esbloquear37 do sul. Deste modo, como o filósofo húngaro Péter Szakács observa a propósito dos projetos das filosofias de libertacao latino-americanas „A central feature of modernity is that it oppresses, and presents as superseded, the patterns of thought that deviate from the Western definition of rationality. (…) The main goal of the philosophy of liberation, anti- and decolonialism is to emancipate these patterns of thought and to create an intercultural dialogue in which they may participate as equals of Western thought.”48 Dussel na sua crítica da modernidade singular e na sua tentativa de elaborar o seu modelo alternativo, segue estas mesmas propostas da filosofia de libertação e quer reivindicar a dignidade e o lugar do sul na empresa moderna.

45 DUSSEL, Enrique. 1492 – o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 16. 46 HABERMAS, Jürgen. The Philosophical Discourse of Modernity – Twelve Lectures. Cambride, Massachusetts: MIT Press, 1990, p. 17. 47 JAMESON, 2002, p. 40. 48 SZAKÁCS, Péter. Christ versus the llama sacrifice. Rodolfo Kusch’s theological criticism of the colonization of Latin America. In: AUWEELE, Dennis Vanden – VASSÁNYI, Miklós (org). Past and Present Political Theology Expanding the Canon. London-New York, Routledge, 2020, p. 229.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 O pensador da filosofia da libertação começa essa reivindicação através de uma crítica aguda dos dois maiores filósofos da era moderna: Kant e Hegel. Kant, no seu texto lapidar e vastamente analisado sobre o Iluminismo define a essência ideológica do movimento intelectual decisivo do século XVIII como a saída autêntica da humanidade de um estado de menoridade de que ele próprio é culpado e que corresponde a uma certa incapacidade de pensar e agir sem a legitimação de uma autoridade.49 O problema de Dussel com a definição kantiana é que cria uma dicotomia ideológica que com a ajuda de uma metáfora antropológica divide as culturais em dois grupos: em culturas adultas, ou seja emancipadas, desenvolvidas e modernas que conseguiram sair do referido estado imaturo e conseguiram afirmar-se enquanto entidades autónomas, e em culturas infantis, subdesenvolvidas, sujeitas a várias forças e crenças arcaicas.50 Num sentido geopolítico isso quer dizer que o norte iluminado e moderno se considera e se representa evidentemente superior ao sul atrasado e incivilizado. De Kant Dussel vira-se para Hegel e efectua uma leitura crítica do conceito hegeliano da história mundial. A história enquanto autêntico movimento teleológico de desenvolvimento e auto-realização do Geist, no entendimento de Hegel, além da temporalidade conta com uma vertente de espacialidade. A história mundial tem um sentido inquestionável, um sentido abstrato que se resume na ideia da sua própria realização perfeita e a aquisição duma identidade total, mas ao mesmo tempo este sentido se articula também metonimicamente, supondo uma movimentação do oriente em direção ao ocidente. A história mundial, portanto, começa com os grandes impérios no oriente e através dum progresso gradual ao longo dos milénios chega às partes ocidentais do continente europeu onde finalmente cumpre o seu destino. Desta forma, para Hegel, o palco da História mundial (escrito assim, simbolicamente com maiúscula) é o continente europeu, e a 38esbloqu desta mesma História mundial é igualmente 38esbloqu. O Sul, destarte, é completamente excluído da História mundial que se desenvolve no eixo orienteocidente, e o filósofo alemão aplicando a referida metáfora antropológica de Kant declara que a América-Latina junto com a África não podem fazer parte da História Mundial, consideram-se cultural, geográfica e antropologicamente imaturos, ou como Walter Mignolo observou passaram a ser vistos como „places of non-thought”51, onde praticamente não existe pensamento racional, lógico e moderno. O papel de Espanha e Portugal, segundo essa lógica, é secundário e suplementar 49 KANT, Immanuel. Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento” [“Aufklärung”]? In: KANT, Immanuel. Textos Seletos (Edição bilíngue). Petrópolis: Vozes, 1985. p. 100. 50 DUSSEL, Enrique. The Invention of the Americas. Eclipse of “the Other” and the Myth of Modernity. New York, Continuum, 1995, pp. 19-20 51 MIGNOLO, Walter D. The Darker Side of Western Modernity. Global Futures, Decolonial Options. Durham-London: Duke University Press, 2011, p. 119.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 na história e na Europa moderna, e desde o período das descobertas são relegados para um estado semiperiférico. O que Dussel faz não é outra coisa de que um ataque tout court contra esta definição exclusivamente eurocêntrica da Modernidade segundo a qual a singularidade do continente europeu (e sobretudo da sua parte ocidental, germânica e anglo-saxónica) identifica-se com a universalidade mundial. Uma nova visão da Modernidade desconstrói ao mesmo tempo a imagem tradicional e intraeuropéia da empresa moderna, e a narrativa histórica em cujo centro se encontra o continente europeu. O filósofo explica que a data do descobrimento do Novo Mundo deve ser interpretado como o mais autêntico evento fundador da Modernidade porque foi graças a este acontecimento histórico que se tinha criado o já referido sistema-mundo, e o continente europeu conseguiu definirse em face da periferia latino-americana como o centro mais genuíno da civilização mundial.52 A América-Latina descoberta pelos espanhóis e colonizada rapidamente ao lado dos espanhóis também pelos portugueses, passa a ser a primeira periferia da ordem econômico-cultural do mundo e é só em oposição a esta periferia que a Europa se consegue definir como centro, como uma entidade mais moderna, mais desenvolvida, mais civilizada e mais poderosa, numa palavra, como uma cultura inquestionavelmente superior. Segundo Dussel foi só a descoberta do novo mundo e a consequente consolidação do sistema-mundo que fez da Europa centro. Na leitura dele o continente europeu até este evento primordial da Modernidade não se considerava nada o eixo principal das dinâmicas econômico-culturais do mundo, pelo contrário, era mais periférico. Dussel neste ponto entra numa larga análise sobre a 39esbloqu histórica das civilizações asiáticas, africanas, meioorientais e europeias, passando por vários milénios e chega a conclusão de que se contamos a história mundial de uma perspectiva alternativa, o território europeu, na verdade, não tinha papel central no mundo nem cultural, nem economicamente até ao processo da colonização, e a aparência do sistema-mundo moderno. A centralidade e a superioridade europeia, nesta ótica, são meras fantasias simbólicas construídas a partir do momento da afirmação da modernidade e só passaram a ser projectadas para o passado, tendo criado uma narrativa profundamente eurocêntrica da história do mundo. Aquela Europa que partiu nas caravelas para descobrir e colonizar o desconhecido, nas palavras de Dussel, era uma Europa sitiada, fraca e problemática. Da zona do Atlântico, passando pelo Norte da África e pelas costas levantinas, pelos Balcãs até Viena, o

52 DUSSEL, Enrique. Eurocentrism and Modernity. In: Boundary 2, vol. 20, n. 3., 1993, p. 67.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 território europeu estava cercado pelo mundo muçulmano, em comparação com a qual se considerava subdesenvolvida tanto cultural como econômica e cientificamente. La Europa latino-germánica (no la bizantina u oriental) periférica, subdesarollada, arrinconada por el mundo 40esbloqu no 40esbl conectarse com el «mundo antiguo» (el «old world» de Adam Smith), sino por los puertos de la ciudades italianas de donde [os 40esbloquea] dominaban el tráfico del Mediterráneo oriental, y de ahí, por el Egipto fatimita o la Siria antioquena, hacían contacto com Bagdad, o com las caravanas que llegaban hasta China por los desiertos del norte, a la India por Kabul; tambien al norte del Mar Negro hasta Constantinopla, o por el Mar Rojo o el Golfo Pérsico hacia el Indostán y el Mar de la China. Esa Europa sitiada e oscura (…) solo 40esbl 40esbloquear su aislacionismo por el norte (…), o por el occidente: por Portugal e Espana.53

É essa Europa periférica, cercada pelo florescente mundo cultural e econômico do islão que se transformará no centro das dinâmicas globais graças às descobertas, à colonização e ao estabelecimento do sistema-mundo. O nascimento da modernidade, assim, tem a ver com essa separação primordial entre o centro e a periferia, entre um mundo colonizador que se apresenta e representa superior, e um mundo bárbaro, primitivo em estado infantil que precisa da autoridade exterior, europeia para se civilizar. Sem a alteridade cultural, antropológica, política, ética, e econômica do Novo Mundo a Europa moderna não teria podido estabelecer a sua identidade enquanto poder superior e dominador, detentor duma tradição proeminente e mais elevada. „(…) A América Latina, desde 1492, é um momento constitutivo da Modernidade (…). É a outra cara (teixtli em asteca), a alteridade essencial da Modernidade”54, apoiando na qual essa mesma Modernidade e o sujeito moderno dominador e colonizador se criam e constantemente se recriam. O descobrimento, através do qual a Europa fraca e provinciana da Idade Média tardia se transforma no glorioso centro moderno do mundo, é ao mesmo tempo um encobrimento. No processo violento da colonização que dá ao sujeito europeu a experiência de viver uma superioridade evidente em face ao Outro bárbaro, primitivo e subdesenvolvido, a alteridade do outro passa a ser encoberta. O sujeito europeu pretende encobrir tanto cultural e religiosamente como econômica e linguísticamente o outro, impondo-lhe os seus próprios valores e ignorando a legitimidade das epistemologias locais. „A pretensa superioridade do saber europeu nas mais diversas áreas da vida foi um importante aspecto da colonialidade do poder no sistema-mundo colonial/moderno. Os saberes subalternos foram excluídos, omitidos, silenciados e/ou ignorados,”55 paralelamente com a exclusão, omissão, silenciamento e ignorância brutal dos sujeitos indígenas e depois africanos. A

53 DUSSEL, 2014, p. 204. 54 DUSSEL, 1993, p. 23. 55 GROSFOGUEL, 2008, p. 136.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 emergência do ego cogito cartesiano, o modelo mais autêntico da subjectividade moderna, é antecedido pelo ego conquisto, ou seja, o sujeito da modernidade, na verdade é o resultado ontológico do processo da colonização e do encobrimento da alteridade. A situação complica-se ainda mais com a formação do mito da Modernidade, isto é, o sujeito colonizador além de submeter a população indígena a um processo violento de aculturação e degradar o outro à subalternidade, cria o seu próprio mito para legitimar as suas ações e a sua superioridade. Este mito, por um lado, elabora uma narrativa simbólica, segundo a qual no Novo Mundo se produziu uma cultura excepcional do encontro e da convivência harmoniosa das raças. Por outro lado, o mito da modernidade inscreve-se na tradição do ocidentalismo como um mito civilizatório que seguindo a lógica de “o fim justifica o meio”, legitima a crueldade e a violência através do processo emancipatório e civilizatório. A modernização, desta forma, justifica a brutalidade e a desumanidade, porque supõe a emancipação produtiva do sujeito selvagem do seu estado subdesenvolvido. „Nisto consiste o mito da modernidade, em vitimar o inocente (o Outro), declarando-o causa culpável de sua própria vitimação e atribuindo-se ao sujeito moderno plena inocência com respeito ao ato sacrifical. Por último, o sofrimento do conquistado (colonizado, subdesenvolvido) será o sacrifício ou o custo necessário da modernização.” 56 O mito da modernidade, desta forma, efetua uma inversão perversa da culpabilidade, e em vez de culpar o colonizador pela violência extrema, atribui culpa ao inocente pelo seu estado primitivo-infantil. Criase, assim, um paradigma sacrificial irracional, em que é a própria vítima da violência que tem que sofrer e oferecer sacrifícios pela modernização. O que Dussel sugere, nao é outra coisa de que desconstrução radical deste mito tóxico da modernidade, tentando quebrar a sua forca que se sente ainda hoje nas tendências do neocolonialismo. „Assumir a modernidade sem legitimar seu mito. Modernidade não confrontada com a pré-modernidade ou antimodernidade, mas como modernização a partir da Alteridade e não a partir do si mesmo do sistema.”57 A proposta de Dussel com a ajuda da qual o Sul conseguirá se livrar do „hidden agenda and darker side of Western modernity”58 que apesar da descolonização políticoadministrativa continua a assombrá-lo, é o conceito da transmodernidade. A transmodernidade enquanto modernidade alternativa pretende „repensar o mundo colonial/moderno a partir da

56 DUSSEL, 1993, pp. 75-76. 57 Idem, p. 88. 58 MIGNOLO, 2011, pp. 1-27.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 diferença colonial altera[ndo] importantes pressupostos dos nossos paradigmas.” 59 Na opinião de Dussel é preciso livrar-se dos elementos irracionais, cruéis e negativos da modernidade como a opressão, a aculturação, o genocídio e o epistemicídio, é necessário limpar a modernidade desta herança da negatividade que os pensadores da crítica do esclarecimento analisaram em detalhes. No entanto, Dussel acha possível realizar esta libertação da modernidade do seu próprio mito irracional, da sua prisão ideológica, sem descartá-la totalmente. O que se deve manter do projeto moderno é a dinâmica da emancipação social, a justiça econômica, a civilização ecológica e a democracia popular. Trata-se de, em nome do núcleo racional e emancipador da Modernidade (como saída da imaturidade, mas não culpada), negar o mito sacrificial eurocêntrico e desenvolvimentista da própria Modernidade. Por isso o „projeto libertador” (não meramente „assuntivo” porque este só pode subsumir os projetos emancipador dos crioulos, conservador dos latifundários ou liberal dos que negam o passado indígena, afro-latino-americano e colonial), é ao mesmo tempo uma tentativa de superação da Modernidade, um projeto de libertação e „transmodernidade”. Um projeto de racionalidade ampliada, onde a razão do Outro tem lugar numa comunidade de comunicação na qual todos os humanos (…) possam participar como iguais, mas ao mesmo tempo no respeito a sua Alteridade, ao seu ser-Outro, „outredade” que sabe que está garantida até no plano da situação ideal de fala (…) ou na comunidade de comunicação ideal.60

A transmodernidade, assim, como o prefixo sugere, tenciona transcender a modernidade eurocêntrica com toda a sua tradição violenta, e ao mesmo tempo só pensa possível realizar essa superação através da contribuição equilibrada de várias culturas, filosofias, epistemologias e tradições. Assim, a cultura utópica da transmodernidade, conseguirá desconstruir não só a singularidade arrogante, e a universalidade abstrata da modernidade, mas também o seu eurocentrismo inerente que não aceita o diálogo com o Outro, e que só pretende impor nele os seus próprios valores e discursos. Da transfertilização dialógica das culturas e das tradições nascerá, assim, uma nova modernidade alternativa que transcenderá os hubris da modernidade ocidental e será capaz de ultrapassar o caráter monológico da epistemologia e do cânone ocidentais, e de ser o fundamento duma humanidade plural futura. A razão que Adorno e Horkheimer e vários outros pensadores do período pós-segunda guerra mundial ou pós-moderno exorcizaram e culparam pelos defeitos e crimes do progresso moderno, não deve ser discriminado, na leitura de Dussel, pelo contrário. „A Filosofia da Libertação afirma a razão como faculdade capaz de estabelecer um diálogo, um discurso intersubjetivo com a razão do Outro, como razão alternativa. Em nosso tempo, como razão que nega o momento irracional do mito sacrificial da Modernidade para afirmar 59 GROSFOGUEL, 2008, p. 126. 60 DUSSEL, 1993, pp. 172-173.

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Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46 (subsumido num projeto libertador) o momento emancipador racional da Ilustração e da Modernidade como Transmodernidade.”61 Em conclusão, se continuarmos a aceitar a tese inicial da inconclusão do projeto da modernidade e a sua continuação, e continuarmos a acreditar com Foucault que a modernidade não só determinou o que somos agora, o que pensamos e como agimos,62 mas continuará determinando a nossa existência, parece mais do que necessário constantemente repensar essa modernidade e os seus princípios. Como Walter Mignolo, compatriota de Dussel, observa a propósito da teoria da transmodernidade e das modernidades alternativas formuladas do ponto de visto do Sul subalterno, a importância da elaboração destes novos modelos é fundamental para desestabilizar a ordem vigente e secular do discurso, tendo em conta a persistência das epistemologias ocidentais e coloniais. These perspectives from Spanish America, Maghreb and the Caribbean, contribute today, to rethinking, critically, the limits of the modern world system, the need to conceive it as a modern/colonial world system, and to tell stories not only from the „inside” modern world but from its borders. These are not only counter or different stories; they are forgotten stories that bring forward, at the same time, a new epistemological dimension: an epistemology of and from the border of the modern/colonial world system. 63

A transmodernidade de Enrique Dussel, encaixando-se na série de modernidades alternativas, ao meu ver, constitui uma das tentativas mais dinâmicas e viáveis para essa reformulação do projeto moderno. Seguindo a argumentação de Gaonkar, no momento atual do início do novo milénio, em vez de falar do fim da modernidade, teríamos de pensar na extensão da modernidade, e no aparecimento de novas formas alternativas e híbridas dela. O facto de que cada vez mais sociedades e territórios pós-coloniais, porém ainda subalternos, estão entrando na modernidade obriga-nos a reavaliar as agendas tradicionais e a elaborar novas soluções. Uma coisa é certa: „modernity today is global and multiple and no longer has a governing center or master-narratives to accompany it”64, porém, a transmodernidade de Dussel, sem qualquer dúvida, parece ser uma das melhores soluções possíveis.

61 Idem, pp. 173-174. 62 FOUCAULT, Michel. „What is Enlightenment?”. In: Rabinow, Paul (org.). The Foucault Reader. New York: Pantheon Books, 1984, p. 32. 63 MIGNOLO, Walter D. Local Histories/Global Designs: Essays on the Coloniality of Power, Subaltern Knowledges and Border Thinking. Princeton: Princeton University Press, 2000, p. 52. 64 GAONKAR, 2001, p. 14.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76

DA VOZ À PALAVRA... E DE VOLTA À VOZ: RETÓRICA E SIMULACRO NA POLÍTICA MODERNA Alan Duarte Araújo1

RESUMO: O presente trabalho busca compreender as determinações histórico-práticas que conduziram à despolitização da sociedade, segundo a qual os indivíduo são reduzidos à pura voz, desarticulada e inexpressiva, quando não reduzidos até mesmo ao silêncio impotente. Para tanto, foi necessário reportar-se à obra de Aristóteles, na medida em que ele esclarece a centralidade da linguagem na constituição, não só dos laços sociais, como também da própria especificidade humana, a saber, como “animal cívico”. Em virtude de tal centralidade linguística, reforça-se a percepção do problema a respeito da captura da linguagem pela retórica liberal, sustentada em termos abstratos e vazios, orientadores de uma “ideologia de guerra”. Delineia-se, pois, um modelo de gestão social, dominando pelo instituto da exceção soberana, relegando os indivíduos à vida nua e sacrificável, desprovendo-os quer da proteção jurídica, quer da própria linguagem. Situação paradoxal esta, em virtude da qual as categorias classicamente políticas são nulificadas e a política mesma vem reduzida a seu simulacro, ou seja, à sua pura imagem sem ser. PALAVRAS-CHAVE: Retórica; Simulacro; Exceção.

1 Graduado

em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. Email: duartealanaraujo@hotmail.com

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 FROM VOICE TO WORD ... AND BACK TO VOICE: RHETORIC AND SIMULACRUM IN MODERN POLICY ABSTRACT: The present work seeks to understand the historical-practical determinations that led to the depoliticization of society, according to which individuals are reduced to a pure voice, disarticulated and inexpressive, when not reduced to even impotent silence. For that, it was necessary to refer to Aristotle's work, as he clarifies the centrality of language in the constitution, not only of social ties, but also of human specificity, namely, as "civic animal". Due to such linguistic centrality, the perception of the problem regarding the capture of language by liberal rhetoric, supported in abstract and empty terms, guiding an “ideology of war” is reinforced. Therefore, a model of social management is outlined, dominating by the institute of sovereign exception, relegating individuals to naked and sacrificable life, depriving them of both legal protection and language itself. This is a paradoxical situation, by virtue of which the classically political categories are nullified and the policy itself has been reduced to its simulacrum, that is, to its pure image without being. KEYWORDS: Rhetoric; Simulacrum; Exception.

INTRODUÇÃO

A insistência sobre a necessidade de retomar uma reflexão crítica sobre a retórica como prática, quer governamental, quer cotidiana, justifica-se em razão de um assim chamado léxico2 do Império estatal norte-americano e das demais democracias liberais. Uma atenção dedicada aos discursos dos líderes políticos desses países, bem como de sua mídia, imprensa e assim por diante, revela a constância segundo a qual se repete termos como: guerra ao terror, terrorismo, barbárie violenta – em referência aos não-ocidentais –, fundamentalismo etc. De modo análogo, o contraargumento, ou parâmetro de oposição, que se verifica pelos mesmos agentes discursivos é a democracia liberal ocidental, cujos valores são a tolerância, respeito aos direitos humanos, liberdade. Logo, não há “terceiro excluído” na equação delineada sob tais parâmetros. Não restando, pois, nada mais do que um silêncio frustrante naqueles indivíduos que não se reconhecem nesta contradição, ou que ao menos intuem o caráter não-substancial e vazio de tais termos retóricos. O problema que aqui se enunciou intensifica-se, caso se destaque a ideia aristotélica a

2Este

trabalho partiu das indicações do filósofo italiano Domenico Losurdo para, então, desenvolver uma elaboração crítica da retórica liberal. Ver, a esse respeito: LOSURDO, Domenico. A linguagem do Império: léxico da ideologia estadunidense. Tradução de Jaime A. Clasen. São Paulo: Boitempo, 2010.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 respeito do liame essencial que conecta uns aos outros nas diferentes comunidades. Para Aristóteles (2006, p. 5), o “comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil”. Portanto, a seguinte indagação impõe-se: dado a importância da linguagem na sociedade civil, quais são as consequências políticas e sociais quando essa linguagem é capturada por termos abstratos que, na retórica liberal moderna, sustentam, na verdade, uma ideologia de guerra? Dessa forma, o que está em questão é pensar as implicações de uma política que se converte em “simulacro”, a saber, de uma política que, ao se reportar a tal retórica vazia, indica antes o núcleo vazio, como pura imagem sem ser, de seu centro. Entende-se, aqui, que a elaboração de uma resposta para essa pergunta só é possível caso se parta da seguinte hipótese: o alerta de Platão (Soph. 236d.) concernente às dificuldades de estudo do não-ser (“mostrar e parecer sem ser, dizer algo sem, entretanto, dizer com verdade, são maneiras que trazem grandes dificuldades, tanto hoje, como ontem e sempre”), não deve ser entendido tão somente segundo os problemas ontológicos que daí decorrem, mas igualmente dos problemas políticos. Desse modo, aceitando o alerta platônico acerca da aparente atemporalidade do problema do não-ser3, aqui reconduzido para sua dimensão política, nada mais natural do que buscar auxílio nos escritos platônicos e aristotélicos para pensar as implicações modernas de tal questão. Daí, pois, a indicação teórico-metodológica orientadora desse trabalho, a saber, o diálogo exegético e hermenêutico com as obras desses filósofos gregos, não descuidando, por isso, de captar as mutações modernas que a retórica e o problema do simulacro sofreram.

RETÓRICA E POLÍTICA DO SIMULACRO: O SOFISTA COMO QUESTÃO

Muito embora o ponto de partida da reflexão seja os escritos de Platão, relativos à retórica utilizada pelos sofistas, é importante, em primeiro lugar, destacar o papel fundamental que Aristóteles atribui à linguagem. Tal destaque não concerne apenas a estrutura simbólica fundamental na sociedade, enquanto liame fundante da mesma. Diz respeito, em realidade, à própria natureza do homem, como “animal cívico” ou social.

3

A insistência em uma certa “atemporalidade” do problema da retórica, justifica-se em virtude de sua importância basilar na construção do Ocidente. Segundo Jaeger: “Unida à gramática e à dialética, a retórica tornou-se o fundamento da formação formal do Ocidente”. Cf. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. 5ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 368.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Segundo Aristóteles (2006, p. 5), a “voz” é aquilo que temos em comum com os animais, a saber, a capacidade de exprimir, em sons, as sensações agradáveis ou desagradáveis. Ao passo que a “palavra” é o que permite aos homens constituírem-se como tais, na medida em que podem expressar, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o “sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto”. Esta é, em última instância, a finalidade de nossos “órgãos da fala”. É a transição da “voz” à “palavra” que assegura aos homens sua sociabilidade essencial4. Daí a conclusão, já mencionada, consequente de Aristóteles: “Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil”. Em virtude, portanto, da centralidade da linguagem na sociabilidade dos homens, nada mais natural do que, no ponto que os laços sociais encontram-se em risco de dissolução, voltar o olhar para aquelas figuras que faziam do “comércio da palavra”5 a sua profissão. Reporta-se, aqui, aos sofistas, os quais ganhavam importância na vida social grega à medida que a vida na Pólis girava em torno da Ágora6, local por excelência das disputas oratórias e políticas. O que está em questão, nesse período, era a formação de uma sociabilidade e de um modelo de gestão política e social baseado na preeminência da palavra, como instrumento político por excelência. Na formação e ascensão da Pólis grega, o que explica a notoriedade de certos sofistas era, em primeiro lugar, a interação fundamental entre política e lógos na cotidianidade grega. Daí o porquê de Vernant (1992, p. 35) sustentar, com respeito ao modelo grego, que “a arte política é essencialmente linguagem”. E os sofistas eram justamente aqueles profissionais pagos para formar o político orador e ensiná-los a areté política (JAEGER, 2010, p. 339-340). No entanto, à ascensão da Pólis seguiu sua decadência. Hegel é quem melhor descreve essa inversão em direção à crise grega. Segundo Hegel (FD, §185), foi o “desenvolvimento independente da particularidade” o responsável pela introdução, nos Estado antigos, da corrupção dos costumes, causa central da decadência então verificada. Domínio da particularidade que porta com si, seguindo a exposição especulativa hegeliana, o arbitrário e o contingente, dos quais se origina a 4 Como

recorda Agamben, os gregos não possuíam um único termo para designar o que, nós modernos, compreendemos por “vida”. Logo, verifica-se nos escritos da antiguidade grega a distinção entre zoé, entendida como a simples vida em comum com os animais de todos os gêneros, e bíos, como uma vida qualificada, ou seja, um modo particular de vida. Poder-se-ia sustentar que no cerne de tal distinção, ao menos nos escritos aristotélicos, está a transição da “voz” à “palavra”, como aquilo que garantiria a transição da zoé à bíos. Este argumento será retomado ao longo da exposição. Nesse tocante, ver: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Bruno. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 9. 5 No Sofista, a segunda definição que Platão atribui aos sofistas é “comerciante em ciências”, em referência ao fato da prática sofística consistir na negociação de discursos e ensinos relativos à virtude. Cf. PLATONE. Sofista. Tradução de Beatrice Bianchini. Roma: Armando Editore, 1997, 224d. 6 Espécie de praça pública em que se organizava discussões a respeito dos encaminhamentos políticos da Cidade, contanto com a presença dos “cidadãos atenienses”.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 devassidão, corrupção e miséria. Fatores estes decorrentes das mudanças econômicas verificadas em razão do início do comércio com o Oriente e da troca cultural, bem como a opulência à qual a aristocracia se viu reduzida. Seduzida pelo luxo, riqueza e virtudes guerreiras, a aristocracia e seus impulsos se tornaram um elemento decisivo de ruptura e instabilidade social. Não mais a harmonia, mas agora a desarmonia e o conflito é que caracterizavam o cotidiano grego (VERNANT, 1992, p. 51). Se, de fato, é possível sustentar com Jaeger (2010, p. 374) que é superestimar a influência dos sofistas responsabilizá-los pela decadência grega, por outro lado, isto não impede de constatar que tal processo decadente incorria e se expressava na teoria e prática sofística. Conclusão imperiosa, sobretudo se considerarmos os numerosos sofistas que, através de seus ensinamentos, questionaram a centralidade e importância das normas éticas e sociais, bem como a autoridade do Estado e de suas leis. Expressão inequívoca do “relativismo”7 dominante no pensamento de certos sofistas. Em razão desta situação teórico-prática, de decadência grega e de suas expressão ideias nos ensinamento dos sofistas, Platão dedica especial atenção a tais figuras sociais. Daí, o esforço platônico para defini-los. No cerne das diferentes definições atribuídas aos sofistas, constata-se a instrumentalização do discurso e das palavras com o objetivo de ensinar sobre as virtudes e, assim, receber pagamento por tais ensinamentos. Em síntese, seriam os sofistas “eurísticos mercenários” e contraditores na sua argumentação (Soph. 225a - 231b). A dificuldade que esta última definição levanta se explica em razão de sua proximidade com a prática argumentativa própria do Platão e de seu mestre Sócrates, ambos excelentes contraditores. A saída para tal impasse está na distinção, estabelecida por Platão (Gorg. 448e), entre a retórica e o “discursar”. A prática do “discurso”, reivindicada pelo próprio Platão, é aquela destinada a tratar do que é, ou seja, de tudo aquilo que concerne ao âmbito do verdadeiro e da substância 8. 7

Em A república, Trasímaco é quem melhor representa o “relativismo” sofístico, a saber, a postura intelectual de relativizar normas éticas, subordinando-as a princípios particulares. Em tal escrito, Trasímaco sustenta que a justiça é a “conveniência do mais forte”, algo bem assentado na consciência comum da época. Fato este que a intervenção posterior de Glauco revela, ao argumentar que somente se é “justo” em aparência, ou seja, em função das consequências, visando um “salário” e uma boa “reputação”, ao passo que a justiça em si é penosa, sendo mais vantajoso, no âmbito privado, a injustiça. Na contramão, coube a Sócrates demonstrar que nem sequer um agrupamento de ladrões permaneceria unido sem a justiça, quiça o Estado, pois a injustiça só gera ódios, contentas e revoltas. Cf. PLATÃO. A república. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, 338c. 8 A destinação do discurso para as “realidades verdadeiras” é apresentada, uma vez mais, por Platão no seu escrito intitulado Político. Segundo Platão, cabe ao discurso por ele apresentado “tornar o ouvinte melhor capacitado a atinar com a verdade”. Cf. PLATÃO. Político (Ou a Realeza). In: BINI, Edson (Org). Diálogos IV. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2019, p. 137, 286e. Sobre a concepção platônica relativa à teoria das ideias e das “realidades verdadeiras”, ver: PLATÃO. Fédon. In: PESSANHA, José Américo Motta. Diálogos. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Com base em tal argumento, pôde Platão (Gorg. 464b-465a) sustentar que sua prática discursiva consiste em uma arte, ou ciência, mediante a qual tratar-se-ia da “real natureza das coisas”, indicando a “causa” real de todas elas. Igualmente relacionadas à arte, Platão elencou a Política, com suas duas partes constitutivas, a Justiça e a Legislação, bem como a arte da Ginástica e da Medicina. Todas essas artes destinar-se-iam ao cuidado, quer da alma, quer do corpo, mediante o conhecimento de suas naturezas e das causas de saúde e enfermidade para ambos. Na contramão, Platão orienta a sua atenção para as práticas destituídas de arte, mas que ainda assim guardam certa semelhança com as artes descritas acima. Com efeito, Platão define tais práticas sem arte como “Adulação”, nome que faz referência ao fato de que essas práticas não visam ao que é o melhor, ou seja, não visam ao cuidado da alma ou do corpo a quem se dirigem. Ao contrário, buscam somente a produção de satisfação e prazer, ignorando, inclusive, a real natureza das coisas e as causas que produzem o bem. Dessa forma, Platão pôde destacar o caráter “vil” da Adulação. Conclui Platão: “Para mim é inadmissível conferir o nome de arte a qualquer coisa que seja irracional”9. Platão (Gorg. 463d), em seguida na sua exposição, especifica que a Adulação possui quatro ramificações, as quais igualmente não podem serem definidas como “arte”, mas, antes, como uma “experimentada habilidade”. São elas: Retórica, Culinária, Sofística e Ornamento pessoal. Todas essas ramificações guardam um certo grau de semelhança com um conjunto de práticas artísticas, a saber, práticas que se reportam à ciência e ao conhecimento daquilo que proporciona o melhor. Com efeito, a Adulação se divide em quatro partes que se mascaram a si mesmas e que simulam serem outras quatro propriamente artísticas. Nesse sentido, Platão sustenta que a “retórica” é uma cópia de uma ramificação da Política, qual seja, a Justiça. Caberia a Sofística ser a cópia da outra ramificação da Política, a saber, da Legislação. Ao passo que a Culinária e o Ornamento pessoal se reportariam à Medicina e à Ginástica, respectivamente. Não obstante a diferença assinalada por Platão entre a Retórica e a Sofística, mais adiante na sua argumentação, ele se apressa para relativizar tal diferença, demarcando, antes, que a sofística e a retórica estão intimamente relacionadas (Gorg. 465c). Para que não reste dúvidas quanto ao caráter de simulacro da retórica, bem como de sua proximidade com a sofística, em outro 9 Cf.

PLATÃO. Górgias. In: BINI, Edson (Org.). Diálogos II. Tradução de Edson Bini. 2ª ed. São Paulo: Edipro, 2016, 425a. Recorda-se que também Agostinho, em suas Confissões, acentua o caráter vil e em desacordo com a verdade que o estudo e o ensino da retórica desempenharam em sua juventude. Agostinho rememora que, na qualidade de jovem professor de retórica, observava os seus alunos aprenderem a serem enganadores e a se reportarem à retórica como uma prática para a defesa dos culpados. Nesse tocante, ver: AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Lorenzo Mammì. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 96.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 escrito intitulado Político, Platão (Pol. 303c) se dedica a pensar a forma de governo ideal, indissociável da ciência, além das demais formas de governo, cópias sem ciência, subordinadas àquela primeira. A tais cópias, Platão demonstra o cuidado de não igualá-las a prática do verdadeiro político, mas, no seu lugar, refere-se aos “afiliados de partidos”, os quais presidiram “grandes simulacros”. Portanto, tais afiliados não se apresentam de outra forma, senão como os “maiores imitadores e magos” ou, mais precisamente, “os maiores sofistas entre os sofistas”. Uma vez estabelecida a especificidade da Retórica como uma “experimentada habilidade”, que não seria mais do que um simulacro de uma das ramificações da Política, resta ainda investigar a natureza do conceito de “simulacro”. Para tanto, Deleuze (2000, p. 261) oferece uma valiosa indicação, ao sustentar que o escrito platônico concernente à figura do “sofista” é, em realidade, um tratado destinado a pensar “o ser (ou antes o não-ser) do simulacro”. Tal afirmação não deixa de ser verdadeira, pois, como já visto, se Platão inicia tal obra elencando as possíveis definições do sofista, logo ele alcança uma aporia em sua argumentação. Ora, se o sofista é aquele comerciante de palavras e discursos, contraditor que se vale de opiniões falsas e destituídas de ciência, um retórico acima de tudo, como é possível ele declarar o falso, ou o não-ser, como sendo o verdadeiro? O diálogo se orienta para complexas nuanças metafísicas, em que o que está em jogo é a tese de Parmênides, segundo a qual o “ser”, essência do verdadeiro, não pode jamais “não-ser”, ao passo que o “não-ser” não pode vir a “ser”, ou seja, não pode tornar-se verdadeiro, nem sequer anunciarse e expressar-se como tal. No que, portanto, constituiria a prática retórica sofística? (Soph. 237a237c) A argumentação platônica conduzirá a uma espécie de “parricídio” com respeito à teoria de Parmênides, o que significa um questionamento de suas teses centrais e a elaboração de uma nova teoria concernente à natureza do ser e do não-ser, bem como de suas relações recíprocas. Todavia, o que importa assinalar é, sobretudo, a concepção platônica segundo a qual a prática sofística caracterizar-se-ia como uma prática “mimética”, a saber, produtora de imagens falsas e de “ficções verbais”, na medida em que enunciaria imitações e homônimos de realidades verdadeiras. Para Platão, a prática sofística sequer tratar-se-ia da produção de “cópias”, o que requereria um maior grau de proximidade e semelhança com original. Tratar-se-ia, na verdade, de “simulacros”, ou seja, uma “cópia da cópia”, imitações destituídas de conhecimento, a saber, uma “doxa mimética”. Uma vez mais Deleuze é quem fornece uma bela descrição de tais especificações. De acordo com Deleuze:

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A distinção se desloca entre duas espécies de imagens. As cópias são possuidoras em segundo lugar, pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança; os simulacros são como falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais. […] A grande dualidade manifesta, a Ideia e a imagem, não está aí senão com este objetivo: assegurar a distinção latente entre as duas espécies de imagens, dar um critério concreto.10

Desse modo, é em atenção e ponderação sobre simulacro, como uma espécie de cópia degradada da ideia original, em plena dissimilitude em relação a ela, que é possível definir a prática da retórica sofística como uma “arte do simulacro” – com as devidas ressalvas, já apresentadas, ao termo “arte”. (Soph. 267e) Em contrapartida, Aristóteles, dedicando uma imensa atenção e cuidado à questão da retórica no seu tempo, não elabora um juízo tão duro e severo como fizera o seu mestre Platão. No que toca ao diagnóstico aristotélico, o caráter “cotidiano” da prática retórica vem reconhecido e, como tal, não pode ser descartado imediatamente. Aristóteles (Retórica, I, 1354a 4-5) esclarece, portanto, a presença da retórica na vida cotidiana das pessoas, indicando o seu caráter ineliminável do horizonte dos indivíduos. Todos se servem da retórica, ainda que uns manifestem mais consciência disso do que outros, seja a fim de sustentar suas teses e defender-se, como também para acusar outros indivíduos e persuadir os demais. Em consonância com o seu procedimento teórico-metodológico, a saber, sua atenção aos desdobramentos particulares de certas noções na experiência prática, Aristóteles (Retórica, 1356a 2-4) infere e classifica três aplicações da retórica no cotidiano, quais sejam: a oratória pública ou política, dirigida ao povo; o discurso jurídico ou forense, endereçado ao juiz; e, por fim, a oratória demonstrativa, concernente à avaliação de ações presentes como honrosas ou não.

10 Cf.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 4ª. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p. 262. Deve-se, todavia, ainda destacar que o reportar-se à filosofia de Deleuze não indica uma concordância, mas, ao contrário, uma discordância fundamental no tocante à sua interpretação da filosofia platônica. Tanto que é possível sustentar que um dos objetivos secundários deste trabalho é propor uma “reversão do deleuzeanismo”, semelhante à própria intenção de Deleuze ao apresentar, na obra em questão, uma “reversão do platonismo”. Metodologicamente, a reversão aqui proposta ocorrerá por uma análise imanente de seus argumentos, uma concordância inevitável, ao menos no que diz respeito a algumas de suas descrições, para, em seguida, de acordo com o fio condutor de sua filosofia, extrair as consequências que permitiram “desvirá-lo” (roverciarlo), assentar seus pés no chão. Pode-se, pois, afirmar que a pretensão aqui é de elaborar uma crítica “humorística” de sua filosofia. No sentido mesmo que Deleuze entende por “humor”, ao menos na sua elaboração moderna. De acordo com Deleuze, infringir humoristicamente uma tese, subvertê-la, não significa negá-la a priori, mas, antes, infringi-la por “excesso de zelo”, ou seja, “por uma escrupulosa aplicação pretende-se mostrar seu absurdo e alcançar, precisamente, a desordem que ela deveria proibir e coibir”. Trata-se, então, do “aprofundamento de suas consequências”. Adiante, no presente trabalho, observar-se-á as consequências desastrosas da pretensão deleuzeana de reabilitar o simulacro. Algo análogo pode se afirmar de sua pretensão de atualizar o cinismo. Ver, a respeito do papel moderno do humor: DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. Ver, ainda, sobre a crítica do papel do cinismo na filosofia de Deleuze: SAFATLE, Vladmir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Com base em tal esclarecimento inicial, Aristóteles (Retórica, 1355a 15) argumenta, em desacordo com Platão, que é possível sim se valer da prática retórica a fim de proteger o verdadeiro e o útil. Para tanto, Aristóteles reputa à retórica um certo saber, oriundo da observação do que, em cada caso particular, é adequado para produzir a persuasão, cabendo ao orador o estudo e o conhecimento dos costumes de cada povo, do objeto de seu debate, dos gêneros de disposições de espírito nos ouvintes, bem como do que produz tais disposições. Em última instância, a retórica consistiria na combinação de uma “ciência da lógica” com uma “ciência política”. (ARISTÓTELES, Retórica, 1359b 9-11) Não obstante tais argumentos, que em um primeiro momento apresentam uma aparência de discordância com relação a Platão, sustenta-se que tal aparência esconde uma concordância de fundo, ao menos uma aproximação substancial. Com efeito, Aristóteles (Retórica, 1355b 32-35) esclarece que, a despeito do estudo necessário do orador para que ele execute bem suas tarefas, a retórica mesma não é uma ciência, por não se ocupar de um objeto definido. Trata-se, na verdade, de uma “faculdade” que se ocupa de discursos. Isso explica, em parte, a razão de Aristóteles sustentar que a retórica, valendo-se de seus conhecimentos lógicos e conhecimentos dos costumes, das virtudes e disposições dos povos, vestiria “grosseiramente a máscara da política”. Ademais, pode a retórica apresentar um uso nocivo, não obstante sua capacidade para defender o verdadeiro. Tal uso nocivo pode ser compreendido em razão da possibilidade de despertar no juiz certas paixões com o objetivo de declinar o curso legal e racional do processo, pervertendo o juiz e adulterando as regras processuais (Retórica, 1354b 17-21). Argumentos semelhantes podem ser encontrados na Política de Aristóteles, em que a prática retórica dos demagogos é duramente criticada. Segundo o Estagirita: A principal causa das mudanças é, nos estados democráticas, o atrevimento dos demagogos. Caluniam os ricos uns após os outros e os obrigam a fazer coalizões, pois o temor diante do perigo comum tem o efeito de reconciliar os maiores inimigos. Em seguida, amotinam publicamente o povo contra a coalizão, como se vê quase em toda parte. […] Antigamente, quando o mesmo personagem era demagogo e general de exército, as democracias não deixavam de se transformar em Estados despóticos. Com toda certeza, os antigos tiranos originaram-se dos demagogos. (ARISTÓTELES, 2006, p. 211-212)

Em vista, pois, do predomínio da “arte de falar bem”, característica de um regime de governo em que são os “oradores que governam o povo”, mais facilmente se originam os “Estados despóticos”, em que a mesma figura é general e demagogo. Dessa forma, em virtude de tal postura crítica, é possível sustentar que tanto Platão quanto Aristóteles, ainda que apresentando Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 orientações filosóficas

diversas, atribuíam semelhante

importância teórico-prática

ao

enfrentamento da habilidade retórica, ao menos em sua degeneração, quando o regime político é posto em risco.

A RETÓRICA EM SUA MODERNA CONFIGURAÇÃO LIBERAL

Nesse momento da exposição é proveitoso recapitular a tese central exposta na seção anterior, a saber: A retórica, ou ao menos a sua “sobredeterminação” nos processos sociais cotidianos, constitui um simulacro da política. Em razão da complexidade e riqueza desta concepção elaborada, em certa medida, por Platão e Aristóteles, é vantajoso analisá-la por partes, sobretudo se a intenção aqui proposta é de verificar a atualidade ainda reinante desta tese. Assim, no que concerne a busca por cartografar as características da retórica orientadora das relações políticas hodiernas, reporta-se aqui a três autores de nacionalidades e perspectivas teóricometodológicas distintas, mas que visaram compreender o mesmo fenômeno histórico: aquele em torno do ataque às Torres Gêmeas nos Estados Unidos, no dia 11 de setembro de 2001. Refere-se, com efeito, aos filósofos Slavoj Zizek, Domenico Losurdo e István Mészáros, cujas obras em questão são, respectivamente: Bem-vindo ao deserto do real (2002); A Linguagem do Império (2006); O século XXI: Socialismo ou Barbárie?11 (2001). Zizek, valendo-se tanto da análise da reação midiática norte-americana ao acontecimento de 11 de setembro quanto do Relatório de estratégia de Segurança Nacional (2002), publicado após o ocorrido, pôde constatar a semelhança discursiva nas duas abordagens, a saber, aquela midiática e a governamental. Ambas buscaram construir uma dicotomia do “nós contra eles”, de maneira tal que o “nós” em questão assume o caráter de vítimas indefesas, ao passo que o “eles” termina por assumir todo o gênero de conotações racistas e preconceituosas, construindo assim um “inimigo”, a saber, a imagem do “terrorista”, contra o qual é imperioso combater, custe o que custar – seja do ponto de vista das vidas que serão executadas, quanto do orçamento econômico do país. (ZIZEK, 2002, p.13) Dessa perspectiva, a “guerra ao terror” é amparada por uma lógica retórica, a qual se fundamenta em oposições abstratas e conceitos vazios, tais como luta em defesa da democracia, 11

Ainda que esta última obra tenha sido escrita antes do atentado de 11 de setembro, não se pode desconsiderá-la, posto que ela traça importantes comentários sobre as determinações histórico-práticas, bem como sobre suas expressões ideias e retóricas, em prelúdio ao acontecimento em questão, que o antecederam.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 liberdade ou mesmo direitos humanos, termos que, como Zizek (2002, p. 3) bem esclarece, contribuem apenas para mascarar a situação concreta, no lugar de esclarecê-la. Se, por uma lado, os Estado Unidos encarnam todas essas virtudes – uma vez que tais conceitos jurídicos transmutaram-se em conceitos morais, situando-se, pois, no limiar indiscernível que aí se apresenta–, o outro lado, por sua vez, é imaginado como receptáculo de toda uma série de adjetivos – terroristas, fundamentalistas, bárbaros que odeiam o Ocidente –, que anunciam, antes, a redução de toda uma complexidade histórico-social à figura hollywoodiana de inimigos a serem derrotados. Como esclarece Losurdo (2010, p. 15): “Quanto mais vaga a acusação, tanto mais fácil para sua validade se impor de modo unilateral e tanto mais inapelável se torna a sentença pronunciada pelo mais forte”. Oferece-se, pois, uma justificativa ideológica para que os Estados Unidos possam entrar em guerra contra os supostos “terrorista”, sejam eles quem forem, inclusive ex-aliados políticos, de tal sorte que o Império norte-americanos estaria implicitamente autorizado a conduzir guerras e estabelecer sanções econômicas12, a fim de exportar “liberdade e democracia” para todos. Tal prática e discurso norte-americano, que no limite se converte no seu oposto – terrorista! –, é guiada por uma certa racionalidade de fundo, que auxilia a conferir uma justificativa ideológica. Com efeito, é possível traçar aqui um paralelo com a argumentação aristotélica, de acordo com a qual a retórica não seria de todo destituída de racionalidade, ainda que isto não implique que ela deva ser caracterizada como uma ciência. Ora, não há, de fato, nenhuma novidade ao destacar que o modus operandi e discursivo de uma nação, que está no centro do liberalismo hodierno, possua uma razão guiadora em seu núcleo fundamental. Com efeito, já na elaboração teórica de Foucault (2008, p. 40), o liberalismo é compreendido como o resultado de uma mutação moderna da “razão de Estado”, de tal forma que é a razão do governo mínimo a tornar-se o princípio de organização da própria razão de Estado. Sendo assim, há uma certa lógica ou regime de verdade que determinará se uma prática governamental será bem sucedida ou fracassará, o que implica sustentar que o critério de um bom governo não mais reside na sua legitimidade ou ilegitimidade. O que está de fato em questão é que o excesso de governo, ou de interferência interna do Estado, será uma consequência da ignorância de certas normas,

12

Segundo o levantamento estatístico analisado por Losurdo, os embargos econômicos que os Estados Unidos determinaram ao Iraque, no fim do século passado, resultou na morte de mais de 500 mil crianças, tanto por fome quanto por doenças. Assim, em retrospectiva, nos anos sucessivos à Guerra Fria, o embargo econômico tornou-se uma “arma de destruição em massa por excelência”, sendo responsável por mais mortes do que todas as armas de destruição em massa utilizadas na história juntas. Tal fato lança uma nova perspectiva sob embargos, ainda operantes, impostos pelos Estados Unidos aos países que ele considera “ditatoriais”. Ver, a esse respeito: LOSURDO, Domenico. A linguagem do Império: léxico da ideologia estadunidense, p. 26.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 mediante as quais determinar-se-iam o “útil” governo frugal. Logo, o que interessa, para Foucault, é estabelecer uma genealogia dos dispositivos de saber e poder, ou seja, a articulação das práticas de jurisdição com os regimes de verdade que deram início a forma governamental atuante ainda hoje. O liberalismo, de acordo com essa matriz interpretativa, seria o novo regime de verdade econômica no interior da nova razão governamental, indicando o “mercado” como o local por excelência das disposições verídicas e reguladoras das práticas de Estado13. No entanto, sustenta-se aqui que a perspectiva foucaultiana é insuficiente, a despeito de oferecer uma substancial quantidade de material, indispensável para compreender as mutações políticas modernas. Essa insuficiência é resultado, sobretudo, de sua abordagem teóricometodológica. Em suma, interessa a Foucault estabelecer a “história dos regimes de veridição”, investigação segundo a qual o que está em questão “não é uma certa lei da verdade, mas sim o conjunto de regras que permitem estabelecer, a propósito de um discurso dado, quais enunciados poderão ser caracterizados, nele, como verdadeiros ou falsos?” (FOUCAULT, 2008, p. 48-49). Interessa-lhe, portanto, a gênese dos regimes discursivos, orientada por um certo regime de verdade, em razão do qual se conduzirá uma prática jurisdicional, por exemplo, a prática psiquiátrica ou medicinal. Logo, no procedimento foucaultiano, abstrai-se a história da verdade, do erro, ou mesmo da ideologia. Todavia, compreende-se, na perspectiva metodológica adotada neste trabalho, que sem levar em consideração uma noção de verdade e suas deformações ideológicas, é pouco provável que se verifique uma interpretação profunda e acurada do problema aqui levantado. Daí, com efeito, a oportunidade que o reportar-se à noção de “retórica” implica, se pensada tal como orientada pelos filósofos gregos já mencionados. Nesse tocante, só faz sentido estabelecer uma ideia de retórica com respeito, ou em relação, a uma ideia de Verdade, segundo a qual a retórica não seria mais do que uma “cópia da cópia”. E é esta ideia de Verdade que sofreria mutações ideológicas. No entanto, uma nova inflexão nos argumentos se faz imperiosa. A Verdade, tal como aqui vem compreendida, encontra-se, agora, no “terreno da história”, da práxis dos homens 14. Nesse 13

Com respeito à nova razão governamental, Dardot e Laval forneceram importantes contribuições teóricas para esclarecê-la. Cf. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. 14 Portanto, já não mais se trata da Verdade, tal como imagina por Platão, em um suposto “Mundo das Ideias” – ainda que a imagem usualmente difundida desse “mundo das ideias”, absolutamente separado o mundo material, possa ser questionada. De qualquer forma, a operação aqui realizada, de fato, não se encontra na obra platônica, a saber, o deslocamento do problema da Verdade para o terreno material, própria da ação humana, como sustenta Marx: “A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza interior de seu pensamento”. Todavia, não se deixa, com isso, de referenciar, devidamente, aos

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 terreno, não há como evitar o confronto com as necessidades do Capital, nem com a ordem geopolítica mundial, que se organiza em torno de tais necessidades. Isso explicação a razão de uma “camuflagem” retórica cínica15, da qual se vale os Estado Unidos para esconder os seus interesses imperialistas de dominação militar e econômica. Tal inflexão argumentativa proposta, concernente ao redirecionamento da Verdade para o terreno histórico-concreto, com todas as suas complexidades socioeconômicas, revela-se necessária, caso se leve em consideração, por exemplo, o célebre tema da retórica liberal, qual seja, o da “não-violência”. Como já mencionado, as democracias liberais, com os Estados Unidos no centro delas, julgam-se as guardiãs da tolerância e da paz, de modo que é ao “outro lado”, o nãoocidental, que caberia a qualificação de “violento”. O que implicou na construção fantasiosa de um certo “mito” em torno da reivindicação das práticas de “não-violência”, sobretudo referentes à imagem de Gandhi. Trata-se, em realidade, de uma história complexa, contraditória e realizada em múltiplas etapas, caracterização frequente e acertadamente direcionada para aquilo que é do âmbito material da história terrena. Não obstante tais contradições, amplamente descritas por Losurdo em sua obra16, o núcleo fundamental deste procedimento reivindicatório permanece ileso, a saber, trata-se de uma forma de luta anticolonial, em especial se referenciado à sua aplicação na Índia, com o objetivo e libertação do domínio britânico. Agora, todavia, sob a captura pela retórica liberal e sua reelaboração ideológica, a “nãoviolência” tornou-se um instrumento de “guerra psicológica”, cujo objetivo é condicionar a opinião pública inteiramente, até o ponto em que ela ache tolerável o objetivo final desse processo: a “desestabilização e o golpe de Estado” (LOSURDO, 2012, p. 264). De modo tal que, resume Losurdo (2012, p. 273): “A não violência, de arma na mãos dos mais fracos, transformou-se em mais uma arma dos poderosos e prepotentes que, também fora da ONU, estão determinados a impor a lei do mais forte”17. Em resumo, se antes a não-violência era uma forma de protesto contra a política imperial escritos de Platão, uma vez que não se pode abstrair de uma ideia bem fundamentada de Verdade, algo que os filósofos gregos com os quais se dialogou neste trabalho sempre ressaltaram. Cf. MARX, Karl. Ad Feuerbach [1845]. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl (Org.). A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martonaro. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 533, 2ª tese. 15 Uma vez mais, o problema enfrentando por Safatle, em sua obra já mencionada, apresenta sua atualidade teórico-prática. Ver, a esse respeito, a nota 9. Sobre a cínica retórica norte-americana, ver: MÉSZÁROS, István. Socialismo o barbarie: la alternativa al orden social del capital. Tradução de Rodolfo Athayde. 3ª ed. Ciudad de La Habana: Passado y Presente, 2005. 16 Cf. LOSURDO, Domenico. A não-violência: Uma história fora do mito. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. Rio de Janeiro: Revan, 2012. 17 Com respeito à tentativa de “impor à lei do mais forte”, esclarece-se, então, o porquê da extensa alusão à doutrina sofista, delineada no início desta exposição. De modo análogo, também na história moderna é possível observar a desestruturação social e política que a generalização desta lógica implicou. Ademais, em referência, propriamente, às tentativas norte-americanas de desestabilização de

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 do Ocidente e de seu expansionismo colonial, agora ela se transforma em um instrumento da política mesma imperial desse Ocidente, o qual se transveste no “guardião da consciência moral da humanidade”18. Uma vez mais é necessário retomar Aristóteles. Como o Estagirita expôs em sua obra já tratada, a retórica, ao relacionar um certo grau de intelecção e de ciência política, requisita instrução quanto à formação cultural e histórica do povo, público-alvo do debate. Disso decorre a utilidade, para os oradores, de certas “pesquisas históricas”. Ora, em razão dos argumentos precedentes, referentes à história como “terreno da verdade”, poder-se-ia deduzir, então, que ao recorrer aos historiadores, estariam os oradores em presença da Verdade. Mas, deve-se, em primeiro lugar, se indagar que gênero de história se trata aquela a que os retóricos fazem referência? A História a qual, em última análise, a tradição retórica liberal, assim como os próprio ideólogos liberais, assentam-se é a de uma historiografia dissolvida na “hagiografia”. O que significa que a séria investigação histórica das determinações histórico-concretas da realidade cede lugar a um “discurso todo centrado sobre o que para a comunidade dos livres é o restrito espaço sagrado” (LOSURDO, 2006, p. 313). Espaço este imaginado com base na auto apologética liberal, como defensora única e exclusiva da liberdade e dignidade dos homens, e na consequente exclusão do “espaço profano”, a saber, espaço próprio dos negros e indígenas nas colônias, dos servos nas metrópoles, além dos demais povos não-ocidentais. Dessa maneira, só é possível conceber a nascente América do período, como uma terra regida pelos “princípios de ordem, de ponderação dos poderes, de verdadeira liberdade, de sincero e profundo respeito aos direitos”, como escreve Tocqueville (2019, p. 12), em razão de cegueira ideológica com respeito ao destino dos negros e dos pele-vermelhas desse território. Por fim, conclui Losurdo (2006, p. 39) acerca do cruzamento entre ideologia e retórica liberal nos Estados Unidos, Inglaterra e Holanda, as três célebres nações liberais do mundo moderno em formação: “Resta o fato de que nas três revoluções liberais, reivindicação de liberdade e justificação da escravidão e dizimação (ou aniquilação) do bárbaros se entrelaçam estreitamente”.

países, visando realizar golpes de Estado, basta observar a situação atual da Venezuela, Cuba, Coreia do Norte, China, todos países alvos do imperialismo norte-americano, sofrendo com os embargos econômicos implementados. 18 Cf. LOSURDO, Domenico. A não-violência: Uma história fora do mito, p. 276-277. Já em Walter Benjamin é possível encontrar uma reflexão sobre a proximidade entre um “ideal estereotipado do pacifismo” e o “misticismo de guerra”. Ver, a esse respeito: BENJAMIN, Walter. Teorias do fascismo alemão. In: BARRETO, João (Org.). O anjo da história. Tradução de João Barrento. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 112.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 POLÍTICA DO SIMULACRO: VIDA NUA COMO ALVO

Uma vez esclarecido o primeiro conceito da tese central deste trabalho, concernente à retórica, resta ainda investigar, mais demoradamente, o sentido do segundo conceito desta tese, qual seja, o de “simulacro”. Para tanto, é imprescindível elucidar um dos objetivos secundários desta pesquisa. Ou seja, busca-se aqui “reverter o deleuzeanismo”, colocá-lo de pé (roverciarlo). Em virtude de tal empreendimento, nada mais natural do que partir do fim, ou seja, da conclusão escrita por Deleuze (2000, p. 270) em Platão e o simulacro, segundo a qual a modernidade vem definida pelo simulacro. Deve-se, em primeiro lugar, realizar um “desvio” com relação à argumentação deleuzeania, para que não se incorra em uma celebração acrítica da modernidade. É o filósofo francês Badiou quem mais decisivamente relaciona a categoria de simulacro com a experiência do “terror”, presenciado durante o período nazista. Sob esta aparente conexão bizarra, esconde-se uma profunda intuição sobre a modernidade, ao menos no que diz respeito ao século XX: tal século é incompreensível caso não se enfrente, teoricamente, o que foi o nazismo, buscando compreendê-lo para além dos julgamentos de valor, ao contrário, investigando seus dispositivos políticos e a estrutura jurídica que permitiu a sua concretização.19 Para Badiou, no simulacro que se verificou com o nazismo, o que se deve assinalar é, antes, o “simulacro da verdade” lá presente. Insiste Badiou (1995, p. 83): “Simulacro deve ser tomado em seu sentido forte: todos os traços formais de uma verdade estão em funcionamento no simulacro”. O destaque à filosofia de Badiou é aqui realizado, menos no intuído de compreender os pressupostos ontológicos e procedimentais de sua teoria, relacionados aos conceitos de subjetivação, acontecimento, evento, dentre outros. Na verdade, o que importa para esta pesquisa é, sobretudo, a indagação que se apresenta a partir da correlação estabelecida por Badiou entre simulacro e terror. A tese de Badiou é o mote, aqui, para uma reflexão mais ampla: afinal, como ocorre esse entrelaçamento? E qual a relação entre o terror descrito por Badiou, próprio do nazismo, e os “terrores” anteriormente apresentados?

19 Remete-se, aqui, à orientação fornecida por Giorgio Agamben: “A pergunta correta em relação aos horrores cometidos nos campos

não é, portanto, aquela que questiona hipocritamente como foi possível cometer crimes tão atrozes contra seres humanos; mais honesto e, sobretudo, mais útil seria indagar atentamente através de quais procedimentos jurídicos e de quais dispositivos políticos seres humanos puderam ser tão integralmente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até que cometer nos seus confrontos qualquer ato não parecesse mais como um delito (nesse ponto, de fato, tudo tinha se tornado realmente possível)”. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: Notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 44.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Não se trata, tão somente, de afirmar que o nazismo também se exerceu com base em uma retórica, fundamental, para sua concretização. A retórica nazista consistiu-se, esclarece Badiou (1995, p. 83-84) na elaboração, fantasiosa certamente, de uma imagem dos alemães ou arianos como uma “particularidade fechada de um conjunto abstrato”. Conjunto este que só se sustenta se definirem um inimigo, o “judeu” – como também os homossexuais, os comunistas, os ciganos, dentre outros – que deve desaparecer, para assegurar a manutenção da suposta “substância” alemã. Sem dúvida a dimensão retórica do nazismo é fundamental para sua compreensão, mas é insuficiente para uma precisa articulação com os outros terrores que marcaram a história moderna, sobretudo nos países de tradição liberal e em suas colônias. A hipótese formulada para compor tal articulação reside no conceito central da filosofia de Agamben, a saber: “estado de exceção”. Situação histórico-concreta decidida pelo “soberano”, mediante poder que opera uma separação na esfera da vida. Como já assinalado, os gregos possuíam dois termos para designar a vida: zoé, como “vida nua”; e bíos, “vida qualificada”, forma de vida em que está em jogo a própria vida que se quer alcançar.20 O poder político fundado na soberania e articulado via exceção, é aquele no qual ocorre a separação da esfera da vida nua, a qual converte-se, daí em diante, no fundamento último do poder soberano, poder cuja expressão máxima consiste no domínio sobre a vida e a morte de seus súditos. A vida nua, segundo Agamben (2015, p. 15), é “conservada e protegida somente na medida em que se submete ao direito de vida e de morte do soberano”. O paradoxo, aqui em questão, é justamente o concernente à vida nua, a qual é excetuada, ao mesmo tempo em que é incluída na cidade. Vida nua esta que não pode ser plenamente incluída na cidade, o que significaria subscrição a um conjunto de direitos e garantias, próprias da vida juridicamente qualificada, o que resultaria no fato dela deixar de ser uma vida nua. Ora, isso não seria possível, pois a vida nua é o fundamento do poder soberano. O mesmo princípio se observa na impossibilidade de excetuar, completamente, a vida nua da cidade. Daí o paradoxo, sustenta Agamben (2002, p. 15) de ter que se situar no limitar indiscernível entre o dentro e fora, entre o direito e a violência desenfreada, tratando-se, por fim, em uma “exclusão inclusiva (uma exceptio) da zoé na pólis”. Esclarece, ainda, Agamben: [...] decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível 20

Ver, nesse tocante, nota 3.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 indistinção. O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e captura pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vida nua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento político e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal como da emancipação dele. (AGAMBEN, 2002, p. 16-17)

A propósito da “exceção”, bem como do “homo sacer”, ou seja, da vida nua conecta àquela exceção, como paradigma das relações jurídicas cotidianas, reportar-se ao exemplo da Inglaterra do século XVIII, onde é perceptível a manutenção de uma assim chamada “legislação terrorista” (LOSURDO, 2006, p. 97). Tal codificação, ao estabelecer como princípio supremo a defesa da propriedade, termina por secundarizar certas vida, a saber, a dos escravos, dos negros libertos e, não se pode esquecer, dos trabalhadores pobres, relegando-os à condição de vida nua. Pode-se, com efeito, citar os recorrentes “mandatos em branco”, que permitiam à polícia, a seu bel-prazer, prender ou revisar alguém. Ou, ainda, a aplicação da pena de morte, realizada não apenas com grande facilidade, mas, igualmente, com evidentes arbitrariedades, aplicada, até mesmo, em meros ladrões de cervos – o que ilustra a primazia da propriedade ante a vida. O que está, pois, em questão é que sob a massa de miseráveis pesa uma legislação que não é marcada por quaisquer garantias legais. Ao contrário, a lei aplica-se, suspendendo-se, ao mesmo tempo que cria uma massa de sujeito submetidos e, também, excluídos do âmbito da legalidade. Como visto, a exceção é um elemento constitutivo do poder soberano, o qual se forma ao decidir sobre a existência ou não do estado de exceção. Agamben, ao formular tal teoria, reporta-se à 8ª tese Sobre o Conceito de História, de Walter Benjamin (2016, p. 13), segundo a qual: “A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a essa ideia”. Todavia, essa tese visa compreender, em um primeiro momento, uma nova situação histórico-política, na qual a exceção não é mais um mero instrumento que o soberano se vale para assegurar seu poder nos momentos de crise e instabilidades – não se exclui, aqui, o caráter constitutivo e essencial que conecta intimamente o soberano à exceção, mas, tão somente destaca-se o aspecto instrumental e prático da exceção, aspecto este que é agora ampliado e generalizado. O que se verifica, inicialmente, com a tese de Benjamin, é a radicalização desse instrumento, de modo que a “exceção se torna regra”, não estando mais à margem da política cotidiana e prática, mas inaugurando um novo paradigma político.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Em face de tal generalização, é preciso, antes de mais nada, esclarecer uma diferença qualitativa, pressuposição para a compreensão desse novo fenômeno. Mais do que indicar o estágio histórico no qual a exceção se torna regra, Benjamin sustenta uma tese muito mais radical, qual seja, que a exceção sempre foi regra para certos indivíduos, de certas classes, assim como, completa-se aqui, de certas raças e nacionalidades. Este é o motivo pelo qual Benjamin faz referência à “tradição dos oprimidos”. Com a novidade histórica, analisada por Benjamin, conclui-se o seguinte: a apologética segundo a qual verificar-se-ia, nos países liberais, o reinado da liberdade e da igualdade é falsa, não somente se considerarmos a massa negra e indígena excluída desde o início dessa equação, mas também se considerarmos os brancos proprietários. Ainda que explicitar a condição dessa massa negra e indígena seja a refutação mais contundente da apologética em questão, o outro lado da equação também deve ser levado em consideração. Sequer os brancos livres e proprietários desfrutavam de tão irrestrita e, por que não dizer, ilusória liberdade. Atenta-se aqui para o fato de que também a classe dos proprietários estavam submetidos a um biopoder capilar que visava disciplinar suas ações. Os códigos coloniais também estavam destinados a disciplinar os brancos, os quais, embora exercessem um poder absoluto, de vida e de morte, sobre seus escravos, não podiam questionar o processo de reificação e mercantilização dos negros, já consolidado no país. Com isso, entende-se que não era permitido, por exemplo, ensinar os escravos a ler e a escrever, manter relações sexuais com eles ou mesmo compor matrimônio inter-raciais. A figura dos abolicionistas brancos, tão duramente reprimidos por seus próprios membros de classe, é paradigmática dessa disciplina. (LOSURDO, 2006, p. 109) A despeito desse controle, a exceção que se exerce sobre os negros e pele-vermelhas é de outra ordem. Isto é consequência do cruzamento que se verifica, a partir do novo estágio histórico, entre a ampliação da exceção também para os brancos, com o fato de que a massa de oprimidos sempre experimentou a exceção. Portanto, todos os setores sociais estavam, a partir desse momento, experimentando a exceção, ainda que existisse aí uma importante diferença qualitativa. Os brancos proprietários, por mais submetidos à disciplina – biopolítica - que estivessem, não eram reduzidos sistematicamente à condição de vida nua, ou seja, de “vida matável”. Ao passo que os demais indivíduos sim. Dessa forma, com o aprofundamento da exceção que tem por alvo grupos precisos (escravos, trabalhadores pobres, indígenas, judeus, homossexuais etc.) – ainda que todos da sociedade estejam potencialmente suscetíveis de se tornaram vítimas – surge o “campo de concentração”, cujo modelo mais conhecido é o Lager nazista. Campo que, segundo Agamben

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 (2015, p. 42), é o “espaço que se abre quando a exceção se torna regra”, especificando, ainda, que o campo é o “espaço inaugural da modernidade”.21 O que permite, pois, relacionar a imagem do campo, tal como aparecia no Lager nazista, com os outros trágicos acontecimentos descritos acima, próprio no terreno das nações liberais? Para Agamben, é insuficiente para a compreensão da essência do campo elencar seus aspectos exteriores ou mesmo históricos. De modo análogo, a riqueza da tese do Benjamin não está no plano histórico, mas na diferenciação dos graus de exceção, a partir, aí sim, de uma nova situação histórica. Com efeito, sustenta Agamben (2015, p. 45) que a essência do campo é a “materialização do estado de exceção” e a “criação de um espaço para a vida nua como tal”, de modo que toda vez que se deparar com tais elementos, estar-se-á defronte, virtualmente, a um “campo”. Desse modo, o campo vem assimilado como “a matriz oculta, o nomos do espaço político no qual ainda vivemos” (AGAMBEN, 2015, p. 41). É no campo que ocorre, de forma mais violenta, os paradoxos já mencionados, em que o que é excluído vem, ao contrário, capturado de fora, “incluído através da exclusão”, esclarece Agamben (2015, p. 43-4). Tudo se torna possível, pois, nessa zona de indistinção, a vida vem capturada diretamente, ou seja, sofre os efeitos sem mediação do biopoder radicalizado. Os homens são despidos de todo estatuto jurídico e político, de seus direitos como cidadãos, reduzidos, então, à pura vida biológica, tal como se verificou na Alemanha nazista com os amplos processos de desnacionalização dos judeus. Daí o porquê Hitler insistir que sua meta era a construção de um “espaço sem povo”, pois povo é, ainda, uma categoria jurídica, referente a uma vida politicamente qualificada (AGAMBEN, 2008, p. 92). Algo semelhante pode ser inferido com relação aos processos de expropriação das terras dos pele-vermelhas nos Estados Unidos, durante os séculos XVIII e XIX. Os indígenas eram, então, reduzidos à “bestas selvagens”22, sem real direito de propriedade às suas terras. Dá-se, pois, lugar ao “mito genealógico” concernente à certos indivíduos que teriam sido eleitos por Deus para ocupar um “deserto” ou as “florestas virgens”. Em resumo, a imagem do “berço vazio”, referente à terra dos pele-vermelhas, é o sustentáculo ideológico para as expropriações e massacres. De fato, o que estava em curso no Oeste norte-americano era o prelúdio da retórica de um “espaço sem povo”

21

Cf. AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: Notas sobre a política, p. 111. Nota-se na divergência de diagnóstico, entre Agamben e Deleuze, a respeito do que é a modernidade. Em breve, na exposição, esclarecer-se-á o ponto em que tais diagnósticos dialogam, ou seja, de que maneira a modernidade é tanto o espaço do simulacro quanto o espaço em que surge o campo. 22 Cf. LOCKE, John. Two Treatises of Government. London: Cambridge University Press, 1988, p. 45.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 (LOSURDO, 2006, p. 243-247). Tudo isso assinala, em resumo, o significado da generalização da exceção e do seu aprofundamento para aqueles que sempre à experimentaram. Ou seja, quando a exceção, com os seus diferentes graus, se torna uma prática normal de governo. Neste ponto, o biopoder, definido por Foucault (2002, p. 287) como aquele que visa “fazer viver e deixar morrer”, como referência especial ao cuidado com os corpos, sofre uma inflexão. Segundo Agamben (2008, p. 89), tal inflexão consiste no fato de que o “biopoder de fazer viver se cruza com uma não menos absoluta generalização do poder soberano de fazer morrer, de tal forma que a biopolítica coincida imediatamente com a tanatopolítica”. Tanatopolítica é o signo de uma época na qual a exceção se torna regra, ou seja, generaliza-se. Se os colonos brancos na recém-formada América do Norte estavam submetidos a um biopoder, os escravos e pele-vermelhas, por sua vez, enfrentavam, desde então, esse “poder de morte”, como uma exceção radicalizada e aprofundada em seus seres. Desse modo, o “terror” não se trataria, como pensou Badiou (1995, p. 86), na “pura e simples redução de todos ao seu ser-para-a-morte”. Afinal de contas, não são “todos” a serem reduzidos efetivamente23 a esse estágio, mas somente certos indivíduos, selecionados por razões de ordem econômica, mas também culturais – como o preconceito que pode se observar no confronto com judeus e homossexuais. É a esse aspecto da Tanatopolítica que se liga o “simulacro”. Em virtude deste longo desvio argumentativo na exposição, pode-se, finalmente, retornar à intervenção de Deleuze, munido agora de um denso repertório teórico-prático para julgar suas análises. Pode-se sustentar que Deleuze, de alguma forma, ou inconscientemente – ainda que tal argumento seja forçoso – percebeu tais elementos “terroristas” do simulacro. Com efeito, a propósito do simulacro, Deleuze (2000, p. 262-263) não deixa de assinalar que “aquilo a que pretendem, [...], pretendem-no por baixo do pano, graças a uma agressão, de uma insinuação, de

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Um leitor atento de Agamben perceberá que estou propondo uma nova releitura de sua obra. Um esclarecimento do que consiste, de fato, minhas discordâncias com o núcleo fundamental da filosofia agambeniana só será possível em um trabalho futuro. Todavia, uma hipótese orientadora de tal discordância já pode ser aqui ilustrada. Consiste, com efeito, em um problema de ordem “ontológica”, mais precisamente, com respeito à interpretação de Agamben sobre as “categorias modais” de Aristóteles, em que a categoria de possibilidade (ou potência) assume a importância fundamental. Se aqui, chamo a atenção para a categoria de efetivamente, é para destacar, ainda que alusivamente, os problemas e riscos de elevar a noção de possibilidade, não devidamente relacionada com àquela de efetividade, ao centro do pensamento. Me parece que um dos riscos mais imediatos é a abstração do fato de que embora na sociedade todos possam, em potência, serem reduzidos à pura vida nua, efetivamente nem todos o são. Para destacar essa diferença, é imprescindível elaborar uma consistente Crítica da economia política, afinal de contas é por razões de ordem econômica, em primeiro lugar, que os indivíduos, sobretudo nas periferias do sistema capitalista, são reduzidos à “vida matável”. Ademais, razões de ordem culturais, como saliento no trabalho, também devem ser levadas em consideração. Não se pode esquecer que, no Brasil, existe algo chamado “cultura do estupro”, segundo a qual são as “mulheres” a serem reduzidas à objetos (aspecto da “reificação”), bem como reduzidas à vida nua. Ora, por mais que os homens estejam, em potência, sob o risco de redução à vida nua, efetivamente jamais serão alvos e vítimas, direitas, da “cultura do estupro”. Jamais serão mortos por essa razão.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 uma subversão ‘contra o pai’, e sem passar pela Ideia”. Mais adiante em sua exposição, Deleuze esclarece ainda que diferente da cópia, que é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro é uma “imagem em semelhança”. Ele se reporta, então, para explicar essa particularidade do simulacro, à noção de “pecado” bíblica. Se o homem nasce como a “imagem e semelhança de Deus”, após o pecado, ele perde a semelhança, embora conserve a imagem. Sustenta, por fim, Deleuze: “Tornamo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética”24. Daí, conclui, sobre o “caráter demoníaco do simulacro”. Além da percepção acertada sobre o caráter “demoníaco’ do simulacro, da qual ele deduz conclusões inaceitáveis, também estamos de acordo com Deleuze (2000, p. 261) quanto ao fato de que o simulacro “não é simplesmente uma falsa cópia, mas que põe em questão as próprias noções de cópia... e de modelo”. Complementa, Deleuze, ainda sobre o simulacro: [...] não podemos nem mesmo defini-lo com relação ao modelo que se impõe às cópias, modelo do Mesmo do qual deriva a semelhança das cópias. Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma dessemelhança interiorizada. (DELEUZE, 2000, p. 263)

Sustenta-se, neste trabalho, que o modelo do Outro em questão é justamente o “campo”, figura por excelência da Tanatopolítica. Neste “modelo do Outro”, de fato, sua cópia biopolítica, ou seu modelo, perdem sua razão de ser, são postos em questão. Não há mais qualquer justificativa plausível para uma gestão liberal biopolítica, cujo resultado é inevitavelmente o campo de concentração, a saber, a morte e o niilismo total. Com razão, Deleuze (2000, p. 268) percebe que o simulacro, aqui configurado como tanatopolítica, é aquilo que “engole todo o fundamento”. O erro de Deleuze se origina do fato de que sua orientação teórico-metodológica e suas hipóteses filosóficas, a saber, sua busca por uma “inversão do platonismo”, não o permitem conduzir sua atenção para as determinações histórico-práticas que estão na base da modernidade. É em razão da compreensão de tais determinações que é possível ler a história moderna como um processo de aprofundamento e generalização da exceção. Deleuze (2000, p. 262), ao contrário, aposta no simulacro, como uma “potência do falso”, ou, mais precisamente, como uma potência positiva capaz de desarticular a filosofia representativa platônica, com suas referências ao modelo e

24 É indispensável recordar a tese de Walter Benjamin, segundo a qual um componente fundamental do fascismo, assim como de uma

época em se converte no seu “próprio espetáculo”, é a “estetização da política”, cabendo ao comunismo, no sentido oposto, “politizar a arte”. Já se pode, com efeito, antecipar que a “existência estética” celebrada, como veremos, por Deleuze, não é inequivocamente algo positivo. Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da cultura de massa. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 6 ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 253-254.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 à cópia. Entretanto, como visto, essa potência nada mais é do que uma “potência de morte”.25 A saída desse impasse não está na vitória do simulacro, como gostaria Deleuze, nem mesmo no triunfo da cópia, o que faria com que o simulacro fosse recalcado. Como é sabido pela psicanálise, todo recalque termina por emergir à superfície e dominar aquele que tentou afundá-lo. A saída possível está, antes, na busca por desativar tanto a cópia como o seu simulacro.

EXCEÇÃO E REDUÇÃO DA PHONÉ AO LÓGOS

Até o presente momento da exposição, analisou-se o primeiro aspecto da tese aqui apresentada, relativo à retórica, além do seu segundo elemento, concernente ao simulacro. Agora, é necessário buscar uma articulação mais precisa entre tais momentos precedentes, investigando o que significa, em sua dimensão profunda, a “retórica do simulacro”. E o aspecto da soberania, em seu exercício relativo à exceção, que permite melhor visualizar tal articulação, é aquele concernente à captura da linguagem dos indivíduos submetidos ao poder soberano. De tal forma que, se em um polo, o poder soberano exerce sua retórica destituída de substância verdadeira – algo que a investigação do terreno histórico-concreto pode facilmente identificar –, no polo diametralmente oposto, os indivíduos, seus “súditos”, são relegados ao silêncio. Nesse tocante é imperioso recordar que, com o exercício da soberania, o que se verifica é o estabelecimento de uma zona indiscernível entre a violência e o direito, bem como entre a natureza e o lógos, como estrutura própria do ordenamento jurídico ou do Estado. É este último paralelo que aqui importa analisar, a saber, entre a natureza, ou o ser vivente, e o lógos, termo que, como se sabe desde os gregos, pode indicar tanto a “razão” como também a “linguagem”. Assim, no estado de exceção, esclarece Agamben (2015, p. 104), “a lei (a linguagem) se mantém em relação com o vivente retirando-se dele, abandonando-o à sua própria violência e à sua própria irrelatez”. É com atenção ao caráter da irrelatez, então assinalada, que se pode concluir que a “vida sagrada pressuposta e abandonada pela lei no estado de exceção é o portador mudo da soberania, o verdadeiro sujeito soberano”.

25

O mesmo argumento também pode ser apresentado em face da compreensão de Deleuze do “eterno retorno” nietzschiano. Segundo Deleuze, o “eterno retorno”, assim como o simulacro, possui a “potência do falso” capaz de desarticular a filosofia representativa platônica. Todavia, como demonstrei em outro lugar, a lógica do “eterno retorno” está, assim como o simulacro, muito próxima da “potência da morte”, reinante no “campo”. Ver, a esse respeito: ARAUJO, Alan Duarte. O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche à Primo Levi. Revista Lampejo. Fortaleza, v. 6, n. 1, p. 166-178, 2017. Disponível em: < http://revistalampejo.org/edicoes/edicao-11-vol_6_n_1/012-O_AQUEM_DO_BEM.pdf>. Acesso em: 30 maio 2020.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Convém observar que o exercício da soberania, que reduz o homem à muda irrelatez, só é plenamente compreensível caso se destaque que, assim como em Aristóteles, o conceito de “homem” em Agamben é pensado a partir de sua essência genérica linguística. Nesse tocante, sustenta Agamben: Não é um acaso, então, que um trecho da Política situe o lugar próprio da pólis na passagem da voz à linguagem. O nexo entre vida nua e política é o mesmo que a definição metafísica do homem como “vivente que possui a linguagem” busca na articulação entre phoné e logos.26

Em Agamben (2015, p. 107) é, pois, a própria linguagem o que permite ao homem realizar uma “experiência material possível do ser genérico”, do seu próprio ser-na-linguagem, ser que comunica, não um “comum”, mas a própria comunicabilidade. Todavia, o que se observa na política hodierna, configurada como simulacro, é uma experiência diametralmente oposta, ou seja, uma expropriação da linguagem e da possibilidade mesma do homem comunicar sua própria comunicabilidade. Em acordo com a lógica categorial e expositiva de Aristóteles, poder-se-ia sustentar que o que se verifica na modernidade é um retorno à “voz” (phoné), ao zoé propriamente dito, que é capturado e mantido no limiar de indiscernibilidade da exceção. Problema que não foge por inteiro de Platão (Soph. 222b), uma vez que o filósofo grego já indicava, com sua primeira definição do sofista, que o homem vem capturado pela palavra, como se fosse um animal doméstico encurralado por uma caçador. O que está em questão aqui é o elemento da retórica, na sua articulação com a política simulada, desvelando os contornos fundamentais do poder soberano. É justamente nos campos de concentração onde se pode verificar a expressão extrema dessa apropriação linguística, ou redução do homem à phoné. O campo não só é responsável pela gestão da vida nua, como também é responsável por produzir sua figura mais degradada, situada no limiar entre a vida e a morte: o mulçumano27. Ilustrativo quanto à essa degradação é, pois, Hurbinek, uma

26 Cf.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua, p. 15. Sobre o conceito de homem em Agamben, assim como de sua proximidade com a filosofia aristotélica, ver: DUARTE, Alan; NOBRE, Emanuel. A potência do testemunho: um diálogo entre Aristóteles e Agamben. Revista Profanações. v. 5, p. 167-184, 2018. Disponível em: < http://www.periodicos.unc.br/index.php/prof/article/view/1680/867>. Acesso em: 30 maio 2020. 27 “Muçulmanos” são os personagens que surgem no “campo”, os quais, já sem forças para resistirem, estavam próximos ao fim, de modo que os demais prisioneiros sequer dirigiam a palavra a eles, ou mesmo aproximavam-se deles na hora do trabalho, uma vez que não lhes restavam força de vontade para maneirar no trabalho, tendo em vistas a própria conservação. “Conceito-limite” do homem, situado na fronteira entre “humano” e “inumano”, de modo que é inevitável o questionamento acerca do conceito mesmo de “homem”. No “campo”, a morte apresenta-se antes da morte física. O “muçulmano” é a prova disso. Ver, a esse respeito: LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 70-71. Esta descrição confirma o que se sustentava na

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 criança nascida em Auschwitz. Segundo o testemunho de quem sobreviveu aos campos, Hurbinek nunca aprendeu a falar, todavia, volta e meia, balbuciava sons desarticulados – mass-klo, mastiklo –, algo parecido com uma “não-linguagem ou uma linguagem mutilada e obscura”. Daí o paradoxo que nasce do testemunho: não se trata de testemunhos integrais, pois estes só poderiam ser fornecidos por quem tocou o fundo das câmaras de gás, ou seja, que “fitaram a górgona”, experiência da qual, nos lembra Agamben, se retornam mudos ou sem vida. De modo análogo, o paradoxo também emerge do fato de que se testemunha pela impossibilidade de testemunhar, a saber, testemunhase por delegação, cedendo lugar à uma “não-língua”, como o balbuciar desarticulado de Hubirnek. (AGAMBEN, 2008, p. 46-48) Algo análogo pode ser constatado em situações não tão extremas, observáveis no cotidiano das democracias liberais contemporâneas. Todavia, se nos campos o exercício da soberania reduz os indivíduos à mera voz (phoné), nas democracias essa redução apresenta-se, mais propriamente, como um “silêncio”, não imposto, mas naturalmente gestado. Como sustenta Badiou (1995, p. 44), a política parlamentar atua, em essência, de maneira a “transformar o espetáculo da econômica em opinião consensual resignada”. Com isso, o filósofo francês se refere ao elemento subjetivo de tal dinâmica política, a saber, o elemento referente aos processos de constituição subjetiva ou, em termos mais precisos, da formação da “opinião pública”. Para tanto, é indispensável, em conformidade com a política parlamentar, o papel dos media, os quais, por meio dos jornais, televisão e propagandas, terminam por tirar “literalmente a palavra das pessoas, impedindo que às palavras lenta e cansativamente reencontradas seguissem os fatos”, aponta Agamben (2015, p. 112). Assim, não raro, encontra-se de manhã, já pronto nos jornais, o que devemos pensar e sentir a respeito de determinados fatos. A natural consequência dessa conformação subjetiva, além do silêncio que a acompanha, é o sentimento de impotência e de angústia, bem como a “frustração tranquilizadora”. Ou seja, ao já se elaborar o que devemos sentir e pensar, visa-se, com isso, tranquilizar os leitores e telespectadores, fazendo-os se submeterem ao referencial econômico dominante. Todavia, é próprio da expropriação das capacidades expressivas e linguísticas produzir o efeito oposto, que não a tranquilidade, mas a frustração, sobretudo, por não poder enunciar, não só o que se sente e pensa, mas principalmente por não poder enunciar a expropriação mesma.

seção anterior, referente aos “graus” de exceção. Afinal, o “mulçumano” é o elemento que representa a degradação mais extrema a que a vida pode chegar, imersa em um contexto de exceção, ou seja, em um simulacro da política.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Essa expropriação é o que permite explicar o aparente paradoxo apresentado por Zizek (2002, p. 2), com respeito ao cotidiano das democracia liberais: “sentimo-nos livres pela falta de uma língua em que articular nossa não liberdade”. Em virtude de tal falta e silêncio, nasce a indiferença ante às ações humanas, em que o insuportável torna-se, de repente, um horizonte inescapável. Afirma, pois, Agamben (2015, p. 112): “Nunca uma época esteve tão disposta a suportar tudo e, ao mesmo tempo, a achar tudo intolerável”. E pensar no que é, então, intolerável nesse contexto é o que, igualmente, explica essa contradição. “Mas o que é precisamente insuportável hoje na Itália?” Se indaga Agamben, para logo em seguida responder: ‘Certamente, e antes de tudo, essa silêncio, esse encontrar-se sem palavras de todo um povo diante do seu próprio destino”. Assim, diante desta impotência absoluta, resultante do fato de sempre deparar-se, segundo Agamben (2015, p. 121), com a “solidão e o mutismo justamente ali onde esperávamos companhia e palavras”, observa-se a consequente despolitização da sociedade. Algo que, sem dúvidas, não escapou à atenção de Aristóteles, uma vez que a comunidade se forma, para o filósofo grego, justamente no “comércio da palavra”. Com o regresso da palavra à voz, além do domínio da silêncio, é a comunidade mesma que começa por desagregar-se. Em vista disso, pode-se sustentar que todas as categorias políticas que marcaram a gramática moderna, a saber, soberania, direito, nação, povo, democracia, dentre outras, todos esses termos perderam sua razão de ser, ou, antes, encobrem uma realidade há muito ultrapassada, ou seja, encobrem o vazio e a ausência de substância situadas no núcleo do simulacro. A esse respeito, afirma Agamben (2015, p. 102): “A política contemporânea é esse experimento devastador, que desarticula e esvazia em todo o planeta instituições e crenças, ideologias e religiões, identidades e comunidades, para voltar depois e repropor a sua forma definitiva nulificada”. Após o delineamento de tal quadro assustador, ainda que esteja tão próximo de nós, a natural pergunta que se segue é aquela leniniana: O que fazer? Bom, para além dessa questão, existe outra igualmente importante, que até aqui, nesta exposição, evitou-se cuidadosamente abordar. Discorreu-se, com efeito, sobre o simulacro e sobre a cópia a qual ele faz referência. Naturalmente, a atenção deverá se dirigir agora para o modelo político por excelência. A esse respeito, uma coisa ficou clara, a saber, a insustentabilidade da hodierna estrutura jurídica e estatal, em razão da ineliminável desvinculação do seu centro vital, próprio aquele no qual se opera a soberania, a exceção e a captura da vida nua. Nesse sentido, uma autêntica política só pode ser formulada em termos pós-estatais e pós-jurídicos.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 Se o princípio de toda a reflexão acima partiu da filosofia grega, também a conclusão desta pesquisa exige a retomada de tal filosofia, em especial no que concerne à articulação entre política e felicidade. “A pólis, na exposição aristotélica, é o local no qual se verifica a passagem do ‘viver’ (zên) ao ‘bem viver’ (eû zên)”28. E, neste contexto, o bem viver, ou a felicidade dos cidadãos, é muito diversa do sentido definido nas democracia hodiernas, sentido midiaticamente construído, referente, antes de mais nada, à felicidade dos homens no ponto mesmo de sua submissão, qual seja, na vida nua. A vida nua, como já abordado, é o paradigma em torno do qual orbita as democracia liberais modernas. (AGAMBEN, 2002, p. 17) Em contrapartida, a tarefa política por excelência, ou de uma “política por vir”, consiste em orientar-se para uma ideia de felicidade, ao mesmo tempo em que busca construir uma forma-devida, ou seja, “uma vida que jamais pode ser separada de sua forma, uma vida na qual jamais é possível isolar alguma coisa como uma vida nua” (AGAMBEN, 2015, p. 13). Com isso, o que se verifica é a experiência política do ser do homem, como uma “vida de potência”. Um ser cuja essência genérica, intelectual e linguística só se atualiza em comunidade, como bem o sabe Aristóteles. De modo tal que caberia a retórica, uma vez que ineliminável da cotidianidade dos homens, estar subordinada à tal política, em que o homem tornar-se-ia “incapturável”, não mais objeto animalesco de caça. Portanto, tratar-se-ia de uma política dirigida para o zelo da comunidade e união dos homens. A “verdadeira arte política” encaminha-se, pois, à felicidade da comunidade, e o faz por amor (philís) a seus habitantes, e não por amor (éros), tal como se observa na prática retórica. (Gorg. 513c) O procedimento por meio do qual seria possível chegar a tal estágio político não está ainda de todo claro. Entretanto, uma hipótese há, presente, em primeiro lugar, na possibilidade mesma do “testemunho” daqueles que sobreviveram à Auschwitz. Pois, como ser de potência, sustenta Agamben (2008, p. 136), “não é possível destruir integralmente o homem, que algo sempre resta. A testemunha é esse resto”. E, como tal, é o sinal dessa potencialidade que não se esgota e que busca se reapropriar de sua essência linguística, ou seja, articular em palavras sua extrema despossessão e redução à “vida matável”. Essa busca por reapropriação da palavra também pode ser observável em um exemplo mais

28 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua, p. 14. Ainda nesse sentido, esclarece Aristóteles: “A sociedade

que se formou da reunião de várias aldeias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar”. Cf. ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 4.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 próximo de nós, brasileiros, ou seja, com o exemplo das Mães de Maio. Esse é o nome de um coletivo formado por mães, e outros familiares, cujos filhos foram mortos em razão de ações policiais, atuantes como poder soberano nas periferias do país. Tais mães se reuniram e criaram, em 2006, o Movimento Independente Mães de Maio, como uma resposta a uma ação policial arbitrária que resultou na morte de mais de 500 pessoas. Em confronto ao descaso jurídico e estatal, bem como na luta contra o esquecimento das vítimas, tais mães lutam, em essência, contra o silêncio que advém do simulacro político, da exceção que reduz, uns mais outros menos, à condição de vida matável. Não por acaso o tema de tal coletivo é: “Os nossos mortos têm voz”. Trata-se, com efeito, de redescobrir a potência do silêncio.29

CONCLUSÃO

Que o Império norte-americano e as demais democracia liberais possuam um léxico retórico próprio, assentado em palavras e categorias vazias, cuja principal utilidade é reforçar ideologicamente o seu poderio, não é nada de tão surpreendente assim. O verdadeiro mistério está na compreensão não só do que é dito, mas, sobretudo, na falta do que dizer, na falha, ou “lapso” linguístico daqueles que se submetem a tal poder. Assim como na psicanálise é o lapso da palavra que atrai a atenção de seus principais teóricos, também aqui foi o silêncio que despertou o maior interesse. Silêncio não mais de indivíduos isolados, mas de nações inteiras, ou de partes significativas delas, o que, como visto, é o resultado das dinâmicas de exercício do poder soberano, o qual suspende a lei, mas também a linguagem de suas vítimas. Tal processo é o sinal de um novo paradigma político, ou da generalização e aprofundamento da situação excepcional, que foi aqui descrita como a política metamorfoseada em simulacro. E a dificuldade de enfrentamento a esta situação reside, sobretudo, no fato de que o léxico político usual, com o qual se está acostumado e segundo o qual se trabalha pelo menos nas últimas décadas, como democracia, opinião pública, direito, Estado de bem-estar, já não mais significam algo, ou seja, foram submetidos ao processo de nulificação soberana. Diante desta situação, as categorias

29 DARA, Danilo; SILVIA, Débora Maria da. Mães e familiares de vítimas do Estado: a luta autônoma de quem sente na pele a violência

policial. In: KUCINSKI, Bernardo (et al.). Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 83-90. Ainda nesse sentido, deve-se recordar que lição semelhante à aquela de buscar a potência no silêncio pode ser extraída do escrito de Sartre, intitulado A república do silêncio. Ver, aqui: SARTRE, Jean-Paul; GUTIÉRREZ, Rachel. A REPÚBLICA DO SILÊNCIO. fólio - Revista de Letras, [S.l.], v. 1, n. 1, fev. 2018. ISSN 2176-4182. Disponível em: <http://periodicos2.uesb.br/index.php/folio/article/view/2752>. Acesso em: 29 maio 2020.

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Da voz à palavra... E de volta à voz: retórica e simulacro na política moderna, pp. 47-76 políticas tornam-se, pelo contrário, em categorias da impotência, frustração ou silêncio. É daí, pois, que a reflexão deve partir. Resta, portanto, a difícil tarefa de buscar a potência nesse silêncio imposto, gesto que não pode se limitar a sua dimensão simbólica, mas deve, forçosamente, converter-se em força prática. Somente assim algo como uma “político do por vir” pode se delinear nos nossos horizontes.

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NECROPOLÍTICA, FIM DO HUMANISMO E A CRISE DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA Rogério Luis da Rocha Seixas1

RESUMO: Neste artigo, desenvolveremos algumas considerações gerais, referentes a noção de biopolítica e biopoder de Michel Foucault relacionadas com a teoria da Necropolítica, enquanto política de morte e o exercício do necropoder, proposta pelo pensador camaronês Achille Mbembe. Após esta etapa, problematizaremos diretamente, à luz dos aportes teóricos da noção de Necropolítica proposta por Mbembe, uma reflexão crítica referente ao que se aponta como a crise da democracia em nossa contemporaneidade, objetivando discutir e analisar nossa atualidade política dominada por uma racionalidade neoliberal hegemônica e intensamente destrutiva, presente na forma de governar dos Estados democráticos liberais PALAVRAS-CHAVE: Biopolítica, Crise da Democracia, Necropolítica, Fim do Humanismo, Neoliberalismo ABSTRACT: In this article, we will develop some general considerations, referring to Michel Foucault's notion of biopolitics and biopower related to the theory of Necropolitics, as a policy of death and the exercise of necropower, proposed by Cameroonian thinker Achille Mbembe. After this stage, we will directly problematize, in the light of the theoretical contributions of the notion of Necropolitics proposed by Mbembe, a critical reflection regarding what is pointed out as the crisis of democracy in our contemporaneity, aiming to discuss and analyze our political current dominated

1 Docente no curso de especialização em Direitos Humanos, Racismo e Saúde(DIHS)Fiocruz/Ensp. Pesquisador do Grupo Afrosin/UFRRJ. E-mail: rogeriosrjb@gmail.com

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 by a hegemonic neoliberal rationality and intensely destructive, present in the form of the governing of liberal democratic states KEY WORDS: Biopolitics, Crisis of Democracy, Necropolitics, End of Humanism, Neoliberalism

Biopolítica, Biopoder e Governo da Vida No curso intitulado É Preciso Defender a Sociedade, Michel Foucault faz referência ao caráter paradoxal da biopolítica que se insere no fazer viver e deixar morrer, pois se deve reconhecer o potencial de morte do biopoder. Por conseguinte, a biopolítica se utiliza do dispositivo do biopoder para decidir quais membros da sociedade podem viver e quais devem morrer. Mas como um poder de promover a vida, em realidade pode deixar ao mesmo tempo, deixar morrer ou mesmo levar à morte? A resposta encontra-se na prática do Racismo de Estado, gerenciando modos de eliminação dos indesejáveis, dos inúteis, dos descartáveis, para saúde e bom funcionamento do corpo social. Eliminação pela exclusão de determinados grupos ou indivíduos de seus direitos, por exemplo, à assistência social e serviços de saúde, por serem considerados não gestáveis. O racismo é a condição para a prática do direito de morte numa configuração neoliberal e biopolítica do poder. O extermínio e os massacres justificam-se seguindo a lógica do biopoder, predominante na racionalidade política contemporânea. Pode-se descrever um mecanismo para promoção da vida, visando o fortalecimento da espécie, justificando o exercício da violência biopolítica, que causa a morte dos considerados inferiores e dos indesejáveis. Como cita o autor: “Quanto mais numerosos forem os que morrem entre nós, mais pura será a raça a que pertencemos” (FOUCAULT, 2006, p. 272). No aparato biopolítico, o biopoder exerce o direito de morte e o abandono da vida. Em tal circunstância, pode-se descrever a função de um racismo de Estado soberano: justificar o exercício de matar em nome da vida, segundo a morte do inferior, do anormal, beneficiando a vida da raça, a tornando mais sadia, pura. Para Foucault: “O imperativo da morte, só é aceitável no sistema de biopoder se tender não para a vitória sobre adversários políticos, mas para eliminação do perigo biológico e para reforço, diretamente ligado a esta eliminação, da espécie ou raça” (FOUCAULT, pp. 272-273). Outro ponto essencial que necessita ser ressaltado para compreensão desta configuração: uma ligação direta do biopoder com o capitalismo. Segundo o pensador:

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 O biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (FOUCAULT, 2010, p.47).

Trata-se de compreender como o aumento e o confisco das riquezas supõem o desenvolvimento de poderes que capturam as forças vitais para fazer com que participem do processo de criação de riquezas. Em Nascimento da Biopolítica, Foucault ressalta que a biopolítica se inscreve na história do liberalismo político. Citando o pensador: “Parece-me que só depois de sabermos o que era esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos compreender o que é biopolítica” (FOUCAULT,2010, p.47). Liberalismo como racionalidade de governar e não como mero princípio econômico. Neste mesmo curso, Foucault aponta que em nossa atualidade, marcada pelo neoliberalismo, a economia transforma-se em uma técnica de análise para programação estratégica das atividades e dos comportamentos dos indivíduos, objetivando tratar de questões como: qual o modo mais eficaz de se produzir e acumular o capital humano? Como manipular e utilizar sua composição? Tais questões envolvem a “racionalidade de governar neoliberal, destacando-se o papel do mercado, atuando de modo semelhante a um tribunal permanente, que regula as metas da economia política, a partir do governo sobre o capital humano” (FOUCAULT, 2010, p. 211). Foucault observa em História da Sexualidade: a Vontade de Saber, que a prática de governar do poder soberano é agora, recoberta pela “capacidade de administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT,1998, p.131). Um ponto marcante da biopolítica se evidencia: a assunção da sociedade de regulação, quando se estabelecem dispositivos de poder, que invistam no conjunto de indivíduos, objetivando gerenciar os efeitos oriundos da vida em sociedade. O principal objetivo do Estado moderno e das suas instituições, foi o de utilizar a vida humana a seu favor, tirando dela tudo aquilo de que necessitava para que seu poder fosse mantido ou aumentado. Não se pode deixar de levar em conta que a biopolítica se constitui sempre em uma política de vulnerabilidade diferencial. Ao estabelecer uma hierarquia no valor das vidas, produz e amplia a vulnerabilidade como modo de governar os corpos, individualmente e principalmente no coletivo. Neste aspecto, o racismo se apresenta como condição para que os Estados modernos legitimem suas intervenções biopolíticas, caracterizadas como poder de morte. Desta forma, o poder de matar do Estado passa pelo “fato de expor à morte, de multiplicar para alguns riscos de morte ou, pura e

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2006, p.216). Há um fator de exercício de poder que positiva a vida em detrimento da negação da morte, embora esta se faça ainda presente, mas de modo a se promover a boa gestão da população enquanto vida capital, como fonte geradora de produção. Necropolítica e o Poder Soberano de Matar Em seu ensaio intitulado de Necropolítica, Achille Mbembe assume que “a expressão máxima de soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem deve viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2018, p. 11). Não se trata apenas do poder de morte que por si só, não consiste em soberania, pois essa, em sua fase extrema, é aquela que faz viver ou deixa morrer, é o domínio da vida enquanto vida que completa a dominação. Ao atribuir à soberania o poder de decisão sobre a morte, ou seja, de matar ou permitir viver, Mbembe apresenta a política como a morte que vive uma vida, sendo ainda a necropolítica, a subjugação da vida ao poder da morte, que é o necropoder enquanto o conjunto de tecnologias políticas que atuam para estabelecer a gestão e controle das populações e do indivíduo. Esses dois termos, são importantes para dar conta dos modos pelos quais “armas são empregadas no interesse da destruição de pessoas e na criação de mundos de morte, novas e únicas formas de existência social nas quais populações estão sujeitas a condições de vida que conferem a elas o status de mortos vivos” (MBEMBE,2018, p.71). Por sua vez, a soberania é descrita como busca constante de um exercício de poder que supera qualquer limite racional e científico. Se para Foucault, a biopolítica ocorre dentro daqueles territórios no qual o poder é exercido por meio de contratos sociais, isto é, num contexto majoritariamente europeu. A necropolítica abrange outros territórios, como as colônias africanas. O Colonialismo pouco tratado por Foucault, torna-se ponto crucial na reflexão de Mbembe, que acrescenta que a raça, assim como o racismo, possui um lugar de destaque na racionalidade do exercício do biopoder, pois afinal, “mais do que o pensamento de classe, a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros ou a dominação a ser exercida sobre eles” (MBEMBE,2018, p.18). O autor africano destaca que em termos foucaultianos “o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder. Este velho direito soberano de matar” (MBEMBE,2018, pp.18-19). Sua função seria regular a distribuição da morte e possibilitar as funções biopolíticas de matar por parte do Estado. Como tecnologia de governo, os seus mecanismos possibilitam ao Estado, o controle biológico da população, a partir por exemplo de

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 instituições como o sistema de saúde pública na qual, desde o nascimento, as campanhas de vacinação, internação e isolamento, obituário, tudo é regulado pelas normas estatais. Há um exercício de fazer matar sob uma perspectiva que decide justamente em que momento a vida de uma determinada população ou subgrupo ou mesmo indivíduo, deixa de ser economicamente relevante e, consequentemente, pode ser eliminada. Exerce-se o trabalho de morte da política sobre os indivíduos que começam a sobrar diante da estrutura neoliberal atual e que não são mais requisitados a despenderem sua força de trabalho no interior de um processo produtivo amplo. Em nossa contemporaneidade, Giorgio Agamben destaca que qualquer indivíduo corporificado enquanto um “homo sacer. encontra-se diretamente imbricado nas práticas biopolíticas, principalmente porque o Estado contemporâneo atua na seletividade das vidas” (AGAMBEN,2002, p.127). Este autor também afirma que “colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado Moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua” (AGAMBEN,2002, p.14). Investigando qual seria o ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder, Agamben encontra o poder soberano como conector dessa ligação. Entretanto, há uma racionalidade de governo que cria e permite uma gestão da vida, mas de um modo peculiar: na relação entre política e vida para que esta possa ser incluída, primeiro ocorre um processo de sua exclusão. Ou seja, “para entrar no campo da política, a zoé – a vida nua – primeiramente foi excluída da pólis; e somente séculos mais tarde, com o advento do biopoder, ela retorna à cena, sendo então incluída” (AGAMBEN,2002, p.16). Verificase a condição de vida nua, desprovida de qualquer valor para a produção e consumo, “assinalando o ponto em que a biopolítica se converte necessariamente em tanatopolítica” (AGAMBEN,2002, p.128). A relação entre o Estado de exceção e a soberania, resulta em uma autoridade de matar não somente controlada pelo Estado, mas sim que passa a ser distribuída por toda a sociedade. O sentido de soberania, ganha sua expressão máxima no poder e na capacidade do soberano em decidir quem deve morrer ou viver. Partindo deste ponto, Mbembe formula outra importante indagação referente a política contemporânea: como a vida, a morte e o corpo humano estão inseridos na ordem do poder? O pensador defende que “a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte” (MBEMBE,2018 p.71), principalmente que nos possa auxiliar a identificar a possibilidade de matar do poder soberano, pois

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 o autor africano discorda de Foucault, quanto a noção aplicável de biopoder para o fazer viver na política contemporânea. A política da morte ao se coadunar com o Estado de exceção, torna-se capaz de distribuir de forma excludente e desigual recursos políticos, econômicos e de saúde, exercendo-se um exercício de veto por parte do soberano, sobre as condições de vida dos que são classificados como descartáveis e, consequentemente, estabelece-se um poder de decisão de exposição à morte dos grupos considerados como impuros ou marginalizados. Esta exposição a morte, marca a invisibilidade que se localiza no cerne do racismo, negando a humanidade do outro e se desenvolvendo como modelo legitimador de exclusão e descarte. Mais do que isso, o racismo representa a escolha de quem deve ser eliminado ou sobreviver, numa morte que pode ser física, política ou simbólica. O exemplo apresentado é o do Negro, enquanto construção social, representando uma noção que designa a imagem de uma existência subalterna ou um outro tipo de humanidade nociva e indesejável. Este projeto genocida se concretiza na condição do “poder soberano de ditar quem pode viver e quem deve morrer (…) quem é descartável e quem não é” (MBEMBE, 2018, p.41). Há uma estratégia de deixar morrer, que atinge principalmente, de acordo com Agamben os “indignos da vida” (AGAMBEN, 2002, p.128) e, portanto, pode-se constatar que o genocídio em marcha e a biopolítica, se fusionam na produção intensa de mortes, na tentativa de se aniquilar o Outro, sendo este percebido sob a ótica do inimigo e também, sob a lógica da guerra, necessitando portanto, ser exterminado. Desse modo, torna-se imprescindível ressaltar que inserido na política de morte que caracteriza o racismo necropolítico, o Outro é reconhecido como uma ameaça mortal ou um perigo absoluto, se fazendo necessária sua eliminação, para reforçar o potencial de vida e a segurança de uma população ou grupo considerado hierarquicamente superior. Avente-se que o exercício do necropoder, expressa princípios da herança de soberania política Schmittiana, encarnando a prerrogativa do poder soberano em decidir pela exceção dos direitos dos sujeitos declarados enquanto inimigos, tornando-os inclusive matáveis em nome da segurança da estrutura social. Mbembe ressalta que “essas trajetórias pelas quais o Estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar. Em tais instâncias, o poder continuamente se refere e apela à exceção, à emergência e uma noção ficcional do inimigo” (MBEMBE,2018, p.17). A figura do inimigo tratado enquanto um outro que se torna uma ameaça a ser eliminada, segundo

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 um tipo de norma ou regra que o torna passível de ser morto. Podendo ser um indivíduo, grupo ou uma população considerada matável e hostil. Trabalhando a partir desta premissa, Mbembe visa identificar a existência de um vínculo entre a política de extermínio e a guerra, onde a “racionalidade da vida passe pela morte do outro; ou que a soberania consiste na vontade e capacidade de matar a fim de viver” (MBEMBE, 2018, p. 20). Ora, se não há espaço para o outro ou para a diferença, como pensar na possibilidade de se consolidar uma experiência democrática de fato? A democracia que ainda se sustenta em termos de uma visão de soberania tradicional, pode justificar esta prática democrática? Fim do Humanismo e Crise da democracia liberal Em Nascimento da biopolítica, Michel Foucault destaca que para se compreender a biopolítica, deve-se desvelar a lógica da racionalidade política neoliberal que diferentemente do liberalismo clássico, visa “reconstituir não o homem do intercambio, não é o homem consumidor, mas o homem da empresa e da produção” (FOUCAULT, 2010, p.175). Aplica-se o princípio da racionalidade empresarial das condutas e ações dos indivíduos nas teorias do capital humano. O principal objetivo do neoliberalismo passa a ser que o modo de governar a sociedade tenha agora a forma de uma empresa. Observa o pensador que “trata-se de constituir uma sociedade indexada não mais à mercadoria nem à uniformidade da mercadoria, mas à multiplicidade e à diferenciação das empresas” (FOUCAULT, 2010, p.193). Esse sistema empresa/sociedade passa a operar com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros. É por esse motivo que Mbembe ressalta a existência de uma verdadeira economia da violência (BARRIOS,2012, p.137), relacionada com a formação de um mercado/empresa no corpo social e, simultaneamente, a constituição de um dispositivo de poder que implementa o trabalho da morte. Essa percepção econômica e eventualmente política, sob o viés de Mbembe, tem início na fase mercantilista do capitalismo, quando o negro é transformado em mercadoria e que perdura no neoliberalismo, ampliando-se para outros grupos que podem ser elimináveis e matáveis. A escalada de mercantilização de diferentes dimensões da vida social, por exemplo, é indissociável desta condição destrutiva da racionalidade neoliberal dos Estados democráticos atuais. Em seu ensaio

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 Crítica da Razão Negra, o autor ressalta que os corpos são classificados como supérfluos e descartáveis quando as suas capacidades de trabalho diminuem ou cessam, ou ainda, ao não se constituírem mais como necessários ao modo de reprodução próprio ao neoliberalismo. O pensador afirma que tal situação representa a inexistência de trabalhadores propriamente ditos. Significa dizer que no quadro neoliberal, “só existem nômades do trabalho, sendo estes relegados a uma humanidade supérflua, entregues ao abandono e sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital, tornando-se dispensáveis e até mesmo, convertendo-se em vidas matáveis, exatamente por se tornarem inúteis” (MBEMBE, 2014, p.17). A necropolítica define estratégias que resultam na morte de corpos considerados inúteis ou inadaptáveis aos padrões da gestão neoliberal, que se estrutura num sistema baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer. Tudo aquilo que representar algum obstáculo a mercantilização plena da vida e sua administração deverá ser eliminado. Observe-se que com a mercantilização da vida, paradoxalmente, esta deve ser eliminada. Principalmente a vida daqueles cuja condição existencial encontra-se precarizada ao ponto de serem descartáveis. O pensador camaronês também propõe que “a Modernidade sempre esteve nas origens de diferentes e diversificados conceitos de soberania e, por conseguinte, embasando-se na prática da biopolítica” (MBEMBE,2014, p.8). Por este motivo, sua reflexão não se limita aos eventos do holocausto judeu e dos governos denominados como totalitários. A meta primordial é tratar das “soberanias cujo projeto central é a instrumentalização generalizada da existência humana e destruição de corpos humanos e populações” (MBEMBE,2018, pp.10-11). Mbembe vai além, afirmando que tais formas de soberania “constituem o nomos do espaço político em que ainda vivemos” (MBEMBE, 2018, p.11). Para se analisar a soberania na política contemporânea, deve-se utilizar “outras categorias fundadoras menos abstratas e mais palpáveis, tais como a vida e a morte” (MBEMBE, 2018, pp.11-12). Tal perspectiva nos direciona para outro ponto importante, que se refere ao estudo de Mbembe, acerca dos regimes pós-coloniais africanos, apontando para uma relação direta entre soberania e propriedade, quando a partir da figura do escravo, afirma-se a desigualdade do poder soberano sobre a vida. Conforme este pensador: “Esse poder sobre a vida do outro, assume a forma de comércio: a humanidade de uma pessoa é dissolvida até o ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravo é propriedade do seu senhor” (MBEMBE, 2018, p.29). Coisifica-se a vida de tal modo que a manutenção das condições de fazer viver ou a destruição destas para causar a morte, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 obedecem simplesmente a decisões e interesses de poder e economia. Na prática, pode-se destacar como exemplo dessa estratégia, o desmonte da coisa pública em função da coisa privada para validar a gestão dos meios que garantem aquilo que nos termos observados por Foucault em É Preciso Defender a Sociedade defesa da sociedade, fazem com que “o corte entre o que deve viver e morrer” (FOUCAULT,2006,p.271) estejam ligadas a interesses econômicos e não ao bem-estar geral. Saliente-se que a racionalidade neoliberal de governar/administrar a vida da população, impõe a necropolítica pela violência. Partindo deste aspecto, o autor ressalta que apesar da lógica neoliberal estar associada de tal forma com a necropolítica, que ameace a própria estabilidade das democracias, “a crítica política contemporânea infelizmente privilegiou as teorias normativas da democracia e manteve o conceito de razão como um dos elementos mais essenciais, tanto do projeto de modernidade quanto do território de soberania”(MBEMBE,2018,p.9). Mbembe quer destacar que a filosofia política contemporânea persiste na ideia herdada da modernidade de uma soberania que norteia as democracias atuais, enquanto a “expressão máxima de soberania como produção de normas gerais por um corpo composto por homens e mulheres livres” (MBEMBE,2018, pp.9-10). O pensador africano critica ainda essa concepção de política democrática enquanto um “projeto de autonomia e a realização de acordo em coletividade mediante comunicação e reconhecimento” (MBEMBE, 2018, pp.9-11). Tal situação não mais se sustenta, segundo Mbembe, no contexto atual da necropolítica, quando o poder soberano dos Estados modernos, planificado por uma política neoliberal, determina quem irá morrer ou viver, atingindo essencialmente a precariedade das condições e do espaço de vida não apenas dos mais vulneráveis, mas assim como também ameaçando os mais pobres. Deve-se enfatizar que as políticas de morte, em termos da racionalidade neoliberal, respondem a uma forma de controle social total, buscando contornar as contradições e fissuras sociais, inerentes a crise de acumulação do capital. Destaque-se, que além da necropolítica encontrar-se associada ao neoliberalismo, sua prática também indica o surgimento de faces inéditas de estruturas autoritárias que ameaçam a estabilidade de nossas democracias atuais. Como atesta o autor: “O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo” (MBEMBE, 2017, p.4). O pensador defende que com a crise da democracia e a ascensão do capitalismo neoliberal, Mbembe a era do humanismo chega ao fim. O sujeito racional capaz de

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 escolha, do humanismo, dá lugar ao sujeito de paixões e afetos apolíticos, do capitalismo. A política deixa de ser a habilidade de convencer pela fala, e se converte na habilidade de fazer a guerra contra o Outro. Contra o diferente que passa a ser considerado um inimigo que deve ser exterminado. A política contemporânea e o que se considera como exercício democrático, se torna uma forma de guerra, o que põe em jogo a vida política, já que a guerra destrói o convívio social e a esfera pública para o aparecimento dos sujeitos e seu reconhecimento, principalmente as ditas minorias. Portanto, se uma forma histórica de democracia está ameaçada, é porque surge outra configuração histórica: a antidemocracia neoliberal. Governar um país é sinônimo de administrar uma sociedade através das normas de mercado. O interesse privado governa a política. Assim sendo, a ideia moderna de democracia com o próprio liberalismo trouxe uma inconveniente aproximação do projeto de globalização de mercado que necessita manter as periferias, embasado não na noção iluminista de direitos humanos iguais ou mesmo a visão de uma democratização de iguais, mas mantendo a base do modelo colonial e escravocrata, estabelecendo a racialização do humano como essencial para o mecanismo de necropoder. O racismo desta forma, impondo-se como prática de Estados soberanos, impossibilita pensar a viabilidade de uma democracia e desestabiliza os modelos vigentes, pois estes encontram-se capturados pela lógica neoliberal que se manifesta pela necropolítica. Neste contexto, Mbembe declara o fim do que identifica como a era do humanismo, devido exatamente a incompatibilidade da estrutura neoliberal com a democracia liberal, pois não se reconhecem mais limites em aplicar as políticas de morte para exercer a racionalidade neoliberal. Como argumenta o autor no texto A Era do Humanismo está terminando: Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes (MBEMBE, 2017, pp. 5-6).

O capitalismo neoliberal deixa em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial. Eles anseiam genuinamente um retorno a certo sentimento de

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 certeza – o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição. Mbembe ressalta que “a noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha, será substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor” (MBEMBE, 2017, p.4).

Conclusão Assim sendo, nos moldes da biopolítica, a necropolítica exerce tanto as políticas de administração da vida como também políticas de gestão da morte, tratando-se de ações que definem, ao mesmo tempo, o tipo de vida que são administrativamente rentáveis e por consequência, que devem ser preservadas e o tipo de vida que pode e deve ser sacrificável, deixando que seja exposta a morte. São corpos não rentáveis para a racionalidade e prática política neoliberal, que não produzindo e não consumindo, são deixados para morrer. O poder necropolitico de relativizar a importância de determinadas vidas em detrimento de outras, encontra-se repleto de arbitrariedades que sobrepõe as preocupações econômicas sobre o valor da vida humana, retratando o poder de morte que emana da força da racionalidade neoliberal, a distribuição desigual das oportunidades de viver. Além disso, percebe-se o surgimento e recrudescimento de formas de autoritarismo político que passam a atuar como princípio cada vez mais intenso, na articulação entre neoliberalismo e política da morte, tornando-se uma ameaça para as nossas democracias. Em seu núcleo duro, a democracia liberal torna-se cada vez mais incompatível com a racionalidade do capitalismo neoliberal. Não por acaso, Mbembe se recusa a tratar das noções tradicionais de soberania que normatizam nossas democracias, embasadas em discursos de autonomia e autolimitação. O autor camaronês ainda faz um alerta: Como os mercados estão se transformam cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico. Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver nada para vender (MBEMBE, 2017, p.5)

Prática que estamos vivenciando neste contexto de pandemia, como o do Covid-19, quando se deixa de atender pessoas na faixa dos 70 aos 90, para dar possibilidades de fazer viver outros grupos de faixas etárias mais jovens, que segundo o cálculo de gestão próprio a racionalidade neoliberal, são úteis para produção e lucro, enquanto os outros são desprezados e passíveis de descartabilidade.

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Necropolítica, fim do humanismo e a crise da democracia contemporânea, pp. 77-88 A pandemia desvela como o neoliberalismo reinante, destruiu e debilitou instituições ligadas a saúde pública e higiene, que são cruciais para enfrentar uma crise como a que estamos passando. Em realidade, o neoliberalismo, com seu racismo, sua necropolítica, sua biopolítica, mais as políticas de austeridade e desigualdade massiva em riqueza e poder, aliada ao desmonte do Estado de bem estar, configura-se enquanto força letal, que atacando o corpo social, possibilitará o surgimento de pandemias talvez mais letais e o enfraquecimento das bases democráticas em diferentes sociedades.

REFERÊNCIAS: AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2002. BARRIOS, Juan et al. Necropolítica, una revisión crítica. México: Universidad Autónoma de México, 2012. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010. __________________. É Preciso Defender a Sociedade. Curso do Collége de France (1975-1976). Tradução de Carlos Correia M. de Oliveira. Lisboa: Editora Livros Brasil, 2006. __________________. História da sexualidade 1. Vontade de Saber. Tradução de Maria Thereza Albuquerque & J. A. Albuquerque. Rio de janeiro: Edições Graal, 1988. MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018. __________________. A Era do Humanismo está terminando. Tradução de André Langer. Revista do Instituto Humanitas Unisinos/IHU- On-line- Edição 186 - São Leopoldo/RS, 2017. __________________. Crítica da Razão Negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Editora Antígona, 2014.

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A ESCOLA, A DISCIPLINA E AS NOVAS TECNOLOGIAS: APROXIMAÇÕES FOUCAULTIANAS Deyvison Rodrigues Lima1 e Sanna Chris Moura Nunes 2

RESUMO: Este estudo analisa a escola como paradigma disciplinar sob a perspectiva conceitual de Michel Foucault. Com o objetivo de esboçar algumas considerações acerca dos novos dispositivos escolares, a pesquisa utiliza a metodologia genealógica da leitura foucaultiana. Primeiramente, partimos da reconstrução conceitual das relações de poder na sociedade moderna, na qual as disciplinas se inscrevem nas redes de produção da subjetividade. Em seguida, elaboramos um breve apanhado genealógico dos dispositivos de poder presentes na arquitetura educacional como um controle do espaço e do tempo. O crescimento das tecnologias disciplinares na escola atual incrementa as práticas que também submetem os estudantes à constante observação, no modelo de uma vigilância contínua como forma de tecnologia disciplinar potencializada na normalização da sociedade na era digital, porém com profundas alterações. Nesse caso, para além da mera análise dos dispositivos, pretendemos explicitar os conceitos na obra Vigiar e Punir, mas também os desenvolvimentos teóricos relativos à escola contemporânea. Como conclusão, propomos pensar a sociedade através do fenômeno do poder que normaliza os sujeitos e suas novas tecnologias de implementação. PALAVRAS-CHAVE: Poder disciplinar. Dispositivos de controle. Escola. Governamentalidade Algorítimica.

1 Doutor em Filosofia (UFRJ). Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e do Mestrado Profissional em Filosofia (UFPI). Email: donlima86@ufpi.edu.br . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7879-8388 2 Mestranda - Mestrado Profissional em Filosofia (UFPI). Email: sannachris@hotmail.com . ORCID: https://orcid.org/oooo-ooo27880-6982

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 ABSTRACT: This study analyzes the school as disciplinary paradigm under the conceptual perspective of Michel Foucault. To update the role of the mechanisms of control, this research uses an genealogical methodology. First, we start from the conceptual reconstruction of the relations of the modern society, where the disciplines are inscribed in the subjectivity of the subjects. Then, we elaborate on a brief genealogical history of the control and power devices present in the educational field as a space for control of space, time and the record. The growth of disciplinary technologies in the current school works as practices that place students in constant observation, on model of a continuous sequence or form of disciplinary technology-enhanced in the normalization of society in the digital age. In this case, in addition to analyzing the power mechanisms, we intend to explain the concepts of the work Discipline and Punish, with attention to contemporary school. In conclusion, we propose to think of society through the phenomenon of power that normalizes subjects and their new technologies of implementation. KEYWORDS: Disciplinary power. Control devices. School. Algorithimc Governmentality.

Introdução A escola é o lugar da disciplina. Diante dessa sentença, até pouco tempo tomada por algo trivial, podemos lançar a questão que anima a pesquisa: qual o futuro da escola? Ou ainda, a escola tem algum futuro? O governo da infância prescreve práticas que associam normas, disciplinas e vigilância, típicos na escola desde o século XVIII, voltadas à razão instrumentalista e regida sob o imperativo moral e econômico, tendo em vista a formação de cidadãos, simultaneamente, promotora dos direitos humanos e atenta ao mercado de trabalho: de castigo tornou-se direito. No entanto, numa abordagem genealógica inspirada em larga medida pelas teses de Michel Foucault, propomos trazer à tona alguns objetos importantes para pensar a escola e, a partir deles, esboçar um diagnóstico sobre as diferentes estratégias e dispositivos que caracterizam o processo de ensino dentro da escola. Tais mecanismos atravessam o cotidiano escolar que, enquanto instituição pedagógica e formativa, trabalha com ações de adestramento do corpo, vigilância, exame e sanção normalizadora, constituindo-se como um lugar disciplinar que trata o/a aluno/a como assujeitado/a através de técnicas de poder na, aparentemente, ineliminável articulação produtiva de subjetividades derivadas da sociedade disciplinar. Nesse contexto, como já utilizado há décadas, Vigiar e Punir oferece um quadro bastante nítido sobre as relações de poder que se fazem presentes no espaço escolar (VEIGA-NETO, 2017; GALLO, 2015; CARVALHO, 2015; HOSKIN, 1993). Foucault se preocupa com as práticas sociais de formação da subjetividade e, através disso, apropriamo-nos de suas definições ao analisá-las no

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 interior do ambiente escolar, na interpretação acerca do poder sugerida ele, qual seja, em vez da coação ou violência e repressão, a produção. Ao docilizar o indivíduo por meio de determinadas estratégias e objetos, a rede disciplinar constitui a história desses objetos que pretendemos continuar a narrar. Os exercícios e as atividades desenvolvidas nesse ambiente marcam o ritmo do desempenho dos alunos, padronizam e tornam os gestos rigorosos, transferindo para o corpo, ligeiro em responder: do giz no quadro ao lápis no papel. Com base na sua leitura, pode-se compreender a escola como uma eficiente dobradiça capaz de articular poder e pedagogia. Aliás, esta ciência surge, precisamente, no contexto da produção do sujeito moderno. Por isso, no estudo da obra do filósofo francês, buscamos pensar a escola do presente, mas sem pretender utilizar as teses foucaultianas como um método universal. Pelo contrário, ao analisar alguns aspectos da escola brasileira no século XXI, buscamos estabelecer não apenas um diagnóstico, mas também algumas pistas para seu futuro. Diante do contexto aqui apresentado se faz necessário levantar as questões que serviram de embasamento deste trabalho, dadas as diferenças entre os dispositivos de poder de antigamente e os atuais: há, de fato, diferença substancial entre eles? Como se pode pensar o sujeito moderno diante dos dispositivos e tecnologias contemporâneos? Afinal, acerca dos dispositivos utilizados nas escolas em épocas distintas, faz-se necessário uma espécie de cartografia e perceber quais afetos e forças entram em jogo, com o intuito de traçar um esboço das mutações escolares. I O ambiente escolar expressa uma relação hierárquica, repleta de imobilidade daqueles que não podem falar, pois apenas possuem o dever de executar e realizar exercícios, sob o regime do desempenho. Nessa perspectiva, certamente caricatural, o ensino é baseado numa relação de fiscalização através da vigilância hierárquica: o poder disciplinador perpassa o espaço pelo crivo do olhar vigilante, visando à economia e obediência com o objetivo maior de tornar os corpos previsíveis. Todavia, ao invés da violência da punição, o modo fundamental de funcionamento disciplinar é a rede de dispositivos ou mecanismos, as técnicas infinitesimais interligadas aos saberes que elas próprias constituem. Dessa forma, para Ball, Vigiar e Punir apresenta: [...] o passo do espetáculo da punição à punição institucional disciplinada por meio da constituição de aparelhos que agem para definir as relações de poder na vida quotidiana; mencionam-se especificamente a escola e a sala como aparelhos dessa classe. No século XIX, emergiram como organizações particulares do espaço e das pessoas, experimentadas por quase todo o mundo, que resumiam o poder do Estado e, ao mesmo tempo, produziam e especificavam as individualidades concretas. Esse é o ‘duplo vínculo’ político. (BALL, 1993, p. 9).

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 Para Foucault, o discurso das ciências humanas versa sobre um corpo assujeitado, ou melhor, aquele inserido num sistema de vigilância e submetido a procedimentos e práticas normalizadoras. Ora, não resta dúvida sobre a presença do caráter disciplinador dentro da escola: o corpo docilizado que se expressa dentro de padrões naturalizados, o que chamaríamos hoje de perfil, que deve cumprir as normas e corresponder ao esperado, sob um rígido comando que instaura uma relação entre escola e ideologia (ALTHUSSER, 2003). A obra de Comenius, a Didactica Magna [1631] (1997), expressa de modo exemplar os saberes sobre a educação escolarizada dos séculos XVI e XVII. Ele trabalha com a noção de homem naturalmente educável, visto que, ao nascer, seria possuidor de potencialidade própria e exclusiva da condição humana, mas que seu entendimento ainda se encontra inacabado: “[...] fique estabelecido, pois, que todos os que nasceram homens a educação é necessária, para que sejam homens e não animais ferozes, não animais brutos [...] Segue-se que alguém só estará acima dos outros se for mais preparado” (COMENIUS, 1997, p. 76). Comenius defende a ideia que todos devem realizar a humanidade latente que carregam ao nascer como um dom divino. Para ele, devemos ensinar tudo a todos através da educação, pois o ser humano é um sujeito dotado de uma natureza comum capaz de aprender. O sujeito deve ser educado para construir e atingir sua própria autoconsciência e, desse modo, conquistar sua autonomia. Ao contrário do que sustenta Comenius e a tradição iluminista, notadamente Kant (2003), Foucault adota outra concepção de sujeito e detalha em suas pesquisas como é instituído, nas práticas e modos sociais. Nesse sentido, Foucault utiliza a palavra sujeito de duas formas, seja como aquele ser assujeitado a alguém pela dependência e controle, seja por estar vinculado ao próprio modo por meio do autoconhecimento (FOUCAULT, 1995, p. 235). As noções de sujeito, de subjetividade e os processos de subjetivação são inseparáveis das relações de poder na obra do filósofo, pois toda sua obra se estrutura em torno do problema da constituição do sujeito e suas formas sociais. O sujeito é social e historicamente construído, fundado sobre os mais diversos procedimentos, denominados como processos de subjetivação. Tais processos de subjetivação revelam que a produção histórica dos sujeitos é resultado de inúmeros fatores empíricos. Entre a prática do discurso de verdade e as práticas sociais e históricas constituídas por estratégias de poder, não há identidade, mas articulação (MACHADO, 2006; CANDIOTTO, 2010). Ao compreender os sujeitos como resultado de um assujeitamento, enfatiza-se a formação das subjetividades através dos variados dispositivos disciplinares. No entanto, Foucault apresenta

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 também o modo como os sujeitos se reproduzem através de suas práticas individuais em suas relações consigo mesmo, que chamou de técnicas de si, e suas relações éticas com os outros (FOUCAULT, 1984). O importante a se destacar neste ponto é que os processos de subjetivação devem ser entendidos também como modos de objetivação, “o que significa que há somente sujeitos objetivados [...] os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação” (REVEL, 2005, p. 82), bem como pela maneira através da qual a relação consigo mesmo, através de certas técnicas, que permitem a alguém constituir-se como sujeito de sua própria existência (PAIVA, 2000). De uma forma ou de outra, o trabalho realizado por Foucault nos oferece um ponto de partida sólido para pensar o sujeito como objeto histórico construído, sobretudo, a base de determinações que lhe são exteriores em um entrelaçamento entre poder e verdade, como Foucault, no trecho a seguir, com precisão, ressalta: É preciso sobretudo admitir que o poder produz saber (e não simplesmente o favorece porque ele serve ou o aplicando porque ele é útil); que o poder e o saber se implicam diretamente um e outro; que não há relação de poder sem constituição correlativa de um campo de saber. Nem de saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações de poder-saber não devem ser analisadas a partir de um sujeito de conhecimento que seria livre ou não em relação ao sistema de poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são, no entanto, efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Em resumo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber útil ou desobediente ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e do qual ele é constituído, que determinam as formas e os domínios possíveis do conhecimento (FOUCAULT, 1987, p. 32).

Para Foucault, o corpo, assim como o pensamento, também está diretamente ligado à história: o corpo é pensado, produzido, vivido e experimentado de acordo com as peculiaridades de cada época e cultura. Assim, os sujeitos são transformados e construídos em cada tempo que vivem, pois não há nada como o sujeito em sua pureza ou universalidade. Assim, a subjetivação e a objetivação são dependentes uma da outra e surgiriam a partir das relações com a verdade, mesmo que, como veremos mais adiante, o regime digital da verdade altere profundamente essa relação. Dito isso, justifica-se a abordagem da pesquisa que pretendemos, pois se Foucault não analisa as práticas políticas, éticas ou sexuais a partir de categorias ideais ou de sujeitos abstratos, qualquer investigação sobre a escola não pode ocorrer fora da realidade histórica e social, a partir de algum conceito abstrato de escola ou análise da legislação vigente. Da mesma maneira que Foucault analisa as práticas efetivas, engendradas pela história, naquilo que ele denomina, ainda em

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 seus escritos da década de 1960, como “a priori histórico” (FOUCAULT, 2009), também pretendemos, de uma perspectiva genealógica, inscrever no debate os objetos disciplinares constituídos pelas práticas e saberes. Do ponto de vista da genealogia de Foucault, a constituição dos sujeitos na história ocorre por meio de uma interação complexa entre a elaboração de saberes e práticas do poder. Tais práticas são inter-relacionadas de modo que não se sabe onde começa ou termina cada uma delas. Assim, ele apresenta uma leitura do que seria a principal forma de exercício do poder na modernidade, distante da noção de soberania ou Estado e mais próximo das triviais relações, dos inúmeros circuitos de aproximações e distâncias entre forças. O filósofo observa a transformação do poder – compreendido como exercício da estrutura soberana – para uma relação mais sutil. Em vez de usar a coerção externa e manifestação espetacular, produziria efeitos locais a partir de dispositivos cotidianos e particulares, uma normalização e padronização. Para o filósofo francês, este poder só passa a ser exercido através da constituição e do domínio sobre o eu, o que acontece por meio da internalização de valores e comportamentos sistematizados pelos indivíduos através da rede de disciplinas. Durante este período da sua obra, Foucault investigou fenômenos como a penalidade e a construção dos saberes em torno da penalidade, a relação entre o doente e o saudável, o degenerado e o perfeito, o indivíduo racional e o desarrazoado, a constituição das normas e a normalidade, o estabelecimento de relações de poder e as relações de domínio a partir de saberes instituídos sobre os indivíduos que descumprem as normas construídas e estabelecidas. Estes fenômenos a que se refere o autor, relacionam-se de alguma maneira com as disciplinas, com as normas e com a produção do indivíduo na modernidade. Para Foucault, não basta ver na transformação de penalidades uma suavização das penas decorrentes de alguma repentina sensibilidade humana, mas sim identificar novos efeitos do poder produzidos por essas novas práticas que constituem um modo inédito de controle seguro com os objetivos impostos para dar conta de seu funcionamento real. Ele não procura uma justificativa para a prática de punir, para avaliar a justeza ou não das práticas existentes, mas a demonstração do exercício de um tipo de poder baseado em práticas disciplinares, atendendo às demandas postas pelo momento de desenvolvimento da sociedade capitalista, que resulta em outro modo de subjetividade: o cidadão, possuidor de direitos, deve ser também o cidadão disciplinado, tendo

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 como resultado a produção de uma “alma” e, por conseguinte, a obtenção de uma dominação sem o aspecto da violência da opressão. A punição durante a Idade Média era baseada nos suplícios físicos, correspondia a uma vingança do soberano. O sujeito infrator causava dano à vítima, mas também atingia o soberano ao afrontar a lei, como afirma: “o suplício não tinha a função de estabelecer a justiça, mas de ativar o poder, ele tinha a função jurídico-politica, onde o soberano todo poderoso fazia valer sua força. Já que o crime era entendido como uma ofensa direta ao soberano e a lei valia como a vontade daquele” (FOUCAULT, 1987, p. 51-54). Isso porque o castigo visava atingir o corpo do infrator, mas também de produzir um efeito equiparado ao dano causado por este. Com o período das reformas penais, no século XVIII, há o desaparecimento do suplício físico do corpo como alvo imediato da repressão penal, a punição passa a ser vista como um mal necessário. Entretanto, com o fim dos suplícios na nova racionalidade penal, o corpo deixa de ser diretamente atingido e passa a ser alcançado de outra maneira, mais sutil, sob a ordem do enclausuramento. A dor do sofrimento físico deixa de ser o elemento constituinte da pena3: [...] nos séculos XVII e XVIII ocorreu um fenômeno importante: o aparecimento – deveríamos dizer a invenção – de uma nova mecânica do poder, que tem procedimentos bem particulares, instrumentos totalmente novos, uma aparelhagem muito diferente e que, é incompatível com as relações de soberania. Essa nova mecânica de poder incide primeiro sobre os corpos e sobre o que eles fazem [...] É um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente por vigilância e não de forma descontínua por sistemas de tributos e de obrigações crônicas. É um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam as forças sujeitas e a força e a eficácia daquilo que as sujeita (FOUCAULT, 2002, p. 42).

Segundo Foucault, a reforma das práticas punitivas tinha como objetivo principal uma reorganização, uma nova economia política do poder de punir, assegurando uma melhor distribuição desse poder ao longo do corpo social, segundo modalidades que o tornassem mais eficiente e menos dispendioso, aumentando seus efeitos e diminuindo seus custos econômicos e políticos (FOUCAULT, 1987 p. 83). O filósofo aponta, como objetivo principal da reforma penal no século XVIII, transformar a punição, a violência e repressão em uma nova concepção jurídica, uma função regular, permanente: “não punir menos, mas punir melhor; punir com uma severidade

3 Evidentemente, ao pensarmos na realidade carcerária brasileira, o poder disciplinar parece, em grande medida, ausente. Na verdade, a pena prossegue com seu aspecto de infligir dor ao corpo: mais do que produzir culpa, importa exercer a violência, inclusive, sob a narrativa da vingança.

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 atenuada talvez, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir o poder de punir mais profundamente no corpo social (FOUCAULT, 1987, p. 84). Nesse sentido, a reforma penal redefiniu novas técnicas para ajustar as punições e adaptar os efeitos, estabelecendo novos princípios para regularizar, refinar, universalizar a arte de castigar e com isso aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos. Na passagem do limiar tecnológico do poder disciplinar, é possível perceber a articulação de dois processos anteriores: a expansão do poder pastoral cristão entre os séculos XIV e XVII e o surgimento da “razão de Estado”, no século XVII. Através das técnicas disciplinares, exclusivas dos monastérios durante a Idade Média, o poder pastoral se expande entre a população sob a forma geral de doutrinamento, de escolarização e de moralidade. A forma que a disciplina tomou no deslocamento da Idade Média até a Modernidade, moldava-se na mudança de ênfase de um regime religioso, direcionada a corrigir moralmente e salvar os homens, para a forma de um regime político, destinada a dirigi-los. Assim, como forma de governo, a disciplina produziu um conjunto de práticas que se ajustaram aos dispositivos de poder predominantes em cada época e apoderou-se delas (FOUCAULT, 2008). O papel desempenhado pela disciplina foi importante para a criação do sistema capitalista. Paralelamente ao aumento da capacidade dos indivíduos de produzir, constrói-se um sujeito para uma sociedade moderna adaptado às novas condições sociais e políticas (CASTEL, 1998). Com a mudança nos objetivos e a ineficiência das práticas antigas de punição, são criadas novas modalidades punitivas. Dissemina-se pela sociedade o modelo do encarceramento, instituições de sequestro, visando não apenas o corpo dos indivíduos, mas a sua “alma”: Se não é mais ao corpo que se endereça a penalidade sob suas formas as mais severas, sobre que ela estabelece suas tomadas? A resposta dos teóricos – daqueles que abrem por volta de 1760 um período que ainda não se encerrou – é simples, quase evidente [...] Já que não é o corpo, é a alma. À expiação que alcança seu clímax sobre o corpo de deve suceder um castigo que agisse em profundidade sobre a coração, o pensamento, a vontade, as disposições (FOUCAULT, 1987, p. 22).

Portanto, o objetivo das novas modalidades punitivas é a criação de um tipo específico de sujeito. Surge a necessidade da mudança na característica do crime e do seu julgamento. Na Idade Média, procurava-se relacionar o fato, o autor e a lei para então estabelecer a pena. Já na Europa moderna, é estabelecido um novo regime de penas, que não julga mais os crimes cometidos com base em critérios previamente estabelecidos, mas que passa a julgar a alma do indivíduo. Nesse novo contexto, a disciplina tem o condão de produzir a alma dos indivíduos, através do mecanismo já explorado, entre outros, por Nietzsche (1998). De fato, um novo indivíduo para uma nova

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 penalidade, estabelecendo assim os procedimentos que darão origem ao surgimento das ciências humanas, em sua articulação entre saber e poder. Com as práticas de poder vinculadas às ciências humanas, passa-se a construir um novo saber sobre o homem que, por sua vez, constituem novas formas de controle. A tecnologia política do corpo, baseado em técnicas e saberes de domínio, produzem o assujeitamento, isto é, um tipo específico de sujeito, econômica e politicamente úteis e dóceis (FOUCAULT, 1987, p. 30-31). Nessa história política do corpo, as disciplinas atuam, sobretudo, por meio de dois procedimentos: o controle do espaço e do tempo. O controle de espaço se refere ao isolamento em algum lugar fechado, cada indivíduo possuiria um lugar identificado e específico. Nessa circunstância, há um esquadrinhamento, de maneira que cada indivíduo é colocado em determinado lugar, evitando as distribuições em grupos, ou seja, “o espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quanto forem os corpos ou elementos a repartir” (FOUCAULT, 1987, p. 144). Um ponto a ser destacado é que tal localização deve ser funcional, isto é, a identificação do espaço que determina a vigilância do movimento do indivíduo. Este, portanto, seria o espaço útil. Todavia, tal localização funcional também permite a classificação do indivíduo. Com isso, a disciplina trabalha com a individualização, pois “individualiza os corpos por uma localização que os distribui e os faz circular em uma rede de relações” (FOUCAULT, 1987, p. 147). Quanto ao tempo, seu controle rigoroso referente aos indivíduos é estabelecido nos espaços disciplinares de forma que não haja momento para a ociosidade: todas as ações são elaboradas, distribuídas e baseadas no horário previsto, fazendo com que cada ação tenha uma ordem temporal precisa, pois a cada movimento é calculado em sua duração, sentido e amplitude de maneira a seguir uma sequência preexistente, não raro, estabelecendo associando capacidades e atributos em relação aos exercícios solucionados durante o período estipulado. Ao se firmar uma relação entre o corpo e o gesto, impõe-se uma relação útil e eficiente ou, como Foucault, mais uma vez, detalha: “o bom emprego do corpo, permite um bom emprego do tempo, nada deve permanecer ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requisitado. Um corpo bem disciplinado forma o contexto operatório do menor gesto” (FOUCAULT, 1987, p. 154). É produzida uma interação entre o corpo e o objeto, na qual os objetos, associados aos indivíduos, articulam-se de maneira natural ao corpo. Esta interação é mais nítida se pensarmos na evolução das disciplinas militares ou na relação dos operários com máquinas dentro de um contexto especializado em divisão do trabalho, no quais todos esses elementos devem ser usados de forma eficiente e no tempo previsto. Nesse sentido, há uma utilização esgotante do tempo do indivíduo, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 visto que qualquer tempo sem proveito com atividades econômicas inúteis ou com a inatividade é considerado perdido. A disciplina, através do tempo, organiza ações voltadas para uma economia rentável (FOUCAULT, 1987, p. 154-155). II Segundo Foucault, o conceito de poder como disciplina não possui modo ou instância prioritária para sua manifestação. Pelo contrário, o governo dos corpos dos indivíduos obedece a estratégias complexas. O poder não se esgota em um lugar específico como o Estado nem opera sob a violência da ordem, mas sim a partir de relações variadas do corpo social. Dessa forma, analisar o campo institucional estatal como o ponto exclusivo de referência do poder não corresponde à amplitude dessa modalidade e conceber as relações de poder desta forma esconde o seu caráter microscópico e pulverizado, pois há “relações de poder múltiplas que caracterizam, atravessam e constituem o corpo social e essas relações não podem se dissociar, se estabelecer, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso” (FOUCAULT, 1979, p. 179). As expressões “buscar o poder” e “ter o poder” transformam-no em coisa ou propriedade que poderia ser dada ou retirada, perdida ou conquistada. De outra forma, o poder nessa concepção é composto por relações dispersas, nas quais todos são sujeitos e objetos. Para Foucault, utilizando-se da caixa de ferramentas argumentativa que a obra de Nietzsche lhe oferece em fins dos anos 1960, o poder não se pode dar, ele não se troca e nem se toma, pelo contrário, ele é exercido, só existe em ação, ou melhor, relação, visto que não é reprodução ou manutenção das relações, mas sim uma relação de força (LEBRUN, 1992). O autor apresenta as relações de poder como constitutivas da vida social, concebendo os indivíduos que sofrem seus efeitos: o poder nunca está localizado, ele deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só deve funcionar em forma de cadeia. Não deve ser entregue nas mãos de alguns, ou que seja visto como propriedade, riqueza ou bem de alguns. Ele funciona e se exerce em rede e os indivíduos só circulam. Estão sempre em posição de exercer este poder, são sempre centros de sua transmissão (FOUCAULT, 1979, p. 183).

Quanto à instituição escolar, as relações que a constituem operam mecanismos que efetivam a disciplinarização dos indivíduos que a compõem, permite o controle minucioso das operações do corpo ao realizar a sujeição constante de suas forças. As disciplinas aumentam as capacidades de operação do corpo e, ao mesmo tempo, em termos de obediência política, diminuem sua resistência. Ao analisar a escola e seus inúmeros dispositivos como um lugar onde o poder disciplinar exerce e produz saber, Foucault (1979, p. 182) permite “[...] captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações. Captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 [...]”. Nesse contexto, é exemplar, mais uma vez, a tese de Comenius, segundo a qual, de acordo com a tradição da Paidéia cristã4, a disciplina ocuparia um lugar central, pois é preciso que o discere seja submisso e obediente, pois assim aprenderá: [...] agem como inexperientes aqueles que, encarregando-se da formação de crianças já crescidas e de adolescentes, não começa pela educação moral, para que, domando - lhes as paixões, os tornem aptos para as restantes coisas. É bem sabido que os domadores primeiro domam o cavalo com o freio e tornam-se obediente e só depois lhe ensinam a tomar esta ou aquela posição. Sêneca disse com razão: “Primeiro aprende a moral e depois a ciência, pois esta aprende-se mal sem aquela”. E Cícero escreveu: “A filosofia moral prepara os espíritos para receber a boa semente”. (COMENIUS, 1991 [1631]. p. 80).

A docilidade implica, então, submissão e obediência, que devem ser adquiridos como parte do processo de disciplinamento, com atenção especial aos afetos e paixões, cujo objeto final seria o domínio de si mesmo: Mas como as crianças não possuem um juízo sólido e racional, será de grande ajuda ensinar-lhes a fortaleza e o domínio de si, habituando-se a fazer mais a vontade dos outros que a sua, ou seja, a obedecer imediatamente aos superiores em todas as coisas (COMENIUS, 1991[1631], p. 265).

Desse ponto de vista, se disciplina é autocontrole, ela só pode ser alcançada através de um processo educativo, que por sua vez tem base na obediência e submissão, que não derivam do simples efeito da coerção ou repressão dos adultos, mas sim da condição para que a criança se constitua como sujeito. No momento de obedecer ao adulto, a criança não só está submetendo-se, mas adquirindo a fortaleza para se governar, pois, segundo Comenius: “para adquirir fortaleza, é preciso vencer-se a si mesmo” (COMENIUS, 1991 [1631], p. 265). Apesar de elaborar leitura distinta acerca da Pedagogia e partir de outro ponto de vista, Foucault também estabelece uma relação entre disciplina, docilidade, utilidade e obediência em vários trechos do Vigiar e Punir, por exemplo: A esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que garantem a sujeição constante das suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, é o que se pode chamar de “disciplinas”. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que não tende unicamente ao aumento das suas habilidades, nem tampouco a fazer mais pesada a sua sujeição, mas à firmação de um vínculo que, no mesmo mecanismo, o faz tanto mais obediente quanto mais útil. A disciplina aumenta as forças do corpo, em termos econômicos de utilidade e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência. (FOUCAULT, 1987, p. 141-142).

4 Sobre o tema, de uma perspectiva histórica e conceitual, cf. NOGUEIRA–RAMÍREZ, 2011.

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 O processo civilizatório significou uma alteração na organização psicológica do indivíduo, que levou à alteração do comportamento. Nesse processo, a escola se constituiu como a ponta-delança da construção do sujeito moderno: um espaço de confinamento, instrução, esclarecimento e civilização para crianças e jovens, a partir de um programa complexo de normas, distribuição e controle de atividades e competências. Os horários e calendários de atividades não foram apenas formas de distribuir o tempo, mas sistemas complexos capazes de modificar, alterar ciclos, mecanizando dinâmicas e reações. Evidentemente, a exigência disciplinar da escola era constituída no mesmo ritmo da formação da burguesia do século XVIII, bem como da consolidação dos Estado Nacionais. Com isso, precisava-se de homens preparados, ou melhor, de mão-de-obra apropriada para a nova ordem político-econômica e para a mudança de concepção quanto à riqueza das nações (SMITH, 2016). Para que pudessem obter êxito em tal propósito, investiram nas “forças produtoras do corpo”. Assim, para conseguir o que se desejava de um indivíduo, era preciso se utilizar da disciplina através de múltiplos dispositivos. Nesse sentido, Foucault percebe os efeitos do poder que passaram a atingir cada pessoa, transformando seus corpos e seus gestos no dia-a-dia, traduzindose mais na formatação e produção do que na violência e coerção. A disciplina realiza uma reorganização de forças para obter um sistema com o máximo de eficiência e, com isso, possibilitar a extração de toda capacidade do indivíduo. Por isso, a importância de se idealizar a escola como instituição que educa. A escola distribui as atividades em seu espaço, de forma a constituir aparelhos para expandir e capitalizar o tempo, além de completar suas funções com o desenvolvimento de um processo articulado nos menores segmentos, a fim de alcançar um máximo de rendimento. Os regulamentos escolares, mostram como o corpo dos estudantes é controlado dentro do ambiente escolar: o design das salas de aulas individualiza, normaliza o comportamento, a postura, os movimentos e o modo de pensar através da modulação da ação em determinados ambientes, pré-definindo suas potencialidades e faculdades. As carteiras escolares controlam o espaço das crianças dentro da sala de aula, assim como os seus movimentos, sua postura correta, seu deslocamento, a distância entre os indivíduos, o lugar a ser ocupado do interior do grupo. Tal controle do espaço e do tempo, dos movimentos, dos gestos, das posturas corporais, das palavras, das ocupações, do vestuário, do asseio pessoal, bem como do ritmo do ensino e do aprendizado explicita a capacidade de modelar um aparato psíquico que contribui de maneira definitiva para a conformação da alma moderna a que se refere Foucault, uma vez que “uma relação

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 de fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da prática de ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica sua eficiência” (FOUCAULT, 1987, p. 170). No que diz respeito à essência dos sistemas disciplinares, Foucault (1987, p. 173) a descreve como um pequeno mecanismo penal, um modelo reduzido do tribunal. O castigo disciplinar tem a função de reduzir os erros priorizando as punições: “aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido”, inclusive, que ultrapassa o espaço da escola e invade a própria organização da vida, tendo em vista os inúmeros exercícios e pesquisas domiciliares, denominadas sugestivamente como “deveres de casa”. Para Foucault (1987), os três instrumentos responsáveis para o desenvolvimento do poder disciplinar são o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame. Ora, o local mais paradigmático do exame não é outro senão a escola e, a partir dela, a singularidade de cada corpo é documentada, com registros detalhados das atitudes, tendências, habilidades e comportamentos, produzindo um saber que alimenta-se na produção daquele corpo: a violência deixa de ser física, não imprime marcas no corpo, e torna-se sutil, simbólica, psicológica; o indivíduo, enredado dos saberes e dispositivos disciplinares, por medo de ser punido, permanece em autovigilância e, por fim, normaliza a regra. Para Foucault, o olhar do poder – encarnado classicamente na escola como a figura do bedel – ultrapassa a necessidade da violência física. Em compensação, uma poderosa máquina de objetos ou dispositivos entra em cena. III O conceito de dispositivo de poder configura-se como uma ferramenta que articula, conforme Foucault, um conjunto de elementos heterogêneos entre si ao envolver discursos, instituições, leis, enunciados científicos. Tais dispositivos respondem a uma urgência histórica, a uma vontade de verdade da época que interliga as forças, multiplica e as utiliza para a consolidação da vigilância através de vários meios coercitivos de controle e punição. Em relação aos dispositivos de controle e poder dentro da escola, há uma confusão conceitual entre violência e disciplina: compreende-se esta como uma prática punitiva severa e humilhante, que, tradicionalmente, fizeram parte da organização do sistema de ensino. Ao se reportar à história, de fato, rastreando os diferentes tipos de mecanismos pedagógicos, um instrumento ganhou notoriedade e passou a sintetizar o modo de domínio pela violência: feito de madeira, simples e doloroso, tornou-se conhecido por palmatória, apesar das variações regionais. Na perspectiva tradicional, uma perfeita máquina de ensinar, pois ameaçado pela dor, servindo Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 como adorno onipresente ao lado do quadro-negro ou escondido, mas de prontidão, na mesa do Mestre, a escola representava o modo inculcar comportamento pela coerção. Apesar da utilização proibida devido a campanhas contra violência infantil desde a década de 1970, ainda é utilizada por escolas como uma forma tradicional e natural de educar as crianças, aliadas aos processos menos dolorosos, tais como “ajoelhar em grãos” ou do igualmente humilhante “chapéu de burro”, normalmente aliado ao castigo de cárcere privado durante o intervalo entre aulas ou tempo de recreação. No entanto, a palmatória permanece – na prática ou no imaginário – como castigo exemplar, o instrumento de violência por excelência, utilizado como meio de impor o medo para aqueles que não estavam de acordo com o regulamento da escola e vontade dos professores. Representa um símbolo de hierarquia, pois além do sofrimento físico e moral, ser punido por tal instrumento servia de exemplo aos outros, caso viessem a cometer tais erros. A violência expressava, a rigor, uma concepção e prática comum com origens religiosas e seu uso era legítimo não apenas no ambiente escolar, mas também em todo o processo que envolvia relações humanas, entre elas a relação de senhor e escravo, marido e mulher ou pais e filhos. Mesmo disseminados, porém, os castigos físicos representavam costumes obsoletos e reforçavam tradições que tornavam ainda mais rebelde o jovem, à exemplo dos perigos nos suplícios dos condenados em praça pública5. Os dispositivos do poder disciplinar são instaurados em contraposição à barbaridade das práticas cruéis: em vez de corrigir pela dor, carregava o intuito sutil de produzir no corpo do infante, a docilidade e utilidade necessária. Nesse sentido, o modo inicial da disciplina, não se constitui no medo da punição, mas sim a organização do espaço, do tempo e do registro. Em relação àquele, Foucault trata de um “princípio da clausura”. Tal princípio exige a divisão do espaço, a localização dos alunos em seu devido lugar, dificultando desse modo a formação de grupos: É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de anti-aglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciálo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos (FOUCAULT, 1987, p. 131).

Divididas, as salas de aula formam quadriláteros, fundamental para a escola, visto que identifica e situa cada indivíduo no espaço, não permitindo aglomerações, pois o espaço disciplinar

5 Nos Estados Unidos da América, 19 dos 51 estados ainda permitem a prática de castigos físicos na escola. Sobre isso, cf. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47622799 (acesso em 10 de junho de 2020).

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 compartimentaliza os corpos ou elementos em unidades repartidas. Assim, segundo Foucault, uma das bases da disciplina diz respeito à distribuição espacial, que muitas vezes exige o enclausuramento, os limites ou cercas, o local heterogêneo e fechado, as sirenes de todos os tipos e volumes, ou ainda, o ritual de presentificação dos corpos: a chamada. Nesses locais em que há a presença dos aparelhos disciplinadores, o espaço é organizado para “decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias” (FOUCAULT, 1987, p. 138). Dessa forma, pela arquitetura disciplinar, instaura-se não apenas a vigilância, mas o espaço útil, com a finalidade de localizar cada indivíduo e assim controlá-lo minuciosamente, sendo proibidas circulações desordenadas. Na escola, por exemplo, a fila tem o objetivo de manter a ordem no ambiente e estabelece um circuito espacial invisível, mas repetido à exaustão: seja no ato inicial da chegada à escola, sob os símbolos nacionais a entoar o hino às autoridades locais, seja na sala com a organização dos corpos que submetem-se à distribuição por idade, altura, letra inicial do nome ou desempenho e comportamento de modo a estabelecer a escola como local do ensino, mas também da vigilância e recompensa. Como Araújo reforça, alargando o rol de dispositivos: [...] por exemplo, a fila, a carteira, o treino para a escrita, os exercícios com dificuldades crescentes, a repetição, a presença num tempo e num espaço recortados, a punição pelo menor desvio de conduta, a vigilância por parte de um mestre ou monitor, as provas, os exames, os testes de aprendizagem e de recuperação, o treinamento dentro de padrões e normas fixos. E mais, os resultados dos esforços pedagógicos [...] permanentemente avaliados por critérios também eles padronizados, leva a uma simples análise de boletins, que sirva para medir os casos que desviam, portanto, serve para marcar, excluir, normalizar (ARAÚJO, 2002, p. 79).

Na escola, o horário é fundamental para a organização do tempo, dos corpos e das forças. O corpo e o tempo se entrelaçam em uma aprendizagem funcional: administra-se por segmentação, seriação, síntese e totalização para algum objetivo, no caso, o exame. No entanto, o exame não é senão a ilusão como justificativa para o sequestro do corpo, visto que condiciona o futuro ao presente. A organização do espaço e do tempo nas escolas fragmentou a duração em segmentos iguais e sucessivos, culminando em séries cumulativas de estágios temporais, na direção daquele ponto final estável. O ritmo da escola e, portanto, da aprendizagem, está diretamente relacionado com o controle que é estabelecido no tempo e no espaço. Já que o ensino e aprendizagem estão articulados no controle do tempo eles produzem também as idades sociais, principalmente das crianças e dos adolescentes. Assim, o currículo das disciplinas marca a distribuição do tempo das aulas, o que se deve aprender a partir de cada idade e

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 local, elaborando as teorias tradicionais do currículo com sua abordagem estritamente mecânica (SILVA, 2003). Mais uma vez, o tempo escolar é, simultaneamente, tempo disciplinar, que se estabelece por meio de um tempo evolutivo e que se realiza na forma da coerção e de continuidade através de exercícios e programas: [...] realiza, na forma da continuidade e da coerção, um crescimento, uma observação, uma qualificação. Antes de tornar-se essa forma estritamente disciplinar, o exercício teve uma longa história: é encontrado nas práticas militares, religiosas, universitárias [...] sua organização linear, continuamente progressiva, seu desenrolar genético ao longo do tempo têm, pelo menos no exército e na escola, introdução tardia. E sem dúvida de origem religiosa. Em todo caso, a ideia de um “programa” escolar que acompanharia a criança até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em exercícios de complexidade crescente (FOUCAULT, 1987 p. 137).

Ao explorar a polissemia do termo disciplina, seja como comportamento adequado a padrões de comportamento estabelecidos, seja como disciplinas ou matérias do currículo escolar sob as quais se organizam os diversos conteúdos de cada área do saber, expõe-se uma visão da educação não como uma estratégia de submissão e vigilância de estudantes sob determinadas formas de poder, mas como uma complexa e importante estratégia de produção de formas de subjetividade. Nesse sentido, a escola assume o papel de disciplinar o tempo e a conduta, uma rede completa que se traduz em uma organização de rotinas e à qual todos aqueles que fazer a comunidade escolar, devem se habituar, inclusive, integrando-se à forma de vida implementada pelo capital. Há outros tipos de mecanismos indicadores do poder disciplinar na escola, tais como, o exame ou, em variados eufemismos, prova, teste, avaliação, verificação de aprendizagem, etc. É por meio do exame que se extrai do estudante determinados tipos de saberes úteis para a dimensão do poder, que retornam sobre o aluno, em forma de um poder normalizador que diferencia e sanciona, produzindo formas de subjetividade. A avaliação também se caracteriza como uma escritura disciplinar que gera campos comparativos e que permite formar categorias, classificar, estabelecer níveis de médias, comparar e hierarquizar. Essa estratégia disciplinar é um instrumento preciso de elaboração de registros e saberes sobre todos o corpo discente. Foucault reconhece as diferentes funções entre diversos tipos de registros e identifica, entre as práticas sociais, um solo comum no qual os saberes e poderes de cada época encontram-se articulados, constituindo assim, um conjunto de práticas sociais inerentes ao momento histórico em se desenvolvem. Na escola, a aplicação da avaliação envolve um rito complexo não apenas de aplicação e teste de conhecimentos por parte dos alunos, mas de assimilação de um comprometimento existencial e, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 sobretudo, moral, que vai desde a padronização de sua escrita até a conduta disciplinar e de tempo na sua execução. Geralmente, são aplicadas na turma com as cadeiras enfileiradas, com um horário para início e término, acompanhado de uma série de proibições como, conversas, gestos ou trocas de materiais. Nesse sentido, a solidariedade é castigada e moralmente condenada como “cola” ou “pesca”; quando estimulada, no caso de pesquisa em grupos ou realização de projetos coletivos, o exame persiste na mensuração das habilidades de liderança, capacidade de trabalho em equipe, assertividade e outros termos de classificação que inserem a solidariedade e a relação com o outro no sistema de produção da vigilância. Assim, a avaliação é realizada de maneira sistemática e objetiva. Através desse rito, renova-se constantemente o poder, além de demonstrar a força que a disciplina possui no cotidiano escolar. A avaliação possibilita conhecer, descrever, treinar, classificar, mensurar e comparar: “o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e a sanção que normaliza. É um controle de normalização, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 1987, p. 164). O poder disciplinar usa a avaliação como forma de coerção para uma relação de comparação entre os melhores e os piores alunos da turma, construindo assim, uma relação hierárquica de qualidades, ou melhor, a inclusão via exclusão, com a responsabilização individual. Por esse meio, se obtém o conhecimento sobre o aluno, sobre suas aptidões e deficiências, sobre seu crescimento, evolução ou desvio, bem como de transmissão do saber, mas, sobretudo, permite a pedagogia se constituir como ciência: “a escola torna-se o local da elaboração de pedagogia. E do mesmo modo como o processo do exame hospitalar permitiu a liberação epistemológica da medicina, a era da escola ‘examinatória’ marcou o início de uma pedagogia que funciona como ciência” (FOUCAULT, 1987, p. 166). Nesse contexto, a escrita de um boletim, marcando as ocorrências a partir dos exames, baseado nos desempenhos, normalmente traduzidos em conceitos ou notas, é um tipo de instrumento que classifica e posiciona o estudante, além de servir como apoio à intervenção educacional ou a correção individual. Na sala de aula, o estudante é, portanto, alguém que pode e deve ser orientado a si mesmo por pontos e médias, em vez da narrativa como experiência de si, a contagem de médias e pontos (LARROSA, 1994). Todavia, mais do que restringir o acesso de alguns e excluir outros, o exame e o boletim promovem na escola uma competição dos alunos. A exclusão do estudante obedece ao princípio de utilidade, gerador de saberes, de discursos científicos que procuram explicar seu aparente fracasso em administrar a indisciplina.

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 Foucault analisou em detalhes como as práticas disciplinares, a partir do século XVII, produziram uma experiência de espaço e tempo. No entanto, há uma terceira implicação das disciplinas: desenvolvem-se as práticas cientificas nas ciências humanas, como já exposto acima quanto à pedagogia. O processo de disciplinamento dos alunos na escola, que os torna corpos dóceis e submissos ao regime de leis e normas estabelecidas pelas relações de poder, consiste em um dos principais sucessos dessa instituição. Mais que isso: enquanto desempenha a função de formar uma subjetividade útil para o processo de economia do poder, a instituição escolar, constitui-se em um aparelho responsável pela extração de saberes específicos sobre os alunos, que serão úteis para o controle social. De maneira geral, pode-se afirmar que na escola o poder disciplinar encontra um habitat natural, mesmo que nos corpos jovens também se encontrem a possibilidade da resistência, pois: as contracondutas corporais, como rebeldia às normas autoritárias da condução de condutas governamentais, são construções de estética da existência como práticas de liberdade. Ou seja, são existências construídas fugindo às normatizações, sejam elas determinadas pelos padrões da heterossexualidade compulsória, da branquitude, do corpo sem deficiência física ou o padrão imposto de certa sanidade mental, dentre outros padrões que servem à governamentalidade instituída (MARINHO, 2019, p. 67).

Diante das contracondutas e dos corpos estranhos que habitam a escola6, a construção desse saber da educação, por meio de ações e projetos pedagógicos, promove persistentemente a alienação subjetiva. Afinal, o olhar que controla também cria a normalização. Entretanto, o quadro das forças em ação e reação ainda não está completo. O advento do século XXI inaugura novos objetos, outro tipo de saber e outra racionalidade que altera o cenário da submissão dos corpos na tentativa de rarefação dos processos de subjetivação e demanda novas reflexões. IV Na estrutura da escola contemporânea, alterações importantes ocorrem por meio daquilo que se convencionou denominar, em geral, tecnopolíticas: novas estratégias tecnológicas, geopolíticas e de engenharia social baseados na securitização, em vez da proibição pela lei, na

6 Judith Butler sustenta que o abjeto é compreendido como aquilo que foi expelido do corpo, ejetado e descartado como excremento que é tornado o “Outro”. Segundo ela, o “sexismo, a homofobia e o racismo, o repúdio do corpo em função de seu sexo, sexualidade e/ou cor é uma ‘expulsão’ seguida por uma repulsa que fundamenta e consolida identidades culturalmente hegemônicas em eixos de diferenciação de sexo/raça/sexualidade. Em sua apropriação de Kristeva, Young mostra como a operação da repulsa pode consolidar ‘identidades’ baseadas na instituição do ‘Outro’, ou de um conjunto de outros, por meio da exclusão e da dominação [...] Para que os mundos interno e externo permaneçam completamente distintos, toda a superfície do corpo teria que alcançar uma impermeabilidade impossível. Essa vedação de suas superfícies constituiria a fronteira sem suturas do sujeito; mas esse enclave seria invariavelmente explodido pela própria imundície excrementícia que ele teme [...] E essa estabilidade, essa coerência, é determinada em grande parte pelas ordens culturais que sancionam o sujeito e impõem sua diferenciação do abjeto. Consequentemente, “interno” e “externo” constituem uma distinção binária que estabiliza e consolida o sujeito coerente (BUTLER, 2018, p. 232).

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 punição ou disciplina. Por um lado, os dispositivos disciplinares sofrem uma hipertrofia através vigilância nas Smart Cities com o uso de algoritmos, inteligência artificial e Big Data, independente de qualquer confinamento territorial e dotados de forte capacidade de predição (MOROZOV, 2018; ROUVROY, 2011; 2018; LYON, 2018); por outro, o processo de subjetivação disciplinar que encontrava na escola o local por excelência de sua execução se transforma e desloca-se para outras instâncias “extra-classe”, por exemplo, o mercado ou a internet, tornando-a, em parte, um dispositivo obsoleto (SIBILIA, 2012). Nesse novo regime de domínio, o controle disciplinar ocorre através de arranjos sociais atravessados por dispositivos de informação, de comunicação e transmissão de dados, que, um autor atento aos sinais como Deleuze, na esteira de Foucault, denominava como sociedade de controle: As sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também analisa sem parar as formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento em domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. (DELEUZE, 2013, p. 224).

Se, por um lado, o panóptico de Bentham é definido como uma forma que centraliza o poder e se utiliza das tecnologias de comunicação e informação como ferramentas de observação e controle de frequência; por outro, a vigilância através das tecnologias digitais é feita por participantes disponíveis, que dão o seu consentimento para o sistema de controle e cultura de desempenho, onde um trivial on line significa a quebra voluntária da privacidade e engajamento numa espécie de pós-panóptico no fornecimento cotidiano de dados anódinos. Não obstante as transformações nas sociedades de controle, é possível perceber nas ruínas da disciplina moderna a manifestação de novos modos da tríade vigilância-tecnologia-subjetividade na escola contemporânea: seja pelo uso de câmeras, de fichas de identificação ou da vigilância genética, códigos de barra, aplicativos de aprendizagem individualizada ou, por óbvio, smartphones e as redes sociais. Além das diversas estratégias contemporâneas que habitam a escola – entre elas, por exemplo, a gamificação, isto é, a transposição de dinâmicas e técnicas de jogos para a rotina profissional ou escolar, desarticulando a relação entre jogo e distração ao implantar uma função útil ou finalidade à atividade lúdica – gostaríamos de expor, na verdade, a nova lógica – melhor seria

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 dizer, a nova ontologia – que expressa melhor essa situação, qual seja, a da cultura da vigilância (LYON, 2018) e, sobretudo, a governamentalidade algorítma (sobretudo, ROUVROY, 2018). Como já exposto nas seções anteriores, Foucault registra as transformações ocorridas desde a punição física até o controle psicológico por meio de arquiteturas sociais, o que permitiu a observação de uma via administrada por poucos em nome de um governo liberal sob o princípio do útil que caracteriza os dois modelos de poder: a lei e a soberania, de um lado; o panóptico e a rede de disciplinas, de outro. Sem dúvidas, estas surgem embaralhadas e em cruzamentos, mesmo que a tendência da passagem de uma para outra constitua o paradigma do sistema de governo que se apresenta como a produção da (ilusão de) maior liberdade individual. No entanto, assim como o panóptico ofereceu um paradigma de controle social para as sociedades disciplinares na forma de confinamentos espaciais; hoje, diante das inúmeras diferenças, antecipadas por Foucault em algumas ocasiões, assumimos que tal paradigma sofre uma releitura através de arquiteturas abertas com ênfase na securitização que invertem o princípio da clausura, aprofundando os efeitos das tecnologias disciplinares por outros meios7. Conforme Foucault: No dispositivo de segurança tal como acabo de lhes expor, parece-me que se tratava justamente de não adotar nem o ponto de vista do que e impedido, nem o ponto de vista do que é obrigatório, mas distanciar-se suficientemente para poder apreender o ponto em que as coisas vão se produzir, sejam elas desejáveis ou não. Ou seja, vai-se procurar reapreendê-las no plano da sua natureza ou [...] vai-se tomá-las no plano da sua realidade efetiva [...] Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder a uma realidade de maneira que essa resposta anule essa realidade a que ela responde – anule, ou limite, ou freie, ou regule. Essa regulação no elemento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos dispositivos da segurança. (FOUCAULT, 2008, p. 61, grifo nosso).

Nossa proposta de leitura aponta, precisamente, para este momento: de que forma o novo regime de verdade digital instaura um processo de dominação e controle a partir da visibilidade e inteligibilidade dos corpos na escola? A rigor, mais do que um estudo de caso, pretendemos expor uma tendência de organização escolar que, em níveis de concretização diferentes, foram executados nos últimos anos e continua em execução. Nesse contexto, a chave da compreensão das sociedades de controle está na construção do ambiente no qual os sujeitos podem agir livremente, sem enclausuramento ou coerção, mas, ao mesmo tempo, se enredam cada vez no controle de uma normatividade imanente que atua como predição e condiciona a formação da

7 Para uma abordagem crítica da relação entre vigilância e o panóptico, além da exposição de uma teoria pós-panóptica, cf. LYON, 2006.

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 subjetividade ao estreitar a vivência aos perfis pré-determinados e, dessa maneira, excluir experiências sociais e tornar rarefeita a constituição da subjetividade (ROUVROY, 2018). Tal governamentalidade algorítmica nas escolas, para além das disciplinas produtoras do sujeito moderno, se caracterizam não apenas por exercer no lugar dos seres humanos, práticas de rotina que identificam, verificam, categorizam e controlam os alunos, sobretudo em relação ao comportamento e a aprendizagem. Não se referem, assim, à mera substituição de dispositivos que apenas reforçariam uma tendência de internalização de comportamentos, generalizada e totalizante, com a margem de erro ínfima. Pelo contrário, o aspecto fundamental do armazenamento de dados sobre as tendências daquele corpo – hábitos alimentares, deslocamento, resiliência, desenhos ou séries preferidos, matérias escolares ou esporte que praticam com mais frequências, etc. – são efetuados no circuito da escola a partir dos inúmeros exercícios que servem como base de coleta preferencial para a racionalidade governamental que “alimenta de dados objetivos, aparentemente insignificantes e sem a marca do sujeito. Criam-se modelos de comportamento sem que o indivíduo perceba a condução de suas ações pelas funções acionadas via algoritmos. E quanto mais se utiliza dos dispositivos tecnológicos, mais se potencializa o governo” (TELES, 2018, p. 440). Assim, os big data (quantidade massiva de dados) criam uma consciência de visibilidade permanente, moldada sob a ordem da transparência, e tratam esses dados como informações que expressam uma realidade imanente e acessível de modo imediato para o controle e eficácia, onde detenções e confinamentos espaciais não são mais necessários, pois o monitoramento de ações e afetos se torna possível no instante anterior da subjetivação, ou seja, no próprio ambiente de ação do indivíduo. Nessas formas paradoxais de confinamento abertas, operam desde conglomerados empresariais como o Alphabet Inc. (Google) ou Amazon, que buscam naturalizar, por exemplo, a experiência de leitura através do Kindle ou E-readers, por meio de generosas doações às escolas mais carentes com o intuito de fidelizar futuros clientes a um produto, até às pesquisas sugeridas e monopolizadas pela rede de computadores que permite o acesso (seletivo) às informações em segundos, anulando a possibilidade de reflexão e estranhamento. A questão reside, precisamente, neste ponto: o circuito no qual se promove a educação mediada pela tecnologia é isento de falhas ou imprevistos ao apresentar via datamining a fabricação e adaptação de perfis. Eis a caixa-preta que autoras como Rouvroy alertam, qual seja, a governamentalidade algorítmica “se concentra, a partir daí, não mais sobre o indivíduo, os sujeitos, mas sobre relações” (ROUVROY, 2018, p. 110). Assim, a escola moderna pode ser utilizada como exemplo da tecnovigilância por meio de Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 armazenamento de dados, mas ao invés da sua congênere do século XVIII, não tem mais a efetiva aplicação de técnicas sobre o corpo. Pelo contrário, a escola serve agora como local de coleta de quantidade massiva de dados, que após datamining – o tratamento automatizado de dados até a produção de correlações sutis – produz normas que, aparentemente, seria o próprio reflexo objetivo da realidade, pois desprovidas de interferências subjetivas. Ora, apostar nessa tese é desconsiderar os “efeitos autoperformativos dessas correlações (sua capacidade retroativa)” (ROUVROY, 2018, p.113) de modelar o comportamento dentro de um fluxo sem obstáculos. Se a vigilância moderna surge associada à ascensão das ciências humanas que analisam, registram observações e normalizam os sujeitos; a tecnovigilância instaura outro processo: opera ao nível das relações anteriores aos processos de individuação, eliminando a espontaneidade e a imprevisibilidade. Esse terceiro momento da execução da governamentalidade algorítmica, após a coleta e tratamento de dados, é, a partir dos perfis definidos por datamining, a aplicação na antecipação das ações do indivíduo. Da mesma forma que a governabilidade implementa a impossibilidade da formação do sujeito a partir do curto-circuito da reflexibilidade individual e da formação do desejo ao sugerir e provocar a reposta-impulso ao ato e evitam qualquer desvio entre o estímulo e “resposta-reflexo”, por exemplo, em qualquer compra na internet; na escola, desconsideram-se os sistemas semióticos e significantes, em prol de um agenciamento maquínico que põe em construção um sistema de elementos pré-individuais ao modo de input/output. (LAZZARATO, 2014). Nessa predição autorrealizável, antecipa-se em vez de vigiar. Nesse caso, em vez de um saber científico que opera em estreita cooperação com o poder, é o machine learning que a governamentalidade algorítmica produz ao dispensar a subjetividade da coleta e tratamento dos dados anônimos e doados ou esquecidos por serem triviais e, a partir deles, a elaboração de hipóteses e de uma normatividade que, em tese, seria natural e objetiva. Mais uma vez, Rouvroy (2018, p. 116) afirma sobre tal governamentalidade que: [...] não produz nenhuma subjetivação, ela contorna e evita os sujeitos humanos reflexivos, ela se alimenta de dados ‘infraindividuais’ em si mesmos insignificantes, para criar modelos de comportamento ou perfis supraindividuais sem jamais interpelar o sujeito [...] o momento de reflexividade, de crítica, de recalcitrância, necessário para que haja subjetivação, parece, incessantemente, complicar-se e ser adiado.

Seja no smart marketing que se apresenta como a solução prática para os consumidores encontrarem o que desejam, seja nos circuitos de sugestão nas redes sociais, o governo algorítimico não permite o desvio, a interpretação ou o diferente. Na realidade escolar, expõe-se essa estratégia digital, apesar do circuito espacial herdado do século passado, mas ainda possível de operar: por conta do suporte dado a uma lógica baseada na dominância de computadores que

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 abrem as escolas diretamente para as forças de mercado do capitalismo global, não obstante o contínuo deslocamento da subjetividade ali produzida e o aparato escolar que persiste (GADELHA, 2017). * * * Nesta rede de novos e velhos dispositivos, as tecnologias disciplinares são intensificadas e intimamente associadas com a racionalidade probabilística e estatística que dirigem o sistema de informação e pesquisa. É a arquitetura invisível e implícita das máquinas inteligentes que fornecem não mais a observação e a vigilância no trabalho, mas o próprio meio no qual as alternativas resumem a liberdade. As novas formas de análise de aprendizagem tornaram-se a forma mais rápida de entrega de bens públicos e educacionais para o setor privado numa união entre as corporações de grandes informações e o Estado. Os dados coletados podem ser utilizados desde garantir consumidores para novos mercados, vender produtos educacionais ou para outros fins propriamente educacionais, tais como a análise de aprendizagem. Esse termo é adotado pela comunidade educacional que procura compreender as implicações da evolução para a forma como analisamos os dados de aprendizagem a serem utilizados por organizações para melhorar o sistema de aprendizagem. Ela se utiliza de técnicas computacionais para analisar as informações dos alunos, gerar visualizações de dinâmicas de aprendizagem e construir modelos de previsão para testar teorias. Como os dados podem ser recolhidos em tempo real – normalmente, pelo aplicativo da escola ou por meio de quizzes interativos sobre a aula recém-ministrada – a proposta é que venha a existir a possibilidade de uma melhoria constante através de inúmeros ciclos de feedback, tais como, um retorno imediato para os alunos sobre suas próximas tarefas, um retorno diário para informar ao professor o foco da aula do dia seguinte e, esporadicamente, para os diretores que monitoram o progresso da escola. Dito de outra forma, os sistemas com riqueza de informações e dados são capazes de fornecer um feedback informativo e acionáveis para alunos, professores e diretores. Nessa rede de espaços digitais, a governamentalidade algorítmica é intensificada e associada diretamente com a racionalidade que direcionam o sistema de informações e pesquisa 8. Ao tratar da educação na era digital, rompe-se o modelo de confinamento em sala de aula, diante da adoção de diferentes formas de lógica digital que transformam esse ambiente de dentro para fora, procedimento acentuado pela oferta constante e massiva de TICS (Tecnologias da 8 Sobre isso, cf. CRAWFORD, 2016.

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A escola, a disciplina e as novas tecnologias: aproximações foucaultianas, pp. 89-114 Informação e Comunicação), articulando redes que excedem, em todos os sentidos, o Estado e o seu território. Esse processo de abertura de espaços digitais consegue criar um cenário de instituição descentralizada e autônoma dentro da rede. Todavia, nesse contexto de mutações profundas, a questão que nos resta pensar é: que rumos tomar em relação ao ensino e à escola? Se a

solução

tecnológica

dos

problemas

educacionais

aprofunda

a

dominação

pela

governamentalidade algorítma e reforça cultura da vigilância; como seria possível uma tecnorresistência para fugir do Big Other e experimentar a diferença como origem do aprendizado? Não seria outro, afinal, o tema a ser tratado pelos teóricos da educação nas próximas décadas.

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126

ARTE PÓS-MODERNA: ENTRE APROXIMAÇÕES E RUPTURAS Tiago Nunes Soares1

RESUMO: Queremos explorar a tensão entre modernidade e pós- modernidade a partir das concepções de Huyssen e Jameson que, apesar de não serem totalmente dissonantes, apresentam diferentes nuances no tratamento do tema. Tentaremos inserir uma leitura merleau-pontyana sobre o problema, valendo-nos de reflexões do filósofo francês sobre o mundo da arte, sobretudo a pintura, a fim de tentar refletir sobre a possibilidade de pensar a relação entre diferentes períodos históricos na arte sem necessariamente cair em dicotomias e visões unilaterais que tendem a enviesar debates e teorias. Por fim, propomos uma análise de uma obra de Basquiat, artista que pensamos retratar o potencial crítico da arte pós-moderna, e ilustrar a familiaridade existente entre diferentes períodos da história da arte. PALAVRAS-CHAVE: Arte. Pós-modernidade. Jameson. Huyssen. Merleau-Ponty. ABSTRACT: We want to explore the tension between modernity and postmodernity from the conceptions of Huyssen and Jameson that, although not totally dissonant, present different nuances in the treatment of the theme. We will try to insert a Merleau-Ponty based reading about the problem, drawing on the French philosopher's reflections on the art world, especially painting, in order to try to reflect on the possibility of thinking about the relationship between different historical periods in art without necessarily falling in dichotomies and unilateral views that tend to skew debates and theories. Finally, we propose an analysis of a work by Basquiat, an artist that portrays, we think, the critical potential of postmodern art, and illustrates the familiarity between different periods of art history. KEYWORDS: Art. Postmodernity. Jameson. Huyssen. Merleau-Ponty.

1 Doutorando em Filosofia. USP. E-mail: tnschw@usp.br

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 Compreender o que é a pós-modernidade é, sem dúvida, um grande desafio. Os debates acadêmicos acerca do tema parecem estar longe de encontrar um consenso, e isso de certa forma, justifica-se pela rede complexa de relações entre cultura, mercado, tecnologia e sociedade que se estabeleceram na contemporaneidade, relações que passam por mudanças constantes e abrem novas possibilidades de expressão no mundo da arte. Para além da complexidade intrínseca ao mundo contemporâneo, existe a questão sobre o surgimento do pós-moderno, e ela esbarra na relação entre pós-modernidade e modernidade. Diante disso, podemos levantar algumas questões importantes: seria a pós-modernidade a superação de um projeto moderno falido ou consequência dessa falência? Seria ela, nascida dessa falência, portanto, expressão de uma aridez criativa e crítica no âmbito da arte? Afinal, como encarar a pós-modernidade? Este desafio de desvendar a pósmodernidade é encarado por pensadores como Huyssen e Jameson. Percorreremos brevemente algumas características das teorias por eles desenvolvidas, observando a complexidade do tema e as diferentes nuances que ele adquire nesse debate. Vejamos, primeiramente, como Jameson problematiza a pós-modernidade a partir de seu texto Pós-modernidade e sociedade de consumo. Queremos destacar a tese por ele defendida de que há uma clara ruptura entre modernidade e pós-modernidade, ruptura marcada por dois traços característicos da pós-modernidade: o pastiche e a esquizofrenia. O pastiche é definido por ele como uma imitação de estilos que difere da paródia por seu caráter neutro e pela falta de comicidade, ou seja, é uma imitação sem um fim além da pura imitação. “O pastiche é paródia lacunar, paródia que perdeu seu senso de humor [...]” (JAMESON, 1985, p.18). Outro elemento marcante dessa ruptura seria a “morte do sujeito”. Para Jameson, a pós-modernidade é um ambiente no qual o individualismo e a identidade pessoal, características do modernismo, estão desaparecendo, dissolvidas no corporativismo capitalista onde o “sujeito individual burguês” não tem mais espaço. Nesse cenário, o problema para Jameson é o seguinte: “se está esgotada a experiência e a ideologia do eu singular, uma experiência e uma ideologia que sustentavam a prática estilística da modernidade clássica, já não fica claro o que artistas e escritores do período atual afinal estariam fazendo” (JAMESON, 1985, p.19) Mas há ainda outro problema que torna a pós-modernidade, nessa interpretação de Jameson, um terreno estéril: a saturação da criatividade. “Há mais uma razão pela qual os artistas e os escritores do presente não conseguirão mais inventar novos estilos e mundos — é que todos estes já foram inventados; o número de combinações possíveis é restrito; os estilos mais singulares já foram concebidos” (JAMESON, 1985, p.19). Ou seja, todas as possibilidades

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 esgotaram-se na modernidade, restando à pós-modernidade revisitar elementos do passado, permanecendo sem nada de novo a dizer. O pastiche seria justamente um sintoma dessa perda de identidade e individualidade que tornou a pós-modernidade um lugar onde as possibilidades de inovação parecem ter se esgotado. Os “filmes de nostalgia” também seriam sintomas desse esgotamento. “No mundo em que a inovação estilística não é mais possível, tudo o que restou é imitar estilos mortos, falar através de máscaras e com as vozes dos estilos do museu imaginário” (JAMESON, 1985, p.19). O diagnóstico oferecido por Jameson soa desalentador: [...] isto significa que a arte pós-moderna ou contemporânea deverá ser arte sobre a arte de um novo modo; mais ainda, isto significa que uma de suas mensagens essenciais implicará necessariamente a falência da estética e da arte, a falência do novo, o encarceramento no passado (JAMESON, 1985, p.19-20).

O segundo traço da pós-modernidade, a esquizofrenia, não será aprofundado aqui, pois queremos dar destaque às artes visuais, e Jameson relaciona essa característica com as artes temporais, como a música, a poesia e alguns textos narrativos. O que nos interessa, acima de tudo, é a tentativa de diagnóstico de Jameson acerca do pós-moderno. É interessante notar que as características por ele atribuídas ao pós-modernismo são, por ele mesmo, reconhecidas como próprias da modernidade. Ou seja, a pós-modernidade, em sua visão, é devedora da modernidade até naquilo que parece ter de próprio. Mas como seria possível, então, sustentar a ideia de que há uma ruptura entre elas? Há, de fato, uma pós-modernidade? Jameson reconhece que o assunto é complexo e que as rupturas nunca são tão radicais a ponto de aniquilar toda e qualquer relação de um período com o período antecedente. O que ele observa, no caso da pós-modernidade, é a reestruturação de conteúdos que já estavam presentes na modernidade e, sobretudo, a emergência de traços anteriormente secundários que passam a figurar como principais. [...] meu palpite é que até o momento atual esses elementos não passavam de traços menores ou secundários da arte moderna, marginais ao invés de centrais, e que passamos a ter algo novo no instante em que eles se tornam os traços centrais da produção cultural. (JAMESON, 1985, p.25)

A ruptura, para Jameson, parece dar-se pelo fato de que aquilo que era central no modernismo, sua capacidade de escandalizar, seu potencial de chocar e causar incômodo, foi neutralizado a ponto de não vermos um Picasso com estranheza. O modernismo, para ele, foi “de um modo mais ou menos implícito, perigoso, explosivo e subversivo em relação à ordem estabelecida” (JAMESON, 1985, p.25), e isso se perdeu na pós-modernidade, mesmo ela tendo traços do moderno, devido ao fato do moderno ter se tornado canônico e se esvaziado de seu potencial subversivo, o que marcaria a passagem para a pós-modernidade. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 De fato, um modo de marcar a ruptura entre os períodos e datar o surgimento da pósmodernidade pode se encontrar precisamente aí: na época (parece que início dos anos 60) em que a posição do modernismo radical e sua estética dominante se institucionalizaram na Universidade, quando passaram a ser considerados acadêmicos por toda uma geração de poetas, pintores e músicos” (JAMESON, 1985, p.26)

A ruptura pode também, segundo Jameson, ser entendida a partir de uma série de transformações após a segunda guerra mundial, que geraram mudanças cada vez mais rápidas em vários âmbitos da sociedade, deixando no passado a sociedade anterior à guerra. Ele atribui o estabelecimento do pós-moderno ao que ele chama de “capitalismo avançado, multinacional e de consumo”. Ele vê nesse cenário um apagamento da história com a valorização do presente repleto de mudanças em detrimento da preservação de tradições. As mudanças constantes e o turbilhão de informações tornam o passado cada vez mais distante e promovem, segundo ele, uma “amnésia histórica”, e o cenário artístico reflete esses problemas. A questão fundamental para Jameson, nesse contexto, é: há potencial crítico na arte pós-moderna, assim como houve na modernidade? Há nela alguma resistência à lógica da sociedade de consumo? Jameson aponta os problemas da pós-modernidade, mas parece estruturar sua teoria medindo o pós-moderno a partir da régua da modernidade, dando-nos a impressão de que o pósmoderno é um ambiente árido em criatividade e potencial crítico. Segundo nossa interpretação, a análise de Huyssen parece destoar um pouco da análise de Jameson, pelo menos nos textos aqui utilizados, justamente pela sua ênfase nas possibilidades do pós-moderno, no potencial crítico, mesmo que tímido, que há nele. Diríamos que Huyssen é mais comedido ao enfrentar o tema, talvez menos apressado em apresentar um juízo sobre um processo ainda em desenvolvimento, e mais esperançoso, talvez. Enfim, ele parece estar mais preocupado com uma experiência do pósmoderno do que com uma teorização que o enquadre. Não é o simples embate entre moderno e pós-moderno que está em questão para Huyssen, e não se trata de encarar a pós-modernidade simplesmente como movimento antimoderno. É preciso ampliar os horizontes para compreender esse período marcado pelo ecletismo e pelas diversas possibilidades que podem nos levar a diferentes reflexões. O que podemos dizer é que toda tentativa de encerrar o debate sobre a arte pós-moderna apresentando um veredito sobre o que ela de fato é, será uma tentativa frustrada e, no mínimo, presunçosa, assim como seria com qualquer outro momento na história da arte em seu pleno processo de desenvolvimento. O diagnóstico de Huyssen é o de que há no ocidente uma transformação cultural, uma mudança na sensibilidade. Certamente não uma modificação total, (como já vimos, as rupturas nunca são totais) mas uma Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 modificação, relações diferentes das que existiam num período anterior são estabelecidas devido às transformações operadas na sociedade. Mas há de fato uma arte pós-moderna, com uma estética própria, ou ela simplesmente retoma elementos e técnicas do modernismo para inseri-las em outro contexto cultural? Para Huyssen, corremos o risco de tentar ridicularizar o pós-moderno se não o encararmos em suas particularidades. Boa parte de minha análise baseia-se na premissa de que, o que aparece em um certo nível como a última tendência, auge publicitário e espetáculo vazio, é parte de uma transformação cultural que emerge lentamente nas sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade para a qual o termo "pós-modernos" é realmente, pelo menos por enquanto, inteiramente adequado (Huyssen, 1991, p.20).

É preciso voltar o olhar para a pós-modernidade com certa imparcialidade, ou assumir o risco de uma leitura enviesada e cega para seu potencial crítico que, embora difícil de encontrar, existe. Segundo Huyssen há, de fato, uma perda do caráter crítico como norma no pós-moderno, mas não uma aversão ou abandono da ideia de arte crítica. Se nossa pós-modernidade faz com que seja excessivamente difícil mantermo-nos apegados a uma antiga noção de arte como crítica, a tarefa que nos espera é a de redefinir as possibilidades da crítica em termos pós-modernos e não de relegá-la ao esquecimento (Huyssen, 1991, p. 21-22).

Para Huyssen, “o pós-moderno deve ser salvo de seus defensores e de seus detratores”, para ser tomado naquilo que apresenta como possibilidade para a arte e como condição histórica. É por isso que, para ele, diante de duas posturas bastante difundidas, uma defendendo o pós-modernismo como continuidade do modernismo e outra tomando-o como ruptura radical, a saída é percorrer um caminho alternativo ao da dicotomia. Assim, o pós-modernismo é encarado por Huyssen em seus diferentes discursos, em suas várias nuances, enfocado em suas características e na sua tensão interna, e não na sua desvalorização ou supervalorização com relação ao moderno. Para entender a relação entre o pós-modernismo e a modernidade, é preciso compreender qual é a imagem de modernismo que o pós-modernismo encara como aquela à qual ele deve opor-se para mostrar sua diferença. Isto porque o modernismo, segundo Huyssen, esteve longe de ser um movimento "monolítico", ou seja, longe de apresentar-se homogeneamente como se tudo nele falasse em uníssono. Para ele, os pós-modernistas não insurgem contra o modernismo propriamente dito, mas contra uma imagem dele, o "alto modernismo". Essa interpretação mostra-se como um caminho alternativo à dicotomia das ideias de continuidade ou descontinuidade do pós-moderno com relação ao moderno, pois encara o modernismo como um movimento com diferentes facetas, tornando

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 inconsistente a possibilidade de encará-lo como “um projeto” que deveria cumprir-se, e reforçando a ideia de enxerga-lo como abertura de possibilidades, da qual o pós-moderno é fruto. Ater-se ao projeto de modernização como modelo absoluto é problemático, olhar o pós-moderno através das lentes do moderno torna-se um obstáculo na exploração do novo contexto. E são precisamente essa teleologia e essa ideologia da modernidade que se têm tornado crescentemente problemáticas em nossa era pós-moderna, talvez não tanto por sua força explicativa e justificadora de eventos passados, mas certamente por suas pretensões normativas (HUYSSEN, 1991, p.42).

A tentativa de enquadramento do pós-moderno nos moldes da modernidade é um fator limitador que valoriza a teorização em detrimento da experiência. Não queremos com isso dizer que as teorias não sejam importantes, mas que elas devem nascer com as possibilidades, e não tornarse seu elemento limitador. É nesse ponto da questão que queremos introduzir uma reflexão merleau-pontyana acerca do mundo das artes no que diz respeito à relação entre seus diferentes períodos. Para Merleau-Ponty, é problemático encarar a história da arte de maneira linear e como se a sensibilidade não variasse ao longo do tempo. Para ele nenhuma perspectiva pode impor-se às demais quando se trata de arte porque seu desenvolvimento não é linear, como se obedecesse à ordem causa-consequência, mas metamorfoseante. Partindo das reflexões de Merleau-Ponty, podemos dizer que o trabalho de todo artista, na modernidade, na pós-modernidade, ou em qualquer outro período da pintura, segue uma trilha que já foi aberta, o que não o impede de abrir novos caminhos, muito pelo contrário, dá a ele essa possibilidade. O artista enfrenta em seu trabalho as questões já levantadas por outros, por seus próprios quadros e por suas experiências pessoais, e embrenhando-se nessa trilha, entrecruzam-se elementos que vêm dele mesmo e que nascem das coisas, mistura-se aquilo que ele renova e o que mantém do antigo, aquilo que é seu e aquilo que herdou da tradição. Para o filósofo, o artista promove uma renovação tripla: renova aquilo que percebe no mundo, renova seu passado e também o passado da pintura. Essa metamorfose não é um milagre criativo, mas é antes uma resposta ao passado, ao mundo, e às obras anteriores, portanto pode ser encarada como cumprimento e fraternidade. Cumprimento não enquanto consequência lógica, mas como realização imprevista de uma possibilidade aberta. O presente, para Merleau-Ponty, é dotado de uma fecundidade dos “produtos de cultura” que “seguem valendo após sua aparição por abrir um campo de pesquisas em cujo seio revivem” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 346). Por essa via, o mundo desde quando visto, seus primeiros esboços e todo o passado da pintura entregam ao pintor uma tradição, isto é, [...] o poder esquecer as origens e dar ao

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 passado não uma sobrevivência que seria a forma hipócrita do olvido, mas uma nova vida que é a forma nobre da memória. (MERLEAU-PONTY, 1975, p.346)

Ora, não seria justamente isso o que Huyssen propõe ao analisar o pós-moderno? Não devemos ver ali uma sobrevida do moderno naquilo que o pós-moderno dele incorpora dando a ele nova vida? O passo adiante dado pelo pós-moderno não é uma superação ou um caminho de esquecimento do moderno, mas sua metamorfose. Nem ruptura total, nem simples continuidade, mas metamorfose. Além disso, deve-se levar em conta que há uma unidade entre os diferentes períodos da arte. A unidade da arte, para Merleau-Ponty, não reside apenas nos detalhes comparáveis das obras quando da sua reunião em um museu, como defendia Malraux. Essa unidade diz respeito ao esforço expressivo presente na pintura desde os tempos das cavernas. É claro que a reflexão de Merleau-Ponty recai sobre o mundo da pintura, mas como este está inserido no mundo das artes, essa reflexão se estende às artes como um todo, e também à relação entre moderno e pós-moderno. Para o filósofo “o clássico e o moderno incluem-se no singular esforço do universo da pintura concebido desde os primeiros desenhos sobre as paredes das cavernas, até a atual pintura ‘consciente’”(MERLEAU-PONTY, 1975, p. 347). Nessa visão merleau-pontyana, a relação entre a pintura moderna e toda a pintura do passado, e aqui podemos incluir a relação entre a arte pósmoderna e a moderna, se dá por uma transfiguração e uma prefiguração: transfiguração da tradição da pintura, mas também uma prefiguração de seu futuro no passado. Nesse sentido, há uma coexistência de passado e presente em seu impulso para o futuro. Os desenhos encontrados nas cavernas, portando, já “invocavam um porvir indefinido da pintura”. É importante destacar que para Merleau-Ponty existem duas historicidades possíveis: uma pautada nos contrassensos, ressaltando o embate entre diferentes épocas e tentando desvendar as perspectivas e tendências que se impõem, marcada pelo esquecimento e pela exterioridade; e outra constituída pelo “interesse que temos pelo que não somos”, o interesse por uma vida em que o passado não está morto porque doa e recebe algo de nós, uma historicidade para a qual o passado se estende “a todo novo pintor que a cada novo produto revive, retoma e relança a invenção essencial da pintura”. (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 347) A história da pintura entendida como história de embates é, para Merleau-Ponty, uma “história cruel”, onde as pinturas são aproximadas ou afastadas com base em características de sua composição, ignorando o problema da expressão que as torna todas contemporâneas. A relação existente entre as obras de diferentes períodos e estilos não é algo proporcionado pela reunião de diferentes obras em um museu. A familiaridade entre as obras se desvela naquilo que ela tem de

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 mais próprio, no estilo que nasce em cada pintor, não porque ele seja comparável ou simplesmente retome algo do passado, mas porque o pintor “ele mesmo é uma certa palavra no discurso da pintura, que desperta ecos em direção ao passado e em direção ao futuro, na medida mesma em que não o procura, é porque se une a todas as outras tentativas na medida mesma em que se ocupa resolutamente de seu mundo” (MERLEAU-PONTY, 2013, p.91). Essa prefiguração e essa referência ao passado não devem ser encaradas como predeterminação de um estilo, pois o pintor é livre em sua “filiação histórica”. Não há uma relação de determinação entre o passado e o futuro na pintura. O pintor em ação desperta o passado e se lança em direção ao futuro por ocupar-se “resolutamente do seu mundo”. A história empírica é cega para os adventos, mas a verdadeira história da pintura é capaz de enxerga-los pela retrospecção inserida no “querer total do pintor”, que a torna capaz de olhar para o passado justamente porque o pintor lançou seu olhar para a obra ainda por vir. Dessa forma, passado e presente caminham juntos, permanecendo nas possibilidades por eles abertas, na prefiguração de movimentos indeterminados que serão também novas aberturas de possibilidades. É nesse sentido que o embate entre pós-modernidade e modernidade, sustentado por alguns críticos, parece ignorar a familiaridade entre os movimentos e também a especificidade do pósmoderno. Colocar os períodos da história da arte lado a lado e medir sua importância a partir de uma teoria predeterminada, traçar rupturas e continuidades apenas a partir de comparações entre seus elementos, como se comparam quadros de diferentes períodos em um museu, é ignorar uma familiaridade que está para além de elementos estéticos comuns. Não queremos com isso dizer que não há mudanças na arte, mas que é a familiaridade, marcada pela não linearidade, pela capacidade da arte de permanecer naquilo que a continua por meio de uma metamorfose, que torna possível a novidade que traz consigo novas possibilidades. A análise de Huyssen faz muito sentido nesse contexto: O pós- modernismo está longe de tornar o modernismo obsoleto. Pelo contrário, ele joga uma nova luz sobre o modernismo e se apropria de muitas de suas estratégias e técnicas estéticas, inserindo-as e fazendo-as trabalhar em novas constelações (HUYSSEN, 1991, p. 73).

O pós-moderno não é superação nem a derrocada do moderno. Não é seu cumprimento, mas também não é sua total recusa. É uma possibilidade aberta, em pleno desenvolvimento, que continua o passado na medida em que se move para um futuro incerto. A sensação de que tudo já foi visto em matéria de arte e que o pós-moderno está fadado a revisitar estilos do passado pode dar lugar ao enfrentamento das possibilidades abertas pelo próprio pós-moderno naquilo que nele há

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 de particular, se o foco não recair apenas no embate entre épocas, se o moderno não for tomado sempre como referência absoluta. A análise de obras pode nos auxiliar nessa empreitada e ressaltar a abertura de possibilidades e o caráter crítico como potencial da pós-modernidade e desvelar a familiaridade entre diferentes períodos da arte. Não é que o pós-moderno deva ser crítico nos moldes da modernidade, nem que ele só tenha valor se houver nele caráter crítico, mas isso nos ajudará a refletir sobre o fato dele nada perder em sua capacidade crítica com relação ao período anterior, e que, nesse sentido, não se pode encará-lo como perda de qualidade ou como uma espécie de arte sem sentido. O caráter crítico pode não ser a característica dominante da pós-modernidade, mas nem por isso podemos dizer que é um elemento ausente e que a pós-modernidade não pode ter seu próprio jeito de fazer crítica. A obra de Basquiat parece demonstrar exatamente isso. Deixaremos de lado os aspectos biográficos que marcaram a vida de Basquiat, artista estadunidense que ganhou notoriedade no mundo da arte com seu estilo espontâneo marcado pelo grafite, pelo primitivismo e pela arte urbana, e analisaremos uma de suas obras que, em nosso entendimento, desvela elementos de crítica social e mostra a metamorfose que torna possível a sobrevida do passado como possibilidade para o presente e para o devir.

A pintura aqui apresentada, realizada em tinta acrílica, é uma obra sem título feita por Basquiat em 1981. Vemos os traços de movimentos livres característicos do pintor nova-iorquino, bem como o uso de palavras que nem sempre tem uma relação explícita com as figuras. Algumas características peculiares podem ser observadas nessa obra. Observemos o fato de que duas figuras

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 não tem face, ou melhor, apresentam a face totalmente branca, sem resquícios de olhos, nariz ou boca. São, muito provavelmente, dois policiais sem rosto. A estrela do distintivo da figura à esquerda parece denunciar isso, além dos chapéus e das cores que parecem representar seus uniformes. Poderíamos dizer que essas duas figuras que ladeiam a figura central são o poder coercitivo e punitivo do estado. A figura central, pintada em preto, provavelmente está ligada ao povo negro, do qual Basquiat era descendente. Sabemos do histórico de racismo existente nos Estados Unidos, e a época de Basquiat não experimentou exceção. Sem dúvida o poder de polícia muitas vezes auxiliou a perpetuação do racismo e da segregação social com a perseguição da população pobre e negra. O artista, negro e vindo da periferia, certamente conhecia essa realidade de perto. Vemos sobre a cabeça da figura central uma espécie de halo, o que pode sugerir que Basquiat buscava retratar a heroicidade ou caráter sagrado dessa figura. Observemos que essa é a única figura que tem um rosto. Não há nele uma expressão clara, mas se tivéssemos que defini-la, diríamos que é de espanto ou raiva. No canto superior esquerdo vemos a palavra “loans” cuja tradução seria “empréstimos”. Não estariam os policiais cobrando indevidamente por uma dívida que o detido não tinha? Não estão cobrando por uma dignidade simplesmente emprestada, não reconhecida como direito? Quantos negros foram condenados indevidamente por crimes não cometidos? Afinal, quem está em dívida? Poderíamos sustentar, diante desses elementos, que a arte contemporânea perdeu o caráter crítico? E poderíamos sustentar que as particularidades do estilo de Basquiat ignoram a tradição, sendo que ele incorpora em sua obra, entre outras coisas, elementos da arte africana (basta observar como os rostos que aparecem em suas pinturas remetem às máscaras ritualísticas africanas) e dos cultos iorubá? Pode-se ter a impressão de que a modernidade esgotou as possibilidades de inovação e ter o sentimento de que tudo já foi visto nas artes. Mas se observarmos as particularidades do pósmoderno, encontramos nele caminhos nos desencontros, aproximações nos distanciamentos, veredas imprevistas em uma arte que está, porque sempre esteve, ainda por fazer-se. Talvez o cenário do pós-moderno, em suas continuidades e descontinuidades, possa ser resumido nesse breve poema de Augusto de Campos que condensa a contemporaneidade:

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Augusto de Campos: tudo está dito, 1974 Tudo está dito Tudo está visto Nada é perdido Nada é perfeito Eis o imprevisto Tudo é infinito

A sensação de que tudo já foi visto nasce do olhar que se lança sobre o contemporâneo através das lentes da modernidade. Abrir mão dessas lentes significa encarar as possibilidades nascidas da imprevisibilidade e da incompletude da arte e de sua história, características que as inserem num caminho que não é da ordem da linearidade, mas da metamorfose que é sobrevida do passado renovado que abre possibilidades em seu impulso para o futuro.

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Arte pós-moderna: entre aproximações e rupturas, pp. 115-126 REFERÊNCIAS: HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: Pós-modernismo e política. Heloísa Buarque de Hollanda (org.).Rio de Janeiro: Rocco, 1991. JAMESON, Frederic. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n.°12, pp. 16-26, jun. 85 MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: Os pensadores, v.XLI. São Paulo: Abril Cultural, 1975. _________________________. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: O olho e o Espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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(SER)TÃO NORDESTINO NA SALA DE AULA: UM NOVO DESENHO SITUADO DE ENSINO Adriana dos Santos Pereira1 José Roberto Alves Barbosa2

RESUMO: O presente artigo é um recorte de um projeto de letramento crítico, mediado por charges, desenvolvido com alunos do 9º ano de uma escola pública estadual, localizada em Fortaleza/CE. Nesta pesquisa, objetivamos analisar novos desenhos do Nordeste e de seus habitantes, em períodos de estiagens, representados em produções textuais dos discentes. Para o embasamento teórico utilizamos, Suassuna (2002, 2010), Gaspar (2006), Albuquerque Júnior, (2012), Silva (2013), Janks (2010), Freire (2016), entre outros. Baseada em uma pesquisa-ação, com abordagem qualitativa e interpretativa, nossa análise constatou que os aspectos multimodais presentes nas composições textuais colaboram para a desconstrução caricata e preconceituosa do nordestino, colocando-os em posição de empoderamento e vivência harmoniosa com a seca no sertão. PALAVRAS-CHAVE: Letramento crítico. Redesenho. Nordestino. Seca. ABSTRACT: This paper is part of a critical literacy project, with the use of cartoons, produced by 9th grade students at a public school in Fortaleza (CE). This research objectively aims at analyzing new designs about the northeast of Brazil and its inhabitants, during the drought period, represented in students’ textual productions. The investigation is based on Suassuna (2002, 2010), Gaspar (2006), Albuquerque Junior (2012), Silva (2013), Janks (2010), Freire (2016), among others. It is an action research, with a qualitative and interpretivist approach, in which was possible to realize that some 1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (PosLA/UECE). Professora de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação (SEDUC/CE). E-mail: adrika.pereira13@gmail.com 2 Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA/Caraúbas), no Departamento de Linguagens e Ciências Humanas (DLCH). E- mail: jrabarbosa1971@gmail.com

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 multimodal aspects can be identified in their compositions, contributing to deconstruct a caricatural and prejudicial view on northeast people, providing them an empowered position and harmonic existence with that region during drought period. KEYWORDS: Critical literacy. Redesign. Northeast people. Drought.

A água é uma bênção, já a sua falta é dificuldade, mas também é uma forma que a natureza usa para equilibrar o mundo (Aluno/participante do projeto, 2015).

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nacionalmente, o preconceito contra a origem geográfica de lugar marca, em particular, os nordestinos a quem, consoante Albuquerque Júnior (2012, p. 90), estão vinculados “tipos sociais com certo desprezo, com comiseração ou com medo, como: o retirante, o flagelado, o migrante, o pau-de-arara, o arigó”. Para compreender muitos discursos e imagens negativas associados à população nordestina, é preciso conhecer a história da construção do Nordeste que, como “recorte regional”, com identidade específica e “cultura singular” só surgiu na década de 1910, popularizouse ao longo dos anos 1930 e foi produzida “pelas elites políticas e pelos letrados deste próprio espaço” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 91). Durante uma pesquisa em sites de busca na internet, constatamos que muitas charges jornalísticas – textos primordialmente visuais que, de modo humorístico, apresentam e satirizam personagens e/ou fatos sociopolíticos contemporâneos –, vão ao encontro dessa representação caricata acerca do sertão nordestino. Portanto, neste artigo, pretendemos analisar as imagens do Nordeste e de seus habitantes redesenhadas por estudantes do 9º ano de uma escola pública estadual, de Fortaleza/CE, após diversas atividades de leitura e interpretação de charges sobre a seca, pelas quais se constituíram as práticas realizadas em um projeto de letramento crítico3. Com abordagem qualitativa e interpretativa, a pesquisa se mostra relevante à medida que possibilita leituras e questionamentos distintos acerca de questões urgentes, como a (i)lógica presente em discursos preconceituosos que qualificam o Nordeste como um ambiente 3 O letramento crítico está associado às práticas sociais de leitura e (re)escrita e ao empoderamento do sujeito que, consciente do poder interventivo da linguagem, utiliza-a de modo a compreender como, por que e para quem funcionam/interessam certos discursos. Registramos também que consideramos o projeto desenvolvido em 2015, de modo mais informal (mas, nem por isso, menos responsável), uma prévia da pesquisa de Mestrado da professora-pesquisadora.

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 naturalmente de seca, subordinação, atraso e pobreza. Debates como esses fomentam mudanças discursivas e, dialeticamente, mudanças sociais, por meio da capacidade de agenciamento dos indivíduos que almejam a redução das injustiças na contemporaneidade. Para tanto, revisitamos autores que abordam a seca no Nordeste, assim como a identidade do nordestino (GUILLEN, 2001; SUASSUNA, 2002, 2010; GASPAR, 2006; CARVALHO, 2010; ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012; SILVA, 2013) para, posteriormente, apresentarmos nossa análise comparativa entre o novo design do nordestino e as charges, com base na ideia ação/reflexão de Freire (2016) e no redesenho de Janks (2010), seguida das considerações finais e das referências que subsidiaram este trabalho.

A INDÚSTRIA DA SECA NO NORDESTE

A seca caracteriza-se pela má distribuição de chuvas no tempo e no espaço e pela alta taxa de evapotranspiração. Tal fenômeno atinge frequentemente cerca de 18% do território brasileiro, área conhecida como Polígono das Secas e formada por oito estados da região Nordeste (Rio Grande do Norte, Pernambuco, Ceará, Paraíba, Bahia, Piauí, Sergipe, Alagoas) e por Minas Gerais (SUASSUNA, 2002; BRASIL, 2009). Imensa e, por vezes invisível, o que se conhece hoje como região Nordeste sofre com a estiagem desde o século XVI quando, entre 1583 e 1585, conforme Suassuna (2010), surgiram as primeiras notícias sobre a seca. Desde então, esse problema se repete sistematicamente e, em meio à calamidade instaurada, constrói-se um grande negócio popularmente conhecido como indústria da seca. Quanto a essa questão, Gaspar (2006) aponta que os grandes latifundiários nordestinos, valendo-se de seus aliados políticos, interferem nas decisões tomadas e se beneficiam dos investimentos realizados e dos créditos bancários concedidos. Muitas vezes, aplicam os financiamentos obtidos em outros setores que não o agrícola e se aproveitam da divulgação dramática das secas para não pagarem as dívidas contraídas. Dessa forma, “a seca, divulgada nacionalmente como um grave problema, torna-se um argumento político quase irrefutável para conseguir recursos, obras e outras benesses que seriam monopolizadas pelas elites dominantes locais” (SILVA, 2003, p. 362). Lembramos que, de modo geral, a intervenção do governo se limita a dois tipos de ação: i) estruturais, como a construção de açudes, adutoras, barragens, poços e cisternas; ii) assistenciais, como a disponibilização de bolsa

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 estiagem, carros-pipa e cestas básicas durante o período das secas. Ainda que esse conjunto de práticas seja relevante à subsistência regional, o autor salienta: Não se trata apenas de programas emergenciais e de ações de combate à pobreza. A sustentabilidade com base na convivência implica e requer políticas públicas permanentes e apropriadas que tenham como referência a expansão das capacidades humanas locais, sendo necessário romper com as estruturas de concentração da terra, da água, do poder e do acesso aos serviços sociais básicos (SILVA, 2003, p. 379, grifos do autor).

Além disso, quando se pensa no sertão nordestino, é quase inevitável a relação entre estiagem e migração – esta como consequência daquela e considerada, por uma grande parcela da população, a única solução para os problemas vivenciados pelos nordestinos. Para Guillen (2001), migrar tem sempre um sentindo ambíguo porque, simultaneamente, é imposição e escolha. Desse modo: Migrar é, em última instância, dizer não à situação em que se vive, é pegar o destino com as próprias mãos, resgatar sonhos e esperanças de vida melhor ou mesmo diferente. [...] Migrar pode ser entendido como estratégia não só para minimizar as penúrias do cotidiano, mas também para buscar um lugar social onde se possa driblar a exclusão pretendida pelas elites brasileiras através de seus projetos modernizantes (GUILLEN, 2001, p. 2).

Percebemos, então, que o assistencialismo, a pobreza e a migração são considerados problemas advindos da seca, a qual há décadas tem se transformado em uma indústria permeada por finalidades obscuras. No entanto, é importante lembrar que a escassez de água no Nordeste não pode ser apontada como a grande responsável pelo subdesenvolvimento da região e, a partir de deduções simplistas, compor o imaginário amplamente difundido na mídia, pois crises climáticas periódicas, como enchentes, geadas e secas, ocorrem em qualquer lugar do mundo. Em vista disso, só se transformam em flagelo social quando precárias condições políticas e econômicas assim o permitem (GASPAR, 2006). Portanto, a perspectiva de convivência com a seca é possível, desde que políticas oficiais e permanentes sejam inseridas, fiscalizadas e cumpridas no Nordeste brasileiro, sem desrespeito às particularidades da região e de seus habitantes. A seguir, apresentamos sucintamente o modo como algumas charges representam o nordestino no contexto da seca.

A IMAGEM DO NORDESTINO EM CHARGES SOBRE A SECA

“Maior parte dos migrantes do Brasil sai do Nordeste, segundo o IBGE”, “Seca atinge mais de mil municípios do Nordeste e causa situação de emergência”, “Algumas regiões do Nordeste entram no quarto

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 ano seguido de seca”, “Seca no Nordeste: o problema vai além da falta de chuva! Desvio de verbas públicas, corrupção na Administração”, “Governo libera R$ 790 milhões para ações de combate à seca no Nordeste”4. Esses são exemplos de títulos de notícias publicadas em diversos veículos de comunicação, em períodos de estiagens, que, associadas às imagens de chão rachado, plantação seca, gado morto e pessoas passando fome, corroboram as representações simplórias e caricatas do nordestino. De igual modo, as charges e suas estruturas semióticas podem favorecer o desempoderamento dos nordestinos quando os identificam como pessoas sofredoras, ignorantes e incapazes de sobreviver sem os benefícios governamentais, como mostram os exemplos abaixo. Por conseguinte, muitos leitores desses textos acabam assumindo passivamente um discurso hegemônico (re)construído pela mídia e sustentado pela ideologia. Vejamos o Quadro 1 e as possíveis leituras acerca da imagem do nordestino nas charges. Quadro 1 – Charges

Ignorante

Dependente do governo

Sofredor

Migrante

4 As notícias estão disponíveis em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/08/maior-parte-dos-migrantes-do-brasil-sai-donordeste-segundo-o-ibge.html, https://www.opovo.com.br/noticias/brasil/2014/09/seca-atinge-mais-de-mil-municipios-donordeste-e-causa-situacao-de-eme.html, http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2015/02/algumas-regioes-do-nordeste-estaoentrando-no-quarto-ano-seguido-de-seca.html, http://lanyy.jusbrasil.com.br/artigos/191569307/seca-no-nordeste-o-problema-vaialem-da-falta-de-chuva-desvio-de-verbas-publicas-corrupcao-na-administracao, http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-07/governo-libera-r-790-milhoes-para-acoes-de-combate-seca-no-nordeste. Acesso em: 28 mai. 2020.

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Fonte: organizado pela autora5.

Essas construções imagéticas são frutos de apreciações superficiais sobre a realidade do semiárido brasileiro, de seus habitantes e dos interesses políticos das elites locais que procuram explicar o subdesenvolvimento da região como resultado de condições naturais adversas e da formação de sua gente (SILVA, 2003). Conforme Carvalho (2010), aceitar os clichês sem discussão, como se fossem verdades inquestionáveis, faz parte da lógica das ideologias e, por esse motivo, a institucionalização do discurso das secas é desenvolvida para perpetuar a relação de dependência e flagelo do nordestino. Tal estereótipo criado pela mídia, e materializado em distintos gêneros discursivos, assemelha-se à estratégia das “tradições inventadas” que, de acordo com Hobsbawm & Ranger, citado por Hall (2015, p. 32), são práticas “de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado”. Desse modo, nada parece ser mais obsoleto que, em pleno século XXI, associar, sem questionamentos, o estigma de vítimas e de pobres coitados aos nordestinos em períodos de seca. Em razão disso, Hall (2015, p. 12) informa que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” e, portanto, o nordestino pode assumir “identidades diferentes em diferentes momentos”, não se limitando, por exemplo, à representação multissemiótica apresentada nas charges acima.

5 Charges disponíveis em: http://www.ivancabral.com/2014/11/charge-do-dia-nuvem-seca.html, http://carlosbritto.ne10.uol.com.br/enquanto-isso-518/charge-seca/, http://paduacampos.com.br/2012/?s=charge+nordeste, http://www.ivancabral.com/2015/09/charge-do-dia-triste-partida.html. Acesso em: 02 mai. 2020.

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 Na próxima seção, trazemos novos textos que foram elaborados com o objetivo de recriar a imagem do sertão nordestino e de seus moradores.

NOVO DESENHO DO NORDESTINO NO CONTEXTO DA SECA

Notas metodológicas O projeto de letramento crítico do qual se originou este artigo caracteriza-se como pesquisa-ação, um método de intervenção empírico e qualitativo que visa preencher possíveis lacunas entre a teoria e a prática pedagógica. Nesse sentido, tal estratégia metodológica é entendida como um “modo de conceber e de organizar uma pesquisa social de finalidade prática e que esteja de acordo com as exigências próprias da ação e da participação dos atores da situação observada” (THIOLLENT, 2001, p. 32). Nosso material de pesquisa compõe-se de dez redesenhos, os quais foram elaborados em grupos por alunos do 9º ano de uma escola pública estadual, localizada em Fortaleza/CE, em que a professora-pesquisadora atuava como docente de Língua Portuguesa. Entre os meses de outubro e novembro de 2015, realizamos o projeto de letramento com os 38 discentes que constituíam a turma. Foram sete encontros, de 2h/a cada, nos quais os estudantes participaram das seguintes atividades: i) leitura e análise de charges, coletadas em blogs e jornais eletrônicos, que abordam a temática da seca no Nordeste; ii) estudo das características do gênero discursivo charge; iii) identificação da imagem/representação do nordestino nos textos; iv) reconstrução, por meio da produção de textos multimodais, da paisagem semiótica do sertão. Já o corpus deste trabalho é composto por cinco textos, selecionados para análise mediante o índice de frequência dos estudantes durante as aulas e o alcance do objetivo do projeto – produzir um novo design dos nordestinos no contexto da seca. Em relação ao tratamento dos dados, a abordagem é qualitativa e busca interpretar elementos verbais e não verbais presentes nos redesenhos comparando-os com as charges trabalhadas em sala.

Análise dos redesenhos Em pesquisas comprometidas com a equidade social, Janks (2010) defende que qualquer discurso construído, independentemente das relações desiguais de poder que o permeiam, pode ser desconstruído e reconstruído por meio da consciência crítica dos envolvidos em práticas de letramento diversas. Essa constatação alia-se à autêntica libertação da qual nos fala Freire (2016, p. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 93), “que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”, para redesenhá-lo. Acrescentamos as colocações de Albuquerque Júnior (2012, p. 130) que corroboram a ideia de um novo design do nordestino: O que aprendemos com a história é, justamente, que tudo que está a nossa volta, tudo que fazemos, dizemos, somos, pensamos, foi produzido e inventado, historicamente, pelos próprios homens e, se é assim, também pode vir a ser destruído, abandonado, desinventado e desinvestido pelos próprios homens.

Nessa perspectiva, “os teóricos que trabalham com a visão de poder veem a linguagem, outras formas simbólicas, e o discurso de forma mais ampla, como um poderoso meio de manter e reproduzir relações de dominação” (JANKS, 2010, p. 23)6. Característica relacionada à pedagogia da Consciência Crítica da Linguagem que, apoiada nos estudos de Thompson (2011), considera a ideologia algo eminentemente negativo, ou seja, recursos implícitos em práticas sociais pelos quais se constroem sentidos simbólicos que naturalizam a subordinação. Quanto às formas simbólicas, o autor entende que se tratam de: um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos. [...] Mas formas simbólicas podem também ser não linguísticas ou quase-linguísticas em sua natureza (por exemplo, uma imagem visual ou um constructo que combina imagens e palavras) (THOMPSON, 2011, p. 79, destaque do autor).

Portanto, de encontro às formas simbólicas que apresentam os nordestinos em uma visão caricata, a qual insiste em posicioná-los de maneira subalternizada, como vimos nas charges da seção anterior, o corpus deste artigo recria um espaço digno de vivência, e não puramente de sobrevivência, no sertão. A respeito disso, o Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Semiárido destaca que a harmonia com a semiaridez implica o envolvimento das novas gerações e exige mudança de mentalidade destas para que a interação multissetorial, aliada à educação ambiental, minimize o grau de vulnerabilidade da região e possa “empoderar os seus atores locais, estimulando a cooperação e o capital social dos territórios” (BRASIL, 2009, p. 17). Eis, então, os textos multimodais (redesenhos) e respectivas interpretações. Figura 1 – Redesenho 17

6 “theorists working with the view of power see language, other symbolic forms, and discourse more broadly, as a powerful means of maintaining and reproducing relations of domination”. 7 Diálogo do redesenho 1: Tenho muito orgulho de você, meu filho, tenha uma boa aula! Obrigado, pai!

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Fonte: acervo pessoal da professora-pesquisadora.

A figura de um pai levando o filho ao colégio diverge, positivamente, da charge em que uma criança, de forma ingênua, desconhece a cor verde. Esse fato ocorre, muito provavelmente, em função da vegetação ressecada que vemos pela janela da casa. O redesenho 1 posiciona a escola – uma das instituições de prestígio onde práticas de leitura e escrita são desenvolvidas –, em lugar de destaque, considerando o poder que ela tem para retirar o cidadão da ignorância e levá-lo ao diversificado mundo do conhecimento. Este, quando bem trabalhado, favorece a emancipação dos discentes como indivíduos participativos e críticos dentro e fora do contexto escolar. Parafraseando o educador Paulo Freire e relacionando as ideias da Pedagogia do Oprimido às diversas opressões vivenciadas pelos povos do Nordeste, questionamo-nos: quem, melhor que os nordestinos, encontrar-se-á preparado para entender o significado terrível de uma sociedade preconceituosa? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da estereotipia? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação, isto é, da desconstrução de uma imagem negativa atribuída a eles? “Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela” (FREIRE, 2016, p. 42, 43). Portanto, o novo desenho do sertão, refeito por alunos/nordestinos, coopera com a libertação daqueles que, porventura, ainda vivem no Nordeste em meio ao preconceito direcionado aos menos letrados, com baixa escolaridade ou analfabetos. Consoante Janks (2010), textos e práticas discursivas auxiliam estudantes na reescritura de si e de situações vivenciadas localmente, ajudando-os a atuar diante de problemas com o intuito de, em pequena escala, tornar o mundo um ambiente menos injusto.

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 Figura 2 – Redesenho 28

Fonte: acervo pessoal da professora-pesquisadora.

Contrariando a ideia de dependência assistencialista (mediante Bolsa-estiagem, por exemplo), o redesenho 2 traz três participantes – dois homens e uma mulher grávida –, que são representados de modo mais próximo à realidade e estão envolvidos em uma experiência concreta, e agora cotidiana, no sertão nordestino: a existência de água perto de casa. O poço, no centro da composição textual, corresponde à principal necessidade do indivíduo em tempos de estiagens, a água que assegura a vida de seres humanos, animais e plantações, bem como desmistifica a ideia de que os nordestinos sofrem o ano inteiro com problemas hídricos. Ademais, a alegria estampada no rosto das pessoas que se encontram na cena, o verde das plantas que começam a surgir na terra, antes hostil e rachada, e o azul do céu, outrora castigado pelo sol, asseveram a formação de um clima tranquilo visto que, conforme nos aponta Gaspar (2006), outras regiões semiáridas e áridas são aproveitadas pela agricultura, por meio da ampliação de culturas secas ou irrigáveis, como acontece nos Estados Unidos, Israel, México, Peru, Chile ou Senegal. Desse modo, podemos romper com o pensamento de que nordestinos e demais habitantes

8 Diálogo do redesenho 2: Zé, cadê a água que eu te pedi macho? Tô enchendo os balde, múier!!

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 de lugares caracterizados geograficamente pela (semi)aridez vivem às custas de recursos oriundos dos cofres públicos. Figura 3 – Redesenho 3

Fonte: acervo pessoal da professora-pesquisadora.

Diferentemente da charge que apresenta o nordestino carregando um cacto em formato de cruz, simbolizando o sofrimento de Jesus momentos antes da crucificação, o redesenho 3 nos mostra um morador do Nordeste em meio à colorida e arborizada região, característica que desfaz a imagem de vítima quase sempre associada a ele. Vemos também a antena parabólica posicionada no lado direito, próximo à residência do participante, sobre a qual podemos fazer uma leitura de desenvolvimento e progresso. De acordo com Albuquerque Júnior (2012, p. 94), a literatura, durante bastante tempo, foi influenciada “pelas teorias cientificistas, evolucionistas e social-darwinistas, que tomavam a natureza ou o meio e a raça, a constituição racial, como conceitos fundamentais para pensar o comportamento humano e as relações sociais”. Desse modo, tornou-se, em parte, responsável pela criação e propagação de imagens em torno dos homens, das mulheres e das crianças do Nordeste visivelmente prejudicadas pela seca. Entretanto, sustentados por valores de reflexão e consciência Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 crítica, os alunos desta pesquisa recriaram a paisagem do sertão, lugar em que, segundo a fala do próprio participante da composição visual Seca? Aqui não.

Figura 4 – Redesenho

Fonte: acervo pessoal da professora-pesquisadora. Figura 5 – Redesenho 5

Fonte: acervo pessoal da professora-pesquisadora.

Quanto à superação de discursos (construídos ideologicamente, ao longo dos anos, pela mídia e pela literatura), que consideram a migração uma das consequências naturais da vivência no

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 sertão nordestino, nossas análises trazem duas reconstruções dos discentes, os redesenhos 4 e 5, os quais nos fazem refletir acerca do “movimento para fora” de que fala Hall: Impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento e por colheitas fracassadas, [...] as pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na "mensagem" do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os "bens" e onde as chances de sobrevivência são maiores (HALL, 2015, p. 48, grifos do autor).

Nesse sentido, a representação do homem sertanejo com um livro intitulado Poder Judiciário nas mãos – quer seja como aluno, seja como professor, rumo à Faculdade do Nordeste – , leva-nos a seguinte leitura: ainda que o sol seja inclemente e a terra gretada, não é necessário mover-se para longe das raízes quando se pretende adquirir conhecimento científico ou compartilhar deste. Outrossim, a figura do Seu Zézim diante de um comércio que recebe seu nome sinaliza possibilidade de permanência no lugar de origem e reação às imposições históricas e estruturais da região. A ênfase atribuída ao mercadinho, associada à tranquila fisionomia dos personagens, ajuda o leitor a compreender a transformação dos indivíduos, os quais são capazes de acompanhar o desenvolvimento do capitalismo. Acreditamos que os redesenhos 4 e 5 ajudam a retificar a figura, que faz parte do imaginário sociocultural, do “migrante nordestino dentro do pau de arara, lotado de retirantes, expulso pela seca, perseguindo o sonho de uma vida melhor no Sul Maravilha” (GUILLEN 2001, p. 1). Tal reconstrução é representada nos textos dos estudantes como algo possível devido à educação e ao empreendedorismo, agora presentes no sertão, que mantém o enraizamento do sujeito e as relações (in)formativas de sua identidade. Por fim, ainda que os discentes apresentem um novo design do nordestino no contexto da seca, destacamos a manutenção de dois elementos recorrentes e relevantes nos redesenhos: i) o chapéu como uma marca registrada na vestimenta do homem que vive em uma região de sol inclemente quase o ano inteiro; ii) os cactos como um símbolo imprescindível à paisagem do semiárido, a qual nos faz lembrar da célebre frase de Euclides da Cunha, o sertanejo é, antes de tudo, um forte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, analisamos novos desenhos do Nordeste e de seus habitantes, em períodos de estiagens, os quais foram representados em produções textuais de discentes do 9º ano de uma Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 escola pública. A prática de letramento crítico desenvolvida, mediante leitura e interpretação de charges sobre a seca no Nordeste, auxiliou na desconstrução das imagens de atraso, subordinação, pobreza e exclusão social que, desde a criação da região, permanecem consolidadas em grande parte da mídia, da literatura e da sociedade em geral. Importante ressaltar que, em consonância com Albuquerque Júnior (2012), não negamos a existência desses problemas, mas tensionamos discursos caricatos e reducionistas que posicionam o nordestino, o indivíduo do sertão, sempre no mesmo lugar-comum: o homogêneo espaço de subdesenvolvimento do país. Para tanto, a capacidade de reflexão e ação dos alunos foi de suma importância, pois, à medida que eles eram expostos a repetitivas e simplificadas construções ideológicas sobre o Nordeste, mais questionamentos surgiam e, consequentemente, mais possibilidades de criativos redesenhos. Desocultar práticas sociais que sustentam relações de poder, e são sustentadas por elas, com vistas à construção de outras realidades (discursivas, paisagísticas, culturais, econômicas, políticas) para os nordestinos coadunam as ideias de Freire (2016) e Janks (2010) que conferem a atividades de letramento engajadas em lutas por mudanças um papel central à conscientização dos mais variados usuários da língua. Como professores-pesquisadores e agentes de letramento, faz-se necessário que trabalhemos, em sala de aula, com diversos textos, semioses e discursos a fim de, por exemplo, desmistificar termos como retirante, nortista, flagelado, migrante, pau-de-arara, os quais são associados ao sertanejo. Portanto, é nesta direção que nossas pesquisas e práticas educacionais pretendem seguir: compreensão, desconstrução e redesenho de estratégias discursivas opressoras que envolvem grupos minoritários.

REFERÊNCIAS: ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2012. CARVALHO, G. A identidade do Nordeste. Blog do Semiárido. 2010. Disponível em: https://nossosemiarido.blogspot.com.br/search?q=gilmar+de+carvalho. Acesso em: 28 ago. 2019.

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(Ser)tão nordestino na sala de aula: um novo desenho situado de ensino, pp. 127-141 BRASIL. Conviver: Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Semi-Árido. Ministério da Integração Nacional. Secretaria de Programas Regionais. Brasília, 2009. Disponível em: http://mi.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=5106593d-2ac0-477e-a539632c1b5967e6&groupId=10157 . Acesso em: 13 jul. 2016. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 62ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016. GASPAR, L. Seca no Nordeste brasileiro. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 2006. Disponível em: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=418 &Itemid=1. Acesso em: 06 jun. 2020. GUILLEN, A. Seca e migração no Nordeste: reflexões sobre o processo de banalização de sua dimensão histórica. Fundação Joaquim Nabuco - Trabalhos para discussão n. 111, ago. 2001. Disponível em: https://periodicos.fundaj.gov.br/TPD/article/view/926/647. Acesso em: 10 ago. 2016. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz T. Silva e Guacira L. Louro. 12ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015. JANKS, H. Literacy and power. Routledge: New York, London, 2010. SILVA, R. M. A. Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com o semiárido. Sociedade e Estado, Brasília, v. 18, n. 1/2, p. 361-385, jan./dez. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922003000100017. Acesso em: 08 mai. 2020. SUASSUNA, J. Semi-árido: proposta de convivência com a seca. Fundação Joaquim Nabuco. Recife, 2002. Disponível em: https://www.fundaj.gov.br/index.php/artigos-joao-suassuna/9650semi-arido-proposta-de-convivencia-com-a-seca . Acesso em: 02 ago. 2016. ______. Cronologia das principais secas ocorridas no Nordeste brasileiro. Blog Explorador do Sertão. Pernambuco, 2010. Disponível em: http://exploradordosertao.blogspot.com/2012/11/cronologia-das-principais-secas.html. Acesso em: 02 ago. 2016. THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. 18ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Trad. do Grupo de Estudos sobre ideologia, comunicação e representações sociais da pós-graduação do Instituto de psicologia da PUCRS. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

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A CARTOGRAFIA COMO MÉTODO DE PESQUISA FILOSÓFICA O FILÓSOFO-CARTÓGRAFO MAPEANDO TERRITÓRIOS, ACOMPANHANDO PROCESSOS E CRIANDO PROCEDIMENTOS DE PESQUISA. Francisca de Jesus Cardoso Moura1 Luizir de Oliveira2

RESUMO: O presente artigo apresenta uma compreensão do método cartográfico ou pistas cartográficas de inspiração deleuziana e guattariana, conforme o definiram os(as) autores(as) Alvarez, Barros, Escóssia, Kastrup, Passos e Tedesco (2015). A intenção é perceber a possibilidade de pesquisa de intervenção filosófica numa escola de Ensino Médio no município de Teresina/PI. A cartografia, conforme descrevem as autoras, é uma pesquisa-intervenção que não direciona as ações do pesquisador, mas pressupõe movimentos a serem realizados por ele para desenvolver a sua prática “cartográfica”, habitando o “território”, mapeando a realidade, acompanhando o processo em curso para criar os seus próprios procedimentos de pesquisa e realizar as intervenções. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Pesquisa. Método Cartográfico.

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Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí. Teresina: UFPI 2020. E-mail: fcardodo0410@gmail.com 2 Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. USP 2003. Professor Associado do Departamento de Filosofia da UFPI. Email: luiziroliveira@gmail.com

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 ABSTRACT: This paper aims at offering an analysis of the cartographic method or cartographic clues, as defined by the authors Alvarez, Barros, Escóssia, Kastrup, Passos and Tedesco (2015), with the intention of understanding the possibility of carrying out our philosophical intervention research in a High School in the city of Teresina / PI, based on this cartographic method of Deleuzian and Guattarian inspiration. Cartography, as described by the authors, is an intervention research that does not direct the researcher's actions, but presupposes movements that the researcher has to carry out to develop his “cartographic” practice, inhabiting the “territory”, mapping the reality, following the process ongoing to create their own procedures and carry out interventions. KEYWORDS: Philosophy. Research. Cartographic Method.

1 INTRODUÇÃO A cartografia, conceito desenvolvido por Deleuze e Guattari (1995), assume, na pesquisa de intervenção filosófica, as feições de um método pelo qual o pesquisador não utiliza procedimentos prontos e acabados, mas constrói no percurso das atividades os seus próprios procedimentos. É uma forma não diretiva de trabalho que possibilita uma mobilidade de ação no contexto de atuação do pesquisador. Trata-se, pois, de um método flexível, aberto, e, por isso, pode contribuir na pesquisa de intervenção filosófica, uma vez que dá condições ao pesquisador de criar possibilidades de ação no decorrer da sua investigação. No Brasil, um grupo de professores e pesquisadores, entre os anos de de 2005 a 2007, reuniuse uma vez por mês no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro visando elaborar “pistas” da cartografia tematizada pelos pensadores franceses Deleuze e Guattarim: “Unidos pela afinidade teórica com o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari e por inquietações relativas à metodologia de pesquisa’’ (ESCÓSSIA et al, 2015), esses pesquisadores procuraram deslindar os elementos dessa proposta de uma investigação “cartográfica”. Os resultados desses estudos, discussões e seminários promovidos pelos pesquisadores resultaram no livro Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade”, que subsidia outros pesquisadores interessados no método cartográfico nas suas próprias pesquisas.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 Essa abordagem, embora nova na pesquisa qualitativa, vem sendo consideravelmente ampliada entre os pesquisadores no uso do método da cartografia na área da saúde (enfermagem), psicologia, educação, arte, filosofia etc. Seguindo nesta mesma linha de inspiração metodológica, nosso objetivo neste artigo foi identificar as possibilidades de uma pesquisa de intervenção filosófica numa escola de Ensino Médio em Teresina/PI empregando o método cartográfico.

2 A CARTOGRAFIA COMO PRÁTICA DE PESQUISA-INTERVENÇÃO A cartografia é uma área da geografia que se utiliza da elaboração de mapas3 para representar os espaços da Terra. Nessa área, ela se define como arte, técnica e ciência que elabora mapas, cartas, e representa objetos, fenômenos e ambientes físicos e socioeconômicos com o objetivo de informar ao homem conhecimentos do mundo que habita. (COLVERO et al, 2013). O exercício da cartografia pressupõe movimentos que o cartógrafo realiza para desenvolver tarefas que o levam a habitar o território, mapear a realidade e acompanhar o processo em curso, ou seja, fazer movimentos que lhe possibilitem traçar o mapa do território que investiga. Prado Filho e Teti (2013) ressaltam que, vinculada ao campo de conhecimento geográfico, a cartografia tradicional visa a um conhecimento preciso, usando bases da matemática e da estatística, contando, assim, com instrumentos e técnicas sofisticados. O trabalho do cartógrafo objetiva, pois, traçar mapas referentes a territórios, regiões e fronteiras, topologias e acidentes geográficos, como também mostrar a distribuição da população no espaço territorial, suas características étnicas, sociais, econômicas, educacionais, de saúde, de alimentação entre outras. Nesse âmbito, então, o papel da cartografia é produzir conhecimento sobre as diversas áreas do planeta para que o homem possa conhecer os espaços geográficos e, assim, fazer ocupação, estudos e pesquisas nesses espaços. Miceli (2015) aponta, porém, que o conjunto de informações registradas em um mapa não traduz a totalidade de verdades da região mapeada, pois o mapa é construído a partir da concepção

3 Historicamente, a arte de traçar mapas é bem anterior ao surgimento da escrita, pois a humanidade, por meio das pinturas rupestres, desenhava mapas nas paredes das cavernas como forma de registrar informações acerca das caças realizadas. Mas foi com os gregos que os mapas ganharam evidência, ao traçá-los para atender às suas necessidades nas expedições militares e nas navegações. Inclusive, o século VI a.C. revelou-se marco no surgimento dos primeiros mapas, tornando a Grécia o principal centro de conhecimento geográfico do mundo ocidental. No entanto, somente no século XVI foi que nasceu o primeiro atlas da história. (MICELI, 2015).

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 de mundo de quem o constrói. Destaca ainda que um mapa não é apenas o retrato da realidade mapeada, mas que ele contém realidades que podem ser analisadas do ponto de vista de historiadores, linguistas, geógrafos, sociólogos, filósofos e etnógrafos. A leitura de um mapa, então, deve acontecer de forma crítica, investigativa, de maneira desconfiada, buscando perceber o que não é apresentado nas linhas traçadas, mas procurando as linhas não traçadas pelo cartógrafo e, assim, poder tentar detectar verdades do espaço que não estão diretamente

evidenciadas no mapa. Nessa perspectiva, embora os mapas tragam

informações importantes para a humanidade acerca dos aspectos culturais, estratégicos, bélicos e religiosos do território mapeado precisam ser lidos com cuidado a fim de que aquilo que não revelam, porque não lhes é possível ir além dos limites impostos pela própria maneira como são concebidos e desenhados, não escape ao investigador mais atento. Deleuze e Guattari (1995) apropriam-se desses novos saberes da geografia acerca da cartografia vista como arte de traçar mapas de forma crítica e os transportam para os campos da filosofia, da política e da subjetividade como novos dispositivos para pensar a realidade, já que os meios científicos tradicionais não alcançavam “aquilo que se passava nos intervalos e interstícios, entendendo-os como potencialmente formadores e criadores de realidades” (COSTA, 2014, p. 69 70 ). Ao reconceitualizar a noção de cartografia, deslocando-a de sua função mais informativa inicial, os autores franceses provocam-nos a repensar nossas próprias atitudes em face dos saberes que construímos visando à ampliação dos nossos próprios horizontes hermenêuticos. Assim é que, no contexto dos nossos estudos, a cartografia na perspectiva dos filósofos Gilles Deleuze e Feliz Guattari4, teorizada como dispositivo de se pensar a realidade, responde a uma questão de relevância metodológica: como desenvolver a nossa proposta de intervenção filosófica fundamentada nesse conceito? De que forma a cartografia poderia contribuir com a produção de conceitos na relação filosofia e cinema na sala de aula? A perspectiva de Deleuze e Guattari (1995) acerca da cartografia apresenta-se como a mais coerente com o fim que pretendemos alcançar na nossa prática de intervenção filosófica: tornar críticas as aulas de filosofia, ou seja, afastarmo-nos das abordagens meramente historicistas ou generalistas acerca do pensar filosófico a fim de, em conjunto com os/as estudantes reconstruirmos as grandes questões que desafiaram, e seguem desafiando, o pensamento humano em suas mais 4 Conforme Costa (2014), a cartografia foi teorizada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Feliz Guattari na obra Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, publicada em 1980, e que também é denominada de esquizoanálise, pragmática e micropolítica.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 diferentes áreas. Neste caso, o método cartográfico faz-se pertinente aos nossos estudos nos aspectos relativos às “pistas cartográficas”, conceito de que se utilizam esses teóricos para trabalhar o “rizoma”, cujo princípio ancora-se na ideia de multiplicidade, um outro elemento importante a acentuar a característica não diretiva do método, aberto ao devir. Assim, os procedimentos são construídos durante o percurso da pesquisa, pois o próprio campo pesquisado fornece elementos que possibilitam ao pesquisador montar os seus próprios procedimentos. Mesmo em se tratando de um método novo no Brasil, há muitos professores e pesquisadores buscando conhecer a prática cartográfica, especialmente por se tratar de um método não diretivo, um método no qual Deleuze e Guattari não apresentam procedimentos, normas para serem aplicadas na investigação, mas escrevem sobre uma cartografia como princípio rizomático (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Assim, os pesquisadores que têm afinidade com a cartografia assim pensada estão sempre em busca de novas produções sobre o método cartográfico como forma de aperfeiçoar a sua prática como pesquisadores-cartógrafos.5 Entre os pesquisadores adeptos desse método, podemos citar Colvero et al. (2013), que estudam e praticam o método cartográfico em orientações de trabalhos acadêmicos, assim como nas discussões e produções científicas em grupos de estudos e pesquisa relativos a cuidados em saúde e subjetividades. 3 MÉTODO CARTOGRÁFICO OU PISTAS CARTOGRÁFICAS A cartografia apresentada por Deleuze e Guattari (1995) não apresenta um método de pesquisa, razão pela qual pesquisadores interessados em praticar a cartografia buscaram um mapeamento de estratégias ou pistas que orientassem o fazer cartográfico, o que resultou num conhecimento importante para subsidiar o trabalho dos pesquisadores-cartógrafos. Esse mapeamento revela as afinidades da cartografia com a intervenção filosófica. Diferentemente do método tradicional de pesquisa, o método cartográfico tem os seus procedimentos construídos durante o caminhar da pesquisa. Por essa razão, a palavra mais coerente

5 No Brasil, entre os anos de 2005 e 2007, um grupo de professores e pesquisadores se reuniram uma vez por mês no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro para elaborar pistas da cartografia tematizada pelos franceses Deleuze e Guattari, “Unidos pela afinidade teórica com o pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari e por inquietações relativas a metodologia de pesquisa’’. (ESCOSSIA; KASTRUP; PASSOS, 2015, p. 7). Os resultados desses estudos, discussões e seminários promovidos pelos pesquisadores resultaram no livro “Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade”, que subsidia outros pesquisadores interessados no método cartógrafo nas suas próprias pesquisas.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 ao conceito de método pensado por Deleuze e Guattari é “prática da pesquisa”, para designar a cartografia na forma de pesquisa intervencionista – a pesquisa que se monta durante o caminhar, no fazer da pesquisa. Em outras palavras, a prática é que fornece as pistas para o cartógrafo elaborar os seus procedimentos de pesquisa. Nisto consiste a reversão do método tradicional de pesquisa em prática de pesquisa-intervenção, o que constitui uma das pistas mapeadas por pesquisadorescartográficos. Conforme Barros e Passos (2015), ao realizar a reversão do método, a cartografia faz um caminho inverso ao do método tradicional. Este elabora os seus procedimentos metodológicos fixando um caminho para atingir metas na pesquisa, enquanto na cartografia os procedimentos vão se construindo durante a prática da pesquisa, sofrendo alterações conforme a necessidade. No entanto, [...] não se trata de ação sem direção, já que a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pesquisa. O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional de método - não mais caminhar para alcançar metas prefixadas (metá-hódos – grifo do autor), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hódos-metá. A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados. (BARROS; PASSOS, 2015, p. 17).

Dessa maneira, a partir do conceito de mapa de Deleuze e Guattari (1995) como algo passível de ser traçado, desmontável, flexível, que tem várias entradas e saídas, criam-se os procedimentos do método cartográfico também como algo passível de ser traçado, de sofrer alterações que atendam à realidade do território mapeado na pesquisa intervencionista. Sendo assim, é no andar da pesquisa que se constroem os procedimentos, delineando-os a partir do momento em que o pesquisador habita o território de pesquisa e traça mapas das relações, das linhas e conexões nele existentes. Com a reversão do método tradicional, a cartografia se traduz como método de pesquisaintervenção, pois o pesquisador deixa de ser um mero observador dos sujeitos da pesquisa e se institui como parte da pesquisa. É o que distingue o método cartográfico do utilizado na ciência moderna – a não separação entre objeto e pesquisador, nem tornar o pesquisador representante do objeto. Na cartografia, o objeto não é percebido como algo dado, imóvel, possuidor de forma à espera do pesquisador somente para coletar as informações e representá-lo; antes, porém, pesquisador e objeto fazem parte de uma mesma realidade e se constroem no decorrer da pesquisa.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 A cartografia, então, em vez da divisão entre sujeito e objeto, coloca-os num mesmo plano de experiência, produzindo conhecimento e produzindo-se a si mesmo. Dessa maneira, a pesquisa é intervenção, pois ao mesmo tempo em que se conhece a realidade por meio de uma prática, fazendo o seu próprio percurso de pesquisa, transforma a realidade pesquisada e a do próprio pesquisador. Assim, Defender que toda pesquisa é intervenção exige do cartógrafo um mergulho no plano da experiencia, lá onde conhecer e fazer se tornam inseparáveis, impedindo qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo suposição de um sujeito e de um objeto cognoscentes prévios à relação que os liga. Lançados num plano implicacional, os termos da relação de produção de conhecimento, mais do que articulados, aí se constituem. Conhecer é, portanto, fazer, criar uma realidade de si e do mundo, o que tem consequências políticas. (BARROS; PASSOS, 2015, p. 30).

Nesse sentido, o pesquisador-cartógrafo é parte da pesquisa, pois, como habitante do território de pesquisa, está implicado nos movimentos da própria pesquisa, nos quais terá encontros com elementos da realidade em curso, encontros esses que lhe possibilitam traçar seus próprios procedimentos metodológicos, inclusive acompanhar processos em curso. Eis outra pista mapeada por Barros e Kastrup (2015) para a prática cartográfica: a cartografia como possibilidade de acompanhar processos de pesquisa-intervenção. Vimos reforçando que a cartografia é um método que possibilita acompanhar processos de pesquisa intervenção. Os sentidos da palavra “processo” merecem atenção, pois processo, como empregado pelos teóricos da informática, expressa a ideia de processamento, concebida e praticada conforme as regras e método científico. De outra forma, na cartografia, processo se adequa ao sentido de processualidade, visto que a pesquisa começa pelo meio, em uma realidade em curso. Por isso, “[...] a processualidade está presente em cada momento da pesquisa. A processualidade se faz presente nos avanços e nas paradas da pesquisa, em campo, em linhas, na escrita, em nós. A cartografia parte do reconhecimento de que, o tempo todo estamos em processo, em obra [...]”. (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 73). O trabalho do cartógrafo inicia com o habitar do território, pois somente assim terá condições de mapear o território de pesquisa, traçando linhas e revelando nessas os movimentos, intensidades, conexões, entradas e saídas, possibilidades e potencialidades de acesso às mesmas. Habitar significa “[...] entrar em relação com os heterogêneos que o cercam, agir com eles, escrever com eles [...]’’. (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 57).

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 Ao se diferenciar da ciência moderna na questão de não buscar separar objeto e pesquisador, nem representar o objeto, a cartografia objetiva desenhar a rede de forças com a qual o objeto mantém comunicação no território de pesquisa ou na realidade sob intervenção, bem como também traçar as variações e as movimentações contínuas dessa rede. São esses desenhos que orientam o cartógrafo na organização da sua pesquisa, pois contribuem com a elaboração de um plano de forças que lhe possibilita desenvolver, no território de pesquisa, encontros alegres ou tristes, afetuosos e não afetuosos, e também os combativos. Na elaboração do plano de forças, é importante que o pesquisador esteja atento às variações que ocorrem no seu percurso para poder experimentar as oscilações próprias do caminhar na pesquisa e, assim, poder construir novos planos de forças para trabalhar junto com as redes de forças do próprio território. Assim, o pesquisador-cartógrafo deve estar aberto ao encontro para ter êxito na sua atividade de pesquisa. Conforme Barros e Kastrup (2015, p. 57), “O desafio é evitar que predomine a busca de informações para que então possa abrir-se ao encontro”. O estar aberto ao encontro pressupõe, pois, abertura a aprendizados, condição necessária ao exercício da pesquisa cartográfica, sempre iniciada no meio de um processo, ou seja, em um território existencial. Significa dizer que o pesquisador-cartógrafo precisa não apenas adentrar o território de pesquisa, mas adotá-lo como seu para que possa experimentar a realidade existencial e, por meio dos afetos, tornar explícitas as linhas de forças e os discursos que o habitam, que permeiam suas relações e, assim, poder acompanhar o traçado do mapa delineado no caminhar da pesquisa. Cartografar é, então, habitar um território existencial, o que se traduz em mais uma pista a ser observada pelo pesquisador-cartógrafo no desenvolver da sua pesquisa. Isto considerando o fato de que no método cartográfico não existe oposição entre teoria e prática, pesquisa e intervenção, produção de conhecimento e produção de realidade, pois parte-se do princípio de que conhecer é envolve-se com o mundo, é estar, é comprometer-se com a própria produção, seja da subjetividade, seja da compreensão das alteridades. Sendo assim, para pesquisar, o pesquisador precisa estar no território, tornar-se parte dele, e estar comprometido com a produção de conhecimento e de novas realidades do território pesquisado. Nisto consiste a pesquisa-intervenção: o vivenciar a realidade existente para poder produzir novos conhecimentos.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 Como cartógrafo, o pesquisador não se distancia do território de pesquisa, adotando uma postura de observador; antes, ele o habita. Ele adota uma postura de dedicação aberta, disponível para experimentar novos encontros e, ao mesmo tempo, atento aos elementos que se apresentam durante esses encontros ou aos que, embora presentes, não se deixam mostrar. Desse modo, o trabalho do cartógrafo exige que ele esteja no ambiente de pesquisa, vivenciando, interagindo, participando da realidade, deixando-se atravessar pelas linhas que cruzam o ambiente em todas as direções, em graus e intensidades variáveis, pois são essas linhas com suas intensidades que possibilitam o planejamento da pesquisa. Nisto, reiteramos, consiste o habitar para mapear a composição do território existencial, o que exige engajamento com as pessoas que habitam o ambiente de pesquisa, uma construção receptiva ao campo de produção do conhecimento a partir do próprio ambiente de pesquisa. Considerando-se, então, o habitar o território existencial, a atenção do pesquisadorcartográfico desponta como outra pista fundamental à pesquisa-intervenção. É a atenção que possibilita encontros com signos, ou seja, com coisas que circulam no ambiente de pesquisa, que movimentam a realidade existencial do campo de pesquisa. Nesses encontros, o cartógrafo adota uma atitude à espreita6, de vigilância às coisas ou signos, pois estes podem portar elementos importantes ao traçado de procedimentos e, assim, possibilitar alterações no percurso da pesquisa. Na pesquisa cartográfica, a atitude do cartógrafo no campo de pesquisa será de receptividade e de abertura aos encontros que terá durante a pesquisa. Assim, se a receptividade diz respeito ao acolhimento às coisas que se apresentam indistintamente, pois os elementos da pesquisa podem estar entre outros elementos de forma tão pouco perceptível que somente uma atenção à espreita pode perceber, por seu lado, a abertura coloca o pesquisador na atitude de compreender que tudo o que se apresenta durante os encontros tem importância para a pesquisa, pois o pesquisador-cartógrafo, por não dispor de uma ideia pré-definida do que busca, somente começará a definir os seus procedimentos a partir dos encontros e movimentos realizados no espaço a ser pesquisado. Dessa forma, a atenção do cartógrafo é concentrada, mas sem focalização, pois o trabalho cartográfico rompe com a atenção seletiva e cria uma atenção concentrada nos movimentos das 6 O estar à espreita é uma noção que nos remete ao sentimento de não tranquilidade: “o escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É evidente que estamos à espreita. O animal é....observe as orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranquilo’’. (DELEUZE, 1988, p. 4).

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 relações, das linhas e das conexões que compõem o campo de pesquisa. Assim, o cartógrafo não tem noção dos elementos que deve focar na pesquisa, mas entende que todo e qualquer elemento da realidade que se revela no percurso da pesquisa deve ser considerado, pois podem ser fragmentos carregados da processualidade de uma realidade em curso. Como bem reforça Kastrup (2015), a partir da noção da concentração sem focalização é possível mapear quatro variedades do funcionamento atencional que compõem o trabalho do cartógrafo: o rastreio, o toque, o gesto atencional de pouso e o reconhecimento atento. O rastreio funciona como uma ação praticada pela atenção do cartógrafo ao habitar o território de pesquisa em busca de meta ou alvo móvel. Kastrup enfatiza que “é um gesto de varredura do campo” (2015, p. 40), necessário pelo fato de o cartógrafo, ao habitar o território de pesquisa, não ter qualquer noção de meta ou alvo de sua pesquisa, visto que o percurso da pesquisa é que fornecerá elementos para as metas e alvo para o pesquisador. Aliás, uma característica considerada marcante na prática cartográfica são as alterações constantes das metas no decorrer da pesquisa em função dos processos em curso no espaço pesquisado que demandam modificações contínuas das metas por parte do pesquisador. Dessa maneira, exige-se do pesquisador-cartógrafo habilidades para conduzir as alterações contínuas, próprias do método cartográfico. O rastreio é o segundo elemento a ser destacado nessa processualidade , pois o trabalho do cartógrafo depende dessa ação na atenção para mapear, traçar o seu caminhar no espaço pesquisado e, assim, definir o alvo da sua pesquisa, o qual pode aparecer de qualquer lugar do território de maneira imprevisível. O cartógrafo, dessa forma, faz mapas do território de pesquisa traçando entradas e saídas, conexões, linhas e movimentos. Como ressalta Kastrup (2015, p. 40), “[...] para o cartógrafo, o importante é a localização de pistas, de signos de processualidade. Rastrear é também acompanhar mudanças de posição, de velocidade, de aceleração, de ritmo[...]”. Dessa maneira, a atenção do cartógrafo está sempre em movimento, seja mapeando o território para localização de pistas ou para acompanhar processos em curso no espaço pesquisado. O toque refere-se às intensidades que configuram o território existencial com o qual trabalha o cartógrafo. Ao habitar o território de pesquisa, o cartógrafo tem encontros com intensidades de graus variáveis e, nessa interação, a sua atenção recebe alguns toques, ou seja, uma sensação da existência de algo, de uma força que precisa ser verificada, embora não saiba ainda do que se trata. Segundo Kastrup (2015), é uma sensação breve, mas significativa para a atividade do cartógrafo, pois revela que Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 Algo acontece e exige atenção. O ambiente perceptivo traz mudança, evidenciando uma incongruência com a situação que é percebida até então como estável. É signo de que há um processo em curso, que requer uma atenção renovadamente concentrada. O que se destaca não é propriamente uma figura, mas uma rugosidade, um elemento heterogêneo. Trata-se aqui de uma rugosidade de origem exógena, pois o elemento perturbador provém do ambiente. (KASTRUP, 2015, p. 42).

Dessa maneira, a atenção do cartógrafo no ambiente de pesquisa sofre uma atração involuntária, algo como uma picada de inseto da qual se percebe a dor, mas não se consegue identificar nem o bicho nem a sua localização. No toque, o cartógrafo tem a sensação da existência de alguma coisa em processualidade, mas não sabe identificar exatamente o que seja. Esse momento é importante para o cartógrafo, pois significa que precisa redirecionar o percurso da pesquisa e ver o que está acontecendo. O gesto atencional de pouso é próximo elemento a ser destacado. Trata-se do momento em que o cartógrafo dá uma parada e faz uma ampliação, como se estivesse olhando pela objetiva de uma câmera e pudesse dar um zoom sobre o espaço onde a sensação da existência foi intensa e precisa ser vista. Reforça-se a ideia de uma concentração ampliada, uma vez que se trata de buscar acompanhar processos em curso, habitar o território existencial e estar envolvido nos movimentos do espaço pesquisado. Por fim, como uma espécie de resultado dessa atenção concentrada, dessa percepção dos elementos dispersos, escondidos ou pouco acessíveis a uma primeira aproximação, alcança-se o reconhecimento atento, marcado pela possibilidade de criação do território pesquisado, no qual o cartógrafo produz conhecimento juntamente com os participantes da pesquisa. É o aspecto da atenção que possibilita ao cartógrafo traçar as linhas que atravessam o território de pesquisa e que, uma vez traçadas, possibilitam ao cartógrafo criar seus procedimentos de pesquisa, percebendo os movimentos-funções do dispositivo na prática de pesquisa cartográfica. Continuando com Barros e Kastrup (2015), aprendemos que a cartografia pensada por Deleuze e Guattari (1995) apresenta duas características básicas que a sugerem como prática de pesquisa cartográfica. A primeira proposta ou pista está no entendimento da cartografia como um “[...] procedimento ad hoc, a ser construído caso a caso. Temos sempre, portanto, cartografias praticadas em domínios específicos”. (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 76). Esses procedimentos a serem praticados na pesquisa são construídos a partir do contexto do território existencial. Dessa maneira, os procedimentos não são os mesmos para todas as pesquisas, considerando-se que os territórios não são iguais, pois apresentam em sua realidade existencial linhas de formas e de forças Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 com formação variadas. Daí, cada pesquisador constrói os seus próprios procedimentos a partir da realidade do território de pesquisa habitado. A segunda característica percebida na proposta cartográfica dos franceses diz respeito à abordagem geográfica e transversal na condução da prática cartográfica. Conforme as autoras, essa abordagem se justifica pelo fato de a cartografia ter uma atividade bastante ativa, com ideia de movimentos, já que trabalha com a produção de mapas, com o traçar de linhas de territórios. A ideia da cartografia, de criar, de inventar se adequa perfeitamente à ideia da atividade filosófica como construtivismo, como afirmam Deleuze e Guattari (1992b). “A filosofia é um construtivismo, e o construtivismo tem dois aspectos complementares, que diferem em natureza: criar conceitos e traçar um plano”. Portanto, as duas áreas de conhecimento apresentam afinidades que possibilitam a prática da cartografia como método de pesquisa intervencionista em território filosófico. O construtivismo do cartógrafo inicia-se ao habitar o território de pesquisa, pois, uma vez desprovido de qualquer procedimento metodológico, terá que mapear e traçar as intensidades com que cruzam as linhas que configuram o campo de pesquisa. A transversalidade se faz presente na proposta cartográfica quando desmonta a ideia cartesiana, rompendo com a visão vertical/horizontal pela qual as formas são organizadas em categorias e têm existência prévia. Então, já que as formas não têm existência prévia, o cartógrafo captura os movimentos que as constituem, por meio dos traçados das linhas, das múltiplas entradas e saídas do território de pesquisa e por gestos da atenção. Dessa maneira, os procedimentos se constroem no acompanhamento dos processos em curso no território de pesquisa. É o que sugere o método cartográfico como um método processual, que se constrói a partir da afinidade com a processualidade intrínseca ao campo de pesquisa. Dessa forma, como vimos enfatizando, não há modelos de investigação cartográfica, pois esta é criada no contexto da realidade de cada território, a partir das particularidades de cada campo de pesquisa. Trata-se, então, de um método processual, criado em sintonia com o domínio igualmente processual que ele abarca. Nesse sentido, o método não fornece um modelo de investigação. Está se faz através de pistas, estratégias e procedimentos concretos. (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 77).

Nessa perspectiva, uma das pistas a ser considerada pelo cartógrafo é que, para funcionar, o método cartográfico precisa estar num dispositivo, definido como

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. (FOUCAULT, 1979, p. 138).

Ainda conforme Foucault (1979), é possível perceber no dispositivo um jogo que faz com que os elementos que o constituem mudem de posição e de funções no seu interior. Assim, a função principal de um dispositivo é atender a uma necessidade funcional na realidade existencial; logo, dáse pela urgência do contexto histórico. Com afirma Foucault (1979, p. 244), “Entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder uma regência”. Dessa maneira, o dispositivo existe para exercer uma função necessária como estratégias para a manutenção de ideias dominantes. Deleuze (1990, p. 155) analisa o conceito de dispositivo tratado por Foucault, caracterizandoo como “uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear”. Com base na ideia de novelo são apontadas linhas que compõem o dispositivo foucaultiano: linha da visibilidade, de enunciação, de forças, e de subjetivação. Nessa mesma concepção, o dispositivo de Foucault é comparado a uma “máquina de fazer ver e de fazer falar”. A linha da visibilidade ilumina somente aquilo que é de interesse e da função pelo qual o dispositivo foi formado, sem qualquer pretensão de iluminar todos os objetos pré-existentes no território. A linha de enunciação, por sua vez, não diz tudo de uma dada realidade. Como esclarecem Barros e Kastrup (2015, p. 78), “Isso quer dizer que em cada época, em cada estrato histórico, existem camadas de coisas e palavras. [...] A realidade é feita de modos de iluminação e de regimes discursivos”. Tanto a visibilidade quanto a enunciação são formadas por linhas que objetivam tornar visível e enunciável aquilo que o contexto histórico projetou quando criou o dispositivo. Sendo a realidade configurada a partir desses modos de iluminação e dos regimes discursivos, o saber adquirido nessa realidade resulta do visível e do dizível. A maneira de ter acesso ao invisível e ao indizível, isto é, à realidade não apresentada, mas existente, é extraída nas variações do movimento contínuo do território. Como explica Deleuze (1992a, p. 120), “É preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades... é necessário rachar as palavras ou as frases para delas extrair os enunciados”. É necessário, então, que o pesquisador-cartógrafo esteja imerso no movimento das linhas que se cruzam, que bifurcam, que atravessam o campo de pesquisa para investigar um dispositivo.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 As linhas de forças do dispositivo operam em uma movimentação contínua e com intensidades variáveis, atravessando coisas e palavras. Essas linhas fazem trajetos diversos e passam por todos os lugares do dispositivo, interagindo com outras linhas, promovendo interação entre linhas e realizando movimentos entre o ver e o dizer. São linhas invisíveis e indizíveis que se encontram mescladas entre outras linhas que não se distinguem. São linhas que compõem o poder e o saber dentro do dispositivo. Conforme Barros e Kastrup (2015, p. 78) “Essas linhas passam por todos os lados e nos levam a estar em meio a elas o tempo todo.” A linha da subjetivação do dispositivo compõe-se de “linhas que inventam modos de existir” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 78). Neste caso, a invenção acontece quando a linha, em vez de entrar em relação com outra linha de força, curva-se, dobrando-se sobre si mesma, exercendo uma força sobre si mesma, afetando-se. Segundo Deleuze (1990, p. 157), esse “si mesmo” não tem uma existência pré-determinada; é resultado de um processo no dispositivo, pois “uma linha de subjetividade é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela está para se fazer, na medida em que o dispositivo o deixe ou o faça possível. É uma linha de fuga. Escapa às linhas anteriores, escapa-lhes”. O “si mesmo” representa, então, uma individuação, ou seja, um processo no qual pessoas ou grupos conseguem fugir das forças estabelecidas e dos saberes constituídos em um dispositivo. A subjetivação representa, pois, o modo como o homem se percebe na relação sujeito-objeto num dispositivo. Mostra a passagem de um dispositivo a outro, isto é, a fuga de um dispositivo para outro, formado por outros poderes e saberes. Nas palavras de Foucault (2004, p. 236), “[...] refere-se ao modo como o próprio homem se compreende como sujeito legítimo de determinado tipo de conhecimento, ou melhor, como o sujeito percebe a si mesmo na relação sujeito-objeto”. Na perspectiva deleuziana (1990), nessa composição dos dispositivos por linhas de visibilidade, por linhas de enunciação, linhas de forças, linhas de subjetivação, linhas de rupturas, linhas de fissuras, de fraturas que se lançam para todos os sentidos, de cima para baixo, de baixo para cima e em todas as direções que se misturam e se cruzam, existem no meio destas algumas que provocam variações ou mesmo alterações na maneira como essas linhas estão posicionadas ou distribuídas no dispositivo. Assim, o dispositivo traz duas consequências para a atitude filosófica dos dispositivos: uma, diz respeito ao repúdio aos universais, que, conforme Deleuze (1990) não explica nada, mas sim, precisa ser explicado.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 Todas as linhas são linhas de variação, que não tem sequer coordenadas constantes. O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito não são universais, mas processos singulares, de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação, processos imanentes a um dado dispositivo. (DELEUZE, 1990, p. 158).

Dessa forma, o dispositivo é uma multiplicidade cujos processos têm uma movimentação contínua, diferente da forma de atuação dos processos de outro dispositivo; ou seja, um processo realizado no dispositivo X não tem a mesma atuação no dispositivo Y, pois os processos são operacionalizados de acordo com os objetivos de sua formação. A outra consequência do dispositivo “[...] é a mudança de orientação que se separa do eterno para apreender o novo” (DELEUZE, 1990, p. 159). O novo diz respeito à criatividade variável para acompanhar processo, conforme os regimes dos dispositivos, pois cada dispositivo compõe-se de diferentes linhas de forças. Dessa forma, [...] o dispositivo alia-se aos processos de criação e o trabalho do pesquisador, do cartógrafo, se dá no desembaraçamento das linhas que o compõem – linhas de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação. Trabalhar com dispositivos implica-nos, portanto, com um processo de acompanhamento de seus efeitos, não bastando apenas pô-lo a funcionar. (BARROS, KASTRUP, 2015, p. 79).

Na prática da cartografia, então, a novidade de um dispositivo está no novo regime de sua enunciação. De acordo com Deleuze (1990), todo dispositivo se define pela novidade e pela criatividade, características que demonstram a capacidade de transformação e de aberturas de um dispositivo para a criação de novos dispositivos. Complementando a proposta deleuziana, Barros e Kastrup (2015) defendem que o exercício da prática cartográfica dá-se por meio de três movimentos: movimento-função referência, movimento-função de explicitação e movimento-função de transformação-produção. No movimento-função referência, a função se realiza na captura das linhas que participam do processo em curso. O cartógrafo acompanha o processo e seus encontros com várias linhas que compõem o dispositivo, como as linhas de visibilidade e de enunciação. No entanto, a busca está na captura das linhas invisíveis e indizíveis do dispositivo, pois são essas as linhas que possibilitam a invenção e os novos regimes. No movimento-função explicitação, o cartógrafo usa determinadas práticas como meios de criar dispositivos para funcionar noutros dispositivos, como, por exemplo, a criação de uma oficina para funcionar como dispositivo, isto é, para fazer acontecer a “explicitação das linhas em curso” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 84). Nessa concepção, as oficinas são consideradas espaços de

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 aprendizagem inventiva, pois possibilitam o trabalho coletivo, inventivo, criativo e transformador. Como afirmam Barros e Kastrup (2015, p. 84), “nas oficinas ocorrem relações com as pessoas, com o material e consigo mesmo.” O movimento-função de produção-transformação é efeito dos movimentos-função referência e movimento-função explicitação. Na função referência o cartógrafo cria o território existencial e o habita; tem encontros com as linhas que compõem o território; cria seus espaços de mapear, de traçar as linhas que circulam seu campo de pesquisa, ou seja, o cartógrafo monta um plano, o movimento-função. (BARROS; KASTRUP, 2015). No movimento-função de explicitação, o cartógrafo captura as linhas invisíveis e indizíveis do dispositivo; cria os seus próprios dispositivos de pesquisa para produzir o novo, promovendo, assim, transformações no território de pesquisa. Como explicam Barros e Kastrup (2015, p. 90), “[...] a cartografia cria seus próprios dispositivos, produzindo novos movimentos de explicitação, que geram outros efeitos de produção-transformação”. Inclusive, é assim que nesses movimentos, a cartografia se constrói no acompanhar processos em curso, capturando as linhas que se cruzam, explicitando o invisível e o não dito, criando, inventando e transformando realidades existenciais. Assim, na sua atividade de pesquisa, o cartógrafo é levado a criar os seus próprios procedimentos metodológicos, gerados no território de pesquisa; é levado a acompanhar a processualidade em curso, capturando no movimento as intensidades que deem sentido à realidade pesquisada e definam o seu plano de trabalho. Na captura do movimento das intensidades, a atenção do pesquisador-cartógrafo é fundamental para que ele perceba o coletivo de forças, ou seja, as várias linhas de forças do território existencial. A identificação dessas linhas constitui mais uma pista da qual deve se apropriar o pesquisador-cartógrafo para desenvolver sua pesquisa-intervenção. As pistas do método cartográfico, produzidas por Escossia e Tedesco (2015, p. 92), são fundamentadas no entendimento da cartografia como “prática de construção de um plano coletivo de forças”. A noção de coletivo abordada nessa pista tem como base o conceito de “coletivo” desenvolvido pelos filósofos Gilles Deleuze, Felix Guattari e Michel Foucault. Segundo esses filósofos, coletivo diz respeito à relação existente entre plano de formas e plano de forças, que, mesmo compostos por elementos diferentes, mantêm uma relação de reciprocidade que possibilita a realização de “cruzamentos múltiplos”.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 O plano de formas ou plano da organização é responsável pela instauração das formas e dos sujeitos. É o plano que representa as coisas, isto é, os objetos que dão formação ao território existencial, instituído pela visibilidade e enunciação dos regimes dos dispositivos. Conforme Foucault (1979), em cada momento histórico, os dispositivos criam os seus próprios regimes de visibilidade e de enunciação dos objetos no território. Complementando com Deleuze (1998, p. 74) “[...] Tal plano é o da lei, enquanto ele organiza e desenvolve formas, gêneros, temas, motivos e que assinala e faz evoluir sujeitos, personagens, caracteres e sentimento: harmonia das formas, educação dos sujeitos”. Dessa maneira, o plano das formas fundamenta-se no modelo do conhecimento da representação, ou seja, no reconhecimento da ciência como método capaz e infalível de apreender objetos do mundo. Como explicam Escossia e Tedesco (2015), ao lado do plano de formas existe o plano de forças, que Deleuze define também como plano de consistência ou de imanência. É o plano do puro movimento, ou seja, está sempre em movimento, embora em alguns momentos seja mais acelerado e em outros mais lento; porém, em movimento contínuo. É um plano que “[...] não conhece senão relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão, entre elementos não formais, relativamente não formados, moléculas ou partículas levadas por fluxos.’’ (DELEUZE, 1997, p. 74). É um plano que se define por longitude (movimentos e repousos, velocidades e lentidões) e por latitude (afetos e intensidades). Essa concepção de coletivo rompe com o modelo de conhecimento de objetos fixos e invariáveis, assumindo uma percepção de variações e transformações dos objetos do mundo, (ESCOSSIA; TEDESCO, 2015). Trata-se de uma concepção que conduz a um entendimento dos objetos do mundo como efeitos da relação entre plano das formas e plano de forças. Como esclarecem Escossia e Tedesco (2015, p. 94), os objetos do mundo “[...] são resultantes da composição do plano das formas com o plano movente das forças ou coletivo de forças[...]’’. Sendo assim, as formas constituídas em um território existencial resultam dos jogos de forças, ou seja, de procedimentos instaurados pelo coletivo de forças que produzem novos objetos no mundo. Nessa mesma linha de raciocínio, a delimitação dos objetos do mundo justifica-se pelos movimentos de lentidão e redundância das forças em algum momento, pois estas possuem movimentos variáveis entre os acelerados e os de lentidão.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 Para Escossia e Tedesco (2015), a relação entre plano de forma e coletivo de forças contribui com a percepção das particularidades da cartografia no desenvolvimento de práticas de pesquisa, o que a distingue da metodologia tradicional. Esta não consegue apreender o processo de criação da realidade, mas somente observar e descrever os objetos do mundo. Em seu processo criativo, a cartografia traça os seus próprios procedimentos a partir da realidade existencial dos objetos do mundo, acompanhando os processos de formação dessa realidade. Na investigação das formas, considera o plano coletivo das forças moventes para realizar a pesquisa e intervenção. Dessa forma, para se instituir como pesquisador-cartógrafo, exige-se a competência de construir planos que revelem na realidade existencial do território pesquisado as forças que estão livres do plano das formas, isto é, livres do conhecimento da representação; livres da concepção de mundo pela qual os objetos e as coisas estão em processos de variação. Compreende-se, dessa maneira, a cartografia como o método específico de elaborar plano de acesso ao plano de forças dos objetos no mundo. Como complementam Escossia e Tedesco (2015), por não fazer uma divisão entre pesquisa e intervenção, a cartografia apresenta grandes possibilidades de realizar construção de domínios coletivos, pois os seus procedimentos vão além dos adotados pelo método tradicional restrito à observação e à descrição. Na cartografia, o plano de pesquisa traçado pelo cartógrafo visa tornar visíveis as forças existentes no território existencial, mapeando-o para poder construir o seu próprio plano de forças para realizar uma intervenção, isto é, uma transformação na realidade coletiva. Dessa maneira, o plano do cartógrafo visa escapar à organização implementada pelo pensamento da representação no plano das formas. Nesse sentido, a intenção é fazer com que as coisas, os objetos que ainda não foram capturados pelas categorias da representação se revelem no estado de movimento, de variações, de intensidades, ou seja, como forças que se encontram livres do plano das formas constituído no território existencial. Ainda seguindo Escossia e Tedesco (2015, p. 101), a afetação do plano das formas pelas forças livres visa “instaurar condições de diferenciações recíprocas, produzindo uma ou mais forças, agilizando vetores de criação de novas formas que não pertenciam a nenhum dos componentes já existentes e nem ao somatório desses.” Sendo assim, é desse encontro e da afetação entre as forças livres que configuram o plano coletivo de forças, e da diferenciação e do acréscimo que ocorrem nesse plano durante essa interação que emergem novas formas de realidade.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 Como afirma Deleuze (1998) acerca do plano de forças ou plano de consistência ou de imanência, quem o pretende construir deve fazer no lugar em que habita, pois, dessa maneira, o plano será montando a partir da realidade existencial, de modo a alcançar os processos em curso. Portanto, o cartógrafo deve habitar o território existencial para produzir plano de pesquisa, ou seja, plano que dê possibilidade de acompanhar processos em curso e realizar intervenção, transformando a realidade pesquisada. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste artigo foi apresentar, uma reflexão acerca dos estudos das pistas cartográficas para o desenvolvimento de pesquisa empregando o método cartográfico, conforme definiram os(as) autores(as) Alvarez, Barros, Escóssia, Kastrup, Passos e Tedesco (2015), na intenção de perceber a possibilidade de realizarmos uma pesquisa de intervenção filosófica numa escola de Ensino Médio em Teresina/PI, baseada nesse método de inspiração deleuziana e guattariana. Realizado principalmente no livro Pista do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (2015), o estudo mostrou que o método cartográfico surge a partir do conceito de cartografia como arte de traçar mapas, definidos pelos filósofos Deleuze e Guattari, precisamente como princípio do rizoma. Esse princípio se define pela multiplicidade, o aberto, isto é, com múltiplas possibilidades de entradas e saídas no território pesquisado. Entendemos que a cartografia, como método de pesquisa-intervenção que propõe pistas cartográficas, apresenta novos dispositivos para a filosofia desenvolver o processo de criação de conceito, conforme a definição da atividade filosófica definida por Deleuze e Guattari (1992). Apresenta-se, pois, como uma possibilidade de pesquisa de intervenção filosófica no Ensino Médio por se tratar de um método que propõe a reversão do método tradicional em pesquisa-intervenção. Esta, assume as feições de um método pelo qual o pesquisador não se utiliza de procedimentos prontos e acabados, mas constrói no percurso da pesquisa os seus próprios procedimentos. Nesse sentido, o exercício da cartografia pressupõe movimentos que o cartógrafo realiza para desenvolver a sua tarefa, habitando o território, mapeando a realidade, acompanhando os processos em curso, ou seja, criar ações que o possibilite traçar o mapa do território que investiga. A continuidade do estudo das pistas cartográficas é importante, pois, além da necessidade de maiores esclarecimentos sobre novas pistas no exercício da cartografia, tem-se a possibilidade de novos instrumentos de produção de dados a subsidiar o cartógrafo no desenvolvimento da pesquisa intervenção.

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A cartografia como método de pesquisa filosófica, pp. 142-162 OLIVEIRA, Thiago R. M. de; PARAISO, Marlucy A. Mapas, dança, desenhos: a cartografia como método de pesquisa em educação. Pro-Posições, v. 23, n. 3 (69) | p. 159-178 set.-dez. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pp/v23n3/10.pdf. Acesso em: 8 set. 2019. PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides. A cartografia como método de pesquisa intervenção. In: ESCÓSSIA, L.; KASTRUP, V.; PASSOS, E. (org.).. Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulinas, PRADO FILHO, Kleber; TETI, Marcela M. A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói, Santa Cruz do Sul, RS, n. 38, p.45-59, jan.-jun. 2013

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179

CÉREBRO, CORPO E INCONSCIENTE NA FILOSOFIA DE BERGSON1 Yago Antônio de Oliveira Morais2

RESUMO: Trata-se de analisar a relação entre o corpo, o cérebro e o inconsciente em Matière et mémoire, segunda grande obra do filósofo Henri Bergson. Tal relação, seguramente, exige analisar, anteriormente, as considerações bergsonianas sobre o corpo e a sua ação, a representação, a percepção, a teoria da memória, bem como as análises sobre o inconsciente. A articulação destes elementos mostra que o cérebro é pensado como sendo incapaz de secretar as representações e, desse modo, a ação privilegiada do corpo será fundamental para demonstrar tal especificidade. Bergson assevera que o cérebro é somente um órgão capaz de propiciar que a ação seja cada vez menos necessária. O inconsciente, na tentativa de se atualizar, sofre impedimentos por parte do órgão cerebral, uma vez que ele é o responsável por efetuar a comunicação de um movimento em relação a outro órgão. Embora o corpo (o cérebro) seja um impedimento para o inconsciente se manifestar, a tônica bergsoniana é a de que há mais no inconsciente – no espírito – do que no corpo, isto é, no cérebro. PALAVRAS-CHAVE: Inconsciente; Cérebro; Corpo. ABSTRACT: The aim is about analyzing the relationship between the body, the brain and the unconscious in Matière et mémoire, in the second most important work of the philosopher Henri Bergson. This relationship certainly requires analyse, previously, the Bergsonian considerations about the body and its action, the representation, the perception, the theory of memory, as well as 1

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001. 2 Titulação: Mestrado acadêmico. Vínculo profissional ou acadêmico: Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Email para contato: yag.morais@gmail.com.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 the analysis of the unconscious. The articulation of these elements shows that the brain is thought to be unable to secrete representations and thus the privileged action of the body will be fundamental to demonstrate such specificity. Bergson asserts that the brain is only an organ capable of providing action less and less necessary. The unconscious, in an attempt to update itself, is hampered by the brain organ, since it is responsible for communicating a movement in relation to another organ. Although the body (the brain) is an impediment for the unconscious to manifest itself, the Bergsonian tonic is that there is more in the unconscious — in the spirit — than in the body, i.e., in the brain. KEY-WORDS: Unconscious; Brain; Body.

1. Introdução Na conferência L’âme et le corps, proferida em 1912, Bergson escreve o seguinte: [...] um exame atento da vida do espírito e de seu acompanhamento fisiológico me leva a crer que o senso comum tem razão e que há infinitamente mais numa consciência humana do que no cérebro correspondente (BERGSON, 2011, p. 14).

De chofre, esta afirmação, que é bastante significativa3, possui duas grandes implicações. A primeira diz respeito a não redução da vida mental ao órgão cerebral, isto é, a irredutibilidade da vida do espírito ao corpo, de sorte que esta é uma tese bastante característica da filosofia de Henri Bergson. A segunda pode se referir à importância que a noção de inconsciente desempenha em sua filosofia, uma vez que, se a consciência já implica o inconsciente4, é possível afirmar, então, que há mais no inconsciente do que no cérebro. Esse “há mais”, seguramente, quer dizer que a atividade do inconsciente, uma atividade, por assim dizer, espiritual, é muito mais rica e ampla do que a atividade corporal porque o espírito, em Bergson, não é passível de desvanecer. Com efeito, ambas as implicações nos remetem ao conjunto de asserções de Matière et mémoire, cuja relevância procuraremos assinalar ao longo deste trabalho. A pergunta que nos guiará é, a saber, qual é a relação que se pode estabelecer entre o cérebro e o inconsciente em Bergson? E, o que tal relação nos revela? É no coração de Matière et mémoire que podemos encontrar as respostas para estas questões, pois, é ali onde o filósofo francês propõe uma dinâmica sofisticada entre a consciência e o inconsciente, espírito e corpo e, sobretudo, entre o cérebro e o inconsciente. Para tanto, é preciso ir

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Bergson também discute a questão da equivalência entre o estado psíquico e o estado cerebral num texto de 1904, intitulado “O cérebro e o pensamento: uma ilusão filosófica”, publicado na L’énergie spirituelle. 4 Para tanto, cf. DAYAN, M. “L’inconscient selon Bergson”. In: Revue de métaphysique et de morale, 1965.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 às investigações bergsonianas do primeiro capítulo de Matière et mémoire, cujo objetivo concentrase em pensar o papel do corpo – e também do cérebro –, repensando, ao mesmo tempo, como ocorre o processo de representação, bem como ao segundo e terceiro capítulos, cujos objetivos concentram-se em investigar o âmbito do inconsciente e da memória pura.

1. Corpo, cérebro, representação e ação. Em primeiro lugar, é fundamental entendermos o papel que Bergson atribui ao corpo, pois, não é possível entender a relação entre o cérebro e o inconsciente sem antes assinalar os principais argumentos desenvolvidos no primeiro capítulo de Matière et mémoire, cujo título – “De la sélection des images pour la représentation/Le role du corps” – já nos convida a refletir sobre o corpo. Com efeito, Bergson o pensará a partir de dois postulados primitivos fundamentais que, de acordo com Frédéric Worms, se propõe a “[...] descrever a gênese da percepção suspendendo provisoriamente as ‘teorias da matéria e as teorias do espírito’” (WORMS, 2010, p. 138), assim como as “[...] discussões sobre a realidade ou a idealidade do mundo exterior” (BERGSON, 2012, p. 11). Toda a investigação que se desdobra sobre o que Worms chama de a gênese do aparecer5 exige a recusa das teses idealistas e realistas, uma vez que estas seriam excessivas e, por isso, configurariam um obstáculo para pensar o processo de percepção e representação da matéria. É a partir dos dois postulados primitivos6 que Bergson desenvolverá o papel do corpo e a sua ação, a percepção, o papel do cérebro e a representação, repensando-os e propondo, assim, um novo modelo de vida psíquica. Afinal, qual é o papel do corpo? Inicialmente, o corpo é caracterizado como algo incapaz de secretar representações. Isto significa que o cérebro não é capaz de produzir as representações mentais. O corpo vivo, que é uma imagem entre as imagens, possui um privilégio: ele tem a capacidade de “escolher” como devolver os movimentos que ele recebe. Ou seja, ele instaura uma ruptura com a lógica da necessidade, colocando contingência num meio determinado7, de modo que ele será caracterizado, portanto, a partir de uma negatividade. Segundo Bergson, o corpo é identificado como um “[...] objeto destinado a mover objetos, é portanto um centro de ação; ele não saberá fazer nascer uma representação.” 5 De acordo com Worms, trata-se de pensar a gênese da percepção consciente. Para tanto, cf. WORMS, F.

Bergson ou os dois sentidos da vida. São Paulo: Editora Unifesp, 2010, p. 138-147. 6 Um destes postulados é o campo de imagens (ensemble d’images) e, o outro, é a ação do corpo. Vale notar que mesmo possuindo um “sentido vago”, a noção de imagem, de acordo com Worms (1997), tem a pretensão de substituir alguns conceitos tradicionais da filosofia, tal como “objeto”, “coisa” e “fenômeno”, valendo-se somente da noção de “imagem”. 7 Aqui, vale lembrar, está implícito um princípio fundamental na teoria bergsoniana: movimento só pode gerar movimento e nada além.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 (BERGSON, 2012, p. 14). Worms nota muito bem que, já que o corpo não possui a capacidade de produzir representações, ele será definido “[...] por seu próprio modo de movimento, ou seja, de ação” (WORMS, 1997, p. 21). Esse “modo próprio de ação” se configura a partir da relação que se estabelece entre o “corpo vivo” e as “demais imagens”, isto é, com o mundo que o cerca e, é justamente daí que se configurará a representação e a percepção do mundo externo. Em Matière et mémoire, Bergson aponta que o equívoco de alguns filósofos e psicólogos, como Taine e Ribot8, por exemplo, foi o de acreditarem que, da interação entre o corpo vivo e o mundo exterior – seus objetos –, a representação do mundo seria produzida internamente pelos movimentos centrípetos do sistema nervoso, dando a entender que o corpo seria capaz de secretar as representações como num passe de mágica. De acordo com Bergson, o sistema nervoso tem apenas a função de transmitir movimentos e nada mais que isso9. Desse modo, Matière et mémoire insiste na tese de que não há motivos para fazer do cérebro a condição de constituição do mundo exterior: o cérebro é também uma imagem, pois, tudo é imagem! Isto significa que o corpo em hipótese alguma irá condicionar a imagem do universo e, portanto, a representação, de acordo com Worms em seu Introduction à Matière et mémoire, só poderá ser deduzida a partir de um rapport privilégié entre o corpo vivo e as demais imagens, sendo o corpo uma imagem entre imagens10. Aqui podemos sublinhar o papel do cérebro, uma vez que ele é caracterizado por Bergson como um “instrumento de análise”. Ou seja, o cérebro é responsável por efetuar a comunicação de um movimento em relação a outro órgão e, neste sentido, seu papel é comparado ao de uma central telefônica, já que ele é quem efetua a comunicação entre o estímulo recebido e o órgão que irá receber tal estímulo para executar uma ação. Worms nota muito bem que: A função essencial da estrutura do sistema nervoso é permitir que os movimentos nervosos que lá circulam produzam efeitos variados, de acordo com o caminho que tomam; as configurações motoras do cérebro não apenas simbolizam, elas delineiam as reações do corpo ao seu ambiente, e selecionam uma, que será sua ação efetiva. (WORMS, 1997, p. 45, tradução nossa).

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Trata-se de dois teóricos importantes da época de Bergson, com os quais, seguramente, ele dialoga em sua obra.

9 Toda a discussão com os psicólogos da época, com aqueles que afirmavam que a consciência era uma espécie de “epifenômeno”, e,

sobretudo, com aqueles que compartilhavam da tese do paralelismo psicofisiológico se faz necessária no contexto de Matière et mémoire. 10 Em Matière et mémoire, Bergson é enfático ao enunciar que: “[...] é preciso encontra primeiro um terreno comum onde se trava a luta, e visto que, tanto para uns como para outros, só apreendemos as coisas sob forma de imagens, é em função de imagens, e somente imagens, que devemos colocar o problema” (BERGSON, 2012, p. 21).

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 É preciso insistir, então, que é impossível pensar que um estímulo cerebral (ébranlement) – que também é uma imagem – seja responsável por engendrar as imagens exteriores do mundo material. No texto de Bergson lemos que: [...] seria preciso que ela [o estímulo cerebral, que é imagem] as contivesse de uma maneira ou outra, e que a representação do universo material inteiro estivesse implicada na deste movimento molecular. Ora, bastaria enunciar semelhante proposição para perceber seu absurdo. É o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro. (BERGSON, 2012, p. 13, grifo nosso).

É assim que fica evidente a postura negativa de Bergson sobre o corpo: ele só pode receber e devolver movimentos, não sendo capaz de produzir representações. O papel atribuído ao corpo na sua relação com os objetos exteriores será unicamente o de “seleção” de movimentos. O sistema nervoso tem apenas “[...] por função receber excitações, montar aparelhos motores e apresentar o maior número possível desses aparelhos a uma excitação dada.” (BERGSON, 2012, p. 27). Porém, se não é o corpo que secreta as representações, como explicar que, desta ação singular que o corpo produz, que acaba impondo uma modificação essencial no seio das imagens, possa nascer uma representação? Ora, toda a discussão sobre a percepção, proposta no primeiro capítulo de Matière et mémoire, visa reformular a noção de representação em face à tradição filosófica. A proposta de Bergson se inscreve na tentativa de mostrar que “[...] é falso reduzir a matéria à representação que temas dela, falso também fazer da matéria algo que produziria em nós representações” (BERGSON, 2012, p. 1). Tal discussão exige que se repense o corpo, de modo que o processo de percepção será repensado, ao menos neste primeiro momento da discussão de Bergson, a partir de um processo fisiológico. A inversão operada por Bergson, neste sentido, configura uma verdadeira novidade na história da filosofia, porque a representação é proposta não como é um acréscimo de algo, mas, como uma diminuição. Isto é, a tradição filosófica sempre entendeu que se deve acrescentar algo à representação, e por isso ela sempre foi concebida como uma “imagem” do objeto presente que se encontra na mente, ou, em outras palavras, uma cópia mental do objeto11. Para Bergson, a representação não é “acréscimo” porque, em primeiro lugar, não é nenhum ato da consciência do

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Na glosa de Bento Prado Jr., lemos que a imagem “[...] é justamente essa dimensão anterior à cisão entre coisa e representação” (PRADO JR., 1989, p. 146). Não há aqui uma disjunção efetiva entre a realidade em si com a realidade representada. O mérito de Bergson se deve ao fato de que a teoria das imagens implica um campo comum neutro, a partir do qual se poderá pensar sujeito e objeto. Assim, a hipótese das imagens parece ostentar as condições suficientes para superar os obstáculos colocados ao longo da história da filosofia pelo idealismo e pelo realismo e, sobretudo pela filosofia kantiana.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 sujeito e tampouco pode ser secretado do cérebro. Em segundo lugar, não é acréscimo porque a própria percepção também não é um ato privilegiado de um sujeito psicológico, mas é um processo que prolonga a ação do organismo conforme o sistema nervoso é mais ou menos complexo. Aqui, precisamente, o papel do cérebro se destaca porque ele está atrelado à capacidade da ação ser cada vez menos necessária. Quando o corpo – que ainda não é constituído por um sujeito psicológico – percebe o mundo e instaura uma seleção12 de certas imagens, há aí a representação, ou seja, há a supressão de movimentos dum turbilhão de imagens que agem umas sobre as outras. Numa passagem de seu texto, Bergson explica como no processo de representação não há acréscimos: Se houvesse mais no segundo termo [na representação] do que no primeiro [na presença], se, para passar da presença à representação, fosse preciso acrescentar alguma coisa, a distância seria intransponível, e a passagem da matéria à percepção permaneceria envolvida em um impenetrável mistério. O mesmo não aconteceria se pudéssemos passar do primeiro termo ao segundo mediante uma diminuição, e se a representação de uma imagem fosse menos que sua simples presença; [...] Para transformar sua existência pura e simples em representação, bastaria suprimir de uma só vez o que a segue, o que a precede, e também o que a preenche, não conservando mais do que a sua crosta exterior, sua película superficial. (BERGSON, 2012, p. 32-33, grifo nosso).

A representação, portanto, é sempre as “escolhas”, a “seleção” de movimentos de uma imagem particular – o corpo vivo – que é extraída de uma totalidade que nunca se dá integralmente. Isto significa que a representação é sempre uma parte, isto é, a retenção do que interessa à imagemcorpo. Corpo, cérebro, ação e representação são termos que se interpenetram em Matière et mémoire, constituindo, desse modo, uma correlação fundamental para pensar a dinâmica da vida psíquica. O cérebro é marcado por não ser capaz de acrescentar nada àquilo que ele recebe, de modo que ele não é capaz de acrescentar nada ao estímulo recebido de fora. Para pensar a relação entre o cérebro e as ações do corpo, Bergson propõe que o cérebro seja limitado a repartir o movimento recebido e, com isso, não ser capaz de produzir nenhuma representação. Numa passagem do texto, lemos que o papel do cérebro é: [...] tanto o de conduzir o movimento recolhido a um órgão de reação escolhido, tanto o de abrir esse movimento a totalidade das vias motoras para que aí desenhe todas as reações que ele pode gerar e para que analise a si mesmo ao se dispersar. Em outros termos, o cérebro nos parece ser um instrumento de análise em relação ao movimento recolhido e um instrumento de seleção em relação ao movimento executado (BERGSON, 2012, p. 26-27).

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A percepção é definida, em Matière et mémoire, como ação virtual. Para tanto, cf. BERGSON, H. Matière et mémoire. Paris: PUF, 2012, p. 15-16.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 É importante notar, então, que no processo de percepção13 – processo que envolve uma etapa fisiológica – há uma negatividade introduzida pelo corpo, o que caracteriza a seleção e a diminuição (representação) de uma totalidade (campo de imagens). A representação deixa de ser algo interno, própria dum sujeito psicológico, e passa a ser compreendida a partir da ação do corpo, sem deixar de contar ainda com a participação do órgão cerebral. A rigor, a representação não se aloja no órgão cerebral porque ela não é secretada por ele, porque o que há são apenas movimentos e nada mais, sendo o corpo o responsável por interagir e escolher como devolvê-los. Ora, a partir dessas considerações atribuídas ao cérebro e ao corpo, qual é a relação que ele pode estabelecer com o inconsciente? Passemos para a segunda parte de nossa investigação, esta que tratará do próprio inconsciente em Matière et mémoire.

2. O inconsciente enquanto virtualidade A memória é objeto de estudo dos dois capítulos centrais de Matière et mémoire, os capítulos segundo e o terceiro. As reflexões contempladas nestes respectivos capítulos nos permitem falar da realidade do espírito, da experiência interna e, certamente, da consciência e do inconsciente. A passagem do primeiro capítulo desta obra para os dois seguintes marca, sobretudo, a diferença entre uma consciência objetiva e impessoal e uma consciência subjetiva, pessoal e singular, capaz de se servir das experiências passadas para auxiliar a ação do presente. Uma das constatações que podemos obter de tal passagem entre os capítulos é o fato de que a consciência não só opera uma seleção pragmática no conjunto de imagens – o que caracteriza o ato perceptivo –, mas, ela também insere algo do “sujeito” nessas imagens. Ora, isso que é inserido na percepção é algo que provém do passado e são as próprias lembranças de um sujeito dotado de um inconsciente, cuja definição pode ser compreendida como a totalidade de sua própria história pessoal. É daí que, se a memória é 13 Da própria relação variável entre o ser vivo (a imagem-corpo) e as influências mais ou menos distantes dos objetos que o interessam,

é possível, segundo Bergson, deduzir a necessidade de uma percepção. A percepção, segundo a filosofia bergsoniana, é resultado da relação do corpo vivo com o conjunto de imagens. No famoso exemplo do “ponto P”, de Matière et mémoire, lemos o seguinte: “Seja, por exemplo, um ponto luminoso P onde os raios agem sobre diferentes pontos a, b, c, da retina. [...] Limitemo-nos provisoriamente a dizer, sem muito aprofundar aqui o sentido das palavras, que o ponto P envia à retina estímulos luminosos. O que irá se passar? Se a imagem visual do ponto P não fosse dada, haveria por que procurar saber como ela se forma, e logo nos veríamos em presença de um problema insolúvel. [...] os estímulos transmitidos do ponto P aos diversos corpúsculos retinianos são conduzidos aos centros ópticos subcorticais e corticais, frequentemente também a outros centros, e que esses centros às vezes os transmitem a mecanismos motores, às vezes os detêm provisoriamente. [...] o ponto P, os raios que ele emite, a retina e os elementos nervosos interessados formam um todo solidário, que o ponto P faz parte desse todo, e que é exatamente em P, e não em outro lugar, que a imagem de P é formada e percebida” (BERGSON, 2012, p. 39-41). Sendo assim, com isso queremos dizer que tanto o ponto P quanto o corpo vivo participam deste mesmo “todo solidário”. À medida que Bergson remove a participação da lembrança na percepção (o lado subjetivo da percepção), sobra um momento não subjetivo da percepção: material e fisiológico. A definição de percepção pura, em Matière et mémoire, enquanto relação variável entre o ser vivo e os objetos, é contra o postulado que afirma que a percepção é pautada pelo conhecimento e, portanto, essa relação inicial que não conta ainda com a presença da subjetividade é neste nível impessoal.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 inserida no bojo da discussão sobre a percepção, é porque as lembranças contribuem para explicar como é a nossa experiência concreta da percepção, uma vez que não há percepção sem lembranças. Enquanto a investigação da percepção pura nos mostra que há um lado impessoal da percepção, a percepção concreta, que inclui elementos mnemônicos, nos revela o lado pessoal e singular da experiência perceptiva14. Entretanto, a memória também é inserida nas discussões de Bergson para ilustrar algo fundamental: a independência do espírito em relação ao corpo. O que significa tal independência? Em primeiro lugar, trata-se de uma independência no sentido de que o espírito, o pensamento, a memória, não são irredutíveis ao órgão cerebral, isto é, aos estados cerebrais. Bergson acredita que dado um fato psicológico, determina-se sem dúvida “[...] o estado cerebral concomitante. Mas a recíproca não é verdadeira, e ao mesmo estado cerebral corresponderiam igualmente bem estados psicológicos muito diversos” (BERGSON, 2009, p. 193). Em Matière et mémoire, é o próprio Bergson quem afirma que há tons diferentes de nossa vida mental, ora mais longe, ora mais perto da ação15. Com efeito, ao relacionar a consciência com a escolha – o que caracteriza a possibilidade de nossa vida mental se manifestar em diferentes graus –, Bergson percebeu que tal escolha “[...] se inspira, sem dúvida alguma, nas experiências passadas, e a reação não se faz sem um apelo à lembrança que situações análogas foram capazes de deixar atrás delas” (BERGSON, 2012, p. 67). Assim como o corpo possui uma potência própria de selecionar as imagens de uma totalidade, de acordo com Panero (2006), nós também temos outra potência, a saber, a de reconhecer essas imagens enquanto minhas, tornando-as conscientes, subjetivas, tratando-se, assim, dum movimento que retira do passado as lembranças úteis que são capazes de auxiliar a ação no presente. Mas, em segundo lugar, a memória indica a irredutibilidade do espírito ao corpo, pois, de acordo com Bergson, à medida que o corpo sofre uma lesão, por exemplo, no órgão cerebral, não é a lembrança que é afetada, mas unicamente a capacidade de atualizá-la. Ou seja, as lembranças não sofrem nenhuma danificação porque elas não estão alojadas em nenhum órgão, tampouco no órgão cerebral. A lembrança diz respeito ao âmbito do espírito e, por isso, não é ela quem desaparece

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Ao incluir a lembrança no processo de percepção, Bergson aponta para a própria subjetividade da experiência humana. É curioso notar que a memória tem uma grande relevância na época de Bergson, no fim do século XIX. Esta, segundo Worms, recobre o “problema do sujeito ou da subjetividade”. Para tanto, cf. WORMS, Frédéric. Bergson ou os Dois Sentidos da Vida, 2010, p. 162-165. 15 Esta tese pode ser esclarecida a partir da explicitação da teoria dos planos de consciência. Para tanto, cf. WORMS, F. La théorie bergsonienne des plans de conscience. Genèse, structure et signification de Matière et mémoire. In: GALLOIS, P.; FORZY, G. (éd) Bergson et les neurosciences. Le Plessis Robinson: Institut Synthélabo pour le progress de la connaissance, 1997a, p. 85-108.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 quando há alguma lesão física. A impossibilidade da lembrança se atualizar na percepção presente, de se encarnar no presente através do corpo vivo, indica que o cérebro não aprisiona as lembranças em suas células, mas, muito pelo contrário, seu papel é o de uma ferramenta que auxilia na atualização das lembranças. No entanto, para explicar como o processo de atualização das lembranças ocorre, é necessário que, antes, se explique como aquelas se conservam, de modo que, assim, será possível explicar em que condições o inconsciente se dá. Em Matière et mémoire, Bergson assevera que o passado se conserva de dois modos, a saber, um através da memória-hábito e o outro através da lembrança espontânea. Bergson se vale do exemplo da lição aprendida de cor para nos permitir visualizar como estes dois tipos de lembranças se manifestam em nossa experiência. De um lado, há a memória-hábito que se encontra nos mecanismos motores. Ela é ligada ao hábito do corpo, e, por isso, sua aquisição se dá por meio da repetição. Quanto mais uma lição for repetida, maior será a chance de virar um hábito, justamente porque há uma fixação maior e mais forte. Por outro lado, há a lembrança de uma leitura específica de uma lição, que difere da repetição e do hábito e é identificada como lembrança espontânea. Trata-se, dessa vez, de um tipo de lembrança que possui, por exemplo, uma data, detalhes, ou seja, é a lembrança de um acontecimento particular. Este tipo de lembrança não diz respeito aos mecanismos motores do corpo, mas ao âmbito espiritual, que, de acordo com Bergson, existe independentemente deles. A memória-hábito, por um lado, está inteiramente mais voltada para a ação. Daí que ela seja parte do nosso presente: ela é “vivida”, “agida”. No corpo, Bergson identifica que há dispositivos motores que são criados a partir da repetição, com o intuito de favorecer a ação mais útil e prática. O passado, conservado dessa maneira, é mais assíduo nas nossas ações mais cotidianas e regulares, como é no caso de andar e escovar os dentes, por exemplo. A lembrança espontânea, por outro, registra os detalhes dos acontecimentos cotidianos de nossas vidas e é associada mais à representação do que à ação. Já que a ela se atribuem detalhes, essa lembrança difere da repetição justamente por conta desta sua característica essencial e, segundo Bergson, enquanto uma memória representa nosso passado, a outra o encena. Com efeito, há uma lembrança que se integra aos mecanismos motores que são criados pela repetição e que facilitam a ação do corpo vivo, já que o interesse que está em jogo é o de servir unicamente à ação eficaz e útil do presente. É como se houvesse uma demanda de um “caminho mais curto”, mais eficaz, que evita o desperdício de qualquer tempo para realizar uma ação; enfim,

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 criam-se atalhos. Mas, também há outro tipo de lembrança, esta que carrega a marca de “caprichosa” porque às vezes não se manifesta precisamente quando a evocamos. Desses dois tipos de memória, é notável que, no caso da lembrança espontânea, para que ela seja recuperada e utilizada na ação presente, é preciso realizar um trabalho “[...] do espírito que irá buscar no passado, para dirigi-las [as lembranças] ao presente, as representações mais capazes de se inserir em situações atuais” (BERGSON, 2012, p. 82, grifo nosso). No outro caso, a função da memória-hábito é a de “[...] esclarecer e completar utilmente a situação presente” (BERGSON, 2012, p. 90), e, para tanto, recorre-se aos mecanismos motores. A diferença entre as duas memórias, portanto, nos remete ao entendimento de que há dois extremos em nossa vida: [...] a “memória pura” e individual será então uma “multiplicidade indistinta”, virtual ou qualitativa, onde as lembranças se interpenetram, perdendo toda forma representativa distinta, para constituir um “caráter” ou um “inconsciente”; em contrapartida, a memória do corpo será constituída de esquemas espaciais, distintos, atuais, comparáveis aos que se formam na percepção das “imagens”. (WORMS, 2010, p. 166).

Ora, a distinção estabelecida entre as duas formas lembranças não revela apenas suas diferentes funções em nossa vida cotidiana, mas, muito mais do que isso, é desta distinção inicial que é possível apontar para a noção de um inconsciente. Especificamente, a discussão sobre o inconsciente se concentra no capítulo III de Matière et mémoire, na sessão que trata justamente “de l’inconscient”16. Ali, Bergson se propõe a pensar sobre a impotência da lembrança pura17 (lembrança espontânea), esta que remete ao âmbito do inconsciente e se conserva em estado latente. Para tal empresa, Bergson se vale de uma comparação com o mundo material. Todos nós admitimos que as imagens que são dadas em nossa percepção atual não constituem a totalidade da matéria e que, embora a nossa percepção contemple uma parcela da totalidade material, o resto do todo que não é percebido não deixa de existir. No texto bergsoniano, lemos o seguinte: Além das paredes de seu quarto, que você percebe neste momento, há os quartos vizinhos, depois o resto da casa, finalmente a rua e a cidade onde você mora. Pouco importa a teoria da matéria à qual se esteja ligado: realista ou idealista, você pensa evidentemente, quando fala da cidade, da rua, dos outros quartos da casa, em outras tantas percepções ausentes de sua consciência e no entanto dadas fora dela. Elas não são criadas à medida que sua consciência as acolhe; portanto já existiam de algum modo, e uma vez que, por hipótese, sua consciência não as apreendia, como poderiam existir em si a não ser no estado inconsciente? Como se explica então que uma existência fora da consciência nos pareça clara quando se trata dos objetos, obscura quando falamos do sujeito? (BERGSON, 2012, p. 158).

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BERGSON, H. Matière et mémoire. Paris: PUF, 2012, p. 156-164. Ela é definida da seguinte maneira: “Coextensiva à consciência, ela retém e alinha uns após os outros todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar e consequentemente lhe marcando a data, movendo-se efetivamente no passado definitivo, e não, como a primeira [memória-hábito], num presente que recomeça sem cessar” (BERGSON, 2012, p. 168, grifo nosso). 17

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É desse modo que Bergson procura evidenciar a existência do inconsciente enquanto algo que se conserva incessantemente. A lembrança pura, entendida como virtual, é pensada a partir da contração contínua do nosso passado. Este, à medida que vivemos e experimentamos as coisas do mundo, é registrado juntamente com todos estes eventos em nosso passado. Toda a nossa vida, tudo pelo o que passamos, desde o nosso nascimento, é conservado no passado. Tais registros oferecem a possibilidade de enriquecimento da experiência presente e, seguramente, tal passado excede os limites do próprio presente e do corpo. Esta retenção constante do nosso passado esclarece, portanto, a produção das lembranças puras18 que permanecem em estado virtual19. Certamente, se há prolongamento e continuação do passado no presente, é porque antes há a conservação, a retenção ininterrupta do passado. Embora Bergson fale em “conservação”, é preciso insistir de que não é no cérebro que as lembranças se encontram. O órgão cerebral possui apenas dispositivos para cada categoria de lembrança, sendo responsável por contribuir para a conversão das lembranças puras em percepção ou imagens nascentes. De acordo com o filósofo francês, os fenômenos inconscientes internos existem porque mesmo não sendo manifestos à consciência, eles fazem parte da realidade da vida psíquica. Na verdade, a questão é que a [...] aparente destruição completa ou de ressurreição caprichosa [das lembranças] deve-se simplesmente porque a consciência atual aceita a cada instante o útil e rejeita momentaneamente o supérfluo. Sempre voltada para a ação ela só pode materializar de nossas percepções antigas aquelas que se organizam com a percepção presente para concorrer à decisão final. (BERGSON, 2012, p. 162, grifo nosso).

Matière et mémoire ainda nos instrui sobre como os fenômenos inconscientes devem ser concebidos e Bergson é enfático ao dizer que: Nossa vida psicológica passada inteira condiciona nosso estado presente, sem determiná-lo de uma maneira necessária; inteira também ela se revela em nosso caráter, ainda que nenhum dos estados passados se manifeste no caráter explicitamente. Reunidas, essas duas condições asseguram a cada um dos estados psicológicos passados uma existência real, embora inconsciente. (BERGSON, 2012, p. 164-165).

18

Num estudo de 1908, Le souvenir du présent et la fausse reconnaissance, Bergson nos diz que a lembrança pura só pode ser descrita vagamente, por meio de metáforas. Aqui, vale ressaltar que as “[...] imagens percebidas, tornando-se lembranças, sobrevivem, numa existência espiritual.” (PINTO, 2000, p. 256). Nesta conferência, Bergson nos propõe a pergunta “como a lembrança se forma?”, que, por sua vez, evidencia a diferença entre a lembrança e a percepção, bem como a retenção contínua do passado. A tese preponderante aqui será, a saber, a formação da lembrança não é jamais posterior à percepção: ela é contemporânea. 19 Gilles Deleuze afirma o seguinte: “Bergson quer dizer que o objetivo é o que não tem virtualidade – realizado ou não, possível ou real, tudo é atual no objetivo. [...] chamaremos objeto, objetivo, não só o que se divide, mas o que não muda de natureza ao dividirse. É portanto, o que se divide por diferenças de grau.” (DELEUZE, 1999, p. 30). E, mais adiante diz: “[...] o subjetivo, ou a duração, é o virtual. Mais precisamente, é o virtual à medida que se atualiza, que está em vias de atualizar-se, inseparável do movimento de sua atualização, pois a atualização se faz por diferenciação, por linhas divergentes, e cria pelo seu movimento próprio outras tantas diferenças de natureza.” (DELEUZE, 1999, p. 32).

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 Não podemos negar a existência do inconsciente em nós. É evidente que ele é do âmbito do virtual e, portanto, não se encontra alojado no órgão cerebral. Negar a virtualidade da memória pura é justamente pensar em termos espaciais porque se coloca a questão do “onde” se conservam as lembranças em nós. A pergunta pelo “lugar” onde o passado se encontra se traduz como uma concepção materialista da memória, colocando as lembranças puras – que são de ordem estritamente espiritual ou virtual – no interior do órgão cerebral20.

3. Cérebro e inconsciente: a atenção à vida Para Frédéric Worms, a memória pura – âmbito do inconsciente – é inativa e permanece obscura para nós na maior parte do tempo. Para que esta seja atualizada em uma percepção, isto é, para que ela salte deste inconsciente e se encarne no presente, é preciso um ato que faça com que ela torne-se ativa: passa-se do âmbito do virtual para o atual. Worms pontua muito bem que este “salto” não implicaria nenhuma restrição e incomunicabilidade entre as duas memórias destacadas por Bergson – a memória pura e a memória-hábito –, de modo que as diferenças entre as duas memórias não remetem a nenhum “[...] dualismo metafísico de substâncias, mas uma simples diferença pragmática, uma diferença de ação” (WORMS, 2010, p. 175). Esta diferença pragmática pode ser destacada através das ações do corpo que ocorrem em maiores ou menores graus, o que significa dizer que uma ação pode se utilizar mais ou menos do passado, de modo que ele pode ser mais ou menos contraído em vista de uma determinada ação e não de outra, enfim, significa que o processo de atualização das lembranças, em Bergson, conta com o papel fundamental desempenhado pelo corpo vivo e, neste sentido, com o papel do cérebro. A atualização do passado, então, pode se dar tanto numa ação corporal, que conta com o apoio do cérebro em iniciar uma ação, ou também pode se dar numa percepção e, portanto, numa ação virtual. Porém, como é possível a Bergson afirmar que, do salto à região específica do passado, se converte em atualização de uma lembrança? Como não pensar que as lembranças são coisas justapostas? Ou ainda, como é possível ver a atualização de uma dimensão espiritual – como é a da lembrança pura, do inconsciente – encarnada no corpo, no órgão cerebral?

20

Com o exemplo da Fig. 2 de Matière et mémoire, Bergson nos mostra como ocorre a relação entre os três termos – lembrança pura, lembrança-imagem e percepção –, afirmando que há na verdade um constante devir que abarca os três, de modo que é mais satisfatório distingui-los por meio das noções de atual e virtual. Portanto, não se trata, em hipótese alguma, de termos justapostos no espaço. Ou seja, as lembranças não poderiam estar localizadas no cérebro. Para tanto, cf. Matière et mémoire, 2012, p. 147.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 Não seria preciso lembrar aqui da tese primordial de Bergson, que nos diz que, para pensar as questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, estas “[...] devem ser colocadas mais em função do tempo do que do espaço” (BERGSON, 2012, p. 74). Vejamos, ainda, o que Bergson nos diz numa importante passagem de Matière et mémoire: Temos consciência de um ato sui generis pelo qual deixamos o presente para nos recolocar primeiramente no passado em geral, e depois numa certa região do passado: trabalho de tentativa, semelhante à busca do foco de uma máquina fotográfica. Mas nossa lembrança permanece ainda em estado virtual; dispomo-nos simplesmente a recebê-la, adotando uma atitude apropriada. Pouco a pouco aparece como que uma nebulosidade que se condensasse; de virtual ela passa ao estado atual; e, à medida que seus contornos se desenham e sua superfície se colore, ela tende a imitar a percepção. (BERGSON, 2012, p. 148).

Esta passagem famosa21 ilustra muito bem que, para receber a lembrança que advém de uma dimensão que não é a do órgão cerebral, que não está localizada nele, é preciso adotar uma “atitude apropriada”, que, sem dúvida, pode ser proporcionada pelo corpo e que depende de esquemas motores, por exemplo, mas, que também pode se dar numa percepção – ação virtual – que já indicaria uma ação futura. Todo esse processo é marcado por diversas possibilidades da memória se encarnar, ou seja, de se contrair mais ou menos em nossa experiência que, seguramente, se projeta para o futuro. Como ressalta Deleuze, a chamada “revolução bergsoniana” se caracteriza por ir “[...] do passado ao presente, da lembrança à percepção” (DELEUZE, 1999, p. 49), de modo que todo esse processo que vai do passado ao presente, seguramente, abarca uma diversidade de planos que são possibilidades de ações que ocorrem ou não conforme os esquemas motores são montados. Tais possibilidades de ações, embora correspondam aos planos de consciência, se restringem, de certo modo, ao estado saudável ou não do corpo vivo e do cérebro, indicando aí a possibilidade de mais ou menos ações. Os planos de consciência revelam que o inconsciente pode se esparramar em diferentes níveis, ora mais contraídos ou não, e que tal deliberação depende de um bom desempenho da atividade corporal como um todo. Nossa personalidade, por exemplo, que permanece sempre integral no inconsciente, pode se manifestar parcialmente em nossas ações, embora ao mesmo tempo ela esteja integralmente presente em nossas vidas, em nosso passado. Mas, o que é que controla e faz com que a totalidade do passado não se manifeste por inteiro?

21

Esta passagem é conhecida, sobretudo pela leitura que Gilles Deleuze faz dela. Trata-se, especificamente, de propor uma “ontologia do passado”. Para tanto, cf. HENRIQUES, F. M. Monismo da duração e ontologização do passado: sobre a leitura deleuzeana de Bergson. In: Trans/form/ação, Marília, 2017, v. 40, n. 2, p. 193-216.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 Aqui, o conceito de “atenção à vida” será fundamental para compreendermos melhor as diversas manifestações de nossa vida mental, pois, conforme o grau de atenção à vida é maior ou menor, nosso caráter pode escorrer e se espalhar em diferentes ações: ações mais complexas ou ações mais simples, por exemplo. Bergson afirma categoricamente que nossa vida psicológica “normal” oscila entre os estados sensórios-motores e as lembranças puras, de modo que poderíamos também dizer que ela oscila entre o virtual e o atual. Referindo-se ao exemplo do cone e suas seções22, Bergson nos diz algo bastante significativo sobre essa oscilação: De um lado o estado sensório-motor S orienta a memória, da qual, no fundo, não é senão a sua extremidade atual e ativa; e de outra parte essa memória, com a totalidade de nosso passado, exerce uma pressão constante para se inserir na ação presente a maior parte possível de si mesma. Desse esforço duplo resulta a todo instante uma quantidade indefinida de estados possíveis da memória, estados figurados pelos cortes A’B’, A”B”, etc., de nosso esquema. Estas são, dizíamos, outras tantas repetições de nossa vida passada inteira. Mas cada um desses cortes é mais ou menos amplo, conforme se aproxime mais da base ou do vértice; além disso, cada uma dessas representações completas de nosso passado só traz à luz da consciência aquilo que pode se enquadrar no estado sensório-motor, consequentemente aquilo que se assemelha à percepção presente do ponto de vista da ação a cumprir. (BERGSON, 2012, p. 187-188).

Toda a dinâmica do movimento espiritual que vai do passado ao presente exige que se considere que as diferentes ações não remetem à manipulação de lembranças entendidas como “coisas”, ou como “átomos”, pois, as lembranças, quando pensadas pela teoria dos planos de consciência, não são entendidas como “[...] lembranças justapostas como átomos” (BERGSON, 2012, p. 190). Há que se notar que a “[...] forma de nossa relação estruturada no mundo, ou de nossa experiência, é o conjunto de relações adquiridas no e pelo nosso cérebro” (WORMS, 1997a, p. 96) e, portanto, a relação que o cérebro estabelece com o inconsciente é primordial para o conjunto das teses de Matière et mémoire. Para Bergson, a tendência e a disposição das lembranças se encarnarem em uma percepção, em uma ação, que depende da “atitude adequada”, responde à uma lei psicológica fundamental: a

22

Para

fins

ilustrativos,

colocamos

aqui

a

imagem

integral

retirada

do

livro.

Trata-se

da

Figura

BERGSON, H. Matière et mémoire. Paris: PUF, 2012, p. 181.

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 lei de atenção à vida. Essa lei, segundo David Lapoujade, designa “[...] o mecanismo pelo qual estamos sempre nos adaptando às exigências do mundo no qual vivemos” (LAPOUJADE, 2010, p. 77), como se o mundo exigisse uma resposta de nós diante de um evento inesperado: o que fazer agora? À medida que estamos vivendo no mundo, uma pluralidade de eventos é colocada diante de nós e dentre eles, seguramente, é exigido uma resposta, uma ação. Isto implica que os seres vivos do mundo sejam levados a se adaptarem conforme suas necessidades, criando, para tanto, mecanismos que facilitam as ações futuras. Sempre que o mundo nos perguntar “o que fazer agora?”, haverá, em geral, uma resposta adequada do nosso corpo, o que significa também um modo de atualização das lembranças em função das necessidades vitais. Seguramente, há toda uma intenção de adaptação de nossa parte frente ao mundo, cuja equação se dá da seguinte maneira: de um lado, o estado sensório-motor desempenha um papel importante na orientação da memória e do corpo e, de outro, a memória pura também entra em cena exercendo pressão para se encarnar, porque o estado sensório-motor depende dela e viceversa23. Embora haja um jogo de vai e vem entre o plano da ação e o plano do sonho, tal tensão parece se atenuar com o próprio grau de “atenção à vida” que o ser vivo dispõe. Por exemplo, quando estamos dormindo e sonhamos, há o relaxamento da tensão do sistema-nervoso e de toda a demanda da ação do presente, das necessidades vitais. A atividade cerebral parece se atenuar por um momento e, abre-se amplamente a totalidade do passado que é a realidade inconsciente – a totalidade de nossas lembranças indistintas. Toda a intervenção corporal cessa e o inconsciente se manifesta cada vez mais. Quando estamos no estado de vigília, o processo de atualização de uma lembrança é filtrado. Ou seja, há um imperativo que impede que algumas lembranças apareçam à consciência de modo espontâneo justamente porque há interesses vitais em jogo. Como nos diz Bergson, as lembranças “[...] adquirem uma forma mais banal quando a memória se contrai, mais pessoal quando ela se dilata” (BERGSON 2012, p. 188). Em todo o caso, há o inconsciente – realidade fora do âmbito da consciência – que se relaciona a todo tempo com a nossa vida psicológica consciente, com o corpo e com o cérebro. Toda a teoria da memória de Bergson ajuda a esclarecer como é possível a relação entre o cérebro e o inconsciente, uma vez que este depende de uma adequação do órgão cerebral para se 23

Silene Marques aponta para um ponto fundamental: “[...] de acordo com a teoria dos planos de consciência, não existe liberdade completa, ‘consciência pura de si’, dentro dos limites da atenção à vida. Pois nossa realização no mundo passa por certas condições materiais que, impondo-nos escolhas, impedem a explicitação completa de nossa interioridade, de modo que nunca sabemos tudo que somos, e o conhecimento do conteúdo de nossa vida psicológica é sempre falho: a ‘lei fundamental da vida’, ditada pelo corpo, deste modo nos condena a manter sempre uma distância entre nós e nós mesmos” (MARQUES, 2006, p. 84).

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 encarnar na atividade presente. A dinâmica – que é uma novidade face à tradição filosófica – entre a consciência, o inconsciente e o corpo nos revela que a própria personalidade humana depende de um bom funcionamento de ambos os setores. No entanto, é preciso insistir ainda em ponto relevante sobre a relação entre o cérebro e o inconsciente. Vale ressaltar que Worms (1997) propõe algo fundamental, a saber, que a correspondência entre a consciência e o cérebro é simbólica e não causal. O cérebro é unicamente o responsável por operar as ações e, portanto, é ele quem sofre, de fato, os efeitos das ações e movimentos. Daí que se há alguma lesão na massa cinzenta é unicamente o próprio órgão quem será o afetado. Neste sentido, a “[...] patologia não é propriamente psicológica ou mental em Bergson, ela é sempre biológica ou cerebral” (WORMS, 1997, p. 108). O inconsciente (e a operação da consciência) permanece completamente inalterado quando há qualquer lesão cerebral, de modo que o âmbito virtual, que o configura, nunca adoece. Se há como falar em patologia em Bergson, é somente em razão de uma disfunção ou lesão cerebral, um funcionamento biológico perturbado. Não há propriamente uma “patologia do espírito” ou “doença mental”, porque o inconsciente virtual não pode ser afetado causalmente.

REFERÊNCIAS: BERGSON, H. Matière et mémoire. Paris: PUF, 2012. (Édition critique). ______. L’âme et le corps. Paris: PUF, 2011. (Édition critique). ______. A energia espiritual. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. ______. Le souvenir du présent et la fausse reconnaissance. Paris: PUF, 2012a. (Édition critique) DAYAN, M. “L’inconscient selon Bergson”. In: Revue de métaphysique et de morale, 1965. DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999. HENRIQUES, F. M. Monismo da duração e ontologização do passado: sobre a leitura deleuzeana de Bergson. In: Trans/form/ação, Marília, 2017, v. 40, n. 2, p. 193-216. LAPOUJADE, D. Puissances du temps. Les Editions de Minuit, 2010. MARQUES, S. T. Ser, tempo e liberdade: as dimensões da ação livre na filosofia de Henri Bergson. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2006. PANERO, A. Corps, cerveau et esprit chez Bergson. Paris: L’Harmattan, 2006. PINTO. D. C. M. Consciência e corpo como memória: Subjetividade, atenção e vida à luz da filosofia da duração. São Paulo: USP, 2000. (Tese de doutorado). Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Cérebro, corpo e inconsciente na filosofia de Bergson, pp. 163-179 PRADO JR. B. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989. WORMS, F. Introduction a “Matière et mémoire” de Bergson. Paris: PUF, 1997. ______. Bergson ou os dois sentidos da vida. São Paulo: Editora Unifesp, 2010. ______. La théorie bergsonienne des plans de conscience. Genèse, structure et signification de Matière et mémoire. In: GALLOIS, P.; FORZY, G. (éd) Bergson et les neurosciences. Le Plessis Robinson: Institut Synthélabo pour le progress de la connaissance, 1997a, p. 85-108.

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194

NIETZSCHE CONTRA WAGNER, CONTRA OS FILÓLOGOS E CONTRA ELE MESMO: CRÍTICAS E AUTOCRÍTICAS A O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA Luís Francisco Fianco Dias1

RESUMO: O presente texto tem como tema a recepção contemporânea polêmica da obra O Nascimento da Tragédia de Nietzsche e as críticas que este recebeu dos filólogos de seu tempo, bem como as autocríticas desenvolvidas pelo autor ao longo do seu pensamento posterior, no qual se afasta das principais influências de suas obras de juventude, a saber, Arthur Schopenhauer e Richard Wagner. Nosso objetivo não é reapresentar os argumentos do livro em questão senão dar conta ainda que sucintamente das questões que ele lega para a posteridade do pensamento estético e para a filosofia da cultura, tentando ainda uma atualização da crítica cultural que está presente na obra para as nossas disposições contemporânea de comunicação de massa e industrialização da cultura.

1 Programa de Pós-Graduação em Letras. Curso de Filosofia. Área de Ética e Conhecimento. Universidade de Passo Fundo-RS. http://lattes.cnpq.br/2124983929639021 https://orcid.org/0000-0002-4839-6759

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 PALAVRAS- CHAVE: Nietzsche; Nascimento da Tragédia; Richard Wagner; Filologia. Nietzsche against Wagner, against philologists and against himself: criticisms and selfcriticisms of The Birth of Tragedy ABSTRACT: This text has as its theme the contemporary controversial reception of the work Geburt der Targoedie by Nietzsche and the criticisms he received from the philologists of his time, as well as the self-criticisms developed by the author throughout his later thought, in which he moves away of the main influences of his youth works, namely, Arthur Schopenhauer and Richard Wagner. Our objective is not to re-present the arguments of the book in question, but to give a brief account of the issues that it bequeaths to posterity of aesthetic thought and to the philosophy of culture, still trying to update the cultural criticism that is present in the work for our contemporary dispositions of mass communication and industrialization of culture. KEYWORDS: Nietzsche; Birth of Tragedy; Richard Wagner; Philology.

Introdução O Nascimento da Tragédia de Nietzsche foi, desde o seu lançamento, um dos textos mais de um escritor em si nada desprovido de textos polêmicos. Ainda hoje algumas discussões são suscitadas a respeito do caráter pouco rigoroso de suas argumentações e se esta falta de rigorosidade deveria permitir-lhe um lugar no panteão dos textos filosóficos ou se ele deveria ser considerado um exercício de filologia ou mesmo de literatura. O fato é, nos parece, que a própria polêmica e a quantidade de críticas levantadas apenas contribuíram, ao longo destes quase 140 anos, para reforçar a importância das ideias apresentadas de maneira tão inovadora ali, como a oposição entre apolíneo e dionisíaco, a justificativa estética da existência para dar conta da visão trágica de mundo, a crítica anacrônica à cultura de uma época como sinal de decadência da civilização que vai ecoar em quase todos os demais pensadores da filosofia da arte ou da cultura ao longo do século XX e além. Isso vem a significar que, exatos ou não, os argumentos deste livro de juventude herdaram reflexões profícuas e importantes para a filosofia subsequente. O que não o isenta de críticas, obviamente. E é justamente a tais críticas que nos debruçaremos no texto que segue para, mais do que reconstituir os argumentos da obra em questão, concatenar e apresentar ainda que brevemente a discussão que foi gerada pela sua publicação no ano de 1872. Nesse sentido, o texto se dividirá em quatro partes: a primeira sobre a recepção do texto no momento de sua publicação, no qual abriu-se uma discussão pública entre Nietzsche e os demais filólogos, em especial Willamowitz-Möllendorff; a segunda sobre as próprias críticas de Nietzsche ao seu texto, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 na qual ele tenta afastar-se de uma posição que considerou em seus escritos de juventude ainda um resquício de pensamento metafísico de influencia schopenhauerianas; a terceira sobre o afastamento de seu pensamento em relação à produção artística de Richard Wagner e, por fim, a quarta em uma aproximação das críticas à cultura que possam valer para a nossa disposição contemporânea. 1 A Recepção Contemporânea Uma visão mais ampla do pensamento de Nietzsche, que considere não apenas os textos de juventude, mas também os posteriores e as diversas críticas àqueles, possibilitará identificar o quanto o próprio autor tinha noção de que suas investigações eram não um exercício de rigorosidade científica, e sim uma aproximação interpretativa da Antiguidade clássica, que se exprimia em um tom hipotético, como suposições não baseadas em dados históricos e sim em verossimilhança. (NETO, 2000, p. 26) São tais características que suscitam, por exemplo, as diversas críticas à ausência de cientificidade de seu estudo sobre a tragédia ática na época mesma de sua publicação, principalmente por parte do também filólogo Wilamowitz-Möllendorf. (MACEDO, 2006, p. 124) Uma de tais críticas é a respeito da impossibilidade cronológica da influência de Sócrates sobre Eurípides, pois Sócrates tem por volta de quatorze anos quando é produzida a primeira peça de Eurípides, e sua importância no contexto intelectual de Atenas não se deu antes de morte de Péricles, em 429 a.C. Por outro lado, as principais obras de Eurípides, suas “criações mais significativas e mais profundas, Medéia e Hipólito, Eolo e Belerofonte, Ino e Telefo” (WILAMOWITZMÖLLENDORFF, 2005, p. 73), não são anteriores a essa data, o que desmente a possível influência, pelo menos direta, do “enamorado monstro e aliciador ateniense” (NIETZSCHE, 2002, p. 229) sobre o poeta trágico. Mesmo o sentido inverso dessa relação, de que as obras de Eurípides, por serem anteriores à plenitude socrática, poderiam ter influenciado sua filosofia, parecem não se verificar, uma vez que, nas poucas vezes em que Eurípides é citado nos escritos de Platão, não lhe é dada atenção especial, e sobre ele se referem os interlocutores em perfeita conformidade com a opinião corrente, não fazendo dele um assunto de maior importância, de modo que não seria sua influência o que pautaria as reflexões socrático-platônicas. A ligação entre Eurípides e Sócrates parece ser proveniente de alguns versos cômicos da época que não provam, do ponto de vista histórico, absolutamente nada. Além de tais versos, temse o texto do oráculo de Delfos conforme passou a nós através da Apologia de Sócrates de Platão:

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 “Sábio é Sófocles, ainda mais sábio é Eurípides, mas de todos os homens o mais sábio é Sócrates.” (WILAMOWITZ-MÖLLENDORFF, 2005, p. 72) Seria natural postular alguma relação entre as figuras mais eminentes daquela mesma época, principalmente porque ambos habitavam a mesma cidade, ainda mais depois da fixação dessa relação pela tradição da comédia, mas nada há que comprove indubitavelmente tal relação, muito menos a profunda influência de um sobre o outro. Podemos perceber, portanto, como as críticas de Wilamowitz-Möllendorff ao texto de Nietzsche são específicas ao contexto da filologia clássica e à exigência de cientificidade dessa área do conhecimento, que se viu extravasada pelas reflexões filosóficas e estéticas de Nietzsche, de maneira que o crítico tenha podido afirmar que o filósofo falava como um pregador de um novo evangelho, como um sacerdote do deus Dionísio, e não como um professor de filologia. À mesma época de tal polêmica, porém, Nietzsche se beneficiará da intervenção pública de Richard Wagner que o defende acusando a esterilidade da filologia como ela vem sendo exercida no ambiente acadêmico alemão, ou seja, de um hermetismo que faz com que os filólogos se dirijam apenas a outros filólogos, donde o sucesso de Nietzsche, que é um daqueles pesquisadores de filologia que se dirige aos leitores de outras áreas. Assim, a abordagem nietzschiana do fenômeno trágico não permanece restrita a um estudo filológico, histórico ou estético, mas liga-se a questões filosóficas abrangentes a qualquer contexto cultural ou período da civilização, pois, ao encarar questões vitais como a morte, a dor e a finitude, seu pensamento se debruça sobre a vida humana em seus questionamentos mais profundos e significativos. (MACEDO, 2006, p. 127) 2 O Abandono da Metafísica Enquanto vinculava sua concepção de arte à ideia de consolo metafísico, conforme se pode ver em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche encontrava-se ainda influenciado pela metafísica de Schopenhauer e pela presença de Richard Wagner que então utilizava como máscaras para suas ideias de juventude. O afastamento dessa esfera se dá paulatinamente, ao longo dos aforismos posteriores a 1874, publicados apenas postumamente, depois no ensaio Wagner em Bayreuth de 1876, para, finalmente, assumir publicamente sua posição contrária a Wagner em 1878, no livro Humano, Demasiado Humano. Além do rompimento com a metafísica, destaca-se a desilusão de Nietzsche com os acontecimentos de Bayreuth em 1876 (HOLLINRAKE, 1986, p. 33), nos quais, ao invés de um público formado por estetas verdadeiros, ansiosos por uma nova forma de arte, pelo ressurgimento dos

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 valores gregos dentro da arte alemã, conforme era a proposta conjunta de ambos, o que se viu na verdade foi o desfile de celebridades, pseudo-intelectuais, os filisteus da cultura, jornalistas, burgueses, representantes da aristocracia decadente, uma plebe semiculta que não era mais qualificada, intelectualmente, do que a massa receptora gerada pelo wagnerianismo que assolou a Europa nos anos seguintes, tendo Parsifal, em 1882 (HOLLINRAKE, 1986, p. 147), como um corolário emblemático desse acontecimento, no qual Nietzsche viu os parasitas da ordem vigente apropriarem-se daquilo que deveriam estar criticando: a supremacia dos valores na modernidade. (MACEDO, 2006, p. 162) Tal rompimento, além de inaugurar uma posição de ferrenho ataque à metafísica e a qualquer tipo de concepção além-mundista, também inaugura um abandono do que fora chamado anteriormente de “metafísica de artista”, como uma metafísica imanente que através da arte alcançaria um outro nível de conhecimento, ou de uma estética do sublime nos moldes schopenhauerianos. (KESSLER, 1998, p. 179) Assim, as críticas a Wagner e a Schopenhauer terminam por ser críticas ao próprio pensamento de Nietzsche, autocríticas com um valor de assepsia, uma limpeza no seu arcabouço teórico mediante a qual o que já não servia mais seria descartado, evidenciando ao seu leitor o percurso de amadurecimento de sua filosofia. (ARALDI, 2004, p. 131) O rompimento com a estética do sublime dará lugar a uma estética afirmativa, que terá vinculações diretas apenas com o conceito de beleza, entendendo a arte de um ponto de vista exclusivamente sensível e remontando a categorias fisiológicas para fundamentar sua valoração (BRUM, 1998, p. 99), como em diversas passagens de Crepúsculo dos Ídolos, por exemplo, obra na qual Nietzsche vai retomar a oposição entre apolíneo e dionisíaco como propulsores estéticos ao trazer a embriaguez como um fator indispensável para a criação artística uma vez que qualquer tipo de embriaguez, propiciada por alguma condição determinada, tem potência criativa, contanto que fortaleça no indivíduo a sensação de plenitude e força. Acima de todas - e aqui ele se aproxima de uma teoria da criação artística como sublimação -, encontra-se a embriaguez em sua forma mais antiga e primitiva, a embriaguez sexual. “Sob o domínio desse sentimento nos abandonamos às coisas, as obrigamos a tomar algo de nós, as violentamos – esse processus é chamado idealizar.” (NIETZSCHE, 2017, p. 69) Por meio dessa idealização, o homem enriquece o mundo com sua própria plenitude, transformando as coisas até que elas reflitam a sua própria potência e perfeição. “Essa transformação forçada, essa transformação naquilo que é perfeito é – arte.” (NIETZSCHE, 2017, p. 70) Essa posição contrasta com uma depreciação do mundo e um enfraquecimento das coisas, que

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 Nietzsche chamará de tendência antiartística, pois enquanto o homem forte goza na arte a sua própria perfeição, um sujeito antiartístico tenderia a menosprezar, a desprezar o mundo e a própria arte por reconhecer neles apenas os indicativos de sua própria fraqueza. Da mesma maneira que é o próprio homem que projeta no mundo a sua própria perfeição que possibilita torná-lo objeto de contemplação estética, assim também a beleza, muito longe de ter uma existência autônoma, vai ser um reflexo de si mesmo sobre as coisas. “Em resumo, o homem se reflete nas coisas, tudo aquilo que espelha sua imagem lhe parece belo: o juízo ‘belo’ é sua vaidade da espécie...” (NIETZSCHE, 2017, p. 75) Com esses argumentos Nietzsche vai explicar fisiologicamente tanto as categorias de belo como de feio. Belo, portanto, será considerado pelo homem tudo o que lembre a si mesmo como medida de perfeição, que reflita a tendência da espécie a se perpetuar, a se ampliar e conservar; belo é, antes de tudo, o que afirme e fortaleça a vida em sua plenitude. O feio, por outro lado, vai estar sempre ligado à degeneração e à putrefação, à impotência. “Do ponto de vista fisiológico, tudo o que é feio enfraquece e deprime o homem.” (NIETZSCHE, 2017, p. 76) Assim, a força da vida humana, a vitalidade da espécie, cresce com o belo e se retrai ante o feio, fazendo com que nada, senão o próprio homem, seja belo, bem como nada possa ser considerado feio se esse mesmo homem não o degenerar. Mas sob a ingenuidade dessa certeza antropocêntrica, repousa a profundidade da arte, que é esse ódio nutrido por tudo o que seja feio, por tudo o que, em outras palavras, rebaixe e enfraqueça o espírito humano. Ao romper com o idealismo metafísico, se pode notar, portanto, uma aproximação paulatina da cientificidade que predominou na intelectualidade do final do séc. XIX, sem, contudo, aceitá-la sem reservas e tendo sempre em vista as suas críticas a esse campo do saber e à racionalidade que a sustenta. Muito mais do que uma nova perspectiva de teorização, Nietzsche apela para fatos científicos mais como uma maneira de justificação de suas afirmações do que como um esquema de pensamento, fazendo da arte uma necessidade vital, fisiológica, ligada ao instinto humano de auto conservação. (BRUM, 1998, p. 100) Em sua autocrítica, Nietzsche (2003, p. 20) lamenta não ter tido em sua juventude, durante a composição de O Nascimento da Tragédia, a coragem de empregar uma linguagem nova, própria e apta a descrever as ideias inovadores que estava trazendo. A modéstia de juventude o obrigou a valer-se das antigas formulações de Kant e de Schopenhauer para expressar verdades que desde sua base estavam diretamente opostas ao idealismo e à metafísica desses seus predecessores, como a consideração da tragédia, particularmente por Schopenhauer, enquanto um meio de ensinar que o mundo não é capaz de fornecer ao homem verdadeira satisfação, não sendo, portanto, digno de

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 apego a ele ou à vida que nele transcorre, ensinando, portanto, a resignação, a fuga do mundo e a desvalorização da vida. Isso contraria radicalmente o espírito dionisíaco, através do qual os gregos em seu pessimismo mostravam sua força, embelezando o mundo através do trágico, desejando a dor de que padeciam. A oposição entre o pessimismo de Schopenhauer e a visão trágica de mundo de Nietzsche espelha a disparidade entre a maneira como ambos percebem não apenas a arte como também a vida humana (BRUM, 1998, p. 104), pois enquanto aquele coloca a arte como um caminho de fuga do homem da dor de sua existência, esse último estará justamente trazendo a arte, a tragicidade inerente a ela, como um meio de afirmação dessa existência, com tudo o que ela possa ter de doloroso e desagradável mas, igualmente, de belo e prazeroso. Em outras palavras, enquanto para Schopenhauer o Uno-Primordial, que aqui pode ser entendido como uma designação do mundo ou da vida, é constituído puramente de dor e sofrimento, para Nietzsche ele é mais do que apenas isso, ele é também júbilo, embriaguez e alegria, pois de seu abismo de contradição brota o prazer dionisíaco através do qual o mundo se redime. (ARALDI, 2004, p. 143) É a diferença entre tomar a arte como via de escape e, por outro lado, como meio de conciliação da vida com o sofrimento, possibilidade apenas sugerida na época de O Nascimento da Tragédia, obra que ainda se encontrava influenciada demais pela metafísica idealista para poder posicionar-se tão claramente contra uma concepção de arte enquanto apaziguamento e consolo dos que sofrem, o que faz com que o arrependimento do autor vá muito além do comprometimento de sua retórica: Mas há algo muito pior no livro, que agora lamento muito mais do que ter obscurecido e estragado com fórmulas schopenhauerianas alguns pressentimentos dionisíacos: a saber, que estraguei de modo absoluto o grandioso problema grego, tal como ele me havia aparecido, pela ingerência das coisas mais modernas. (NIETZSCHE, 2003, p. 21)

E as “coisas mais modernas” com as quais se compromete a questão grega de maneira irremediável são, na verdade, a relação indissolúvel que a publicação de sua primeira obra terá com o wagnerianismo e com a própria figura de Wagner em sua recepção, principalmente o predomínio estético de Wagner em relação ao ressurgimento da música alemã, ou seja, a restauração dos padrões do romantismo alemão através dos dramas musicais de Bayreuth: na visão de Nietzsche, o que mais radicalmente se distancia da arte grega. E sua oposição ao romantismo ataca inclusive o que poderia ser descrito como romântico dentro da própria estrutura de O Nascimento da Tragédia, ou seja, o consolo metafísico da arte trágica, que Nietzsche então nega veementemente. [...] não seria necessário que o homem trágico dessa cultura, em sua autoeducação para o sério e para o horror, devesse desejar uma nova arte, a arte do consolo metafísico, [...]? ‘Não seria necessário?’ Não, três vezes não, ó jovens românticos! Não seria necessário! Mas é muito provável que isso finde assim, que vós assim findeis, quer dizer, ‘consolados’, como

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 está escrito, apesar de toda a autoeducação para o sério e o horror, ‘metafisicamente consolados’, em suma, como findam os românticos cristãmente... Não! Vós deveríeis primeiro aprender a arte do consolo desse lado de cá – [...] (NIETZSCHE, 2003, p. 22)

Em Sobre ‘O Nascimento da Tragédia’, de 1888, Nietzsche afirma que o que fez dele um sucesso em sua época foi justamente o que nele havia de ruim, ou seja, sua vinculação a Wagner e à metafísica idealista, na qual reconhecerá mais de Hegel do que do “fúnebre perfume de Schopenhauer” (NIETZSCHE, 1999b, p. 45). E as lamentações de Nietzsche, em sua autocrítica, quanto a sua falta de coragem para compor versos ao invés de ter feito uma demonstração discursiva sobre as teses de O Nascimento da Tragédia resultariam na criação de Zaratustra, no qual o autor se permitiu dizer cantando o que era em sua filosofia um ataque ao sistema, à racionalidade e ao predomínio do conceitual. (MACHADO, 2001, p. 17) Da mesma maneira, reconhece as inovações importantes que traz a partir desse escrito, como a oposição do socratismo, e aí inclui o cristianismo e o idealismo filosófico, à concepção grega de uma arte dionisíaca como afirmação da vida em sua potência. Contraposta à vontade de verdade, ao instinto desenfreado de conhecimento que é pregado pelo socratismo, Nietzsche vê na arte uma vontade de ilusão, uma forma de apegar-se ao mundo ilusório como oposição ao mundo verdadeiro pregado pelo conhecimento como domínio metafísico. Dessa forma a mentira, enquanto condição necessária da existência, também deve ser afirmada. Mas o caráter ilusório da arte não lhe é exclusivo. A metafísica, a moral, a religião, a ciência – são tomadas em consideração nesse livro apenas como diferentes formas da mentira: com seu auxílio acredita-se na vida. (NIETZSCHE, 1999a, p. 49)

Dessa maneira, a vida, por si mesma, não se justificaria, necessitando que o ser humano, para torná-la justificável, precise inventar para ela um sentido, precise criar um sentido, tornando-se, assim artista, criador de um sentido a partir de uma aparência, criador de uma ilusão. Por essa razão, a vida não se separa da arte, e apenas esteticamente se justifica. Torna-se assim o senhor sobre a matéria, o criador da verdade a partir da ilusão. Em O Nascimento da Tragédia o pessimismo e o niilismo são tomados enquanto verdade, mas, ainda assim, por ter a vida sua justificação estética, a verdade não é o valor mais alto ou mais importante. A vontade de ilusão é, então, o que fundamenta a existência. Esse livro é, dessa forma, até mesmo antipessimista: ou seja, no sentido em que ensina algo que é mais forte do que o pessimismo, que é mais ‘divino’ do que a verdade: a arte. (NIETZSCHE, 1999a, p. 50)

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 A influência de Wagner se faz notar nos últimos capítulos de O Nascimento da Tragédia, principalmente no que se refere à obra de arte total, Gesammtkunstwerk, e na possibilidade de ressurgimento da arte em toda a sua profundidade, nos moldes da tragédia ática, dentro das obras wagnerianas. [...] Richard Wagner, para corroborar-lhe a eterna verdade, imprimiu o seu selo, quando no Beethoven estabelece que a música deve ser medida segundo princípios estéticos completamente diferentes de todas as outras artes figurativas e, desde logo, não segundo a categoria da beleza: [...] (NIETZSCHE, 2003, p. 98)

É através dessa arte dionisíaca, a música, que Nietzsche vê aparecer a possibilidade do consolo estético-metafísico propiciado pela arte. Mas isso não se dará, de forma alguma, através da arte frívola e de cunho operístico, que parece ser a arte predominante da sociedade burguesa na qual esse pensador se insere, e sim uma arte diferente, reconhecidamente distinta dessa arte que é mero entretenimento. Essa arte tem o seu curso solar indo desde Bach a Beethoven, e desse a Wagner (NIETZSCHE, 2003, p. 118), sem qualquer ligação com o que lhe seria imediatamente precedente, o Renascimento ou a Idade Média, e sim como um ressurgimento no espírito alemão de toda a força e ímpeto do dionisíaco na arte e na filosofia alemãs. 3. O Afastamento de Richard Wagner Para um apontamento mais acurado das relações teóricas entre Nietzsche e Wagner, cumpre delimitar as duas fases mais marcantes do pensamento wagneriano. (MACEDO, 2006, p. 29-36) A primeira se dá no contexto das revoluções do final da década de 1840 e início da década próxima, e se reflete através dos textos do mesmo período, cujos principais são A Arte e a Revolução, A Obra de Arte do Futuro, Ópera e Drama. Fortemente influenciado por Feuerbach, nesses textos o compositor prega uma arte afirmativa da vida que poderá atuar como agente revolucionário e meio de intervenção na realidade social, diferenciando-se da cultura operística em vigor então, de futilidade e modismo, e aproximando-se da relação dos gregos com sua arte trágica. Num segundo momento, a partir de 1854, de cunho especificamente metafísico proporcionado pelo pensamento de Schopenhauer, as teorias, como os textos Beethoven e Arte e Religião, respectivamente de 1870 e 1880, e mesmo as obras de Wagner denotam aspectos pessimistas e niilistas, que encaram a arte como um mecanismo de fuga da realidade, como meio de redenção, libertação e emancipação dos tormentos e sofrimentos da vida em sociedade, o que será duramente criticado por Nietzsche, pois aproxima o pensamento wagneriano do cristianismo e da decadência dos valores trágicos que

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 ambos haviam postulado como necessários para uma transvaloração que devolvesse à arte o seu lugar de destaque e importância na civilização ocidental. Após 1854, ao entrar em contato com a filosofia de Schopenhauer, o pensamento wagneriano sofrerá uma reviravolta. (MACEDO, 2006, p. 33) Fortemente entusiasmado com a metafísica estética daquele filósofo, especialmente com a importância que esse dá à música enquanto meio de acesso ao absoluto através da arte (BRUM, 1998, p. 92), o compositor acatará suas ideias, incluindo suas consequências morais, o que claramente se perceberá em toda a produção wagneriana posterior, tanto teórica quanto artística. Essa mudança de perspectiva prepara, de certo modo, o contato de Wagner com o jovem filósofo Nietzsche, naquele momento igualmente entusiasmado com as ideias schopenhauerianas, possibilitando, assim, a fecunda relação de estima e amizade que ambos travaram no início. Iracema Macedo (2006, p. 151) observa adequadamente que se não fosse pela concordância de ambos a respeito da filosofia de Schopenhauer na época em que se conheceram, a influência de Wagner sobre Nietzsche seria muito menos significante, o que se comprova através do rompimento simultâneo com o compositor e repúdio às ideias do filósofo da compaixão, tornando o seu desafeto público pelo músico, no fundo, um ataque à estética idealista de cunho metafísico que o próprio Nietzsche professara no início. No ensaio sobre Beethoven (MACEDO, 2006, p. 40), de 1870, Wagner retomará as críticas à frivolidade da arte contemporânea, destacando o cenário artístico de Paris não como um centro de cultura, e sim de modismos, dominado pelas obras italianas e francesas que, carentes de conteúdo, propiciavam uma crescente decadência da atividade artística. A tal tendência, opõe a figura de Beethoven como um modelo de músico a ser seguido, pois suas obras apresentam a capacidade de exprimir o absoluto, o mundo em si, a ideia, ressaltando que é essa a finalidade última da música, numa forma de argumentação de inspiração claramente hegeliana. Como consequência disso, a música não poderia ser mais expressada ou valorada a partir da categoria de beleza, e sim através do sublime, distanciando-se da estética formulada por ele nos anos de exílio e em seus textos revolucionários, onde tal noção não é sequer citada. Tal incompatibilidade não passará desapercebida por Nietzsche, que em O Caso Wagner tornará evidente a incoerência entre os conceitos de beleza, que vigoram no período em que Wagner está empenhado na revolução social através da arte e dos valores gregos, e o sublime, influência da metafísica idealista de Schopenhauer. Já no Prólogo, o filósofo coloca a diferença básica que o separa do músico, a superação de seu próprio tempo, a desvinculação do contexto histórico e a Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 atemporalidade à qual se pretende. Identificando seu tempo como um tempo de decadência, critica Wagner indiretamente pelo fato de esse vincular-se diretamente a esse decadentismo, ao passo que Nietzsche, ou, como ele mesmo coloca, o filósofo nele, consegue ultrapassar esse tempo e superálo, o que seria, assim, o mais alto escopo de um filósofo. E no capítulo Nós, os Antípodas de Nietzsche contra Wagner, opõe-se a esse através da afirmação de que toda filosofia, todo pensamento, é um tipo de resposta ao sofrimento, mas que se distingue aquele que sofre por abundância de vida daquele que sofre por uma fraqueza dela, sendo que Nietzsche se identificaria com o primeiro e deixaria a esse segundo caso as manifestações niilistas e cristãs da tragédia wagneriana. Enquanto os superabundantes desejariam uma arte dionisíaca que afirme uma perspectiva trágica da vida, os decadentes precisariam de uma arte redentora, plácida, calma e entorpecente. E o niilismo representado por Wagner, que Nietzsche diagnostica através de uma nova interpretação de suas obras, onde vê transparecerem os valores cristãos e idealistas, totalmente contrários aos valores gregos que o compositor defendera outrora em suas produções teóricas, aproxima Wagner do socratismo e de toda a tendência decadente e negadora da vida que ambos haviam criticado na modernidade. 4 Modernidade e Decadência E o próprio Nietzsche só pode ser detector dessa decadência por ser ele mesmo um decadente, e, como afirma em Ecce Homo (2008, p. 24), também o seu contrário. Através da experiência do cristianismo, do socratismo e da decadência cultural dos tempos modernos, Nietzsche se declara apto a julgar com imparcialidade o que é força e o que é fraqueza. Até mesmo a doença que o debilita, momento de aproximação de sua filosofia com o corpo e a corporeidade, denunciando o quanto ela é, com todo o rigor do termo, estética, serve como um pressuposto que o habilite a fazer tal diagnóstico de sua época. (COPLESTON, 1979, p. 57) Segundo ele, apenas aquele que já esteve doente e debilitado pode ter a verdadeira noção da saúde, da força e da potência. E em virtude justamente dessa doença da decadência é que podemos ver sua relação com Wagner não apenas no sentido de uma oposição, mas também no sentido de uma afinidade, através da qual Nietzsche se identifica como um artista da decadência, que também padece do sofrimento da vida, mas em um sentido muito distinto do de seus antípodas, num sentido afirmativo que prescinde de consolo. O ponto mais crucial de tais críticas está na relação da metafísica com um enfraquecimento da vida, de maneira que o idealismo proporcionaria uma degeneração da potência criadora dando lugar a um instinto de conhecimento hipertrofiado.

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 É preciso invocar prodigiosas forças contrárias, para fazer frente a esse natural, muitíssimo natural progressus in simile, à evolução do homem rumo ao semelhante, costumeiro, mediano, gregário – rumo ao vulgar! (NIETZSCHE, 2004, p. 183, grifo do autor)

Nietzsche aponta (2004, p. 48) as tendências modernas como uma degeneração de tudo aquilo que serviria para aprimorar a espécie humana, ou seja, a obrigatoriedade da felicidade e da comodidade proporcionadas pela falsa segurança da sociedade moderna como um fator de aniquilamento na humanidade de sua força, tanto de sua força criadora quanto de sua força destrutiva. É necessários medir as épocas segundo suas forças positivas – e, fazendo desse modo, essa época da Renascença, tão pródiga e tão rica em fatalidade, aparece como a última grande época, e nós, homens modernos, com nossa ansiosa previsão pessoal e nosso amor ao próximo, com nossas virtudes de trabalho, de simplicidade, de equidade e de exatidão – nosso espírito colecionador, econômico e maquinal – vivemos em uma época de fraqueza. (NIETZSCHE, 2017, p. 87)

Ainda que o foco principal do pensamento estético de Nietzsche no período de sua filosofia de juventude, que poderíamos chamar de período helenista (NETO, 2000, p. 23) e cuja maior expressão intelectual é justamente O Nascimento da Tragédia, seja em relação aos ideais estéticos gregos, de maneira alguma as reflexões dessa época deixam de lado uma crítica à modernidade. Segundo Rodrigo Duarte (1994, p. 75-90), a cultura da modernidade tende a se tornar uma cultura do divertimento, da superficialidade, do entretenimento, permeada por espectadores desatentos e incapazes de um julgamento estético próprio, pois estão acostumados, em sua dependência intelectual, a se pautarem pela opinião dos críticos, pela tendência em voga e pela novidade. Esse contexto cultural é nitidamente determinado pelo predomínio de setores da sociedade preocupados apenas com a divulgação e a aceitabilidade de suas produções culturais de gosto duvidoso e focados prioritariamente na diversão. Essas considerações remetem a uma possível afinidade entre o pensamento de Nietzsche e alguns aspectos da crítica cultural de Adorno (DUARTE, 1999, p. 81-94), exemplificadas pelo tom “frankfurtiano” da passagem que se segue. Enquanto a crítica chegava ao domínio no teatro e no concerto, o jornalista na escola, a imprensa na sociedade, a arte degenerava a ponto de tornar-se um objeto de entretenimento da mais baixa espécie, e a crítica estética era utilizada como meio de aglutinação de uma sociabilidade vaidosa, dissipada, egoísta e, ademais, miseravelmente despida de originalidade, [...] (NIETZSCHE, 2003, p. 133)

Vinculando a decadência da arte à decadência da própria vida humana, é nos gregos que serão buscados valores que possibilitem uma recuperação da dignidade da vida e de sua aceitação (BRUM, 1998, p. 101), recuperando a importância da sensibilidade e da realidade sensível, e com elas a importância do corpo e da vida humana, para poder fundar uma mudança na sociedade e nos

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 valores ocidentais, uma mudança que possibilite uma existência mais plena de sentido, mais digna e feliz para os seres humanos. (COPLESTON, 1979, p. 62) Para tanto, será necessária uma estética que entenda a arte do ponto de vista do próprio artista, como um resultado das tensões internas de um sujeito autônomo e criador. Assim, na concepção estética madura de Nietzsche, a arte será, como veremos, uma manifestação do excesso de potência, uma celebração da vida, uma afirmação da existência e do contentamento em estar vivo, distanciando-se da concepção da arte como fuga da realidade inspirada pela metafísica schopenhaueriana da época de juventude. (KESSLER, 1998, p. 13) Considerações Finais Um dos argumentos principais de O Nascimento da Tragédia (NIETZSCHE, 2003, p. 18), e não desacreditado em nenhuma das autocríticas posteriores, é o de que o mundo deve ser encarado como um fenômeno estético e não moral. Por outro lado (ANSELL-PEARSON, 1997, p. 21), o assim chamado ‘esteticismo’ de Nietzsche, uma das críticas possíveis a O Nascimento da Tragédia, não se projeta no sentido de colocar a humanidade para além das condutas morais, e sim de, na oposição entre política e cultura, dar a primazia a essa última, e não ao moralismo estático daquela. Essa questão, portanto, no pensamento de Nietzsche, não é especificamente sobre uma revolução político-social, e sim uma mudança educacional e cultural, fundamentada num novo modelo de pensamento, ou nos termos de Nietzsche, numa transvaloração dos valores. O que Nietzsche propõe é uma cultura, e por consequência um Estado, que seja, nos moldes do que ele imaginava ser o Estado grego da época trágica, um meio para a realização da cultura e da grandeza humanas, e não uma política que se dedique unicamente à satisfação material. O niilismo moderno seria, portanto, enquanto fenômeno cultural, a incapacidade de uma estrutura social de dar as respostas adequadas às demandas que a vida traz consigo, dificultando a atribuição de sentido a essa existência. (ANSELL-PEARSON, 1997, p. 48) A experiência de uma crise moral ou metafísica na qual se opera uma disjunção entre a maneira como os homens encaram o mundo e o aparato conceitual no qual estão inseridos para que possam se localizar nesse mundo não é exclusividade moderna, pois é essa mesma crise o que Nietzsche aponta no ocaso da cultura trágica. É uma inadequação entre a experiência de mundo e as ferramentas herdadas da cultura para interpretar e adequadamente significar tais experiências. Os sintomas disso, já apontados por Nietzsche, são angústia social, degenerescência fisiológica, corrupção, enfraquecimento da cultura,

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 pessimismo generalizado. O niilismo é encarado então tanto como experiência psicológica, como no caso do pessimismo grego, quanto como situação histórico-social e cultural, como no caso da crise da modernidade, pois em ambos se verifica o ponto comum do colapso dos valores morais que sustentam a sociedade de uma forma coesa e harmônica. A tarefa da cultura seria, portanto, a de vencer esse niilismo, falseando a sabedoria do deus Sileno: “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! [...] O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (NIETZSCHE, 2003, p. 36, grifo do autor)

REFERÊNCIAS: ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: Uma introdução. [An Introduction to Nietzsche as Political Thinker] Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Consultoria de Fernando Salis. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997. ARALDI, Clademir Luís. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Unijuí Editora, 2004. BRUM, José Thomaz. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. COPLESTON, Frederick. Nietzsche, filósofo da cultura. Tradução de Eduardo Pinheiro. Porto, Portugal: Livraria Tavares Martins, 1979. DUARTE, Rodrigo. Adorno e Nietzsche: aproximações. In: PIMENTA NETO, José Olímpio; BARRENECHEA, Miguel Angel (orgs.). Assim falou Nietzsche. Rio de Janeiro, Sette Letras/UFOP, 1999. DUARTE, Rodrigo. Som musical e “reconciliação” a partir de “O nascimento da tragédia” de Nietzsche. In: KRITERION. Belo Horizonte, n.89, p. 74-90, 1994. HOLLINRAKE, Roger. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. KESSLER, Mathieu. L’estétique de Nietzsche. Paris: Presses Universitaires de France, 1998. MACEDO, Iracema. Nietzsche, Wagner e a Época Trágica dos Gregos. São Paulo: Annablume, 2006.

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Nietzsche contra Wagner, contra os filósofos e contra ele mesmo, pp. 180-194 MACHADO, Roberto (org.). Nietzsche e a polêmica sobre “O Nascimento da Tragédia”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. MACHADO, Roberto. Zaratustra: Tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. NETO, Aurélio Guerra. Algumas reflexões em torno de O Nascimento da Tragédia de Nietzsche. In: LINS, Daniel; COSTA, Sylvio de Souza Gadelho; VERAS, Alexandre (orgs.). Nietzsche e Deleuze: Intensidade e Paixão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 23-44. NIETZSCHE, Friedrich W. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 1a reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 2a ed. 11a reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos Ídolos: ou como filosofar com o martelo. [Gotzendämmerung: oder wie man mit dem Hammer philosophiert] Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce Homo: De como tornar-se o que se é. [Ecce Homo: Wie man wird, was man ist.] Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. [Die Geburt der Tragödie] Tradução, notas e posfácio de Jaime Guinsburg. 2a ed. 7a reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. NIETZSCHE, Friedrich W. A Arte em “O Nascimento da Tragédia”. In: Obras Incompletas. OS PENSADORES. Seleção de Textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido. São Paulo: Nova Cultural, 1999a, p. 47-48. NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre “O Nascimento da Tragédia”. In: Obras Incompletas. OS PENSADORES. Seleção de Textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido. São Paulo: Nova Cultural, 1999b, p. 43-46.

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O DUALISMO LIBERAL VERSUS REPUBLICANO SOBRE A QUESTÃO DA LIBERDADE: UMA ANÁLISE BASEADA NAS TEORIAS LOCKEANA E ROUSSEAUNIANA Ana Beatriz Borges R. Duarte1

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo sistematizar as discussões acerca dos conceitos liberal e republicano de liberdade. Para nortear o debate, foram retomadas as ideias clássicas de Locke e Rousseau sobre a liberdade, o direito e o governo, no intuito de basear os conceitos negativo e positivo de liberdade, respectivamente. Para os liberais é essencial que a individualidade seja mantida íntegra, sem qualquer tipo de coerção, da autoridade pública ou não, sendo a lei o único limitador da ação humana, para a garantia dos direitos individuais. A ênfase liberal não está no tipo de governo, mas nos limites que o governo pode exercer sobre os indivíduos. Para os republicanos a liberdade está no autogoverno, condicionado à capacidade racional de subjugar os instintos, em busca do desenvolvimento da sociedade. Pontos de vista opostos e/ou congruentes apresentam limitações e positividades em cada uma das duas concepções. Na contemporaneidade, a discussão permanece relevante na intenção de refletir sobre o conceito de liberdade melhor adaptável à sociedade democrática moderna. 1 Mestra e Doutoranda em anabeatriz.bramos@gmail.com.

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade; Liberalismo; Republicanismo. ABSTRACT: The present article aims to systematize the discussions about the liberal and republican concepts of freedom. To guide the debate, Locke and Rousseau's classic ideas about freedom, law and government were taken up, in order to base the negative and positive concepts of freedom, respectively. For liberals, it is essential that the individuality be kept intact, without any type of coercion, by public authority or not, being the law the only limiter of human action, for the guarantee of individual rights. The liberal emphasis is not on the type of government, but on the limits that the government can exercise on individuals. For Republicans, freedom is in self-government, conditioned to the rational capacity to subdue instincts, in search of the development of society. Opposite and/or congruent points of view present limitations and positivities in each of the two conceptions. In contemporary times, the discussion remains relevant in order to reflect on the concept of freedom better adaptable to modern democratic society. KEYWORDS: Freedom; Liberalism; Republicanism.

Introdução

Segundo Berlin (1998), a influência exercida por embates políticos na história da humanidade tem menos a ver com posicionamentos partidários opostos, e mais com o resultado de debates filosóficos sobre questões morais, que acabam por influenciar gerações em seus ideais políticos, uma vez que a Ciência Política, diferente de outras ciências, tem em sua essência a característica do questionamento constante das bases, ou dos fins que envolvem a vida, de uma maneira geral. Uma das questões predominantes da Ciência Política, para Berlin, é a questão da liberdade. Dentre os vários significados que a palavra pode apresentar, os dois principais, responsáveis por teorias políticas fundamentais, tem a ver como o que o autor chama de aspectos negativo e positivo. Ao primeiro aspecto, Berlin atribui a concepção dos liberais – como exemplo, os ingleses Locke e Mill e os franceses Constant e Tocqueville – em que o homem possui uma área privada cuja integridade deve ser mantida sem qualquer tipo de coerção, da autoridade pública ou não, sendo a lei o único limitador de sua ação para a garantia dos direitos individuais. Para os liberais, a coerção não está apenas em atitudes deliberadas contra um ato privado, mas também, em arranjos institucionais, capazes de tornar ações não proibidas em proibitivas. A extensão dessa área privada, porém, mostra-se questão não fechada (qual o mínimo de liberdade individual que se deve manter?). Além disso, a ênfase na extensão da área privada da vida não necessariamente tem a ver com o tipo

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 de governo que os indivíduos desejam para si, e sim, com os limites que esse governo pode exercer sobre eles. Ao segundo aspecto (positivo), atribui o ideal “do homem como senhor de si mesmo”. Nesse sentido, a liberdade não tem tanto a ver com a margem de espaço que o homem tem para fazer o que deseja, mas com a autonomia que dispõe para decidir o que é melhor para si; seu autogoverno. Atrelada a isso está a capacidade de colocar a razão sobre os instintos, num intento de autodomínio e consequente desenvolvimento humano e social. É aceitável, portanto, segundo essa visão, a coerção da sociedade sobre o indivíduo, justificada pela busca de mais altos níveis de desenvolvimento (pelo próprio “bem” do indivíduo). Esse aspecto divide-se em duas vertentes, chamadas “cidadela interior” e “auto realização”2. Aqui, interessa-nos focar na vertente da cidadela interior, ou seja, a forma de ver a liberdade “como resistência (ou fuga) ao desejo não realizável e como independência da esfera da causalidade” (BERLIN, 1998, p. 241), cujo conceito aproxima-se das teorias Rousseauniana e Kantiana. Em outras palavras, liberdade, segundo essa visão, é obediência a si próprio, ou às leis formuladas racionalmente pelos próprios cidadãos a elas submetidos. Anterior a Berlin, Constant já havia introduzido uma discussão acerca dos dois conceitos de liberdade. Segundo Constant (2015) a principal diferença entre a liberdade dos modernos em vista da dos antigos3 consiste em que os modernos valorizam a esfera individual da vida como inerente apenas à pessoa, não tendo o Estado qualquer ingerência sobre ela, ao passo que para os antigos, a liberdade estava no poder participativo na vida pública, por mais que isso custasse uma invasão do Estado à esfera privada. O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios. (CONSTANT, 2015, p. 3).

Tal diferenciação dá-se, segundo Constant (2015), principalmente pelo advento do comércio. Antes do comércio, os povos antigos conquistavam seus interesses através da guerra. Como consequência, os estados tinham mão-de-obra escrava suficiente para os serviços diversos necessários, o que proporcionava aos cidadãos tempo e disposição para tratar dos assuntos relacionados à vida pública.

2 A auto realização advém da teoria racionalista (de Spinoza a Hegel): Compreender racionalmente os obstáculos para deles se apossar, tornando-os elementos da própria vontade. (BERLIN, 1998) 3 Nesse caso os conceitos moderno e antigo referem-se aos conceitos liberal e republicano respectivamente.

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 Para Constant (2015), o comércio permite às nações modernas, grandes em tamanho e complexidade, obterem seus desejos de modo pacífico, o que acarreta em homens livres exercendo seus trabalhos cotidianamente. Nessa nova configuração da vida, o homem tem outras prioridades, que incluem cuidar daquilo que é seu, suas responsabilidades e propriedades individuais. Dessa forma, o homem, como ínfima parte de uma imensa sociedade, já não tem mais poder decisivo sobre as questões do Estado – tornando-se quase que insignificante politicamente – e também não dispõe mais de tempo suficiente para questões públicas. Esse artigo tem como objetivo abarcar os conceitos de liberdade dos liberais políticos e dos republicanos, fazendo um contraponto entre eles. Para dar conta da discussão, os dois conceitos de liberdade serão abordados a partir das teorias políticas Lockeana e Rousseauniana, na intenção de representar os dois pontos de vista, respectivamente. I. Locke e o conceito liberal de liberdade. A liberdade em Locke está atrelada ao conceito pré-político do estado de natureza, onde o homem é um ser livre, social e moral. Portanto, liberdade e propriedade são conceitos que precedem à autoridade política, e por isso, por ela não podem e não devem sofrer interferências. Ao defender a liberdade individual, Locke jurisdifica a soberania, de modo que o direito passa a ser uma garantia para que o cidadão se defenda ante o soberano. Dessa forma, Locke apresenta o direito como um substituto da moralidade, ao passo que as sociedades complexas substituem as sociedades primitivas: enquanto nas sociedades primitivas a moralidade é suficiente para dirimir conflitos, nas sociedades complexas a pluralidade de moralidades exige uma convenção sobre os princípios que regerão o julgamento de diversas questões. Dessa forma, o direito surge como convenção. Nessa intenção de proteger a propriedade, torna-se muito presente no liberalismo Lockeano a separação entre o público e o privado. Tal concepção entende a representação não como o processo pelo qual a identidade do povo é formada num soberano que dita a vontade geral (como em Hobbes), mas como o processo através do qual os indivíduos têm seus interesses pré-concebidos representados no plano do Estado (povo antecede o Estado). Tais conceitos tornam-se muito claros no Segundo tratado sobre o governo civil, em que Locke está preocupado em explicar a gênese do governo, por considerar que o poder político difere, em sua natureza, de todos os outros poderes exercidos na sociedade. Por poder político, então, eu entendo o direito de fazer leis, aplicando a pena de morte, ou, por via de conseqüência, qualquer pena menos severa, a fim de regulamentar e de preservar

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 a propriedade, assim como de empregar a força da comunidade para a execução de tais leis e a defesa da república contra as depredações do estrangeiro, tudo isso tendo em vista apenas o bem público. (LOCKE, 2018, p. 35)

Locke considera que o poder político tem um objetivo específico – regulamentar e preservar a propriedade – através de meios concernentes apenas a ele – elaboração e execução das leis – visando o bem público. O Estado de natureza em Locke é uma condição de igualdade4 entre os homens. Para manter a paz e a conservação da humanidade, nesse estado, o homem tem o direito e o dever de punir os transgressores das leis naturais, assegurando a ordem. Então para Locke, a liberdade não é permissividade. Não havendo hierarquia política, não há o direito de se autodestruir, ou destruir o próximo. A lesão ao próximo só é justificada para fazer justiça a um delinquente. Assim, no estado de natureza, um homem adquire um poder sobre o outro; mas não um poder absoluto ou arbitrário para tratar um criminoso segundo as exaltações apaixonadas ou a extravagância ilimitada de sua própria vontade quando está em seu poder; mas apenas para infringir-lhe, na medida em que a tranqüilidade e a consciência o exigem, a pena proporcional a sua transgressão, que seja bastante para assegurar a reparação e a prevenção. (LOCKE, 2018, p. 37)

Além do direito de punir, o homem tem, no estado de natureza, o direito de buscar a reparação por parte do autor da infração, caso tenha sido ele o alvo do dano em questão. Ou seja, esse é um direito individual, e somente a pessoa lesada tem o poder de renuncia-lo. Para Locke a lei da natureza e suas medidas de punição são absolutamente inteligíveis e claras, assim como as leis positivas da comunidade civil. A questão que torna a ordem impossível em longo prazo, no estado de natureza, é, para Locke, a inevitável parcialidade dos homens no ato de punir, motivada pela “má natureza, a paixão e a vingança” (2018, p. 38). Ou seja, os homens tem a tendência de julgar em causa própria, sendo suscetíveis à punição excessiva, causando a confusão e a desordem. O governo civil seria, nesse sentido, a solução para a parcialidade humana. Porém, Locke defende que um poder onde apenas um homem comanda uma multidão com a liberdade de julgar em causa própria e fazer com os súditos o que melhor entender, sem qualquer questionamento ou controle, devendo ser obedecido independente das circunstâncias, não configura o poder político. Nesse caso, o estado de natureza seria melhor que o governo (em casos de governos despóticos). Em outras palavras, o poder político

4 Nesse caso, igualdade refere-se à igualdade política. Havendo moralidade no estado de natureza, há, consequentemente, hierarquia em outras estâncias da vida, como na família, por exemplo. (LOCKE, 2018)

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 é aquele que assegura a liberdade, enquanto o poder absolutista configura um governo autoritário e incontrolável, presente em outro estado: o estado de guerra. O estado de guerra seria aquele em que o homem tenta colocar o outro sob seu poder absoluto para força-lo a algo contrário ao seu direito de liberdade, fazendo-o escravo. Ou seja, no estado de natureza os homens gozam de liberdade, quando vivem segundo a razão, de acordo com as leis da natureza. No estado de guerra o homem quebra as leis da natureza, furtando o direito de liberdade do outro. De modo que: Evitar este estado de guerra (que exclui todo apelo, exceto ao céu, e onde até a menor diferença corre o risco de chegar, por não haver autoridade para decidir entre os contendores) é uma das razões principais porque os homens abandonaram o estado de natureza e se reuniram em sociedade. Pois onde há uma autoridade, um poder sobre a terra, onde se pode obter reparação através de recurso, está excluída a continuidade do estado de guerra e a controvérsia é decidida por aquele poder. (LOCKE, 2018, p. 40)

Ou seja, o poder político tem como função evitar o estado de guerra, assegurando a liberdade individual através das leis. De maneira que no estado de natureza a liberdade é assegurada pelas leis da natureza, e na sociedade civil, pelas leis civis, estando edificada sob o poder legislativo estabelecido por consentimento na comunidade civil (não arbitrário). Portanto, para Locke, a liberdade não é o direito de cada um fazer o que melhor entender, sem qualquer lei para o conter, mas sim a existência de uma lei permanente e comum a todos os membros de uma sociedade, instituída pelo poder legislativo nela estabelecido. A liberdade seria seguir a própria vontade em todas as questões não contempladas na lei “e não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem: como a liberdade natural consiste na não submissão a qualquer obrigação exceto a da lei da natureza.” (2018, p. 41). Para Locke a liberdade está associada à propriedade. No estado de natureza, os homens têm direito à propriedade sem que lhe sejam colocados limites por parte do governo. Primeiramente, o homem possui a si mesmo, e em consequência, tudo o que a sua pessoa produz, transformando a natureza, passa a ser sua propriedade. Logo, a propriedade está naquilo em que foi empregado trabalho. Assim sendo, a propriedade privada é consequência da própria vida humana, que envolve trabalho, com vistas, primeiro à subsistência, e depois aos desejos de acumulação. Para poder acumular cada vez mais, sem que lhes sejam imputados limites, os homens concordam em atribuir valor a objetos de pouca utilidade (dinheiro), para quantificar o volume de suas posses, permitindo a negociação. Essa concordância dos homens consente com uma posse desproporcional e desigual

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 da propriedade. Difere dessa realidade o governo absolutista, em que “as leis regulam o direito de propriedade, e a posse da terra é determinada por constituições positivas.” (2018, p. 48) Locke associa também a liberdade à igualdade. Mas para ele a igualdade não tem a ver com as capacidades, habilidades, precedência e méritos dos homens. Esses diferem entre si. A igualdade está relacionada ao fato de que no estado de natureza cada homem é senhor da sua liberdade natural, sem estar sujeito à vontade de outro homem. Por isso, na existência de um poder político, a lei deve ser o grande defensor da liberdade, ao impedir que os homens sejam subjugados, e garantir que tenham plenos direitos sobre suas propriedades. De forma que, mesmo que possa ser errada, a finalidade da lei não é abolir ou conter, mas preservar e ampliar a liberdade. Em todas as situações de seres criados aptos à lei, onde não há lei, não há liberdade. A liberdade consiste em não se estar sujeito à restrição e à violência por parte de outras pessoas; o que não pode ocorrer onde não há lei: e não é, como nos foi dito, uma liberdade para todo homem agir como lhe apraz. (Quem poderia ser livre se outras pessoas pudessem lhe impor seus caprichos?) Ela se define como a liberdade, para cada um, de dispor e ordenar sobre sua própria pessoa, ações, possessões e tudo aquilo que lhe pertence, dentro da permissão das leis às quais está submetida, e, por isso, não estar sujeito à vontade arbitrária de outra pessoa, mas seguir livremente a sua própria vontade. (LOCKE, 2018, P. 50)

Assim, a razão é o meio pelo qual o homem torna-se capacitado a exercer sua liberdade, já que esta o possibilita interpretar a lei e agir conforme o que ela determina. Logo, o poder político é um poder instituído pela convenção dos homens, que se submetem à lei, para garantir sua liberdade e, em consequência, o direito absoluto sobre suas propriedades. De sorte que uma sociedade política é um corpo político onde “a maioria tem o direito de agir e decidir pelo restante.” (LOCKE, 2018, p. 61). Nessa sociedade política, para Locke, o poder supremo é o Poder Legislativo, sendo ele formado por uma ou mais pessoas, e a forma de governo dele depende. O Poder Legislativo não pode ser exercido de maneira absolutamente arbitrária, e deve agir de acordo com leis promulgadas e juízes reconhecidos. “Por isso, seja qual for a forma de comunidade civil a que se submetam, o poder que comanda deve governar por leis declaradas e aceitas, e não por ordens extemporâneas e resoluções imprecisas.” (2018, p. 72). Locke defende que o Poder Legislativo deve ser diferente do Executivo – aquele ao qual se atribui a execução das leis. Este último é imprescindível, pois, se não há sempre a necessidade de se fazer novas leis, há sempre a necessidade de executá-las. Mesmo assim, por mais que o executivo tenha prerrogativa para agir na ausência da lei, com vistas ao bem comum, o poder supremo sempre permanece sendo o legislativo.

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 Quando o poder instituído excede o direito legítimo ocorre a tirania. Nesse caso, o governante coloca o seu bem particular acima do bem comum. Segundo Locke, esse desvio pode ocorrer não apenas nas monarquias, mas também em outras formas de governo. Como a liberdade individual é um direito de nascença, o direito à propriedade também é considerado um direito natural, e, portanto, não pode estar sujeito a qualquer governante. Caso isso ocorra, Locke defende que seja feita uma rebelião para abalar o poder, que, nesse caso foi instituído pela força e não pelo direito. Esse recurso extremo, entretanto, deve ser utilizado apenas quando a questão não puder ser resolvida com o apelo à lei. Qualquer alteração não consentida do Legislativo, para Locke, configura uma dissolução do governo, e, portanto, abre precedentes para a desobrigação. O povo retorna à sua liberdade original, e assim, pode constituir um novo Legislativo e resistir ao governo ilegítimo: “este poder que o povo detém de restaurar sua segurança instaurando um novo legislativo, quando seus legisladores agem contra a sua missão, invadindo sua propriedade, é a melhor defesa contra a rebelião e o meio mais eficaz para impedi-la.” (2018, p. 97) II. Rousseau e o conceito republicano de liberdade A liberdade, que com o advento do liberalismo político passa a significar preservação da autonomia individual, volta às concepções originárias dos teóricos antigos com o republicanismo rousseauniano. Rousseau aproxima a questão da liberdade à vida política, como algo que se sobrepõe aos desejos individuais. Para Rousseau (1978), a questão mais importante não é a origem do governo, mas sim a sua legitimação. Segundo o autor, a força não é suficiente para que o homem se submeta ao poder, e a ordem social é um direito fundamentado sobre convenções. Segundo Rousseau, a família é o primeiro modelo das sociedades políticas, porque mesmo após a desobrigação de permanecerem unidas (idade da independência), o fazem por convenção. Ou seja, para Rousseau, a força não legitima o poder, pois não produz o direito, e a obediência é devida apenas a autoridades legítimas, fundadas sob as convenções e não por imposição. Assim: “Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre seu semelhante, e pois que a força não produz nenhum direito, restam as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens.” (1978, p. 15)

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 Vemos que Rousseau não rompe drasticamente com os teóricos modernos no que diz respeito ao direito, pois considera que o direito é a convenção sob a qual o poder político se legitima. O estado de natureza rousseauniano, assim como o hobbesiano, é um estado de natureza pré-político e pré-moral, em que todos nascem iguais e livres, e, portanto, não há margens para a escravidão, considerando as leis naturais. Assim, difere da visão aristotélica, segunda a qual uns nascem para a escravidão e outros para o governo. Rebatendo Grotius, Rousseau (1978) apresenta a ideia de que a tranquilidade não basta para se viver bem; então, um homem não se dá gratuitamente, pois isso seria absurdo e inconcebível, de maneira que a partir de um ato tido como loucura, também não é possível instituir o direito. Além disso, defende que a guerra (que, para Grotius, justificaria a escravidão) não se dá pelo estado de natureza, afinal, nesse estado os homens não mantêm relações que justifiquem guerra ou paz, mas independência uns dos outros. Para Rousseau, a única coisa que faz um povo ser um povo é a convenção, já que “a lei da pluralidade dos sufrágios é por si mesma um estabelecimento de convênio, e supõe ao menos uma vez, a unanimidade” (1978, p. 23). Dessa forma, o pacto social significa agir em comum acordo para determinado fim, qual seja, salvaguardar a si mesmo e suas propriedades. Então, o Contrato social “permite encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente” (1978, p. 24). Aqui surge o ponto crucial que diferencia a teoria rousseauniana do liberalismo político. Aparentemente, Rousseau defende a mesma liberdade individual dos liberais, porém, há uma diferença no seu conceito de liberdade, que será explicitado no Contrato Social. Nesse sentido, é importante para Rousseau a diferenciação da vontade do indivíduo e a vontade de cidadão. Essa última equivale à vontade geral, que visa o bem comum, e está atrelada à razão. Para Rousseau, a soberania está no povo, que em conjunto, decide as convenções. Logo, o poder soberano garante que, caso alguém se recuse a obedecer à vontade geral, o povo pode, em conjunto, constrangê-lo, “forçando-o a ser livre”, ou seja, protegendo-o da dependência pessoal. Ou seja, para Rousseau, o estado civil dá ao homem uma liberdade moral inexistente no estado de natureza, tornando um ser estúpido num ser inteligente, livre da dependência de si mesmo.

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 No estado civil, as terras dos particulares se transformam em território público. Os monarcas são tidos como reis de um território e não apenas chefes de homens, pois “conservando o terreno, sentem-se mais seguros para conservar os habitantes” (1978, p. 34). Para Rousseau, a base do sistema social pode se resumir no seguinte: (...) o pacto fundamental, ao invés de destruir a igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade entre os homens, fazendo com que estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em talento, se tornem iguais por convenção e por direito (ROUSSEAU, 1978, p. 35)

Em relação à soberania, Rousseau defende que somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado, e o faz para o objetivo do bem comum. Para Rousseau, o soberano é um ser coletivo. Ele pode transmitir o poder, mas não a vontade. Se o povo promete simplesmente obedecer, dissolvese (perde a qualidade de povo). No momento em que há um senhor, extingue-se a figura do soberano. Dessa forma, as ordens do chefe só podem ser consideradas vontade geral quando o soberano não se opuser. Nesse caso, fica claro que a liberdade consiste em ter uma vontade guiada para o bem comum, estritamente relacionada a um senso moral possível apenas sob a convenção de um povo. No entanto, essa vontade pode equivocar-se, e isso se dá pelo fato de que a vontade de todos difere da vontade geral, de forma que a primeira é a soma de todas as vontades individuais e a segunda visa sempre o interesse comum. Assim, uma anula a outra. Daí, para Rousseau, as associações podem ser perigosas, pois, quando muito grandes, podem redundar na supremacia de certa vontade individual sobre a vontade geral. Logo, para haver vontade geral é preciso que não haja, no Estado, “sociedade parcial e que cada cidadão só manifeste o próprio pensamento” (1978, p. 42). Segundo Rousseau, a soberania seria uma força universal e compulsória para mover e dispor cada uma das partes do estado da maneira mais conveniente para o todo. Do mesmo modo como uma vontade particular não poder representar a vontade geral, a vontade geral não pode decidir sobre um fato particular ou sobre um homem em particular. Por isso, ao decidir sobre o caso particular de um homem, o povo não age como soberano e sim como magistrado. Ou seja, o que generaliza a vontade é “menos o número de vozes e mais o interesse comum que as une” (1978, p. 45). Peça chave para a manutenção do Estado, segundo Rousseau, é a legislação. A lei determina o que o Estado deve fazer para se conservar. Essa lei deve ser geral, tratando todos os cidadãos em Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 conjunto, como um corpo, bem como as ações, que devem ser tratadas de maneira abstrata, e não particular. Para Rousseau, o que torna o Estado uma República é o fato de ser regido por leis, e não a sua forma de administração; logo o Estado regido por leis é o Estado legítimo. Nesse caso, é essencial a figura do legislador. É ele que tem a capacidade de transformar cada homem em uma parte de um todo maior, a instituição. Para Rousseau, o legislador é um homem extraordinário; não é nem magistrado nem soberano. Sua função é muito particular. Para legitimála, ele precisa recorrer a uma autoridade superior, de outra ordem, capaz de convencer os homens sem a força. Por isso os grandes legisladores, fundadores de cidades, recorreram ao poder divino. Mas, segundo Rousseau, sua sabedoria é de fato o que lhe torna durável. Para ele, não significa que política e religião tenham objetivos comuns, mas que “na origem das nações uma serve de instrumento à outra” (1978, p. 61). Para Rousseau, em geral, um pequeno Estado é proporcionalmente mais forte que um grande, devido à demanda por uma administração mais simples e menos onerosa. Além disso, nos grandes Estados, o povo não se identifica sempre da mesma maneira com as leis, o que requer leis diferentes de acordo com diferentes províncias. Porém, um contexto de chefes comuns e leis diferentes está fadado à queda, pois os chefes acabam por repassar a administração a comissários. Nessa concepção, Rousseau está tendendo ao modelo Espartano de governo, em detrimento do romano. De maneira geral, para Rousseau, o objetivo de todo sistema de legislação deve ser liberdade e igualdade. Cada povo, de acordo com sua maturidade, necessita de um determinado sistema de legislação, de maneira que não existe sistema melhor que o outro, mas sim, sistemas melhores para cada povo. Dessa forma, o que torna a constituição de um estado sólida e durável é o fato de as relações naturais e as leis convergirem sempre entre si. Para Rousseau, o povo tem o direito de mudar as leis políticas (leis fundamentais) caso considere o melhor para a vontade geral. Em resumo, pode-se admitir que para Rousseau há dois níveis de liberdade, uma “pré contrato” e outra “pós contrato”. Essa última seria a mais completa ou verdadeira, de modo que somente a partir do contrato social a liberdade, regida por um senso moral inexistente no estado de natureza, pode guiar o povo ao bem comum, sobrepondo-se às vontade individuais. Diferente de Locke, para quem a moral é inerente ao homem, Rousseau não defende que o estado deve garantir a liberdade original de cada pessoa, mas sim uma liberdade superior à primeira. III. O dualismo liberal versus republicano da liberdade

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 Do ponto de vista liberal, podemos citar as considerações de Constant em relação à liberdade. Para Constant (2015), sendo o objetivo dos modernos essencialmente diferente do objetivo dos antigos, não há mais espaço na modernidade para a retomada da liberdade republicana; ela seria inconcebível em tempos de comércio e independência individual. Nesse sentido, o autor faz uma crítica a Rousseau, que, ao enaltecer o poder e a soberania coletiva, acaba por suprimir a liberdade individual, abrindo caminho, indiretamente, na opinião do autor, para certa defesa a formas tiranas de governo. Importante destacar que Rousseau, apesar de escrever na modernidade, retoma a concepção dos antigos para defender uma liberdade coletiva/política em detrimento da liberdade individual/privada. De acordo com tal pensamento, as renúncias às paixões individuais seriam compensadas pela participação no poder social. Porém, para Constant (2015), influenciada pela mentalidade liberal, nos tempos modernos, a população não permitiria a censura, posicionando-se contra à autoridade a fim de proteger o indivíduo. De forma que, na modernidade, a liberdade política é necessária, mas apenas como garantidora da liberdade individual; assim, os indivíduos estão dispostos a lutarem por ela quando necessário, não pelo desejo da participação em si, mas pelos benefícios que ela pode proporcionar. Segundo Constant (2015), o novo modelo de organização social que melhor se adequa à modernidade é a representação. Ele permite que os indivíduos dediquem-se aos interesses privados à medida que transferem as responsabilidades políticas a um determinado grupo, que trabalhará exclusivamente na garantia dos direitos individuais. Transferir as responsabilidades, entretanto, não significa abandonar os direitos políticos. O risco de “desleixo” com a liberdade política é eminente na representação, mas é preciso manter-se atento ao trabalho dos representantes, exigindo melhorias e tomando medidas quando necessário. A participação política deve ser vista não como um peso, mas como nobreza. Do ponto de vista pluralista, temos Berlin, com um olhar crítico aos dois conceitos, na tentativa de não excluir deliberadamente qualquer um deles, mas buscar valores pertinentes nos dois. Berlin (1998) faz uma crítica ao liberalismo no sentido de que nada vale todos os homens terem liberdade se não há justiça e equidade; ou seja, há outros objetivos mais urgentes para alguns, como o acesso a meios básicos de sobrevivência. Assim, a liberdade só é interessante quando não há desigualdade (embora muitos teóricos liberais acreditassem na congruência entre desenvolvimento social e liberdade individual). Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 Ainda de acordo com Berlin (1998), a vertente da cidadela interior (vertente republicana) pode não produzir de fato liberdade, uma vez que, ao encontrar resistência aos seus desejos, o homem simplesmente os abnega, em vez de por eles lutar, o que seria, no fim das contas, uma negação do próprio homem, incompatível com o conceito de liberdade. Para Berlin (1998), o conceito de liberdade republicano pode dar margens para doutrinas totalitárias, uma vez que, admitindo a coerção da sociedade racional sobre o indivíduo irracional, corre-se o risco de justificar, pela razão, a escravização dos divergentes: Esse é o argumento usado por todo ditador, inquisidor e tirano que busca uma justificação moral, ou mesmo estética, para sua conduta. Devo fazer pelos homens (ou com eles) o que não podem fazer por si mesmos, e não posso lhes pedir permissão ou consentimento, porque eles não estão em condição de saber o que é melhor para eles (...). (BERLIN, 1998, p. 254)

Dessa forma, todo homem fica à mercê da “razão” dominante, e contra ela não possui direitos. Do ponto de vista republicano, Ramos (2011) aproxima a discussão da contemporaneidade ao propor uma reflexão sobre qual modelo de liberdade melhor se encaixaria na sociedade democrática moderna. Conclui, porém, que nem o conceito liberal nem o republicano, se considerados unilateralmente, são suficientes para abarcar os desafios políticos postos nessa sociedade: pluralismo de grupos divergentes, diversidade de interesses individuais, e diversas formas de dominação. Daí apresenta a teoria do republicanismo neorromano – presente em autores como o Skinner, Viroli, Pettit e Maynor – que não objetiva simplesmente conciliar as teorias dualistas, mas apresentar o republicanismo como melhor alternativa à defesa da “não interferência” – tão perseguida pelos liberais – ao considera-lo compatível com seus ideais. Pettit, portanto, inclina-se para a posição daqueles que, como Skinner e Viroli, veem a liberdade republicana da não-dominação como um valor instrumental, e não um bem em si mesmo. Isto é, os fins propostos por uma sociedade liberal são realizados com mais eficácia, quando forem mediados pelos valores políticos do republicanismo: a liberdade, a cidadania participativa etc. Destarte, a adoção desses valores traz vantagens irrecusáveis para uma sociedade liberal que não precisa abandonar os direitos subjetivos e o conceito de liberdade negativa, pois esses princípios não são incompatíveis com a concepção republicana de liberdade. (RAMOS, 2011, p. 60).

Para Ramos (2011) a melhor escolha de um conceito de liberdade para a sociedade democrática moderna seria uma escolha disjuntiva, que preserva os conceitos essenciais às teorias apresentadas, quais sejam, a não interferência da liberdade negativa e a não dominação da liberdade positiva. Assim, através da tese do republicanismo neorromano, é possível, na opinião do

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 autor, garantir a liberdade individual como direito subjetivo; aspecto fundamental à modernidade. Essa garantia estaria fundamentada em alguns pressupostos. Primeiramente, para o republicanismo, a liberdade é social, diferente do liberalismo, em que a liberdade é pré-política (natural ao homem). Ou seja, no republicanismo, só é possível pensar a liberdade em sociedade, pois é na sociedade que os indivíduos “dispõem da liberdade de se opor à ação dos outros e às tentativas de dominação por parte de terceiros” (RAMOS, 2011, p. 62). Em segundo lugar, pressupõe que os indivíduos devem exercer o autogoverno, de maneira que, ao criarem as leis, garantem a liberdade de estarem sujeitos apenas a si mesmos. Em terceiro lugar, o republicanismo pressupõe uma forte participação do indivíduo nas questões do Estado, baseada em um ideal virtuoso das responsabilidades cívicas. Somente assim os cidadãos são capazes de intervir, caso as leis e as instituições tornem-se uma ameaça de dominação do poder público. Bresser-Pereira (2004) também compartilha da visão de que o Estado deve perseguir o ideal da liberdade individual – traduzido em direitos civis, políticos e sociais – utilizando-se do modelo republicano; porém, não o modelo republicano clássico, greco-romano, mas sim, um modelo contextualizado, ao qual chama “Estado social-liberal”. Em outras palavras, o autor defende um Estado que garanta direitos individuais, mas também o que ele chama de direitos republicanos, a fim de evitar o controle privado. A grande ênfase está na participação social. Segundo Bresser-Pereira o Estado republicano moderno combina a tolerância, o pluralismo e o direito à propriedade, à proteção dos direitos e da justiça sociais. E essa combinação torna-se possível a partir de um sistema representativo que se traduz em democracia participativa. O republicanismo enfatiza os deveres e a participação política dos cidadãos, e se baseia nas virtudes cívicas exigidas dos cidadãos, enquanto o liberalismo salienta os direitos e se baseia nas liberdades negativas dos cidadãos motivados por interesse próprio. No entanto, da mesma forma que não vejo qualquer conflito necessário entre direitos civis e sociais ou entre ideais liberais e socialistas, também não vejo nenhuma inconsistência absoluta entre direitos civis e virtudes cívicas ou entre liberdade negativa e positiva. (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 135)

Logo, os interesses liberais e republicanos não se mostram conflitantes para o autor. Porém, anda assim, Bresser-Pereira faz questão de deixar claro que essa combinação está condicionada à definição de interesse público. Ou seja, é essencial que os cidadãos tenham uma perspectiva republicana (valorização do bem público), sem a qual é impossível defender o interesse púbico. Esse interesse, por sua vez, não está sempre bem definido, levando em conta os interesses conflitantes. É nesse sentido que o autor apresenta a “governança democrática” como o “o processo principal

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 através do qual os modernos sistemas de governo definem, para cada questão, qual é o interesse público” (2004, p. 137). Ou seja, o Estado deve resolver os conflitos inerentes à sociedade democrática através de suas instituições e da participação de seus cidadãos. Nesse sentido, Bresser-Pereira retoma os conceitos de Skinner, ao concordar que “Os cidadãos precisam agir positivamente a fim de proteger sua própria liberdade” (2004, p. 140). Ou seja, mais uma vez, defende a participação social como meio garantidor da liberdade individual, ao considerar a liberdade como algo a ser conquistado e defendido. Por fim, podemos citar a importante contribuição de Klein e Consani (2017), que admitem uma congruência entre os interesses privado e comum na teoria Rousseauniana. Segundo os autores, alguns teóricos como Rawls, Cohen e Bignotto interpretam o Contrato Social como uma obra que equilibra liberdade individual e liberdade política, num movimento retórico. Dessa forma, a teoria Rousseauniana é considerada um “liberalismo republicano” tendo por fim a liberdade individual e por meio, a república. Nesse sentido, considera-se que Rousseau possui muitas similaridades teóricas com republicanos ingleses do século XVII, como Harrington, Milton e Sidney, que defendem o Estado Livre como condição para cidadãos livres, pautados em ideais como o governo das leis e igualdade dos cidadãos na elaboração delas. A fim de sustentar a argumentação, Klein e Consani apresentam alguns aspectos essenciais, como por exemplo, o fato de que Rousseau considera como república não um determinado tipo de governo, mas qualquer governo regido por leis (baseadas na vontade geral), ou a conexão de interdependência entre igualdade e liberdade. Conclusão A liberdade na política tem sido alvo de reflexões dualistas marcadas pelo encerramento da antiguidade e o surgimento do Estado Moderno. O contratualismo introduziu uma maneira diversa de pensar a liberdade, partindo de pressupostos individuais da vontade humana, de forma a romper com os ideais aristotélicos da natureza política/social do homem, dentro da qual encontrava-se a única maneira de gozar da liberdade até então. A nova configuração do Estado e da vida na modernidade, marcada pelo advento do comércio e das grandes nações, permitiram pensar a liberdade como a garantia de não interferência na esfera individual/privada. A propriedade passa a ser alvo da reflexão política a partir das considerações de Locke, que considera a vida e a propriedade precedentes ao contrato, o que lhes dá a prerrogativa da não interferência Estatal. Porém, nesse contexto, Rousseau resgata princípios

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 republicanos, ao defender o Estado legítimo como sendo um Estado regido por leis. Nesse sentido, apresenta a liberdade como autogoverno, associando liberdade à igualdade, e, consequentemente, à capacidade de elaborar e seguir leis. A diferença essencial entre “não interferência” e “autogoverno” deu origem aos clássicos conceitos negativo e positivo da liberdade, encontrados na obra Dois conceitos de liberdade, de Berlin. Ao examinar os principais conceitos das teorias Lockeana e Rousseauniana à luz da reflexão dualista da liberdade, podemos concluir o seguinte. Para Locke o poder político é um poder instituído pela convenção dos homens, que se submetem à lei para garantir sua liberdade e, em consequência, o direito absoluto sobre suas propriedades. Nessa sociedade política a soberania encontra-se no poder legislativo, que pode ser formado por uma ou mais pessoas, e deve agir sob leis promulgadas e reconhecidas. A forma de governo é secundária e determinada pelo poder legislativo. O ponto crucial defendido por Locke é que o poder não pode ser absoluto e arbitrário, pois um poder que se coloca sobre a lei e invade a liberdade do indivíduo configura um estado pior que o natural, o estado de guerra. Para Rousseau a condição política de um povo é determinada pelas convenções. Através do pacto social os indivíduos acordam submeterem-se a uma associação cujo fim seja salvaguardar a si mesmo e suas propriedades. A principal diferença no conceito de liberdade Rousseauniano está em que a vontade geral deve prevalecer sobre a vontade do indivíduo, movida por um senso de cidadania mais desenvolvido. Para Rousseau, a soberania está no povo, que em conjunto, decide as convenções. Logo, o poder soberano garante que, caso alguém se recuse a obedecer à vontade geral, o povo pode, em conjunto, constrangê-lo, “forçando-o a ser livre”, ou seja, protegendo-o da dependência pessoal. Ou seja, para Rousseau, o estado civil dá ao homem uma liberdade moral inexistente no estado de natureza, tornando um ser estúpido num ser inteligente, livre da dependência de si mesmo. De forma geral, o liberalismo político tende a censurar a teoria Rousseauniana ao conceber que ela dá margens ao governo despótico, por defender a precedência da vontade geral sobre a vontade do indivíduo, suprimindo assim a liberdade privada em nome de uma racionalidade legitimada. Porém, o movimento republicano neorromano tem ganhado força na contemporaneidade ao defender o republicanismo como melhor meio para atingir a liberdade individual na sociedade

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O dualismo liberal versus republicano sobre a questão da liberdade, pp. 195-211 democrática moderna. Segundo essa linha, o modelo político contemporâneo deve conciliar a não interferência da liberdade negativa e a não dominação da liberdade positiva. Assim, pretende-se garantir a liberdade individual como direito subjetivo através de uma democracia altamente participativa, baseada em um ideal virtuoso das responsabilidades cívicas.

REFERÊNCIAS: BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, H. et al. (Ed.). A busca do ideal: uma antologia de ensaios. Tradução Teresa Curvelo. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998. p. 227-273. BRESSER-PEREIRA, L. C. O surgimento do Estado Republicano. Lua Nova, 62, 2004: 131-150. CONSTANT, B. A liberdade dos antigos comparada à dos modernos. 2015. KLEIN, J. T.; CONSANI, C. F. A complementaridade entre os aspectos liberais e republicanos na filosofia política de Rousseau. Revista Veritas, Porto Alegre, v. 62, n. 1, jan.-abr., p. 65-97, 2017. LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo. LeBooks Editora, 2018. RAMOS, C. A. O modelo liberal e republicano de liberdade: Uma escolha disjuntiva? Trans/Form/Ação, Marília, v.34, n.1, p.43-66, 2011. ROUSSEAU, J.-J. Contrato social. São Paulo: Abril, 1978a. Coleção Os Pensadores.

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221

ZOOPOÉTICA E ZOONTOLOGIA. A QUESTÃO DO ANIMAL ENTRE A LITERATURA E A FILOSOFIA Mateus Uchôa1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal apresentar, a partir da relação entre a (zoo)literatura e a filosofia, uma investigação sobre a animalidade e a crítica da máquina antropológica. O principal ponto da discussão consiste em gerar uma reflexão sobre a condição dos animais na filosofia, contrapondo as concepções clássicas às idéias contemporâneas sobre seres não-humanos. PALAVRAS-CHAVE: Seres não-humanos. Limite antropocêntrico. Mundo. ZOOPETIC AND ZOONTOLOGY. THE QUESTION OF ANIMAL BETWEEN LITERATURE AND PHILOSOPHY ABSTRACT: This article aims to present, based on the relationship between (zoo) literature and philosophy, an investigation about animality and the critique of the anthropological machine. The main point of the discussion is to generate a reflection on the condition of animals in philosophy, contrasting classical concepts with contemporary ideas about non-human beings. KEYWORDS: No-human beings. Antropocentric limit. World.

1Bacharel

em Filosofia (UFC). Mestre em Filosofia (UFC). Mestre em Artes (UFC). Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 Como sinal de admiração e também de inspiração, começo citando o começo do livro “Literatura e animalidade”, da escritora Maria Esther Maciel: “Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre escapa a compreensão. Radicalmente outros, mas também nossos semelhantes, distantes e próximos de nós, eles nos fascinam ao mesmo tempo que nos assombram e desafiam nossa razão”(MACIEL, 2016, p.13) Se o nosso entendimento sobre eles parece avançar a um maior esclarecimento de seus mundos, paradoxalmente, os animais escapam à nossa tentativa de classificação. “Temidos, subjugados, amados, marginalizados, admirados, confinados, comidos, torturados, classificados, humanizados”(MACIEL, op cit, p.13.), os animais não permitem sua captura completa, provocando em nós humanos intensos questionamentos que podem pôr em xeque até mesmo a validade do nosso estatuto ontológico. É como se o estatuto do ser humano dependesse desse “negativo”, irracional, pura afetividade que constitui “filosoficamente” o conceito de animal. É possível delimitar o que é propriamente humano? Qual é o custo dessa resposta? Ela acarreta a desqualificação ontológica da condição animal? “Se a ciência e a filosofia ocidentais se arrogaram a responder tais perguntas com base em critérios forjados em nome da racionalidade e da chamada ‘máquina antropológica do humanismo’”(MACIEL, op cit, p.13.), a pergunta fundamental da divisão entre o homem e o animal assume sua inconsistência quando passa a ser feita na perspectiva de outros saberes exteriores ao enquadramento filosófico-científico da modernidade; quando buscamos respondê-la por outras formas que “podem ser encontradas no campo do imaginário e nos espaços alternativos do saber humano, nos quais a palavra animal ganha outros matizes, inclusive socioculturais”(MACIEL, op cit, p.13-14.). A pergunta pela divisão entre os mundos humano e animal, aparentemente, não é tão fácil de responder, e a cada tentativa de dar sua resposta o sentido de animalidade se metamorfoseia, ganha novos e misteriosos contornos, como um animal astuto que foge à menor tentativa de sua captura. O presente estudo se apresenta mais como uma tentativa de seguir junto a ele em seus movimentos, do que construir uma armadilha conceitual de confinamento, de contenção de sua alteridade radical, abrindo espaço para uma invenção que, a partir de seus rastros, venha a ser não um pensamento do animal, mas um pensamento integralmente animal, liberado de conotações antropocêntricas.2 2Na

filosofia contemporânea, autores como Gilles Deleuze e Jacques Derrida contribuíram decisivamente para estabelecer uma perspectiva alternativa de compreensão dos animais, levando em conta suas diferenças, e sem reivindicar um critério absoluto para separar o homem do animal. Compreende-se que esses autores não buscaram uma representação do animal, uma interpretação subjetiva distante de sua real condição, mas se detiveram em pensar com os animais ao questionarem o limite estabelecido entre nós e eles. Cf. O animal que logo sou (a seguir), trad. Fábio Landa. São Paulo. Ed. UNESP, 2002; Devir-intenso, devir-animal, devirimperceptível, in: Mil Platôs, v. 4. trad. Suely Rolnik. ed. 34, 2012, p. 11-119.

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 De acordo com Maciel, “[n]o que tange à literatura, por exemplo, sabe-se que as tentativas de sondagem da alteridade animal nunca deixaram de instigar a imaginação e a escrita de poetas e escritores de diferentes épocas e procedências”(MACIEL, 2016, p. 14). Esse posicionamento para com a animalidade conferia novas matizes, que, num conjunto de práticas literárias, animava a dimensão simbólica do animal anteriormente negativa. Por vezes, a noção de animalidade no horizonte do conhecimento foi sinônimo da noção puramente negativa de bestialidade, designando os animais através de uma iconografia genérica, que lhe conferia o status de brutal, como o limite do que é maligno e monstruoso, a marca negativa e oposta de uma exclusão - exorcismo - do mundo dos seres racionais. No entanto, o abismo entre mundos que a tradição ocidental de pensamento estabeleceu entre a animalidade e a racionalidade, sustentado por valores semânticos e morais, nem sempre foi aceito de forma unânime entre seus pensadores. O tratado sobre os animais de Aristóteles, os bestiários medievais, “designando uma série específica de bichos reais e imaginários, podendo, também - de forma mais genérica -, designar uma coleção literária e/ou iconográfica de animais imaginários ou existentes (...)”(MACIEL, op cit, p. 14), e os ensaios de defesa animal de Montaigne, são apenas alguns exemplos capazes de proporcionar uma mudança de parâmetros acerca da questão animal, uma vez que compõem um espaço “zooliterário”e uma tradição “zoopoética”, conforme designação inventiva de Maria Esther Maciel. Para compreender a especificidade dos termos “zooliteratura” e “zoopoética” aqui empregados, devemos ouvir mais uma vez Maciel que nos explica: O bestiário, neste caso, seria apenas uma modalidade específica integrante de um conjunto maior, limitando-se à esfera do catálogo. Já o termo zoopoética poderia ser empregado para designar tanto o estudo teórico de obras literárias e estéticas sobre animais quanto a produção poética específica de um autor, voltada para esse universo “zoológico”, como fez Derrida. As diferenças e semelhanças entre zooliteratura e zoopoética seriam, portanto, as mesmas entre literatura e poética, mas acrescidas do valor semântico do prefixo “zo(o)”(MACIEL, op cit, p. 15.)

Compreende-se também por espaço zooliterário, todo espaço de escrita que manifesta uma ética, a bem da verdade, proporcional ao desafio de uma reflexão descolonizada da radical experiência na qual se inscrevem as relações entre humanos e não-humanos. Tendo em conta essas questões, “pode-se dizer que o esforço de ampliação das formas de acesso ao mundo zoo indica não apenas nossa necessidade de apreender algo deles e sobre eles, como também um desejo de recuperar nossa própria animalidade perdida ou recalcada”(MACIEL,op cit, p. 15-16.) O testemunho de uma consideração positiva dos animais surge do impulso e da necessidade Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 de resgate de nossa própria animalidade, recalcada por séculos e soterrada pelos alicerces conceituais e constituintes do moderno edifício do humanismo. Porque coloca o pensamento diante da besta, diante do olhar animal, como aquilo que vemos e que também nos olha, e justamente porque também somos olhados, é que tal relação transmite um gesto de ancestralidade. Foi precisamente pelo recalque da animalidade que se tramou uma definição do que significa ser humano no mundo ocidental, mais precisamente com o triunfo do cartesianismo no século XVII. De acordo com a concepção de Descartes no Discurso do método, o comportamento dos animais pode ser compreendido em termos mecânicos, da mesma forma que as ações inconscientes nos seres humanos. O animal age involutariamente sob a influência do meio externo. Descartes está comprometido, portanto, com uma tese mecanicista, a de que não há sensação propriamente dita em animais não-humanos, nesses últimos, há apenas o movimento da matéria. A filósofa Juliana Fausto em artigo intitulado A cadela sem nome de Descartes: Notas sobre vivissecção e mecanomorfose no século XVII, comenta sobre a radicalidade da tese cartesiana acentuando os motivos que levou o filósofo a justificar sua visão sobre as bestas: Contra ideias escolásticas que remontavam a Aristóteles, Descartes negava a existência de alma (de qualquer tipo) a todos os viventes exceto o homem: só existiria um tipo de alma, imortal e exclusiva a cada indivíduo humano. Com isso, o filósofo rompia com dois pontos fundamentais da tradição. O primeiro, a tese da metempsicose ou transmigração das almas, ideia presente de Pitágoras a Platão, que supunha que uma mesma alma viria, no decurso dos ciclos de vida e morte, a habitar diferentes espécies – o final do Timeu , nesse sentido, é exemplar ao expor um tipo de “teoria da evolução reversa”, na qual o homem, o vivente mais perfeito, vai dando lugar a formas de vida inferiores, a primeira delas sendo a mulher (cf. PLATÃO, 2001, 91a-92b). E, em segundo, o contínuo existente entre os seres vivos; quer fosse dotando os animais de uma alma racional, tripartindo a alma humana ou postulando a existência de alma vegetativa, sensível e racional, a ruptura fundamental, segundo esse pensamento, situava-se na separação entre vida e não-vida. (FAUSTO, J., 2018, p. 44)

A teoria cartesiana dos “animais-máquinas”marcou de forma duradoura o imaginário intelectual do Ocidente e suas formulações fornecem a base para as representações dos animais nos séculos seguintes. Aceitando-a ou rejeitando-a, somos todos herdeiros tributários de sua elaborada teoria dos animais-máquina, a qual influenciou de modo bastante determinado a maior parte do pensamento ocidental. A respeito dessa controvérsia, a quinta parte do Discurso do Método tornouse célebre. Segundo Descartes, o animal é, de fato, uma máquina composta de complexos mecanismos totalmente inacessíveis ao engenho humano. Acrescente-se a isso, o fato de que nenhuma máquina é capaz de utilizar a linguagem e nem ascender à universalidade. Diferentemente do homem, o animal está prisioneiro da sua capacidade sensorial: não

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 modifica coisa alguma, não possui virtudes, e não tem a capacidade de viver em sociedade. De aparência exuberante, mas de pensamento e linguagem inexistentes, o animal é um autômato isento de interioridade. Nada de ordenado ou sequencial se passa em seu interior; assim sendo não possuem pensamento e apresentam um comportamento monótono incapaz de inventar ou aperfeiçoar do que dispõem. Sem desempenhos “satisfatórios” a prova de sua automaticidade estaria na sua ausência de espírito. A capacidade de abstração está totalmente fora de seu alcance.3 Aceitamos com demasiada prontidão a idéia de que há uma fronteira clara que separa o homem do animal, e que é possível destacá-la por um fenômeno que existe apenas no homem e não no animal. A tese, obviamente, está baseada na distinção real entre corpo e alma. Se os animais são meros autômatos mecânicos, e as sensações são modos do composto corpo e pensamento, apenas os humanos seriam dotados desta capacidade. A partir da tese de uma ausência de pensamento e sensação nos animais, ou seja, da falta de uma consciência sensorial neles, conclui-se que eles não sofrem.4 Ao obter a informação externa como a luz do sol, o odor advindo de outra espécie, as condições da atmosfera, o cérebro envia os estímulos aos seus músculos conduzindo o animal ao movimento sem que haja nessa transmissão a menor mediação da vontade. Essas criaturas às quais apenas a extensão lhes é atribuída, jamais poderiam combinar racionalmente tais estímulos e dar a eles qualquer sentido através de algum tipo de conhecimento ou razão. A distinção entre res cogitans e res extensa estabelece que a razão não pode ser encontrada 3Críticas

cartesianas e anticartesianas não deixaram de surgir e enriquecer o debate. Malebranche, Locke e Charles-George Le Roy são apontados pelo filósofo e etólogo Dominique Lestel no seu livro As origens animais da cultura, como autores que reconhecem que os animais possuem sentimentos e raciocinam. Lestel aponta Le Roy como o notável autor de uma etologia pormenorizada que atribui funções de sensibilidade e disposição de uma linguagem de ação. “Os animais possuem, portanto, todas as condições que são necessárias à linguagem. Mas se seguirmos de perto as suas ações, vemos que é impossível que eles não se comuniquem entre si parte das suas idéias e que não o façam recorrendo a palavras. Estamos convictos de que eles não confundem o grito do pavor e o grito que exprime amor.” LE ROY apud LESTEL, As origens animais da cultura. 2002, p. 21. 4Para a filósofa Ethel Rocha, a impossibilidade de atribuição de sensações aos animais, baseia-se também na negação da consciência da sensação e, consequentemente, do juízo - recurso à razão - que envolve essa possibilidade. Numa palavra, atribuir esse fator aos animais seria afirmar a unção entre mente e corpo, hipótese cuja filosofia cartesiana nega radicalmente. Segundo a autora: “É sabido que a ontologia cartesiana só admite dois tipos de substância criada: a alma (ou substância pensante) e o corpo (substância extensa), cujas naturezas são realmente distintas. Visto que, quando duas coisas são realmente distintas, segundo a terminologia cartesiana, elas têm propriedades que são mutuamente incompatíveis, uma coisa extensa é não-pensante, e uma coisa pensante é não-extensa. Uma substância pensante pura seria dotada apenas de entendimento e vontade (que são os gêneros do pensamento segundo Descartes), e uma criatura extensa, ao contrário, não teria qualquer experiência e funcionaria apenas como um autômato mecânico. A experiência sensorial, por outro lado, que não pode ser atribuída nem à mente nem ao corpo, se tomados isoladamente, consistiria num tipo distinto de fenômeno que suporia a união substancial (em oposição a uma mera justaposição) do corpo com a alma. A princípio, portanto, a experiência sensorial que não é parte da natureza de uma substância pensante nem da natureza de uma substância extensa pertenceria ao eu enquanto substância pensante apenas na medida em que essa substância pensante é dotada de um corpo e, por isso mesmo, é um ser humano. Assim sendo, para o caso do homem, em virtude do fato de este ter experiências sensoriais, Descartes terá que introduzir a tese da união substancial, pois, nas palavras desse filósofo, ‘ [...] com efeito, todos esses sentimentos de fome, de sede, de dor, etc., nada são exceto maneiras confusas de pensar, que provêm e dependem da união e como que da mistura entre a mente e o corpo’". ROCHA, E. Animais, homens e sensações segundo Descartes. Kriterion vol.45 no.110 Belo Horizonte July./Dec. 2004 link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2004000200008

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 nos animais, uma vez que são condicionados pela matéria não possuem a consciência de verdades como a existência do eu. Através dessa concepção dualista, Descartes assevera ter estabelecido uma “diferença de espécie” entre os homens racionais e os animais irracionais. Tendo estabelecido o homem como substância pensante, as comparações entre o animal e a máquina prevaleceram sobre as analogias entre mente humana e animalidade. Para Descartes o homem é o animal racional, tendo na sua razão ou na linguagem a diferença que o distingue da animalidade. Mas o ser do homem coincide, de acordo com o ponto de vista cartesiano, que é o ponto de vista moderno, com a evidência do pensar. O animal é o que de mais estranho a nós se torna. É o grande Outro porque, segundo o filósofo, é um corpo sem alma, um simples mecanismo. Essa é a teoria mecanicista de Descartes que prevaleceu nos séculos XVII e XVIII. (NUNES, 2011, p.14)

Com a tradição judaico-cristã, toda parcela animal constituinte da existência humana foi identificada como fonte de males, contribuindo assim para sua demonização e acentuando a necessidade de seu deslocamento para fora do humano, confinando-a assim no território excluído do mal radical e da violência desmedida sob a definição de bestialidade. Assim, em parte se iniciou o processo de silenciamento das bestas. Enquanto o estatuto ontológico do humano não cessou de ser incrementado de positividades, de atributos exclusivistas, dentre esses, o mais importante: a alma, “o animal passou, desde então, a ser investigado com base em critérios científicos bem definidos, tanto sob os imperativos de uma taxonomia rigorosa (...) quanto sob o impacto do surgimento das ciências de observação e experimentação” (MACIEL, 2016, p. 16), passando a ser classificado ora como máquina, ora como mero corpo orgânico automatizado por instintos básicos e desprovido de alma como fator dignificante de sua integridade. Assim, com base em critérios científicos e morais foi acentuada uma recusa da animalidade, da besta que macularia o homem da pureza de sua humanidade. De acordo com Benedito Nunes: Com o animal, as relações são, sobretudo, transversais, ou seja, o animal é considerado o oposto do homem, mas ao mesmo tempo uma espécie de simbolização do próprio homem. Na acepção comum, simboliza o que o homem teria de mais baixo, de mais instintivo, de mais rústico ou rude na sua existência. Por isso mesmo, o animal para nós é o grande outro da nossa cultura, e essa relação é muito interessante como tópico de reflexão. (NUNES, 2011, p. 13)

Um olhar breve sobre o horizonte do conhecimento prova a resistência a uma aceitação positiva da animalidade. A constituição simbólica e conceitual desse outro radical, como um ser de plenitude no âmbito da natureza, compreensível à sua ordem e sabedoria, parece-nos que ainda não atingiu a profundidade necessária no espaço da imaginação filosófica e que só agora na Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 contemporaneidade ressurge como problematização ontológica, uma lufada de ar fresco que acompanha a virada metafísica contemporânea. Para configurar, a partir de novos enfoques, uma nova relação que proceda inteiramente a partir da ligação - e também disjunção - entre humanidade e animalidade fora da repartição do antropocentrismo, sob esse prisma, é que se inscrevem as zoopoéticas como forma

de

compreensão e problematização híbridas das fronteiras e limites que distinguem os animais humanos dos não-humanos. Se a literatura está repleta de processos de entrecruzamento, ainda que paradoxais, capazes de desestabilizar as bases do edifício do humanismo antropocêntrico, por que a filosofia agora não pode deixar-se contaminar e influenciar-se pelo viés crítico desta reviravolta potencializada no âmbito da zooliteratura? Se a filosofia pode ser influenciada por um “saber alternativo sobre o mundo e a humanidade”(MACIEL, 2016, p. 22), como é o caso das literaturas animais que “ [se] valem para isso, muitas vezes, do registro poético, afirmando-se como tentativas de compreensão da alteridade radical que os animais representam para a razão humana”(MACIEL, op cit, p 22,) ela pode afirmar seu pertencimento ao território da imaginação poética. Enquanto um tipo de ficção filosófica afirmadora das múltiplas formas da alteridade animal que são reconhecidas por outros saberes tais - como a antropologia e a etologia-, os quais marcam “o trespassamento das fronteiras entre os mundos humano e não humanos, por meio de devires e das metamorfoses”(MACIEL, op cit, p. 23), a filosofia poderá, finalmente, trilhar de forma aventurosa as vias complexas de uma nova perspectiva ética, estética e política da questão do animal. É interessante marcar que tal aventura está inscrita em “um movimento, um rompimento das fronteiras que leva o humano para longe da subjetividade humana e o abre para formas híbridas de existência.”(MACIEL, op cit, p. 25). Desse modo, quem sabe, orientar-se-á a filosofia para o caminho “de acesso ao outro lado da fronteira que nos separa do animal e da animalidade.”(MACIEL, op cit, p. 25.) Este exercício da outridade animal vai desde a sua apreensão, pela linguagem, no caso da literatura e da poesia, e chega até as perspectivas fora do âmbito antropocêntrico nas contemporâneas discussões “pós-humanistas”, aquelas que vêm desconstruindo o conceito moderno de humano e a hierarquia entre as espécies ao solapar a nossa própria noção de identidade. Portanto, o objetivo é incorporar a animalidade numa zona movediça que desafia os dogmas científicos e da razão humana. Esta forma peculiar e radicalmente potente de fazer do animal um movimento de rompimento de fronteiras e de contágio é o que se intenciona aqui a partir do

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 conceito de zoontologia.5 É preciso destacar que a presente investigação sobre a possibilidade de uma zoontologia passa, necessariamente, pelo reconhecimento da prática zooliterária como uma influência decisiva na construção desse conceito. Por outro lado, não se pode ignorar algumas diferenças substanciais que existem entre a zooliteratura e a zoontologia. Enquanto a literatura permanece no espaço poético-ficcional da criação totalmente legítima de alteridades e devires humanos e animais, fomentando metamorfoses entre as espécies a partir de um intenso exercício imaginativo na composição de sua escrita; em contrapartida a filosofia vai procurar problematizar epistemicamente, apelando para a desconstrução de um conceito tradicional, como o de animalidade, assim como sua reverberação nas ideias de razão e de humano. É o caso, por exemplo, do filósofo italiano Giorgio Agamben, cuja obra “O aberto. O homem e o animal” parte de uma análise dos conceitos da metafísica heideggeriana para esclarecer criticamente o que ele denomina como “máquina antropológica”. Essa ideia, segundo Agamben, é um operador que define e limita o animal à esfera do conceito sob um determinado contexto biopolítico, o qual acaba por reduzir a imagem do animal a uma “vida nua”, confinada a um lugar de completa generalização e indistinção. Essa articulação, ainda segundo o autor, não tem apenas um viés ontológico, mas também predominantemente político em que a separação radical estabelecida entre o homem e animal termina por jogar a animalidade numa zona indeterminada para a produção de uma vida humana, “protegida” de qualquer identificação com ela. Este é um dos aspectos que busco desenvolver através da proposta de uma zoontologia, conceito esse que pretenderá construir uma imagem positiva e potente do animal, através da qual visará ambiciosamente uma crítica do pensamento antropocêntrico ocidental, assim como novos (ou pelo menos, diferentes e menos desrespeitosos) limites entre animais e seres humanos .(Cf. AGAMBEN, 2002) Como resultado de uma perspectiva não tradicional do problema da questão animal, esperamos promover um giro ontológico em torno da dimensão do zoo que assim tem sua potência 5O termo aparece como título numa coletânea organizada por Cary Wolfe, que tematiza as explorações filosóficas, teóricas e culturais

atuais acerca da animalidade, subjetividade animal e de premissas para o tratamento ético dos não-humanos. Através de uma série de ensaios são enfrentados desafios epistemológicos envolvidos em ultrapassar as fronteiras metafísicas que inibiram uma reformulação séria da questão animal ao longo da história do pensamento ocidental. O intuito radical de uma zoontologia considera como esses seres outros-mais-que-humanos colocam questões filosóficas e éticas que vão até à raiz não só do que pensamos, mas também de quem - nós humanos - supomos ser. A coletânea organizada por Wolfe oferece um conjunto de coordenadas para explorar como essas questões foram colocadas na contemporaneidade a partir de autores como Heidegger, Freud, Deleuze, Lyotard, Lévinas e Derrida. Contudo, ainda que a referência ao termo “zoontologia” apareça na reunião de ensaios feita por Cary Wolfe, percebe-se a ausência de uma definição conceitual precisa sobre o seu significado. Tentaremos, ao longo do presente trabalho, oferecer a definição do que venha a ser uma zoontologia. Cf. WOLFE, C. Zoontologies. The Question Of The Animal. University of Minnessota Press. 2003.

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 devidamente reconhecida “por desconstruir a visão colonial do problema e reconfigurar o estatuto do animal fora dos domínios antropocêntricos”(MACIEL, op cit, p. 25). Ao reconhecer nos seres não humanos várias qualidades e características que, ao longo dos tempos, foram assimiladas exclusivamente aos humanos, ou ao que Jacques Derrida chamou de “os próprios do homem”, a filosofia dá o primeiro passo na direção de interrogar-se sobre o limite que produz o humano e sobre o esgotamento desta perspectiva na contemporaneidade. Ficamos perplexos diante de ideias incomuns como o fato de determinadas sociedades nãohumanas serem dotadas de cultura, portadoras de sabedorias singulares e de um raciocínio incapturável. Percebemos o quanto é restrito nosso conhecimento sobre a animalidade. O animal não coloca apenas em questão os conceitos humanistas, como também exige a desconstrução do olhar humano acerca da natureza, demonstrando os limites, outrora soberanos, da razão como aquele atributo “humanizador” da nossa espécie às custas da redução ontológica e ética das demais espécies classificadas como não racionais.

REFERÊNCIAS: AGAMBEN, G. O aberto. O Homem e o Animal. Edições 70., 2018. BERGER, John. Por que olhar os animais? In: ____. Sobre o olhar. Trad. Lya Luft. Barcelona, Gustavo Gili, 2003. COETZEE, J. M. A vida dos animais. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. DELEUZE, Gilles/GUATTARI, Félix. .Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível, in: Mil Platôs, v. 4. trad. Suely Rolnik. ed. 34, 2012, p. 11-119. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Trad. Fábio Landa. São Paulo: Unesp, 2002. FAUSTO, Juliana. A cadela sem nome de Descartes: Notas sobre vivissecção e mecanomorfose no século XVII. doispontos:, Curitiba, São Carlos, volume 15, número 1, p. 43-59, abril de 2018. Link de acesso: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/57226 MACIEL, Maria Esther. O animal escrito: um olhar sobre zooliteratura contemporânea. São Paulo: Lumme, 2008.

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Zoopoética e zoontologia. A questão do animal entre a literatura e a filosofia, pp. 212-221 MACIEL, Maria Esther. Pensar/escrever o animal. Florianópolis: Editora UFSC, 2011. MACIEL, Maria Esther. Literatura e animalidade. - Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2016 MONTAIGNE, Michel de. Apologia de Raymond Sebond: ensaios II. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1980. ROCHA, E. Animais, homens e sensações segundo Descartes. Kriterion vol.45 no.110 Belo Horizonte July./Dec. 2004 UEXKÜLL, Jacob von. Dos animais e dos homens. Tradução de Alberto Candeias e Aníbal Garcia Pereira. Lisboa: Livros do Brasil, 1982 WOLFE, C. Zoontologies. The Question Of The Animal. University of Minnessota Press. 2003.

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234

O CONCEITO DE TECNOLOGIA NO PENSAMENTO DE HERBERT MARCUSE: ESTUDO INTRODUTÓRIO Renê Ivo da Silva Lima1

RESUMO: O artigo tem como objetivo levantar uma discussão sobre o conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse. Para alcançar este fim, a pesquisa apresenta como o filósofo compreende o conceito no primeiro texto dedicado ao tema da tecnologia, intitulado Algumas implicações sociais da tecnologia moderna (1941), e na “Introdução à 1ª edição” da sua obra mais importante, intitulada de O homem unidimensional (1964). O trabalho tem como metodologia a pesquisa teórica, na qual recorremos constantemente à exposição exegética das principais ideias de Marcuse sobre o conceito de tecnologia. O resultado obtido é que o filósofo compreende a tecnologia existente como instrumento de dominação e controle social. Concluímos que Marcuse apresenta uma crítica da tecnologia existente na sociedade capitalista e propõe uma nova tecnologia capaz desenvolver a pacificação da existência. PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia. Racionalidade tecnológica. Nova tecnologia.

1 Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas "Atualidade do Pensamento de Herbert Marcuse". Email: reneivo@hotmail.com

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 THE TECHNOLOGY CONCEPT IN THE THOUGHT OF HERBERT MARCUSE: INTRODUCTORY STUDY ABSTRACT: The article aims to raise a discussion about the concept of technology in the thought of Herbert Marcuse. To achieve this end, the research presents how the philosopher understands the concept in the first text dedicated to the theme of technology, entitled Some social implications of modern technology (1941), and in the "Introduction to the 1st edition" of his most important work, entitled The one-dimensional man (1964). The work is based on theoretical research, in which we constantly use exegetical exposition of Marcuse's main ideas about the concept of technology. The result obtained is that the philosopher understands the existing technology as an instrument of domination and social control. We conclude that Marcuse presents a critique of the existing technology in capitalist society and proposes a new technology capable of developing the pacification of existence. KEYWORDS: Technology. Technological rationality. New technology.

Introdução “Não haverá fim para os males da espécie humana enquanto a classe daqueles que são correta e verdadeiramente amantes da sabedoria (filósofos) não governar.” (Platão) “A ação pela ação não é de modo algum superior ao pensamento pelo pensamento, e talvez seja até inferior a ele.” (Horkheimer) “A teoria preserva a verdade, mesmo que a prática revolucionária se desvie do caminho certo. A prática segue a verdade, e não o inverso.” (Marcuse)

O conceito de tecnologia ocupa um lugar fundamental na teoria crítica de Herbert Marcuse, não somente por estar presente na maioria de suas obras – senão em todas – mas também por ser objeto de debate e estudo de vários intelectuais que se dedicam ao tema da técnica, ciência e tecnologia. Como todo tema importante o conceito de tecnologia já recebeu diversas interpretações diferentes: há os que dizem que Marcuse não critica a tecnologia em si, mas apenas a racionalidade tecnológica; há também os que dizem que para o filósofo o problema está no uso que se faz da

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 tecnologia e, por fim, os que dizem que Marcuse apresenta uma crítica da tecnologia estabelecida (capitalista) e propõe alternativas para o desenvolvimento de uma nova tecnologia. O presente trabalho está de acordo com a última interpretação, pois a nosso ver – mostraremos isto em nosso texto – é a compreensão que mais se aproxima do pensamento de Marcuse sobre a tecnologia. O primeiro texto de Marcuse dedicado ao tema da tecnologia data da década de 1940, um ensaio intitulado de Algumas implicações sociais da tecnologia moderna publicado em 1941, nele o filósofo apresenta a tecnologia como um modo específico de organizar e perpetuar o estado de coisas existente, um instrumento de dominação. Essa mesma concepção de tecnologia é aprofundada na sua obra mais importante, intitulada de O homem unidimensional, publicada em 1964. Verifica-se que não existe no pensamento de Marcuse uma multiplicidade de teorias divergentes sobre a tecnologia, há sim apenas uma crítica da tecnologia capitalista e a proposta de uma nova tecnologia. Dessa maneira, o objetivo da nossa pesquisa é apresentar uma discussão sobre o conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse. Para alcançar esse fim, o trabalho apresenta como o filósofo compreende o conceito no primeiro texto dedicado ao tema da tecnologia, intitulado Algumas implicações sociais da tecnologia moderna (1941), e na “Introdução à 1ª edição” da sua obra mais importante, intitulada de O homem unidimensional (1964). Com isso levantamos alguns problemas: 1) qual é o

sentido do conceito de tecnologia na teoria crítica de Herbert Marcuse? 2) em que consiste sua crítica à tecnologia existente e 3) o que seria a nova tecnologia proposta pelo o filósofo? Na primeira seção deste trabalho apresentamos a distinção entre técnica e tecnologia, a definição do conceito de racionalidade tecnológica e a relação da sociedade capitalista com a tecnologia. Na segunda seção expomos a continuidade da crítica à tecnologia apresentada nos anos de 1940, ou seja, o desenvolvimento dessa crítica nos de 1960 e, por fim, na terceira seção apresentamos a proposta de Marcuse para a construção de uma nova tecnologia. O resultado obtido é que o filósofo compreende a tecnologia existente como instrumento de dominação e controle social. Conclui-se que Marcuse apresenta uma crítica da tecnologia existente e propõe uma nova tecnologia capaz desenvolver a pacificação da existência.

1 O conceito de tecnologia na década de 1940 Em seu primeiro texto dedicado ao tema da tecnologia, Algumas implicações sociais da tecnologia moderna (1941), Marcuse apresenta considerações importantes sobre como compreende o tema e ao mesmo tempo levanta questões que só iria desenvolver de forma mais determinada em Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 suas obras posteriores. Alguns dos assuntos levantados e compreendidos por Marcuse nesse texto publicado na década de 40 foram a distinção entre técnica e tecnologia; a definição do conceito de racionalidade tecnológica; a relação da sociedade capitalista com a tecnologia e como essas relações sociais convergem para a manutenção da burguesia como classe dominante e dos trabalhadores como classe dominada. Marcuse inicia aquele texto apresentando a distinção entre técnica e tecnologia, para ele “a técnica propriamente dita (isto é, o aparato técnico da indústria, transportes, comunicação) não passa de um fator parcial” (MARCUSE, 1999, p. 73)2. Essa distinção entre técnica e tecnologia é fundamental para destacar a técnica como elemento integrante da tecnologia, ela faz parte da tecnologia e esta faz parte da técnica, há uma relação de reciprocidade na qual a técnica determina a tecnologia e esta determina aquela. A distinção entre técnica e tecnologia não implica separação, pelo contrário, a organização técnica é um reflexo da organização tecnológica e vice-versa. Quando vinculada à tecnologia é impossível pensar a técnica como um fator isolado, isso porque não existe técnica sem tecnologia e nem tecnologia sem técnica. Com isso não se pretende confundir técnica e tecnologia, mas apenas ressaltar que seus modos de ser estão totalmente vinculados a ponto de tornar complexo as características que as distingue. Essas características só podem ser distinguidas se se compreende a relação de determinação recíproca entre técnica e tecnologia levando em consideração não somente critérios quantitativos, mas também critérios qualitativos. Esses critérios são essenciais para identificar que tipo de técnica e tecnologia prevalece em uma dada sociedade e até mesmo que tipo de técnica e tecnologia pode e deve ser desenvolvida em determinadas relações sociais. Se uma dada sociedade recusa os critérios qualitativos, isto é, os critérios que diz respeitam à melhoria da qualidade de vida em termos humanos e organiza a técnica com base apenas nos critérios quantitativos, ela (a técnica) tende a organizar-se para a produtividade supérflua, lucrativa, e nesse sentido a técnica é ruim. No entanto, se uma determinada sociedade valoriza os critérios qualitativos e os apresenta como fator determinante para o desenvolvimento técnico, os seus produtos promovem a pacificação da existência e, nesse sentido a técnica é boa.

2 De acordo com Marilia Mello Pisani, “a ‘técnica’ é vista enquanto o conjunto de instrumentos criados pelos indivíduos para a manutenção de sua existência e a ‘tecnologia’ enquanto o modo de produção que utiliza a técnica como instrumento de dominação” (PISANI, 2008, p. 6).

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 Os conceitos valorativos “bom” e “ruim” advindos dos critérios qualitativos demonstram que a técnica carrega consigo determinados valores e que, portanto, a técnica não pode ser vista como neutra. Desse modo, já na compreensão da técnica na década de 40 Marcuse recusa todo e qualquer pensamento que a vincule à neutralidade, a técnica não é neutra porque a tecnologia também não o é. Tendo isso em vista, Marcuse define a tecnologia como um “processo social”, como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação (MARCUSE, 1999, p. 73).

Nessa citação percebe-se facilmente que Marcuse enfatiza a não neutralidade da tecnologia capitalista. A tecnologia não é um elemento separado da totalidade da realidade existente, pelo contrário, está totalmente vinculada à organização social estabelecida e dessa maneira representa as ideias dominantes em uma determinada época, ou seja, representa as ideias da classe dominante3. A tecnologia moderna é um processo social específico desenvolvido pela sociedade capitalista, um modo de produzir, de fazer, de construir e (des)organizar a vida de acordo com os interesses da classe dominante. A tecnologia representa a sociedade capitalista, em outras palavras, a sociedade existente é uma sociedade tecnológica e tudo que se encontra no seu interior mantem uma relação com a tecnologia. Afirmar que a sociedade é tecnológica significa dizer que as relações sociais existentes determinam e são determinadas por um modo de produção cujo objetivo é transformar todas as coisas em meros instrumentos de dominação e exploração do mundo. Explorar e dominar o mundo requer mentes e corpos treinados e preparados para concordar com todas as regras impostas. A força dessa tecnologia consiste justamente na sua capacidade de reduzir o pensamento ao ato de obediência e o comportamento ao ato de repetição das relações sociais estabelecidas. A tecnologia existente é a tecnologia capitalista e ela tem sua própria racionalidade: a “racionalidade tecnológica”. Segundo Marcuse (1999, p. 74), “No decorrer do processo tecnológico, uma nova racionalidade e novos padrões de individualidade se disseminaram na sociedade (...)”, esse novo individualismo é o pensamento e comportamento do sujeito que não consegue mais diferenciar 3 Marx e Engels já apresentaram, no seu A Ideologia alemã, a relação existente entre classe dominante, sociedade e força material (tecnologia). Cito: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (MARX;ENGELS, 2007, p. 47).

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 entre os seus próprios interesses e as necessidades do aparato tecnológico. Os objetivos externos impostos pelo aparato de produção tecnológico se sobrepõem aos objetivos do indivíduo e acabam tornando-se os seus objetivos. O novo individualismo domina a sociedade capitalista e transformase em racionalidade tecnológica4. A racionalidade tecnológica está presente no modo de produção capitalista, isto é, na tecnologia capitalista e como tal ela se manifesta como coisificação da Razão, como processo de transformação do pensamento em instrumento de dominação e destruição da vida5. Para essa forma específica de racionalidade a vida só pode e deve subsistir na medida em que seja capaz de ser eficiente para executar as tarefas necessárias à produção e reprodução do status quo. A racionalidade tecnológica é uma relação social na qual homens e mulheres introjetam e imitam na sua forma viver as regras de funcionamento do aparato de produção tecnológico. Não é simplesmente a transformação dos trabalhadores em máquinas no seu ambiente de trabalho alienado, a racionalidade tecnológica domina todas as dimensões da existência. As características de padronização, eficiência e cálculo que constituem essa racionalidade estão presentes no pensamento e comportamento dos indivíduos do nascer do Sol ao cair da noite. Há um padrão de mercadorias preestabelecido que todos devem consumir, todos devem ser eficientemente produtivos nos seus afazeres e calcular todas as suas ações durante as vinte e quatro horas do seu dia. Assim, a racionalidade tecnológica perpetua a sociedade capitalista. Portanto, Marcuse compreende a relação entre sociedade capitalista e tecnologia como uma relação de determinação recíproca. A sociedade estabelecida determina o modo de tecnologia que pode e deve ser produzido e ao mesmo tempo a tecnologia existente determina o modo de organização social. A tecnologia carrega consigo os valores da classe dominante, eles são inerentes à tecnologia, já estão presentes no projeto tecnológico e contribuem para o desenvolvimento das relações sociais de dominação existente na sociedade capitalista6.

2 O conceito de tecnologia na década de 1960

4 De acordo com Kellner (2015, p. 11), “Em particular, Marcuse desenvolve uma concepção de um mundo tecnológico similar em alguns aspectos àquela desenvolvida por Heidegger (...) vê a racionalidade tecnológica colonizar a vida cotidiana, roubando a liberdade e individualidade dos indivíduos por impor imperativos tecnológicos, regras e estruturas sobre seu pensamento e comportamento.” 5 Para Isabel Loureiro (2003, p. 28), “Marcuse não se limita a criticar a tecnologia, como muitos de seus contemporâneos, mas passa à crítica da racionalidade tecnológica, fundamento último da ‘sociedade tecnológica’.” 6 “A tecnologia desenvolve um novo estilo de vida no qual o pensamento e comportamento da classe dominante e alguns de seus valores: competição, eficiência e produtividade já estão prescritos nos produtos oferecidos pela sociedade prevalecente” (IVO, 2018, p. 79).

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 Esse modo de compreender a tecnologia fica claro e dissipa quaisquer dúvidas a respeito do pensamento de Marcuse sobre o tema da tecnologia na década de 1960, quando o filósofo escreve seu livro principal intitulado O homem unidimensional e outros textos importantes que apresentam a compreensão de Marcuse sobre o tema em questão – ainda que nesses textos não esteja presente um estudo aprofundado sobre a tecnologia. Para citar apenas alguns exemplos da forma como o filósofo apresenta sua concepção de tecnologia nesse livro, cito: “Nossa sociedade se distingue pela conquista das forças sociais dissidentes mais precisamente pela Tecnologia do que pelo Terror, sobre a dupla base de uma eficiência esmagadora e de um crescente padrão de vida” (MARCUSE, 2015, p. 32)7. Aqui Marcuse aprofunda o que já tinha compreendido e apresentado no texto Algumas implicações sociais da tecnologia moderna (1941), a saber, a técnica e a tecnologia como modo de produção, aparato técnico, sistema tecnológico, sociedade tecnológica. Como vimos acima, no texto de 1941 Marcuse já percebera tanto a distinção quanto a unidade entre técnica e tecnologia como modo de produção desenvolvido com o objetivo de perpetuar as relações sociais estabelecidas. Em O homem unidimensional (1964) Marcuse abandona essa distinção e aprofunda a unidade da técnica e tecnologia como parte e totalidade da sociedade capitalista, técnica e tecnologia como relação social de dominação da classe trabalhadora, construída para manter a sociedade capitalista. Dando continuidade à compreensão de tecnologia desenvolvida na década de 40, nos anos de 1960 Marcuse apresenta a crítica da tecnologia existente na sociedade capitalista, ele recusa a noção de que o sistema tecnológico vigente possa contribuir para melhorar a qualidade da vida dos seres vivos. Marcuse rejeita a ideia de neutralidade da tecnologia 8 e, por conseguinte, a noção de que a tecnologia estabelecida pode servir tanto para o bem quanto para o mal, tanto para a libertação quanto para a dominação, tanto para a construção de uma sociedade comunista quanto para o desenvolvimento de uma sociedade capitalista. Mais uma vez Marcuse chama atenção para o vínculo entre sociedade e tecnologia: o aparato técnico de produção e distribuição (com um crescente setor de automação) funciona não como a soma total de meros instrumentos que podem ser isolados de seus 7 Ainda no livro O homem unidimensional Marcuse afirma que “O progresso técnico, estendido a um sistema total de dominação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que parecem reconciliar as forças que se opõem ao sistema e derrotar ou refutar todo protesto feito em nome das perspectivas históricas de libertação do trabalho árduo e da dominação” (MARCUSE, 2015, p. 33). 8 Segundo Marcuse, “Diante das características totalitárias dessa sociedade, a noção tradicional de ‘neutralidade’ da tecnologia não pode mais ser sustentada. A tecnologia enquanto tal não pode ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na construção das técnicas” (MARCUSE, 2015, p. 36).

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 efeitos sociais e políticos, mas antes como um sistema que determina a priori o produto do aparato assim como as operações para servi-lo e ampliá-lo (MARCUSE, 2015, p. 36).

Na sociedade capitalista a forma e o conteúdo da tecnologia são pensados para satisfazer as necessidades e interesses dominantes, alcançar os objetivos do modo de produção e reprodução da vida existente torna-se um dos critérios decisivos para o estímulo da criatividade científica9: a ciência torna-se política e a política torna-se ciência10. Esta se transforma numa arma da luta de classe – a arma da burguesia contra a classe trabalhadora – pois os próprios conceitos científicos estão saturados com os valores do projeto de vida burguês. Nesse sentido, a ciência é dominação não apenas na aplicação de um determinado objeto científico-tecnológico (no seu uso), mas na própria formulação dos conceitos que conformam o objeto científico-tecnológico. Na sociedade tecnológica os conceitos que representam as necessidades e valores quantitativos prevalecem sobre as ideias que expressam as necessidades e interesses qualitativos. As noções que orientam o projeto tecnológico devem levar em consideração primeiramente o retorno lucrativo que a tecnologia pode trazer aos seus investidores e só depois o benefício que ela pode gerar à vida humana é levado em consideração. A prioridade de valores quantitativos sobre os valores qualitativos por si só já é um problema importante a ser discutido e justifica a recusa da tecnologia vigente e pode desenvolver a necessidade de se pensar a possibilidade de uma nova tecnologia que priorize os valores humanos. Ademais, quando a sociedade capitalista leva em consideração o elemento que diz respeito aos valores qualitativos é preciso questionar o que essa sociedade compreende por valores qualitativos, em outras palavras, que tipo de relações sociais ela considera parte do valor da qualidade de vida. Se na sociedade existente seres humanos não têm o que comer, o que vestir e onde morar percebe-se facilmente que os valores qualitativos – cuja definição pode ser resumida num viver, viver bem e viver melhor – não são levados em consideração. Portanto, a ausência dos valores qualitativos na sociedade estabelecida é a prova “empírica” de que os valores quantitativos determinam o projeto tecnológico. Sendo assim, “A tecnologia serve para instituir novas formas, mais efetivas e prazerosas de controle e coesão social.” (MARCUSE, 2015, p. 36) Exploração, poder e dominação são os valores

9 Renato Dagnino explica que “Em nossa percepção, o que estamos acostumados a chamar de ciência e tecnologia são coisas que a contemporaneidade torna cada vez mais inseparáveis. Até mesmo os limites das atividades que as originam se têm tornado quase indistinguíveis” (DAGNINO, 2008, p. 25). 10 Marcuse afirma que “Através de sua relação com as necessidades sociais prevalecentes, o trabalho do cientista adquire um valor social; seu trabalho incorpora as características das tendências sociais predominantes e torna-se progressivo ou regressivo, construtivo ou destrutivo, libertador ou repressivo em termos da proteção e melhoramento da vida humana” (MARCUSE, 2009, p. 160).

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 que constituem o projeto de organização social imposto pela burguesia à classe trabalhadora. Nessa sociedade, a tecnologia não passa de um instrumento capaz de tornar eficiente o modo de vida existente e isso consiste em aperfeiçoar e perpetuar os valores que conformam a sociedade capitalista. Assim, com a ajuda desse instrumento a “euforia prevalece na infelicidade” (Marcuse) e a servidão parece voluntária. O fato de alguns produtos fornecidos à classe trabalhadora graças às descobertas científicotecnológicas promoverem um bem-estar social e, por conseguinte, a aceitação de uma vida de trabalho degradante e uma existência mais ou menos miserável não invalida a crítica da tecnologia capitalista. Os próprios “confortos” desenvolvidos pela tecnologia são instrumentos de dominação de classe e contribuem mais para a conformação do pensamento e comportamento aos fatos do que para o desenvolvimento de uma consciência e prática capaz de transformar esses fatos11.

3 A nova tecnologia As considerações a respeito da tecnologia apresentadas nas seções anteriores desenvolvidas pela teoria crítica marcuseana não podem simplesmente ser enquadradas nas falsas interpretações de que: 1) Marcuse é um tecnofóbico, 2) para o filósofo o problema não é a tecnologia, mas apenas a racionalidade tecnológica ou 3) não propõe um projeto de tecnologia alternativa capaz de superar a tecnologia estabelecida. Em primeiro lugar, Marcuse não tem aversão à tecnologia, mas sim aversão à tecnologia capitalista que carrega consigo os valores da sociedade capitalista12. Para o filósofo, a organização tecnológica desenvolvida para a dominação não pode servir para a construção da libertação; “A organização para a paz é diferente da organização para a guerra; as instituições que serviram para a luta pela existência não podem servir para a pacificação da existência.” (MARCUSE, 2015, p. 54) A tese que defende que Marcuse critica a racionalidade tecnológica, mas não a tecnologia é totalmente falsa13. Não existe separação entre tecnologia e racionalidade tecnológica, o que existe é uma distinção de sentido entre uma e outra, porém os dois conceitos estão muito bem relacionados. A racionalidade tecnológica se manifesta por meio da tecnologia e ajuda a sustentar 11 Segundo Horkheimer, “Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte do pensamento e da atividade do homem, sua autonomia como um indivíduo, sua capacidade de resistir ao crescente aparato de manipulação de massa, seu poder de imaginação, seu juízo independente são aparentemente reduzidos” (HORKHEIMER, 2015, p. 8). 12 De acordo com Isabel Loureiro, “Marcuse não quer eliminar a técnica e voltar à ‘selvageria original’ (...), e sim substituir o ‘sistema técnico’/ ‘tecnologia’ capitalista por outro menos alienante” (LOUREIRO, 2003, p. 26). 13 Marcuse afirma que “O superdesenvolvimento técnico e científico fica desmentido quando os bombardeiros equipados de radar, os produtos químicos e as “forças especiais” da sociedade afluente desencadeiam-se sobre os mais pobres da Terra, seus barracos, hospitais e campos de arroz” (MARCUSE, 2015, p. 16).

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 o sistema tecnológico, este, por sua vez, incentiva e fortalece a reprodução da racionalidade tecnológica. A relação de determinação recíproca entre tecnologia e racionalidade tecnológica é tanto inegável quanto inseparável. Por isso Marcuse insiste na transformação da tecnologia existente como momento fundamental para a superação da sociedade capitalista e construção de uma vida qualitativamente diferente. A transformação tecnológica a qual o filósofo se refere não diz respeito simplesmente a uma mudança no direcionamento da tecnologia, quer dizer, a mudança que Marcuse propõe na tecnologia não se refere a aprender a utilizar a tecnologia de maneira correta, como se ela fosse uma “faca de dois gumes” que pode servir tanto para o bem quanto para o mal. A questão não é se o indivíduo usa a tecnologia para o bem ou para o mal, isso não é a raiz do problema, o ponto fundamental é bem mais complexo. Para Marcuse, a essência da questão está no próprio modo de se pensar a tecnologia enquanto tal. Nesse sentido, o problema da tecnologia não está apenas na sua aplicação e, por conseguinte, não se trata única e exclusivamente dos efeitos, resultados decorridos da má aplicação tecnológica, mas sim da própria teoria que projeta a tecnologia, em suma, o problema da tecnologia é o seu a priori tecnológico. Com o conceito “a priori tecnológico” Marcuse determina que a própria teoria e os conceitos científico-tecnológicos que dela fazem parte já estão saturados com os valores da sociedade na qual nasceram e se desenvolveram e, portanto, representam, compartilham e manifestam as ideias dominantes de compreensão do mundo. Nesse caso, a tecnologia torna-se um projeto social destinado a realizar os fins específicos estabelecidos pela sociedade em que nascera e só uma transformação da própria concepção de tecnologia e, consequentemente, uma alteração radical do sistema tecnológico existente é capaz de transformar a tecnologia da dominação em tecnologia da libertação. É nisso que consiste a concepção de uma nova tecnologia para Marcuse. A mudança qualitativa também envolve uma mudança na base técnica sobre a qual essa sociedade se assenta – uma base que sustenta as instituições políticas e econômicas por meio das quais é reforçada a ‘segunda natureza’ do homem como um objeto agressivo de administração. As técnicas de industrialização são técnicas políticas. Como tais, elas prejulgam as possibilidades da Razão e da Liberdade (MARCUSE, 2015, p. 54).

Os critérios para a transformação da tecnologia da dominação em tecnologia da libertação são a realização do sentido dos conceitos de Razão e Liberdade, porém não se trata do sentido de razão enquanto instrumento de dominação e exploração dos seres humanos e da natureza, nem muito menos do sentido de liberdade para escolher entre as diversas mercadorias expostas nas

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 vitrines. Aqui os conceitos de Razão e Liberdade são definidos como o fim da labuta, a satisfação das necessidades básicas e a criação de novas necessidades qualitativamente diferentes, o desenvolvimento das capacidades humanas e a pacificação da existência. Enfim, Razão e Liberdade como construção de uma sociedade emancipada14. Sendo assim, Marcuse afirma que “assim como toda liberdade depende da conquista de necessidades de outra natureza, a realização da liberdade depende das técnicas dessa conquista” (MARCUSE, 2015, p. 54). Nesse sentido, a nova tecnologia deve proporcionar a criação e satisfação de novas necessidades, necessidades que estejam de acordo com uma sociedade emancipada bem como as novas necessidades devem fomentar o desejo por uma nova tecnologia capaz de desenvolver a emancipação humana. A construção da nova tecnologia é acompanhada pelo surgimento de necessidades e interesses que a velha tecnologia não pode satisfazer porque não corresponde às verdadeiras necessidades e interesses humanos. Com isso, a nova tecnologia pode e deve ser uma tecnologia estudada e projeta para a criação e descobertas de teorias e objetos não prejudiciais à vida dos seres vivos; ela pode e deve ser uma tecnologia contra a produção de automóveis poluentes e para a construção de veículos não poluentes; uma tecnologia contra a invenção de armas, mas interessada em embelezar a vida; uma tecnologia incapaz de criar brutalidade, porém capaz de promover uma vida sem angústia, medo e preocupação, isto é, uma existência pacificada.

Considerações finais Portanto, o projeto de uma nova tecnologia de Marcuse não consiste simplesmente em mudar a utilização da tecnologia capitalista – em vez de ser utilizada para os fins do capital, passar a ser utilizada para os fins do socialismo – mas consiste em transformar o próprio modo de pensar e fazer tecnologia. O projeto de uma nova tecnologia apresentado pelo filósofo se fundamenta na questão dos valores, ou seja, o próprio conceito de ciência, as próprias categorias tecnológicas devem representar e expressar os valores de uma sociedade qualitativamente diferente. A tecnologia deve ser pensada conforme as relações sociais de uma sociedade emancipada. Aqui também se sobrepõe mais uma vez o vínculo existente entre tecnologia e sociedade. As relações sociais de uma determinada sociedade podem perpetuar o domínio e controle do indivíduo

14 Segundo Marcuse, “A diferença qualitativa da nova etapa da nova sociedade deveria ser vista não na satisfação das necessidades vitais e espirituais (que, evidentemente, continuam sendo a base de todo desenvolvimento), e sim no aparecimento de satisfação de novas necessidades, reprimidas na sociedade antagônica” (MARCUSE, 1966, p. 164-5).

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 ou podem promover um estado de coisas no qual o sujeito possa desenvolver plenamente as suas potencialidades humanas. A predominância da dominação ou da liberdade depende fundamentalmente dos valores pelos quais uma determinada sociedade se organiza. Se nessa sociedade os valores quantitativos, por exemplo, a busca desenfreada pelo lucro, prevalece sobre os valores qualitativos, por exemplo, o desenvolvimento da vida, da vida boa e da vida melhor, então a possibilidade da invenção de uma nova tecnologia da libertação é bem reduzida ou mesmo quase impossível. Porém, se são os valores qualitativos que predominam sobre os valores quantitativos essa nova tecnologia pode ajudar a criar um uma sociedade cada vez mais livre. Para Marcuse essa nova tecnologia só pode vir a existir de forma desenvolvida quando o mundo existente que a ciência estabelecida utiliza para suas experiências – base de estudos, descobertas e valores da tecnologia vigente – for totalmente transformado. Somente com o surgimento de um novo mundo de experiência – base de estudos, descobertas e valores da nova tecnologia – a ciência pode deixar de ser instrumento de dominação de classe e começar a ser ciência, quer dizer, começar a exercer o telos inerente à própria ciência: melhorar a vida de todos os seres vivos. Em um novo mundo emancipado o próprio modo de o sujeito se relacionar com a natureza seria transformado, a natureza não seria mais vista como simples matéria sem vida disponível para exploração humana. O indivíduo compreenderia a natureza como a dimensão da existência na qual a possibilidade de uma vida qualitativamente melhor seria desvelada. No entanto, alguma mente mais “astuta” pode levantar a seguinte questão: como o mundo-objeto de experiência da ciência estabelecida pode ser transformado? A resposta já foi dada por Marx; e Marcuse a “repete”: com a revolução socialista.

REFERÊNCIAS: DAGNINO, R. P. Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico: um debate sobre a tecnociência. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. Tradução de Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Editora Unesp, 2015. IVO, R. “Introdução ao estudo da sociedade industrial avançada em Herbert Marcuse”. Diaphonía. Cascavel, v. 4, n.1, 2018, pp. 70-89. Disponível em: http://erevista.unioeste.br/index.php/diaphonia/article/view/19860/12936 Acesso em: 28 mar. 2018.

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O conceito de tecnologia no pensamento de Herbert Marcuse: estudo introdutório, pp. 222-234 KELLNER, D. Introdução à 2ª edição. In: MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Tradução de Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: Edipro, 2015. LOUREIRO, I. Breves notas sobre a crítica de Herbert Marcuse à Tecnologia. In: PUCCI, B; LASTÓRIA, L. A. C. N; COSTA, B. C. G.(orgs.). Tecnologia, cultura e formação... ainda Auschwitz. São Paulo: Cortez, 2003. MARCUSE, H. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. 8. ed. [Reimpr]. Rio de Janeiro: LTC, 2015a. ________. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Tradução de Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: Edipro, 2015b. ________. A responsabilidade da ciência. Tradução de Marilia Mello Pisani. Scientle Studia. São Paulo, v. 7, n. 1, 2009, pp. 159-164. ________. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In: _______. Tecnologia, guerra e fascismo. Tradução de Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. ________. Sobre o conceito de negação na dialética. In: _______. Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade. Tradução de Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972. MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feurbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. PISANI, M. M. Técnica, ciência e neutralidade no pensamento de Herbert Marcuse. 2008. 235f. Tese (Doutorado) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Metodologia das Ciências, Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, 2008.

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VIRTUDE MORAL, SOCIABILIDADE E PODER NO GÓTICO DO SÉCULO XVIII: RADCLIFFE E LEWIS Mariana Dias Pinheiro Santos1

RESUMO: Os autores góticos, desde sua origem, como se sabe, estão preocupados com uma recusa de certos ideais propostos pelo iluminismo e com um restabelecimento, em certa medida, de certas formas de lidar com a sociabilidade e a virtude moral. Para tornar isso evidente, será necessário, em um primeiro momento, situar o leitor acerca dos aspectos para a formação do novo gênero, ainda que tenham sido rejeitados por ele, e, no segundo momento, apresentar algumas noções comuns entre as obras que compunham a primeira fase do gótico. Com isso, acreditamos que teremos um arcabouço suficiente para compreender o problema posto pela forma pela qual Lewis e Radcliffe lidam com o sublime de herança burkeana. Nosso objetivo maior consistirá em delinear de que maneira o prazer estético de herança burkeana tomou forma nos escritos góticos de Radcliffe e de Lewis, evidenciando uma possível tensão entre as interpretações propostas por ambos os autores no que diz respeito às implicações que promovem na sociabilidade, na concepção da virtude moral e nas críticas que pretendem promover contra o iluminismo. PALAVRAS-CHAVE: Radcliffe; Lewis; Burke; terror e horror; romance gótico.

1 Graduanda do curso e filosofia da UFS, atualmente é bolsista CNPq em iniciação científica na pesquisa A ficção gótica como crítica da modernidade. Dedica-se, também, a pesquisa sobre a relação da linguagem e da mecânica na filosofia de Hobbes. É membro do grupo de pesquisa de Ética e Filosofia Política da UFS, organizadora e coautora do livro Entre o Mito e a Política, vice-presidente do Centro Acadêmico de Filosofia Livre da UFS, representante discente do conselho departamental de Filosofia da UFS.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 MORAL VIRTUE, SOCIABILITY AND POWER IN 18TH CENTURY GOTHIC: RADCLIFFE AND LEWIS ABSTRACT: The gothic authors, since the beginning, as it is known, are concerned about the rejection of certain ideals proposed by the Enlightenment and a reestablishment, to a certain extent, of certain means of dealing with the sociability and the moral virtue. To make this clear, it will be required - to the development of the new genre, and, in second place, to present some common concepts between the two works which compose the first phase of gothic. With this, we believe that we will have enough theoretical framework to comprehend the problem put by the way in which Lewis and Radcliffe deal with the lofty of the burkean’s heritage. Our most important aim will consist of outlining in which way the esthetic pleasure of the burkean’s heritage took shape in the gothic writings of Radcliffe and Lewis, highlighting a possible stress between the interpretations proposed by both authors concerning the implications which foster themselves in the sociability, in the moral virtue and in the critics that intend to promote against the Enlightenment. KEY-WORDS: Radcliffe; Lewis; Burke; terror and horror; gothic novel.

I Considerações iniciais O nascimento do romance gótico, como o de qualquer outro novo gênero, pôde buscar suas formas a partir das raízes sociais, históricas e literárias dispostas em seu tempo. Este novo gênero, ao reunir tais características, inaugurou o “romance de horrores”, que correspondia, segundo Carpeaux (2008), a uma necessidade espiritual das massas que permitia a evasão para fora da monotonia cinzenta da vida pequeno-burguesa, incluindo – e eis o novo ingrediente – elementos sobrenaturais para abordar tais necessidades. Diante de uma cultura que pretendia normatizar a sociabilidade e o tratamento com as paixões, era necessário reagir a esse tipo de doutrina; e o meio pelo qual a nova espécie de romance pode expressar o seu posicionamento em relação aos elementos que compunham certos ideais filosóficos (que podemos ver, por exemplo, Hume, Shaftesbury, Mandeville, Addison) ligados a moralidade e sociabilidade, foi através do uso de elementos sobrenaturais evocados pelo terror e pelo horror. Este novo gênero, como se sabe, apesar de ter nascido com Walpole em O castelo de Otranto, se consolida apenas com Radcliffe em Os Mistérios de Udolfo, no qual as características do terror e do horror, herdadas de considerações desenvolvidas por Burke em Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo, são exploradas e disseminadas com certa amplitude. A maneira pela qual o medo é engendrado no homem é posta em marchas de forma exemplar em Os mistérios de Udolfo; repetições distantes de sons da escuridão, luzes fracas que restringem o alcance da visão, arquitetônicas gigantes que paralisam o espírito são alguns dos exemplos que podemos mencionar. Radcliffe buscou contemplar a obra estética de Burke para solidificar, em certa medida, o modelo de escrita gótica que integrou; o uso do medo era tido, pela autora, como um meio de expandir a mente humana – através do sublime – e forçá-la a um encontro com princípios morais

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 que considerava elevados, geralmente rejeitados pela sociedade moderna de sua época. Coisa que será tomada de forma diferente por autores como Lewis. Dito isso, nosso objetivo consistirá em tentar delinear de que forma o prazer estético gerado pelo sublime, herdado de Burke, tomou forma nos escritos góticos de Radcliffe e de Lewis, evidenciando uma possível tensão entre as interpretações propostas por ambos. Ficará evidente, ainda, que os autores góticos, mesmo a partir de Walpole, estão preocupados com uma certa recusa dos ideais propostos pelo iluminismo e com a retomada, em certa medida, de certas formas “medievais” de lidar com a sociabilidade e com a virtude moral. Para isso, acreditamos que seja necessário, em um primeiro momento, situar o leitor acerca dos aspectos que contribuíram para a formação novo gênero – e rejeitados por ele –, e, no segundo momento, apresentar algumas noções comuns entre as obras que compunham a primeira fase do gótico. Com isso acreditamos que teremos um arcabouço suficiente para compreender o problema posto pela forma que Lewis e Radcliffe lidam com o sublime de herança burkeana, e as implicações que cada um pode notar no âmbito da sociabilidade e da virtude moral.

II Nascimento e aspectos comuns do gótico do XVIII Antes de entrar propriamente nos eixos centrais do problema proposto, é importante apresentarmos, para fins introdutórios, alguns aspectos comuns que circundavam o gótico inglês dezoitista; esta atitude é justificada por nós como necessária em virtude da escassa bibliografia nacional sobre o tema. Dito isso, em primeiro lugar, precisamos sublinhar de que lugar político se viam as condutas adotadas pelo gênero. Como delineado anteriormente, os autores que fizeram parte deste movimento literário recusavam certos valores importantes para o iluminismo. Por exemplo, Bacon e Descartes, deslocaram, grosso modo, o encontro da verdade que se localizava na iluminação divina (ou nos valores escolásticos) para o uso de métodos empíricos ou racionais2. Novas terras e culturas foram descobertas, antigos textos foram reencontrados e postos defronte com a tradição vigente. Essa revolução científica implicou em novos refinamentos e formas de lidar com o mundo, o eixo da sociabilidade, bem como o eixo da verdade foram alterados. Hobbes, Hume e Locke, por exemplo, construíram teorias que evidenciavam como a natureza e a razão humana operalizavam. Mandeville, Shaftesbury, Hume e Addison3 apontaram para a necessidade de se repensar a sociabilidade e o uso dos refinamentos. Em suma, a filosofia moldou novos valores que contradiziam os antigos. Essa nova sociedade, inspirada por tais valores, causou medo e anseios em alguns, e, aqui, refiro-me em particular aos escritores góticos. Estes sentimentos inclinavam tais autores à insegurança; uma nova narrativa foi gerada, como aponta Botting (2005). A dualidade entre luz e trevas, barbárie e polidez, bem e mal faziam parte do repertório, mas o deletério, agora, referia-se à Idade das Trevas e seu obscurantismo. Não cabe, aqui, dizer se a resposta dada por tais autores é uma resistência a moldes impostos como aponta Carpeaux (2008), ou um ato de conservadorismo,

2 A este respeito conferir: SANTOS, M. D. P. O ideal de ciência na modernidade: Bacon e Descartes. Investigação Filosófica. Macapá, v. 10, n. 1, 2019, p. 63-73. 3 A este respeito conferir: CARPEAUX, O. História da literatura ocidental (volume II). Brasília, Edições do Senado Federal – Vol.107-B, 2008.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 como aponta Botting (2005). O que queremos é apenas evidenciar que – além de se relacionarem com uma certa identidade política da época – existiam tensões e anseios que precisavam ser trabalhados. O uso da razão, destituída de paixão, poderia privar o indivíduo de uma relação social com verdadeiros sentimentos, ou poderia realmente fornecer respostas a todos os problemas? O refinamento incentivado nas normas de convivência poderia fazer com que, por isso, os homens usassem máscaras sociais e se tornassem superficiais? Abrir mão da ordem e da verdade religiosa poderia nos condenar ao sofrimento eterno? As ordens hierárquicas e o jusnaturalismo seriam destruídos? Essas eram algumas das tensões vividas pelos romancistas. Enquanto a maior parte da literatura, como apontam Botting (2005) e Carpeaux (2008), estava preocupada com uma formação moral refinada e adequada, o gótico era entendido de outra forma: como um formador deletério. A moral religiosa e jusnaturalista, a expansão da imaginação, o sublime, a representação natural foram preocupações do gótico, vistas pelos críticos como um convite a excitação e subversão. Note-se, ainda, que, segundo Massier (2005), as classes altas da Inglaterra não queriam participar da distribuição de obras consideradas como inadequadas, vulgares e de péssimo gosto; esta alta classe estava preocupada, ainda, com evitar a mistura entre uma alta e uma baixa cultura4. Seja como forma de escapismo, seja como resistência, seja como conservadorismo, o gótico deu voz a preocupações abafadas, oprimidas e limitadas, como aponta Botting (2005), pelos ideais iluministas. Em suma, se de um lado vemos Hume defendendo um certo afastamento de paixões violentas5, por serem deletérias ao convívio e formação dos indivíduos ou, ainda, Mandeville, Shaftesbury e Addison apontarem para a necessidade uma sociabilidade refinada e respeitosa na qual as paixões mais grotescas sejam suprimidas; do outro, temos as personagens de Radcliffe, Lewis e Walpole6 optando sempre pelo uso e afloramento de tais paixões, criando laços e relações enviesadas pelo irascível. Lembremo-nos que as fantasias e os medos desenhados pelos romancistas, podem significar a projeção de medos sociais, e como afirma Botting (2005), “O excesso emanava de dentro, de motivações escondidas e patológicas que a racionalidade era impotente para controlar” e “Estas ansiedades variaram de acordo com as diversas mudanças: revolução política, industrialização, urbanização, mudanças na organização sexual e doméstica, e descoberta científica”7. Em resumo, a ficção gótica pode ter sido vista por seus detratores como uma “celebração de paixões desenfreadas” e de valores incultos8 (Botting, 2005), mas o que estava produzindo, na verdade, eram limites capazes de distinguir (e de entender) aquilo que o iluminismo,

4 Talvez essa preocupação se deva a Walpole participar de uma alta classe, ser um legislador e um frequentador, como aponta Carpeaux (2008), dos salões refinados de madame Du Deffan. Este contava com figuras como Johnson, Turgot, Condocert e D’Allmbert. 5 A este respeito conferir: SANTOS, M. D. P. Educação e Polidez em David Hume. In: VIII Encontro de Pesquisadores Iniciantes das Humanidades. São Cristóvão: Editora UFS, 2019. 6 Miles (2012) informa que uma distinção foi cunhada para apresentar as escolas góticas de Radcliffe e Lewis: romance feminino e romance masculino. Cada um contava com aspectos considerados como “comuns” ou mesmo “naturais" por seus respectivos gêneros. 7 BOTTING, F. Gothic. Londres; Nova York: Routledge, 2005, p. 2. Tradução nossa. 8 Posteriormente, como veremos a partir de Radcliffe, tais ideais tornam-se associados a um potencial de expansão da mente, através da imaginação, que colaboraria com uma produção estética, como aponta Botting (2005), e para a formação moral dos indivíduos, como aponta Lipski (2018).

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 para eles, era incapaz de responder. Por isso era necessário, para tais autores, recusar aspectos importantes da modernidade filosófica9. A religião passa a ser considerada um ambiente de explicações autoritárias, mas o romance gótico, como aponta Botting (2005), não vê a situação dessa forma. Em O Castelo de Otranto e em O Monge, há uma clara força divina e poderosa que pune, impiedosamente, as personagens que não souberam respeitá-las. Manfredo, príncipe do castelo de Otranto, ao longo do romance é atormentado por sua conduta herege. Ambrósio, por outro lado, é uma figura monástica que abandona seus valores religiosos para uma busca inesgotável da satisfação de seus prazeres. Em conclusão, o destino dessas personagens não é nada agradável; Manfredo vê seu principado sucumbir, mata – por engano – sua filha e é “preso” em um convento; enquanto Ambrósio, em última instância, sente-se obrigado a pactuar literalmente com o diabo e é condenado ao sofrimento eterno do pós-vida. Grosso modo, ainda que estes textos sejam considerados pelos comentadores, quase que unanimemente, como satíricos, isso não significa dizer que estavam destituídos de críticas e anseios. Ora, as figuras mais distantes da moral 10 religiosa são punidas pela ordem divina, e, com isso, o mal é vencido pelo bem. Não podemos perder de vista, ainda, que a obra inaugural do romance de horrores, O Castelo de Otranto, em sua primeira edição, contou com Walpole – por desejo próprio – ocultado sob a capa de um tradutor11. Neste primeiro prefácio, nos é informado que o romance “traduzido” do italiano foi escrito em um dos períodos no qual a literatura mais floresceu, no qual as superstições poderiam ser amplamente e sem discrição alguma divulgadas. O “tradutor” chega a afirmar que esta obra pode ter sido escrita por algum padre não reformista com a intenção de reafirmar antigas crenças. Lembremo-nos que, a reforma promovida por Lutero, inicialmente as suas 95 teses, é uma das grandes marcas da modernidade, à qual Walpole fez questão de tecer sua crítica. Mas, não só isso, a alusão a Idade Média como suposta época em O Castelo de Otranto teria sido escrita, é um dos pontos característicos do romance gótico, “A escolha de tal cronótopo não é aleatória, já que a ontologia medieval acataria os elementos sobrenaturais e maravilhosos” 12. Notem que a suposta época é caraterizada, pelo autor, como um eixo de florescimento da literatura e da superstição, coisas inadmissíveis para o iluminismo. Wanderlei (2014) nos explica que a proposta de Walpole foi norteada pela invenção em contraposição ao decoro, e, com isso, a imaginação é afirmada, e isto abre margem para os desdobramentos que este gênero terá. Não esqueçamos, ainda, que uma das razões que motivou Walpole a fundar o gênero gótico foi seu declarado anseio de reproduzir, de forma natural, as reações e paixões humanas – que em suas personagens sempre atuam contra o esperado pela modernidade. Ademais, o jogo conceitual “trevas” e “luz” era feito conscientemente pelos modernos – como aponta Habermas (2000) em seu Discurso Filosófico da Modernidade. Esta conduta, ao lado das 9 Balieiro (2017) afirma que justamente por o gênero ter um caráter “marginal”, isso faria com que se tornasse um lugar seguro para retratar assuntos que não teriam espaço em outros campos e outros autores, como é o caso da violência e da sexualidade. 10 O vilão de Os Mistérios de Udolfo, Montoni, assim como as personagens supracitadas, não deposita nenhum respeito aos valores religiosos e sempre age segundo o mando de suas vontades sob a máscara de uma certa racionalidade. Seu fim, semelhante aos outros hereges, conta com o dualismo do bem vencendo o mal. 11 Este tipo de prefácio, segundo Botting (2005), tornou-se um dispositivo fundamental na escrita gótica. Trata-se, como afirma, de uma ficção da ficção, que tinha o intuito de conferir autenticidade e veracidade à história. 12 WANDERLEI, A. S. Os dois Teodoros: mutações do Gótico de Horace Walpole a E. T. A. Hoffmann. Soletras. Rio de Janeiro, n. 27, 2014, p. 33.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 anteriormente citadas, limitava o espaço que o gótico desejava reocupar. Essa dualidade, tal como a de bem e mal sobrenatural, pode ser vista representada na ambientação dos romances que compuseram esta primeira fase do gótico. Seja nas obras de Lewis, Radcliffe ou Walpole, o jogo de luzes está presente: sempre há, como apontam Botting (2005), Carpeaux (2008), Wanderlei (2014) e Miles (2012), escuridão em castelos, mosteiros, abadias, igrejas; essa escuridão, de certa forma, é capaz de direcionar suas personagens a passagens secretas e histórias familiares mal explicadas e, por vezes, para um bem. Isabella, de Walpole, através de uma passagem secreta13 e sombria do principado de Otranto, encontra, em primeiro lugar, o jovem virtuoso, e hierarquicamente compatível com seu status, com quem futuramente se casará; e, em segundo lugar, uma igreja na qual pode receber, temporariamente, segurança das vilanias de Manfredo. Emily, de Radcliffe, pode entrar em contato com a fonte dos segredos familiares14 que a circundavam, quando investigou recintos sombrios. Em suma, por vezes é necessário dirigir-se a ambientes tomados como sobrenaturais – com os quais a razão será incapaz de lidar – para encontrar a verdade e soluções das misérias vigentes. Ainda que essa jornada pelo sobrenatural possa ser terrível, penosa e, por vezes, apresentar-se como interminável, ao fim o bem e o mal serão revelados. Lembremo-nos, ainda, que a racionalidade e o do refinamento da sociabilidade, tão enaltecidos no século das luzes, podem ser entendidos como pontos de críticas interessantes nas obras de Radcliffe e Walpole. Os vilões de ambos os romances, Montoni e Manfredo, respectivamente, dissimulam uma natureza formada por paixões brandas e intelecto racional15 quando é necessário seduzir os outros e atingir os próprios objetivos. Ainda que, em determinado momento, tais máscaras caiam, isso apenas representa a vitória do bem contra o mal, na qual a ordem natural é estabelecida – seja por uma força sobrenatural ou não. Até mesmo os locais em que os romancistas optavam por fazer com que seu maquinário gótico funcionasse são uma crítica à modernidade. A ambientação sempre conta com construções de caráter gótico16, recusados por serem considerados como valores adquiridos da Idade Média.

13 Lembremo-nos que um dos principais locus do gótico, segundo Botting (2005), foi o castelo sombrio com passagens secretas que levavam a abadias, igrejas, cemitérios. Sempre era encontrado, pelas passagens, locais medievais que elucubravam um passado feudal, considerado bárbaro, repleto de superstição e medo. 14 Outro ponto que os romances góticos compartilham, além disso, é o segredo familiar. Ora, a jovem que a heroína de Radcliffe suspeita ser amante de seu pai, na verdade, é a sua tia. O principado de Otranto que o vilão de Walpole informava ser seu, foi dominado por seus antepassados, estes depuseram os verdadeiros donos. O monge de Lewis descobre que a moça pela qual tem os sentimentos mais impulsivos, é sua irmã. 15 No caso de Radcliffe, é importante ressaltarmos que a autora nutre uma relação muito particular com o que considera a verdadeira racionalidade, distinta da simulada pelo refinamento das paixões. Lembremo-nos, de antemão que a autora em seu ensaio póstumo Do sobrenatural na poesia, nota que nossas faculdades são restritas no que diz respeito, por exemplo, a conceber de que forma se dá o nosso conhecimento da ligação entre o corpo e a alma, apostando mais na revelação divina nesse caso. Esta concepção contraria autores modernos como Descartes e Ann Conwey, que se esforçam para evidenciar como somos capazes de conceber tal ligação. 16 Schopenhauer define a bela arquitetura, grosso modo, como aquela que representa a vontade humana sobrepondo-se a vontade da natureza, a grandiosidade deveria ser expressa pela regularidade, grandiosidade e o uso de linhas retas que os olhos podem abarcar por completo sem ficar perdido. Entretanto, a arquitetura gótica, segundo o autor, não era capaz de valorizar nenhum destes elementos. Tal arquitetura, regular na Idade Média, era composta por linhas irregulares nas quais a base da estrutura era extensa e afinava-se até encontrar a finura, usava frontispícios envergados, frisos e faziam com que os olhos do indivíduo ficassem perdidos por conta da grandeza e irregularidade da construção (coisa que, com a herança de Burke, tornou-se uma das formas de causar o sublime contrariando todas as correntes filosóficas até então). Ainda que possam nos acusar de certo anacronismo ao trazer a Metafísica do Belo como auxiliar para entender tais estruturas, lembremo-nos que, tal como apontam Carpeaux (2008) e Botting (2005), a arquitetura grega – exaltada por Schopenhauer ao longo de sua obra – é assumida e incorporada como valores que representam bom gosto para a cultura iluminista.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 Além disso, Carpeaux sugere que tal escolha faz parte dos elementos pseudo-históricos que permitem que a realidade se transfigure em fantástica nos romances. Os detratores deste aspecto não eram poucos: Gerard, Addison, Kames, Hume, só para mencionar alguns. Em resumo, parte destes autores considerava que tais construções recobravam barbaridades do passado e escondiam o triunfo humano sobre a natureza. Desproporção, pontas agudas direcionadas para o céu com o intuito de se aproximar do divino eram algumas de suas características, e, lembremo-nos, “Qualquer desvio dos padrões do presente, qualquer sinal de imperfeição, irregularidade e desordem, insiste Kames, mais tarde, é dolorosamente desagradável e excita um sentimento de horror pela sua monstruosidade”17. Ainda que possamos considerar, em certa medida, que Walpole, criador do gênero, estava preocupado apenas com uma retomada de valores antigos ao escolher tal arquitetura, como afirma Wanderley (2014); sabemos que, a partir de Radcliffe, tais características são elevadas ao serem observadas pela ótica do sublime burkeano – coisa que influencia escritores contemporâneos e posteriores a Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo, como veremos nas seções seguintes. O caminho que o gótico passou a seguir afastava-se do desejo moderno de exterminar, como afirma Botting (2005), os monstros da imaginação, e de engendrar os valores que consideravam necessários. Entretanto, os romancistas não estavam inconscientes do poder que a literatura era dotada para a instrução dos indivíduos, e, ao optarem pelo obscuro, pela construção gótica, pela recusa do uso de paixões refinadas e pela recusa de um racionalismo que escanteava a religião, o fizeram de forma consciente. Em suma, ao optar por tal modelo de escrita, os romancistas, tal como seus detratores, pretendiam, em certa medida formar – ou reestabelecer – uma certa forma de sensibilidade humana e ordem do mundo. Seria inocente, para não dizer inadequado, de nossa parte ignorar o contexto filosófico ao qual o gótico respondeu, e com o qual teve íntima relação18; por isso, os aspectos apontados introdutoriamente até então, devido à escassa bibliografia nacional sobre o tema, não poderiam deixar de serem apresentado. Como exemplo dessa íntima relação entre a filosofia e a ficção gótica, lembremos que Walpole desejava reestabelecer valores medievais e divinos, como afirma Wanderley (2014); Radcliffe e Lewis questionavam o novo funcionamento da sociedade em termos

Além disso, Kames, em seu Elementos da Crítica, segundo Botting (2005), afirma que “uma ruína grega sugere antes o triunfo da barbárie sobre o gosto” (tradução nossa). Hume, por exemplo, afirma em seu Ensaio sobre a cavalaria e honra dos modernos que o castelo gótico é uma marca de formação bárbara, influência considerada deletéria pelo autor. Addison, segundo Botting (2005), era apreciador da arquitetura romana e só pode enxergar as formas góticas como deletérias. Em suma, vemos que tal arquitetura, usada com certa abundancia na idade Média, como afirma Carpeaux (2008), permanece recusada e considerada como marcas de gostos bárbaros, maldosos ou ruins. Trazer Schopenhauer para o debate é interessante, pois, vemos que, ainda que na primeira fase do gótico exista uma certa “linha” presente de forma clara entre os filósofos e romancistas, o gênero sobrevive até o século seguinte usando a mesma ambientação na Inglaterra (pensemos em Frankenstein, Carmilla, Drácula), e inscreveu-se na Alemanha desde Walpole até a contemporaneidade do filósofo alemão com Hoffman, por exemplo. Para maior aprofundamento conferir BOTTING, F. Gothic. Londres; Nova York: Routledge, 2005 e WANDERLEI, A. S. Os dois Teodoros: mutações do Gótico de Horace Walpole a E. T. A. Hoffmann. Soletras. Rio de Janeiro, n. 27, 2014, p. 32-44. 17 BOTTING, F. Gothic. Londres; Nova York: Routledge, 2005, p. 23. Tradução nossa. 18 Walpole, como afirma Wanderley (2014), escreveu usando as bases dadas pela produção aristotélica e shakespeariana. Radcliffe, como informa em seu ensaio póstumo, Do Sobrenatural na Poesia, atribui acredita que há grande importância do uso do horror e do terror burkeanos como forma de se educar moralmente – coisa que Lipisk (2018) desenvolve. Lewis, como afirma Miles (2012), está envolvido tanto com a estética burkeana, quanto com um certo debate sobre “representações” e suas implicações em um indivíduo oprimido.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 de paixões e simulações, como afirmam Miles (2012) e Massier (2005); Radcliffe e Walpole invocam a importância da hierarquia social, como apontaram Wanderlei (2014) e Miles (2012); e, como um último exemplo, poucos dirão que a racionalidade não foi um tema com relação ao qual os romancistas supracitados nutriram diferentes anseios. Objetos maravilhosos, poderosos, sobrenaturais e, por vezes, sublimes evocaram um “senso indistinto de uma imensidão que excedeu a compreensão humana e, ao mesmo tempo, elevou sua sensibilidade”19. Por fim, lembremo-nos, a este respeito, das palavras de Scott20 sobre as obras de Radcliffe: mas dotadas do poder mais abençoado nesses momentos de dor e prostração em que toda a cabeça está ferida, e todo o coração, doente. Se aqueles que zombam indiscriminadamente dessa espécie de composição considerassem a quantidade de prazer real que ela produz, e a proporção ainda maior de mágoa e aflição que ela alivia, sua caridade moderaria seu orgulho crítico e sua intolerância religiosa. (SCOTT apud BALIEIRO, 2017, p. 81)

Em outras palavras, esse tipo de obra pode ser, ainda, considerada como abençoada para a superação de sofrimentos e produção de prazeres; poderia existir, de fato, características aceitáveis para a educação da sociedade caso a leitura deste gênero não fosse exacerbada. Direcionemo-nos, ainda, à palavra de Botting (2005), ao lado de Carpeaux (2008): o gótico foi um gênero que subverteu valores, forneceu um tipo de educação distinta do moralmente aprovável, atingiu a maior parte das classes de leitores e, acima de tudo, foi um dos gêneros mais famosos e vendidos quando nas mãos de Walpolle, Radcliffe e Lewis. Ainda que Radcliffe, Lewis e Walpole compartilhem características fundamentais – como a ambientação, histórias familiares escondidas, o jogo de luzes, o uso do medo sobrenatural, a luta entre o bem e o mal – lembremo-nos, ainda que não pretendamos nos aprofundar em tais minúcias, que os anseios e os inimigos a serem combatidos mudam de romance para romance. Dito isso, após dispormos elementos suficientes para contextualizarmos de forma introdutória este gênero, acreditamos que é importante não perdemos de vista que temas como hierarquia, juspositivismo, loucura, patriarcado, distinção entre romance feminino e romance masculino, dentre outros, podem ser, sem grandes dificuldades, encontrados nos romances góticos e em sua relação instável – e ao mesmo tempo íntima – com a modernidade filosófica. Aqui, direcionaremos nosso foco para as implicações estéticas na moral relacionada ao poder e à virtude, mais especificamente, no diálogo que ocorre entre Radcliffe e Lewis. Para isso, será necessário passarmos pela filosofia estética burkeana, que se apresenta como fio condutor e elemento basilar para desenvolvermos tal investigação.

III O terror e o horror: herança burkeana na literatura gótica O gótico “significava uma tendência para uma estética baseada no sentimento e na emoção e associada principalmente ao sublime” e “Em contraste com a beleza, cujos contornos proporcionados podiam ser tomados pelo olhar do observador, o sublime estava associado à 19 BOTTING, F. Gothic. Londres; Nova York: Routledge, 2005, p. 17. Tradução nossa. 20 Balieiro (2017) afirma que Scott talvez estivesse menos inclinado a aceitar algo como uma expansão de cânones até o gótico, determinando-o como literatura adequada. O autor, segundo Balieiro, admitiria, ainda, que o gótico sempre será incapaz de ser aceitável pelo “orgulho crítico”; entretanto, estes aspectos não fazem com que o gênero mereça ser ignorado: ainda que seja baixa literatura pode, como a citação evidencia, ter certas utilidades.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 grandeza e magnificência”21. Lembremo-nos ainda que “O interesse pelo sublime” como afirma Miles: é crucial na reavaliação dos artefatos da era gótica. Implicados na transformação das ideias relativas à natureza e à sua relação com a arte, tanto os objetos góticos como os sublimes participaram, também, numa transformação de noções de individualidade, na relação da mente consigo mesma, bem como nos mundos naturais, culturais e metafísicos. 22

A experiência do terror sobrenatural na literatura inaugurada por Walpole, ainda que possa ter características do sublime burkeano, não está ligada a nenhum registro de intencionalidade em tal representação. Segundo Wanderlei (2014), suas influências consistiam na Poética e na Retórica aristotélicas (principalmente na noção de catarse), alinhadas ao uso de recursos shakespearianos. A grande revolução, como concordam quase unanimemente os comentadores, do gênero ocorre no momento em que Burke é inserido por Radcliffe – e posteriormente Lewis – como basilar para a formação das imagens góticas. Na contramão do que estava até então proposto pela estética moderna23, o autor de Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo propõe que elementos regulares, pequenos e abarcáveis pela visão ou pelos sentidos humanos são incapazes de gerar o sentimento sublime. O sublime burkeano estava relacionado a uma emoção extremamente forte e poderosa, incapaz de ser contida pela natureza humana. Entretanto, para Burke, era necessário, para que atingíssemos esse sentimento, nos submetermos a experiências que ultrapassam nosso intelecto. De um lado, veremos que Radcliffe propõe uma interpretação da Investigação que servirá de forma elementar para o funcionamento da estética gótica 24 que contribuirá para a formação de uma excelência moral e virtuosa; do outro lado, entretanto, como aponta Smith (2015), Lewis proporá uma leitura da estética burkeana na qual o sublime é incapaz de auxiliar na excelência moral. Essa tensão ficará clara na seção seguinte. Dito isso, vale a pena esboçar de que forma a Investigação de Burke lida com o engendramento do sublime através do terror. Em suma, o filósofo afirma que algumas de suas causas podem ser: repetição no espírito, sucessão e da uniformidade, magnificência, infinitude, grandiosidade, intermitência, ideia de dor física, olfato e paladar. Mas estas características nada incitam sozinhas diante do homem, elas precisam, para causar o sublime, da falta de clareza para que aí a imaginação – elemento crucial da estética burkeana – possa atuar. Isso se dá, por exemplo, se o homem tem uma sensação de maneira moderada, como quando descritas ou narradas em um texto, conforme Burke nos exemplifica na seção XXI da parte II; ou quando o indivíduo está diante de uma estrutura grandiosa e, devido à continuidade dos blocos, os olhos são incapazes de perceber os limites da estrutura observada, o espírito fica confuso com as incertezas. Em ambos os casos, é cedido espaço para a imaginação atuar, assim, esta fará com que o espírito conceba noções maiores do que as coisas realmente são, e atinja o sublime. No primeiro 21 BOTTING, F. Gothic. Londres; Nova York: Routledge, 2005, p. 2. Tradução nossa. 22 MILES, R. Ann Radcliffe and Matthew Lewis. In: David Punter (Org.), A New Companion to the Gothic. UK: WileyBlackWell, 2012, p. 94. Tradução nossa. 23 Conferir nota 16. 24 Miles (2012) afirma que o sublime ao qual Radcliffe se deterá pode ser encontrado em Shaftesbury. Isto é, um sublime causado pela grandiosidade da natureza, e, este, seria um importante elemento para a formação da excelência moral dos indivíduos pois os aproxima do divino. A romancista faz uso de grandes descrições de cenários naturais ao longo de Os mistérios de Udolfo que sempre contribuem para a sensibilidade de Emily.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 caso, o homem fica impressionado com o poder das palavras, por não ser capaz de apreender uma compreensão perfeita, e, no segundo caso, aterrorizado diante de sua pequenez, tendo a impressão de infinitude. Os casos diversos que Burke descreve representam a forma pela qual atingimos o sublime, evidenciam que o homem não está iminentemente diante do perigo ou da dor, e a faculdade da imaginação tem espaço para agir – coisa que terá as implicações morais exploradas por Radcliffe e Lewis. Em resumo, tudo que incita o terror é sublime. De outro lado, na Investigação, a palavra “horror” ocorre treze vezes25. O que notamos, grosso modo, é que na Investigação não existe uma descrição sobre um certo tipo de natureza do horror26. Ademais, quando se trata da palavra “horrendo”, tem-se uma descrição de fatos comum às três27 ocorrências. O máximo que, provavelmente, pode-se extrair é que se trata de uma paixão definitivamente iminente, perturbadora, dolorosa e que não dá espaço para a atuação da imaginação, sendo, assim, incapaz de ser sublime. O que queremos evidenciar com isto é que Burke, ao falar em horror, diferente de quando lida com o terror, não nos traz uma definição clara. Ainda que tais concepções burkeanas, como a produção do terror, sejam postas em marcha nas obras de Radcliffe – considerada, como aponta Miles (2012), como grande aluna do autor da Investigação –, é importante não nos esquecermos que a verdadeira descrição da dualidade é posta pela romancista em seu ensaio póstumo Do sobrenatural na poesia. Este ensaio, como nos informa Balieiro (2019), ainda que não trate especificamente sobre o romance gótico, contém contribuições que implicam na forma como o gótico inglês dezoitista se desenvolverá – incidindo no debate entre Radcliffe e Lewis28, como ficará claro na seção seguinte. Dito isso, lembremo-nos da passagem na qual a autora delimita, claramente, o dualismo entre terror e horror:

25 Nossa contagem exclui as ocorrências em que o autor da obra a usa em citações. Três delas aparecem nas seções V, VI e XXI da parte 2, como “horror divino”, “horror religioso” e “horror sagrado” respectivamente. Nestas passagens entendemos que não se trata de um tipo de sentimento distinto, mas de uma descrição de um tipo de terror. A tradução de Enid Dobránsky da editora da Universidade de Campinas, de 1993 contém doze ocorrências. Mas, através da consulta com original, o Prof. Dr. Marcos Balieiro – a quem agradeço o auxílio – observou que na passagem que é traduzida como “As ideias de dor, de doença e de morte enchem o espírito de intensos sentimentos de pavor...” (BURKE, p. 47, 1993), no original é “The ideas of pain, sickness, and death, fill the mind with strong emotions of horror” (BURKE, p 44, 1823), ou seja, no lugar de pavor, a tradução mais adequada seria horror. 26 Nos momentos em que este termo aparece, não é submetido a um critério descritivo, como é o caso do terror, ou do sublime. Quando seguido de sagrado, de divino ou de religioso, não passam de ferramentas linguísticas – apontadas extensamente por Miles (2012) – que auxiliam o autor a demonstrar como o poder e a infinitude podem ser terríveis e, necessariamente, sublimes, quando se pensa na natureza de Deus. Coisa que talvez se relacione com a formação que o sublime pode ter para Radcliffe, a este respeito conferir nota 24. 27 Apesar da edição Universidade de Campinas, na tradução de Enid Dobránsky, apontar apenas duas ocorrências, na passagem que eles traduzem como “...os nervos estão mais sujeitos a convulsões extremamente violentas do que quando bem retesados e tonificados.” (BURKE, p. 140, 1993), no original tem-se “…the nerves are more liable to the most horrid convulsions, than when they are sufficiently braced and strengthened” (BURKE , 1823), ou seja, como observou o Prof. Dr. Marcos Balieiro – a quem agradeço o auxílio –, no lugar de “convulsões extremamente violentas”, a tradução mais adequada seria “as mais horrendas convulsões”. 28 Smith (2015) afirma que a razão pela qual Radcliffe se coloca no debate com Lewis, é o intuito de reavaliar sua relação com a estética burkeana. Ainda que isto seja dito e o comentador evidencie que certos compromissos teóricos com Burke foram restabelecidos por Radcliffe em The Italian, quando, neste, remove os poemas – coisa que existe um impasse em Burke sobre se estes são ou não possíveis engendradores de sentimentos maiores que a relação sensível com a coisa mesma -, optaremos seguir a vertente de Carpeaux (2008) e Botting. Isto é, a vertente que acredita que os compromissos de Radcliffe sempre estão em vigor com Burke desde Os Mistérios de Uldofo. Acreditamos nesta vertente, pois, parece, como aponta Massier, que Radcliffe apenas tenta evidenciar como o uso do horror e do terror – já feito em sua obra de estreia – poderia ser aplicado a uma obra como a de Lewis. Não se trata de rever os compromissos estéticos, mas de reafirmá-los. Coisa que em certo momento Smith (2015) parece admitir: “A narrativa gótica envolvendo o monge é exposta enquanto o romance trabalha no sentido de corrigir, através das possibilidades de redenção, tudo o que Lewis tinha aparentemente profanado em O Monge” (tradução nossa).

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 Terror e horror são tão opostos que o primeiro expande a alma, e desperta as faculdades a um grau elevado de vida. O outro as contrai, congela e quase as aniquila. Apreendo que nem Shakespeare nem Milton, por suas ficções, nem o Sr. Burke, por seu raciocínio, consideraram, em qualquer parte, o horror positivo como uma fonte do sublime, ainda que todos concordem que o terror é uma fonte considerável. E onde estará a grande diferença entre horror e terror, senão na incerteza e na obscuridade, que acompanham o primeiro, no que diz respeito ao mal temido?29

Esta dualidade, geralmente esquecida por parte dos comentadores30, é essencial para compreendermos o desenvolvimento do gótico e sua intima relação com a filosofia, como notam Botting (2005), Massier (2005), Smith (2015), entre outros. Ademais, Balieiro (2019) nos lembra que grande poder e capacidade de causar dano estão relacionados com o sublime; acreditamos que a recepção de alguns temas da Investigação de Burke, como o poder, a relação dúbia entre terror e horror, os efeitos do sublime, ocorreu de forma distinta em Lewis e em Radcliffe – nisso concordamos com a leitura de Smith (2015). Ora, ainda que Radcliffe tenha proposto uma dualidade na qual o terror pode ser entendido como causador de virtude e expansão positiva da mente; talvez Lewis tenha fornecido mais atenção ao fato de que o sublime, como aponta Smith (2015), poderia ser causador de um desejo de poder incontrolável, causador de situações perniciosas. Isso, como notaremos na seção seguinte, distingue a forma pela qual esses autores irão conceber as consequências na sociabilidade e na moral dos indivíduos.

IV Lewis e Radcliffe: as implicações do prazer estético sublime Lewis31 e Radcliffe, como apresentado nas partes anteriores, dividiram preocupações e formas semelhantes ao trabalhar o maquinário gótico. Entretanto, os romancistas incorporaram de maneiras distintas as consequências do prazer estético sublime de herança burkeana, coisa que levou a uma disputa conceitual entre os autores. Radcliffe publica Os mistérios de Udolfo em 1794, apresentando o sublime como causa de virtudes morais. Apenas dois anos depois Lewis publica O Monge, com uma apropriação do sublime e do dualismo entre terror e horror burkeano, como aponta Miles (2012), muito distinta da interpretação radcliffeana. Desta forma, como indica o comentador supracitado, uma disputa é iniciada, chegando ao ponto de a romancista reafirmar32 os valores estéticos em resposta ao O monge em O italiano. O argumento da romancista, como informa Massier (2005), de que o horror é dotado de propriedades aniquiladoras que restringiam o espírito, é mal recebido por Lewis. Este opta por evidenciar os imperativos morais que podem ser evocados ao abrir mão do terror. O romancista opta por pelo uso do choque e da resposta visceral como elemento formativo. Resumidamente, a experiência e a impressão que o leitor terá em sua formação, como aponta Massier (2005), irá ser 29 RADCLIFFE, A. Do sobrenatural na poesia. Tradução de Marcos Balieiro. Prometheus. São Cristóvão, n 31, 2019, p. 263. 30 Botting aponta que, erroneamente, muitos usam horror e terror como sinônimos – coisa que podemos inclusive observar na escassa tradição de comentários nacionais e em comentários como o de Lovecraft em Sobre o horror sobrenatural na literatura. Entretanto, como apontamos aqui, esses termos não podem ser entendidos de tal forma, já que implicaria abrir mão de todo o contexto filosófico apresentado. 31 Ainda que os comentadores aceitem, quase que unanimemente, que a intenção de Lewis tenha sido a sátira, seria um erro grave assumir, como também concordam, que O monge estava destituído de crítica. A título de exemplo, lembremo-nos do estudo de Miles (2012). Este afirma que o excesso teatral representa uma mensagem de que as identidades dos indivíduos são performativas e isto consistiria em uma crítica aos moldes sociais de sua época. 32 A este respeito, conferir nota 28.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 distinto ao ler Lewis ou Radcliffe. Em nossa perspectiva, isso significa que o autor de O monge acredita que a escolha pelo incentivo da repulsa é mais efetiva na formação do que a permissividade da imaginação em expansão de Radcliffe. Uma opta por deixar a mente correr solta para encontrar valores virtuosos, enquanto o outro tentará evocar uma resposta imediata de repulsa ao paralisar o espírito. Ademais, há uma preocupação, por parte de Radcliffe, com a virtude promovida pelo prazer estético, com o grotesco da sociabilidade, com uma moral iluminista impensada: é necessário o uso da razão e da virtude para se encontrar a melhor sociabilidade. Dito isso, os anseios de Radcliffe, acreditamos, dizem respeito à reprodução impensada dos refinamentos e ideais fornecidos pelo século das luzes. O luxo, o desejo de sobrepor a mente humana à religião, são negados pela romancista; a autoridade patriarcal33 deve ser mantida, não burlada. Lewis, por sua vez, conduz a situação por outra via, usa: do grotesco fornecido pelo horror, ações injustificáveis, atos irracionais e, até mesmo, do próprio diabo para fazer com que a sociedade questionasse seus próprios valores. A religião e a luta do bem contra o mal estão claras desde a obra de Walpole, entretanto, a maquinaria usada para apresentar essa luta é distinta. E era justamente isso que os críticos temiam: uma ressignificação de valores morais que se dissocia do refinamento e da polidez, para se aproximar do horror e da imoralidade. A noção de que o prazer estético burkeano é característico para a virtude, tão presente em Radcliffe, é brutalmente recusada em Lewis. Neste autor, este aspecto torna-se, no fim das contas, a razão pela qual Ambrósio abre mão da vida espiritual e sucumbe, cada vez mais, aos desejos da carne. Talvez por isso, para este autor, seja necessário não permitir que a mente se expanda através do terror para locais indefinidos, mas que ela seja paralisada pelas consequências sórdidas que podem resultar. A heroína radcliffeana, como evidencia Lipski (2018), sempre recorre à beleza da natureza, da construção humana, do sublime como que a um escapismo da realidade cinzenta que vive, mas, por conta de sua posição social sempre inferior e submissa na sociedade, seus prazeres não passam de meros devaneios. Ambrósio de Lewis, por outro lado, tem poder de ação. O despertar estético sublime desta personagem, como informa Smith (2015), será pela contemplação da pintura da Madonna (e satisfação através de Matilda). Com isso o monge faz uso de seu poder e se encaminha para a ação, levando a cabo seus prazeres estéticos – atitude que resulta, em última instância, no pacto com o próprio diabo. Em resumo, Lewis tentou, em certa medida, apresentar as consequências de tais prazeres sublimes, e a forma pela qual optou mostrar isso aos seus leitores foi paralisando-os com o uso do horror. Com isso, a mente não se expande para o território do não definido, mas torna-se consciente das consequências da imaginação furtiva. Lewis, ao que tudo indica, seria um detrator da dignidade e da delicadeza apontadas por Radcliffe, como informa Massier (2005), como incentivadas pelo prazer sublime comentado por Lipski (2018). Ora, era necessário, para Lewis, imaginar as consequências de ações enviesadas pelo sublime, não simplesmente deixar que a mente do leitor, tal qual Radcliffe recomendaria, se expandisse para os locais que desejasse. Pode-se argumentar que o sublime que Ambrósio atingiu 33 Para aprofundamento sobre a relação da ficção gótica com o patriarcalismo conferir: LIPSKI, J. The perils of aesthetic pleasure in Ann Radcliffe’s The Romance of the Forest and The Mysteries of Udolpho. Nordic Journal of English Studies. Goteborg, n. 17 v. 1, 2018, p.120–134. e MASSIER, V. P. The conservative, the transcressive, and the reactionary: Ann Radcliffe’s the Italian as a response to Matthew Lewis’ The Monk. Atenea. Porto Rico, v. 25, n. 2, 2005, p. 37-48.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 deveu-se à contemplação de uma produção humana, coisa que para Radcliffe seria de fato uma possível via para a deturpação moral, visto que não é engendrado em termos, em certa medida, shaftesburianos34. Quanto a isso, devemos lembrar que Lipski (2018)35 afirma que o uso do prazer estético em Os mistérios de Udolfo tem caráter dúbio, isto é, pode engendrar uma sensibilidade e uma virtude adequadas ou forçar o indivíduo a um escapismo deletério que se materialize em uma realidade potencialmente sórdida. Além disso, Radcliffe coloca sua heroína defronte com uma situação na qual, como observado por Miles (2012), a curiosidade e terror, através do sublime, encontram a loucura momentânea. Isso acontece quando Emily é posta diante das cartas que prometeu, para seu pai, queimar. Ela deseja abri-las, ver do que se trata, mas teme pela promessa feita em um leito de morte, por desejar ultrapassar o proibido, e enlouquece por um breve momento. Note-se, este é um dos poucos momentos nos quais Emily tem pleno controle de uma situação, tudo que irá ocorrer encontra-se sob seu poder. É provável, então, que a romancista estivesse ciente das consequências deletérias do sublime. Acreditamos que esta consistiu em uma das preocupações de Lewis e recebe maior atenção na obra deste autor, o qual estaria ciente de que, devido aos refinamentos engendrados pela ciência e polidez, o humano teria mais experiências artificiais do que naturais, então, era necessário apontar os efeitos do sublime como deletérios. Mesmo nos romances de Radcliffe, podemos ver alguns momentos, como aponta Lipski (2018), em que as personagens sofrem por sua expansão da imaginação. Emily, ao ouvir um canto inexplicável, às vezes opta por tentar responder-lhe ou chamar sua atenção, uma curiosidade que não é consequente. Por isso, Lewis, talvez, tenha tentado esboçar, através de Ambrósio, que existem locais pelos quais a mente não deve correr solta, ela deve saber com o que está se relacionando, não se expandir arbitrariamente pela força da imaginação. Radcliffe preocupou-se com o encontro do sublime como potencial elevação da mente humana e, consequentemente, das suas virtudes; enquanto Lewis denunciaria as consequências desta atitude livre e furtiva. A estética, como diz Smith (2015), moveu Ambrósio; mas também moveu a virtuosa Emily. Quanto às reações de Emily em situações sublimes, “ela responde ao seu vislumbre proibido com curiosidade e terror”, mas não encontrou as nefastas consequências de Ambrósio por conta do enlightenment decorum adotado por Radcliffe em sua escrita, como aponta Massier (2005). Isso faria, inclusive, com que a autora sempre optasse por superar o sobrenatural com explicações racionais. De qualquer forma, tal como Manfredo e Ambrósio – e, por vezes, Emily – podem evidenciar, o envolvimento com o sobrenatural e o terrível contam com consequências nefastas, desde o assassinato de sua própria filha (Manfredo) ao estupro e potencial aprisionamento no inferno (Ambrósio). Aparentemente, a relação meramente teórica de sublime que Radcliffe expõe como consequência do terror, para os outros autores, não poderia simplesmente elevar o espírito através de uma consciência estética; mas corrompê-lo. Segredos familiares e aprisionamentos, se nutridos de poder, só podem ocasionar o horror.

34 A este respeito conferir nota 24. 35 Esta comentadora nota, ainda, que a maior parte das experiências sublimes da heroína de Radcliffe está ligada a música. Como sabemos, esta, ainda que possa, por representação, nos dirigir ao sublime natural, ainda é uma experiência refinada. Coisa que corrobora, em certa medida, com nossa leitura da crítica de Lewis contra Radcliffe.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 “A arte torna-se, neste caso, tanto um meio de transcendência (pois permite que Ambrósio escape dos limites de uma vida monástica) como de aprisionamento (porque expõe Ambrósio como hipócrita)”36; bem como permitiu que Emily escapasse do aprisionamento de Montoni e fizesse com que a heroína radcliffeana quase enlouquecesse por um breve instante. A diferença fundamental entre ambos é que o primeiro tinha poder de ação, enquanto que a segunda não o tinha – ou não aceitava que o tivesse por conta de valores patriarcais. Justamente essa zona de ação, zona de enfrentamento (com o horror) e não de imaginação, torna visível os efeitos deletérios de deixar a mente correr solta para que se expanda. Miles (2012), ainda, percebe que há um desejo de poder na heroína ao ceder às tentações da imaginação, coisa que Lewis notou, e cujas consequências descreveu. Curiosidade e terror, para Lewis, são indicativos de horror. Em outras palavras, dar forças à imaginação pode ocasionar algo com que nossos espíritos não devem entrar em contato. Lembremo-nos do momento em que a heroína radcliffeana, por desejar ultrapassar o proibido, enlouquece por um breve momento. E, note-se, este é um dos poucos momentos nos quais Emily tem pleno controle de uma situação, que tudo que irá ocorrer encontra-se sob seu poder. Ambrósio, por outro lado, também não cedeu aos seus desejos na primeira vez, a abertura regular de possibilidades que estavam em seu horizonte de poder e de escolha fez com que o monge sucumbisse – a loucura momentânea tornou-se regular. Isso é, ainda, observado por Burke, que aponta que o sublime pode fazer com que a vontade humana, como ressalta Miles (2012), seja grandiosa. Caberia questionar o que ocorreria caso a virtuosa Emily se encontrasse em mais momentos nos quais pode usar seu poder arbitrariamente; enlouqueceria como Ambrósio? Lewis afirmaria que sim. Este desejo sublime é entendido por Miles (2012) como egoísta por tentar imaginar – no caso de Radcliffe – ou forçar – no caso de Lewis – que o mundo represente a sua própria imagem; há uma vontade de poder37 atuando nas personagens dos romancistas. O que ocorre é que, para os autores góticos, as implicações dessa vontade dependem de uma regulação, que nem sempre é possível, do espírito humano. Em Radcliffe o perigo de causar morais depravadas ou inaceitáveis é quase que nulo, enquanto que para Lewis não há território seguro após o encontro com o sublime. Em Lewis, não há elevação moral pelo sublime. Por essa razão, quando Ambrósio tem o deleite estético pela imagem da Madonna, o poder de que até então não fez uso é posto em prática de forma gradativamente deletéria. Em conclusão, se o que O monge realmente faz é contestar “sistema de justiça que assenta em noções de identidade fixa, em padrões de verdade capazes de distinguir o natural do antinatural”38, Lewis não poderia deixar de notar que, da mesma forma que pode ser que o sublime radcliffiano eleve o espirito, pode deturpá-lo. De qualquer forma, ainda que Lewis e Radcliffe discordem das implicações do sublime na sociabilidade, ambos se apropriaram de Burke, cada um à sua forma, como uma tentativa de apontar problemas deixados pela filosofia na sociedade dezoitista de sua época.

36 SMITH (2015), A. Radcliffe's Aesthetics: Or, The Problem With Burke And Lewis. Women's Writing. Bristol, v. 22, n. 3, 2015, p. 324. Tradução nossa. 37 Este termo não é relacionado com a vontade de poder de Nietzsche. 38 MILES, R. Ann Radcliffe and Matthew Lewis. In: David Punter (Org.), A New Companion to the Gothic. UK: WileyBlackWell, 2012, p. 106. Tradução nossa.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 V Considerações finais O gótico surgiu como uma reação a certos ideais modernos, com o intuito de abrir espaço para temas que seriam recusados pela maior parte dos filósofos da época. Um maquinário foi criado para lidar com tais temas e, de forma geral, há no gótico dezoitista inglês certas características gerais que permitem configurar o gênero como um único bloco. O uso do sobrenatural, certo jogo de luzes, anseios expostos em personagens ou cenas são algumas destas características. Por outro lado, ainda que existam certas características gerais que se enquadrem nos romances de Walpole, Radcliffe e Lewis, vimos que os autores depositam seus focos em anseios distintos. Walpole estaria preocupado com uma representação natural das reações humanas e com a retomada de valores suprimidos por certos ideais modernos, Radcliffe aponta para o efeito deletério do uso de uma “máscara” racional e Lewis apresenta as implicações da restrição e da falta de religiosidade. Ademais, notamos, também, que é impossível fazer uma leitura adequada do gótico dezoitista inglês destituindo-o de seu íntimo relacionamento com a filosofia de sua época. Isso seria ingênuo, para não dizer equivocado, pois implicaria abrir mão do claro debate que os autores estavam inseridos. O debate entre Radcliffe e Lewis se estabelece, em certa medida, pelas preocupações distintas que os autores depositavam nas consequências do prazer estético sublime. É neste ponto que Burke entra como fio condutor de tal debate; afinal, sua Investigação abre margem para intepretações distintas das consequências do horror, do terror e do sublime. Em conclusão, como notado, há uma distinção na maneira pela qual Radcliffe e Lewis pretendem formar seus leitores. Essa distinção não se deve ao gosto, opinião ou mero desejo dos autores. Ambos fizeram apropriações distintas da obra de Burke para evidenciar, em certa medida, o mesmo ponto: a influência do prazer estético sublime na formação dos indivíduos. Entretanto, Radcliffe acredita que, pela expansão da imaginação, o sublime elevaria moralmente os indivíduos, enquanto Lewis apresenta tal expansão como deletéria e causadora de situações sórdidas. Por essa razão este romancista opta por incentivar uma reação visceral no leitor.

REFERÊNCIAS: BALIEIRO, M. O gótico e os limites do iluminismo: o caso Wuthering Heights. A palo seco. São Cristóvão, n. 10, 2017, p. 79-84. BOTTING, F. Gothic. Londres; Nova York: Routledge, 2005. BURKE, E. Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo. Tradução de Enid Dobránsky. São Paulo: Universidade de Campinas, 1993. CARPEAUX, O. História da literatura ocidental (volume II). Brasília, Edições do Senado Federal – Vol.107-B, 2008.

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Virtude moral, sociabilidade e poder no gótico do século XVIII: Radcliffe e Lewis, pp. 235-250 HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000. HUME, D. Um ensaio histórico sobre a cavalaria e a honra dos modernos. Prometeus, no 10, n. 23, 2017. LEWIS, M. G. O monge. Tradução de Maria Aparecida Mello Fontes. Espírito Santo: Pedrazul Editora, 2017. LIPSKI, J. The perils of aesthetic pleasure in Ann Radcliffe’s The Romance of the Forest and The Mysteries of Udolpho. Nordic Journal of English Studies. Goteborg, n. 17 v. 1, 2018, p.120–134. LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. Trad. Celso M. Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2008. LUTERO, Martinho. As 95 teses e a essência da igreja. Trad. Carlos Caldas. São Paulo: Editora Vida, 2016. MANDEVILLE, B. A Fábula das Abelhas: ou vícios privados, benefícios públicos. Tradução de Bruno Costa Simões. São Paulo: Editora Unesp, 2017. MASSIER, V. P. The conservative, the transcressive, and the reactionary: Ann Radcliffe’s the Italian as a response to Matthew Lewis’ The Monk. Atenea. Porto Rico, v. 25, n. 2, 2005, p. 37-48. MILES, R. Ann Radcliffe and Matthew Lewis. In: David Punter (Org.), A New Companion to the Gothic. UK: WileyBlackWell, 2012. RADCLIFFE, A. Do sobrenatural na poesia. Tradução de Marcos Balieiro (2017). Prometheus. São Cristóvão, n 31, 2019, p. 253-267. RADCLIFFE, A. Os mistérios de Udolpho: volume I. Tradução de Bianca Costa Sales. Espírito Santo: Pedrazul Editora, 2015. RADCLIFFE, A. Os mistérios de Udolpho: volume II. Tradução de Bianca Costa Sales. Espírito Santo: Pedrazul Editora, 2015. SANTOS, M. D. P. Educação e Polidez em David Hume. In: VIII Encontro de Pesquisadores Iniciantes das Humanidades. São Cristóvão: Editora UFS, 2019. SANTOS, M. D. P. O ideal de ciência na modernidade: Bacon e Descartes. Investigação Filosófica. Macapá, v. 10, n. 1, 2019, p. 63-73. SHAFTESBURY, Anthony Ashley Cooper, Third Earl of. Characteristicks of Men, Manners, Opinions, Times. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. SCHOPENHAUER, A. A Metafísica do Belo. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2003. SMITH (2015), A. Radcliffe's Aesthetics: Or, The Problem With Burke And Lewis. Women's Writing. Bristol, v. 22, n. 3, 2015, p. 317–330. WALPOLE, H. O castelo de Otranto. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. WANDERLEI, A. S. Os dois Teodoros: mutações do Gótico de Horace Walpole a E. T. A. Hoffmann. Soletras. Rio de Janeiro, n. 27, 2014, p. 32-44. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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ENTRE A PAIXÃO E O AMOR FATI: ANÁLISE DO RETRATO COM FRIEDRICH NIETZSCHE E LOU ANDREASSALOMÉ Francisco Xavier de Oliveira Neto1

RESUMO: Este trabalho foi resultado da disciplina de Teoria da Imagem, ofertada no Departamento de Letras Vernáculas do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Objetivou-se traçar um paralelo entre os retratos tirados no estúdio de Jules Bonnet(1882), em que estão Lou AndreasSalomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche e a máxima nietzschiana "se vais ter com mulheres, não se esqueças do chicote"(1977, pág. 88). Para tanto, foi preciso resgatar conceitos-chave, como amor fati, e eterno retorno, encontrados em Nietzsche; se utilizar das notas sobre fotografia de Roland Barthes(1984) em "A câmara clara", por fim, remontar, como plano de fundo, aspectos biográficos da tríplice relação entre Lou Andreas-Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche. Foi possível notar, assim, de que modo a filosofia de Nietzsche se refletiu nos retratos organizados por ele. Em Suma, percebemos que fórmulas apresentadas por Nietzsche para solucionar questões modernas eram, possivelmente, virtudes de Lou Andreas-Salomé. PALAVRAS-CHAVE: Friedrich Nietzsche. Andreas-Salome. Jules Bonnet. Fotografia. Amor fati.

1Francisco

Xavier de Oliveira Neto, especializando no curso de Ensino de Língua Estrangeira e Linguística Aplicada, na Universidade Federal do Ceará (CELEST-UFC), graduado em Letras Português/Italiano pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

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ABSTRACT: This paper was the result of the discipline of Image Theory, offered at the Department of Vernacular Letters of the Course of Letters at the Federal University of Ceará. The objective was to draw a parallel between the portraits taken in the studio of Jules Bonnet (1882), in which are Lou Andreas-Salomé, Paul Rée and Friedrich Nietzsche and the Nietzschean maxim "if you go to women, don't forget the whip" ( 1977, page 88). For that, it was necessary to rescue key concepts, such as “amor fati”, and “eterno retorno”, found in Nietzsche; the notes on photography by Roland Barthes (1984) in "The clear camera" are finally used, as a background, to trace back, biographical aspects of the triple relationship between Lou Andreas-Salomé, Paul Rée and Friedrich Nietzsche. It was thus possible to notice how Nietzsche's philosophy was reflected in the portraits organized by him. In short, we realize that formulas are by Nietzsche to resolve modern issues, possibly virtues of Lou Andreas-Salomé. KEY-WORDS: Friedrich Nietzsche. Lou Andreas-Salome. Jules Bonnet. Fotografia. Amor fati.

INTRODUÇÃO Este trabalho é resultado da avaliação final da disciplina de Teoria da Imagem que foi ofertada pelo Departamento de Letras vernáculas, ministrada pela Prof. Dra. Tércia Montenegro, no curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, no primeiro semestre de 2019. No decorrer dos estudos promovidos no decorrer da disciplina de Teoria da imagem foram discutidos os textos “o autorretrato fotográfico” de Lilian P. Bardon, 2010, e “a câmara clara” de Roland Barthes, 1984, a leitura desses textos foi fundamental para construir o pensamento presente neste ensaio. Com isso, este trabalho objetivou de modo geral analisar a fotografia em que estão Friedrich Nietzsche, Lou Andreas-Salomé, Paul Rée. Como também, especificamente, este trabalho objetivou resgatar conceitos chave na obra do Nietzsche, comparar os conceito chave com o texto fotográfico, para tanto, foi necessário também descrever o plano de fundo da relação entre a tríade de pensadores já apresentada. Por fim, estabelecer uma crítica ao que toca o texto fotográfico. Na vista da gênese deste trabalho, também foi necessária a leitura das obras de Nietzsche como forma de confronto entre o texto imagético e os textos escritos. Uma vez que, foi durante a leitura de “Assim falou Zaratustra”, em que é narrada a caminhada que Zaratustra encontra uma mulher com idade mais avançada e essa lhe faz a seguinte indagação “vais ter com mulheres? Não te esqueces do chicote”2. Essa afirmação polêmica nos motivou na produção deste trabalho, poste

2

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mario da Silva. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 1998. pp. 42.

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que, tal afirmação pode ter um conteúdo deveras polissêmico, em outras palavras, tal afirmação dá a possibilidade de múltiplas interpretações. Para este trabalho é importante em princípio expor quem segura o chicote. Dito isso se considera responder a questão “quem é o mestre a portar o chicote?”. Pressupõe-se que Nietzsche se utilizou do retrato organizado por ele no estúdio Jules, em 1882, enquanto texto imagético para solucionar a questão responder a questão aqui apresentada. Com a intenção de responder a questão deste trabalho, sistematizou-se a pesquisa em três momentos, são eles: os bastidores da cena, montando a cena e retornando a cena. No segmento, “os bastidores da cena”, em principio, recapturamos o contexto histórico em que estavam inseridos Friedrich Nietzsche, Lou Andreas-Salomé, Paul Rée. Como também as experiências de vida da tríade de pensadores importantes para ambientação do momento em que eles se encontravam. Para tanto a leitura de “Caminhando com Nietzsche: sobre tornar-se quem se é”, 2019, do professor John Kaag jogou luz sobre as experiências da vida dos três pensadores e a história do retrato analisado por este trabalho. Na seção, “montando a cena” este trabalho apresenta o retrato a ser analisado, enquanto considera os aspectos importantes para a análise, por meio da base teórica construída na disciplina de teoria da imagem, como também dos escritos do Nietzsche. Por fim, a seção “retornando a cena” é dedicada à conclusão e aos comentários finais deste trabalho. Hino à vida “Tão certo quanto o amigo ama o amigo, Também te amo, vida-enigma Mesmo que em ti tenha exultado ou chorado, mesmo que me tenhas dado prazer ou dor.” (Lou Salomé3)

BASTIDORES DA CENA O trecho citado anteriormente compõe o poema “Hino à vida”, escrito por Lou AndreasSalomé em retribuição aos fortes laços que estreitavam a sua relação com o filosofo alemão Friedrich Nietzsche. Lou Andreas-Salomé nasceu em São Petersburgo em 12 de fevereiro de 1861 e faleceu em 5 de fevereiro de 1937. Salomé foi ensaísta, filósofa, poeta, romancista e psicanalista, como também, integrante do grupo sobre psicanalise guiado por Sigmund Freud. Após frequentar a universidade em Zurique, aos 21 anos, com ajuda de sua mãe, Salomé vai para Roma, naquela cidade, na ocasião da visita a um salão literário, Salomé conheceu o escritor, médico, filantropo e filósofo alemão Paul Rée. Logo em seguida eles formam uma parceria com

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ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Nietzsche À Travers Ses Ouevres. Paris: Grasset, 1992. pp. 34.

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interesses acadêmicos, e por volta de 13 de maio de 1882, Paul Rée apresenta seu amigo Friedrich Nietzsche a Salomé, concluindo a amistosa tríade de mestres. Friedrick Nietzsche, nascido em 15 de outubro de 1844 e falecido em 25 de agosto de 1900, foi filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor, filho de um casal de pastores luteranos, sua formação cristã foi decisiva para a construção do seu saber filosófico. Dada a sua genialidade, desde cedo se destacou nos seus estudos, em 1869, aos 24 anos foi nomeado para cadeira de filologia clássica na Universidade de Basileia, sendo assim, a pessoa mais jovem a ter obtido aquela posição. Dizem que, após conhecer Salomé, Nietsche afirmou “de longe, a pessoa mais excepcional que conheci.” Apesar de não ser possível remontar o contexto e veracidade dessa afirmação, a relação que se formou entre Nietzsche e Salomé repercutiu durante muito tempo nos escritos do filósofo Alemão. Enquanto reunidos, Nietzsche, Salomé e Rée viajaram a Itália, aquecidos pelos ideais comuns, como a critica a igreja, afirmação da vida e a vontade de liberdade. A genialidade, altivez e a beleza de Salomé despertaram em Rée um forte sentimento e movido por esse sentimento Rée pede Salomé em casamento que desgostosa rejeita Paul Rée, explicando-lhe que a sua última relação havia desgastado nela a vontade de uma vida matrimonial. No entanto, para satisfazer os desejos de Salomé, Paul Rée envia uma carta a seu amigo Nietzsche o convidando para uma “relação a três” entre Salomé, Paul Rée e Nietzsche, o mestre alemão aceita prontamente o pedido, porém encantando pela extraordinária personalidade de Salomé Friedrich Nietzsche também a pede em casamento e também teve seu pedido recusado. Apesar das investidas matrimoniais, a tríade formada pelos mestres, Lou Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche Nietzsche resistiu sólida por algum tempo, fortificada pelos interesses acadêmicos de ambos. No entanto, em 13 de maio de 1882, em Lucerna na Suíça em um encontro marcado no parque Löwergardeten ao redor da estatua do Leão, Nietzsche refaz um pedido de casamento a Salomé enquanto Rée espera no hotel em que está hospedado, mas Salomé mais uma vez recusa o pedido, reitera seus motivos para tal decisão e aposta em relação amigável em que também deve estar presente Paul Rée. Após o episodio, Salomé e Nietsche vão para o hotel em que está Paul Rée e neste momento, Nietzsche oferece a possibilidade de comemorar aquela ocasião com algumas fotos. Como descreve Kaag4, “quando enfim chegaram a Lucerna, Nietzsche contratou Jules Bonnet para fazer uma foto encenada que capturou um pouco da essência desse

4Kaag,

John. Caminhando com Nietzsche sobre tornar-se quem se é. Tradução: Julia Debasse. Rio de Janeiro: Red tapioca, 2019.

pp. 90.

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relacionamento”. Apesar da relutância de Paul Rée, a consagração por meio da imagem é aceita e as fotografias foram concretizadas.

MONTANDO A CENA No ano posterior a fotografia referente ao encontro após o pedido de casamento feito a Lou Salomé, Friedrich Nietzsche lança o livro “Assim falou Zaratustra”, seu romance filosófico mais conhecido, nele é apresentada a seguinte afirmação “Vais ter com mulheres? Não te esqueces do chicote” Essa afirmação além de polêmica, não esclarece quem segurará e o chicote. Dito isso é importante resgatar o que Barbon5 (2010) apresenta em seu estudo “O Autorretrato Fotográfico: Encenação, Despersonificação e Desaparecimento“ faz a seguinte afirmação “a natureza da fotografia está fundada na concepção da pose”. Nas palavras da pensadora “o indivíduo torna-se uma espécie de simulacro.”6 Ou seja, a cópia de uma cópia, gerada por outras imagens dele mesmo. As poses escolhidas e o cenário para a fotografia foram selecionados por Nietzsche, dessa forma, a imagem passa a ser um simulacro de suas ideias, um reflexo real de sua própria filosofia. A descrição da cena, portanto, é capaz de elucidar, de modo sucinto, as questões filosóficas apontas por Nietzsche. A cena da fotografia pode ser descrita da seguinte forma, em primeiro plano, no centro da imagem, está Paul Rée com um sorriso tímido, com a mão direita a tocar a carroça no canzil enquanto sua mão esquerda segura o seu colete, atrás dele, no canto direito, está Nietzsche segurando mais fortemente o outro canzil, enquanto fixa o olhar no horizonte como se observasse um ponto na imensidão. No canto esquerdo, atrás de Paul Rée, está Salomé, sentada sobre a carroça, a segurar com a mão direita um chicote adornado com flores , a sensação ao observar é que Salomé está pronta para açoitar os homens que na foto mais parecem animais de tração, além disso, ela segura uma corda, como um arreio, que está enlaçada ao redor dos braços de Paul Rée e Friedrich Nietzsche tal qual se faz com animais de rebanho

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BARDON, Lilian Patricia. O Autorretrato Fotográfico: Encenação, Despersonificação e Desaparecimento. V ciclo de investigações do PPGAV – UDESC. 2010. pp. 10 .

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Jules Bonnet – Lou-Andreas Salomé, Paul Rée, Friedrich Nietzsche, 1882.

Na imagem, Salomé a segurar o chicote torna-se um elemento interdiscursivo em paralelo a um conceito nietzschiano, a moral do senhor, que foi definida pelo filósofo como moral da vontade de potência em contraponto com a moral do escravo ou moral de rebanho, isto é, a moral baseada no ressentimento, moral que está a desvalorizar o mestre naquilo que escravo não possui em si. “Também o concubinato sofreu uma corrupção – graças ao matrimônio”, em “Além do bem e do mal”,7 Nietzsche aponta sua posição dentro da relação que estabelecia com Salomé. E, por isso, ao invés de transcender a moral dos senhores, tenta subverter essa moral em moral do escravo na tentativa de tornar escrava quem ocupava avidamente a posição de mestre. Em uma análise, para além dos critérios morais, Nietzsche assume seu papel como escravo convicto de seu destino, sem nenhuma pretensão de modificá-lo ou mascará-lo, para tal conceito, Nietzsche chamou de “amor fati”, ou seja, amor aos fatos tal qual eles são sem a necessidade de mascarar ou modificar a forma com a qual os fatos se apresentem. A seguir a perspectiva de Bardon (2010)8 Se por um lado o retrato e o autorretrato se unem conceitualmente no sentido em que ocorre a construção do sujeito a ser fotografado; por outro, eles se distanciam quando essa

7 Nietzsche,

Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2ª ed. 2002. BARDON, Lilian Patricia. O Autorretrato Fotográfico: Encenação, Despersonificação e Desaparecimento. V ciclo de investigações do PPGAV – UDESC. 2010. pp. 7. 8

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Entre a paixão e o amor fati: análise do retrato com Friedrich Nietzsche e Lou Andreas-Salomé, pp. 251-258 construção objetiva não mais aproximar a identidade virtual da social, mas construir um sujeito que simula papéis socialmente determinados.

Em outras palavras, por meio da afirmação de Bardon (2010) pode-se dizer que Nietzsche se utiliza do retrato que ele organizou como forma de reconstruir e simular papéis previamente determinados. Em seu livro a câmara clara: nota sobre a fotografia, Barthes9 adverte: a foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se afrontam, aí se deforman. Diante da objetiva sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostariam que julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que serve para exigir a sua arte. Em outras palavras, ato curioso: não paro de me imitar

De forma, esse o retrato desnuda a relação entre os três pensadores por meio da encenação do real, da autolimitação. Sendo assim, para além da encenação no retrato, vemos Salomé como figura principal, em destaque, aquela que ordena, aquela que escolhe, alguém que executa sua vontade criando a partir dela sua própria potência. Era preciso entender, porém, o que Nietzsche percebeu posteriormente, “A sensualidade costuma crescer mais rapidamente que o amor de tal forma que a raiz permanece débil e pode ser facilmente extirpada” (2011, pág. 104). Salomé, por sua vez, seguindo o ímpeto da moral do senhor, coordenando as peças ao seu redor de uma forma a afastar a fraqueza do sentimento gerado a partir da sensualidade sem que este sentimento tenha se expandido profundamente e enraizado no espírito por meio da potência do amor e da vontade. RETORNANDO A CENA A partir das considerações levantadas até o momento é possível perceber a repercussão do pensamento filosófico de Nietzsche nos retrato organizados por ele. Os conceitos de moral do senhor e amor fati foram reconstruídos no texto imagético, em outras palavras, aceitação do destino e o eterno retorno ao momento estão cristalizados no retrato organizado por Nietzsche. Para finalizar, é preciso antes retomar o pensamento de Nietzsche 10(2012) sobre o amor fati. Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas – assim me tornarei um daqueles que fazem belas coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!.

A vontade de Nietzsche ao representar pensamentos no retrato, então, apontava para alguém que diz sim, um sujeito que reconhece sua posição de escravo e sem pudor ou ressentimento 9 BARTHES, 10

Roland. A câmara clara. 9º Edição. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984. pp. 27.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. pp. 166.

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não tende a negação. Ao invés disso, tenta reproduzir infinitamente a sua posição de escravo por meio do retrato, nas palavras de Bartes11 “a fotografia reproduz ao infinito o que só ocorreu uma vez.” Ou seja, a fotografia foi para Nietzsche uma porta aberta na direção do eterno retorno ao momento, à situação tal qual ela se apresentou. Por fim, a passagem é necessário resgatar um trecho de uma carta de Nietzsche para Salomé apresentado por Kaag12 “Vontade forte, mas não um grande objeto” retirada de um fragmento de uma carta de Nietzsche enviada a Salomé sustenta a proposta de que o filósofo alemão reconhecia nela a vontade de potência, a busca pela transvaloração dos valores morais daquela época em consonância com a moral do senhor. Em suma, as fórmulas que Nietzsche apresentou como soluções para a questões da modernidade eram características marcantes de Lou Andreas-Salomé de acordo com o que aponta o texto imagético organizado pelo filósofo alemão.

REFERÊNCIAS: ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Nietzsche À Travers Ses Ouevres. Paris: Grasset, 1992. BARDON, Lilian Patrícia. O Autorretrato Fotográfico: Encenação, Despersonificação e Desaparecimento. V ciclo de investigações do PPGAV – UDESC. 2010. BARTHES, Roland. A câmara clara.. Rio de janeiro: Nova Fronteira. 9º Edição. 1984. Kaag, John. Caminhando com Nietzsche sobre tornar-se quem se é. Tradução: Julia Debasse. Rio de Janeiro: Red tapioca, 2019. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mario da Silva. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 1998. _____________ . Ecce homo - De como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____________. Além do Bem e do Mal (tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras. 2ª ed. 2002. _____________. A Gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

11 BARTHES,

Roland. A câmara clara. 9º Edição. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984. pp. 13. Kaag, John. Caminhando com Nietzsche sobre tornar-se quem se é. Tradução: Julia Debasse. Rio de Janeiro: Red tapioca, 2019. pp 102. 12

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A magia na dialética do esclarecimento: interlúdios entre etnologia e teoria crítica, pp. 259-265

A MAGIA NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO: INTERLÚDIOS ENTRE ETNOLOGIA E TEORIA CRÍTICA José Ygor de Almeida Barros1

RESUMO: Este trabalho consiste em um recorte teórico que identifica a importância da noção de magia dentro da etnologia e, logo em seguida, promove uma breve retomada da articulação com a teoria crítica afim de recompor a importância originária da crítica às formas mitológicas da ciência como técnica instrumental. PALAVRAS-CHAVE: magia, esclarecimento, etnologia, teoria crítica. ABSTRACT: This work consists of a theoretical section that identifies the importance of the notion of magic within ethinology and, shortly thereafter, promotes a brief resumption of articulation with critical theory in order to restore the original importance of criticism to the mythological forms of science as an instrumental technique. KEY-WORDS: magic, enlightenment, ethinology, critical theory.

1 Graduado pela UECE (Universidade Estadual do Ceará). E-mail para contato: ygora.barros@gmail.com

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A magia na dialética do esclarecimento: interlúdios entre etnologia e teoria crítica, pp. 259-265 Introdução É sabido que a teoria crítica, buscou articular diversos saberes na pretensão de erigir uma crítica que fosse suficiente ao seu tempo. Ainda assim, costumeiramente a importância do seu desenvolvimento é dada quase que exclusivamente a filosofia, ao marxismo e à psicanálise, de tal maneira que acabam-se perdendo rastros teóricos de importância impar para a sua compreensão de maneira mais completa da crítica. A articulação com a etnologia – ou a ofuscação desta – é um claro exemplo disso. Afim de escapar desse esgotamento teórico buscaremos neste texto mostrar o diálogo entre a etnologia e a teoria crítica, buscando ressaltar a importância da primeira na relação com a segunda. Isto é, mostrar uma dada importância da etnologia na relação com a teoria crítica, promovida dentro das articulações e aproveitamentos, se mostrando de grande importância, inclusive no modelo de pensamento. Para tal, usaremos os textos de Marcel Mauss (1872-1950) e Henri Hubert (1872-1927), a saber, “Esboços De Uma Teoria Geral Da Magia” (1903) para nos referirmos ao núcleo teórico da etnologia, compreendendo que é dos seus textos fundamentais. E, A “Dialética do Esclarecimento” (1947), escrita em uma colaboração dos filósofos Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), um nervo central para a compreensão da teoria crítica. Uma breve retomada da noção de magia segundo a etnologia A importância do empreendimento de Mauss e Hubert está, sobretudo, no fato de que nos ritos mágicos estão expressos modelos do pensamento humano. É exatamente nessa medida que a pesquisa dos autores ganha importância singular para a noção de esclarecimento, pois, é uma tentativa de situar o pensamento humano em determinado modelo. Os autores definem a magia, a princípio, como determinadas práticas que compreendem: agente, atos e representações. O agente é aquele praticante da magia, os atos são ritos praticados pelos agentes – os mágicos –, já as representações são as ideias e crenças que compreendem o todo da magia. Nas palavras dos autores: Chamamos mágico o indivíduo que efetua atos mágicos, mesmo quando não é um profissional; chamamos representações mágicas as ideias e as crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação aos quais definimos os outros elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos. (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 55)

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A magia na dialética do esclarecimento: interlúdios entre etnologia e teoria crítica, pp. 259-265 Ainda segundo os autores, “os ritos mágicos e a magia como um todo, são, em primeiro lugar, fatos de tradição” (ibidem), ou seja, a magia está intimamente ligada aos atos que uma determinada civilização produziu como forma de tradição passada por gerações. “Atos em cuja eficácia todo um grupo não crê não são mágicos. A forma dos ritos é eminentemente transmissível e é sancionada pela opinião” (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 55-56). Segundo os autores, ainda é possível excluir determinados atos, os “cuja eficácia todo um grupo não crê”. Outra distinção buscada no texto é entre os ritos mágicos e as artes e ciência. Distinção essa que é necessária, vide, o caráter tradicional encontrado nas três práticas. O critério para a distinção é a tangente metódica da magia, ou seja, seu método de reprodução não é mecânico do ponto de vista reprodutório laboratorial ou, simplesmente, técnico. Suas técnicas ritualísticas são sempre de caráter simbólico e remetem a um objetivo que está para aquém do método. No rito mágico, nas palavras dos autores: A confusão é tanto mais fácil quanto o caráter tradicional da magia reaparece nas artes e na indústria. A série de gestos do artesão é tão uniformemente regulada quanto a série dos gestos mágicos. No entanto, as artes e a magia foram em toda parte distinguidas, porque se percebia entre elas uma inapreensível diferença de método. Nas técnicas, o efeito é concebido como produzido mecanicamente. [...] Não se concebe que o efeito sensível dos gestos seja o verdadeiro efeito. Este ultrapassa aquele e, normalmente, não é da mesma ordem, como quando, por exemplo, se faz chover agitando a água de uma fonte com bastão. Eis aí o que é próprio dos ritos e que podemos chamar atos tradicionais de uma eficácia sui generis. (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 57)

Mauss e Hubert retomam a leitura de Frazer2 para pensar a distinção entre ritos mágicos e religiosos. O antropólogo escocês estabelece dois critérios. O primeiro, de que o rito mágico é um rito simpático, ou seja, de que este ocorre por associação simpática. Todavia esta definição ainda não é suficiente, visto que o rito mágico pode ser não simpático, e também, no rito religioso o elemento simpático também pode estar presente: “[...] rito mágico é um rito simpático. [...] Não apenas há ritos mágicos que não são simpáticos, como também a simpatia não é particular da magia, pois há atos simpáticos na religião”. (ibidem) O segundo critério proposto é o de que o rito mágico é composto por “técnicas” 3 de controle, ao passo que o rito religioso é harmonizador: O segundo critério, proposto por Frazer, é que o rito mágico age geralmente por si mesmo, e coage, enquanto o rito religioso adora e concilia. [...] Mas essa distinção ainda está longe de ser suficiente, pois com frequência também o rito religioso coage, e o deus não podia de modo algum subtrair, na maior parte das religiões antigas, a um rito realizado sem vicio de forma. Além disso, não é exato, e veremos isso claramente, que todos os ritos mágicos

2 James George Frazer (1854-1941) Importante antropólogo escocês com trabalhos contundentes nos estudos sobre a mitologia e a religião comparada. 3 O termo aqui não compreende ao que correntemente é utilizado, ou seja, o de método reprodutível empírico-científico. Não obstante, representa um determinado modelo do desenvolvimento da técnica, ainda não como a forma reificada, como comumente se apresenta no pensamento dos autores.

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A magia na dialética do esclarecimento: interlúdios entre etnologia e teoria crítica, pp. 259-265 tenham tido uma ação direta, uma vez que há espíritos na magia, e mesmo os deuses aí participam. (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 58)

Vemos, portanto, que os critérios propostos por Frazer não foram suficientes. Mauss e Hubert por sua vez, buscam estabelecer distinções fundamentais entre os hábitos sociais das duas práticas. A primeira distinção que eles estabelecem é entre os agentes: “Em primeiro lugar, os ritos mágicos e os ritos religiosos têm com frequência agentes diferentes [...]. Quando, excepcionalmente o sacerdote faz magia, sua atitude não é a atitude normal de sua função [...]”. (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 59-60) O sacerdote, portanto, quando faz magia não está seguindo o rito religioso como de costume. Em seguida, estabelecem uma distinção nos locais e formas de execução dos ritos. Para ser dotado de caráter mágico o rito tem, obrigatoriamente, de ser envolto de mistério, neste sentido, o local é fundamental, pois este não pode ser de caráter público ou mesmo de grande tráfego, como os locais urbanos. Cito os autores: Primeiro, a escolha dos lugares onde deve ocorrer a cerimônia mágica. Esta não costuma ocorrer no templo ou no altar doméstico, mas geralmente nos bosques, longe das habitações, na noite ou na sombra, ou nos recônditos da casa, isto é, num lugar isolado. Enquanto o rito religioso busca em geral a luz do dia e o público, o rito mágico os evita. (MAUSS; HUBERT. 2006, p. 60)

Temos assim estabelecida a definição inicial da magia de forma mais clara, agora em um critério ainda não encontrado, através dos ritos privados, são as práticas dos ritos mágicos, nas palavras dos autores: “Chamamos assim todo rito que não faz parte de culto organizado, rito privado, secreto, misterioso e que tende no limite ao rito proibido”. (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 61); aliando este último critério aos outros encontrados, temos assim uma definição etnológica da magia, nas palavras de Mauss e Hubert: Dessa definição, levando em conta a que demos dos outros elementos da magia, resulta uma primeira determinação de sua noção. Percebe-se que não definimos a magia pela forma de seus ritos, mas pelas condições nas quais eles se reproduzem e que marcam o lugar que ocupam no conjunto dos hábitos sociais. (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 61)

É, portanto, no conjunto dos hábitos das práticas sociais que Mauss e Hubert definem a magia. Imperando nesse sentido, em linhas gerais, a noção mítica de magia esconde uma forte evidência de que, na realidade, das práticas sociais de um determinado modelo de sociedade de uma determinada época, que pode ou não, se reproduzir utilizando-se de novas paginações ritualísticas. A magia no esclarecimento

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A magia na dialética do esclarecimento: interlúdios entre etnologia e teoria crítica, pp. 259-265 Pensar a magia como prática social, é esta definição que interessa a dialética do esclarecimento. Da síntese corrente entre as práticas sociais e a abstração racional destas práticas, onde se encontra o principium do esclarecimento: “A distância do sujeito com relação ao objeto, que é pressuposto da abstração, está fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado.” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 24) É com o desencantamento do mundo e a saída do mito, que, segundo o esclarecimento a dominação da natureza é possível, algo que está imbricado nas práticas mágicas, porém, ainda não obedece ao critério dominador do esclarecimento. No mundo luminoso da religião grega perdura a obscura indivisão do princípio religioso venerado sob o nome de “mana” nos mais antigos estágios que se conhecem da humanidade. Primário indiferenciado, ele é tudo o que é desconhecido, estranho: aquilo que transcende o âmbito da experiência, aquilo que nas coisas é mais do que sua realidade já conhecida. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 25)

Ao aplicarem sua leitura sobre a magia no mundo grego, nossos autores concluem que no mundo grego o mana ainda estava presente, compreendendo que a noção de mana remete a elementos na magia que são desconhecidos, que são também naturais em seu sentido mais imanente. “O mana não é simplesmente uma força, um ser, é também uma ação uma qualidade e um estado.” (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 142) O mana é esse elemento desconhecido na medida em que é indiscernível; é portanto, um elemento que precisa ser purificado de acordo com as leis do esclarecimento, isto é, precisa ser dominado, conhecido. No mundo grego, a transição do mito para a razão; o elemento indiscernível persiste como constituinte social, não obstante, esse seria eliminado de vez pelo esclarecimento. Nossos autores pensam, todavia, que não bastava identificar que a mana contém elementos do – por definição – desconhecido mundo mágico. Vão mais a fundo, ao suporem que ele foi usado de forma similatória para a dominação da natureza; ensejam ainda, que foi dela, ou para ser mais preciso foi da superação do aspecto desconhecido, que fora denominado mana4. Afirmar a superação deste aspecto significar dizer que foi possível superar a forma mágico-mítica de controle

4 O mana é definido por Mauss exatamente como indefinido, algo mágico-natural que “é ao mesmo tempo um substantivo, um adjetivo, um verbo.” (MAUSS; HUBERT, 2006, p. 142), algo que, portanto, está totalmente imbricado ao indefinido, i.e., ainda não pode ser chamado de esclarecimento –no seu sentido mais moderno – apesar de ser uma prática usada para dominar a natureza ainda contém muito do elemento desconhecido, ainda está através do desconhecido ligada a natureza, e, portanto não a domina em sua totalidade.

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A magia na dialética do esclarecimento: interlúdios entre etnologia e teoria crítica, pp. 259-265 da natureza. Não significa dizer, por sua vez, que a natureza fora, por completo dominada. Por isso o esclarecimento não cessa, neste momento. Com o passar do tempo, a necessidade de autoconservação obrigou aos mais tradicionais a defasarem os ritos. Quanto menos expressões naturais realizassem, tanto mais abstrata e, posteriormente, física seria a forma de dominação da natureza, de tal maneira que pudessem finalmente organizar o mundo mágico em mundo humano, ou seja, um mundo desconhecido e desordenado em um mundo conhecido e ordenado. Dizem os autores: Onde quer que a etnologia o encontre, o sentimento de horror de que se origina o mana já tinha recebido a sansão pelo menos dos mais velhos da tribo. O mana não idêntico e difuso é tornado consistente pelos homens e materializado à força. Logo feiticeiros povoam todo lugar de emanações e correlacionam a multiplicidade dos ritos sagrados a domínios sagrados. Eles expandem o mundo dos espíritos e suas particularidades e, com ele, seu saber corporativo e seu poder. A essência sagrada transfere-se para os feiticeiros que lidam com ela. Nas primeiras fases do nomadismo, os membros da tribo têm ainda uma parte autônoma nas ações destinadas a influenciar a natureza. Os homens rastreiam a caça, as mulheres cuidam do trabalho que pode ser feito sem um comando rígido. [...] Nela o mundo já está dividido numa esfera de poder e numa esfera profana. Nela o curso da natureza enquanto eflúvio do mana já está erigido em norma que exige submissão. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 29-30)

As palavras de ordem do momento são: “saber corporativo” e “poder”. A compreensão da qual partem Adorno e Horkheimer dessas palavras – mesmo em uma era que não existia o capitalismo –, é na exata medida dizer que foi a partir desse germe, do desencantamento do mundo mágico, que foi possível a saída da mais pura forma do mito – sua forma mais confusa, sem começo, meio ou fim: a magia, para a mais organizada e reificada forma do esclarecimento: a razão técnica. “Não é apenas o esclarecimento do século dezoito que é irresistível, como atestou Hegel, mas (e ninguém melhor do que ele sabia disso) o movimento do próprio pensamento.” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 29) O esclarecimento é totalitário e saber é poder, algo que já estava presente na forma em que se organizavam as primeiras tribos. Dizem os autores: Mas, se o selvagem nômade, apesar de toda submissão, ainda participava da magia que a limitava e disfarçava no animal caçado para surpreendê-lo, em períodos posteriores o comércio com os espíritos e a submissão foram divididos pelas diferentes classes da humanidade: o poder está de um lado, a obediência do outro. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 30)

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A magia na dialética do esclarecimento: interlúdios entre etnologia e teoria crítica, pp. 259-265 Considerações finais Por fim, podemos concluir que o interesse do esclarecimento no desencantamento do mundo é, ao fim e ao cabo, o controle da natureza externa e interna. Em outras palavras, se o eu pode dominar a natureza, pode dominar o homem, pode ter mais poder. Em última análise, como nos enfatizou Bacon5, saber é poder. A magia, que se apresenta como essa fissão, remonta a um modelo em que as formas de dominação da natureza eram formas de imitação do mundo natural, imitação essa que foi substituída por formas de dominação tanto mais acuradas, quando o pensamento projetivo pode ser assimilado, quando o nome já dividia o mundo. Quanto mais posso dar nomes ao mundo, quanto mais conheço o homem, mais o domino – assim pensa o esclarecimento. No entanto, Adorno e Horkheimer nos deixam o alerta “O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder.” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 21) O que podemos traduzir da seguinte maneira: quanto mais o homem domina a natureza mais se perde nela, quanto mais o homem domina a natureza do homem, mais perdido ele se torna. É a partir da magia, que segundo os autores esse modelo do esclarecimento pôde deixar o mundo indiscernível do mana – da natureza indiscernível – para a luminosa era do esclarecimento.

REFERÊNCIAS: ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Edição: 1. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. DUARTE, Rodrigo. “NOTAS SOBRE MODERNIDADE E SUJEITO NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO.” In: DUARTE. Rodrigo. Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Edição: 1. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar Escrever Esquecer. Edição: 1. São Paulo: Editora 34, 2006. LINDOSO, Dirceu. Lições de etinologia geral: introdução ao estudo de seus principios. Edição: 1. Maceió: EDUFAL, 2008. MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. “Esboço de Uma Teoria Geral da Magia.” In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Edição: 1. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 5 Novum Organom.

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A justiça popular e os atos jurídicos: o tribunal e seus regimes de verdade jurídica, pp. 266-272

A JUSTIÇA POPULAR E OS ATOS JURÍDICOS: O TRIBUNAL E SEUS REGIMES DE VERDADE JURÍDICA Raquel Célia Silva de Vasconcelos1

RESUMO: o objetivo é analisar os regimes de verdades jurídica sobre o corpo social a partir da relação direito-justiça legitimados no exercício do poder judicial. Foucault, em “Sobre a Justiça Popular”, traz discussões sobre justiça, poder, violência, corpo e direito que perpassam a formação do sistema judiciário ocidental. Os regimes de verdade jurídica perpetrado pelo Estado através do uso da violência como exercício do poder no controle do corpo da sociedade resulta no enquadramento e na manutenção do direito. O ensaio resulta de uma pesquisa exploratório da teoria de Foucault e a contribuição de Hannah Arendt e Walter Benjamin no tocante .... PALAVRAS-CHAVE: Poder. Violência. Direito. Justiça. Corpo social. POPULAR JUSTICE AND LEGAL ACTS: THE COURT AND ITS LEGAL TRUTH REGIMES ABSTRACT: the objective is to analyze the regimes of legal truths about the social body based on the legitimate right-justice relationship in the exercise of judicial power. Foucault, in "About Popular Justice", discusses justice, power, violence, body and law that permeate the formation of the western judicial system. The legal truth regimes perpetrated by the State through the use of violence as an exercise of power in controlling the body of society results in the framing and maintenance of the right. The essay results from an exploratory research of Foucault's theory and the contribution of Hannah Arendt and Walter Benjamin in relation to power-violence relations. KEYWORDS: Power. Violence. Right. Justice. Social body. 1 Doutora em Educação, Professora, e-mail: raquelcsvasconcelos@gmail.com

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A justiça popular e os atos jurídicos: o tribunal e seus regimes de verdade jurídica, pp. 266-272 Introdução As elucidações foucaultianas provocam uma análise desafiadora ao permitir reflexões acerca dos desdobramentos da ação jurídica a partir do poder instituído nas relações, muitas vezes, legitimada pela violência na imposição da ordem. São elucidações que diz respeito ao texto, “Sobre a Justiça Popular”, que direta e indiretamente perpassam discussões foucaultianas acerca dos conceitos, verdade e poder, atravessando o saber como exercício de poder. No referido texto Foucault aponta a relação saber-poder do sistema judiciário concebido ao tribunal que discursa sobre justiça na dimensão do ordenamento imposto pelo direito legitimando as ações do Estado. Foucault assinala que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular como deveria ser. Na verdade ele tem sua maior expressão na forma de reinscrição do discurso que favorece, manipula e molda a justiça popular. Nessa perspectiva, este artigo traz dois momentos de discussão, o primeiro, Os Atos de Justiça Popular e o Estado, discorre sobre o controle que o Tribunal exerce sobre a justiça popular, sobretudo no tocante aos critérios estabelecidos acerca de sua concepção de justiça. No segundo, Justiça e Poder: Exercício das Relações, analisa a prática judicial com suas novas engrenagens na efetivação dos critérios de definição entre meios e fins justos a partir das ações arbitrárias do aparelho de Estado. Foucault põe em xeque a forma como a justiça popular é conduzida pelo o poder judiciário. Os Atos de Justiça Popular e o Estado A hipótese central de Foucault, em seu texto “Sobre a justiça popular”, “é que o Tribunal não é a expressão natural da justiça popular, mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reescrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado.” (FOUCAULT, 2013, p. 87) Em sua abordagem, ele discorre sobre a possibilidade de deslocamento da justiça ao domínio das classes sociais uma vez que reconhece a justiça como instrumento de resistência importante e autêntico que podem beneficiar as classes oprimidas. Para Foucault, no entanto, a questão da justiça perpassa todas as lutas sociais, mas aconselha que “ao invés de pensar a luta social em termos de ‘justiça’, deve-se enfatizar a justiça em termos de luta social” (2013, p. 89).

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A justiça popular e os atos jurídicos: o tribunal e seus regimes de verdade jurídica, pp. 266-272 Segundo Foucault (2013), quando uma sociedade de classe decide sobre o justo ou injusto, são tomadas por uma instância que se diz neutra como o tribunal judiciário e a concepção social de justiça. Esta, no entanto, corresponde aos interesses da classe que a instituiu e a controla, pois o tribunal, enquanto aparelho do Estado, tem como função dividir as massas, sobretudo porque “a justiça popular reconhece na instância judiciária um aparelho de Estado representante do poder público e instrumento do poder de classe.” (FOUCAULT, 2013, p. 93) Contudo, tal decisão pressupõe determinações de governos que discursam sempre contra opositores ou não opositores a partir da tutela da desordem, cuja saída é sempre a imposição da ordem através da violência como essencial a manutenção do poder pelo Estado. Como diria Stuart Mill (apud Arendt, 2016, p. 55), “a primeira lição da civilização [é] aquela da obediência, […] dois estados de inclinações (…) um, o desejo de exercer poder sobre os outros; o outro, a falta de inclinação para sofrer o exercício do poder.” Ao se referir à uma instância neutra, Foucault está se referindo às decisões tomadas pelo juiz. Este, no momento do veredito final, estabele discursos de verdades que apontam a falácia do posicionamento neutro durante o julgamento. O juiz, no entanto, assume a posição de autoridade que perpassa, em última instância, a ordem como imposição da obediência. Mas, na visão de Foucault (2013), a ideia de autoridade neutra, cuja decisão perpassa as duas partes com base numa justiça com valor absoluto, é totalmente contrária à ideia de justiça popular. Na prática da justiça popular, para o autor, existem apenas as massas e seus inimigos uma vez que não existe um elemento neutro na autoridade do juiz enquanto instituição política, pois “todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; elas se petrificam e decaem tão logo o poder vivo do povo deixa de sustentá-las.” (ARENDT, 2016, p. 57) Portanto, Foucault aponta que a subversão do poder judiciário se dá pelas classes oprimidas como atos de justiça popular em resistência e superação à opressão exercida pela classe dominadora. Vale ressaltar que os oprimidos decidem punir ou reeducar seus inimigos, cujas decisões têm como base a experiência dos danos que sofreram e a forma como foram prejudicados. Como afirma Brandão (2010, p. 7): “a classe oprimida não inicia uma guerra contra a classe opressora porque considera tal guerra justa, mas porque ela quer, finalmente, tomar o poder. Por outro lado, [...], a noção de justiça pode funcionar como uma demanda dos oprimidos ou como uma justificativa para tal demanda.”

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A justiça popular e os atos jurídicos: o tribunal e seus regimes de verdade jurídica, pp. 266-272 Para Foucault, a justiça popular deve promover o esclarecimento da política e a eliminação da alienação e da divisão ideológica entre diferentes camadas das classes populares, para que as pessoas possam ter uma melhor visão do que acontece ao seu redor, sem que sejam induzidos pelo poder da classe dominante. Isto significa que a noção de justiça como uma demanda social dos oprimidos aponta para uma dimensão de desiguais na tomada de decisão na efetivação da justiça. Na justiça popular existem apenas as massas e seus inimigos. Aqui inexiste um elemento neutro que decide com autoridade. Tão pouco, os oprimidos se valem de uma noção de justiça abstrata e universal, quando decidem punir ou reeducar seus inimigos. Sua decisão tem como base a experiência concreta. Isto é, os danos que sofreram e a forma como foram prejudicados. (BRANDÃO, 2010, p. 8)

Ademais a tradição filosófica ocidental sempre estabeleceu discussões acerca da questão da justiça, sobretudo vista como exercício político correspondente aos costumes do grupo social. Sempre fora uma preocupação dos filósofos estabelecer o conceito de justiça na dimensão da convivência social. Isto significa, como assinala Brandão, que a tradição mais clássica da filosofia estabeleceu duas classificações acerca do conceito de justiça: “na primeira, justiça se refere ao sujeito ou ao seu comportamento em relação à norma. Na outra, a justiça é tomada como meio para um bem maior. Esta análise nos deu critérios para reduzir a amplitude do campo de investigação filosófica sobre a justiça nas obras de Foucault.” (BRANDÃO, 2010, p. 2) Justiça e Poder: Exercício das Relações A justiça em Foucault toma uma amplitude para pensar o poder como exercício que se dá nas relações sociais, apontando que a pŕopria justiça é também um exercício. Em, “Vigiar e Punir”, Foucault esclarece que “a punição passa por mudanças, tornando-se a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível.” (1987, p. 13). Portanto, a certeza da punição desvia o acusado do crime que não se dá mais na dimensão do suplício, mas aos olhos da Poder Judiciário que tem na justiça popular sua maior expressão participativo do povo. A nova instância judicial tem na lei sua nova forma de “punição” legal que obedece a novas engrenagens utilizadas no âmbito de uma justiça legal do ponto de vista discursivo, como uma prática que não aplica mais a violência como exercida no suplício resultante da ordem estabelecida pelo poder soberano.

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A justiça popular e os atos jurídicos: o tribunal e seus regimes de verdade jurídica, pp. 266-272 De fato, uma das mais óbvias distinções entre poder e violência é que o poder sempre depende de números, enquanto a violência, até certo ponto, pode operar sem eles, porque se assenta em implementos. Um domínio legalmente irrestrito da maioria, uma democracia sem Constituição, pode ser muito formidável na supressão dos direitos das minorias e muito efetivo em sufocar o dissenso sem qualquer uso da violência. Mas isso não significa que violência e poder sejam o mesmo. (ARENDT, 2016, p. 58)

Por essa razão, assinala Foucault, “a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício.” (1987, p. 13) Na verdade, a prática judicial, a partir das novas engrenagens, que atravessada pelo Direito como exercício da violência, tem como objetivo a docilização dos corpos que impregna o jusnaturalismo na tomada de decisão acerca da validade e atuação do direito positivo se sobrepondo ao direito natural, especialmente aos critérios de definição entre meios e fins justos. À tese, defendida pelo direito natural, do poder como dado da natureza, se opõe diametralmente a concepção do direito positivo, que considera o poder como algo que se criou historicamente. Se o direito natural pode avaliar qualquer direito existente apenas pela crítica de seus fins, o direito positivo pode avaliar qualquer direito que surja apenas pela crítica de seus meios. Se a justiça é o critério dos fins, a legitimidade é o critério dos meios. (BENJAMIN, 1986, p. 160)

Para muitos a justiça exerce somente uma função, mas, para Foucault, a forma como a justiça popular é conduzida pelo o poder judiciário levanta desconfiança porque sua efetivação se encontra na ordem do discurso. Isto significa que a prática da justiça é mero discurso de verdade, favorecendo quem determina as ações do Estado, que legitimadas por fins e meios, muitas vezes, injustos apontam naquelas ações um paradoxo. Trata-se de uma concepção de justiça determinando quais os indivíduos beneficiados, tendo como pressuposto o Direito, legislador dos sujeitos, cujo direito de pedir justiça pressupõe estar inscrito em uma jurisdição determinada pelo próprio Direito. Tal convicção explicitamente assumida pelo totalitarismo, de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis, representa uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica, como formulada pela tradição, senão como verdade pelo menos como conjectura plausível da organização da vida em sociedade. (LAFER, 1997, p. 57)

Na verdade, as ações do Estado delineiam discursos jurídicos que, muitas vezes, conduz a tomada de posição contrária à justiça popular que deveria ser um exercício do poder enquanto instrumento de transformação social. Por isso, Foucault questiona a justiça popular dentro dos tribunais, pois quem a compõe comunga com os aparelhos do Estado que parece deter uma espécie de poder mais elevado frente à classe subjugada, cujo poder não se inscreve nos discursos de verdades determinados no tribunal. Para Foucault a justiça popular ocupada por pessoas que lutam

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A justiça popular e os atos jurídicos: o tribunal e seus regimes de verdade jurídica, pp. 266-272 por justiça reforça sua ideia de que o poder transita e não é determinado pelo Estado e suas instituições, mas está nas relações, o tribunal apenas faz uso dele como algo pertencente unicamente a ele. O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto grupo se conserva unido. Quando dizemos que alguém está “no poder”, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome. (ARENDT, 2016, p. 60)

Dessa forma, poder e justiça popular têm no direito natural a legitimidade do uso de meios violentos para fins justos, pois “o direito natural não vê problema nenhum no uso de meios violentos para fins justos; [...]. Segundo essa concepção [...], a violência é um produto da natureza, por assim dizer, uma matéria-prima utilizada sem problemas, a não ser que haja abuso da violência para fins injustos. (BENJAMIN, 1986, p. 160) Nesse aspecto, evidencia-se o quanto é preciso repensar o sentido de distinção do poder em legítimo e ilegítimo porque nunca houve uma distinção clara. Para Foucault uma justiça popular, em suas funções e atribuições, defende os interesses do aparelho de Estado que tem no Tribunal sua maior expressão, isso faz parte da história da criação do judiciário no Ocidente. Foucault assinala o quanto é paradoxal a prática da justiça em sociedade como a nossa porque [...], o aparelho de justiça foi um aparelho de Estado extremamente importante cuja história foi sempre mascarada. Faz-se a história do direito, da economia, mas a história da justiça, da prática judiciária, do que foi efetivamente um sistema penal, do que foram os sistemas de repressão, disso fala-se raramente. Ora, creio que a justiça como aparelho de Estado teve na história uma importância capital. O sistema penal teve por função introduzir um certo número de contradições no seio das massas e, em particular, uma contradição maior: opor os plebeus proletarizados aos plebeus não proletarizados. A partir de uma certa época, o sistema penal, que tinha essencialmente uma função fiscal na Idade Média, dedicou−se à luta anti−sediciosa. A repressão das revoltas populares tinha sido até então sobretudo tarefa militar. Foi em seguida assegurada ou melhor, prevenida, por um sistema complexo justiçapolícia-prisão. (FOUCAULT, 1979, p. 49-50)

Por certo, o poder apenas na função repressora é frágil, embora seja isso que o Estado faça, aliás ele conduz a falsa crença em uma poder repressor, facilitando, assim, a estagnação da sociedade. É fato que as relações de poder, enquanto exercício do poder, favorece transformações sociais e reduz os efeitos dos discursos de verdades que as grandes instituições, sobretudo o aparelho de Estado, impõem. Foucault esclarece que a justiça no âmbito do Tribunal não permite a efetivação da justiça popular porque o discurso jurídico está em defesa dos interesses de quem decido sobre o que é justiça e injustiça. CONSIDERAÇÕES FINAIS Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A justiça popular e os atos jurídicos: o tribunal e seus regimes de verdade jurídica, pp. 266-272 Acredito que as discussões sobre o dever da justiça popular permitem lançar um novo olhar à justiça e ao poder, como diz Foucault, um outro olhar às suas deformidades. Isto implica que a deformidade da justiça social não é algo restrito ao sistema judiciário, mas a todos os setores da sociedade que reproduz os discursos de verdades válidos, muitas vezes, proferidos por um “Estado Violência”. O Estado Violência institui e mantém direitos cujos critérios legais obedecem aos poderes sancionados e não sancionados, legítimos e ilegítimos, a partir de sua compreensão jurídica no tocante à sua verdade sobre o que significa fins justos ou injustos. Seus critérios recaem sempre sobre o corpo social que, por sua vez, tornar-se seu espaço de atuação e permanência para suas práticas arbitrárias. Dessa forma, o Estado e suas instituições mantêm-se unânimes e inquestionáveis no que diz respeito aos arbítrios cometidos. A docilização dos corpos pressupõe um desses arbítrios, pois o controle dos comportamentos e ações para processos de subjetivação são eficazes e determinantes.

REFERÊNCIAS: ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. BENJAMIN, Walter. Crítica da violência – crítica do poder. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura e Documentos de Barbárie: Escritos escolhidos. Seleção e apresentação de Willi Bolle. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 160-175. BRANDÃO, Caius. A Justiça Popular em Michel Foucault. Artigo publicado na Academia Edu. https://www.academia.edu/1085512/A_justiça_Popular_em_Michel_Foucault. FOUCAULT, Michel. Poder-corpo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p 145-152. ____________. Sobre a justiça popular. IN: ________. Microfísica do poder. 26 ed. São Paulo: Graal. 2013. __________.Vigiar e punir: nascimento da prisão. 27. ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos avançados 11 (30), 1997. Acessado em 03 de novembro de 2017. Link: http://fabiopassos.com.br/downloads/919d1a8ac33158738d8f745e15305fe9.pdf. VASCONCELOS, Raquel Célia Silva de. Soberania versus Estado: crítica ao binômio poder-violência em Walter Benjamin. In:PULINO, Lúcia Helena; GADELHA, Sylvio (organizadores). Biopolítica, Escola e Resistência: infâncias para a formação de professores. São Paulo: Editora Alínea, 2012, p. 49-58.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288

A AÇÃO DA LEI E DO LEGISLADOR EM DETRIMENTO DA LIBERDADE E DO PODER SOBERANO DENTRO DA SOCIEDADE CONTRATUAL EM JEAN JACQUES ROUSSEAU Carlos Frederyck Machado Cavalcante 1

RESUMO: O presente artigo busca demonstrar o papel importante que tem o conceito de Lei dentro da filosofia de Jean Jacques Rousseau bem como apresentar a conformidade atribuída ao papel do Legislador para garantir que os interesses dos indivíduos envolvidos dentro da sociedade sejam legitimados de maneira que ocorra em total liberdade com consonância ao que ele entende que seja a vontade geral. Pretendemos demonstrar que tal conformidade ocorre desde o momento em que os indivíduos se veem na condição de terem que manter laços sociais entre si uma vez saídos do estado de natureza e inseridos no estado civil pela via do pacto social, demonstrando que é a partir do poder legislativo, onde se presencia a distinta figura do Legislador e da Lei, que os interesses reais

1 Mestre em Filosofia (UECE). Vínculo profissional: Professor da rede pública de ensino. E-mail para contato: pro.fred.ce@gmail.com

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 da sociedade sejam garantidos em primazia dos interesses particulares, vistos aqui, como prejudiciais para a manutenção da sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Rousseau; Lei; Liberdade. ABSTRACT: This article seeks to demonstrate the important role of the concept of Law within the philosophy of Jean Jacques Rousseau as well as to present the conformity attributed to the role of the Legislator to ensure that the interests of individuals involved within society are legitimated in a way that occurs in full freedom in line with what he understands to be the general will. We intend to demonstrate that such conformity occurs from the moment when individuals find themselves in the condition of having to maintain social ties with each other once they leave the state of nature and enter the civil state through the social pact, demonstrating that it is from the power legislative, where the distinguished figure of the Legislator and the Law is witnessed, that the real interests of society are guaranteed in the primacy of private interests, seen here, as harmful to the maintenance of society. KEYWORDS: Rousseau; Law; Freedom.

No livro quinto da obra Emílio, Rousseau destaca resumidamente raciocínios sobre a garantia da liberdade, quase que da mesma maneira em que são apresentados em Do Contrato Social. A primeira obra anuncia em forma de problematização a questão da ligação da vontade geral com o fazer legislativo em prol do ser livre. Já o segundo texto dimensiona a solução dada para essa questão, apresentando detalhes sobre a força e a primazia que tem a Lei em benefício da moralidade do agir político culminando em garantia de liberdade. Anuncia-se assim, a notoriedade de se pensar a Lei: Já que nada constrange os súditos, a não ser a vontade geral, procuraremos saber como se manifesta essa vontade, por que sinais podemos estar certos de reconhecê-la, o que é uma lei e quais são os verdadeiros caracteres da lei. Este assunto é inteiramente novo; a definição de lei ainda está por fazer (ROUSSEAU, 1999. p. 652-653).

Achamos necessário para melhor exposição do seguinte artigo, direcionado ao entendimento da ação da Lei junto à função do Legislador, apresentar como pré-requisito o que Rousseau entende que seja um ato soberano. Em Do Contrato social Rousseau destaca a soberania, de modo peculiar, como uma ação coletiva onde opera o que ele classifica de “o exercício da vontade geral” (ROUSSEAU, 1987a, p. 43 e 44), isto é, uma ação na qual os indivíduos associados2, da mesma

2 Para Rousseau o ato de associação distingue-se do ato de agregação. Enquanto a associação é uma prática única e voluntária de agrupamento de indivíduos de forma qualitativa, a agregação é desprovida de intuitos morais, pois, não passa de uma união quantitativa de indivíduos que nada acrescenta à determinação prévia para realizar uma sociedade pactual possível em termos éticos.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 forma que não submetem suas respectivas liberdades a nenhum pré-requisito, sobretudo determinado em sua natureza ou em alguma natureza divina, também se vinculam ao ato soberano. Este não deve ser compreendido, portanto, jamais sob um ponto de vista de interesses puramente individuais, algo caracterizado como apenas uma emanação da mesma, mas sim como uma força cuja representatividade só pode emanar puramente de si própria sob o prisma da coletividade. Logo, “se incorre em erro todas as vezes que se crê estar a soberania dividida, pois os direitos, tomados por partes dessa soberania, subordinam-se todos a ela, e supõem sempre vontades supremas, às quais esses direitos só dão execução” (ROUSSEAU, 1987, p. 45). Desse modo, o pacto social, requer um campo de força que ordene o direcionamento do corpo político e que faça da sociedade civil uma realidade aonde o sujeito possa transmutar do estado de natureza3 até o estado civil sem que haja um desmantelamento moral dos indivíduos em consonância com um impacto político negativo onde a opressão entre indivíduos possa ter espaço. Sua expressividade precisa ser exacerbada bem como também impressa, e sabendo que é possível fazer valer-se de uma postura racional para legitimar a sociedade civil, tal determinação se encontra, sobretudo, na ideia de que existe uma potencialidade oriunda dos indivíduos que compõem a sociedade e que torna possível o pacto consequente da associação civil. Rousseau, em seu Discurso sobre a economia política4 (1755), apresenta a ideia de que deve haver uma vontade geral5 no seio da sociedade e que ela pode atuar como uma regra de suma importância para a manutenção de uma ação de governabilidade. Ele percebe nela a potência de onde o povo pode vislumbrar seu bem6 e que, para tanto, se deve ter a capacidade de conhecer a essência dela, bem como saber diferenciar a mesma do que ele chamou de vontade particular.

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Diz Rousseau acerca do ato de associar-se: Observamos que esse ato de associação contém um compromisso recíproco do público e dos particulares e que cada indivíduo, estabelecendo contrato, por assim dizer, consigo mesmo, vê-se compromissado duplamente, como membro do soberano em relação aos particulares e como membro do Estado em relação ao soberano (ROUSSEAU, 1999, p.651). 3 Segundo Roberto Gatti: “A condição em que os indivíduos vivem quando ainda não estão organizados politicamente; nela é impossível que cada um se ocupe individualmente de sua conservação e que alcance o total desenvolvimento de suas faculdades, exequíveis apenas no estado civil” (GATTI, 2015, p. 133). Escreve o mesmo autor: “O estado natural é um instrumento crítico para interpretar nossa condição atual” (GATTTI, 2015, p. 34). ROUSSEAU, 2017, p. 21. Segundo Roberto Gatti: “A vontade racional que deve guiar as deliberações da assembleia soberana é formada e mantida em cada indivíduo particular para poder guiar, de quando em quando, as decisões que a assembleia toma. Quem a descumpre será obrigado a se adequar, ou seja, a obedecer às leis e, assim, a ‘ser livre’” (GATTI, 2015, p. 149-150). De acordo com Salinas Fortes: “A vontade geral como instância soberana é, assim, não apenas a ideia reguladora – “regra de administração” – para se pensar a legitimidade da ordem política, mas é também ou deveria ser, tal como o imperativo kantiano, a ideia reguladora do comportamento de cada membro da associação. Se todos os membros da associação fossem soberanamente governados por esta Ideia, teríamos o estado perfeito onde encontrariam solução as antinomias da vida política. Esta é, pois, a “regra” tanto para a conduta dos membros da associação quanto para o nosso juízo a respeito das qualidades da convivência política dentro de uma determinada comunidade empírica. Serão infinitas as variações empíricas entre este ideal e seu oposto: cumpre, porém, bem fixá-las para se poder apreciá-las adequadamente” (SALINAS, 1997, p. 112).

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 No sistema social, pautado na ideia de pacto, a vontade particular7 demonstra que não tem cunho racional, portanto, não coaduna, em sua interioridade puramente particularizada, com os reais interesses que fazem parte da comunidade política em sua totalidade, e, logo, não pode ter um viés moralmente aceito, pois antagoniza com a ideia de que seja um verdadeiro representante do estado de bem-estar social. Seu caráter ímpio é facilmente deflagrado, se tivermos como pressuposto a ideia de que pode recair em um aglomerado de interesses particulares e, por conta disso, em uma total catástrofe social permeada pelo perigo que advém da intervenção dos “interesses privados nos negócios públicos” (ROUSSEAU, 1987a, p. 84). O pacto visa romper justamente com essas possíveis consequências desequilibradas que habitam a vida em uma sociedade tomada por um indivíduo desprovido do amor de si 8e vinculado ao amor-próprio9. Seguindo essa linha de raciocínio, entendemos que o interesse particular deve ser transmutado pela ação contratualista, e, a partir de então, subentende-se que tudo que tira a primazia do interesse essencialmente geral deva perder espaço para a existência do que possa fazer valer o interesse maior, que é a manutenção da sociedade política através da vontade geral. A respeito do interesse particular relativamente à vontade geral confirma-se que: Com efeito, desde que se trata de um fato ou de um direito particular sobre algo que não esteja regulamentado por convenção geral e anterior, a questão se torna contenciosa: é um processo em que os particulares interessados representam uma das partes e o público a outra, mas no qual não vejo nem que lei observar, nem que juiz deva pronunciar-se. Seria ridículo querer, nesse caso, recorrer a uma decisão expressa da vontade geral que mais não pode representar do que a conclusão de uma das partes e, consequentemente, não passa, para a outra parte, de uma vontade estranha, particular, nessa ocasião induzida à injustiça e sujeita a erro. Assim, do mesmo modo que uma vontade particular não pode representar a vontade geral, esta, por sua vez, muda de natureza ao ter objeto particular e não pode, como geral, pronunciar-se nem sobre um homem, nem sobre um fato (ROUSSEAU, 1987a, p. 49 e 50).

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Ver ROUSSEAU, 1987a, p. 50. 8 Trata-se da condição existencial dos indivíduos no período em que vigora o estado de natureza. De um ponto de vista psicológico, a degenerescência individual e posteriormente social, logo que surgida as relações entre os indivíduos, advém de uma transmutação de uma situação em que vigorava o amor de si, que consiste na condição humana de apenas conservar-se enquanto ser pertencente a natureza e que faria do homem equivalente aos outros animais, repousando em sua individualidade, logo, não podendo agir de forma reciprocamente hostil. Não tivesse o homem outra faculdade chamada por Rousseau de Perfectibilidade, os indivíduos não seriam capazes de sair do estado de natureza e adentrar no estado civil. Uma questão pertinente é o fato de que essa saída leva o indivíduo a adquirir amor de si é justamente o sentimento que lança os indivíduos para uma exterioridade. Logo, vale ressaltar que é sob esse sentimento que tanto a ação educativa, quanto a legislativa devem tomar como categoria importante devido sua capacidade de pode levar os indivíduos a depravação. Segundo Dalbosco em seu livro: Condição humana e educação do amor-próprio em Jean Jacques Rousseau. Existe um caráter ambíguo do amor-próprio que faz dele não somente um estado do individuo de onde surge a depravação, mas, também como uma possibilidade de ser orientado pela virtude até uma direção construtiva dos indivíduos. 9 Segundo Derathé :“ Sua teoria do amor-próprio distinto do amor de si é de inspiração hobbesiana. Foi Hobbes quem lhe ensinou que as necessidades que as necessidades dividem os homens tanto quanto os unem, e que longe de construir o laço social por excelência, como acreditavam os jurisconsultos, as necessidades são uma fonte perpétua de discórdia entre os homens. ( DERATHÉ, 2009, p. 172).

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 A ordem social, estabelecida pelo pacto, só é possível tendo em vista que há a vontade geral10. Ela é apresentada como uma instância ética que visa distinguir o bem comum que envolve toda a comunidade política de interesses que nada acrescentam ao corpo político, pois se vincula apenas a particularismos. É a partir dela que se tem uma visão otimista no ato de governar, alicerçado em princípios moralmente válidos pela sociedade, levando-nos a crer que a vontade geral pode ser viável como a instância de onde o Estado tira força e se faz o motor central.11 É importante deixar claro que o poder da maioria não deve em nenhuma hipótese ser confundido com o poder da vontade geral12, muito embora eles tenham uma ligação inicial. A primeira não atende ao interesse comum e está sujeita a servir de instrumento de acontecimentos que visem apenas às vontades particularizadas. No segundo caso, temos uma representação dos interesses que realmente visam o bem comum da comunidade política. Preocupado em estabelecer a distinção crucial, Rousseau termina por concluir a possibilidade de se ter, a partir dos interesses individuais, uma espécie de “ideal regulador” (GATTI, 2015, p. 150) para o bom direcionamento da sociedade civil. Nas palavras de Rousseau: Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma de vontades particulares. Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades, os a-mais e os a-menos que nela se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral (ROUSSEAU, 1987a, p. 47).

Podemos concluir de imediato, que o agir soberano advém da vontade geral e que ela traz em si uma característica que a torna indestrutível: sua predisposição a não errar13. A ligação inevitável dos indivíduos que fez com que, de certa forma, oportunizasse a construção do cidadão, também opera como o embasamento que vê nas relações humanas uma tendência, durante o ato do pacto, a ter que ver uma série de interesses particulares, em algum momento, entrarem em

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Lourival Gomes Machado em nota classificou de “substrato coletivo das consciências” a noção de vontade geral. Ele acentua que toda a ordem social e política do pensamento de Rousseau estaria submetida ao princípio da vontade geral. Em consequência, a expressividade coletiva da sociedade só poderia ter nela sua maior emanação sob o prisma do que seria realmente comum entre as individualidades. Lourival apresenta, em outra nota, o que seriam as fontes de influência desse conceito tão central e ao mesmo tempo tão complexo, dentro do pensamento do filósofo de Genebra. Ele atribui às figuras de Diderot e Spinoza as possíveis inspirações de tal teoria, fazendo questão de sublinhar quão fundamental é tal conceito para o entendimento de sua teoria contratualista. Se em Diderot a vontade geral é imanente aos indivíduos, em Rousseau ela só ganha vida através de uma transformação social. 11 Ver ROUSSEAU, 1987a, p. 46-47. 12 De acordo com Robert Derathé: “Poderíamos dizer, sem nos desviarmos em demasia do pensamento do autor, que a vontade geral é a vontade de um cidadão qualquer quando, sendo consultado a respeito das questões que concernem à comunidade inteira, ele abstrai de seus preconceitos ou preferências pessoais, e dá um parecer que poderia receber, no direito, a aprovação unânime de seus concidadãos e que, por conseguinte, seria suscetível de ser erigido como lei universal, válida para o corpo todo do Estado” (DERATHÉ, 2009, p. 346). 13 Ver ROUSSEAU, 1987a, p. 46.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 comum acordo. É o ato da eterna necessidade ético-política de reunir-se diante de uma necessidade comum aos interesses da comunidade política, para quem os interessados lançam opiniões distintas, que configura a vontade geral com imunidade a recair em erro, e que, logo, por ser uma ação racional da tentativa de solucionar uma questão para o melhor destino da comunidade política que ela se faz presente. O idêntico, que possibilita a conexão das individualidades, configura-se como sendo a pura essência da vontade geral. Muito embora, na perspectiva de Rousseau, a vontade geral seja indestrutível, ela pode se apresentar em situação de enfraquecimento. Para isso, basta que interesses particulares passem a sobrepujar ao geral emudecendo-o por meio de uma fragilização do liame social14. O ato de corrupção, citado em Do Contrato social, como exemplo de fragilização do interesse da vontade geral, tem o poder de iludir15, mas sua ímpia ação não põe fim completamente à mesma, que mesmo deturpada através de subordinações reina “sempre constante, inalterável e pura” (ROUSSEAU, 1987a, p. 118). Se há um meio de remediar esse mal na sociedade, esse meio é substituir o homem pela lei e armar as vontades gerais de uma força real, superior à ação de qualquer vontade particular. Se as leis das nações pudessem ter, como as da natureza, uma inflexibilidade, que nunca alguma força humana pudesse vencer, a dependência dos homens voltaria então a ser as das coisas; reunir-se-ia na república todas as vantagens do estado natural e do estado civil; juntar-se-ia à liberdade que mantém o homem sem vícios a moralidade que educa para a virtude (ROUSSEAU, 1999, p. 78).

De modo otimista, esse tipo de pensamento caminha para a busca de uma “luz superior” que possa contribuir para a efetivação do projeto de ver os indivíduos totalmente imersos em uma convivência harmoniosa, em que suas individualidades agrupadas não deem espaço à postura autoritária. Há a necessidade de apresentarmos quais os meios de fazer com que tal soberania se faça presente. Sendo a sociedade a instância aonde aparece o cidadão saído do estado de natureza e Rousseau determina nesse trâmite que o mesmo seja feito levando em consideração a ideia de liberdade como uma determinação antropológica dos indivíduos. A liberdade moral pode ser entendida como o paradigma que supõe garantir aos indivíduos a sua existência nos ditames da sociedade civil e, esta mesma liberdade, não pode ser em hipótese alguma alienada por parte de nenhum cidadão engajado na ideia do pacto social. Além disso, devemos destacar, com a seguinte

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Ibidem, p. 118. Ibidem.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 passagem de Cartas escritas da montanha, a correlação entre a garantia da liberdade e a tendência da Lei a tornar possível tal condição: Não há, pois liberdade sem leis, nem onde alguém esteja acima das leis: pois até mesmo no estado de natureza o homem só é livre de acordo com a lei natural que comanda a todos. Um povo livre obedece, mas não serve. Tem chefes e não senhores. Obedece às leis, mas só a elas, e é pela força das leis que não obedece aos homens. [...] Um povo é livre, qualquer que seja a sua forma de governo, quando naquele que o governa não vê o homem, mas o órgão da lei. Em suma, a liberdade segue sempre o destino das leis, ela reina ou perece com elas; não conheço nada que seja mais certo do que isso (ROUSSEAU, 2006, p. 372).

Segue-se que a liberdade sem a Lei não pode ser concebida ao seu ponto máximo. O prevalecimento da vontade geral16 requer que tal relação esteja em acordo. Diante disso, evidenciase que somente pela via das leis é que o homem pode consagrar sua racionalização e garantir o bom ordenamento da sociedade. A Lei personifica os interesses do poder soberano que, segundo Rousseau, não podem ser dados de outra forma.17 A Lei se apresenta como a razão pública que tem a capacidade de fixar os direitos dos indivíduos vinculados ao pacto social. Dela emana a sanção que garante a movimentação do corpo político18. Um povo submetido à Lei seria, portanto, uma entidade que pode ver figurar seus interesses operando não em benefício de vontades particulares, mas sendo representações virtuais que falam em nome de um interesse maior que é o da manutenção do corpo político. Em seu Discurso sobre a economia política explicita-se, de forma singular, a tentativa de impacto ético atribuído à Lei em sua relação com o princípio do pacto social no qual a primeira serve de substrato ao segundo: Como se pode, ao mesmo tempo, fazer com que obedeçam e que ninguém os comande, que sirvam e que não tenham senhor, sendo de fato mais livres sob uma aparente sujeição onde ninguém perde parte de sua liberdade, a não ser naquilo que pode prejudicar a do outro? A lei é a única responsável por esses prodígios. Os homens devem apenas à lei a justiça e a liberdade. É esse órgão salutar da vontade de todos que restabelece, por meio do direito, a igualdade natural dos homens. É essa voz celeste que dita a cada cidadão os preceitos da razão pública e ensina-o a agir de acordo com as máximas de seu próprio juízo e a não entrar em contradição consigo mesmo. Da mesma forma, é tão somente a ela que os chefes devem falar quando comandam, porque se um homem pretende submeter um outro à sua vontade particular, independentemente das leis, deixa por um instante o estado de sociedade e se coloca em relação a ele em estado puro de natureza, onde a obediência é prescrita pela necessidade (ROUSSEAU, 2017. p. 18-19).

16 Segundo Salinas Fortes: “[...] a partir do momento em que se trata de pôr em execução e fazer respeitar a vontade geral, é necessária a ajuda da linguagem das leis, a fim de que a vontade soberana se torne soberanamente manifesta a todos os membros da associação” (FORTES, 1997, p. 116). 17 Ver ROUSSEAU, 2016, p. 320. 18 ROUSSEAU, 1987a, p. 53.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 Se, como vimos acima, a soberania não é feita por particulares e sim por todos os indivíduos dotados de liberdade, ou seja, por toda a sociedade, não é possível no interior deste raciocínio, que seja do interesse do próprio povo que institui uma Lei fazer dela um instrumento que venha a pôr em risco o bom funcionamento de quem está sob os ditames do pacto social. Logo, a Lei não pode em hipótese alguma servir grupos de forma desequilibrada, sobretudo pelo fato de que “Numa legislação perfeita, nula deve ser a vontade particular ou individual” (ROUSSEAU, 1987. p. 80). Ela deve salvaguardar a vida dos cidadãos coesos que, longe do estado de natureza, necessitam de que todos os seus direitos sejam de toda forma garantidos sob os auspícios de uma ideia de justiça totalitária. Estatuir uma Lei, ou seja, fazer valer os interesses da comunidade política é caminhar na direção da ação justa19. Tal mérito deve ser buscado, em termos práticos, no interior da condição humana concretamente possível e que logo não pode ser esperada como uma entidade superior advinda de forma exterior para sanar todos os problemas éticos considerados pelos cidadãos na sociedade civil, pois, “Toda a justiça vem de Deus, que é a sua única fonte; se soubéssemos, porém, recebê-la de tão alto, não teríamos necessidade nem de governo, nem de leis.”20 Da mesma forma que se deve atentar para bem distinguir o interesse particular e a ideia de vontade geral, a deturpação da Lei pode transfigurar-se, sobre o pensamento da legislação de uma sociedade, em uma situação que consiste em um ato que não se configura como sendo uma ação soberana e que versa, portanto, sobre objetos que não levam a expressividade da vontade geral. Diz Rousseau: [...] a Lei pode estabelecer diversas classes de cidadãos, especificar até as qualidades que darão direito a essas classes, mas não poderá nomear este ou aquele para serem admitidos nelas; pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei ou nomear uma família real. Em suma, qualquer função relativa a um objeto individual não pertence, de modo algum, ao poder legislativo (ROUSSEAU, 1987, p. 55).

Configura-se como decreto um ato particular que ousa denegrir a força da Lei. Ele tende a não coadunar com os interesses que tratam em nome do corpo político, pois, “aquilo que um homem, quem quer seja, ordena por sua conta, não é mais uma lei” (ROUSSEAU, 1987, p. 55). Dentro desse panorama entende-se que toda e qualquer figura que está inserida na comunidade política

19 Além disso, deve-se convir que, inicialmente, quanto mais violentas são as paixões, mais necessárias são as leis para contê-las. Mas, se as desordens e crimes, que essas paixões cotidianamente causam entre nós, já mostram à saciedade a insuficiência das leis nesse particular, além disso, seria útil examinar se tais desordens não nasceram com as próprias leis, pois, nesse caso, mesmo que fossem as leis capazes de reprimir as desordens, o menos que se poderia exigir é que sustassem um mal que não existiria sem elas (ROUSSEAU, 1988, p. 59). 20 ROUSSEAU, 1987a, p. 53.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 pactual, sendo até mesmo a figura de um rei, não tem força para querer fazer dos seus interesses privados emanações da vontade geral. Em Do Contrato Social, Rousseau determina a não possibilidade de que haja algum membro da comunidade política que esteja acima das leis21 e em suas Cartas ele menciona o fato de que tal situação põe em risco o interesse real da vontade geral culminando em um estado de degeneração política22. No seu Discurso sobre a economia política23, é chamada a atenção para os perigos pertinentes a uma má utilização das leis, da mesma forma em que condições esdrúxulas de distinção social, quanto à posse de bens de membros da sociedade, pode intervir negativamente para que a linguagem da vontade geral seja exercida através da Lei: A lei da qual se abusa, tanto serve ao poderoso de posse de uma arma ofensiva como de escudo contra o débil, e o pretexto do bem público é sempre o mais perigoso flagelo do povo. O que há de mais necessário e talvez de mais difícil no governo é uma integridade severa, capaz de dar justiça a todos e, sobretudo, proteger o pobre contra o rico. O maior mal já está feito numa sociedade, quando é preciso defender os pobres e refrear os ricos. É apenas sobre a mediania que se exerce toda a força das leis, pois são igualmente impotentes frente aos tesouros do rico e frente à miséria do pobre: o primeiro as engana, o segundo lhes escapa; um rasga o véu e o outro passa através dele (ROUSSEAU, 2017, p. 30-31).

A difícil batalha que ousa inibir qualquer tentativa de fazer valer como interesse geral uma série de particularidades põe em dúvida a possibilidade de a Lei garantir a todo o povo uma representação ativa de seus interesses. No entanto, quando o povo passa a ser considerado como o elemento central que traz em si a obrigatoriedade de estabelecer o voto de minerva, determinando se a vontade particular está, ou não, em conformidade com a vontade geral, acentua-se a tendência democrática e minimiza o fato de que “a vontade geral [corra] o risco de tornar-se poder transmitido, vontade particular, preferência. Desigualdade” (MATOS, 1978, p. 106-107). A soberania popular, estipulada por tal máxima, encarrega os indivíduos de se fazer presente em todos os momentos da vida política. Rousseau enfatiza sua crença quanto à possibilidade de o Legislador munido da Lei garantir a vontade geral. El sublinha, tomando a ilha de Córsega24 como exemplo, a importante questão que deve haver entre a garantia de uma legislação cumprir com seus interesses, tomando como parâmetro a maneira pela qual eles lutam pela sua liberdade.

21 Ver Ibidem, p. 55. 22 Ver ROUSSEAU, 2016, p. 321. 23 Rousseau destaca: “Como, no fundo, todos os compromissos da sociedade são recíprocos por sua natureza, não é possível colocarse acima da lei sem renunciar às suas vantagens, e ninguém deve algo àquele que afirma não dever nada a outrem” (ROUSSEAU, 2017, p. 19). 24 Ver ROUSSEAU, 1987a, p. 66.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 Se a Lei é o arauto da reprodução racional do cidadão, bem como o poder Legislativo é “o coração do Estado” (ROUSSEAU, 1987a, p. 102), seu declínio25 ou enfraquecimento põe risco o mesmo. Segundo Rousseau, o poder político. emanado pela Lei, traz arraigado a si a tendência a destruir-se e a findar-se, muito embora devam existir métodos que possam postergar tais infortúnios26. Ele roga pelo caráter maleável de sua constituição, tomando a ideia de que deve haver um eterno movimento de afirmação e negação dos princípios legais que configurará prerrogativas as quais tendem a se fortalecer ao longo do tempo, mas que em paralelo existem outros princípios que tomam sentido contrário, indicando a arbitrária não presença do poder legislativo em estados submetidos a tais circunstâncias. A conservação do corpo político deve ser garantida, sobretudo pela ideia de que há uma capacidade advinda do sistema de legislação27 que possa anunciar em nome da justiça os interesses da vontade geral. Mas eis que surge um obstáculo no tocante à efetivação da Lei como máxima advinda de todo o corpo político. Se ela tem uma localização, que é todo o corpo político, sob a forma de que figura essa efetivação acontece? Quem enunciará o prevalecimento da vontade geral sob o nome da Lei? Rousseau entende que no todo que é o corpo político há uma série de indivíduos que não tem capacidade de discernir a melhor forma de expressão da Lei e que para tal empreitada se deve recorrer a guias28 com vistas a poder finalmente efetivar o bem público. A ordem redentora para a resolução do impasse da efetivação da vontade geral decorre sob a tutela da imagem reveladora do Legislador29. Sua figura é apresentada como dotada de uma inteligência diferenciada30 que tem a missão de transparecer o obtuso campo ético-político de uma multidão cega, que, embora saiba de seus desejos, requer uma precisa colaboração do mesmo para que estes sejam encontrados. Sobre a capacitação do Legislador diz Rousseau: Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual de certo modo esse indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição do homem para fortificá-la; 25

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Segundo Rousseau: “Nada mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos; o abuso da lei pelo Governo é mal menor do que a corrupção do Legislador, consequência infalível dos desígnios particulares. Estando, então, o Estado alterado em sua substância torna-se impossível qualquer reforma” (ROUSSEAU, 1987a, p. 84). Ver ROUSSEAU, 1987a, p. 102-103. Diz Rousseau: “Numa legislação perfeita, nula deve ser a vontade particular ou individual; muito subordinada a vontade do corpo própria do Governo, e, consequentemente, sempre dominante a vontade geral ou soberania, única regra de todas as outras” (ROUSSEAU, 1987a, p. 80). Ver ROUSSEAU, 1987a, p. 56. Conforme Salinas Fortes: “[...] entre a exigência da vontade geral e a sua fixação necessária através de um sistema de leis, impõe-se ainda a necessária intermediação de uma nova figura representativa: o Legislador. O Legislador servirá como médium na passagem da cega presença da vontade geral à sua expressão racional, sua tradução em termos de linguagem inteligível e acessível a todos os espíritos” (FORTES, 1997, p. 116). 30 Ibidem.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência parcial e moral (ROUSSEAU, 1987a, p. 57).

Rousseau trata não só da função do Legislador como também de sua conduta e apresenta o mesmo como o “mecânico que inventa a máquina” (ROUSSEAU, 1987a, p. 57) e que, portanto, faz com que reste ao chefe de Estado apenas o exercício comparado ao de um trabalhador que manipula o movimento de algo para o qual ele foi designado apenas a fazer funcionar. Ele faz menção à funcionalidade do Legislador, utilizando-se de uma comparação com o corpo humano, onde o cérebro se apresenta em paralelo ao coração31. A importância do Legislador aparece como a função do coração para o corpo humano. Rousseau entabula o princípio de que o ser humano consegue viver, mesmo que em más condições, sem o bom funcionamento do cérebro, mas que uma vez ceifada a atividade do coração, que seria concernente à função do Legislador para com a comunidade política, estaria dada por fim a existência do corpo político. A ação de um Legislador não pode confundir-se com a de um tirano. Sua atuação como “inventor da máquina” que conduz a garantia da liberdade no Estado deve levar em conta não só suas intenções em tornar possível a vontade geral, mas deve-se levar em consideração que sua ação pode não ser circunscrita diante de circunstâncias específicas às quais o povo que constitui a sociedade política esteja submetido. Rousseau indica qual tipo de povo poderia ser passível de uma intervenção legislativa: Aquele que, encontrando-se já ligado por qualquer laço de origem, interesse ou convenção, ainda não sofreu o verdadeiro jugo das leis; que não tem nem costumes nem superstições muito arraigadas; que não teme ser arrasado por uma invasão súbita; que, sem imiscuir-se nas brigas entres seus vizinhos, pode resistir sozinho a cada um deles, ou ligar-se a uns para expulsar o outro; aquele que de cada membro pode ser conhecido por todos não se está de modo algum forçado a sobrecarregar um homem com um fardo mais pesado do que possa suportar; o que possa viver sem os outros povos e que qualquer outro povo pode dispensar; o que não é nem rico nem pobre e pode bastar-se a si mesmo; enfim, aquele que une, à consistência de um povo antigo a docilidade de um povo novo (ROUSSEAU, 1988a, p. 6566).

Salinas Fortes em duas de suas obras trata da questão do exercício e da valoração da função do Legislador, bem como apresenta aporias que põem limites à consagração do interesse político expressado pela lei, justamente por conta de algumas limitações singulares que acabam servindo como obstáculo para a atividade da figura representativa que é o Legislador. Uma de suas reflexões32 questiona a dupla relação entre a vontade geral, de caráter não representado, e a prática

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Ver em ROUSSEAU, 1987a, p. 102. FORTES, 1997, p.116.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 do Legislador, de caráter representável. Portanto, o que temos é a proposta de ver no fenômeno da expressividade do interesse público uma possibilidade de não poder tornar real a vontade geral fidedignamente. Já em outras formulações33 Salinas eleva a figura do Legislador como a figura mais excelente da comunidade política e que atua como sendo uma espécie de “simulacro da divindade” agindo como “o veículo através do qual a razão informa a história humana.”34 Em ambos os casos a figura do Legislador é apresentada por meio da ideia de que a vontade geral deve a ele toda sua potencialidade. Isso ocorre porque Lei não é algo com finalidade em si mesma. Situada em tempo e espaço e mediada por um corpo social cheio de especificidades, ela está para o homem, assim como o mesmo deve estar para ela. O êxito da prática de um Legislador se assemelha à prática de um arquiteto35 que com acuidade deve perceber as bases onde ele aplicará sua técnica, pois de nada vale propor uma ação legislativa sem que haja as condições, sequer mínimas, de execução. Pensar a categoria de uma Lei requer uma ação preliminar de análise quanto às possibilidades de que seja viável ou não. Não agir assim pode fazer com que venha a correr-se o risco de que a linguagem da vontade geral não seja reproduzida de fato. O exame deve ser o salto qualitativo que vê na ação uma relação direta com as circunstâncias reais. Rousseau chama a atenção para a relação da ação legislativa e seu contato com o povo para quem está direcionada. A Lei deve ser apresentada como duplo empreendimento onde um deles se configura na forma direta de coerção, agindo como entidade reguladora, e outro, ao qual queremos dar destaque como sendo um ponto de vista de se pensar um fazer ético dentro da filosofia social e política de Rousseau, tem a função pedagógica de tentar moldar o sujeito político para evitar contradições do agir moral do cidadão, tomado por suas paixões, com os interesses da vontade geral. Uma vez arraigados em um período posterior à juventude, os costumes viciosos, decorrentes dos interesses particulares dos indivíduos, fazem com que a ação do Legislador já não tenha força para poder pôr fim a tal quadro e isso requer astúcia do mesmo para fazer de seu ofício uma prática que pode ser pensada como uma ação que deve ser ajustada com uma responsabilidade cronologicamente apresentada, pondo-se anterior ao estabelecimento imutável da corrupção, algo contrário ao bem da comunidade política.

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FORTES, 1976, p. 100. Ibidem, p. 102. ROUSSEAU, 1987a, p. 60.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 Diante do que foi dito acima, podemos entender com melhor precisão a vertente que vê o Legislador configurar-se como um educador para o povo.36 Dentro deste raciocínio a ação teleológica do Legislador pode distanciar um costume vicioso de uma comunidade política da mesma forma que um preceptor pode intervir para com a conduta de uma criança, afastando-a de conhecimentos desnecessários e até prejudiciais para sua individualidade no condizente a sua conduta cidadã. Em comum, ambos devem atuar no tempo oportuno e fazer respeitar, assim, as peculiaridades de suas respectivas entidades relacionais. Enquanto um bom sistema de legislação “se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade” (ROUSSEAU, 1987a, p. 66), a ação educacional busca garantir a segurança das liberdades preservando-as de intempéries advindas da sociabilidade. O povo, entidade de onde a vontade geral se faz possível, mediado pela noção da Lei, tem para si a obrigação de não se deixar seduzir pelos interesses particulares e ver a Lei vigorar como a instância máxima. Rousseau dá destaque à necessidade de que seja repensada a forma de considerar as privações de interesses particulares que muito embora em um âmbito da subjetividade de quem se vê restrito possa parecer nocivo a si e gerar insatisfação pessoal, no plano referente ao interesse comum advindo da vontade geral, que visa o bem comum, pode configurar como um quadro em que haja vantagens operadas por boas Leis. Logo, surge a necessidade de que tais indivíduos alterem seu campo de visão quanto ao que seja o interesse advindo do pacto ao qual ele está submetido. Ao tratar da divisão das Leis, Rousseau acentua três delas: política, civil e criminal 37. Acima delas destaca-se um tipo de Lei que toma para si a possibilidade de intervir nas primeiras, dado seu grau de importância, e que faz referência direta aos costumes dos homens em sua ação diária, sendo qualificada, portanto, de uma Lei moral. O Legislador ao trabalhar em prol deste tipo de Lei pode fazer com que comportamentos sejam construídos no seio da sociedade civil para atendê-la em prol do bem comum. Destaca Rousseau: A essas três espécies de leis, junta-se uma quarta, a mais importante de todas, que não se grava nem no mármore, nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos; que faz a verdadeira constituição do Estado; que todos os dias ganha novas forças; que, quando as outras leis envelhecem ou se extinguem, as reanima ou as supre, conserva um povo no espírito de sua instituição e insensivelmente substitui a força da autoridade pela do hábito. Refiro-me aos usos e costumes e, sobretudo, à opinião, essa parte desconhecida por nossos políticos, mas da qual depende o sucesso de todas as outras (ROUSSEAU, 1987a, p. 69).

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Ver PISSARA, 2006, p. 71. Ver ROUSSEAU, 1987a, p. 69.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 Nota-se que os saberes práticos, se cultivados como uma Lei moral, são superestimados por conservarem tanto as peculiaridades das individualidades dos cidadãos, tomados pelo pacto, como dos povos, distribuídos pelo mundo em suas respectivas relações com as leis que estão a obedecer. Com base nisso, Rousseau destaca a necessidade de se pensar leis que cuidem também das crianças, de se despertar o interesse por suas respectivas condutas em prol do Estado, levando em consideração o possível desajuste social que surge quando sujeitos estão despreparados para viver sua liberdade enquanto cidadãos. A preocupação que faz do Legislador uma espécie de educador toma outra dimensão, fazendo surgir à necessidade da educação do indivíduo para que este viva a partir da Lei sua total liberdade: Se existem leis para a fase adulta, devem existir também outras para a infância, que ensinem a obedecer aos outros; e como a razão de cada homem não é o único árbitro de seus deveres, a educação dos filhos não se deve confiar só aos princípios e aos preconceitos dos pais pelo fato de que ela interessa mais ao Estado do que aos pais; pois de acordo com os rumos da natureza, a morte do pai rouba-lhe frequentemente os frutos dessa educação, mas a pátria cedo ou tarde sente seus efeitos; o Estado permanece e a família se dissolve (ROUSSEAU, 2017, p. 33).

Assim, o Estado, que é garantidor da supremacia do cidadão frente aos seus direitos, deve ser pensado como uma entidade cujo seu devir tem implicações diretas com o ideal de sociedade que se quer adquirir. Da mesma forma que as leis não tramitam diretamente do céu38, necessitando da astúcia do Legislador, o cidadão não traz infundido em si todas as virtudes necessárias para viver a lógica pactual em que vigora a liberdade, e, portanto, em resposta, deve haver uma espécie de preparo no intuito de melhor conduzir o surgimento do cidadão, uma vez que o mesmo vive para o Estado da mesma forma que o Estado garante a sua sobrevivência.

CONCLUSÃO O intuito de nosso artigo é responder a hipótese interpretativa que orientou nossa pesquisa que foi a de mensurar a ação legislativa dentro da filosofia política de Rousseau e na possibilidade de que exista uma dicotomia formativa coercitiva no âmbito jurídico ao qual ele delineia dentro de sua teoria pactual de Estado. Compreender a importância da ideia de Lei como sendo o arauto não somente da representação da vontade geral, oriunda da sociedade contratualista, mas também como uma instância que busca intervir no agir humano antes mesmo do sujeito ser totalmente inserido no seio da sociedade pode apresentar, dessa maneira, a importância de um agir educativo,

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ROUSSEAU, 1987a, p. 53.

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A ação da lei e do legislador em detrimento da liberdade e do poder soberano dentro da sociedade contratual em Jean Jacques Rousseau, pp. 273-288 mas, sobretudo a necessidade de que se deva ter entendimento das inclinações dos indivíduos. Apontando assim, para a ideia de que existem vestígios na natureza humana que devem ser desvendados no intuito de que se possa posteriormente melhor compreender sobre a procedência da sociedade que vise de fato beneficiar os indivíduos inseridos, ou seja, que não seja estipulada dentro de uma configuração de subserviência, desordem e desligada da ideia de liberdade. A compreensão da ideia de liberdade que Rousseau apresenta como sendo a instância máxima dos indivíduos só pode ser de fato efetuada como vontade geral com a efetivação da lei e a função do Legislador é de justamente perceber esse ser de liberdade através de suas paixões e poder direcionar a conduta humana para fins que interessem todos os indivíduos que forma a sociedade, ou seja, o poder soberano.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301

CONSIDERAÇÕES SOBRE MORTE E SILÊNCIO EM A RETORNADA DE LAURA ERBER Douglas Santana Ariston Sacramento1

RESUMO: O presente artigo tem o intuito de analisar como a morte e sua relação com a estética do silêncio está representada no livro de poemas da escritora contemporânea brasileira Laura Erber (2017), intitulado de A Retornada. O poema analisado é homônimo ao livro, e narra o retorno do mundo dos mortos, pós acidente, do sujeito lírico. E retratada todos os procedimentos para que o narrador diga quem é e o que houve no acidente e, logo, entre esse momento de morrer e renascer de novo. O poema é composto de oito fragmentos e uma introdução, a qual atua como um preâmbulo desse momento de desorientação e marcado por essas fragmentações. Portanto, utilizar-se-ão teóricos que estudam a morte e a temática do silêncio, e, além disso, a própria Laura Erber (2008; 2013), como aporte teórico par a sua produção literária. PALAVRAS-CHAVE: Morte; Poesia; Silêncio. ABSTRACT: This article aims to analyze how death and its relationship with the aesthetics of silence is represented in the poem book by Brazilian contemporary writer Laura Erber (2017), entitled A Retornada. The poem analyzed is homonymous with the book, and narrates the return of the lyric subject's post-accident world of the dead. It depicts all the procedures for the narrator to say who he is and what happened in the accident, and then between this moment of dying and being reborn again. The poem is composed of eight fragments and an introduction, which acts as a preamble to 1 Mestrando em Literatura e Cultura pelo PPGLitCult - UFBA. Área de Documentos da Memória Cultural. Graduado em Língua Estrangeira Moderna - Inglês - Licenciatura (UFBA). Graduado em Língua Estrangeira Moderna - Inglês - Bacharelado (UFBA). Graduando em Filosofia - Licenciatura (UNEB). Vinculo: Professor de Língua Inglesa. E-mail: douglas.ariston.18@gmail.com

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 this moment of disorientation and is marked by these fragmentations. Therefore, we will use theorists who study death and the theme of silence, and, in addition, Laura Erber herself (2008; 2013), as a theoretical contribution to her literary production. KEYWORDS: Death; Laura Erber; Silence

INTRODUÇÃO A morte é um tema muito explorado em diferentes campos artísticos. Suas concepções, representações e abordagens variam de acordo com a vivência e dogmas do indivíduo. Logo, temos toda uma cultura religiosa pautada numa salvação pós morte, e, ainda assim, temos ideias vinculadas à morte como fim. A literatura não poderia deixar de contribuir com a temática, trazendo novas leituras e modos de representação. Sendo assim, toma-se como exemplo a escritora nacional contemporânea, Laura Erber – artista visual, professora acadêmica e editora da Zazie Edição –, a qual tem, em seu arsenal artístico, livros que foram finalistas do prêmio Jabuti, como o romance Os pinguins de Pavlov e o livro de poesias Os corpos e os dias. Para além do ramo literário, Erber tem uma produção teórica de fôlego que, inclusive, versa sobre a teoria da lírica. Dentre os questionamentos que a produção teórica literária de Erber carrega, se destaca o artigo O demônio da possibilidade: imagem e incerteza em alguma poesia brasileira (2013), no qual ela tenta questionar sobre a crise da poesia na contemporaneidade, pensando nas críticas produzidas sobre a falta do visual nas poesias atuais e que se perderam após o movimento Concretista. E isso é retomado no seu fazer artístico, pautando por imagens que cristalizam os momentos. Assim, A retornada (2017) é um compilado de poemas dividido em três partes: “Espécies de contágio”, “O céu de Vesterbo” e “A retornada”. Esses poemas têm no seu tecido os fios oriundos desse questionamento feito em 2013, e trazem imagens que retornam a própria teoria de Octavio Paz (1976), que congelam o instante, como salienta Edma de Góis (2019): Estamos diante da mediação da própria autora, ali localizada enquanto pesquisadora, em torno de algo essencial para sua escrita – a forma da poesia. [...] [Laura Erber] não se contém sozinha no próprio problema instituído quando torna sua obra mais recente uma sequência

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 de textos com robustez para se pensar no papel do leitor e da própria autoria em bisca de direções de interpretação.2

Portanto, A retornada traz essas questões. O livro aqui citado, o qual será analisado neste artigo, possui uma divisão, e percebo que a mesma está plasmada na vida acadêmica, literária e pessoal da escritora. Alguns autores que foram objetos de estudos da Laura Erber retornam como citação, ou poemas que estavam guardados no período da residência artística que ela fez na Europa. Há, de fato, um retorno – como o título do livro dá a entender. O livro de Laura Erber é transpassado pela epígrafe da Sylvia Plath que inicia o livro, sobre fazer poesia por meio de contágio. Mas, o que me chama atenção é a última parte “A retornada”, um poema dividido em oito partes, e que tem como mote o retorno: uma narradora que morre e volta à vida, mas com a diferença de que ela não consegue falar, não diz quem é. Assim, a narrativa se constitui de um retorno do mundo dos mortos mesclado com uma estática do silêncio, pois ela voltou do inenarrável, como um trauma para os saldados que retornaram da Primeira Guerra Mundial (BENJAMIN, 1987). Logo, esse artigo analisará esse caminho marcado pela ideia do retornar. Um retorno mudado e mudo. E, em paralelo, se analisará como esse silêncio, que marca a forma e a estética, está vinculado também ao pós morte representado. 1. MORTE E SILÊNCIO SE ENTRELAÇAM NA EPÍGRAFE DO POEMA [...] mas na realidade a morte fala a verdade assim que ela fala. (ROUBAUD, 2005)

O poema “A retornada” começa com uma epígrafe de autoria de Alix Cléo Roubaud: “Tudo isso que reconduzirei ano após ano como minha essência negativa”3. Começo essa sessão com uma epígrafe do seu marido, Jacques Roubaud (2005), que escreveu um livro sobre o luto que vivenciou com a perda de Alix Cléo – chamado Algo:Preto – depois de sofrer um aneurisma. Ele viu o corpo morto de Alix, e essa fatalidade acaba fazendo-o abortar um projeto que os dois tinham em conjunto – um livro de poemas com as fotografias que ela tirava.

2 Góis, Edma de. Por uma anatomia do gesto literário: design de si e exercício crítico em Laura Erber. Estudo da literatura brasileira contemporânea, n. 57. Brasília, 2019, pp. 2. 3 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 45.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 Logo, o livro de Jacques Roubaud (2005) remete muito ao momento da morte, mas faz referência as fotos produzidas pela sua esposa, e que é ícone de constante rememoração pelo seu amado nesse período de luto. Assim, é perceptível que a foto está presente na produção da Alix Cléo, e que aqui é evidenciado pelo sua frase-epígrafe. Há nesse retorno a Alix Cléo um caminho com duas vertentes, o fato dela ter morrido, e assim se instaurar na finalidade da vida o seu silêncio. E abrir para outras possibilidade de falas, no caso a de aproximação mais intrínseca que é a do seu marido o Jacques Roubaud. Por isso, se faz importante o uso da fotografia, pois, por um lado, remete a discussão feita pela Laura Erber (2013) sobre as imagens produzidas pelos poetas contemporâneos, e, por outro lado, remete a um meio de imortalização, um ícone que será relembrando e fará reconstituir o passado (RODRIGUEZ, 2017). Assim, noto também que o uso da epígrafe, mostra o estatuto autoral como passível de afeto, que, ao se deixar afetar por outras produções artísticas, isso pode aparecer nas produções literárias desse escritos. As escolhas afetivas (DI LEONI, 2014) permeiam esse autor, que também é passível de constituições discursivas (FOUCAULT, 1992). A citação é uma lanterna para a estrutura do poema da Laura Erber. Em “A retornada” não há palavras maiúsculas, nem pontos finais ou vírgulas, são fragmentos, como Alix Cléo definia sua fotografia, e que perpassam o fazer poético, ou seja, a fotografia e a poesia como pontos de luz que descortinam uma experiência (BERNSTEIN, 2017). E, isso se junta à forma do poema, que é em prosa, presente na literatura contemporânea nacional essa tensão entre essas duas formas literárias (GARRAMUÑO, 2014) e que se exemplifica na construção versificada que “continua através de um enjambement constante na construção de um poema longo”4. Portanto, esse preâmbulo feito pela escritora, antes de entrar no poemas fragmentado e numerado, remete ao acidente que culmina nessa morte temporária do sujeito lírico. O silêncio se instaura, pois não há lembranças do ocorrido, apenas flashes de luz e contornos embaraçados que, compilados, tentam desenhar essa experiências do morrer e retornar. E, a parir desse lugar do nãodito é que se introduz o poema: “(...) nenhuma voz de quem soube e o digo o corpo que se perde tão

4 GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, pp. 64.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 suave agora na ponta de lábios descarnados se afastando um do outro em linhas muito finas está acontecendo”.5 Portanto, nota-se que o poema é composto por essa confusão do retorno e do “estado de abandono”6 do narrador lírico. Dessas barreiras transpassadas pelo eu lírico, do vivo-morto-vivo, e que traz na sua caracterização uma confusão, a falta de pontuação e a desordem sintática. Um silêncio se instaura do momento em que a situação dela é feita em lampejos, e que é marcada pelo uso de letras minúsculas e sem pontos finais. O poema está acontecendo e mostrando como narrar depois do apocalipse, como traz o pensador francês George Didi-Hubermans (2011), no livro Sobrevivência dos vagalumes – antes de haver a grande explosão de luz, que marca a ideia de apocalipse baseado nos dogmas cristãos, haveriam pequenas produções de luzes, como vagalumes, e essas produções, com a aproximação do grande evento fatídico, acabariam se mesclando. Em Laura Erber, temos uma estrutura de pequenas luzes, que marcam o pós apocalipse individual, ou seja, mostrando que depois de haver uma grande explosão – o acidente e morte do sujeito lírico – existira uma nova escuridão com produções de novas luzes – o modo fragmentado do poema depois do retorno dos mortos.

[...] não há frio que seja mais metálico suar é proibido incidente que a visão não se aloje no seu peito frio ou retorne do fundo sem forma e não do ritmo da figura te circundará um brilho com um corpo sem nervos antes de cruzar o ultimo espelho um sorriso tão honesto não teria nem o direito de existir7

Assim, respondendo a um questionamento que o Giorgio Agamben (2016) concebe no livro O tempo que resta, ao dedilhar sobre a linha temporal que existe e é marcada no pós apocalipse, mas que nós não saberíamos como caracterizar. Logo, percebo que a morte e o silêncio marcam essas novas luzes depois de uma hecatombe pessoal, e que serão analisadas a partir de agora. 2. MORTE, PÓS-MORTE E O SILÊNCIO

5 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 46. 6 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 48. 7 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 47.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 O poema, dividido em fragmentos, começa com o acordar no hospital, ambientação de todo o poema. Logo, há toda uma concepção moderna de doença e morte; o moribundo com a explosão das teorias de higienização não convalesce dentro de casa – costume muito comum no séc. XIX –, mas é levado para outro local higienizado: o hospital (ARIES, 2017). Portanto, se perde o rito social que era plasmado a esse doente dentro de casa, e passa a ser vivenciado individualmente (REIS, 1991), como é retratado no poema: algo me pertencia e foi varrido com o lixo tóxico do hospital naquele quarto vazio alguém eu mesma minha carne continuaesperando que eu retorne nas cenas finais nos filmes ruins no último instante um medico ou medica ou enfermeiro ou enfermeira diz “fique conosco no abismo do leito8

Deste modo, o poema que não tem fixidez, só a confusão do sujeito lírico ao retornar, e é culminado de frases escutadas em momentos de lucidez, frases pronunciadas pelos profissionais de saúde, mas que não recebem resposta audível. Apenas o silêncio. E dessa tentativa de reconstituição de fatos, o próprio sujeito lírico percebe que existe uma falta na narrativa, “a imagem que falta (ali onde as coisas não são nomeadas)”9. Essa dificuldade em falar é algo próprio do trauma, quando ela ocorre há um movimento de repressão, o que acaba dificultando determinando fatos de surgirem na consciência (FREUD, 1975). Para isso, é necessário o discurso livre, comum em sessões de psicanálise, o que é característico nos versos do poema para desrecalcar o trauma (FREUD, 1975). Contudo, nesse caso, o trauma está interposto no grande vazio que é a morte. O retorno do mundo dos mortos, e perceber que não há nada, apenas a finalidade do corpo (BATAILLE, 2017). Por isso, é comum perceber nos versos do poema perguntas e fragmentos de falas marcando uma resposta: de laços uns dos outros os órgãos se soltando “o que você sente?” longe das horas o que significa agora (onde?) “passar pela morte” (como duas escarpas se cruzando erva daninha de verbo não conjugado) estranhas regras do falar “meu sangue está podre como um rio morto os olhos também sentem calor e frio10

8 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 48. 9 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 46. 10 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 46.

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Outra característica desse retorno da morte é uma constante mobilidade temporal, em que alguns ícones rementem a cenas vividas pelo sujeito lírico anteriormente – como o cheiro de laranja, no fragmento VII –, ou seja, esses ícones afetam os sentidos de desrrecalcam lembranças (BERGSON, 1999). E percebo isso mais sensível, por causa da instauração traumática no corpo da narradora e dos procedimentos feitos pelos médicos para que ela recobre os sentidos e saia do estado de confusão. anos depois do jantar falamos sobre literatura hebraica a intraduzibilidade do YizharSmilansky em Zalhavim quando descreve o cheiro do pôr do sol no deserto o burrinho puxando a carroça uma plantação de tangerinas antes da primeira chuva o leitor diz que nesse ponto das páginas do livro sai um cheiro doce cítrico o cheiro invade o quarto e recobre a pelo do leitor que foi criança naquele mesmo deserto e menino alérgico11

A morte marca uma mudança perceptível na narrativa do sujeito lírico. Algo bastante similar ao que ocorre a um simulacro, conceito retratado pelo filosofo Gilles Deleuze (2015) no livro A lógica do sentido – o sujeito é dado como simulacro, revertendo toda uma lógica Platônica, pois o simulacro não tinha potencialidade de verdade. Deleuze trata o sujeito como cópia de uma cópia, e que deve trazer uma potência desse simulacro. Outra característica está pautada no simulacro e a pulsão de morte, lendo e ressignificando as teorias psicanalíticas de Freud, logo, há uma pulsão de morte inerente ao simulacro, pois a cada morte há um retorno com uma nova mudança (DELEUZE, 2015). Ou seja, existe um processo de differance (DERRIDA, 2014) em todo jogo de cópias. É perceptível que, com a morte do sujeito lírico, um novo sujeito surge, um sujeito desorientado e que não consegue falar. Apenas vive um constante acontecimento que o faz ditar e se questionar consigo mesmo, narrando todos os atos que acontecem com seu corpo e ao seu redor. alguém flutua pelos corredores brancos algo mais leve que o ar flutua pelos corredores brancos entre bramidos de bêbados e atropelados sem testamento a voz (ultima tentação da matéria neste mundo) brinca com as cordas não tem nada a ver com o som lembra? primeiro a máscara depois um tubo e uma escara 12

11 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 49. 12 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 46.

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A partir desse retorno, o silêncio e todas as especificidades entram em cena, fazendo-se necessário discutir um pouco sobre a estética do silêncio. 3. DOS FATOS INENARRAVEIS: A ESTÉTICA DO SILÊNCIO “A retornada”, por se tratar de um retorno depois da morte. Existe toda uma estética pautada nesse silêncio que ocorre entre o fim passageiro da vida e o retorno ao mundo dos vivos. Logo, o poema é perpassado por conversas entrecortadas e imagens confusas, como se esse retorno a superfície fosse doloroso e confuso. Das mesmas indagações sobre essa confusão do sujeito lírico, existe um questionamento que é feito ao narrador e que permanece em aberto, sobre quem é essa pessoa. A identidade é mantida no silenciamento que o próprio eu lírico tenta desvendar no meio de suas idas ao centro cirúrgico e o retorno a superfície depois de remédio e anestesias. [...] alguém abriu a porta todas as portas e girou a manivela retesou velas desligou todas as maquinas e como se traduzisse de uma segunda língua disse agora você vai respirar sozinha diga o seu retorno diga o seu nome13

Portanto, o silêncio representado pelo mutismo da narradora, traz no seu bojo uma incompletude da linguagem que tem uma relação com o não-dizer (ORLANDI, 1993). Mas, isso é proveniente do trauma acidental que caracteriza a vivência do narrador. Assim, esse silêncio proveniente do não saber quem é, traz um significado na sua constituição (ORLANDI, 1993), e que está intrínseco ao fato da pulsão de morte está paripasso com a experiência que o eu lírico quer rememorar. Outra presentificação do silêncio está na forma em que o poema está organizado. Como dito anteriormente, há uma tensão entre a prosa e a poesia, pois isso não é vinculado ao modo clássico de fazer poesia, em que há uma preocupação com o uso da linguagem para fazer rimas (ERBER, 2013). Mas, percebo um modo moderno de ser fazer poesia e do uso da forma, para desencadear a sensação estática do silêncio.

13 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 47.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 Isso é possível, com a desordem sintática e a linguagem desintegrada, como caracteriza o Roland Barthes (1984), no livro O grau zero da escritura, ao retratar como uma ruptura de moldes burgueses de produzir romance, leva uma escritura ao silêncio. Mas, que aqui, no contemporâneo, é relido e reatualizado, pois, nas teorias contemporâneas, estamos falando de uma expansão dos gêneros literários na qual os gêneros literários não estão mais presos em estruturas (GARRAMUÑO, 2014). [...] não ensina nada nem fará morrer melhoruma segunda vez é só uma queda dentro da queda das perguntas e tentar dizer de uma morte que não mata (o rosto colado no vidro do carro apenas imagine o mundo sem você) perder a sensação de sentir e o seu sentido.14

Por meio de versos sem acentuação, também compreendo como constituidor da estática do silêncio, e que representa uma velocidade, uma necessidade de rememorar e notar todas as coisas que se tem ao redor, pois há uma iminência de uma nova morte. Uma outra leitura possível está atrelada ao sujeito lírico e seu estado de abalo traumático, em que só é possível narrar pelo silêncio, e que traz consigo uma construção pautada em formas mínimas (SONTAG, 1987), como a relação que o sujeito lírico faz com o tentar contar o nome e um bebê que não fala: [...] estranho mesmo é que o coração continue a Bombear o sangue podre sem avisos luminosos sem Avisos quantas vezes confirmar o nome próprio como Um bebê que se batizasse a si mesmo antes do primeiro Choro nunca deixei de estar aqui?15

Outra característica proveniente do silêncio representado nos poemas está plasmada ao uso de repetições, o que remete muito aos estudos realizados por Laura Erber (2008) no período do mestrado, no qual ela analisou as obras do poeta apátrida e surrealista Ghérasim Luca. E um dos experimentalismos literários comuns em suas obras é referente ao uso da linguagem, em que existe uma repetição de palavras que quebra o uso hegemônico da língua, como ela explica: [...] A repetição [...] revela, de fato, que a própria linguagem entrou em estado de desequilíbrio, e por isso a língua só consegue avançar tateando os fragmentos sonoros e suas possibilidades combinatórias, criando uma constelação de sentido, que nunca se fecha ou se pacifica.16

14 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 48. 15 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 48. 16 ERBER, Laura. No man’s langue: a poesia em figa de Ghérasim Luca. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008, pp. 134.

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Assim, nota-se que a repetição está entrelaçada, no sentido de amplidão de significados, ao uso do silêncio. Ou seja, a repetição de determinadas palavras só atesta a relação do jogo do silêncio com o movimento “entre o um e o múltiplo”17, como explicitado nos versos: “[...] corredores/brancos passaram cavalos negros negros ruivos cavalos/de Altamira esmagando pulmões de pus.”18. Ou também em: “[...] um sorriso tão honesto não/teria nem o direito de existir terra negra terra negra/terra negra.”19. Compreendo que a repetição está vinculada ao uso de uma imagem poética, que remete ao uso de medicamento no corpo do narrador. No caso do primeiro exemplo, existe na aridez da imagem a constituição de um silêncio impregnado de sentidos, o lugar áspero e sem ruído, um lugar para se deixar existir, que remete ao hospital e seus corredores e salas de cirurgia. Na segunda imagem, existe uma relação com o congelamento temporal, o que o uso da anestesia causa no paciente, bastante similar às pinturas da Pré-História presentes em Altamira – um sítio arqueológico. Além da repetição, outro recurso utilizado são citações que estão integradas na poesia. A citação como essa fala de outro, que dá lugar a um pensamento que o eu lírico gostaria de expressar, mas não pode, pois está sob o véu do silêncio. Assim, há citações sobre a situação do mutismo: “[...] ‘o ideal é o mutismo e a mostração: silêncio e ostentação do cadáver’”20, que é comum pós trauma, ou seja, um mutismo seletivo (CID 10), que repreende determinadas situações a serem contadas. Por outro lado, reforça o silêncio proveniente do estado mortuário, no qual ao morrer não há um retorno para se contar sobre o que há depois da morte. A segunda citação contida nos fragmentos tem relação a um argumento ontológico, no qual o sujeito lírico gostaria de ter palavras para nominar a sensação de vazio que possui nesta situação entre estar vivo e estar morto. Para isso, ela utiliza: “(...) ‘simply greater than one can imagine’” 21. Mas, ambas as frases estão colocadas como citação, mas sem autoria, assim, a citação está contida

17 ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1993, pp. 17. 18 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 47. 19 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 47. 20 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 46. 21 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 47.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 no processo de produção do texto (COMPAGNON, 2007) e sendo um “operador [...] de intertextualidade”22. Desta forma, a citação se entrelaça e compõe o mote do livro: de se fazer poesia por meio de contágio, sendo possível e sendo aplicado para dar voz a um mutismo em que o eu lírico está sendo representado. Sendo respostas aos questionamentos existentes no último fragmento do poema: é tão perigoso falar do que desata? dizer a própria morte traz de volta espécies de receio de contágio ao tentar escrevê-la compactuo com ela? convoco-a? desejo-a?23

Logo, caracterizando a escrita como um ato constante de reescrita (COMPAGNON, 2007), e que sempre há uma necessidade de narrar um fato. Neste caso, a morte, que é constantemente rememorada, mas que existe uma barreira sintomatizada por um silêncio que obscurece a narrativa. Portanto, não podendo se esgotar, mas trazendo significados outros, um “ato de citação” 24 constante, em que o silêncio a morte estarão constantemente dançando. CONCLUSÃO Narrar o retorno da morte. Ressignificar e nomear esse grande vazio. É isso que Laura Erber (2017) retrata na última parte do seu livro A retornada, no qual ela consegue por meio de flashes, como fotografias tiradas no escuro, uma poesia clareada e tremula do que é esse hiato de viver, morrer e viver de novo. Mas, para descrever esse movimento, não há palavras. A morte é finitude do corpo, como compreende Bataille, em seu livro O erotismo. E para isso, o silêncio é utilizado como companheiro de dança dessa morte. Assim, existem características que compreendemos como “a estética do silêncio” e que faz parte da composição desse poema. E é no meio dessa confusão. Do silêncio. Dos corredores. Do retorno a superfície e do mergulho no mar do vazio. Que se tem uma composição de imagens, citações, repetições e usos da língua que invadem o leito nessa dança “de cristal e ópio”25.

22 COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, pp.58. 23 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 49. 24 COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, pp. 41. 25 ERBER, Laura. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, pp. 49.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 REFERÊNCIAS: AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Tradução de Davi Pessoa e Claúdio de Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. ARIÉS, Philippe. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos seguido por o grau zero da escritura. Tradução de Heloysa de Lima Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Cultrix, 1984. BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Fernanda Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: _____. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhida v.1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BERNSTEIN, Ana. Duas irmãs que não são irmãs: Francesca Woodman e Alix Cléo Roubaud. Dinamarca: Zazie Edições, 2017. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2014. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução de Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: perspectiva, 2015. DI LEONI, Luciana. Introdução / Pensamento contemporâneo: o afeto em pauta. In: _____. Poesia e escolhas afetivas. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. p. 15-27; 29-60 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. ERBER, Laura. No man’s langue: a poesia em figa de Ghérasim Luca. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. ______. O demônio da possibilidade: imagem e incerteza em alguma poesia brasileira recente. Revista Celeuma, v.2, n.3. São Paulo, 2013. _____. A retornada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017. FOUCAULT, M. O que é um autor? In: ________. O que é um autor?. Tradução António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro Lisboa: Vega, 1992. p. 29-87. FREUD, Sigmund. (1925/1926). “Inibições, sintomas e ansiedade”, In: _____. Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A questão da análise leiga e outros trabalhos. Tradução de Luis Alberto Hans . Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda. 1975. p. 107-180. GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

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Considerações sobre morte e silêncio em A retornada de Laura Erber, pp. 289-301 Góis, Edma de. Por uma anatomia do gesto literário: design de si e exercício crítico em Laura Erber. Estudo da literatura brasileira contemporânea, n. 57. Brasília, 2019. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1993. PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva,1976. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SONTAG, Susan. A estática do silêncio. In: A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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ENSAIOS


Juros e culpa: a paixão no corpo da coisa, pp. 303-306

JUROS E CULPA: A PAIXÃO NO CORPO DA COISA Joaquim Qualquer dos Prazeres1

Tudo aquilo que é humano se torna estranho! E tal estranhamento não tem outra causa senão a culpa por sua constituição pseudo-histórica segundo o seu caráter fetichista. Por sua vez, a causa é o princípio originário desta constituição pseudo-histórica dos indivíduos na luta litigiosa que projeta a presença de uma Coisa na existência. Portanto, a culpa é imputação pela qual o homem se torna sujeito a um poder estranho, que se inscreve no limiar do processo de constituição pseudohistórica do homem, pondo em causa a Coisa mesma como fundamento do conjunto das relações sociais; ela é testemunho do penhor universal do conteúdo das potencialidades humanas sob o domínio da Coisa como dívida. A fundação dessa constituição fetichista humana é um dom sacrificial de alienação pelo qual a totalidade dos atos, dos gestos e dos fatos dos indivíduos são postos sob o comando do Ser estranhado venal. Por isso, sob a condição dessa pseudo-história, a existência social humana se insere na esfera de imputação da culpa, que não é jurídica mas onto-histórica, visto que diz respeito à experiência originária da linguagem e do Ser no interior do tempo.

1 Pseudônimo de José Valdo Barros Silva Júnior (1981-2020). Valdo Barros foi bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Federal

do Ceará (UFC), lecionou na Universidade Estadual do Ceará (UECE) e na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Foi membro do grupo Crítica Radical e membro fundador da revista-boletim O Anti-Quiprocó. Uma perda para todos aqueles que ainda acreditam que um outro mundo é possível, para além do domínio fetichista da mercadoria e das formas estatais de gestão da vida. Contribuiu na Revista Lampejo com o artigo “Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna”. Escreveu sua monografia sobre a faculdade da imaginação em Fichte e sua dissertação de mestrado apresenta uma crítica ao trabalho abstrato-concreto como fundamento substancial e inseparável do sistema produtor de mercadorias. “Juros e culpa” é seu último fragmento. Cabe-nos dialogar com sua contribuição e seguir adiante. Ao professor, amigo e crítico radical, Valdo Barros, in memoriam, presente ontem, hoje e sempre.

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Juros e culpa: a paixão no corpo da coisa, pp. 303-306 O juro é produto da Coisa mesma irracional do fetiche do capital na sua versão 5G monetária; ele representa a quinta-essência do Ser-valor automatizado, com o atual solapamento da força de trabalho, como potência alienada produtora de mercadorias, pela revolução industrial da microeletrônica. Mas tudo isso é uma contradição em termos, pela qual o próprio poder do fetiche do capital será trazido à causa inexoravelmente. O teste de fogo do capital monetário expresso no juro é se a Coisa mesma é capaz de ser uma causa sui ou não. Com a vigência hegemônica do capital monetário, o juro vem à luz por uma relação social entre dois capitalistas, que altera o modo convencional da relação de exploração entre capitalista e trabalhador. Contudo, a contradição da relação de alienação se desloca para além da oposição entre capital e trabalho no interior do processo de exploração de mais-valia, porque a grande serpente marinha do capital assume uma nova roupagem, visto que operou uma mudança de pele para a forma social do capital monetário. A forma do capital portador de juros é a forma mais estranhada e fetichista da relação social do capital, porque confere à Coisa mesma a competência automática de reproduzir dinheiro em si e por si mesmo. O capital que rende juros é um negócio muito coisado:

“O capital aparece como coisa misteriosa, autocriadora do juro, de seu próprio incremento. A COISA (dinheiro, mercadoria, valor) já é capital como mera coisa, e o capital aparece como mera coisa... Na forma do capital portador de juros, portanto, esse fetiche automático está elaborado em sua pureza, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e ele não traz nenhuma marca de seu nascimento. A relação social está consumada como relação de uma coisa, do dinheiro consigo mesmo.” (MARX. O Capital, Livro III).

A automação crescente do capital monetário tende a gerar uma oposição entre juro e lucro, em um jogo de forças cuja consciência infeliz se ossifica na própria realidade social pseudo-histórica. No atual estágio do fetiche do capital, a famigerada dialética entre senhor (burguesia) e servo (proletariado) manifesta a sua verdadeira natureza: o reconhecimento da Coisa mesma do Ser-valor automatizado sob a pura forma fetichista do espírito quase absoluto do capital monetário. É mediante a luta de vida ou morte entre senhor e servo que a Coisa mesma conquista sua independência na existência social moderna. O capital monetário portador de juros não é uma relação social entre pessoas mediada por coisas, mas a afirmação consumada do poder estranhado da Coisa sobre as pessoas, passando a exercer uma dominação impessoal sobre tanto o senhor quanto o servo. O capital, agora como pura Coisa mesma automática, é “como se tivesse amor no corpo” (GOETHE. Fausto). Com isso, torna-se patente a falácia ideológica protestante de que o trabalho forma e liberta. O trabalho é tão somente uma potência alienada de dispêndio de energia

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Juros e culpa: a paixão no corpo da coisa, pp. 303-306 corpórea e mental para trazer à vida uma Coisa morta por um pacto diabólico com o capital. A obstinada [Eigensinn] da Coisa para se manter na existência social pseudo-histórica é uma paixão inútil, já que quanto mais Ela afirma o seu sentimento de poder absoluto fictício, pela febre especulativa de seu espírito de porco, mais Ela é conduzida ao padecimento e à morte de seu “corpo místico”. A exteriorização plena do Ser-valor, como poder estranhado objetivo, sob a forma do capital monetário, significa a efetivação do teor coisal de seu ser-para-a-morte, enquanto catástrofe colossal da pseudo-história mundial. Quando o Deus Moloque do fetiche do capital se torna, de fato e de direito, um poder universal objetivo que comanda a realidade do mundo e do homem, o conceito absoluto do Ser revela a sua verdadeira natureza perversa coisada. O ser coisado da Coisa não é mais resultado do processo de produção real de mercadorias pelo trabalho abstrato-concreto, cujo dispêndio corpóreo e mental aduzia o Ser-valor do nada da existência à presença sócio-histórica moderna insana, enquanto posição da Coisa de frente de nós outros como um objeto animado. A fisionomia e o perfil de seu ser não se deixam mais representar num objeto particular sensível, porque não residem mais na matéria social de seu valor de uso, mas no oco do caráter fetichista da Coisa estranhada em sua pura vigência sem significado como fumo etéreo. Nesta hodierna vigência sem significado, a realidade do mundo é reduzida ao nada. A paixão no corpo místico da Coisa estranhada é tão só desejo niilista de oferecimento sacrificial ao aniquilamento, como um modo de pagamento da dívida assumida com o pacto com a Ditacuja, como se Ela fosse o mais elevado e inebriante. A Coisa estranhada é um cadáver ambulante que foi incorporado ao destino histórico do homem por sua própria práxis alienada culpada, que recolhe e reúne tudo aquilo que é do céu e da terra, tudo aquilo que é imortal e mortal a fim de lhes imprimir o traço essencial da separação. O Ser-valor é uma coisa tão coisada que reúne e congrega as diferenças numa unidade identitária, sem a experiência originária do comum. A experiência originária do comum jamais poderá consistir na consagração do vigor e viço do mundo e da linguagem no altar da Coisa mesma conjurada e encarnada. A suprassunção do modo de produção capitalista na absolutização do capital monetário sobre o capital produtivo e o trabalho é também o princípio do tempo do fim da forma social historicamente determinada do Ser-valor. O predomínio vertiginoso do sistema do capitalismo cassino promove uma gigantesca concentração de capitais nas mãos de uma aristocracia rentista que agudizará cada vez mais, em escala jamais vista, o mecanismo de expropriação da riqueza social abstrata. A forma absoluta do capitalismo cassino é expressão evidente da contradição radical entre o abstrato e o concreto imanente à Coisa mesma estranhada. A atualização total do caráter Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Juros e culpa: a paixão no corpo da coisa, pp. 303-306 destrutivo dessa Coisa como juro é o triunfo da forma sobre o conteúdo, que anuncia o alarme de incêndio de um tempo do Ser que caducou. O capitalismo não é uma religião, porque a religião é uma tentativa de fundação da totalidade do mundo e da linguagem sob o comando do absoluto pelo sentimento da fé no porvir que será redentor. O capitalismo é a constituição da totalidade do mundo e da linguagem sob comando da Coisa estranhada pelo sentimento da angústia, que conduz ao desejo perverso de aniquilamento por causa de uma culpa ontológica.

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321

CRÍTICA DA MÁQUINA MÍNIMA Airton Uchoa Neto

PRIMEIRA PARTE NÓS CONTRA NÓS

Alguém deve ter nos caluniado a todos. Pois, certa manhã, sem que tivéssemos feito nada, pelo menos nada que restasse na lembrança e na consciência, fomos todos presos. Era em nossas próprias casas, para os de nós que tinham ao menos isso, e as chaves não nos foram tomadas, sequer, mas a rigor estávamos impedidos de sair, proibidos, nos sentíamos. (19/03/2020) Um de nós, tão ingênuo quanto corajoso, deve mesmo ter dito que não éramos culpados, e com um pouco mais de esforço pode até mesmo ter acreditado no que dizia. O certo é que em alguma ocasião incerta responderam: “Alguém precisa ser culpado”. Ninguém sabe dizer quem foi nem quando nem onde, mas quase todo mundo diz que ouviu ou conhece quem ouviu, e as versões seguem desencontradas. Pode nem ter acontecido, mas todo mundo lembra, (24/03) ainda que nem todo mundo propriamente se importe. Lembrarem mesmo, apesar de passado pouco tempo, é um desses milagres raros, nem digo como ganhar na loteria, mas como ser atingido mortalmente e na cabeça pelo fragmento de um satélite ou de um foguete espacial. Um privilégio mesmo raro, raríssimo, tanto que ninguém estranharia que a família da vítima se orgulhasse do seu destino e defendesse os direitos da porção de lixo espacial sempre que alguém tocasse no assunto. (23/05)

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 Amanhã todos podemos morrer. Ou pode ser até hoje, sei lá. “O senhor está morto. Enterramos amanhã. Vida que segue.” Até a semana passada, a morte como horizonte de sentido, ou falta dele, era tão leve e sábia quanto toda a velha e boa filosofia de bar. A lembrança da morte, e que a morte é coisa inevitável, agora é ofensa pessoal. Mas isso ainda diz pouco. Pode ser amanhã. (22/03)

Podíamos esquecer, até semanas atrás, que o mundo, para nós, era apenas a periferia, ou até mesmo umas poucas ruas do bairro, talvez não muito mais que dez esquinas, e conhecemos dentre nós os que passam a vida apenas nisso. Agora esse canto do mundo pra nós todos se tornou a totalidade do mundo, essa fatia da periferia. E (31/03) a periferia mesma, quase acostumada à tragédia e ao sacrifício, até que ainda sorria, até pouco. As pessoas foram se afastando das ruas, de modo gradual, mas sobretudo discreto, como se saíssem tarde de uma festa e, envergonhadas, não quisessem que os outros soubessem que tinham estado lá. E a festa era a própria vida. (23/03) Pressinto o sussurro de sombra do coro dos moralistas, e o moralista é um cantor desafinado que se formou em canto e se especializou em teoria e crítica musical: diz o sussurro que não se pode dizer, da vida, que seja festa, porque vida, o sussurro roga, sobretudo a do pobre, tem que ser sofrida, e o sofredor, sábio, é sábio porque sabe tanto da sua dor que não sabe de mais nada. Insisto: a vida é, ou foi, uma festa, uma festa improvisada, acanalhada, que endividou todo mundo e incomodou o vizinho de madrugada. Até que a voz da razão mandou que todos fossem pra casa. Mas, como a razão não é gente que tenha palavra e fala, só tem um jeito de ouvir sua voz: é que só os doidos são movidos por vozes sem corpo. (24/03) Estávamos naquele ponto confuso em que a bebedeira ainda não passou direito e a ressaca já começou. Ninguém entendia direito a bagunça e menos ainda quem é que ia arrumar aquilo tudo. Era por isso que as pessoas queriam ir embora tão discretamente. Os olhos inchados, os pés descalços, os sapatos na mão, o fim da festa. Fomos nos retirando aos poucos, calados, quase envergonhados ou mesmo culpados. Até que ficaram apenas os alcoólatras folclóricos, meio indigentes, meio mendigos. Foram acolhidos e depois abandonados por aquela festa dispendiosa. A bebida tinha acabado, e alguma coisa ficou por pagar. Os sapatos já foram tirados, porque de qualquer forma há um momento em que é sábio tirar os sapatos, sobretudo perto de as festas acabarem. Os alcoólatras, os mais cínicos, no sentido filosófico, não só tiram como também perdem seus sapatos. São quem restou depois que acabou até a bebida e ninguém tem mais dinheiro. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 O dinheiro acabou. Os falsos prudentes já se retiraram; levam nas mãos sapatos que foi sábio tirar depois da festa e que é ajuizado levar embora. Restaram os alcoólatras, que de tão esperançosos não perceberam: já não há a quem pedir. E eles vagam, como quem não entende como tudo acabou. (25/03) Quem mesmo dentre os que saíram cedo entenderam ou ainda vão entender como tudo acabou? Quantos vão aceitar que definitivamente acabou? (08/04) Isso não diz de todos. A cena é específica. Há os de nós, se ampliamos as ruas, se acumulamos mais pontos geográficos ao nosso conhecimento de mundo, se nos arriscamos a abraçar tanto mais de comunidade humana, além da praça, ou parque, além da lagoa e da alameda, (31/03) há os de nós que permaneceram, longe de metáforas, sobretudo de opções, continuaram saindo de casa, em nome do sustento. Podem não ter entendido ou podem ter duvidado do que acontecia, ou insistiram sabendo dos riscos, não havia opção verdadeira entre a fome e a doença, a não ser que a doença era um grande risco e a fome, uma certeza. Fazem parte da festa da vida: são os que servem, sem que ninguém perceba que têm rosto e nome. E que sem saber o que fazer também vão ter que voltar pra casa, mesmo que suas mãos estejam vazias. Vão saber o que esvaziou as mãos. É o bêbado que, contra tudo, ainda guarda uma esperança. É no sentido da esperança mais louca que o bêbado é o último a se retirar, (30/03) são os autônomos e os informais que têm razões além da poesia, e é em nome deles que falam em todos os idiomas os líderes do mundo e seus patrões: todo discurso que omita a existência do invisível será um discurso desumano e ímpio. Os invisíveis, que já eram assim antes da epidemia global que de novo arredondou o mundo, já antes da peste invisíveis como vírus que não podem ser vistos a olho nu por causa de sua dimensão abaixo da medição em milímetros, os invisíveis fazem parte da normalidade esférica e giratória do mundo que conhecemos no passado, e são parte da força que faz com que o dinheiro não pare. Forçar sua reclusão, como querem as celebridades, que têm tutoriais interessantíssimos sobre como driblar o tédio nos condomínios interditados do paraíso, é não apenas condenar à morte o pobre povo invisível, mas, e os empresários grandes veem isso com uma clareza de que não somos capazes, condenar a lógica do mundo, que tem sido sempre a mesma, desde que o mundo é mundo. Os negócios não se movem sozinhos. E cada dia gera seus próprios mortos. Os da ocasião era só diluir nas estatísticas de rotina, e nada precisava mudar tanto, só uma súbita elevação da curva, um pouco além do esperado. Ninguém entende isso? Se não pela necessidade dos factótuns e dos autômatos, que agora só sabem falar de falta de dinheiro e de comida, (31/03) pois não percebem que é muita falta de patriotismo que todo mundo queira se alimentar todo dia, nessa situação, uma incapacidade de autossacrifício que explica mais uma vez por que o país não vai pra frente, se não por essa monomania entediante de quem pode amanhã não ter o que comer nem onde morar, (23/05) a Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 ladainha insana e sem sintaxe do bêbado podia chamar mais atenção. É ele o radical livre verdadeiro de todas as crises, e que tem sempre a mesma solução pra tudo. (31/03) Simplista, admitimos, mas talvez não possamos ser muito sofisticados. Precisamos de um vocabulário simples e de um repertório sentimental, mas algo um pouco além do previsível. E a manhã flagrou os bêbados abandonados, ainda decidindo o que fazer, (08/04) alguns deles pode ser que nem tenham o que comer ou onde morar, mas, patriotas, já não reclamam disso. (23/05) Mas até mesmo o bêbado mais bêbado tem que entender em algum momento, não é? Mesmo os que não sabem ao certo o que queriam esquecer. Precisamos entender, nós todos. Esperam que todos entendam e sejam compreensivos e obedientes. E guardem distância uns dos outros. Não se pode mais abraçar nem beijar e nem apertar as mãos. Isso pouparia meia dúzia de mentiras diárias por pessoa, pelo menos, mas a cordialidade é sorrateira. Inventaram de bater os pés uns dos outros, desde que calçados, ou os cotovelos. Depois as ordens foram mais radicais: que voltássemos pra casa. Não se vê a luz da caverna, mas lá ainda é mais seguro. A rua era promessa de vida? O que cheira bem na feira às vezes fede na panela. Restássemos em casa, sozinhos ou junto com quem lá morasse. É o único modo de evitar um inimigo cego e invisível mais revoltado e furioso, mas que ainda não sabemos o quanto pode ser mais devastador do que um espelho constante. Cumprimentar os outros, mesmo que falsamente, não faria falta por muito tempo. As paredes mesmo não vão precisar mais de ouvidos em breve. Serão tão transparentes como o vidro pra quem souber ver e mais finas do que papel pra quem souber ouvir, e vamos preferir não. Será mais útil que as paredes criem cotovelos, mas não em nome da gentileza. Vamos precisar nos bater contra alguma coisa. E vamos ignorar de propósito que as coisas, tanto as penas quanto as facas, sempre são inocentes. (26/03) Isso é normal. Tem uma hora que não se pode condenar nem a leoa nem o tubarão. Nossos avós não entendiam isso, ou entendiam errado, e interpretavam pela via da punição. Isso é normal, e acho que é o que todos tentamos defender, mas mesmo assim acho que talvez a maioria de nós ainda nem entenda. O que também é normal. Precisamos pensar nos bêbados de ressaca que sobraram, sem entender que a festa terminou em prejuízo e não era mais viável: é provável que estejamos ou já tenhamos estado entre eles. (26/03) É normal que, confinados, queiramos nos bater contra as paredes, mais ou menos como loucos de filme em quartos acolchoados. A diferença é que já não vamos dizer dos loucos que fazem coisas sem sentido: pode ser que só façam o inevitável, pode ser que só façam o melhor na ocasião, na pior das hipóteses a única coisa que ainda podia ser minimamente divertida. Quando já não Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 importa a censura de ninguém. Todo mundo mesmo que não queira está no mesmo barco (ou pelo menos na mesma tempestade, e nem todos têm barco, como disse sabiamente Helbana Uchôa). Todo mundo mesmo que não queira é igual. E não existem culpados entre os iguais. Não há mais culpados entre nós, certo? (27/03) Nós não somos todo o mundo, a totalidade dos seus culpados. Somos apenas os moradores de uma rua, no máximo, o pedaço de um bairro, algumas esquinas para que os caminhos tenham curvas, e das ruas mesmo somos os moradores de alguns trechos, os frequentadores de um espaço público que ainda não é propriamente um parque nem uma praça, os caminhantes que dão voltas na alameda quase sempre no sentido anti-horário e a gente que vê a vida passar, fumantes, bêbados, experientes aposentados e sábios de rua. Somos os falantes de uma variante regional urbana do português do Brasil, uma parte dos viventes de um canto da periferia, às margens de uma lagoa. Somos apenas nós, e em breve vamos perceber que nunca fomos tão solitários, e talvez comecemos a gritar uns com os outros mais alto do que o normal, somos nós, apenas nós, e talvez até mais do que suficientes, nós, os excessivos. (31/03)

Como podemos explicar a necessidade de novos protocolos? Os antigos, se é que existia mesmo algo como um protocolo, a gente já não entende. Um novo talvez carecesse que alguém ensinasse. É difícil falar quando não há mais ninguém. Somos apenas nós. Somos todos nós, mas precisamos de alguém de fora que perceba com clareza porque as coisas estranhas são estranhas. Não existe ninguém assim porque talvez nem mesmo exista lado de fora lá fora. Cada espaço interior habitável o mínimo esperam que os moradores tenham ocupado e que ocupem constantemente. Essa habitação ininterrupta, quase profissional, e esperamos mesmo que nos paguem por isso, também ameaça tornar todos os lados de dentro num mesmo lado de dentro. A humanidade, os pensadores têm dito, de longe, em geral em línguas estrangeiras, foi chamada, recebeu uma nova chance (28/03), ou uma última sentença, mas, de qualquer modo, (23/05) podemos ver o que tem dado errado, imaginar, bucólicos, que sem nós a natureza se reconstruiria, mas antes de mais nada voltar a ser irmãos que retornam ao mesmo ventre de barro, e voltamos a encontrar na própria terra o nome de uma mãe comum, (28/03) coisa que quem vaticinou a sentença final, a chance que precisavam pra vigiar e controlar as poucas dobras e orifícios que ainda não tinham vigilância e controle, deve achar pouco útil, o triste espetáculo de um tolo que insiste em

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 enganar a si mesmo, que se deixou mesmo iludir só porque ouviu repetidamente João 8:32, mas esqueceu Atos 16:17. (23/05) Todos esperamos nascer. Uma multidão de crianças envelhecidas que já soubesse falar no ventre e já tivesse lembranças, mas que iria preferir esquecer e permanecer calada. É esse o princípio de um novo protocolo, e o ideal era que um povo alienígena o redigisse: era uma ótima maneira de nos conhecer, explicando pra nós mesmos o que de nós não entendemos. Por que não? Pode ser medo, e o exemplo é justamente esse novo protocolo, que pode ser que diga. Que é preciso ao menos ter piedade do nosso sentimento de raiva. Dizem que devemos ser bonzinhos uns com os outros, e foram bem incisivos quando disseram isso antes das instruções de nos confinarmos. Disseram que era por amor. Nem todo mundo entendeu que era pra nossa segurança: há dentre nós os que acham que estão nos enganando e os que acham que é tudo exagero. Não é. Colocar o amor como regra é que foi exagero, engano e eventualmente mentira (28/03), (ou civilizada, polida e política inverdade), (18/05) mas antes de mais nada falta de diplomacia. Disseram que era feio ter raiva. E o que foi que a gente fez com a coitada da raiva, que não tinha culpa de nada? Coitada: sua única sorte é que não era coisa que se pudesse agarrar com a mão nem coisa viva que se doesse ou gente, que é coisa viva que se dói e sabe de si. A gente queria era que a raiva tivesse um rosto e que fosse alguém, pois aí a raiva ia ter o que merece: a gente ia cuspir na cara da raiva e lhe dizer nomes, a gente ia bater nela e chamar todo mundo pra bater também, e de tanta revolta acho que a gente queria até morder os lábios da raiva, daí tantos dentes rangendo e tanta mandíbula humana dolorida. Sentir raiva nos disseram que era uma coisa feia, e a gente quer evitar as coisas feias. E nos confinaram, a nós, que não sabemos conviver. Também porque não deixam a gente aprender, e que melhor oportunidade? (28/03)

O ódio não precisa das urgências desastradas do amor, não precisa que se aja como se não houvesse amanhã; é o amor, que pra se manter precisa se preservar, por pudor e por logística, um pouco desconhecido de si mesmo, pra que não espantem seus potenciais de horror e de vazio, tem mesmo é que se precipitar, e entrar no palco sem ensaio e sem texto decorado: já se espera desse ator que seja um canastrão. Para o ódio, paciência; o ódio deve mesmo dispor do dia seguinte e do mês e do ano; aliás, para o verdadeiro ódio a década não basta, e é mesmo ao ódio que fazem mais sentido os votos de duração e eternidade que se declara ao amor; mas o ódio, o autêntico, o raro, carece dessa fragilidade: é tão íntimo e já se encontra tão bem aquecido que não precisa de Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 homenagens. É verdade que tem sido caluniado, confundido com uma raiva infantil e manipulável que se pode apontar pra qualquer lado, tanto que a princípio nem precisa ser contra alguma coisa que exista, e é mesmo melhor, estrategicamente, que a coisa odiada não exista. Odiar ministros hoje, por exemplo, seria um erro de raciocínio, não que eles não existam, ainda que não tenham ultimamente as existências mais incríveis, mas se tornaram tão abstratos que merecem mesmo uma das poucas (planejo usar apenas três) reticência que terá esse discurso… Odiar, mas sobretudo restaurar o significado das palavras importantes, e por que não a palavra ódio? Antigas tribos antropófagas, sempre meio aparentadas entre si, mantinham nesse sentido guerras eternas: nenhuma tribo cometeria o disparate de dizimar a outra, pois perderia assim o objeto do ódio e a reserva de carne, eis o exemplo e o resumo. (Percebo: exagero, e o ódio pode ser que tenha se perdido e será para sempre um sentimento mesquinho e bem distribuído numa democracia mal compreendida. Os rituais antropófagos guardam a semelhança com o ódio que eu quis redimir, porque o inimigo capturado se convive antes do sacrifício e da refeição, é mesmo tornado meio da família e lhe permitem que deite com as mulheres. Parece aparentar com o ódio, mas supera o ódio. Tem mesmo seus relógios próprios: ao pescoço do prisioneiro uma corda com nós, e cada nó avisa do dia da cerimônia; a corda se chama muçurana, que é o mesmo que dizer cobra preta.) (21/05)

O segredo da rotina não está no primeiro dia, aprendemos, talvez nem na primeira semana ou no primeiro mês. Paciência? Diz pouco. É meio como a velhice: não começa num dia certo. A rotina, como a velhice, se instaura sem que importe a nossa vontade. É suave quando o que se instaura é de vagar que se instaura, como na história do sapo, incapaz de se aproximar de água fervente, mas que se pode matar cozido, se for a fogo brando. Estávamos cozinhando em saunas coletivas. Nossas pequenas casas tinham virado saunas coletivas. Mesmo as chuvas da temporada, que, aliás, só tornavam a situação pior, não amenizavam o calor. O que a chuva trazia era um mormaço, e a gente ficava pensando o que é que vinha flutuando naquele ar quente, feito urubus que planassem nas termais. O segredo da rotina não está no segundo dia, aprendemos, talvez nem na segunda semana ou no segundo mês. Paciência? Não era a resposta, mas esperávamos; os jornais prometiam edições estendidas e imaginamos que era pra termos mais informações ou mais detalhes. Esperávamos, como velhos compulsoriamente aposentados que não precisassem fazer mais nada. O que os jornais Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 traziam era sempre a repetição do que já sabíamos, se é que sabíamos de alguma coisa. Tínhamos que aprender a lavar as mãos, como crianças, se bem que muitos de nós acabaram descobrindo que não sabiam lavar as mãos exatamente como se deve. O mesmo tutorial se repetia todos os dias. Como se faz com crianças, ouvimos todos os dias as mesmas instruções e as mesmas ordens, mas os jornais ainda eram mais ou menos úteis. Descobríamos que a morte do pai do prefeito pela doença era um boato, e que era um boato também que o governador, pressionado pelas associações de comerciantes, ia suspender a quarentena mesmo com a subida já quase vertical da curva estatística. E além disso não se aprendia muita coisa. Os de nós que gostavam de sofrer ou de acusar a imprensa de mentir em tudo ainda gastavam todo o seu tempo com os detalhes exaustivos das mesmas informações. A única coisa que mudava substancialmente eram os números. O segredo da rotina não está no terceiro dia, tivemos que aprender, se aprendemos alguma coisa, nem na terceira semana e no terceiro mês. A paciência, a ciência de esperar pelo que vem, e pelo que não vem também, como diria o finado poeta, não é uma virtude, é uma capacidade que se adquire, como um truque que um cachorro repete em troca de biscoitos ou a custo de pancada ou a lição que mesmo sem entender a criança reproduz perfeitamente. Esperávamos as notícias no rádio e na televisão; os mais jovens tinham fontes mais modernas e sabiam tudo antes; sabiam até mais do que tudo. São impetuosos e não conseguem esperar (ninguém segura a juventude do Brasil). De qualquer modo a verdade sobre os fatos da rua já não depende do que podemos ver que acontece na rua, assim como não somos nós mesmos que decidimos as nossas vidas, tivemos que aprender, ou aceitar, aprendendo ou não. É melhor pra todos nós, e importante demais pra que nós mesmos decidamos. É para o nosso bem, temos que aceitar, e os mais prudentes, calejados, pois é um pouco isso a paciência, um calo trabalhado pelo tempo, os mais prudentes de nós aceitam; também dizem que é incondicionalmente por amor, e as grandes empresas substituíram os comerciais comuns e corriqueiros pelas propagandas institucionais: querem deixar claro que mesmo a distância sempre nos amaram. (29/03) O segredo da rotina não está no quinto dia nem na quinta semana. Talvez esteja no quinto mês, mas depois de cinco meses ainda é possível que aconteça alguma coisa? Pode ser que já não seja possível aprender, porque nunca foi mesmo possível. E o verdadeiro segredo dos mestres nunca foi ensinar: só souberam escolher os discípulos corretos, os que sempre souberam, e deixaram os demais esperando, mesmo que não dominassem a arte da espera e mesmo sendo incapazes. É isso: estão condenados a esperar os que não sabem esperar; a espera termina quando aprenderem; estão, porém, condenados a nunca aprender, e como não aprendem a esperar vão ter que esperar Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 pra sempre. Nós lembramos coletivamente alguma teoria ou alguma narrativa da espera? Há o amante chinês do poema que esperou embaixo da ponte, e era o amor que ele esperava, e parece que desistiu na véspera, ou esperou foi sentado na porta mas também desistiu da véspera: ele aprendeu a esperar, logo, independente do amor, já podia ir embora: pois merece em excesso os subornos que já sabe recusar. Mas se estivesse esperando em nome do ódio e o objetivo fosse a vingança? Era um guerreiro japonês, e executara a vingança contra todos os inimigos, mas não tinha paz, e isso era visível. “Todos os seus inimigos você já matou”, diziam. “E eu ainda odeio”, respondia. O segredo da rotina não está no oitavo dia nem na oitava semana. Pode ser que se encontre no oitavo mês, se você conseguir fazer a mesma coisa durante duzentos e quarenta dias sem perceber o próprio progresso. Porque já nem era o progresso que se desejava. Qual a profundidade de um calo desenvolvido em tantos dias? O calo, valor, por exemplo, de alguém que resolvesse odiar um inimigo que não pudesse ser derrotado, que talvez nem se pudesse alcançar? O ódio sempre teria o que trabalhar. Que se pense o calo como unidade de medida da espera. Era a fila, numa discussão sobre o que seria o inferno: uma fila interminável para os castigos durante a qual os condenados sofrem imaginando os castigos que nunca vão alcançar. (01/05) Meninos, eu vi: o ódio mesmo, do jeito do amor mesmo, pode ser uma coisa desengonçada e pouco vistosa, sem graça mesmo, tanto quanto um pássaro de pouca cor, desses que mendigam e roubam, feito o filhote do pardal e o do pombo. A vingança, feito a união carnal dos amantes, pode ser uma coisa pequena, humilhada, que era melhor nem ter sido, que nem sempre a intenção salva, aliás, não salva é quase nunca. Como é que se vinga o ódio ou se satisfaz o amor? Quem é que tem esse talento de verdade? Já é difícil porque a pessoa precisa de uma linguagem, e isso é muito, isso já é demais, é excesso, é luxo: se não cuidar vira é desperdício. Acontece os presidentes não terem linguagem, e junto deles os ministros, o que não é tão grave porque presidentes e ministros são coisa que passa. Uma vingança é uma coisa mais complexa, assim como o amor, mas os dois pode ser que se viva de um modo acanalhado, e os descendentes vão ter mais o que esconder do que o que contar, e essa não é a intenção, o que também importa pouco porque é difícil que a intenção salve. (03/05) O segredo da rotina não chega depois do décimo terceiro dia, feito uma encomenda que se espera dos correios ou uma parcela a ser depositada na conta bancária, nem mesmo no décimo terceiro mês, quando já foi superado o ano (mas nisso se encontra talvez um princípio, desde que as potências cabalísticas dos números sejam ignorada e esquecidas, e que se diga treze como se diria doze ou catorze). O ano já foi superado assim como os dedos das mãos: não é mais uma contagem de crianças, e não adianta inventar mais dedos fazendo marcas de giz nas paredes, e enchendo as Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 paredes de dedos imobilizados, cada dedo de giz representando um dia de clausura. O prisioneiro espera o dia da fuga ou da soltura. A criança pode ser que conte por contar, mas deve poder abandonar antes de dormir as moedas sem valor com que brincava (me lembra bem: eu era criança bem pequena e o dinheiro se tornava fácil coisa sem valor na década de 1980, pra virar brinquedo era bem fácil, e eu contava tão precariamente que com menos de vinte moedas chegava ao milhão: errado na matemática mas correto no princípio de desvalorização). A rotina, reticente, não guarda sua lógica e estrutura na inflação nem no acúmulo. A existência dos outros dias é quase uma certeza, mas ainda não é isso… e agora mesmo queimei a segunda reticência. O segredo da rotina não está no vigésimo primeiro dia, que já passou duas vezes, se não foram três, nem no vigésimo primeiro mês, que somado a mais três meses completaria dois anos, como o aniversário de alguma coisa que, se fosse viva, ainda seria jovem, pensando do ponto de vista se grandes vertebrados e de nobres vegetais. É certo que é um tempo em que pode amadurecer o ódio em novos protocolos que operem sua remissão, mas o ódio redimido, o ódio que se espera dos adultos, nunca precisou de calendários, esse é o ponto, e sua lógica não é a da rotina. A rotina não acumula, só gasta, não ensina, ou ensina lentamente que aprender não é possível. A rotina não está no vigésimo primeiro dia, nem talvez no décimo segundo ano. Dissemos sete vezes onde a rotina não está e tudo que ela não oferece. Esperaram de nós que cumpríssemos uma outra promessa e outro contrato? Meu único compromisso agora, digo por mim, é poupar a última reticência do discurso. (19/05)

Às 19h23, horário de Brasília, o número total de contaminados no planeta era de mais de 714 mil. (29/03) 17h. Horário de Brasília. Mais ou menos dez minutos atrás o número oficial de contaminados bateu o milhão. É impossível saber o número verdadeiro de contaminados. É uma potencialidade tão invisível quanto a do próprio vírus. Segundo dados que vazaram, mas que não podemos saber ao certo se são um fato ou um boato, há três pacientes positivamente diagnosticados no bairro, mais três num bairro vizinho e outros dois em outro. A espera não aponta uma data e um momento exato, mas já se torna algo palpável. Já não é mais, talvez, a espera coletiva de todos nós. Cada um agora, independente de quem tenha perdido ou não, espera; é saber se seremos chamados; é saber quando. A fila, que tanto define nossa vida social brasileira, ganha uma nova materialidade. Ninguém pega a mão de ninguém: a verdade social do mundo. É de antes da peste. Nunca fomos Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 nós nem ninguém mais; não importa a língua e a geografia; o contrário é ilusão desesperada e publicidade improvisada às pressas; o contrário é um discurso pré-moldado de gabinete a ser pronunciado por homens se gravata e mulheres de tailleur. A comunidade humana será um agregado de sobreviventes e uma multidão estatística de mortos. Nossa desconfiança diz: os que disserem isso já sabiam antes. Concretizados, os números são imbatíveis mas além disso ainda cavam um rastro subterrâneo. Cada um de nós é apenas um, e esse número não conta. (02/04) Deveria contar; isso era o certo. Mas estamos preocupados demais com o destino do dinheiro. (03/04) (…) 8h28. Mais de cinco milhões de contaminados oficiais mundo afora. O Brasil chega oficialmente perto dos trezentos mil e a impressão é a de que, depois que se alcançar essa marca, bater o limite seguinte também não vai demorar muito. Os mortos mesmo já são quase vinte mil. Claro que há o preconceito dos números redondos, mas isso poupa um pouco o esforço de rememorizar os dados. Em compensação, os números mesmos parecem pouco confiáveis, não contam todos, pois não há eficiência burocrática pra isso. (21/05) A subnotificação sempre foi nossa condição social. (03/04)

2h18. Os tiros devem ser na outra margem da lagoa. Só os cachorros se incomodaram de verdade. Nonada. Os cachorros mesmo é estranho que se assustem. As dívidas de honra e as disputas por território não podiam ficar paradas por muito tempo, e não faria mesmo sentido que um sujeito que enfrenta tiroteios tivesse medo de febre, coriza e falta de ar, quando ainda há tanto inimigo visível. Nada pessoal: é simplesmente dinheiro, nonada, não carece explicação: os tiros eram apenas os homens, rotina, resolvendo seus negócios. Os cachorros, precipitados, se assustam à toa, e o presidente, quem diria, parece que tem razão: os negócios não podem mesmo parar. Depois se vai ver se deu mortos. (31/03)

O que é que verdadeiramente sabemos, o que aprendemos coletivamente, além de lavar as mãos, se é que aprendemos ao menos isso, das mesmas variantes da mesma língua portuguesa, que fazem que sejamos engraçados na televisão (um dia pode ser que percebam que podemos ser mais do que engraçados; pode até ser que nós mesmos percebamos isso; vai ser um dia glorioso), o que Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 sabemos, o que aprendemos além dos mesmos nomes de políticos e alguma coisa de política internacional, o nome de um vírus, uma tipologia de vírus, uma cidade chinesa, alguns remédios, o que mais? Aprendemos que grandes empresas se importam conosco? Que somos mortais e é preciso esquecer isso de vez em quando? Que todo o nosso exercício diário era um pouco esquecer, mas de repente tudo ficou parado, e só era possível lembrar, foi isso que aprendemos, é isso que sabemos agora, coletivamente? Cada um só pode ficar com seu próprio fracasso; só pode ter fracassado quem já tentou fazer alguma coisa. Não é o melhor pensamento para um período indefinido de isolamento social, que o governador deve prorrogar (quase escrevo a palavra com o r triplicado), e os dois estão cientificamente corretos, e não é mesmo impossível que o isolamento evolua rumo a uma quarentena radical: as pessoas não aprenderam a permanecer em casa, já não conseguem, e isso pode ser que explique os tiros mais do que uma vaga logística de guerra: as pessoas estão sob pressão por mais tempo do que poderiam suportar, o que leva a um ponto positivo: podemos ter mesmo descoberto muito sobre nossos curtos limites e uma limitada solidariedade comunitária. Que sociólogo espetaria isso de nós? Mas aprendemos o bastante para poder escrever o tutorial do quanto nos revoltamos individualmente e de como funciona o nosso ódio? Apenas porque aprendemos alguma coisa; é preciso que saibam que aprendemos; mesmo que ninguém mais aprenda. O prefeito e o governador não vão se interessar por isso; precisam que as pessoas sejam tolerantes e aí nada tenham paciência; isso não aprendemos e não sabemos aprender. Já nos atribuíram uma semente ruim; ninguém estranharia se fosse isso. Não se fala mais do assunto; mas os mais velhos devem falar. E no passado todo mundo era tão acostumado com os miasmas da semente ruim que era até pacífico: a ruindade existia, mas ficava quieta. Quando foi que acordou? Era impossível que ficasse dormindo durante tanto tempo e agora com tanto barulho. Não. É injusta a acusação de feiura e de ruindade mesmo que o o grande animal coletivo padeça de ruindade e de feiura; a culpa não é sua mesmo que seja. Aliás, nossa, pobres de nós, e aceitamos, sim, a culpa: vamos pagar a dívida, depois de acordar do pesadelo, ou depois que o sonho construir nossa máquina vingativa; mas só conseguimos sonhar que passamos a noite tentando dormir (o pesadelo eterno dos planejadores). A máquina de vingança já tem seus operadores; eles esperam; uma raça oculta e anônima que gerou a pestilência precisa ser podada: os incestuosos secretos, os lambedores e os cheiradores do que não pode ser lambido nem cheirado. Um monstro santificado precisa sair com mandados judiciais cortar línguas e narizes, mãos e genitais. Nós odiamos, e precisamos ser representados: uma era histérica corrompeu a saúde, e agora só um mecanismo santificado e moralista, uma máquina de dentes vingativa, pode tornar as coisas mais Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 uma vez seguras. Um maravilhoso mundo castrado, de olhos vazados e lágrimas secas, um mundo sem urina e sem fezes, um mundo de óvulos e espermatozoides civilizados e pontuais. Algo que conhecemos de nós, um ódio pacificador que esperou décadas pra retornar, que imaginaram de farda e condecorado, mas, enfim, nem tudo é perfeito a não ser a perfeição divina da máquina. Já reparou como a máquina vingativa se parece com seu pai? Tem o gene de todos nós; é fruto de uma masturbação coletiva. (02/05)

Um assassino ritualístico. Matou a esposa e sua filhas. Se escondeu num terreno em reformas, com um instrumento que improvisou em arma pra cometer os seus crimes. Escreveu o que fez nas colunas que sustentavam a reforma. Diz, por escrito, que teve pena de uma das filhas, que pedia pra não morrer, mas ele não conseguia parar. (02/05)

A cidade mais perigosa do Brasil mais uma vez, a segunda só esse ano. Ou somos, compungidos, os que mais e melhor confessam seus pecados, até mesmo os invisíveis. (10/04) Tchecov: “A que lugar perdido nos trouxe o destino. E o mais desagradável é que teremos que morrer aqui.” (s. d.)

“Não me diga pra ser forte. Não me diga pra ter fé. Não me diga que tudo vai ficar bem. Que a vida vai vencer isso era fato; a vida e a morte nunca disputaram. Por que se preocupar comigo? O máximo que vai me acontecer é que eu me mate, e podem até mesmo dizer que era uma tendência genética, uma herança. O que vai acontecer é que quem me conheceu vai falar de mim por mais tempo, vão dizer: o que se matou, e talvez com raiva porque vai ter sido quando todo mundo se lembrou de viver. A gente só se lembra da comida quando tem fome. Só dá valor à mulher depois que ela vai embora. A vida sempre esteve aí e todo mundo reclamava. O que é que nós queremos afinal? O que é que você quer de mim, amigo? Não se preocupe com isso; você supera; eu não vou ser o seu primeiro nem o seu último suicida; eu nem disse que sem dúvida nenhuma ia me matar: é uma possibilidade tanto pra mim quanto pra você. Eu não duvidava que se matasse o presidente. Ou o papa. A vida nunca foi um valor infinito. Quem disse isso foi um homem rico. E quando ele diz isso você fica com raiva, mas se ele diz diferente você diz que homem é mentiroso. Se um poeta dissesse? Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 A vida não tem valor infinito. A gente pode acusar o homem rico que disse isso se ele acredita no que disse e acredita que está certo porque é assim mesmo. E vamos dizer que o sujeito é desumano, que não é um de nós. Mas é se for só a verdade? É uma verdade mais da natureza do dinheiro do que da natureza das coisas, mas quem é que faz a verdade das coisas? Só me diz. Você ficou triste em casa e pensava que era bom se desse pra ir aonde nada disso estivesse acontecendo, mas aí lembrava que esse lugar não existe no mundo. E você acha mesmo que esse lugar existia antes? Não se preocupe comigo. Pode ser que essa vontade de viver da carne seja mesmo miseravelmente forte. Vão dizer que o que eu não posso é me acovardar, e olha isso: pode até ser que eu não me mate preocupado com a opinião dos outros. Se preocupe não. Porque se se preocupar vai ficar pensando a cada momento, será que vai ser hoje? E o pior é que você vai me ligar, e eu nem sempre vou atender, mesmo que esteja vivo. Mas o pior mesmo é que se você se preocupar e passar a pensar a cada momento se vai ser esse o momento, isso vai durar quanto? Os dias? As semanas? Nos meses eu nem acredito. Nem posso culpar ninguém. O problema de você se preocupar é que não vai poder se preocupar sempre. Eu não preciso de uma epidemia. Essa maturação é outra. Pode ser que ocorra numa distração do seu cuidado comigo. Um velho traficante de sintéticos me disse: não existe suicídio, o caso é sempre de eutanásia. Disseram que a gente devia virar nós e que isso nos salvava. Nem digo que não, mas a que preço? Quer ter raiva de mim por que eu digo isso? Quer chorar, porque precisa acreditar, porque precisa valer a pena? Você sabe do que eu estou falando: não querem que eu me mate um pouco pra que eu viva mesmo, mas mais pra que minha morte não torne ainda mais frágil a ideia de humanidade que venderam num pacote e todo mundo comprou. Nós? Até o mais comunista de nós é liberal demais pra viver isso de verdade, até o fim, sem nenhum minuto de enjoo. A inteligência emocional não vai resolver o luto de todos; juntar as mãos em forma de coração tampouco. O meu problema não é que eu ache que o mundo mesmo morreu, mas saber que o mundo continua vivo. Faz o seguinte. (28/03) Aproveita que amanhã ou depois de amanhã você vai ter que esquecer o presidente, quando ele virar a notícia de ontem, aproveita e me esquece também.” (23/05)

O que aconteceu com as pobres crianças com câncer desde que todos nós nos tornamos crianças com câncer numa enfermaria imensa esperando resgatar a humanidade de alguém? (s. d.) A verdade é que não merecemos esses mesmos presentes, os presentes das criança que tem câncer, eventualmente últimos presentes, das pobres criança a quem exigíamos que mantivessem a fé, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Crítica da máquina mínima, pp. 307-321 porque sua descrença tornava o mundo imperdoável, e ainda precisamos do mundo pra viver nele. Ainda não merecemos nós mesmos esse perdão; não digo que sejamos especialmente terríveis e cruéis; a média da nossa maldade é mesmo bem mesquinha, somando e dividindo todos; mas já diz muito: era mais ou menos fácil ser melhor, e nos acomodamos, uma solidão que não depende de um metro e pouco de distância já se instaurava em cada um de… nós? Não posso mesmo fazer economia de reticências; nem posso insistir na primeira pessoa do plural. O mesmo problema agride a todos; terão disso uma lembrança bem precisa e cada um a sua própria versão; o provável é que nem queiram falar sobre o assunto nem amanhã nem dez anos depois; não vão precisar que gente como eu lhes lembre do passado com palavras escritas. Uma solidariedade institucional terá que persistir, e os que sentirem a dor da comunidade pode ser que sofram mais do que a mesma comunidade. O que vão silenciar talvez serão os que concluírem o que acabei por concluir, e era inevitável. É preciso desconfiar de cada um que queria falar por todos. E é mesmo ruim, uma verdade mesquinha e medíocre, algo tão pequeno quanto o vírus espinhoso e gorduroso que tornou tudo claro, mas que não inventou nada, que cada um pode falar apenas por si mesmo. O célebre personagem de Dostoievski, ressentido, rancoroso, recalcado, que mora num subsolo e pensa a partir do subsolo, constrói um discurso de acidez através do qual deseja ser visto: talvez sinta que seu rosto será visto depois que o ácido corroer as barreiras e tudo que ele queira seja participar de uma comunidade humana que no fim talvez ninguém consiga identificar: a verdadeira liberdade pode fazer que se deseje o grilhão, ele diz em palavras terrivelmente melhores. Um estranho editor surge em itálico para encerrar a narrativa: diz que o homem do subterrâneo continuou o seu resmungo. Em algum momento pode ter percebido e dito consigo mesmo: só posso falar por mim mesmo, e se revoltou ainda mais, porque isso não pode ser o bastante, e se revoltou o dobro e o triplo quando viu que talvez não se possa ir além disso. (19/05)

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Três estratos, pp. 322-328

TRÊS ESTRATOS Alex da Rosa1

Pergunto: é possível um agenciamento de coletividades que não recorra a um princípio unificador? Para explicar essa pergunta, organizei-a em três estratos, esses agenciamentos de linhas diversas que se entrecruzam como num novelo e sobrepõem-se formando nichos.2 Para facilitar as coisas podemos denominá-los como estrato Kantiniano, estrato Nietzcheniano e estrato Cínico. No estrato Kantiniano, temos o imperativo categórico como guia das condutas. São dois aspectos conexos: uma grade de valores vinculados a ideia de razão. Orientação das condutas (do indivíduo por si) por meio da vinculação à verdade; só que aqui a ideia de verdade ainda está vinculada a um conceito de razão. Até um tanto tautológico, é direto: fazei o certo pois o certo o é. Agir fora da grade valorativa, do rol de comportamentos, é desrazão. Se fossemos falar como Parmênides, o ser é, e o não ser não é. Na lógica Kantiana, a razão funciona como máxima vincula a ética. O próprio Kant já levanta a questão, comenta Foucault. Como poderíamos pensar por nós mesmos, sair do estado de menoridade? Pela liberdade do uso público da razão e da coragem em exercitá-la. Foucault retoma esse texto na sua primeira aula do curso “Governo dos Vivos”3, explorando o ponto da possibilidade do exercício da liberdade quando implicada uma relação de orientação, discipulado, ou enfim esclarecimento, assim como sob quais circunstâncias seria possível o indivíduo alçar a si mesmo fora da menoridade por puro uso da razão, sozinho.

1 Graduado em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinênse – (UNESC). Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade do Extremo Sul Catarinênse - (UNESC), sendo Bolsista FAPESC. E-mail para contato: alexdarosa@hotmail.com.br 2DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs v.5. São Paulo: editora 34,2017b p. 230. 3 FOUCAULT, Michel. Governo dos vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014a, p. 13-45.

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Três estratos, pp. 322-328 Parece-me que nesse primeiro estrato temos dois nódulos: (a) ideia de lógica, razão e valores; (b) esclarecimento, tomada de consciência, saída da menoridade pelo uso da razão ou sob orientação. A esses problemas, duas críticas correspondentes racham a força desse pensamento, são linhas de fuga4 que escapam ao estrato e vão lá agenciar-se junto a outras vindas escapes de outros agenciamentos diversos desses que estabeleço precariamente aqui. Quando Foucault propõe, reorganiza o problema da loucura e o faz facetando a razão. A razão vai se constituir a partir de um isolamento de algumas formas de racionalidade e a torção sobre ela, dividindo a razão e a loucura5. Sabe-se também que o pensamento do francês é marcado pela influência nietzschiana, como bem visto, dentre outros escritos, em “Aulas Sobre a Vontade de Saber”6 do francês. Pautar a própria ideia de razão é flexionar também a verdade. Entender a verdade como a “faísca de duas espadas”, lá onde Nietszche retoma Spinoza, é tomar a verdade como disputa, entender a possibilidade de diversas verdades7. Abdicar a própria ideia de racionalidade e compreender os discursos como conflitos bem delimitados e circunscritos historicamente. Em textos marxistas, diriam que é uma questão de hegemonia e ideologia. Nesse estrato temos as contribuições da psicanálise no abalo à consciência e à razão, assim como as contribuições marxista quanto à forma de sair da menoridade. A tática consiste em jogar as diversas formas de razão contra as estruturas da sociedade disciplinar: crítica à família, à escola, a própria razão, ao trabalho e ao capital, elementos que em geral constituíam (por força e violência) a verdade de maior força sempre a disputar e rivalizar com outras múltiplas. (Talvez até possamos chamar isso de hegemonia). Chamar de estrato Nietzchiniano contribuições do “freudo-marxismo”8 do século XX pode parecer um tanto estranho, mas na verdade são linhas que junto ao pensamento Foucaltiano compõe um estrato, tangenciando-se, ora se cruzando, ora por detalhes tomando rumos opostos. Fato é que compõem a espessura característica disso que denominamos estrato.

4 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs v.1. São Paulo: editora 34,2017a p. 25-50. 5 FOUCAULT, Michel. A História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2017. 6 FOUCAULT, Michel. Aulas sobre a Vontade de Saber. São Paulo:Martins Fontes, 2018, p. 3-29. 7 FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos X. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014b, p. 138. 8 FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 38

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Três estratos, pp. 322-328 De todo modo o abalo foi forte. Insurreições, rebeliões, greves, golpes, guerras: estratégias. Do marxismo, a crítica à ideologia (razão) e o agenciamento de coletividades a partir da consciência e posterior luta de classe, tomada do estado. Dos foucaultinos, nada. Sem preposições, mas sim análises históricas muito bem delimitadas. Numa das entrevistas, lembro como o autor via a sua obra não como politização dos temas abordados, mas como, ao abordar os temas, a política foi deles se avizinhando, os fagocitando. Igualmente, numa das poucas previsões futuristas do autor, com um que de jocosidade, disse que o século XXI seria deleuziano9, não se concretizou. Foucault não propunha modelos, esquemas, mas sempre insistentemente tratou das práticas de liberdade e morreu pensando se seriamos capazes de outras formas de existência. Vejam, estou o tempo todo naquela primeira questão: é possível um agenciamento de coletividades que não recorra a um princípio unificador? Até agora o que fiz foi pensar muito grosseiramente três formas de razão, ou melhor, duas. O primeiro estrato às portas de modernidade com o iluminismo como crítica; no segundo, uma sociedade industrial/disciplinar com as críticas marxistas e foucaultianas como crítica, críticas à razão, críticas à sociedade. O terceiro estrato é próprio à contemporaneidade. Primeiro falarei sobre a forma de razão, em seguida sobre as críticas e alternativas. A base do diagnóstico: Sloterdijk “Crítica da Razão Cínica”10, Foucault “A Coragem da Verdade”11 e Vladmir Safatle “Cinismo e Falência da Crítica”12 O título da obra de Safatle dá o tom do pensar. O que o autor propõe, no contexto que estou discutindo, é pensar o presente como se fosse nulo, como se nos anulássemos. Se pensarmos acompanhando os estratos, a indagação vem: após matarmos deus, abandonarmos a metafisica, a transcendência, compreendermos a inexistência da Verdade absoluta, de quebrarmos o primado do Eu e da consciência, de sabermos que somos explorados pelos detentores dos meios de produção, o que fazemos?13 É como se a verdade perdesse o seu potencial revolucionário. Não só pela consciência das formas de verdades plurais (e de fato hoje vivemos fortes disputas discursivas) e a impossibilidade

9 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: editora 34, 2013, p. 115. 10 SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 1 ed. Editora Estação Liberdade, 2012. 11 FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Martins Fontes, 2011. 12 SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. 13 Idem. p. 30-64.

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Três estratos, pp. 322-328 do uno, mas também porque já sabemos. Ao estudar os cínicos, Safatle revisita autores e o próprio movimento filosófico, questionando os limites da potência cínica. Tradicionalmente retratados pela figura de Diógenes, pela recusa às convenções sociais, pela crueza da verdade, ou pela parrésia num regime democrático (digamos, algo até um tanto Kantiniano, mas que também pode ser retomado nas idealizações democráticas de Arendt), os cínicos são apresentados idilicamente como representação da potência da verdade em romper, rasgar, ou noutros termos, de iluminar, de conscientizar, retirar da alienação ideológica. Porém, se Sloterdijk bem reconheceu a razão contemporânea como cínica, demonstrando como pode a palavra assumir hoje o significado tido correntemente como “dissimulação”14, Foucault também apontou a impossibilidade de pensar “dois” movimentos cínicos, um “originário” e puro enquanto outro deturpado.15 Assumir a razão contemporânea como cínica é dizer que já sabemos e não fazemos nada sobre. O movimento cínico, que num primeiro momento soa como alternativa pela sua relação com a verdade, contém também fundamentalmente uma relação de inoperosidade. Não produz, não propõe, apenas denuncia, não organiza. A razão cínica denuncia as convenções sociais, as contradições, mas e...? O terceiro estrato enfrenta esse problema. Acaso não sabíamos nós, brasileiros, das características de Bolsonaro? Acaso ele porventura mentiu em algum momento? Seu colega, Sérgio Moro, acaso desconhece as hipóteses de suspeição de um juiz? Acaso não atuava politicamente inclusive quando disse não ter interesse em atuar na política? Apenas a razão cínica é capaz de comportar esse paradoxo, esses dois sistemas de pensamento presentes em si, como representam bem aqueles que dizem “direitos humanos para humanos direitos”. Igualmente, nós sabemos. O estrato nitezchiano encontra seu limite: um trabalho inacabado, válido, mas que foi captado. Chamam isso de neoliberalismo. A liberdade que conquistamos é como no filme “A Vida de Trumman”, ou seja, nossos desejos só foram rearticulados, os limites expandidos, os sistemas de controle aperfeiçoados, não mais disciplinares

14 SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 1 ed. Editora Estação Liberdade, 2012, p. 317. 15 FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Martins Fontes, 2011, p. 175.

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Três estratos, pp. 322-328 (não só), vivemos a ilusão da liberdade e obrigação do gozo como imperativo que anula o gozo, autoexploração. Que alternativas temos? Ou melhor, dentro do estrato cínico, quais críticas temos e quais são as alternativas possíveis? Em geral temos três linhas, uma mais sociológica estrutural, tomando o racismo, gênero, classe, cárcere, ou melhor, como Angela Davis16 propõe: interação entre os elementos enquanto estruturais, interseccionalidade. Apesar de colocar classe como pertencente à linha estrutural, também podemos assumir por ela mesma toda uma linha alternativa, que igualmente pode se comunicar com a terceira partição. Classe como chave para outras formas de sociedade estatais, ou mesmo não estatais, nas ideias do “comum”. As ideias do comum ficam entre a segunda e terceira linha. Simbolicamente, as obras de Negri e Hardt1718 do início da última década foram marcos, principalmente porque tentam de alguma maneira estabelecer um diálogo entre os marxistas e os foucaultianos. Assim como Safatle, recebem as críticas do século XX e modificam suas teorias, levando principalmente em conta as contribuições do “pós-estruturalismo”, como vulgarmente é denominado. Vejam. Colocando nesses termos, é como se tivéssemos um significativo campo de críticas, de alternativas a atual forma de vida e maneira de viver. Embora disputem entre si certa hegemonia dentro do campo crítico, por que não estamos conseguindo fazer frente? Ao contrário, por que a modernidade tem se caracterizado por um refluxo ao século XX e ascensão novamente de movimentos fascistas? Conservadores? Isso nos faz pensar se não deveríamos voltar ao estrato nietzschiano. E inclusive é o que temos feito, enquanto esquerda. Tanto as linhas mais voltadas à perspectiva foucaultiana quanto à marxista. Temos insistido em estratégias e críticas que não pertencem ao atual sistema de razão, já são captadas por ele, o sistema funciona inclusive por e com esses elementos em conta. Isso porque esse estrato recorre a princípios unificadores como forma de agenciar coletividades. Sejam as estratégias estruturais, a de consciência de classe, ou predicados relativos à

16DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p.15 17 HARDT, Michael, Multidão. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. 18 HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

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Três estratos, pp. 322-328 liberdade individual de escolha (exemplificação da sociedade do controle 19Deleuziana em jogo), ou enfim, sob o rol de progressistas face aos conservadores. Há um tempo pensava junto a Spinoza: por que o ódio é afeto forte capaz de mobilizar o fascismo e o amor não? Sei que é indagação inocente. O ódio é princípio unificador porque permite organizar bem grupos contra outros, trabalha expandindo seu coletivo sob o julgo da diferença escolhida. Vejam, aqui estamos tratando de afetos e desejos. A questão fica: para responder ao conservadorismo e fascismo atual, que devemos propor? Críticas a essas instituições e a ideia de razão? Estabelecer valores éticos? Isso já foi feito. O problema fica em como pensar o agenciamento de coletividades sem recorrer a princípios unificadores, sejam eles morais, éticos, racionais, (primeiro estrato) ou também estruturais, seja pelas pautas escolhidas ou por sua organização em instituições e grupos. Talvez esse seja por fim o ponto. Toda mudança só vem de uma organização coletiva, mas como organizar alguma coletividade sem recorrer a um princípio? Porque esse princípio funcionaria como uma espécie de moral ou até mesmo lei, o que rejeito. Ao mesmo tempo, as liberdades pensadas assim, nessa radicalidade, são até então incapazes de nos organizar e incapazes de promover qualquer mudança.

REFERÊNCIAS: DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: editora 34, 2013. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs v.1. São Paulo: editora 34, 2017a. _____, Mil Platôs v.5. São Paulo: editora 34,2017b. FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. _____, A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Martins Fontes, 2011. _____, Governo dos vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014a. _____, Ditos e Escritos X. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014b.

19 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: editora 34, 2013, p. 223.

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Três estratos, pp. 322-328 _____, A História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2017. _____, Aulas sobre a Vontade de Saber. São Paulo: Martins Fontes, 2018. HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. _____, Multidão. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 1 ed. Editora Estação Liberdade, 2012.

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A crise no sistema educacional público brasileiro: relato de experiência, pp. 329-332

A CRISE NO SISTEMA EDUCACIONAL PÚBLICO BRASILEIRO: RELATO DE EXPERIÊNCIA Marcelo Queiroz Oliveira Júnior1

Nos últimos dias ouvi muito a frase “a pandemia causou uma crise na educação pública brasileira”. De início concordei com a afirmação, porém hoje, refletindo um pouco mais sobre o assunto, reformulo a frase. Podemos dizer que a pandemia agravou a crise na educação pública brasileira. É notório que o nosso sistema educacional vem sofrendo uma crise há bastante tempo. Entre os anos de 2013 e 2014, estagiei na Secretaria Municipal de Educação de Jequié (SME). Desde essa época ouvia constantemente que a educação passa por uma crise. Recordo-me que, no fim do ano de 2017, quando resolvi trancar o curso de Direito com o intuito de migrar para Letras Vernáculas, recebi diversas críticas disfarçadas de conselhos, inclusive de amigos e conhecidos da área da educação. Falavam “Você vai se arrepender, a educação está em crise”. Mas afinal, que crise é essa da qual todos falam?

1 Marcelo Queiroz Oliveira Júnior, graduando em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB/Campus

Jequié – Bahia/Brasil. Departamento de Ciências Humanas e Letras – DCHL. Idealizador do Projeto Social Semear e do Simpósio A invisibilidade do Trabalho Infantil na Contemporaneidade - Com ênfase em Jequié e co-idealizador da Biblioteca Comunitária Semear. Integrante do Grupo de Estudo Direito e Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). ² Cidade localizada no sudoeste da Bahia/Brasil, na zona limítrofe entre a caatinga e a zona da mata, com população estimada em 155 966 habitantes, de acordo dados coletados em 2019.

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A crise no sistema educacional público brasileiro: relato de experiência, pp. 329-332 No fim de abril de 2018, atuei como professor estagiário em uma escola localizada em um bairro periférico de Jequié². Estava ansioso, amedrontado, mas ao mesmo tempo, muito feliz. Contudo, para minha surpresa, na primeira semana essa felicidade diminuiu significativamente e a ansiedade e o medo aumentaram assustadoramente. Me senti acuado diante daquela realidade, a qual até o momento tinha apenas ouvido falar. Meu primeiro choque ocorreu quando ouvi da gestora, “Professor, temos cota de impressão e xerox”. Em seguida, me apavorei ao perceber que dos 40 alunos da classe, 10 não eram alfabetizados, 20 não eram letrados e 10 eram alfabetizados e letrados e precisavam avançar. Posteriormente, vi os alunos durante uma semana indo embora antes do horário porque não havia merenda na escola. Sem contar no desafio que foi ganhar a confiança dos discentes e criar um ambiente propício para o ensino-aprendizagem. Na sala dos professores, ouvia diariamente as lamentações sobre a desvalorização da classe e a falta de investimento do governo nas escolas públicas. No fim do mês, o valor da bolsa auxílio não foi paga, mas não foi apenas os estagiários que não receberam, o pessoal dos serviços gerais também. Entretanto, apesar de toda dificuldade encontrada, segui perdendo noites de sono preparando as aulas, mesmo correndo o risco de não poder executá-las, pois como não estava tendo merenda na escola, os discentes precisavam ir embora mais cedo. Segui estudando maneiras para conseguir lidar com a heterogeneidade da sala, pesquisando atividades lúdicas, na tentativa de conseguir atrair a atenção dos alunos. Continuei tendo que pagar o transporte com meu dinheiro para ir à escola, pois meu auxílio não era pago. Segui imprimindo e xerocando materiais para trabalhar com os alunos com meu dinheiro, na maioria das vezes, uma vez que minha cota na instituição tinha finalizado. No fim de semana tentava me recompor, pois, na segunda-feira, começaria tudo novamente. Quando finalizei esse estágio, surgiu a oportunidade de substituir uma amiga em outra escola no mesmo bairro. Lecionaria agora para a modalidade de Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Na caderneta, constavam 30 alunos, mas apenas 10 frequentavam as aulas. Pessoas mais velhas que eu, retornavam à escola devido às exigências do mercado de trabalho. No meu primeiro dia, mais uma vez ouvi, “Professor, temos cota de impressão e xerox”. Percebi novamente a heterogeneidade da turma. Presenciava os alunos indo embora mais cedo, porém o motivo não era a falta de merenda, mas sim o cansaço advindo do trabalho durante o dia. Novamente perdi noites estudando, procurando meios para atrelar o conhecimento científico com o saber popular (cotidiano), na tentativa de atraí-los. Mas algo tinha mudado, eu não ouvia mais os professores reclamando, pois

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A crise no sistema educacional público brasileiro: relato de experiência, pp. 329-332 faltava professor. Mediante a todos esses fatores, agora tínhamos um terrível agravante, o alto índice de evasão dos discentes. Em ambas as instituições, havia um fenômeno que me incomodava muito, a normatização dos problemas enfrentados. Não haver merenda na escola, lamentavelmente, é corriqueiro. Não ter papel ofício e toner nas impressoras, se tornou natural. A falta de valorização aos professores é um problema antigo. No fim do mês, não receber o pagamento não acontece apenas com os estagiários, mas também com o pessoal dos serviços gerais, que apesar de não receber tem que continuar no emprego pois não há novas oportunidades no mercado de trabalho. As pessoas que lidam diretamente com a educação sabem que esse sistema apresenta uma crise há bastante tempo. A pandemia, sem dúvida alguma, agravou a situação, mas não a criou. Nos últimos anos, essas dificuldades aumentaram. A educação pública passou a enfrentar graves ataques. Acredito que todos devem se lembrar do tenebroso projeto Escola Sem Partido, uma tentativa de amordaçar os professores. Nas eleições presidenciais de 2018, o atual Presidente da República, em seu plano de governo, informava que desejava modernizar a educação, para tanto, pretendia expurgar a ideologia de Paulo Freire, utilizada atualmente; alterar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e acabar com a aprovação automática e disciplinar dos alunos na sala de aula. Por fim, num momento de instabilidade política e econômica, o Conselho Nacional de Educação (CNE), decide, em virtude da suspensão das aulas devido à pandemia causada pelo novo convid-19, e consequentemente, da necessidade do distanciamento social, aprovar um texto considerando como dias letivos as aulas online. Vale ressaltar que, essa decisão reforça a desigualdade social de privilégios, excluindo um grupo de indivíduos do acesso à educação, acesso esse instituído na Constituição Federal de 1988, podendo inclusive causar futuras possíveis desistências e oferecer, ainda para aqueles que têm acesso livre a internet, uma educação de pouca qualidade, uma vez que os professores precisarão de tempo para se capacitarem e se adaptarem ao mundo virtual (assunto que abordei em um texto anterior, publicado na Revista Direito, Estado e Sociedade, intitulado Educação Básica Brasileira em época de Covid-19: aulas EaD). Todos esses problemas na educação contribuem para a formação de pessoas robotizadas e passam por falsas transformações que ocultam uma continuidade de engrenagens de poder, as quais se perpetuam desde a formação do país enquanto nação. É introduzido na população, inclusive por muitos educadores, uma crença que apenas o seu interesse deve ser o primordial para que seus objetivos, metas e satisfação enquanto cidadão sejam supridos. Diante disso, ocorre a cegueira geral Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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A crise no sistema educacional público brasileiro: relato de experiência, pp. 329-332 de que o bem-estar e a empatia pelo outro é desnecessário. De acordo com Guilherme Lima, em uma publicação feita na Revista Prosa Verso e Arte, intitulada Deseducar para controlar: a ignorantização como projeto de poder, “todos têm o mínimo de suas necessidades de vida, consumo, lazer, segurança, saúde e educação, a existência da sociedade e seu desenvolvimento atinge todas as expectativas e estabilidade para que aqueles pertencentes a ela se sintam aplacados e satisfeitos em sua condição existencial”. Todavia, afirmo que, a falta de solução para os problemas apresentados no setor educacional, é estratégico. Conforme dito por Freire (1986), “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica’. Os governantes buscam ferramentas para manter as penúrias sociais, sucatear a educação é uma maneira de alcançar essa meta. Cada vez mais dou razão a Darcy Ribeiro “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”.

REFERÊNCIAS: LIMA, Guilherme. Deseducar para controlar: a ignorantização como projeto de poder. Revista Prosa Verso e Arte, 2020. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/deseducarpara-controlar-a-ignorantizacao-como-projeto-depoder/?fbclid=IwAR1EoTdRQ3C1beQRU0oOeTCpuIcJLXS_jD2kxf6EgHKbHudWZ1JGDXbqBv0. Acesso em: 20/05/2020. FREIRE, P. (1998). Pedagogia do Oprimido. 25 ª ed. (1ª edición: 1970). Rio de Janeiro:Paz e Terra. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1986. OLIVEIRA JÚNIOR, Marcelo Queiroz. Educação Básica Brasileira em Época de Covid-19: aulas EaD. Revista Direito, Estado e Sociedade. Disponível em: https://medium.com/@revistadireitopuc/educa%C3%A7%C3%A3o-b%C3%A1sica-brasileira-em%C3%A9poca-de-covid-19-aulas-ead-8002e196cbce. Acesso em: 19/05/2020.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341

MONTECCHIOS E CAPULETOS DIALÉTICA NEGATIVA E FILOSOFIA DA DIFERENÇA Thiago Mota1

I.

Dialética da diferença, diferença da dialética

– Dividir, mesclar. Mesclar, dividir. – Quem veio primeiro? – Nem a galinha, nem o ovo. O número um é o dois. E o três também é o dois. O segundo vem primeiro. E o terceiro não há de chegar senão também como segundo. – Mas o dois diz: dia-lética! – Como é o possível que os diferentes se atraiam? – Para que os diferentes se atraiam é preciso que esses diferentes, por mais diferentes que possam ser, se igualem em algum ponto e precisamente naquele ponto que mais importa, o que possibilita que, apesar

1 Professor do curso de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail: thmotafs@gmail.com.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 de diferentes, continuem a se atrair. Ou seja, existe uma igualdade mais profunda do que toda diferença pode ser, sem a qual nada atrair-se-ia... – Efetivamente não é esse o caso. – ... logo, algo se atrai: este é o caso, como mostra o princípio científico de que os opostos se atraem, o que condiz com o espírito democrático do nosso tempo... – Aí, somos nós que já não nos “atraímos”. – O que não precisa implicar que nos "traímos". – Mas nos “distraímos”. – Precisamos desmoralizar, de saída, a coisa. – A coisa toda não precisa ser uma redenção. – Não é preciso que ninguém se renda. – A questão não é essa, mas: como é possível que os iguais não se “distraiam”, por mais idênticos que “no fundo” possam ser? Profundidade maior da diferença, portanto, sem a qual nada “distrair-se-ia”. – Embora não seja propriamente essa coisa de “fundo” o que importa. – Que se deixe cada um com o seu, ora! – As coisas, a realidade se distrai, ou mais propriamente, difere, em vez de se identificar. É disso o que o democratismo que impregna a ciência e todo o resto do nosso tempo quer nos impedir de ver. – ... – Quanto às prerrogativas argumentativas da ciência, há que se admitir que uma das mais promíscuas das nossas “igualdades” ou, o que é o mesmo, umas das mais identitárias das nossas “diferenças”, é precisamente aquela entre democratismo e cientificismo. – Quer dizer, a ideia segundo a qual a ciência é, por “excelência”, e até mesmo exclusivamente, quem pode fornecer-nos os princípios, ou as premissas, a partir das quais devemos pensar? – Essa vulgata erudita mesma. Não obstante, a ciência pode nos ser muito útil, desde que utilizada como aquilo que ela é, uma ferramenta, algo que opera necessariamente depois dos “princípios”, com base em premissas que não, a ciência não extrai dela mesma. – Inconsciência da ciência. – É que aqui, neste estrato, que não é o primeiro nem o último, a ciência não pode cantar de galo. – Nem eu acho que ninguém.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 – Aqui neste plano, as coisas devem ser deixadas mais livres, mais livres que “o possível” e, portanto, propriamente possíveis. – E, sobre o tudo ou sobre o nada, democráticas também.

II.

Montecchios e Capuletos

– Essa é sempre a ‘primeira impressão’, isto é, precisamente aquela que não podemos deixar que ‘fique’. A questão é: teria Hegel, depois de tudo, tantos mundos e fundos, sístoles e diástoles, ondas peristálticas e intercalações esfincterianas, (‘psiché’)análises e (‘socius’)sínteses, ficado com a ‘primeira impressão’? – Pois é, não teríamos direito a uma ‘segunda opinião’? – Pouco importa aquilo com que Hegel ficou ou deixou de ficar. A nós nos importam os milhões de mundos e fundos, os bilhões de divisões e mesclagens, os zilhões de números dois, de mediações, de meios, de dobras, de duplicações, de bifurcações, de ‘deturpações’, de ‘subversões’, de ‘perversões’, que a dialética, de maneira incontornavelmente rudimentar, teve a coragem de, se não mapear, no mínimo, pronunciar. – Com Hegel e antes dele. – Com Platão e depois dele. – Com Zizek... – O dialeto dialético é, com efeito, mais do que um sotaque, embora não deixe de ser um ‘acento’. – O problema é que Hegel... – “Il est débile”. – É ele quem melhor encarna isso mesmo. – ... a certa altura da vida e da obra... – Aliás, talvez mais ainda do que ele... – Não sejamos condescendentes! A culpa é dele mesmo. – Enfim, todo o hegelianismo que se produziu a partir dele na história do pensamento ocidental, escolheram como ‘inimigo’ precisamente aquilo que mais ‘amaram’, isto é, a ‘diferença’. – Um amor enrustido, embargado, daquele tipo platônico, que nunca passa ao ato.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 – A ejaculação precoce como forma de evitar o ‘ato. – Um nó na garganta, um choro engolido. – Uma criança! – Sim, menino Georg ainda era menino quando terminou a Enciclopédia. – Talvez fosse também menina. – Ou nenhum dos dois. – Esse amor infantil, toda essa paixão visceral, todo esse pathos do movimento, essa tara pela ‘diferença’, acabaram e acabarão sempre matando... – Sempre matam. – ... o menino Georg, tão presente entre nós na forma do velho, caduco, ultrapassado, antiquíssimo Hegel. – Esse amor perverso, melancólico, não mata apenas a si mesmo, mas a toda e qualquer ‘diferença’. – Suicida, ultrarromântico, encharcado do “mal do século”. – Romeu exige de sua Julieta que ambos se matem... – Ao som de Les amants d’un jour. – Com Piaf, é claro. – ... para que, enfim, sejam só ‘um’, apesar de todos e de tudo, apesar do mundo e dos mundos, Montecchios e Capuletos. – Um amor de um só fundo, que também é obviamente um falo, mas que não é capaz de penetrar nem de ser penetrado, pois já não se move mais. – Tudo já correspondeu. – A diferença foi pacificada, docilizada, disciplinada, governamentalizada, capitalizada, foi identificada. – Quietude infinita em que ‘já não há diferença’. – ... – E por que ainda se meter aí, então? – Porque, mais ainda do que Aristóteles... – Que foi quem nos transmitiu a todos a compulsão maníaca de fazer listas.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 – De fato, não passamos disso: uns ‘fazedores de listas’. – ... foi Hegel que... – Depois de ter perseguido mais do que obsessivamente, paranoicamente, seu odiado amante, do qual fabricou inúmeros fantasmas. – Multiplicando suas máscaras reais. – É claro. – É claro. – Foi Hegel que nos deu coordenadas espantosa e maravilhosamente detalhadas de todos os pontos de síntese... – Todos os nós que precisam ser desbloqueados. – Todas as linhas duras às quais se trata agora de secar, de vazar, de atravessar mantendo intactas. – Só para depois voltar e furar de outra maneira. – Deixar-se pegar, só para depois ‘fugir diferente’. – Hegel nos oferece em imensa quantidade, em um número realmente gigantesco de ocasiões, a oportunidade de subtrair o princípio da relação. – Apesar de... – E por causa de... – ... ser precisamente isso o que ele busca. – E nós, cegos, vamos atrás. – Sem querer, ele instiga a remover o um do dois, a ‘redividir’ a ‘mesclagem’ para pensar a “mistura”, a imundice mesma. – Fazer a escrita “voltar” à pragmática de dia de semana. – Fórmula: “escrever a n-1”. – Como diria Wittgenstein. – Exato. – O que menos importa em Hegel não é aquilo que ele mais amava, mas aquilo que mais o impedia de amar aquilo que ele realmente amava: é o um. – E é disso que, querendo ou não, ‘no frigir dos ovos’, ele menos fala.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 – Felizmente.

III.

Parmênides, Heráclito e uma multidão de párias mestiços

– ... – Então, sejamos simples: somos todos filhos de Parmênides ou de Heráclito? – Por certo. – Desde que aquilo que os gregos depois chamaram de filosofia foi inventado. – És filho de Parmênides ou de Heráclito? – Tenho extrema dificuldade em perceber quais seriam “os puros”. – Como a maioria dos outros, sou um pária mestiço que tentou matar o pai e foder com a mãe... – ... querendo se tornar Deus dizendo que Deus morreu. – Com que direito a filosofia pode achar que pensa a totalidade? – O pensamento que não pensa a totalidade é aquele que exclui de si algo como externo, diferente de si, não totalizável, fragmentado. Para que algo seja realmente externo ao pensamento, realmente diferente do pensamento, não pode ser o pensamento quem decidirá o que é externo a ele. O pensamento não pode saber ou pensar que este algo externo é externo, nem sequer que ele seja. – Se a filosofia da diferença afirma algo radicalmente diferente do pensamento, ela tem de ser uma filosofia da totalidade e não da diferença. Não faz sentido, portanto, falar em filosofia ou pensamento da diferença, uma vez que esta é justamente o que difere do pensado. A afirmação da diferença, acima de toda filosofia, não pressupõe uma filosofia da diferença, mas da totalidade, que aponte, em negativo, para aquilo que é a diferença, por meio de uma explicação precisa da totalidade do pensamento e do pensado. Não precisamos de uma ontologia da (totalidade da) diferença, mas de uma ontologia negativa (da totalidade). – Não tem outro jeito, só vamos aprender isso com a teologia medieval.

IV.

Totalidade e diferença

Monadológica, a filosofia da diferença quer ver no fragmento aquilo que ela não consegue ver no todo. Assim, em lugar de ver no fragmento um todo-parte que compõe outros todos-partes até chegar ao todo-

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 todo, a filosofia da diferença, na expectativa de ver a parte-sem-todo, o fragmento puro, a pura diferença, não chega a ver nada. Antes que qualquer visão seja possível, a parte-sem-todo já se repartiu outra vez, já se refragmentou, e a filosofia da diferença só viu, de relance, aquele fogo fátuo, o vulto, o fantasma de uma totalidade da qual sempre fugiu. Antes de ver, uma filosofia da diferença foge. A simetria entre a totalidade e a diferença é mera aparência, seus conteúdos não são intercambiáveis. Multiplicações de todos-partes levam sempre a algo. Espera-se que multiplicações repetidas sucessivamente, no limite, de todos-parte levem à totalidade. A divisão sucessiva de partes-sem-todo, por outro lado, não pode levar a nada, ou antes, só leva a nada. A divisão composta de partes-sem-todo não leva à diferença, mas ao nada. Pode-se supor que a distinção entre totalidade e diferença seja equivalente à distinção entre ser e nada. Ora, esse não é o caso, pois não se pode trocar o ser pelo nada como se troca uma coisa por outra. Se alguém troca uma coisa por outra, posteriormente poderá trocar esta segunda coisa por uma terceira. Porém, se alguém troca tudo por nada, posteriormente não poderá trocar mais o nada por outra coisa, ou só poderá trocar o nada por nada. Pelo nada, nada se troca. Não se pode trocar nada por nada. Pelo tudo, tudo se troca, até mesmo o nada. Eis aí a assimetria entre o ser e o nada, entre o todo e a diferença. Querer crer que o nada pode ser trocado pelo tudo significa niilismo. Todavia, só o niilista crê ou cria isso – o nada. A filosofia da diferença quer superar o niilismo, quer ir além da negação, quer ver na negação do tudo, na destruição da metafísica, na desconstrução do discurso acerca da totalidade, a afirmação da diferença. Porém, a mera afirmação da diferença é, última instância, niilista. É uma afirmação do nada, uma afirmação pura que se reverte em uma negação pura. No entanto, a afirmação da totalidade, que pressupõe a negação da diferença, concebida, todavia, como negação da totalidade, possibilita que a afirmação da totalidade negada, a negação da totalidade, seja, ao mesmo tempo, a possibilidade da erupção da diferença. Se de fato conseguirmos negar a totalidade, o que teremos feito não será a negação da totalidade – felizmente não somos capazes disso (ou será que somos: não seria a bomba atômica uma invenção pós-hermenêutica, isto é, a possibilidade concreta de acionar erupção do nada?) – mas a liberação do terreno necessário à emergência da diferença, isto é, de algo diferente de toda aquela totalidade finalmente negada. A filosofia da totalidade é o estudo das condições de possibilidade da diferença. A investigação das condições de possibilidade da diferença, isto é, a reconstrução teórica e prática da totalidade só será possibilitação e gênese efetiva da diferença quando a perspectiva da totalidade for levada até as últimas consequências, por meio de um experimento de ampliação perspectivista. Só é possível dizer onde se encontram os limites quando se vai até eles – e além deles.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 V. Até que falhe

Portanto, é preciso levar a perspectiva da totalidade até o seu mais absoluto delírio totalizante porque é exatamente lá que essa ela falha – totalmente. É preciso delinear a borda e tornar-se capaz de brincar à beira do abismo, pois é lá que a perspectiva da totalidade vacila, é lá que está a sua falta e, portanto, seu negativo absoluto, a diferença. À totalidade, sim, mas em nome da diferença! Essa possibilitação não pode, no entanto, concretizar-se sem uma estratégia de torsão da força do falso, de emprego dos sintomas ou de uso das resistências. Em primeiro lugar, é preciso crer na possibilidade real da totalidade, é preciso estar firmemente convencido de que a realidade é possível e de que foi exposta, pois é só aí que ela se nega. O começo da negação da totalidade não está na mera negação da totalidade: esta é apenas a negação do começo da totalidade. A totalidade só pode ser negada no seu todo se for, em primeiro lugar, afirmada radicalmente, ou seja, com força, convicção, fé e esperança. A afirmação primeira não pode ser cínica. Do contrário, o que será negado no segundo momento não será a totalidade, mas o mais puro cinismo ou uma totalidade cínica. Em primeiro lugar, é preciso ser filósofo, ter fé no todo, acreditar na totalidade, exatamente, porque e para que essa crença falhe. É preciso que essa crença na totalidade seja bem sucedida para que ela fracasse, pois seu fracasso é seu sucesso. Desde Sócrates, é preciso ser filósofo não porque a filosofia está certa, mas porque ela está errada. É preciso errar erros totais, toda uma errância ontológica, deriva total, fuga metafísica. É preciso, em primeiro lugar, que se creia erraticamente na totalidade. Todas essas condições vêm em primeiro lugar porque são impostas de imediato pela diferença. São múltiplas, mas todas elas remetem a uma condição geral, qual seja, a da totalidade. Portanto, não se deve excluir nada dessa perspectiva, ou o que é o mesmo, essa perspectiva não pode excluir nada de seu alcance. Não se confundir acerca disso: a afirmação da diferença enquanto exclusão da totalidade não é mera afirmação daquilo que é diferente, mas uma consideração que permite que se exclua daquilo que é diferente o que não é diferente. A simples afirmação da diferença – e quanto mais simples for mais o fará – engendra um sistema de exclusão. Ao invés disso, é preciso, em primeiro lugar, que não haja exclusão, mas inclusão de toda diferença, senão perde-se de vista a totalidade em sua complexidade e, mais do que isso, comete-se um “pecado”. Sabe-se perfeitamente que uma perspectiva universal é impossível, que a inclusão total, o comunismo e o amor são impossíveis, mas exatamente por isso é preciso crer na possibilidade da totalidade. Pois não cabe a nenhuma perspectiva decidir o que se inclui e o que se exclui, quem entra e quem sai, quem está salvo e quem vai para o abate. Embora se sabia que é impossível, precisamos de uma perspectiva que creia que é possível para todos – uma perspectiva da totalidade que é finalmente negada pela diferença.

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Montecchios e Capuletos, pp. 333-341 A decisão entre aquilo que será levado em consideração por esse pensamento da totalidade elaborado na forma de filosofia e o que será descartado não pode pertencer ao pensamento nem a uma filosofia. Do contrário, o que se tem não é filosofia nem pensamento, mas epistemicídio e ontogenocídio. A decisão sobre aquilo que é excluído por ser diferente do pensamento, a fragmentação, não é feita pelo pensamento mas por algo imponderável e externo ao pensamento, por algo impensável porque diferente do pensamento. Para não ser fascista, para não abrir a porta para o totalitarismo, a eliminação total da diferença, o pensamento tem de estar convencido de que é pensamento da totalidade. É quando está de posse total dessa convicção que esse pensamento se engana e que ocorre a diferença, isto é, o evento impensado que com seu impacto fragmenta a totalidade pensada, obrigando-a a se reordenar e a se re-totalizar, até a eclosão de um novo acontecimento. A filosofia não é a ciência do Absoluto, mas a falha absoluta da ciência ou, o que é o mesmo, ela é a falha do Absoluto, é ali onde o Absoluto falha. Por outro lado, a filosofia não é da diferença. A diferença é que é a falha da filosofia. Em outras palavras, ela se funda em um engano básico, um erro vital: precisa se fantasiar a si mesma até o fim como pensamento da totalidade para descobrir que era desde o começo apenas um fragmento, demasiado fragmento. Erro básico, engano vital, mentira fundante: “Vá com Deus!” Crença, fé, esperança, força. Um placebo, uma poção mágica: “qualquer coisa que me dê alegria”. Uma ilusão do todo, sem a qual nenhuma diferença é possível. Se é justo mentir por amor à humanidade? Ora, é falso dizer que a totalidade existe, mas essa falsidade é o que possibilita que tudo exista. Trata-se de uma ficção vital, um delírio de absoluto, infinito, o ponto onde verdade e mentira se engolem mutuamente. Só aí a afirmação da totalidade é emergência imediata da diferença.

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ENSAIO FOTOGRÁFICO


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GEOPERCEPÇÕES DO OLHAR: O SER E O ESPAÇO EM INTERFUSÃO Tatiana Prevedello1

O presente ensaio, produto do projeto “olhares, lugares: paisagem e cultura em imagem”, o qual se caracteriza como um work in progress, objetiva refletir sobre a relação da terra e do homem, com a geografia, a história e os seus desdobramentos culturais. Ao se compreender a integração do ser com a paisagem na condição de produto de uma determinada sociedade e seu contexto, é essencial entender as leituras, percepções e significados que podem ser construídos a partir da fotografia. Pensar como a fotografia, na era digital, implica em reproduzir os parâmetros conceituais referentes à arte e experiência, descritos por Benjamin em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica2, mostra como a revolução tecnológica alterou a função da arte e da cultura, a partir do início do século XX. A fotografia, de modo geral, e a artística, em específico, passa de uma transição da reprodutibilidade técnica para a digitalização e, dessa forma, acelera a maneira como a mesma chega ao público por intermédio do compartilhamento on-line, o que afasta a sua distância do conceito de arte.

1 Doutora em Letras - Estudos de Literatura - pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vínculo profissional: Professora EBTT - CMPA, na rede federal de ensino. E-mail: t_prevedello@hotmail.com 2 BENJAMIN, W. (1994). Pequena história da fotografia. In:______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353 A imagem no contexto da hipercontemporaneidade, em consonância com Lipovetsky (2007)3, cria uma relação de consumo, uma vez que a fotografia se transformou, inicialmente com o trabalho de marketing produzido pela mídia tradicional e, na atualidade, pelo suporte tecnológico que intermedia o serviço das redes sociais. Apesar da proeminência desses fatores na sociedade contemporânea, as razões que instigaram o desenvolvimento deste projeto consistiram em estimular a compreensão de que a fotografia integra uma narrativa de experiência espacial, ao construir um texto imagético que apresenta o enquadramento do olhar sobre uma determinada perspectiva, a qual atribui ênfase a elementos específicos, como o indivíduo em sua relação com o espaço geográfico, neste recorte em particular. As imagens que compõem o presente ensaio foram produzidas, ao longo dos últimos anos, em várias regiões do país e, buscam, sobretudo, capturar a interação natural de indivíduos das mais diferentes culturas e etnias, de forma espontânea com o espaço ao qual pertencem, ou estão integrados, no momento em que o registro imagético foi procedido. Compreender que o processo de produção e interpretação fotográfica está permeado pela geografia, história, cultura e pode vir a construir-se como uma representação artística, possibilita que sejam estabelecidas relações entre o sujeito que produz as imagens fotográficas e suas experiências a respeito da representação geográfica onde o ser e o espaço estão em interfusão.

3 LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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Afluir Ilha do Marajó - PA (2015)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

Ritos Manaus – AM (2018)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

Permanência Porto Seguro – BA (2018)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

Antes da travessia Manaus – AM (2018)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

Malabarismo entre palmeiras de açaí Belém – PA (2015)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

Tabaco em beneficiamento Caiçara – RS (2020)

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Sob à castanheira Belém – PA (2015)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

EmoldurARTE Arraial d’Ajuda (2019)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

Ser-tão Brejo da Madre de Deus - PE (2017)

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Geopercepções do olhar: o ser e o espaço em interfusão, pp. 342-353

Místico Salvador – BA (2018)

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TRADUÇÕES


O século e o perdão, pp. 355-388

O SÉCULO E O PERDÃO1 Jacques Derrida. Tradução de Robson Breno Dourado de Araújo2

O perdão e o arrependimento estão, há três anos, no centro do seminário3 de Jacques Derrida, na École des hautes études en sciences sociales. O que é o conceito de perdão? De onde vem? Impõe-se a todos e a todas as culturas? Pode ser usado na ordem do jurídico? Do político? E sob que condições? Mas então quem o concede? E para quem? E em nome de quê, de quem?

O mundo dos debates: Seu seminário trata da questão do perdão. Até onde podemos perdoar? E o perdão pode ser coletivo, isto é, político e histórico? Jacques Derrida: Em princípio, não há limite para o perdão, nem medida, nem moderação, nem “até onde?”. Desde que, é claro, haja acordo sobre algum significado “apropriado” dessa palavra. No entanto, o que chamamos “perdão”? Quem é que pede um perdão? Quem pede, quem apela ao perdão? É tão difícil medir o perdão quanto medir essas questões. Por várias razões que me apresso em localizar. l - Em primeiro lugar, porque mantemos o equívoco, especialmente nos debates políticos que reativam e deslocam hoje essa noção, em todo o mundo. O perdão é frequentemente confundido, 1 Entrevista concedida por Jacques Derrida a Michel Wieviorka, publicada com o mesmo título inicialmente no número 9 de Le Monde des débats (dezembro de 1999). Em 2001 aparece republicada em Foi et Savoir pela Édition du Seuil. A tradução aqui realizada toma a primeira edição do texto em Le monde des débats. 2 Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. E-mail: robson.araujo@aluno.uece.br. 3 O tema do perdão que aí referencia um dos seminários de Derrida na EHESS está inserido em um longo processo de ensino sob o título geral de “Questions de responsabilité”, cuja extensão percorre ininterruptamente os anos de 1991 à 2003. Na altura dessa entrevista, 1999, o tema específico dos seminários sobre a responsabilidade gira em torno do perdão e do perjúrio. Trata-se, então, do último ano dedicado ao tema do perdão que já se desdobrava desde 1997. Em 2019, sob o estabelecimento de Ginette Michaud e Nicholas Cotton, os textos escritos por Derrida, que compunham esses seminários quanto ao tema do perdão no ano acadêmico de 1997-1998, foram publicados pela Éditions du Seuil. cf. Notes des éditeurs, in: DERRIDA, Jacques. Le parjure et le pardon Vol. 1. Paris: Éditions du Seuil, 2019.

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O século e o perdão, pp. 355-388 às vezes de forma calculada, com temas relacionados: desculpa, arrependimento, anistia, prescrição etc., tantas significações, algumas das quais abrangidas pelo direito, por um direito penal ao qual o perdão deveria, em princípio, permanecer heterogêneo e irredutível. 2 - Por mais enigmático que o conceito de perdão permaneça, verifica-se que a cena, a figura, a linguagem que estamos tentando ajustar a ele pertencem a uma herança religiosa (digamos, abraâmica, para aí reunir judaísmo, cristianismo e islamismo). Essa tradição – complexa e diferenciada, até conflituosa – é singular e, ao mesmo tempo, está em vias de universalização, através do que certo teatro do perdão implementa ou traz à luz. 3 - Consequentemente – e este é um dos eixos norteadores do meu seminário sobre perdão (e o perjúrio) –, a própria dimensão do perdão tende a desaparecer durante essa mundialização e, com toda a medida, qualquer limite conceitual. Em todas as cenas de arrependimento, confissão, perdão ou desculpas que se multiplicaram no cenário geopolítico desde a última guerra e de forma acelerada por alguns anos, vemos não apenas indivíduos, mas comunidades inteiras, corporações profissionais, representantes de hierarquias eclesiásticas, soberanos e chefes de Estado pedirem “perdão”. Fazem-no em uma língua abraâmica que não é (no caso do Japão ou da Coreia, por exemplo) a religião dominante de sua sociedade, mas que já se tornou o idioma universal do direito, da política, da economia ou da diplomacia: o agente e o sintoma dessa internacionalização de uma só vez. A proliferação dessas cenas de arrependimento e de “perdão” demandado, sem dúvida, significa uma urgência universal da memória: é preciso voltar-se para o passado; e esse ato de memória, de autoacusação, de “contrição”, de comparecência, deve ser levado, ao mesmo tempo, para além da instância jurídica e do Estado-nação. Por isso, perguntamo-nos o que acontece nessa escala. As pistas são numerosas. Uma dentre elas conduz regularmente a uma série de eventos extraordinários, aqueles que, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, tornaram possível, em todo caso “autorizado”, com o Tribunal de Nuremberg, a instituição internacional de um conceito jurídico como o de “crime contra a humanidade”. Houve aí um evento “performativo” em uma escala ainda difícil de interpretar. Ainda que palavras como “crime contra a humanidade” agora sejam usadas na linguagem cotidiana. Este evento foi produzido e autorizado por uma comunidade internacional em uma data e de acordo com uma figura determinada em sua história. Evento que está entrelaçado, mas não deve ser confundido com a história de uma reafirmação dos direitos humanos, de uma nova Declaração dos Direitos Humanos. Esse tipo de mutação estruturou o espaço teatral no qual o grande perdão, a grande cena de arrependimento que nos ocupa, se desenrola – sinceramente ou não. Muitas vezes, tem os traços, em sua própria teatralidade, de uma grande convulsão – ousaríamos dizer uma compulsão frenética? Não, também responde, felizmente, a um “bom” movimento. Mas o simulacro, o ritual automático, a hipocrisia, o cálculo ou a bufonaria costumam fazer parte disso, e se convidam como parasitas para essa cerimônia de culpa. Eis aqui toda a humanidade abalada por um movimento que se gostaria unânime, eis aqui um gênero humano que fingiria acusar-se repentinamente, publicamente e espetacularmente, de todos os crimes realmente cometidos por si mesma contra si mesma “contra a humanidade”. Porque se começássemos a nos acusar, pedindo perdão, de todos os crimes do passado contra a humanidade, não haveria mais

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O século e o perdão, pp. 355-388 inocentes sobre a Terra – e, portanto, ninguém na posição de juiz ou árbitro. Todos somos herdeiros, pelo menos, de pessoas ou eventos marcados, de maneira essencial, interior e indelével, por crimes contra a humanidade. Às vezes, esses eventos, esses assassinatos massivos, organizados e cruéis, que podem ter sido revoluções, grandes Revoluções canônicas e “legítimas”, foram os mesmos que permitiram o surgimento de conceitos como os de direitos humanos ou de crime contra a humanidade. Vemos nisso um imenso progresso, uma mutação histórica ou um conceito ainda obscuro em seus limites, frágil em seus fundamentos (e podemos fazer as duas coisas ao mesmo tempo – eu preferiria, de minha parte), não se pode negar esse fato: o conceito de “crime contra a humanidade” permanece no horizonte de toda a geopolítica do perdão. Ele lhe fornece seu discurso e sua legitimação. Tomemos o exemplo impressionante da Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul. Ele permanece único, apesar das analogias, apenas analogias, de alguns precedentes sul-americanos, em particular no Chile. Bem, o que deu sua última justificativa, sua legitimidade declarada a essa comissão, foi a definição do Apartheid como um “crime contra a humanidade” pela comunidade internacional em sua representação na ONU. Essa convulsão da qual falei tomaria hoje a forma de uma conversão. De uma conversão de fato e tendencialmente universal: em vias de mundialização. Pois se, como acredito, o conceito de crime contra a humanidade é a diretriz dessa autoacusação, desse arrependimento e perdão demandado; se, por outro lado, uma sacralidade do ser humano pode justificar, em última instância, esse conceito (nada é pior, nessa lógica, do que um crime contra a humanidade do homem e contra os direitos do homem); se essa sacralidade encontra seu significado na memória abraâmica das religiões do Livro e em uma interpretação judaica, mas sobretudo cristã, do “próximo” ou do “semelhante”; se, em consequência, o crime contra a humanidade é um crime contra o mais sagrado nos viventes, e, portanto, já contra o divino no homem, no Deus-feito-homem ou homem-feito- Deus-por-Deus (a morte do homem e a morte de Deus trairiam aqui o mesmo crime), então, a “mundialização” do perdão se assemelha a uma enorme cena de confissão em curso, portanto, a uma convulsãoconversão-confissão virtualmente cristã, um processo de cristianização que não necessita mais da Igreja cristã. Se, como sugeri agora, essa linguagem cruza e acumula poderosas tradições (a cultura “abraâmica” e a de um humanismo filosófico, mais precisamente de um cosmopolitismo nascido, ele mesmo, de um enxerto do estoicismo e do cristianismo paulino), por que hoje é imposto a culturas que não são de origem europeia nem “bíblica”? Estou pensando naquelas cenas em que um Primeiro-ministro japonês “pediu perdão” aos coreanos e chineses pela violência passada. Ele certamente apresentou suas “heartfelt apologies” em seu nome pessoal, sobretudo sem comprometer o Imperador, na cabeça do Estado, mas um Primeiro-ministro compromete sempre mais do que uma pessoa não-pública. Recentemente, houve verdadeiras negociações, desta vez, oficiais e próximas, entre o governo japonês e o governo sul-coreano sobre esse assunto. Houve reparação e reorientação político-econômica. Essas negociações visavam, como quase sempre, produzir uma reconciliação (nacional ou internacional) propícia à normalização. A linguagem do

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O século e o perdão, pp. 355-388 perdão, a serviço de finalidades determinadas, era tudo, exceto pura e desinteressada. Como sempre no campo político. Eu assumirei o risco dessa proposição: cada vez que o perdão está a serviço de uma finalidade, mesmo que seja nobre e espiritual (libertação ou redenção, reconciliação, salvação), toda vez que tende a restaurar a normalidade (social, nacional, política, psicológica) através de um trabalho de luto, através de alguma terapia ou ecologia da memória, então o “perdão” não é puro – nem o seu conceito. O perdão não é, não deveria ser nem normal, nem normativo, nem normalizador. Deveria permanecer excepcional e extraordinário, à prova do impossível: como se interrompesse o curso ordinário da temporalidade histórica. Seria, portanto, necessário interrogar deste ponto de vista o que se chama mundialização e o que proponho em outro lugar4 chamar mundialatinização - para levar em conta o efeito do cristianismo romano que hoje sobredetermina toda a linguagem do direito, do político, e até a interpretação do dito “retorno do religioso”. Nenhum fingimento desencantado, nenhuma secularização vem para detê-lo, pelo contrário. Para abordar agora o próprio conceito de perdão, a lógica e senso comum concordam pela primeira vez com o paradoxo: é necessário, me parece, partir do fato de que, sim, existe o imperdoável. Essa não é a única coisa a perdoar? A única coisa que pede perdão? Se alguém estivesse pronto para perdoar apenas o que parecia perdoável, o que a Igreja chamava de “pecado venial”, a própria ideia de perdão desapareceria. Se há algo a perdoar, seria o que na linguagem religiosa se chama pecado mortal, o pior, o crime ou erro imperdoável. Daí a aporia que pode ser descrita em sua formalidade seca e implacável, sem piedade: o perdão perdoa apenas o imperdoável. Não se pode ou não se deveria perdoar, não há perdão, se há, somente lá onde há o imperdoável. É como dizer que o perdão deve ser anunciado como o mais impossível. Só pode ser possível se fizer o impossível. Porque neste século, crimes monstruosos (“imperdoáveis”, portanto) não foram apenas cometidos - o que pode não ser em si tão novo - mas tornaram-se visíveis, conhecidos, lembrados, nomeados, arquivados por uma “consciência universal” mais bem informada do que nunca, porque esses crimes cruéis e massivos, ao mesmo tempo, parecem escapar ou porque tentamos fazê-los escapar, em seu excesso, à medida de toda a justiça humana; bem, o pedido de perdão foi encontrado (pelos muito imperdoáveis, portanto!) reativado, re-motivado, acelerado. Na época da lei de 1964, que decidiu na França a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, foi aberto um debate. Observo de passagem que o conceito jurídico do imprescritível não é de forma alguma equivalente ao conceito não jurídico do imperdoável. Pode-se manter a imprescritibilidade de um crime, não limitar a duração de uma possível acusação ou processo judicial perante a lei, perdoando ao mesmo tempo o culpado. Por outro lado, pode-se absolver ou suspender um julgamento e, ainda assim, recusar o perdão. O fato é que a singularidade do conceito de imprescritibilidade (em oposição à “prescrição”, que tem equivalentes em outras leis ocidentais, americanas por exemplo) talvez se deva ao que ela também introduz, como o perdão ou como o 4 “Foi et savoir, Les deux sources de la ‘religion’ aux limites de la simple raison”, in La Religion, J. Derrida et G. Vattimo, Le Seuil, l996. Edição brasileira: Fé e saber, as duas fontes da religião nos limites simples da razão, in: A religião: o seminário de Capri/ org. Gianni Vattimo e Jacques Derrida. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

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O século e o perdão, pp. 355-388 imperdoável, uma espécie de eternidade ou transcendência, o horizonte apocalíptico de um julgamento final: no direito para além do direito, na história para além da história. Este é um ponto importante e difícil. Num texto polêmico justamente intitulado “O imprescritível”, Jankélévitch declara que não se poderia haver lugar para perdoar crimes contra a humanidade, contra a humanidade do homem: não contra “inimigos”, (políticos, religiosos, ideológicos) mas contra o que faz de um homem um homem - ou seja, contra a potência mesma de perdoar. De forma análoga, Hegel, um grande pensador do “perdão” e da “reconciliação”, disse que tudo é perdoável, exceto o crime contra o espírito, ou seja, contra a potência reconciliadora do perdão. Em relação à Shoah, é claro, Jankélévitch insistiu acima de tudo em outro argumento, aos seus olhos decisivo: é tudo menos uma questão de perdoar, neste caso, uma vez que os criminosos não pediram perdão. Eles não admitiram a culpa e não demonstraram arrependimento. É pelo menos o que Jankélévitch argumenta, um pouco rápido, talvez. Agora, ficaria tentado a contestar essa lógica condicional de troca, essa pressuposição amplamente difundida segundo a qual o perdão só poderia ser considerado com a condição de que seja solicitado, durante uma cena de arrependimento que atesta ao mesmo tempo a consciência do erro, a transformação do culpado e, pelo menos, um compromisso implícito de fazer tudo para evitar o retorno do mal. Há aí uma transação econômica que, simultaneamente, confirma e contradiz a tradição abraâmica de que estamos falando. É importante analisar em profundidade a tensão, no coração da herança, entre, por um lado, a ideia, que também é uma exigência, de perdão incondicional, gracioso, infinito e aneconômico, concedido ao culpado enquanto culpado, sem contrapartida, mesmo para quem não se arrepende ou pede perdão e, por outro lado, como testemunhado por um grande número de textos, através de muitas dificuldades e sutilezas semânticas, perdão condicional, proporcionado ao reconhecimento da culpa, ao arrependimento e transformação do pecador que então pede explicitamente perdão. E que, então, não é mais completamente o culpado, mas já um outro, e melhor que o culpado. Nessa medida, e nessa condição, não é mais o culpado como tal que perdoamos. Uma das questões inseparáveis dessa, e que não me interessa menos, diz respeito à essência da herança. O que significa herdar quando a herança inclui uma injunção dupla e contraditória? Uma injunção que deve, portanto, reorientar, interpretar de maneira ativa, performativamente, mas dentro da noite, como se devêssemos, sem normas ou critérios preestabelecidos, reinventar a memória? Apesar de minha admirativa simpatia por Jankélévitch, e mesmo que eu entenda o que inspira essa raiva dos justos, acho difícil segui-lo. Por exemplo, quando ele multiplica as imprecações contra a boa consciência do “Alemão” ou quando troveja contra o milagre econômico do Marco e a próspera obscenidade da boa consciência, mas principalmente quando justifica a recusa de perdoar pelo fato, ou melhor, a alegação de não arrependimento. Em resumo, ele diz: “Se eles tivessem começado, no arrependimento, pedindo perdão, poderíamos ter considerado concedê-los, mas esse não foi o caso”. Acho ainda mais difícil segui-lo aqui que no que ele mesmo chama de “livro de filosofia” Le Pardon, publicado anteriormente, em que Jankélévitch tinha sido mais receptivo à ideia do perdão absoluto. Ele reivindicou então inspiração judaica e sobretudo cristã. Ele falou mesmo de um imperativo do amor e de uma “ética hiperbólica”: uma ética, portanto, que iria para além das leis,

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O século e o perdão, pp. 355-388 das normas ou de uma obrigação. Ética para além da ética, está aí, talvez, o lugar não-encontrável do perdão. Contudo, mesmo nessa época, e a contradição permanece, Jankélévitch não chegou ao ponto de admitir um perdão incondicional, e que seria, portanto, concedido até àqueles que não o pedissem. O ponto crucial do argumento, em “O Imprescritível”, e na seção intitulada “Perdoar?”, é que a singularidade da Shoah atinge as dimensões do inexpiável. No entanto, para o inexpiável, não seria possível o perdão, segundo Jankélévitch, nem mesmo o perdão que tenha um sentido, que faça sentido. Pois o axioma comum ou dominante da tradição, finalmente, e aos meus olhos o mais problemático, é que o perdão deva ter sentido. E esse sentido deveria ser determinado no contexto da salvação, reconciliação, redenção, expiação, eu diria mesmo do sacrifício. Para Jankélévitch, desde o momento em que não se pode mais punir o criminoso com uma “punição proporcional ao crime” e que, consequentemente, o “castigo se torna quase indiferente”, estamos lidando com “o inexpiável” também diz “o irreparável” (uma palavra que Chirac usou em sua famosa declaração sobre o crime contra os judeus sob Vichy: “A França, naquele dia, realizou o irreparável”.) Jankélévitch conclui o imperdoável com o inexpiável ou o irreparável. E não se pode, segundo ele, perdoar o imperdoável. Esse encadeamento não me parece evidente. Pela razão que eu disse (o que seria um perdão que perdoaria apenas o perdoável?) e porque essa lógica continua a implicar que o perdão permanece o correlato de um julgamento e a contrapartida de uma possível punição, de uma possível expiação, do “expiável”. Porque Jankélévitch parece então tomar duas coisas como garantidas (como Arendt, por exemplo, em A Condição humana): l - o perdão deve continuar sendo uma possibilidade humana – insisto nessas duas palavras e principalmente nesse traço antropológico que decide sobre tudo (pois sempre se tratará, basicamente, de saber se o perdão é uma possibilidade ou não, mesmo uma faculdade, portanto, um “eu posso” soberano e um poder humano ou não), 2 - essa possibilidade humana é o correlato da possibilidade de punir – não de se vingar, é claro, que é outra coisa, à qual o perdão é ainda mais estranho, mas punir de acordo com a lei. “O castigo”, diz Arendt, “tem isso em comum com o perdão, de que ele tenta por fim a algo que, sem intervenção, poderia continuar indefinidamente. Portanto, é muito significativo, é um elemento estrutural do campo dos assuntos humanos [enfatizo], que os homens são incapazes de perdoar o que não podem punir e que são incapazes de punir o que se revela imperdoável”. Em “L’imprescriptible”, portanto, e não em Le Pardon, Jankélévitch se instala nessa troca, nessa simetria entre punir e perdoar: o perdão não faria mais sentido onde o crime se tornou, como a Shoah, “inexpiável”, “irreparável”, fora de proporção em relação a qualquer medida humana. “O perdão morreu nos campos da morte”, diz ele. Sim. A menos que isso se torne possível apenas quando parecer impossível. Sua história começaria pelo contrário com o imperdoável. Não é em nome de um purismo ético ou espiritual que eu insisto nessa contradição no centro da herança e sobre a necessidade de manter a referência a um perdão incondicional e aneconômico: para além da troca e mesmo do horizonte de uma redenção ou reconciliação. Se digo: “Perdoo você com a

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O século e o perdão, pp. 355-388 condição de que, pedindo perdão, você tenha, então, mudado e não seja mais o mesmo”, perdoo? o que estou perdoando? e para quem? o que e quem? algo ou alguém? Primeira ambiguidade sintática que, aliás, já deveria nos deter por um longo tempo. Entre a pergunta “quem?” e a pergunta “o quê?”. Perdoamos algo, um crime, uma falha, um erro, ou seja, um ato ou um momento que não esgota a pessoa incriminada e, em última análise, não se confunde com o culpado que permanece, portanto, irredutível? Ou perdoamos alguém, absolutamente, não mais marcando o limite entre o errado, o momento da falha e, por outro lado, a pessoa que consideramos responsável ou culpada? E neste último caso (questão “quem?”), pedimos perdão à vítima ou a alguma testemunha absoluta, a Deus, por exemplo, a determinado Deus que prescreveu perdoar o outro (homem) para merecer ser perdoado por sua vez? (A Igreja da França pediu perdão a Deus, ela não se arrependeu diretamente ou somente diante dos homens ou diante das vítimas, por exemplo, a comunidade judaica, que tomou apenas como testemunha, mas publicamente, é verdade, do perdão pedido em verdade a Deus etc.) Devo deixar essas imensas perguntas em aberto. Imagine então que eu perdoo com a condição de que o culpado se arrependa, corrija-se, peça perdão e, portanto, seja mudado por um novo compromisso, e que a partir de então ele não seja mais o mesmo que aquele que foi considerado culpado. Nesse caso, ainda podemos falar em perdão? Seria fácil demais para os dois lados: perdoar-se-ia alguém que não fosse o culpado. Para que haja perdão, não seria necessário, ao contrário, perdoar tanto o erro como o culpado como tais, lá onde ambos permanecem, tão irreversivelmente quanto o mal, como o próprio mal, e ainda seriam capazes de se repetir, imperdoavelmente, sem transformação, sem melhoria, sem arrependimento ou promessa? Não devemos sustentar que um perdão digno desse nome, se houver, deve perdoar o imperdoável e sem condição? E que essa incondicionalidade também está inscrita, como seu oposto, ou seja, a condição do arrependimento, em “nossa” herança? Mesmo se essa pureza radical possa parecer excessiva, hiperbólica, louca? Pois se eu digo, como penso, que o perdão é uma loucura e que deve permanecer uma loucura do impossível, certamente não é para excluí-lo ou desqualificá-lo. É talvez mesmo a única coisa que alcance, que surpreenda, como uma revolução, o curso ordinário da história, da política e do direito. Pois isso significa que ele permanece heterogêneo na ordem política ou jurídica, como geralmente as entendemos. Não se poderia jamais, nesse sentido comum das palavras, fundar uma política ou um direito sobre o perdão. Em todas as cenas geopolíticas de que falamos, a palavra mais frequentemente abusada é “perdão”. Poque se trata sempre de negociações mais ou menos declaradas, de transações calculadas, de condições e, como diria Kant, de imperativos hipotéticos. Essas negociatas podem certamente parecer honrosas. Por exemplo, em nome da “reconciliação nacional”, expressão à qual de Gaulle, Pompidou e Mitterrand usavam quando acreditavam que deveriam assumir a responsabilidade de apagar as dívidas e crimes do passado, sob a Ocupação ou durante a guerra da Argélia. Na França, os mais altos responsáveis políticos usavam regularmente a mesma linguagem: é preciso realizar a reconciliação por anistia e, assim, reconstituir a unidade nacional. É um leitmotiv da retórica de todos os chefes de Estado e Primeiros-ministros franceses desde a Segunda Guerra Mundial, sem exceção. Essa era literalmente a linguagem daqueles que, após o primeiro momento de purificação, decidiram a grande anistia de 1951 por crimes cometidos sob a Ocupação. Certa noite, ouvi em um documento de arquivo, M Cavaillet, então parlamentar, dizer que, cito de memória, ele havia votado na lei de Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 anistia de 1951 porque era necessário, disse ele, “saber esquecer”; tanto mais quanto, naquela época, Cavaillet insistia muito nisso, o perigo comunista era considerado como o mais urgente. Era necessário trazer de volta à comunidade nacional todos os anticomunistas que, colaborando alguns anos antes, arriscavam ser excluídos do campo político por uma lei que era muito dura e por um expurgo que era pouco esquecido. Restaurar a unidade nacional significava se rearmar com todas as forças disponíveis em uma luta que continuava, desta vez em tempos de paz ou na chamada guerra fria. Sempre existe um cálculo estratégico e político no gesto generoso de quem oferece reconciliação ou anistia, e devemos sempre integrar esse cálculo em nossas análises. “Reconciliação nacional” era novamente, eu disse, a linguagem explícita de De Gaulle quando ele retornou pela primeira vez a Vichy e fez um famoso discurso sobre a unidade e a unicidade da França; esse foi literalmente o discurso de Pompidou que também falou, em uma famosa conferência de imprensa, de “reconciliação nacional” e de divisão superada quando ele perdoou Touvier; essa ainda era a linguagem de Mitterrand quando ele sustentou, em várias ocasiões, que era a garantia da unidade nacional e, muito precisamente, quando se recusou a declarar a culpa da França sob Vichy (que ele qualificou, você o sabem, de poder não-legítimo ou não-representativo, apropriado por uma minoria de extremistas, quando, sabemos, a coisa é mais complicada, e não apenas do ponto de vista formal e legal, mas deixemos isso). Inversamente, quando o corpo da nação pode suportar sem risco uma divisão menor ou até encontrar sua unidade reforçada por processos, por aberturas de arquivos, pelos “levantamentos do recalque”, então, outros cálculos ditam fazer justiça de uma maneira mais rigorosa e pública para o que é chamado de “dever da memória”. É sempre a mesma preocupação: garantir que a nação sobreviva às suas rupturas, que o traumatismo dê lugar ao luto e que o Estado-nação não seja vencido pela paralisia. Mas, ainda onde isso poderia ser justificado, esse imperativo “ecológico” da saúde social e política não tem nada a ver com o “perdão”, sobre o qual falamos muito levemente. O perdão não é, nunca deveria ser uma terapia de reconciliação. Voltemos ao exemplo notável da África do Sul. Ainda na prisão, Mandela acreditava que ele deveria assumir a decisão de negociar o princípio de um procedimento de anistia. Para permitir, primeiro, o retorno dos exilados do CNA. E com vista a uma reconciliação nacional sem a qual o país teria sido incendiado e ensanguentado pela vingança. Mas não mais que absolvição, a anulação do julgamento (non-lieu), e até a “graça” (exceção político-jurídica da qual falaremos novamente), a anistia não significa o perdão. Quando Desmond Tutu foi nomeado presidente da comissão da Verdade e Reconciliação, ele cristianizou a linguagem de uma instituição destinada a tratar apenas de crimes com motivação “política” (enorme problema que renuncio a tocar aqui, como renuncio a analisar a complexa estrutura da referida comissão, em suas relações com as demais instâncias judiciais e procedimentos penais que deveriam seguir o seu curso). Com tanta boa vontade quanto confusão, parece-me que Tutu, arcebispo anglicano, introduz o vocabulário de arrependimento e perdão. Ele foi reprovado por isso, entre outras coisas, por uma parte não cristã da comunidade negra. Sem mencionar os formidáveis desafios de tradução que só posso evocar aqui, mas que, como o recurso à linguagem mesma, dizem respeito também ao segundo aspecto de sua pergunta: a cena do perdão é ela um face a face pessoal, ou clama por alguma mediação institucional? (E a própria linguagem, a língua é aqui uma primeira instituição mediadora). Em princípio, portanto, sempre para seguir uma tendência da tradição abraâmica, o Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 perdão deve envolver duas singularidades: o culpado (o “perpetrator”, como se diz na África do Sul) e a vítima. Desde o momento em que um terceiro intervém, pode-se ainda falar de anistia, reconciliação, reparação etc. Mas certamente não o perdão puro, no sentido estrito. O estatuto da comissão da Verdade e Reconciliação é muito ambíguo sobre esse assunto, como o discurso de Tutu, que oscila entre uma lógica não-penal e não-reparadora do “perdão” (ele diz que é “restauradora”) e uma lógica judicial de anistia. Deve-se analisar de perto a instabilidade equívoca de todas essas autointerpretações. Graças a uma confusão entre a ordem do perdão e a ordem da justiça, mas também abusando de sua heterogeneidade, bem como do fato de que o tempo do perdão escapa do processo judicial, além disso, é sempre possível imitar a cena do perdão “imediato” e quase automático para escapar da justiça. A possibilidade desse cálculo está sempre aberta e poderíamos dar muitos exemplos. E contraexemplos. Assim, Tutu conta que um dia uma mulher negra vem testemunhar perante a Comissão. Seu marido havia sido assassinado por policiais torturadores. Ela fala em sua língua, uma das onze línguas oficialmente reconhecidas pela Constituição. Tutu a interpreta e a traduz aproximadamente da seguinte maneira, em seu idioma cristão (anglo-anglicano): “Uma comissão ou um governo não pode perdoar. Apenas eu, eventualmente, poderia fazê-lo. (And I am not ready to forgive.) E não estou disposta a perdoar – ou pronta para perdoar.” Palavra muito difícil de ouvir. Essa mulher vítima, essa mulher vítima5, certamente queria lembrar que o corpo anônimo do Estado ou de uma instituição pública não pode perdoar. Ele não tem nem o direito nem o poder; e isso, aliás, não faria sentido. O representante do Estado pode julgar, mas o perdão não tem nada a ver com o julgamento, precisamente. Nem mesmo com o espaço público ou político. Mesmo que fosse “justo”, o perdão seria apenas uma justiça que nada tem a ver com justiça judicial, com a lei. Existem tribunais de justiça para isso e esses tribunais nunca perdoam, no sentido estrito da palavra. Talvez essa mulher quisesse sugerir outra coisa ainda: se alguém tem alguma qualificação para perdoar, é apenas a vítima e não uma instituição de terceiros. Porque, por outro lado, mesmo que essa esposa também fosse vítima, bem, a vítima absoluta, por assim dizer, continuaria sendo seu marido morto. Somente os mortos poderiam, legitimamente, considerar o perdão. O sobrevivente não estava pronto para substituir abusivamente o morto. Experiência imensa e dolorosa do sobrevivente: quem teria o direito de perdoar em nome das vítimas desaparecidas? Estas sempre ausentes, de certa maneira. Desaparecidos por essência, eles nunca estão absolutamente presentes no momento do perdão solicitado como o mesmo que foram no momento do crime; e às vezes estão ausentes em seus corpos, até mesmo frequentemente mortos. Volto por um momento ao equívoco da tradição. Às vezes, o perdão (concedido por Deus ou inspirado pela prescrição divina) deve ser um dom gracioso, sem troca e sem condição; às vezes 5 Há muito a ser dito aqui sobre as diferenças sexuais, quer se trate das vítimas ou de seu testemunho. Tutu conta também como algumas mulheres perdoaram na presença dos executores. Mas Antje Krog, em um livro admirável, The Country of my Skull, descreve também a situação das mulheres militantes que, estupradas, e de início, acusadas pelos torturadores de não serem militantes, mas prostitutas, não podiam sequer testemunhar diante da Comissão, nem mesmo em suas famílias, sem se despir, sem mostrar suas cicatrizes ou sem se expor uma vez mais, por seu testemunho mesmo, a outra violência. A “questão do perdão” não podia sequer ser colocada publicamente a essas mulheres, algumas das quais ocupam atualmente altas responsabilidades no Estado. Existe uma “Gender Commission” sobre esse assunto na África do Sul.

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O século e o perdão, pp. 355-388 requer, como sua condição mínima, arrependimento e a transformação do pecador. Que consequências podem ser tiradas dessa tensão? Pelo menos esta, que não simplifica as coisas: se nossa ideia de perdão cai em ruína assim que é privada de seu polo de referência absoluta, a saber, de sua pureza incondicional, permanece, no entanto, inseparável do que lhe é heterogêneo, ou seja, a ordem das condições, o arrependimento, a transformação, tantas coisas que lhe permitem se inscrever na história, o direito, a política, a própria existência. Esses dois polos, o incondicional e o condicional, são absolutamente heterogêneos e devem permanecer irredutíveis um ao outro. Eles são, no entanto, indissociáveis: se quisermos, e se é preciso, que o perdão se torne efetivo, concreto, histórico, se quisermos que aconteça, que tenha lugar mudando as coisas, é necessário que sua pureza se comprometa em uma série de condições de todos os tipos (psicossociológicos, políticos, etc.). É entre esses dois polos, irreconciliáveis, mas indissociáveis, que as decisões e as responsabilidades devem ser tomadas. Mas, apesar de toda a confusão que reduz o perdão à anistia ou à amnésia, à absolvição ou à prescrição, ao trabalho do luto ou a alguma terapia política de reconciliação, enfim, a alguma ecologia histórica, é preciso nunca esquecer, no entanto, que tudo isso se refere a uma certa ideia de perdão puro e incondicional, sem a qual esse discurso não teria o menor sentido. O que complica a questão do “sentido” é novamente isso, sugeri anteriormente: o perdão puro e incondicional, para ter seu sentido próprio, não deve ter “sentido”, nenhuma finalidade, nenhuma inteligibilidade em si. É uma loucura do impossível. Seria necessário seguir, sem fraquejar, a consequência desse paradoxo ou dessa aporia. O que se denomina direito de graça dá um exemplo, tanto um exemplo entre outros quanto o modelo exemplar. Pois se é verdade que o perdão deveria permanecer heterogêneo à ordem jurídico-política, judicial ou penal, se é verdade que deveria sempre, em cada ocorrência, permanecer uma exceção absoluta, então há uma exceção a essa lei de exceção, de certa forma, e é precisamente, no Ocidente, essa tradição teológica que concede ao soberano um direito exorbitante. Pois o direito à graça é, de fato, como o próprio nome sugere, da ordem do direito, mas de um direito que inscreve nas leis um poder acima das leis. O monarca absoluto do direito divino pode agraciar um criminoso, ou seja, praticar, em nome do Estado, um perdão que transcende e neutraliza o direito. Direito acima do direito. Como a ideia de soberania mesma, esse direito à graça foi reapropriado na herança republicana. Nos Estados modernos de tipo democrático, como a França, dir-se-ia que foi secularizado (se essa palavra tivesse um sentido outro que na tradição religiosa que ela mantém, pretendendo se subtrair dela). Em outros, como nos Estados Unidos, a secularização não é sequer um simulacro, pois o Presidente e os governadores, que têm o direito da graça (perdão, clemência), prestam primeiro juramento sobre a Bíblia, realizam discursos oficiais de tipo religioso e invocam o nome ou a bênção de Deus a cada vez que se dirigem à nação. O que conta nessa exceção absoluta, que é o direito à graça, é que a exceção do direito, a exceção ao direito, está localizada no topo ou na base do jurídico-político. No corpo do soberano, ele incarna o que funda, sustenta ou erige, no mais alto nível, com a unidade da nação, a garantia da constituição, as condições e o exercício do direito. Como sempre é o caso, o princípio transcendental de um sistema não pertence ao sistema. É estranho para ele como uma exceção.

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O século e o perdão, pp. 355-388 Sem contestar o princípio desse direito à graça, o mais “elevado” que seja, o mais nobre, mas também o mais “escorregadio” e o mais equívoco, o mais perigoso, o mais arbitrário, Kant lembra a estrita limitação que seria necessário lhe impor para que não dê lugar às piores injustiças: que o soberano possa agraciar somente lá onde o crime o visa ele mesmo (e, portanto, visa, em seu corpo, a própria garantia do direito, do Estado de direito e do Estado). Como na lógica hegeliana da qual falamos acima, é imperdoável apenas o crime contra o que dá o poder de perdoar, o crime contra o perdão, em suma, – o espírito segundo Hegel, e o que ele chama de “espírito do cristianismo” – mas é precisamente esse imperdoável, e esse imperdoável apenas, que o soberano tem ainda o direito de perdoar, e somente quando o “corpo do rei”, em sua função soberana, é visado através do outro “corpo do rei”, que é aqui o “mesmo”, o corpo de carne, singular e empírico. Fora dessa exceção absoluta, em todos os outros casos, sempre que os erros digam respeito aos próprios sujeitos, ou seja, quase sempre, o direito à graça não poderia se exercer sem injustiça. De fato, sabe-se que ele é sempre exercido condicionalmente, em função de uma interpretação ou de um cálculo, por parte do soberano, quanto ao que atravessa um interesse particular (dele mesmo ou dos seus ou de uma fração da sociedade) e o interesse do Estado. Um exemplo recente seria dado por Clinton – que nunca esteve inclinado a agraciar ninguém e que é um defensor bastante ofensivo da pena de morte. Contudo, usando seu “right to pardon”, ele recentemente perdoou os Porto-riquenhos presos por muito tempo por terrorismo. Bem, os Republicanos não deixaram de contestar esse privilégio absoluto do executivo acusando o Presidente de querer ajudar Hillary Clinton em sua próxima campanha eleitoral em Nova York, onde estão os Porto-riquenhos, como sabemos, em grande número. No caso simultaneamente excepcional e exemplar do direito à graça, lá onde o que excede o jurídico-político se inscreve, para fundá-lo, no direito constitucional, bem, existe e não existe esse tête-à-tête ou esse face-à-face pessoal, e do qual se pode pensar que é exigido pela essência mesma do perdão. Mesmo lá onde este último deveria envolver apenas singularidades absolutas, não pode se manifestar de maneira alguma sem apelar ao terceiro, à instituição, à socialidade, à herança transgeracional, ao sobrevivente em geral; e antes de tudo, a essa instância universalizante que é a linguagem. Pode haver, de ambos os lados, uma cena de perdão sem uma linguagem compartilhada? Esse compartilhamento não é apenas o de uma língua ou idioma nacional, mas o de um acordo sobre o sentido das palavras, suas conotações, a retórica, a visada de uma referência etc. Esta é outra forma da mesma aporia: quando a vítima e o culpado não compartilham nenhuma linguagem, quando nada de comum e de universal lhes permite se entender, o perdão parece não ter sentido, estamos no domínio desse absoluto imperdoável, dessa impossibilidade de perdoar que, no entanto, dissemos anteriormente que era, paradoxalmente, o elemento mesmo de todo perdão possível. Para perdoar é preciso, por um lado, o acordo, de ambas as partes, sobre a natureza da falha, saber quem é culpado de qual mal em relação a quem etc. Coisa já muito improvável. Porque imaginamos o que uma “lógica do inconsciente” perturbaria nesse “saber” e em todos os esquemas dos quais ela mantém, não obstante, uma “verdade”. E imaginamos também o que aconteceria quando a mesma perturbação fizesse tremer tudo, quando chegasse a ressoar no “trabalho do luto”, na “terapia” de que falamos, no direito e na política. Pois, se um perdão puro não pode, se não deve se apresentar como tal, exibir-se, portanto, no teatro da consciência sem ao mesmo tempo se negar, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 mentir ou reafirmar uma soberania, então como saber o que é um perdão, se alguma vez teve lugar, e quem perdoa quem, ou o que a quem? Dessa forma, por outro lado, se for necessário, como dissemos recentemente, estar de acordo, de ambas as partes, sobre a natureza da falha, saber, em consciência, quem é culpado de que mal em relação a quem, etc., e se a coisa já é muito improvável, o oposto também é verdadeiro. Ao mesmo tempo, é necessário de fato que a alteridade, a nãoidentificação, a incompreensão mesma permaneçam irredutíveis. O perdão é, portanto, louco, deve se afundar, mas lucidamente, na noite do ininteligível. Chame de inconsciente ou não-consciente, se quiser. Assim que a vítima “compreende” o criminoso, assim que ela muda, fala, se entende com ele, a cena da reconciliação começou e, com ela, esse perdão comum que é tudo exceto um perdão. Mesmo se digo “eu não te perdoo” a alguém que pede perdão, mas que eu compreendo e que me compreende, então um processo de reconciliação começou, o terceiro interveio. No entanto, é aí o fim do puro perdão. Nas situações mais terríveis, na África, no Kosovo, não se trata, precisamente, de uma barbárie de proximidade, onde o crime foi cometido entre pessoas que se conheciam? O perdão não implica o impossível: estar ao mesmo tempo em algo diferente que a situação anterior, antes do crime, mesmo estando na compreensão da situação anterior? Jacques Derrida: No que você chama de “situação anterior”, de fato poderia haver todos os tipos de proximidades: linguagem, vizinhança, familiaridade, até família, etc. Mas, para que surja o mal, o “mal radical” e, talvez ainda pior, o mal imperdoável, o único que suscita a questão do perdão, é necessário que, no mais íntimo dessa intimidade, um ódio absoluto venha a interromper a paz. Essa hostilidade destrutiva só pode atingir o que Levinas chama de “o rosto” de outrem, o outro semelhante, o próximo mais que próximo, entre os Bósnios e os Sérvios, por exemplo, no interior do mesmo distrito, da mesma casa, às vezes da mesma família. O perdão deve então saturar o abismo? Ele deve suturar a ferida em um processo de reconciliação? Ou dar lugar a uma outra paz, sem esquecimento, sem anistia, fusão ou confusão? É claro que ninguém ousaria decentemente opor-se ao imperativo da reconciliação. É melhor acabar com os crimes e com as rupturas. Mas, mais uma vez, acredito que devo distinguir entre perdão e esse processo de reconciliação, essa reconstituição de uma saúde ou de uma “normalidade”, por mais necessárias e desejáveis que elas possam parecer por meio de amnésias, o “trabalho do luto” etc. Um perdão “finalizado” não é um perdão, é apenas uma estratégia política ou uma economia psicoterapêutica. Hoje, na Argélia, apesar da dor infinita das vítimas e dos danos irreparáveis de que sofrem para sempre, podemos certamente pensar que a sobrevivência do país, da sociedade e do Estado passa pelo anunciado processo de reconciliação. Deste ponto de vista, pode-se “compreender” que uma votação tenha aprovado a política prometida por Bouteflika. Mas acho que a palavra “perdão” usada nesta ocasião, particularmente pelo chefe de Estado da Argélia, é inadequada. Considero injusto tanto por respeito às vítimas de crimes atrozes (nenhum chefe de Estado tem o direito de perdoar por elas) quanto por respeito ao sentido dessa palavra, a incondicionalidade inegociável, aneconômica, apolítica e não estratégica que prescreve. Mas, novamente, esse respeito pela palavra ou conceito não se traduz apenas em purismo semântico ou filosófico. Todos os tipos de “política” inconfessáveis, todos os tipos de truques estratégicos podem amparar-se por trás de uma “retórica” ou de uma “comédia” do perdão para

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O século e o perdão, pp. 355-388 evitar a etapa do direito. Na política, quando se trata de analisar, julgar ou até mesmo combater esses abusos na prática, a exigência conceitual é de rigor, mesmo lá onde os leva em consideração, embaraçando-se e declarando-os paradoxos ou aporias. Esta é, novamente, a condição de responsabilidade. Então, você está constantemente dividido entre uma visão ética “hiperbólica” do perdão, do perdão puro e a realidade de uma sociedade ocupada em processos pragmáticos de reconciliação? Jacques Derrida: Sim, permaneço “dividido”, como você diz muito bem. Mas sem poder, nem querer, nem dever decidir entre eles. Os dois polos são irredutíveis um ao outro, é claro, mas permanecem indissociáveis. Para infletir a “política” ou o que você acabou de chamar de “processos pragmáticos”, para mudar o direito (que se encontra, portanto, capturado entre os dois polos, o “ideal” e o “empírico” - e o que me importa aqui, é, entre os dois, essa mediação universalizante, essa história do direito, a possibilidade desse progresso do direito), é necessário fazer referência ao que você acabou de chamar de “visão ética ‘hiperbólica’ do perdão”. Embora eu não tenha certeza das palavras “visão” ou “ética”, neste caso, digamos que apenas essa exigência inflexível pode orientar uma história das leis, uma evolução do direito. Somente ela pode inspirar, aqui, agora, urgentemente, sem esperar, a resposta e as responsabilidades. Voltemos à questão dos direitos humanos, do conceito de crimes contra a humanidade, mas também da soberania. Mais do que nunca, esses três motivos estão ligados no espaço público e no discurso político. Embora muitas vezes uma certa noção de soberania esteja positivamente associada ao direito da pessoa, ao direito à autodeterminação, ao ideal de emancipação, na verdade à própria ideia de liberdade, ao princípio dos direitos do homem, é muitas vezes em nome dos direitos do homem e para punir ou prevenir crimes contra a humanidade que chegamos a limitar, a considerar pelo menos, por intervenções internacionais, limitar a soberania de certos Estadosnações. Mas alguns deles, mais que outros. Exemplos recentes: intervenções no Kosovo ou no Timor-Leste, aliás de natureza e finalidade diferentes. (O caso da Guerra do Golfo é de outro modo complicado: hoje limitamos a soberania do Iraque, mas depois de ter pretendido defender, contra ele, a soberania de um pequeno Estado – e, a propósito, outros interesses, mas vamos seguir em frente). Estejamos sempre atentos, como Hannah Arendt nos lembra tão lucidamente, ao fato de que essa limitação de soberania nunca é imposta senão lá onde é “possível” (fisicamente, militarmente, economicamente), ou seja, sempre imposta a pequenos Estados, relativamente fracos, por Estados poderosos. Estes últimos ficam com inveja de sua própria soberania, limitando a dos outros. Eles pesam também de maneira decisiva sobre as decisões das instituições internacionais. Essa é uma ordem e um “estado de fato” que pode ser ou bem consolidado a serviço dos “poderosos” ou bem, ao contrário, gradualmente deslocado, posto em crise, ameaçado por conceitos (quer dizer aqui performativos instituídos, eventos por essência históricos e transformáveis), como esses novos “direitos do homem” ou do “crime contra a humanidade”, por convenções sobre o genocídio, a tortura ou o terrorismo. Entre as duas hipóteses, tudo depende da política que implementa esses conceitos. Apesar de suas raízes e fundamentos sem idade, esses conceitos são muito jovens, pelo menos enquanto dispositivos do direito internacional. E quando, em 1964 – ontem – a França considerou apropriado decidir que os crimes contra a humanidade Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 permaneceriam imprescritíveis (uma decisão que tornou possível todos os processos que vocês conhecem – ontem ainda, o de Papon), implicitamente apelou, nisso, a um tipo de para além do direito dentro do direito. O imprescritível, como noção jurídica, certamente não é o imperdoável, vimos o porquê há pouco. Mas o imprescritível, volto a ele, sinaliza para a ordem transcendente do incondicional, do perdão e do imperdoável, para um tipo de anistoricidade, mesmo da eternidade e do Julgamento Final que ultrapassa a história e o tempo finito do direito: para sempre, “eternamente”, em todo lugar e sempre, um crime contra a humanidade será passível de um julgamento e o arquivo judicial nunca será apagado. É, portanto, uma certa ideia do perdão e do imperdoável, de um certo para além do direito (de qualquer determinação histórica do direito) que inspirou legisladores e parlamentares, aqueles que produzem o direito, quando, por exemplo, instituíram na França a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade ou, mais geralmente, quando transformam o direito internacional e instalam tribunais universais. Isso mostra que, apesar de sua aparência teórica, especulativa, purista, abstrata, qualquer reflexão sobre uma exigência incondicional está de antemão comprometida, e completamente, com uma história concreta. Pode induzir processos de transformação – políticos, legais, mas, na verdade, sem limite. Dito isso, uma vez que você me lembrou a que ponto estou “dividido” diante dessas dificuldades aparentemente insolúveis, ficaria tentado por dois tipos de resposta. Por um lado, há, deve haver, é preciso aceitá-lo, o “insolúvel”. Na política e para além. Quando os dados de um problema ou tarefa não aparecem como infinitamente contraditórios, colocando-me diante da aporia de uma dupla injunção, então eu sei de antemão o que é preciso fazer, acredito saber, esse saber comanda e programa a ação: está feito, não há mais nenhuma decisão ou responsabilidade a ser tomada. Um certo não-saber deve, ao contrário, deixar-me desarmado diante do que tenho que fazer para que eu tenha que fazê-lo, para que me sinta livremente obrigado a fazê-lo e a responder por isso. Devo então, e somente então, responder a essa transação entre dois imperativos contraditórios e igualmente justificados. Não que seja preciso não saber. Pelo contrário, é necessário saber o máximo e o melhor possível, mas entre o conhecimento mais extenso, o mais refinado, o mais necessário e a decisão responsável, um abismo permanece e deve permanecer. Aqui encontramos a distinção entre duas ordens (indissociáveis, mas heterogêneas) que nos preocupam desde o início desta entrevista. Por outro lado, se chamamos de “político” o que você quer dizer com “processos pragmáticos de reconciliação”, então, ao levar a sério essas urgências políticas, acredito também que não somos definidos por completo pelo político, e sobretudo, tampouco pela cidadania, pela pertença estatutária a um Estado-nação. Não devemos aceitar que, no coração ou na razão, especialmente quando se trata do “perdão”, algo acontece que excede qualquer instituição, qualquer poder, qualquer instância jurídico-política? Pode-se imaginar que alguém, vítima do pior, em si mesma, com os seus, em sua geração ou na precedente, exige que a justiça seja feita, que os criminosos apareçam, sejam julgados e condenados por um tribunal – e, no entanto, em seu coração perdoa. E o inverso? Jacques Derrida: O inverso também, é claro. Pode-se imaginar e aceitar que alguém nunca perdoa, mesmo após um procedimento de absolvição ou anistia. O segredo dessa experiência Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 permanece. Ele deve permanecer intacto, inacessível ao direito, à política e mesmo à moral: absoluto. Mas eu faria desse princípio trans-político um princípio político, uma regra ou uma posição política: é necessário também respeitar, na política, o segredo, o que excede o político ou o que não é mais jurídico. Isto é o que eu chamaria de “democracia por vir”. No mal radical de que falamos e, consequentemente, no enigma do perdão do imperdoável, existe um tipo de “loucura” que o jurídico-político não pode abordar, muito menos se apropriar. Imagine uma vítima do terrorismo, alguém cujos filhos tiveram suas gargantas cortadas ou deportados, ou alguém cuja família morreu em um forno de crematório. Que ela diga “eu perdoo” ou “eu não perdoo”, nos dois casos não estou certo de compreender, não estou mesmo certo de não compreender e, em todo caso, não tenho nada a dizer. Essa zona da experiência permanece inacessível e devo respeitar o segredo. O que resta a ser feito, em seguida, publicamente, politicamente, juridicamente, permanece igualmente difícil. Tomemos o exemplo da Argélia. Eu entendo, até compartilho o desejo de quem diz: “Precisamos fazer a paz, este país deve sobreviver, basta, esses assassinatos monstruosos, devemos fazer o que for necessário para que isso pare”, e se, para isso, é necessário enganar até à mentira ou à confusão (como quando Bouteflika diz: “Vamos libertar os presos políticos que não têm sangue nas mãos”), bem, vá rumo a essa retórica abusiva, não terá sido a primeira na História recente, menos recente e sobretudo colonial deste país. Eu compreendo, então, essa “lógica”, mas também compreendo a lógica oposta que recusa a todo custo e, por princípio, essa útil mistificação. Bem, este é o momento mais difícil, a lei da transação responsável. Conforme as situações e conforme os momentos, as responsabilidades a serem tomadas são diferentes. Não se deveria fazer, me parece, na França de hoje, o que está prestes a ser feito na Argélia. A sociedade francesa de hoje pode se permitir trazer à luz, com um rigor inflexível, todos os crimes do passado (incluindo aqueles que se prolongam na Argélia, precisamente, e a coisa ainda não está feita), ela pode julgá-los e não deixar a memória adormecer. Há situações em que, ao contrário, é necessário, se não adormecer a memória (o que não deveria ser feito jamais, se fosse possível), ao menos agir como se, na cena pública, renunciássemos a tirar todas as consequências disso. Nunca se está certo de fazer a escolha certa, nunca se sabe, nunca se saberá do que se chama um saber. O futuro não no-lo dará mais a saber, pois ele terá sido, ele mesmo, determinado por essa escolha. É aí que as responsabilidades são reavaliadas em todos os instantes, de acordo com as situações concretas, ou seja, aquelas que não esperam, aquelas que não nos dão tempo para deliberações infinitas. A resposta não pode ser a mesma na Argélia hoje, ontem ou amanhã, e na França de 1945, 1968-70 ou no ano 2000. É mais do que difícil, é infinitamente angustiante. É a noite. Mas reconhecer essas diferenças “contextuais” é algo bem diferente de uma renúncia empirista, relativista ou pragmatista. Justamente porque a dificuldade surge em nome e em razão de princípios incondicionais, portanto irredutíveis a essas facilidades (empiristas, relativistas ou pragmáticas). Em todo caso, eu não reduziria a terrível questão da palavra “perdão” a esses “processos” nos quais ela se encontra de antemão envolvida, por mais complexos e inevitáveis que sejam. O que permanece complexo é essa circulação entre o político e a ética hiperbólica. Poucas nações escapam desse fato, talvez fundador, que é de que houve crimes, violências, uma violência fundadora, para falar como René Girard, e o tema do perdão se torna muito cômodo para justificar, então, a história da nação. Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 Jacques Derrida: Todos os Estados-nação nascem e se fundam na violência. Eu acredito nessa verdade irrecusável. Mesmo sem exibir espetáculos atrozes sobre esse assunto, basta sublinhar uma lei de estrutura: o momento da fundação, o momento instituidor é anterior à lei ou à legitimidade que ele instaura. Ele é, portanto, fora da lei e violento por isso mesmo. Mas você sabe que se poderia “ilustrar” (que palavra, aqui!) essa verdade abstrata de documentos terrificantes, e vindos da história de todos os Estados, os mais velhos e os mais jovens. Antes das formas modernas do que se chama, em sentido estrito, o “colonialismo”, todos os Estados (eu ousaria mesmo dizer, sem jogar muito com a palavra e a etimologia, todas as culturas) têm sua origem em uma agressão de tipo colonial. Essa violência fundadora não é apenas esquecida. A fundação é feita para ocultá-la; ela tende por essência a organizar a amnésia, às vezes sob a celebração e sublimação de grandes começos. No entanto, o que parece singular hoje, e inédito, é o projeto de fazer comparecer Estados, ou pelo menos chefes de Estado enquanto tais (Pinochet) e até chefes de Estado em exercício (Milosevic), diante de instâncias universais. Trata-se aí apenas de projetos ou de hipóteses, mas essa possibilidade é suficiente para anunciar uma mutação: ela sozinha constitui um evento importante. A soberania do Estado, a imunidade de um chefe de Estado não são mais, em princípio, em direito, intangíveis. Evidentemente, muitos equívocos permanecerão por muito tempo, antes das quais devemos ser mais vigilantes. Estamos longe de passar aos atos e implementar esses projetos, pois o direito internacional ainda depende muito de Estados-nação soberanos e poderosos. Além disso, quando passamos ao ato, em nome dos direitos universais do homem ou contra os “crimes contra a humanidade”, geralmente o fazemos de maneira interessada, levando em consideração estratégias complexas e às vezes contraditórias, à mercê de Estados não apenas enciumados de sua própria soberania, mas dominantes sobre o cenário internacional, instados a intervir aqui em vez de, ou mais cedo que, lá, por exemplo, no Kosovo no lugar da Chechênia, para nos limitarmos a exemplos recentes, etc. e excluindo, é claro, qualquer intervenção neles; portanto, daí, por exemplo, a hostilidade da China a qualquer ingerência desse tipo na Ásia, no Timor, por exemplo – isso poderia dar ideias do lado do Tibete; ou ainda a reticência dos Estados Unidos, até da França, mas também de certos países chamados "do Sul", diante das competências universais prometidas à Corte Penal Internacional, etc. Voltamos regulamente a essa história de soberania. E porque falamos do perdão, o que faz o “eu te perdoo” às vezes insuportável ou odioso, até obsceno, é a afirmação da soberania. Ela se dirige frequentemente de cima para baixo, confirma sua própria liberdade ou se arroga o poder de perdoar, seja enquanto vítima ou em nome da vítima. No entanto, devemos também pensar em uma vitimização absoluta, aquela que priva a vítima da vida, ou do direito à palavra, ou dessa liberdade, dessa força e desse poder que autorizam, que permitem aceder à posição do “Eu perdoo”. Aí, o imperdoável consistiria em privar a vítima desse direito à palavra, da palavra mesma, da possibilidade de qualquer manifestação, de qualquer testemunho. Além disso, a vítima seria então vítima de ver-se despida da possibilidade mínima, elementar, de considerar virtualmente perdoar o imperdoável. Este crime absoluto não advêm apenas na figura do assassinato. Imensa dificuldade, portanto. Sempre que o perdão é efetivamente exercido, ele parece supor algum poder soberano. Pode ser o poder soberano de uma alma nobre e forte, mas também um poder de Estado dispondo de uma legitimidade incontestada, de uma potência necessária para organizar um processo, um Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 julgamento aplicável ou, eventualmente, a absolvição, a anistia ou o perdão. Se, como o pretendem Jankélévitch e Arendt (já expressei minhas reservas sobre esse assunto), perdoamos apenas lá onde poderíamos julgar e punir, portanto avaliar; então o estabelecimento, a instituição de uma instância de julgamento supõe um poder, uma força, uma soberania. Vocês conhecem o argumento “revisionista”: o tribunal de Nuremberg foi a invenção dos vencedores, ele permaneceu à sua disposição, tanto para estabelecer o direito, julgar e condenar, quanto para inocentar, etc. O que eu sonho, o que tento pensar como a “pureza” de um perdão digno desse nome, seria um perdão sem poder: incondicional, mas sem soberania. A tarefa mais difícil, ao mesmo tempo necessária e aparentemente impossível, seria, portanto, a de dissociar incondicionalidade e soberania. Faremolo algum dia? Não tão cedo6, como se diz. Mas posto que a hipótese dessa tarefa irrepresentável se anuncia, mesmo que seja um sonho para o pensamento, essa loucura não é talvez tão louca.

6 “C’est pas demain la veille”. Expressão de difícil tradução para a língua portuguesa cuja literalidade diz: “não é amanha a véspera”, e que, com isso, pretende significar um evento que não tem a chance de acontecer logo.

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LE SIÈCLE ET LE PARDON Jacques Derrida. Le pardon et le repentir sont depuis trois ans au centre du séminaire de Jacques Derrida à l’École des hautes études en sciences sociales. Qu’est-ce que le concept de pardon? D’où vient-il? S’impose-t-il à tous et à toutes les cultures? Peut-il être porté dans l’ordre du juridique? Du politique? Et à quelles conditions? Mais alors qui l’accorde? Et à qui? Et au nom de quoi, de qui?

Le Monde des Débats: Votre séminaire porte sur la question du pardon. Jusqu’où peut-on pardonner? Et le pardon peut-il être collectif, c’est-à-dire politique et historique? Jacques Derrida: En principe, il n’y a pas de limite au pardon, pas de mesure, pas de modération, pas de «jusqu’où?». Pourvu, bien entendu, qu’on s’accorde sur quelque sens «propre» de ce mot. Or qu’appelle-t-on «pardon»? Qu’est-ce qui appelle un «pardon»? Qui appelle, qui en appelle au pardon? Il est aussi difficile de mesurer un pardon que de prendre la mesure de telles questions. Pour plusieurs raisons que je m’empresse de situer. l - En premier lieu, parce qu’on entretient l’équivoque, notamment dans les débats politiques qui réactivent et déplacent aujourd’hui cette notion, à travers le monde on entretient l’équivoque. On confond souvent, parfois de façon calculée, le pardon avec des thèmes voisins: l’excuse, le regret, l’amnistie, la prescription, etc., autant de significations dont certaines relèvent du droit, d’un droit pénal auquel le pardon devrait rester en principe hétérogène et irréductible. 2 - Si énigmatique que reste le concept de pardon, il se trouve que la scène, la figure, le langage qu’on tente d’y ajuster appartiennent à un héritage religieux (disons abrahamique, pour y rassembler le judaïsme, les christianismes et les islams). Cette tradition -complexe et différenciée, voire conflictuelle- est à la fois singulière et en voie d’universalisation, à travers ce que met en œuvre ou met au jour un certain théâtre du pardon. 3 - Dès lors -et c’est l’un des fils directeurs de mon séminaire sur le pardon (et le parjure)-, la dimension même du pardon tend à s’effacer au cours de cette mondialisation, et avec elle toute mesure, toute limite conceptuelle. Dans toutes les scènes de repentir, d’aveu, de pardon ou d’excuses qui se multiplient sur la scène géopolitique depuis la dernière guerre, et de façon accélérée depuis quelques années, on voit non seulement des individus mais des communautés entières, des corporations professionnelles, les représentants de hiérarchies ecclésiastiques, des souverains et des chefs d’État demander «pardon». Ils le font dans un langage abrahamique qui n’est pas (dans le cas du Japon ou de la Corée, par exemple) celui de la religion dominante de leur société mais qui est

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O século e o perdão, pp. 355-388 déjà devenu l’idiome universel du droit, de la politique, de l’économie ou de la diplomatie: à la fois l’agent et le symptôme de cette internationalisation. La prolifération de ces scènes de repentir et de «pardon» demandé signifie sans doute une urgence universelle de la mémoire: il faut se tourner vers le passé; et cet acte de mémoire, d’auto-accusation, de «repentance», de comparution, il faut le porter à la fois au-delà de l’instance juridique et de l’instance État-nation. On se demande donc ce qui se passe à cette échelle. Les pistes sont nombreuses. L’une d’entre elles reconduit régulièrement à une série d’événements extraordinaires, ceux qui, avant et pendant la Seconde Guerre mondiale, ont rendu possible, ont en tout cas «autorisé», avec le Tribunal de Nuremberg, l’institution internationale d’un concept juridique comme celui de «crime contre l’humanité». Il y eut là un événement «performatif» d’une envergure encore difficile à interpréter. Même si des mots comme «crime contre l’humanité» circulent maintenant dans le langage courant. Cet événement fut lui-même produit et autorisé par une communauté internationale à une date et selon une figure déterminées de son histoire. Qui s’enchevêtre mais ne se confond pas avec l’histoire d’une réaffirmation des droits de l’homme, d’une nouvelle Déclaration des droits de l’homme. Cette sorte de mutation a structuré l’espace théâtral dans lequel se joue -sincèrement ou non- le grand pardon, la grande scène de repentir qui nous occupe. Elle a souvent les traits, dans sa théâtralité même, d’une grande convulsion -oserait-on dire d’une compulsion frénétique? Non, elle répond aussi, heureusement, à un «bon» mouvement. Mais le simulacre, le rituel automatique, l’hypocrisie, le calcul ou la singerie sont souvent de la partie, et s’invitent en parasites à cette cérémonie de la culpabilité. Voilà toute une humanité secouée par un mouvement qui se voudrait unanime, voilà un genre humain qui prétendrait s’accuser tout à coup, et publiquement, et spectaculairement, de tous les crimes en effet commis par lui-même contre lui-même, «contre l’humanité». Car si on commençait à s’accuser, en demandant pardon, de tous les crimes du passé contre l’humanité, il n’y aurait plus un innocent sur la Terre -et donc plus personne en position de juge ou d’arbitre. Nous sommes tous les héritiers, au moins, de personnes ou d’événements marqués, de façon essentielle, intérieure, ineffaçable, par des crimes contre l’humanité. Parfois ces événements, ces meurtres massifs, organisés, cruels, qui peuvent avoir été des révolutions, de grandes Révolutions canoniques et «légitimes», furent ceux-là mêmes qui ont permis l’émergence de concepts comme ceux des droits de l’homme ou du crime contre l’humanité. Qu’on y voie un immense progrès, une mutation historique ou un concept encore obscur dans ses limites, fragile dans ses fondations (et on peut faire l’un et l’autre à la fois -j’y inclinerais, pour ma part), on ne peut dénier ce fait: le concept de «crime contre l’humanité» reste à l’horizon de toute la géopolitique du pardon. Il lui fournit son discours et sa légitimation. Prenez l’exemple saisissant de la commission Vérité et réconciliation en Afrique du Sud. Il reste unique malgré les analogies, seulement des analogies, de quelques précédents sud-américains, au Chili notamment. Eh bien, ce qui a donné son ultime justification, sa légitimité déclarée à cette commission, c’est la définition de l’Apartheid comme «crime contre l’humanité» par la communauté internationale dans sa représentation onusienne. Cette convulsion dont je parlais prendrait aujourd’hui la tournure d’une conversion. D’une conversion de fait et tendanciellement universelle: en voie de mondialisation. Car si, comme je le Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 crois, le concept de crime contre l’humanité est le chef d’accusation de cette auto-accusation, de ce repentir et de ce pardon demandé; si d’autre part une sacralité de l’humain peut seule, en dernier ressort, justifier ce concept (rien n’est pire, dans cette logique, qu’un crime contre l’humanité de l’homme et contre les droits de l’homme); si cette sacralité trouve son sens dans la mémoire abrahamique des religions du Livre et dans une interprétation juive, mais surtout chrétienne, du «prochain» ou du «semblable»; si dès lors le crime contre l’humanité est un crime contre le plus sacré dans le vivant, et donc déjà contre le divin dans l’homme, dans Dieu-fait-homme ou l’homme-faitDieu-par-Dieu (la mort de l’homme et la mort de Dieu trahiraient ici le même crime), alors la «mondialisation» du pardon ressemble à une immense scène de confession en cours, donc à une convulsion-conversion-confession virtuellement chrétienne, un processus de christianisation qui n’a plus besoin de l’Église chrétienne. Si, comme je le suggérais à l’instant, un tel langage croise et accumule en lui de puissantes traditions (la culture «abrahamique» et celle d’un humanisme philosophique, plus précisément d’un cosmopolitisme né lui-même d’une greffe de stoïcisme et de christianisme paulinien), pourquoi s’impose-t-il aujourd’hui à des cultures qui ne sont à l’origine ni européennes ni «bibliques»? Je pense à ces scènes où un Premier ministre japonais «demanda pardon» aux Coréens et aux Chinois pour les violences passées. Il présenta certes ses «heartfelt apologies» en son nom personnel, d’abord sans engager l’Empereur à la tête de l’État, mais un Premier ministre engage toujours plus qu’une personne privée. Récemment il y eut de véritables négociations, cette fois, officielles et serrées, entre le gouvernement japonais et le gouvernement sud-coréen à ce sujet. Il y allait de réparations et d’une réorientation politico-économique. Ces tractations visaient, comme c’est presque toujours le cas, à produire une réconciliation (nationale ou internationale) propice à une normalisation. Le langage du pardon, au service de finalités déterminées, était tout sauf pur et désintéressé. Comme toujours dans le champ politique. Je prendrai alors le risque de cette proposition: à chaque fois que le pardon est au service d’une finalité, fût-elle noble et spirituelle (rachat ou rédemption, réconciliation, salut), à chaque fois qu’il tend à rétablir une normalité (sociale, nationale, politique, psychologique) par un travail du deuil, par quelque thérapie ou écologie de la mémoire, alors le «pardon» n’est pas pur -ni son concept. Le pardon n’est, il ne devrait être ni normal, ni normatif, ni normalisant. Il devrait rester exceptionnel et extraordinaire, à l’épreuve de l’impossible: comme s’il interrompait le cours ordinaire de la temporalité historique. Il faudrait donc interroger de ce point de vue ce qu’on appelle la mondialisation et ce que je propose ailleurs7 de surnommer la mondialatinisation -pour prendre en compte l’effet de christianité romaine qui surdétermine aujourd’hui tout le langage du droit, de la politique, et même l’interprétation dudit «retour du religieux»-. Aucun prétendu désenchantement, aucune sécularisation ne vient l’interrompre, bien au contraire.

7 Cf. «Foi et savoir, Les deux sources de la «religion» aux limites de la simple raison», in La Religion, J. Derrida et G. Vattimo, Le Seuil, l996.

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O século e o perdão, pp. 355-388 Pour aborder à présent le concept même de pardon, la logique et le bon sens s’accordent pour une fois avec le paradoxe: il faut, me semble-t-il, partir du fait que, oui, il y a de l’impardonnable. N’est-ce pas en vérité la seule chose à pardonner? La seule chose qui appelle le pardon? Si l’on n’était prêt à pardonner que ce qui paraît pardonnable, ce que l’Église appelle le «péché véniel», alors l’idée même de pardon s’évanouirait. S’il y a quelque chose à pardonner, ce serait ce qu’en langage religieux on appelle le péché mortel, le pire, le crime ou le tort impardonnable. D’où l’aporie qu’on peut décrire dans sa formalité sèche et implacable, sans merci: le pardon pardonne seulement l’impardonnable. On ne peut ou ne devrait pardonner, il n’y a de pardon, s’il y en a, que là où il y a de l’impardonnable. Autant dire que le pardon doit s’annoncer comme l’impossible même. Il ne peut être possible qu’à faire l’im-possible. Parce que, en ce siècle, des crimes monstrueux (« impardonnables », donc) ont non seulement été commis -ce qui n’est peut-être pas en soi si nouveau- mais sont devenus visibles, connus, rappelés, nommés, archivés par une «conscience universelle» mieux informée que jamais, parce que ces crimes à la fois cruels et massifs paraissent échapper ou parce qu’on a cherché à les faire échapper, dans leur excès même, à la mesure de toute justice humaine, eh bien, l’appel au pardon s’en est trouvé (par l’impardonnable même, donc!) réactivé, re-motivé, accéléré. Au moment de la loi de l964 qui décida en France de l’imprescriptibilité des crimes contre l’humanité, un débat fut ouvert. Je note au passage que le concept juridique de l’imprescriptible n’est en rien équivalent au concept non juridique de l’impardonnable. On peut maintenir l’imprescriptibilité d’un crime, ne mettre aucune limite à la durée d’une inculpation ou d’une poursuite possible devant la loi, tout en pardonnant au coupable. Inversement on peut acquitter ou suspendre un jugement et pourtant refuser le pardon. Il reste que la singularité du concept d’imprescriptibilité (par opposition à la «prescription» qui a des équivalents dans d’autres droits occidentaux, américain par exemple) tient peut-être à ce qu’elle introduit aussi, comme le pardon ou comme l’impardonnable, une sorte d’éternité ou de transcendance, l’horizon apocalyptique d’un jugement dernier: dans le droit au-delà du droit, dans l’histoire au-delà de l’histoire. C’est un point capital et difficile. Dans un texte polémique justement intitulé «L’imprescriptible», Jankélévitch déclare qu’il ne saurait être question de pardonner des crimes contre l’humanité, contre l’humanité de l’homme: non pas contre des «ennemis», (politiques, religieux, idéologiques), mais contre ce qui fait de l’homme un homme -c’est-à-dire contre la puissance de pardonner elle-même. De façon analogue, Hegel, grand penseur du «pardon» et de la «réconciliation», disait que tout est pardonnable sauf le crime contre l’esprit, à savoir contre la puissance réconciliatrice du pardon. S’agissant bien sûr de la Shoah, Jankélévitch insistait surtout sur un autre argument, à ses yeux décisif: il est d’autant moins question de pardonner, dans ce cas, que les criminels n’ont pas demandé pardon. Ils n’ont pas reconnu leur faute et n’ont manifesté aucun repentir. C’est du moins ce que soutient, un peu vite, peut-être, Jankélévitch. Or je serais tenté de contester cette logique conditionnelle de l’échange, cette présupposition si largement répandue selon laquelle on ne pourrait envisager le pardon qu’à la condition qu’il soit demandé, au cours d’une scène de repentir attestant à la fois la conscience de la faute, la transformation du coupable et l’engagement au moins implicite à tout faire pour éviter le retour du

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O século e o perdão, pp. 355-388 mal. Il y a là une transaction économique qui à la fois confirme et contredit la tradition abrahamique dont nous parlons. Il est important d’analyser au fond la tension, au cœur de l’héritage, entre d’une part l’idée, qui est aussi une exigence, du pardon inconditionnel, gracieux, infini, anéconomique, accordé au coupable en tant que coupable, sans contrepartie, même à qui ne se repent pas ou ne demande pas pardon et, d’autre part, comme en témoignent un grand nombre de textes, à travers beaucoup de difficultés et de raffinements sémantiques, un pardon conditionnel, proportionné à la reconnaissance de la faute, au repentir et à la transformation du pécheur qui demande alors, explicitement, le pardon. Et qui dès lors n’est plus de part en part le coupable mais déjà un autre, et meilleur que le coupable. Dans cette mesure, et à cette condition, ce n’est plus au coupable en tant que tel qu’on pardonne. Une des questions indissociables de celle-ci, et qui ne m’intéresse pas moins, concerne alors l’essence de l’héritage. Qu’est-ce qu’hériter quand l’héritage comporte une injonction à la fois double et contradictoire? Une injonction qu’il faut donc réorienter, interpréter activement, performativement, mais dans la nuit, comme si nous devions alors, sans norme ni critère préétablis, réinventer la mémoire? Malgré mon admirative sympathie pour Jankélévitch, et même si je comprends ce qui inspire cette colère du juste, j’ai du mal à le suivre. Par exemple quand il multiplie les imprécations contre la bonne conscience de «l’Allemand» ou quand il tempête contre le miracle économique du mark et l’obscénité prospère de la bonne conscience, mais surtout quand il justifie le refus de pardonner par le fait, ou plutôt l’allégation du non-repentir. Il dit en somme: «S’ils avaient commencé, dans le repentir, par demander pardon, nous aurions pu envisager de le leur accorder, mais ce ne fut pas le cas.» J’ai d’autant plus de peine à le suivre ici que dans ce qu’il appelle lui-même un «livre de philosophie», Le Pardon, publié antérieurement, Jankélévitch avait été plus accueillant à l’idée d’un pardon absolu. Il revendiquait alors une inspiration juive et surtout chrétienne. Il parlait même d’un impératif d’amour et d’une «éthique hyperbolique»: d’une éthique, donc, qui se porterait au-delà des lois, des normes ou d’une obligation. Éthique au-delà de l’éthique, voilà peut-être le lieu introuvable du pardon. Toutefois, même à ce moment-là, et la contradiction demeure donc, Jankélévitch n’allait pas jusqu’à admettre un pardon inconditionnel et qui donc serait accordé même à qui ne le demande pas. Le nerf de l’argument, dans «L’imprescriptible», et dans la partie intitulée «Pardonner?», c’est que la singularité de la Shoah atteint aux dimensions de l’inexpiable. Or pour l’inexpiable, il n’y aurait pas de pardon possible, selon Jankélévitch, ni même de pardon qui ait un sens, qui fasse sens. Car l’axiome commun ou dominant de la tradition, finalement, et à mes yeux le plus problématique, c’est que le pardon doit avoir du sens. Et ce sens devrait se déterminer sur fond de salut, de réconciliation, de rédemption, d’expiation, je dirais même de sacrifice. Pour Jankélévitch, dès lors qu’on ne peut plus punir le criminel d’une «punition proportionnée à son crime» et que, dès lors, le «châtiment devient presque indifférent», on a affaire à de «l’inexpiable» -il dit aussi de «l’irréparable» (mot que Chirac utilisa dans sa fameuse déclaration sur le crime contre les Juifs sous Vichy: «La France, ce jour-là, accomplissait l’irréparable.»). De l’inexpiable ou de l’irréparable, Jankélévitch conclut à l’impardonnable. Et l’on ne pardonne pas, selon lui, à de l’impardonnable. Cet enchaînement ne me paraît pas aller de soi. Pour la raison que j’ai dite (que serait un pardon qui ne pardonnerait que le

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O século e o perdão, pp. 355-388 pardonnable?) et parce que cette logique continue d’impliquer que le pardon reste le corrélat d’un jugement et la contrepartie d’une punition possibles, d’une expiation possible, de l’«expiable». Car Jankélévitch semble alors tenir deux choses pour acquises (comme Arendt, par exemple, dans La Condition de l’homme moderne): l - le pardon doit rester une possibilité humaine -j’insiste sur ces deux mots et surtout sur ce trait anthropologique qui décide de tout (car il s’agira toujours, au fond, de savoir si le pardon est une possibilité ou non, voire une faculté, donc un «je peux» souverain, et un pouvoir humain ou non), 2 - cette possibilité humaine est le corrélat de la possibilité de punir -non pas de se venger, bien sûr, ce qui est autre chose, à quoi le pardon est encore plus étranger, mais de punir selon la loi. «Le châtiment», dit Arendt, «a ceci de commun avec le pardon qu’il tente de mettre un terme à une chose qui, sans intervention, pourrait continuer indéfiniment. Il est donc très significatif, c’est un élément structurel du domaine des affaires humaines [je souligne], que les hommes soient incapables de pardonner ce qu’ils ne peuvent punir, et qu’ils soient incapables de punir ce qui se révèle impardonnable.» Dans «L’imprescriptible», donc, et non pas dans Le Pardon, Jankélévitch s’installe dans cet échange, dans cette symétrie entre punir et pardonner: le pardon n’aurait plus de sens là où le crime est devenu, comme la Shoah, «inexpiable», «irréparable», hors de proportion avec toute mesure humaine. «Le pardon est mort dans les camps de la mort», dit-il. Oui. À moins qu’il ne devienne possible qu’à partir du moment où il paraît impossible. Son histoire commencerait au contraire avec l’impardonnable. Ce n’est pas au nom d’un purisme éthique ou spirituel que j’insiste sur cette contradiction au cœur de l’héritage, et sur la nécessité de maintenir la référence à un pardon inconditionnel et anéconomique : au-delà de l’échange et même de l’horizon d’une rédemption ou d’une réconciliation. Si je dis: «Je te pardonne à la condition que, demandant pardon, tu aies donc changé et ne sois plus le même», est-ce que je pardonne? qu’est-ce que je pardonne? et à qui? quoi et qui? quelque chose ou quelqu’un? Première ambiguïté syntaxique, d’ailleurs, qui devrait déjà nous retenir longtemps. Entre la question «qui?» et la question «quoi?». Pardonne-t-on quelque chose, un crime, une faute, un tort, c’est-à-dire un acte ou un moment qui n’épuisent pas la personne incriminée et à la limite ne se confond pas avec le coupable qui lui reste donc irréductible? Ou bien pardonne-t-on à quelqu’un, absolument, ne marquant plus alors la limite entre le tort, le moment de la faute, et d’autre part la personne qu’on tient pour responsable ou coupable? Et dans ce dernier cas (question «qui?»), demande-t-on pardon à la victime ou à quelque témoin absolu, à Dieu, par exemple à tel Dieu qui a prescrit de pardonner à l’autre (homme) pour mériter d’être pardonné à son tour? (L’Église de France a demandé pardon à Dieu, elle ne s’est pas repentie directement ou seulement devant les hommes, ou devant les victimes, par exemple la communauté juive, qu’elle a seulement prises à témoin, mais publiquement, il est vrai, du pardon demandé en vérité à Dieu, etc.) Je dois laisser ces immenses questions ouvertes. Imaginez donc que je pardonne à la condition que le coupable se repente, s’amende, demande pardon et donc soit changé par un nouvel engagement, et que dès lors il ne soit plus tout à fait le même que celui qui s’est rendu coupable. Dans ce cas, peut-on encore parler d’un pardon? Ce serait

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O século e o perdão, pp. 355-388 trop facile, des deux côtés: on pardonnerait un autre que le coupable même. Pour qu’il y ait pardon, ne faut-il pas au contraire pardonner et la faute et le coupable en tant que tels, là où l’une et l’autre demeurent, aussi irréversiblement que le mal, comme le mal même, et seraient encore capables de se répéter, impardonnablement, sans transformation, sans amélioration, sans repentir ni promesse? Ne doit-on pas maintenir qu’un pardon digne de ce nom, s’il y en a jamais, doit pardonner l’impardonnable, et sans condition? Et que cette inconditionnalité est aussi inscrite, comme son contraire, à savoir la condition du repentir, dans «notre» héritage? Même si cette pureté radicale peut paraître excessive, hyperbolique, folle? Car si je dis, comme je le pense, que le pardon est fou, et qu’il doit rester une folie de l’impossible, ce n’est certainement pas pour l’exclure ou le disqualifier. Il est peut-être même la seule chose qui arrive, qui surprenne, comme une révolution, le cours ordinaire de l’histoire, de la politique et du droit. Car cela veut dire qu’il demeure hétérogène à l’ordre du politique ou du juridique tels qu’on les entend ordinairement. On ne pourra jamais, en ce sens ordinaire des mots, fonder une politique ou un droit sur le pardon. Dans toutes les scènes géopolitiques dont nous parlions, on abuse donc le plus souvent du mot «pardon». Car il s’agit toujours de négociations plus ou moins avouées, de transactions calculées, de conditions et, comme dirait Kant, d’impératifs hypothétiques. Ces tractations peuvent certes paraître honorables. Par exemple au nom de la «réconciliation nationale», expression à laquelle de Gaulle, Pompidou et Mitterrand ont tous les trois recouru au moment où ils ont cru devoir prendre la responsabilité d’effacer les dettes et les crimes du passé, sous l’Occupation ou pendant la guerre d’Algérie. En France les plus hauts responsables politiques ont régulièrement tenu le même langage: il faut procéder à la réconciliation par l’amnistie et reconstituer ainsi l’unité nationale. C’est un leitmotiv de la rhétorique de tous les chefs d’État et Premiers ministres français depuis la Seconde Guerre mondiale, sans exception. Ce fut littéralement le langage de ceux qui après le premier moment d’épuration, décidèrent de la grande amnistie de l951 pour les crimes commis sous l’Occupation. J’ai entendu un soir, dans un document d’archives, M. Cavaillet dire, je le cite de mémoire, qu’il avait, alors parlementaire, voté la loi d’amnistie de l951 parce qu’il fallait, disait-il, «savoir oublier»; d’autant plus qu’à ce moment-là, Cavaillet y insistait lourdement, le danger communiste était ressenti comme le plus urgent. Il fallait faire revenir dans la communauté nationale tous les anticommunistes qui, collaborateurs quelques années auparavant, risquaient de se trouver exclus du champ politique par une loi trop sévère et par une épuration trop peu oublieuse. Refaire l’unité nationale, cela voulait dire se réarmer de toutes les forces disponibles dans un combat qui continuait, cette fois en temps de paix ou de guerre dite froide. Il y a toujours un calcul stratégique et politique dans le geste généreux de qui offre la réconciliation ou l’amnistie, et il faut toujours intégrer ce calcul dans nos analyses. «Réconciliation nationale», ce fut encore, je l’ai dit, le langage explicite de De Gaulle quand il revint pour la première fois à Vichy et y prononça un fameux discours sur l’unité et l’unicité de la France; ce fut littéralement le discours de Pompidou qui parla aussi, dans une fameuse conférence de presse, de «réconciliation nationale» et de division surmontée quand il gracia Touvier; ce fut encore le langage de Mitterrand quand il a soutenu, à plusieurs reprises, qu’il était garant de l’unité nationale, et très précisément quand il a refusé de déclarer la culpabilité de la France sous Vichy (qu’il qualifiait, vous le savez, de pouvoir non-légitime ou non-représentatif, approprié par une minorité d’extrémistes, alors que nous savons la chose plus compliquée, et non seulement du point

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O século e o perdão, pp. 355-388 de vue formel et légal, mais laissons). Inversement, quand le corps de la nation peut supporter sans risque une division mineure ou même trouver son unité renforcée par des procès, par des ouvertures d’archives, par des «levées de refoulement», alors d’autres calculs dictent de faire droit de façon plus rigoureuse et plus publique à ce qu’on appelle le «devoir de mémoire». C’est toujours le même souci: faire en sorte que la nation survive à ses déchirements, que les traumatismes cèdent au travail du deuil, et que l’État-nation ne soit pas gagné par la paralysie. Mais même là où l’on pourrait le justifier, cet impératif «écologique» de la santé sociale et politique n’a rien à voir avec le «pardon» dont on parle alors bien légèrement. Le pardon ne relève pas, il devrait ne jamais relever d’une thérapie de la réconciliation. Revenons au remarquable exemple de l’Afrique du Sud. Encore en prison, Mandela crut devoir assumer lui-même la décision de négocier le principe d’une procédure d’amnistie. Pour permettre d’abord le retour des exilés de l’ANC. Et en vue d’une réconciliation nationale sans laquelle le pays aurait été mis à feu et à sang par la vengeance. Mais pas plus que l’acquittement, le non-lieu, et même la «grâce» (exception juridico-politique dont nous reparlerons), l’amnistie ne signifie le pardon. Or quand Desmond Tutu a été nommé président de la commission Vérité et réconciliation, il a christianisé le langage d’une institution destinée à traiter uniquement de crimes à motivation «politique» (énorme problème auquel je renonce à toucher ici, comme je renonce à analyser la structure complexe de ladite commission, dans ses rapports avec les autres instances judiciaires et procédures pénales qui devaient suivre leur cours). Avec autant de bonne volonté que de confusion, me semble-t-il, Tutu, archevêque anglican, introduit le vocabulaire du repentir et du pardon. Il se l’est fait reprocher, entre autres choses d’ailleurs, par une partie nonchrétienne de la communauté noire. Sans parler des redoutables enjeux de traduction que je ne peux ici qu’évoquer mais qui, comme le recours au langage même, concernent aussi le second aspect de votre question: la scène du pardon est-elle un face-à-face personnel ou bien en appelle-t-elle à quelque médiation institutionnelle? (Et le langage lui-même, la langue est ici une première institution médiatrice). En principe, donc, toujours pour suivre une veine de la tradition abrahamique, le pardon doit engager deux singularités: le coupable (le «perpetrator», comme on dit en Afrique du Sud) et la victime. Dès qu’un tiers intervient, on peut encore parler d’amnistie, de réconciliation, de réparation, etc. Mais certainement pas de pur pardon, au sens strict. Le statut de la commission Vérité et Réconciliation est fort ambigu à ce sujet, comme le discours de Tutu qui oscille entre une logique non-pénale et non-réparatrice du «pardon» (il la dit «restauratrice») et une logique judiciaire de l’amnistie. On devrait analyser de près l’instabilité équivoque de toutes ces auto-interprétations. À la faveur d’une confusion entre l’ordre du pardon et l’ordre de la justice, mais aussi bien en abusant de leur hétérogénéité, comme du fait que le temps du pardon échappe au processus judiciaire, il est d’ailleurs toujours possible de mimer la scène du pardon «immédiat» et quasi automatique pour échapper à la justice. La possibilité de ce calcul reste toujours ouverte et on pourrait en donner beaucoup d’exemples. Et de contre-exemples. Ainsi Tutu raconte qu’un jour une femme noire vient témoigner devant la Commission. Son mari avait été assassiné par des policiers tortionnaires. Elle parle dans sa langue, une des onze langues officiellement reconnues par la Constitution. Tutu l’interprète et la traduit à peu près ainsi, dans son idiome chrétien (anglo-

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O século e o perdão, pp. 355-388 anglican): «Une commission ou un gouvernement ne peut pas pardonner. Moi seule, éventuellement, pourrais le faire. (And I am not ready to forgive.) Et je ne suis pas prête à pardonner -ou pour pardonner.» Parole fort difficile à entendre. Cette femme victime, cette femme de victime8 voulait sûrement rappeler que le corps anonyme de l’État ou d’une institution publique ne peut pardonner. Il n’en a ni le droit ni le pouvoir; et cela n’aurait d’ailleurs aucun sens. Le représentant de l’État peut juger mais le pardon n’a rien à voir avec le jugement, justement. Ni même avec l’espace public ou politique. Même s’il était «juste», le pardon serait juste d’une justice qui n’a rien à voir avec la justice judiciaire, avec le droit. Il y a des cours de justice pour cela et ces cours ne pardonnent jamais, au sens strict de ce mot. Cette femme voulait peut-être suggérer autre chose encore: si quelqu’un a quelque titre à pardonner, c’est seulement la victime et non une institution tierce. Car d’autre part, même si cette épouse était aussi une victime, eh bien, la victime absolue, si l’on peut dire, restait son mari mort. Seul le mort aurait pu, légitimement, envisager le pardon. La survivante n’était pas prête à se substituer abusivement au mort. Immense et douloureuse expérience du survivant: qui aurait le droit de pardonner au nom de victimes disparues? Celles-ci sont toujours absentes, d’une certaine manière. Disparues par essence, elles ne sont jamais elles-mêmes absolument présentes, au moment du pardon demandé, comme les mêmes, celles qu’elles furent au moment du crime; et elles sont parfois absentes dans leur corps, voire souvent mortes. Je reviens un instant à l’équivoque de la tradition. Tantôt le pardon (accordé par Dieu ou inspiré par la prescription divine) doit être un don gracieux, sans échange et sans condition; tantôt, il requiert, comme sa condition minimale, le repentir et la transformation du pécheur. Quelle conséquence tirer de cette tension? Au moins celle-ci, qui ne simplifie pas les choses: si notre idée du pardon tombe en ruine dès qu’on la prive de son pôle de référence absolu, à savoir de sa pureté inconditionnelle, elle reste néanmoins inséparable de ce qui lui est hétérogène, à savoir l’ordre des conditions, le repentir, la transformation, autant de choses qui lui permettent de s’inscrire dans l’histoire, le droit, la politique, l’existence même. Ces deux pôles, l’inconditionnel et le conditionnel, sont absolument hétérogènes et doivent demeurer irréductibles l’un à l’autre. Ils sont pourtant indissociables: si l’on veut, et il le faut, que le pardon devienne effectif, concret, historique, si l’on veut qu’il arrive, qu’il ait lieu en changeant les choses, il faut que sa pureté s’engage dans une série de conditions de toute sorte (psychosociologiques, politiques, etc.). C’est entre ces deux pôles, irréconciliables mais indissociables, que les décisions et les responsabilités sont à prendre. Mais malgré toutes les confusions qui réduisent le pardon à l’amnistie ou à l’amnésie, à l’acquittement ou à la prescription, au travail du deuil ou à quelque thérapie politique de réconciliation, bref à quelque écologie historique, il ne faudrait jamais oublier, néanmoins, que tout cela se réfère à une certaine idée du pardon pur et inconditionnel sans laquelle ce discours n’aurait pas le moindre sens. Ce qui complique la question du «sens», c’est encore ceci, je le suggérais tout à 8 Il y aurait beaucoup à dire ici sur les différences sexuelles, qu’il s’agisse des victimes ou de leur témoignage. Tutu raconte aussi comment certaines femmes ont pardonné en présence des bourreaux. Mais Antje Krog, dans un livre admirable, The Country of my Skull, décrit aussi la situation de femmes militantes qui, violées et d’abord accusées par les tortionnaires de n’être pas des militantes mais des putains, ne pouvaient même pas en témoigner devant la commission, ni même dans leur famille, sans se dénuder, sans montrer leurs cicatrices ou sans s’exposer une fois de plus, par leur témoignage même, à une autre violence. La «question du pardon» ne pouvait même pas se poser publiquement à ces femmes dont certaines occupent maintenant de hautes responsabilités dans l’État. Il existe une «Gender Commission» à ce sujet en Afrique du Sud.

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O século e o perdão, pp. 355-388 l’heure: le pardon pur et inconditionnel, pour avoir son sens propre, doit n’avoir aucun «sens», aucune finalité, aucune intelligibilité même. C’est une folie de l’impossible. Il faudrait suivre sans faiblir la conséquence de ce paradoxe ou de cette aporie. Ce qu’on appelle le droit de grâce en donne un exemple, à la fois un exemple parmi d’autres et le modèle exemplaire. Car s’il est vrai que le pardon devrait rester hétérogène à l’ordre juridicopolitique, judiciaire ou pénal, s’il est vrai qu’il devrait à chaque fois, en chaque occurrence, rester une exception absolue, alors il y a une exception à cette loi d’exception, en quelque sorte, et c’est justement, en Occident, cette tradition théologique qui accorde au souverain un droit exorbitant. Car le droit de grâce est bien, comme son nom l’indique, de l’ordre du droit mais d’un droit qui inscrit dans les lois un pouvoir au-dessus des lois. Le monarque absolu de droit divin peut gracier un criminel, c’est-à-dire pratiquer, au nom de l’État, un pardon qui transcende et neutralise le droit. Droit au-dessus du droit. Comme l’idée de souveraineté même, ce droit de grâce a été réapproprié dans l’héritage républicain. Dans des États modernes de type démocratique, comme la France, on dirait qu’il a été sécularisé (si ce mot avait un sens ailleurs que dans la tradition religieuse qu’il maintient en prétendant s’y soustraire). Dans d’autres, comme les États-Unis, la sécularisation n’est pas même un simulacre, puisque le Président et les gouverneurs, qui ont le droit de grâce (pardon, clemency), prêtent d’abord serment sur la Bible, tiennent des discours officiels de type religieux et invoquent le nom ou la bénédiction de Dieu à chaque fois qu’ils s’adressent à la nation. Ce qui compte dans cette exception absolue qu’est le droit de grâce, c’est que l’exception du droit, l’exception au droit est située au sommet ou au fondement du juridico-politique. Dans le corps du souverain, elle incarne ce qui fonde, soutient ou érige, au plus haut, avec l’unité de la nation, la garantie de la constitution, les conditions et l’exercice du droit. Comme c’est toujours le cas, le principe transcendantal d’un système n’appartient pas au système. Il lui est étranger comme une exception. Sans contester le principe de ce droit de grâce, le plus «élevé» qui soit, le plus noble mais aussi le plus «glissant» et le plus équivoque, le plus dangereux, le plus arbitraire, Kant rappelle la stricte limitation qu’il faudrait lui imposer pour qu’il ne donne pas lieu aux pires injustices: que le souverain ne puisse gracier que là où le crime le vise lui-même (et donc vise, dans son corps, la garantie même du droit, de l’État de droit et de l’État). Comme dans la logique hégélienne dont nous parlions plus haut, n’est impardonnable que le crime contre ce qui donne le pouvoir de pardonner, le crime contre le pardon, en somme -l’esprit selon Hegel, et ce qu’il appelle «l’esprit du christianisme»- mais c’est justement cet impardonnable, et cet impardonnable seul que le souverain a encore le droit de pardonner, et seulement quand le «corps du roi», dans sa fonction souveraine, est visé à travers l’autre «corps du roi», qui est ici le «même», le corps de chair, singulier et empirique. En dehors de cette exception absolue, dans tous les autres cas, partout où les torts concernent les sujets euxmêmes, c’est-à-dire presque toujours, le droit de grâce ne saurait s’exercer sans injustice. En fait, on sait qu’il est toujours exercé de façon conditionnelle, en fonction d’une interprétation ou d’un calcul, de la part du souverain, quant à ce qui croise un intérêt particulier (le sien propre ou ceux des siens ou d’une fraction de la société) et l’intérêt de l’État. Un exemple récent en serait donné par Clinton qui n’a jamais été enclin à gracier qui que ce soit et qui est un partisan plutôt offensif de la peine de mort. Or il vient, en utilisant son «right to pardon», de gracier des Portoricains emprisonnés depuis

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O século e o perdão, pp. 355-388 longtemps pour terrorisme. Eh bien, les Républicains n’ont pas manqué de contester ce privilège absolu de l’exécutif en accusant le Président d’avoir ainsi voulu aider Hillary Clinton dans sa prochaine campagne électorale à New York où les Porto-Ricains sont, comme vous le savez, nombreux. Dans le cas à la fois exceptionnel et exemplaire du droit de grâce, là où ce qui excède le juridicopolitique s’inscrit, pour le fonder, dans le droit constitutionnel, eh bien il y a et il n’y a pas ce tête-àtête ou ce face-à-face personnel, et dont on peut penser qu’il est exigé par l’essence même du pardon. Là même où celui-ci devrait n’engager que des singularités absolues, il ne peut se manifester de quelque façon sans en appeler au tiers, à l’institution, à la socialité, à l’héritage transgénérationnel, au survivant en général; et d’abord à cette instance universalisante qu’est le langage. Peut-il y avoir, de part ou d’autre, une scène de pardon sans un langage partagé? Ce partage n’est pas seulement celui d’une langue nationale ou d’un idiome, mais celui d’un accord sur le sens des mots, leurs connotations, la rhétorique, la visée d’une référence, etc. C’est là une autre forme de la même aporie: quand la victime et le coupable ne partagent aucun langage, quand rien de commun et d’universel ne leur permet de s’entendre, le pardon semble privé de sens, on a bien affaire à cet impardonnable absolu, à cette impossibilité de pardonner dont nous disions pourtant tout à l’heure qu’elle était, paradoxalement, l’élément même de tout pardon possible. Pour pardonner, il faut d’une part s’entendre, des deux côtés, sur la nature de la faute, savoir qui est coupable de quel mal envers qui, etc. Chose déjà fort improbable. Car vous imaginez ce qu’une «logique de l’inconscient» viendrait perturber dans ce «savoir», et dans tous les schémas dont elle détient pourtant une «vérité». Et vous imaginez aussi ce qui se passerait quand la même perturbation ferait tout trembler, quand elle viendrait retentir dans le «travail du deuil», dans la «thérapie» dont nous parlions, et dans le droit et dans la politique. Car si un pardon pur ne peut pas, s’il ne doit pas se présenter comme tel, donc s’exhiber sur le théâtre de la conscience sans du même coup se dénier, mentir ou réaffirmer une souveraineté, alors comment savoir ce qu’est un pardon, s’il a jamais lieu, et qui pardonne qui, ou quoi à qui? Car d’autre part, s’il faut, comme nous le disions à l’instant, s’entendre, des deux côtés, sur la nature de la faute, savoir, en conscience, qui est coupable de quel mal envers qui, etc., et si la chose reste déjà fort improbable, le contraire est aussi vrai. En même temps, il faut en effet que l’altérité, la non-identification, l’incompréhension même restent irréductibles. Le pardon est donc fou, il doit s’enfoncer, mais lucidement, dans la nuit de l’inintelligible. Appelez cela l’inconscient ou la non-conscience, si vous voulez. Dès que la victime «comprend» le criminel, dès qu’elle échange, parle, s’entend avec lui, la scène de la réconciliation a commencé, et avec elle ce pardon courant qui est tout sauf un pardon. Même si je dis «je ne te pardonne pas» à quelqu’un qui me demande pardon, mais que je comprends et qui me comprend, alors un processus de réconciliation a commencé, le tiers est intervenu. Pourtant c’en est fini du pur pardon.

Dans les situations les plus terribles, en Afrique, au Kosovo, ne s’agit-il pas, précisément, d’une barbarie de proximité, où le crime s’est noué entre gens qui se connaissaient ? Le pardon n’implique-t-il pas l’impossible: être en même temps dans autre chose que la situation antérieure, avant le crime, tout en étant dans la compréhension de la situation antérieure? Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Jacques Derrida: Dans ce que vous appelez la «situation antérieure», il pouvait y avoir en effet toutes sortes de proximités: langage, voisinage, familiarité, famille même, etc. Mais pour que le mal surgisse, le «mal radical» et peut-être pire encore, le mal impardonnable, le seul qui fasse surgir la question du pardon, il faut que, au plus intime de cette intimité, une haine absolue vienne interrompre la paix. Cette hostilité destructrice ne peut viser que ce que Levinas appelle le «visage» d’autrui, l’autre semblable, le prochain le plus proche, entre le Bosniaque et le Serbe par exemple, à l’intérieur du même quartier, de la même maison, parfois de la même famille. Le pardon doit-il alors saturer l’abîme? Doit-il suturer la blessure dans un processus de réconciliation? Ou bien donner lieu à une autre paix, sans oubli, sans amnistie, fusion ou confusion? Bien entendu, personne n’oserait décemment objecter à l’impératif de la réconciliation. Il vaut mieux mettre fin aux crimes et aux déchirements. Mais encore une fois, je crois devoir distinguer entre le pardon et ce processus de réconciliation, cette reconstitution d’une santé ou d’une «normalité», si nécessaires et souhaitables qu’elles puissent paraître à travers les amnésies, le «travail du deuil», etc. Un pardon «finalisé» n’est pas un pardon, c’est seulement une stratégie politique ou une économie psychothérapeutique. En Algérie aujourd’hui, malgré la douleur infinie des victimes et le tort irréparable dont elles souffrent à jamais, on peut penser, certes, que la survie du pays, de la société et de l’État passe par le processus de réconciliation annoncé. On peut de ce point de vue «comprendre» qu’un vote ait approuvé la politique promise par Bouteflika. Mais je crois inapproprié le mot de «pardon» qui fut prononcé à cette occasion, en particulier par le chef de l’État algérien. Je le trouve injuste à la fois par respect pour les victimes de crimes atroces (aucun chef d’État n’a le droit de pardonner à leur place) et par respect pour le sens de ce mot, pour l’inconditionnalité non-négociable, anéconomique, a-politique et non-stratégique qu’il prescrit. Mais encore une fois, ce respect du mot ou du concept ne traduit pas seulement un purisme sémantique ou philosophique. Toutes sortes de «politiques» inavouables, toutes sortes de ruses stratégiques peuvent s’abriter abusivement derrière une «rhétorique» ou une «comédie» du pardon pour brûler l’étape du droit. En politique, quand il s’agit d’analyser, de juger, voire de contrarier pratiquement ces abus, l’exigence conceptuelle est de rigueur, même là où elle prend en compte, en s’y embarrassant et en les déclarant, des paradoxes ou des apories. C’est, encore une fois, la condition de la responsabilité.

Vous êtes donc en permanence partagé entre une vision éthique «hyperbolique» du pardon, le pardon pur, et la réalité d’une société au travail dans des processus pragmatiques de réconciliation?

Jacques Derrida: Oui, je reste «partagé», comme vous le dites si bien. Mais sans pouvoir, ni vouloir, ni devoir départager. Les deux pôles sont irréductibles l’un à l’autre, certes, mais ils restent indissociables. Pour infléchir la «politique» ou ce que vous venez d’appeler les «processus pragmatiques», pour changer le droit (qui se trouve donc pris entre les deux pôles, l’«idéal» et l’«empirique» -et ce qui m’importe ici, c’est, entre les deux, cette médiation universalisante, cette histoire du droit, la possibilité de ce progrès du droit), il faut se référer à ce que vous venez d’appeler

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O século e o perdão, pp. 355-388 «vision éthique “hyperbolique” du pardon». Bien que je ne sois pas sûr des mots «vision» ou «éthique», dans ce cas, disons que seule cette exigence inflexible peut orienter une histoire des lois, une évolution du droit. Elle seule peut inspirer, ici, maintenant, dans l’urgence, sans attendre, la réponse et les responsabilités. Revenons à la question des droits de l’homme, du concept de crime contre l’humanité, mais aussi de la souveraineté. Plus que jamais, ces trois motifs sont liés dans l’espace public et dans le discours politique. Bien que souvent une certaine notion de la souveraineté soit positivement associée au droit de la personne, au droit à l’autodétermination, à l’idéal d’émancipation, en vérité à l’idée même de liberté, au principe des droits de l’homme, c’est souvent au nom des droits de l’homme et pour punir ou prévenir des crimes contre l’humanité qu’on en vient à limiter, à envisager au moins, par des interventions internationales, de limiter la souveraineté de certains États-nations. Mais de certains d’entre eux, plutôt que d’autres. Exemples récents: les interventions au Kosovo ou au Timor-oriental, d’ailleurs différentes dans leur nature et leur visée. (Le cas de la guerre du Golfe est autrement compliqué: on limite aujourd’hui la souveraineté de l’Irak mais après avoir prétendu défendre, contre lui, la souveraineté d’un petit État -et au passage quelques autres intérêts, mais passons). Soyons toujours attentifs, comme Hannah Arendt le rappelle aussi lucidement, au fait que cette limitation de souveraineté n’est jamais imposée que là où c’est «possible» (physiquement, militairement, économiquement), c’est-à-dire toujours imposée à de petits États, relativement faibles, par des États puissants. Ces derniers restent jaloux de leur propre souveraineté en limitant celle des autres. Ils pèsent aussi de façon déterminante sur les décisions des institutions internationales. C’est là un ordre et un «état de fait» qui peuvent être ou bien consolidés au service des «puissants» ou bien, au contraire, peu à peu disloqués, mis en crise, menacés par des concepts (c’est-à-dire ici des performatifs institués, des événements par essence historiques et transformables), comme ceux des nouveaux «droits de l’homme» ou de «crime contre l’humanité», par des conventions sur le génocide, la torture ou le terrorisme. Entre les deux hypothèses, tout dépend de la politique qui met en œuvre ces concepts. Malgré leurs racines et leurs fondements sans âge, ces concepts sont tout jeunes, du moins en tant que dispositifs du droit international. Et quand, en 1964 -c’était hier- la France a jugé opportun de décider que les crimes contre l’humanité resteraient imprescriptibles (décision qui a rendu possibles tous les procès que vous savez -hier encore celui de Papon), elle en a implicitement appelé à une sorte d’au-delà du droit dans le droit. L’imprescriptible, comme notion juridique, n’est certes pas l’impardonnable, nous avons vu pourquoi tout à l’heure. Mais l’imprescriptible, j’y reviens, fait signe vers l’ordre transcendant de l’inconditionnel, du pardon et de l’impardonnable, vers une sorte d’anhistoricité, voire d’éternité et de Jugement Dernier qui déborde l’histoire et le temps fini du droit: à jamais, «éternellement», partout et toujours, un crime contre l’humanité sera passible d’un jugement, et on n’en effacera jamais l’archive judiciaire. C’est donc une certaine idée du pardon et de l’impardonnable, d’un certain au-delà du droit (de toute détermination historique du droit) qui a inspiré les législateurs et les parlementaires, ceux qui produisent le droit, quand par exemple ils ont institué en France l’imprescriptibilité des crimes contre l’humanité ou, de façon plus générale quand ils transforment le droit international et installent des cours universelles. Cela montre bien que malgré son apparence théorique, spéculative, puriste, abstraite, toute réflexion sur une exigence inconditionnelle est Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 d’avance engagée, et de part en part, dans une histoire concrète. Elle peut induire des processus de transformation -politique, juridique, mais en vérité sans limite. Cela dit, puisque vous me rappeliez à quel point je suis «partagé» devant ces difficultés apparemment insolubles, je serais tenté par deux types de réponse. D’une part, il y a, il doit y avoir, il faut l’accepter, de l’«insoluble». En politique et au-delà. Quand les données d’un problème ou d’une tâche n’apparaissent pas comme infiniment contradictoires, me plaçant devant l’aporie d’une double injonction, alors je sais d’avance ce qu’il faut faire, je crois le savoir, ce savoir commande et programme l’action: c’est fait, il n’y a plus de décision ni de responsabilité à prendre. Un certain nonsavoir doit au contraire me laisser démuni devant ce que j’ai à faire pour que j’aie à le faire, pour que je m’y sente librement obligé et tenu d’en répondre. Il me faut alors, et alors seulement, répondre de cette transaction entre deux impératifs contradictoires et également justifiés. Non qu’il faille ne pas savoir. Au contraire, il faut savoir le plus et le mieux possible, mais entre le savoir le plus étendu, le plus raffiné, le plus nécessaire, et la décision responsable, un abîme demeure et doit demeurer. On retrouve ici la distinction des deux ordres (indissociables mais hétérogènes) qui nous préoccupe depuis le début de cet entretien. D’autre part, si l’on appelle «politique» ce que vous désignez en parlant de «processus pragmatiques de réconciliation», alors, tout en prenant au sérieux ces urgences politiques, je crois aussi que nous ne sommes pas définis de part en part par le politique, et surtout pas par la citoyenneté, par l’appartenance statutaire à un État-nation. Ne doit-on pas accepter que, dans le cœur ou dans la raison, surtout quand il est question du «pardon», quelque chose arrive qui excède toute institution, tout pouvoir, toute instance juridico-politique? On peut imaginer que quelqu’un, victime du pire, en soi-même, chez les siens, dans sa génération ou dans la précédente, exige que justice soit rendue, que les criminels comparaissent, soient jugés et condamnés par une cour -et pourtant dans son cœur pardonne.

Et l’inverse?

Jacques Derrida: L’inverse aussi, bien sûr. On peut imaginer, et accepter, que quelqu’un ne pardonne jamais, même après une procédure d’acquittement ou d’amnistie. Le secret de cette expérience demeure. Il doit rester intact, inaccessible au droit, à la politique, à la morale même: absolu. Mais je ferais de ce principe trans-politique un principe politique, une règle ou une prise de position politique: il faut aussi respecter, en politique, le secret, ce qui excède le politique ou ce qui ne relève plus du juridique. C’est cela que j’appellerais la «démocratie à venir». Dans le mal radical dont nous parlons et par conséquent dans l’énigme du pardon de l’impardonnable, il y a une sorte de «folie» que le juridico-politique ne peut approcher, encore moins s’approprier. Imaginez une victime du terrorisme, une personne dont on a égorgé ou déporté les enfants, ou telle autre dont la famille est morte dans un four crématoire. Qu’elle dise «je pardonne» ou «je ne pardonne pas», dans les deux cas, je ne suis pas sûr de comprendre, je suis même sûr de ne pas comprendre et en tout cas je n’ai rien à dire. Cette zone de l’expérience reste inaccessible et je dois en respecter le secret. Ce qu’il reste à faire, ensuite, publiquement, politiquement, juridiquement, demeure aussi difficile. Reprenons

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O século e o perdão, pp. 355-388 l’exemple de l’Algérie. Je comprends, je partage même le désir de ceux qui disent: «Il faut faire la paix, il faut que ce pays survive, ça suffit, ces meurtres monstrueux, il faut faire ce qu’il faut pour que ça s’arrête», et si, pour cela, il faut ruser jusqu’au mensonge ou à la confusion (comme quand Bouteflika dit: «Nous allons libérer les prisonniers politiques qui n’ont pas de sang sur les mains»), eh bien, va pour cette rhétorique abusive, elle n’aura pas été la première dans l’Histoire récente, moins récente et surtout coloniale de ce pays. Je comprends donc cette «logique», mais je comprends aussi la logique opposée qui refuse à tout prix, et par principe, cette utile mystification. Eh bien, c’est là le moment de la plus grande difficulté, la loi de la transaction responsable. Selon les situations et selon les moments, les responsabilités à prendre sont différentes. On ne devrait pas faire, me semble-t-il, dans la France d’aujourd’hui, ce qu’on s’apprête à faire en Algérie. La société française d’aujourd’hui peut se permettre de mettre au jour, avec une rigueur inflexible, tous les crimes du passé (y compris ceux qui reconduisent en Algérie, précisément, et la chose n’est pas encore faite), elle peut les juger et ne pas laisser s’endormir la mémoire. Il y a des situations où, au contraire, il faut, sinon endormir la mémoire (cela, il ne le faudrait jamais, si c’était possible) mais du moins faire comme si, sur la scène publique, on renonçait à en tirer toutes les conséquences. On n’est jamais sûr de faire le choix juste, on ne sait jamais, on ne le saura jamais de ce qui s’appelle un savoir. L’avenir ne nous le donnera pas davantage à savoir car il aura été déterminé, lui-même, par ce choix. C’est là que les responsabilités sont à réévaluer à chaque instant selon les situations concrètes, c’est-à-dire celles qui n’attendent pas, celles qui ne nous donnent pas le temps de la délibération infinie. La réponse ne peut être la même en Algérie aujourd’hui, hier ou demain, et dans la France de l945, de l968-70, ou de l’an 2000. C’est plus que difficile, c’est infiniment angoissant. C’est la nuit. Mais reconnaître ces différences «contextuelles», c’est tout autre chose qu’une démission empiriste, relativiste ou pragmatiste. Justement parce que la difficulté surgit au nom et en raison de principes inconditionnels, donc irréductibles à ces facilités (empiristes, relativistes ou pragmatistes). En tout cas, je ne réduirais pas la terrible question du mot «pardon» à ces «processus» dans lesquels elle se trouve d’avance engagée, si complexes et inévitables soient-ils.

Ce qui reste complexe, c’est cette circulation entre le politique et l’éthique hyperbolique. Peu de nations échappent à ce fait, peut-être fondateur, qui est qu’il y a eu des crimes, des violences, une violence fondatrice, pour parler comme René Girard, et le thème du pardon devient bien commode pour justifier, ensuite, l’histoire de la nation.

Jacques Derrida: Tous les États-nations naissent et se fondent dans la violence. Je crois cette vérité irrécusable. Sans même exhiber à ce sujet des spectacles atroces, il suffit de souligner une loi de structure: le moment de fondation, le moment instituteur est antérieur à la loi ou à la légitimité qu’il instaure. Il est donc hors la loi, et violent par là-même. Mais vous savez qu’on pourrait «illustrer» (quel mot, ici!) cette abstraite vérité de terrifiants documents, et venus de l’histoire de tous les États, les plus vieux et les plus jeunes. Avant les formes modernes de ce qu’on appelle, au sens strict, le «colonialisme», tous les États (j’oserais même dire, sans trop jouer sur le mot et l’étymologie, toutes

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O século e o perdão, pp. 355-388 les cultures) ont leur origine dans une agression de type colonial. Cette violence fondatrice n’est pas seulement oubliée. La fondation est faite pour l’occulter; elle tend par essence à organiser l’amnésie, parfois sous la célébration et la sublimation des grands commencements. Or ce qui paraît singulier aujourd’hui, et inédit, c’est le projet de faire comparaître des États ou du moins des chefs d’État en tant que tels (Pinochet), et même des chefs d’État en exercice (Milosevic) devant des instances universelles. Il s’agit là seulement de projets ou d’hypothèses mais cette possibilité suffit pour annoncer une mutation: elle constitue à elle seule un événement majeur. La souveraineté de l’État, l’immunité d’un chef d’État ne sont plus, en principe, en droit, intangibles. Bien entendu, de nombreuses équivoques demeureront longtemps, devant lesquelles il faut redoubler de vigilance. On est loin de passer aux actes et de mettre ces projets en œuvre, car le droit international dépend encore trop d’États-nations souverains et puissants. De plus, quand on passe à l’acte, au nom de droits de l’homme universels ou contre des «crimes contre l’humanité», on le fait souvent de façon intéressée, compte tenu de stratégies complexes et parfois contradictoires, à la merci d’États non seulement jaloux de leur propre souveraineté mais dominants sur la scène internationale, pressés d’intervenir ici plutôt ou plus tôt que là, par exemple au Kosovo plutôt qu’en Tchétchénie, pour se limiter à des exemples récents, etc., et excluant, bien sûr, toute intervention chez eux; d’où par exemple l’hostilité de la Chine à toute ingérence de ce type en Asie, au Timor, par exemple -cela pourrait donner des idées du côté du Tibet; ou encore la réticence des États-Unis, voire de la France, mais aussi de certains pays dits «du Sud», devant les compétences universelles promises à la Cour pénale internationale, etc. On en revient régulièrement à cette histoire de la souveraineté. Et puisque nous parlons du pardon, ce qui rend le «je te pardonne» parfois insupportable ou odieux, voire obscène, c’est l’affirmation de souveraineté. Elle s’adresse souvent de haut en bas, elle confirme sa propre liberté ou s’arroge le pouvoir de pardonner, fût-ce en tant que victime ou au nom de la victime. Or il faut aussi penser à une victimisation absolue, celle qui prive la victime de la vie, ou du droit à la parole, ou de cette liberté, de cette force et de ce pouvoir qui autorisent, qui permettent d’accéder à la position du «je pardonne». Là, l’impardonnable consisterait à priver la victime de ce droit à la parole, de la parole même, de la possibilité de toute manifestation, de tout témoignage. La victime serait alors victime, de surcroît, de se voir dépouillée de la possibilité minimale, élémentaire, d’envisager virtuellement de pardonner à l’impardonnable. Ce crime absolu n’advient pas seulement dans la figure du meurtre. Immense difficulté, donc. Chaque fois que le pardon est effectivement exercé, il semble supposer quelque pouvoir souverain. Cela peut être le pouvoir souverain d’une âme noble et forte, mais aussi un pouvoir d’État disposant d’une légitimité incontestée, de la puissance nécessaire pour organiser un procès, un jugement applicable ou, éventuellement, l’acquittement, l’amnistie ou le pardon. Si, comme le prétendent Jankélévitch et Arendt (j’ai dit mes réserves à ce sujet), on ne pardonne que là où l’on pourrait juger et punir, donc évaluer, alors la mise en place, l’institution d’une instance de jugement suppose un pouvoir, une force, une souveraineté. Vous connaissez l’argument «révisionniste»: le tribunal de Nuremberg était l’invention des vainqueurs, il restait à leur disposition, aussi bien pour établir le droit, juger et condamner que pour innocenter, etc. Ce dont je rêve, ce que j’essaie de penser comme la «pureté» d’un pardon digne de ce nom, ce serait un pardon sans pouvoir: inconditionnel mais sans souveraineté. La tâche la plus difficile, à la fois nécessaire et apparemment Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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O século e o perdão, pp. 355-388 impossible, ce serait donc de dissocier inconditionnalité et souveraineté. Le fera-t-on un jour? C’est pas demain la veille, comme on dit. Mais puisque l’hypothèse de cette tâche imprésentable s’annonce, fût-ce comme un songe pour la pensée, cette folie n’est peut-être pas si folle.

REFERÊNCIAS: DERRIDA, Jacques. Fé e saber, as duas fontes da “religião” nos limites simples da razão, In: A religião: o seminário de Capri. org. Gianni Vattimo e Jacques Derrida. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. _____Foi et savoir, Les deux sources de la “religion” aux limites de la simple raison, In: La Religion. Paris: Le Seuil, l996. _____Le parjure et le pardon, Vol. 1. Paris: Éditions du Seuil, 2019. _____Le siècle et le pardon, entretien avec Michel Wieviorka, In: Les monde des débats. Paris, 1999.

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PSIQUIATRIA E TORTURA O INTERROGATÓRIO PSIQUIÁTRICO Leopoldo María Panero (1948-2014)1 Tradução: Cássio Robson Alves da Silva2

O interrogatório psiquiátrico procede exatamente da mesma forma que aquele praticado pela polícia. Antes de tudo, efetivamente, parte da suspeita: toda vida interior do “paciente” é automaticamente colocada sob suspeita em busca de conteúdos psíquicos; e não se trata de fazer aflorar a consciência em prol do célebre “retorno do reprimido”, mas, ao contrário, trata-se de reprimir. Como o policial, o psiquiatra pensa infalivelmente que sua vítima está mentindo. Portanto, não há nada aqui que se assemelhe ao deleite da associação livre – daí o abandono do divã e sua substituição pela cadeira –, porém, bem ao contrário, lograr-se-á levar o objeto a todo custo a tratar de ocultar o que resta de si mesmo enquanto sujeito, e aquele será cuidadoso o bastante para, doravante, não mencionar as suas ideias ou sensações as quais sabe, de antemão, figuram no índex.3 Ou ainda, [o paciente] as vomitará com a mesma morbidez manifestada na confissão cristã, selecionando escrupulosamente os pecados mais exóticos de sua consciência para, assim, satisfazer o desejo neurótico do inquisidor: o afã de censurar, ou de maltratar; eis a “mania de confessar” do esquizofrênico. Porém, aqui está, nesta perda de identidade do sujeito tornado objeto, categoria ou

1 Poeta e ensaísta espanhol. 2 Atualmente cursa doutorado em Filosofia na Universidade Federal do Ceará-UFC. 3 Leopoldo María Panero refere-se, supostamente, ao DSM (Diagnostic and statistical Manual of Mental Disorders); em português: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos mentais (N.T.).

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Psiquiatria e tortura, pp. 389-392 classe – esquizofrênico, neurótico, etc. –, o real motivo da triste e célebre “transferência”, e sua tendência em tornar-se interminável. Afora isso, o que lamentavelmente permanece da herança freudiana é a noção de que o suceder psíquico não é livre, mas forma parte dos mecanismos de um misterioso “aparelho psíquico” cujas leis, é preciso dizer, sempre tenderam a pôr um caráter muito mais moral, ou penal, que científico. O corpo do “doente”, não somente no âmbito clínico, mas muito mais no meio exageradamente psiquiátrico e temeroso da vida cotidiana, serve como o corpo de uma providencial hetaira a ser violentada. O corpo do paciente, privado de sua identidade ou de sua vida interior pelo interrogatório psiquiátrico, ou, a nível cotidiano, o que é o mesmo, pela perda do valor dialético da palavra, fica, por isto, a mercê de todos. Como sua palavra, sua carne está para as agressões, assim como sua voz para a chacota. Prostituta e bufão ao mesmo tempo, o mais lamentável é que muitas vezes, a fim de situar-se no mundo, o assim chamado “paciente” mimetiza os traços do crime imaginário, adota o que Maud Mannoni4 denomina “a máscara da loucura” e relata sua vida como um chiste gratuito para ter, pelo menos assim, uma existência suplementar no mundo. Enfim, o que resulta significativo desta situação – e o que prova que, como diz Szasz5, o “mito da doença mental” é, na verdade, uma enfermidade social, como a caça às bruxas ou o racismo – é que não sejam apenas os chamados “cuidadores” (enfermeiros sem formação médica) do “Alonso Vega” 6 os que açoitam, muitas vezes até a morte, o “doente”–atordoado pelos calmantes–, como se sabe de boa fonte, mas sim que isso seja um costume popular, como versa a canção: “Qué se puede hacer con el tonto de este pueblo; hay que brearlo, hay que correrlo”.7 Prova-se que aquilo que a tal loucura manifesta é algo universal, isto é, algo reprimido não apenas pelo indivíduo, mas também pela sociedade, e por isso sua erradicação, longe de ser técnica, supõe um certo gozo, já que o Isso8 é desejo, apetite e gozo, como toda liberdade.

4 Maud Mannoni (1923-1998) foi uma psicanalista francesa. (N.T.). 5 Thomas Stephen Szasz (1920-2012) foi um psiquiatra húngaro. (N.T.). 6 Hospital Psiquiátrico localizado em Madrid, na Espanha, fundado em 1969 e desde 2003 conhecido como Hospital Dr. Rodríguez Lafora. (N.T.). 7 Consagrada pelo grupo musical espanhol “La charanga del tio Honorio”, a canção intitula-se Hay que lavalo de 1975. Optou-se por mantê-la em espanhol no corpo texto, porém indicamos aqui uma tradução aproximativa e livre: “O que pode ser feito com o louco deste povo? Temos que maltratá-lo, temos que fustigá-lo”. (N.T.). 8 Termo concebido por Sigmund Freud (1856-1939), em alemão Es, para referir-se ao conjunto de conteúdos pulsionais e de ordem inconsciente, podendo rumar tanto para pulsão de vida, neste caso para o desejo do fim da loucura, bem como para a pulsão de morte, o que seria a consumação violenta do desejo de eliminação e controle da loucura ou dos loucos. (N.T.).

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PSIQUIATRÍA Y TORTURA EL INTERROGATORIO PSIQUIÁTRICO

Leopoldo María Panero El interrogatorio psiquiátrico procede exactamente de la misma forma que el que practica la policía. Efectivamente, ante todo, parte de la sospecha: toda vida interior del «paciente» es automáticamente sospechada en busca de contenidos psíquicos que justamente no se trata de hacer aflorar a la consciencia en pos del célebre «retorno de lo reprimido», sino todo lo contrario, de reprimir. Lo mismo que el policía, el psiquiatra piensa infaliblemente que su víctima miente. No hay ya por tanto aquí nada que se parezca al relajo de la asociación libre – de ahí el abandono del diván y su sustitución por la silla –, sino que muy al revés se logrará llevar al objeto a tratar a toda costa de esconder lo que de sí mismo queda en tanto que sujeto, y aquél tendrá buen cuidad en adelante de no mencionar aquellas ideas o sensaciones suyas que sabe de antemano figuran en el index. O bien, otras veces, las vomitará con la misma morbosidad que se manifiesta en la confesión cristiana, seleccionando escrupulosamente los pecados más exóticos de su consciencia para así satisfacer el deseo neurótico del inquisidor: el anhelo de tachar, o de violar; he aquí la «la manía de confesar» del esquizofrénico. Pero sobre todo ahí está en esta pérdida de identidad del sujeto devenido objeto, devenido categoría o clase –esquizofrénico, neurótico, etc.– el motivo real de la tristemente célebre «transferencia», y su tendencia a convertirse en interminable. Aparte de eso, lo único que queda aquí tristemente de la herencia freudiana es la noción de que el suceder psíquico no es libre, sino que forma parte de los mecanismos de un misterioso «aparato psíquico» cuyas leyes siempre, hay que decirlo, tuvieron tendencia a poseer un carácter mucho más moral, o pena, que científico. El cuerpo del «enfermo» no sólo en el marco psiquiátrico, sino mucho más quizás en el entorno exageradamente psiquiátrico y temeroso de la vida cotidiana, sirve como el de una providencial hetaira para los golpes. El cuerpo del paciente, privado de su identidad o vida interior por el interrogatorio psiquiátrico, o lo que es lo mismo, a un nivel cotidiano, por la pérdida del valor dialéctico de su palabra, queda por ello a merced de todos. Lo mismo que su palabra: su carne es

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Psiquiatria e tortura, pp. 389-392 para los golpes, su voz para la risa. Prostituta y bufón al mismo tiempo, lo más lamentable es que muchas veces, con tal de ubicarse en el mundo, el bien llamado «paciente» mimetiza los rasgos del crimen imaginario, adopta lo que Maud Mannoni denomina «la máscara de la locura» relatando su vida como un chiste gratuito, para tener así, al menos, una existencia suplementaria en este mundo. En fin, pero lo que resulta significativo de esta situación, y lo que prueba que el «mito de la enfermedad mental», como lo llama Szasz, es realmente una enfermedad social, como la caza de brujas o el racismo, es que no sean sólo los llamados «cuidadores» –enfermeros sin preparación médica– del «Alonso Vega» los que golpean «al enfermo», atontado por los calmantes, muchas veces hasta la muerte, como he sabido de buena fuente, sino que ello sea una costumbre popular, como dice la canción: «Qué se puede hacer con el tonto de este Pueblo; hay que brearlo, hay que correrlo». Lo que prueba que aquello que en la llamada locura se pone de manifiesto es algún universal, esto es, algo no sólo reprimido por individuo, sino socialmente, y por ello su erradicación, lejos de ser técnica, supone un gozo cierto, ya que sabíamos que el Ello es deseo y apetencia y goce, como toda libertad.

REFERÊNCIA: PANERO, Leopoldo María. Psiquiatría y tortura. in: Aviso a los civilizados. Madrid: Libertarias, 1990, pp. 49-51.

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A reforma da imprensa, pp. 393-396

A REFORMA DA IMPRENSA1 (Combat, 23 de agosto de 1944.) Albert Camus Tradução de Leandson Vasconcelos Sampaio2

Toda reforma moral da imprensa seria em vão se ela não fosse acompanhada de medidas políticas capazes de garantir aos jornais uma independência real frente ao capital. Mas, inversamente, a reforma política não teria nenhum sentido se ela não fosse inspirada por um profundo questionamento do jornalismo pelos próprios jornalistas. Aqui como em outros lugares, há uma interdependência da política e da moral. Esse questionamento nos pareceu, em princípio, que os jornalistas da nova imprensa tiveram que operá-lo durante os anos da clandestinidade. Eu persisto em crer que isso continua verdadeiro. Mas eu disse ontem que esse tipo de reflexões não se reflete muito na maneira como a imprensa atual é apresentada. O que é um jornalista? É um homem que primeiro supostamente tem ideias. Este ponto merece um exame particular e será tratado em outro artigo. É em seguida um homem que se encarrega a cada dia de informar o público sobre os eventos da cidade. Em suma, um historiador do dia-a-dia – e sua primeira preocupação deve ser a verdade. Mas qualquer historiador sabe o quanto, apesar do recuo, as confrontações de documentos e as sobreposições de testemunhos, a verdade é passageira na história. Para esse estado de coisas, ele só pode fazer uma correção, que é moral, quero dizer, uma preocupação com objetividade e prudência.

1 CAMUS, Albert. La réforme de la presse. In: CAMUS, Albert. Œuvres Complètes. Bibliotèque de la Pléiade. Articles, préfaces, conférences. (1944-1948). Articles publiés dans “Combat” (1944-1947). Éditions Gallimard, Paris: 2006. Págs. 521-523. 2 Licenciado, bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: leandson@hotmail.com

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A reforma da imprensa, pp. 393-396 Quão urgente essas virtudes se tornam então no caso do jornalista, privado do recuo e impedido de controlar todas as suas fontes! O que para o historiador é uma necessidade prática torna-se uma lei imperativa fora da qual sua profissão é apenas uma má ação. Podemos dizer que hoje nossa imprensa vive de prudência e não se preocupa com a verdade? Certamente que não. Ela repõe em honra os métodos que nasceram, antes da guerra, da corrida pela informação. Toda notícia boa parece ser a primeira (veja, por exemplo, a falsa esperança dada aos parisienses em relação ao retorno do gás e da eletricidade). Como é difícil sempre ser o primeiro no que diz respeito à grande informação, como a fonte é atualmente única, nos precipitamos sobre o detalhe que achamos pitoresco. E em um tempo onde a guerra está destruindo a Europa, onde nós não temos o suficiente de nossos dias para enumerar as tarefas que nos aguardam, nem toda a nossa memória basta para lembrar os camaradas que nós devemos ainda salvar, tal jornal mostra no topo de suas colunas, sob um grande título, as declarações vãs de um artista público que se descobre uma vocação de insurgente após quatro anos de fracos compromissos. Isso já era desprezível quando o Paris Soir deu o tom para toda uma imprensa. Mas isso é propriamente desesperador quando se trata de jornais que trazem agora toda a esperança de um país. Estamos vendo assim se multiplicar nos layouts de publicidade sobrecarregados com títulos cuja importância tipográfica não tem relação com o valor das informações que eles apresentam, cuja redação exige espírito de tranquilidade ou sentimentalismo do público: gritamos com o leitor, procuramos agradá-los quando precisamos apenas esclarecê-los. A bem da verdade, damos todas as provas de que desprezamos isso e, ao fazer isso, os jornalistas julgam eles mesmos mais do que julgam seu público. Porque o argumento de defesa é bem conhecido. Dizem-nos: "É isso que o público quer". Não, o público não quer isso. Ele foi ensinado por vinte anos a querer, o que não é a mesma coisa. E o público, ele também, refletiu ao longo desses quatro anos: eles estão prontos para dar o tom da verdade, pois acabaram de passar por uma terrível época de verdade. Mas se vinte jornais, todos os dias do ano, soprarem em torno dele o próprio ar de mediocridade e artifício, ele respirará esse ar e não poderá mais ficar sem ele. Uma oportunidade única nos é oferecida, ao contrário, de criar um espírito público e elevar à altura do próprio país. O que pesa em face disso alguns sacrifícios de dinheiro ou de prestígio, o esforço cotidiano de reflexão e de escrúpulo que é suficiente para manter sua roupa em um jornal?

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A reforma da imprensa, pp. 393-396 Eu ponho somente a questão aos nossos camaradas na nova imprensa. Mas, sejam quais forem as reações deles, eu não posso acreditar que eles respondam levemente.

LA RÉFORME DE LA PRESSE. (Combat, 1 septembre 1944.)

Toute reforme morale de la presse sarait vaine si elle ne s’accompagnait de mesures politiques propres à garantir aux journaux une indépendance réelle vis-à-vis du capital. Mais, inversement, la réforme politique n’aurait aucun sens si elle ne s’inspirait d’une profonde mise en question du journalisme par les journalistes eux-mêmes. Ici comme ailleurs, il y a interdépendance de la politique et de la morale. Cette mise em question, il nous semblait en principe que les journalistes de la nouvelle presse avaient dû l’opérer pendant les annés de la clandestinité. Je persiste à croire que cela reste vrai. Mais j’ai dit hier que ce genre de réflexions ne se reflétait pas beaucoup dans la façon dont la presse actuelle est présentée. Qu’est-ce qu’un journaliste? C’est un homme qui d’abord est censé avoir des idées. Ce point mérite un examen particulier et sera traité dans un autre article. C’est ensuite un homme qui se charge chaque jour de reseigner le public sur les événements de la ville. En somme, un historien au jour le jour – et son premier souci doit être de vérité. Mais n’importe quel historien sait combien, malgré le recul, les confrontations de documents et les recoupements de témoignages, la vérité est chose fuyante en histoire. À cet état de fait, il ne peut apporter qu’une correction, qui est morale, je veux dire un souci d’objetivité et de prudence. De quelle urgence ces vertus deviennent-elles alors dans le cas du journaliste, privé de recul et empêché de contrôler toutes ses sources! Ce qui pour l’historien est une nécessité pratique devient pour lui une loi impérieuse hors de laquelle son métier n’est qu’une mauvaise action. Peut-on dire qu’aujourd’hui notre presse vit de prudence et ne se soucie que de vérité? Il est bien certain que non. Elle remet em honneur des méthodes qui sont nées, avant la guerre, de la

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A reforma da imprensa, pp. 393-396 course aux informations. Toute nouvelle est bonne qui a les apparences d’être la première (voyez par exemple le faux espoir donné aus Parisiens touchant le retour du gaz et l’életricité). Comme il est difficile de toujours être le premier en ce qui concerne la grande information, puisque la source actuellement en est unique, on se précipite sur le détail que l’on croit pittoresque. Et dans un temps où la guerre déchire l’Europe, où nous n’avons pas assez de nos journées pour énumerér les tâches qui nous attendent, pas assez de toute notre mémoire pour le souvenir des camarades que nous devons encore sauver, tel journal montre en tête de ses colonnes, sous un gros titre, les vaines déclarations d’un amuseur public qui se découvre une vocation d’insurgé après quatre ans de veules compromissions. Cela déjà était méprisable lorsque Paris Soir donnait le ton à toute une presse. Mais cela est proprement désésperant quando il s’agit de journaux qui portent maintenant tout l’espoir d’un pays. On voit ainsi se multiplier des mises en page publicitaires surchargées de titres dont l’importance typographique n’a aucun rapport avec la valeur de l’information qu’ils présentent, dont la rédaction fait appel à l’esprit de facilité ou à la sensiblerie du public: on crie avec lecteur, on cherche à lui plaire quand il faudrait seulement l’éclairer. À vrai dire, on donne toutes les preuves qu’on le méprise et, ce faisant, les journalistes se jugent eux-mêmes plus qu’ils ne jugent leur public. Car l’argument de défense est bien connu. On nous dit: “C’est cela que veut le public”. Non, le public ne veut pas cela. On lui a appris pendant vingt ans à le vouloir, ce qui n’est pas la même chose. Et le public, lui aussi, a réfléchi pendant ces quatre ans: il est prêt à prendre le ton de la vérité puisqu’il vient de vivre une terrible époque de vérité. Mais si vingt journaux, tous les jours de l’anée, soufflent autour de lui l’air même de la médiocrité et de l’artifice, il respirera cet air et ne pourra plus s’en passer. Une occasion unique nous est oferte au contraire de créer um esprit public et de l’élever à la hauteur du pays lui-même. Que pèsent en face de cela quelques sacrifices d’argent ou de prestige, l’effort quotidien de réflexion et de scrupule qui suffit pour garder as tenue à un journal? Je pose seulement la question à nos camarades de la nouvelle presse. Mais, quelles que soient leurs réactions, je ne puis croire qu’ils y répondent légèrement.

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410

NOTAS SOBRE A “QUESTÃO DOS IMIGRANTES” Guy Debord Tradução: Inácio José de Araújo da Costa1

Redigidas por Debord em dezembro de 1985, as Notes sur la “question des immigrés” foram endereçadas ao escritor argelino e seu amigo Mezioud Ouldamer, que na ocasião trabalhava na escrita do livro Le Cauchemar immigré dans la décomposition de la France (O pesadelo imigrante na decomposição da França em tradução livre) a ser publicado em novembro de 1986 pelas Edições Gérard Lebovici. O manuscrito de Ouldamer inspirou Debord a tecer seus próprios comentários sobre a relação da França com os imigrantes, especialmente num contexto pós Marcha pela Igualdade e contra o Racismo (Marche pour l’égalité et contre le racisme) de 1983, considerada a primeira grande manifestação nacional do gênero no país. Em seu texto, Debord ironiza as falsas polêmicas levantadas na mídia e nos debates políticos em torno dos imigrantes — “devemos acolhê-los ou eliminá-los?”, “devemos assimilá-los ou respeitar suas diversidades culturais?” — ao mesmo tempo em que evidencia as contradições existentes dentro da própria sociedade francesa. Enquanto aos imigrantes é imputada a culpa de ameaçarem a cultura e o estilo de vida dos quais os franceses tanto se orgulham, Debord argumenta cirurgicamente que não existe mais cultura nem estilo de vida genuinamente franceses para serem preservados. A massificação da cultura, a padronização dos

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Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC), graduado em Filosofia pela mesma instituição. E-mail para contato: inaciojosecosta@gmail.com

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 hábitos de consumo, a uniformização das cidades para adequação ao progresso econômico (percebida facilmente na destruição de lugares históricos e na construção de conjuntos habitacionais, estradas e arranha-céus) são apontadas como sinais da expansão gradual do capitalismo espetacular sobre toda a civilização ocidental e, portanto, como constatações da subordinação da sociedade francesa ao american way of life irradiado do centro mundial do espetáculo, os Estados Unidos. Se os imigrantes são aqueles degredados de suas terras e expropriados de suas culturas e de seus estilos de vida, os representantes mais dramáticos da “despossessão” que se estende por todo o mundo globalizado sob o signo do espetáculo, eles são o reflexo do que os franceses virão a se tornar com a inevitável americanização da França. Em complemento ao texto aqui traduzido, segue como anexo uma carta de Debord a Ouldamer, onde o primeiro demonstra entusiasmo pela temática do segundo e interesse em auxiliar na escrita e na publicação de seu livro. Debord aconselha Ouldamer a adotar um estilo de escrita impassível, porém mordaz e provocativo — “que muitos considerariam como cinismo” —, também presente nas suas notas. Todos os grifos dos textos foram feitos pelo autor e estão presentes em suas versões originais. As notas de rodapé são de autoria do tradutor.

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Notas para Mezioud

Tudo é falso em relação à “questão dos imigrantes”, assim como em toda questão abertamente levantada na sociedade atual; e pelos mesmos motivos: a economia — isto é, a ilusão pseudoeconômica — a trouxe e o espetáculo a discutiu. Só se discutem idiotices. Devemos acolher ou eliminar os imigrantes? (Naturalmente, o verdadeiro imigrante não é o habitante permanente de origem estrangeira, mas aquele que é percebido e que se percebe como diferente e destinado a continuar assim. Muitos imigrantes ou suas crianças possuem nacionalidade francesa; muitos poloneses ou espanhóis finalmente se

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 perderam na massa de uma população francesa que era diferente.) Como o lixo das usinas nucleares ou o petróleo no oceano — e aí são definidos mais lentamente e menos “cientificamente” os limiares da intolerância — os imigrantes, produtos da mesma gestão do capitalismo moderno, permanecerão por séculos, por milênios, para sempre. Eles permanecerão porque era muito mais fácil eliminar os judeus da Alemanha nos tempos de Hitler do que os magrebinos, e outros, a partir de agora: já que não existe na França nem um partido nazista nem o mito de uma raça autóctone! Devemos, então, assimilá-los ou “respeitar as diversidades culturais”? Inepta e falsa escolha. Nós não podemos mais assimilar ninguém: nem a juventude, nem os trabalhadores franceses, nem mesmo os provinciais ou antigas minorias étnicas (corsas, bretões, etc.) porque Paris, cidade arruinada, perdeu seu papel histórico que era de fazer franceses. O que é um centralismo sem capital? O campo de concentração não criou nenhum alemão dentre os europeus deportados. A difusão do espetáculo concentrado consegue uniformizar apenas espectadores. Enchemos a boca, em linguagem meramente publicitária, com a rica expressão de “diversidades culturais”. Quais culturas? Não há mais nenhuma. Nem cristã nem muçulmana, nem socialista nem cientificista. Não se fala dos ausentes. Observando por um instante a verdade e as evidências, não resta mais nada que não seja a degradação espetacular-mundial (americana) de toda cultura. Acima de tudo, não é pelo voto que eles serão assimilados. Demonstração histórica de que o voto não é nada, mesmo para os franceses que são eleitores e nada mais (1 partido = outro partido; uma promessa eleitoral = seu contrário; e mais recentemente um programa político — que todos sabem muito bem que não será cumprido — deixou finalmente de ser decepcionante, por não visar à resolução de nenhum problema importante. Quem votou pelo sumiço do pão?). Recentemente, admitimos esse número revelador (e sem dúvida subnotificado): 25% dos “cidadãos” da faixa etária de 18 a 25 anos não se cadastraram como eleitores por simples desgosto. Os abstencionistas são outros que se juntam a eles nessa estatística. Alguns levantam o critério da “fluência em língua francesa”. Risível. Os franceses atuais a falam? É francês o que falam os analfabetos de hoje, ou Fabius (“Bonjour les dégâts!”)2 ou Françoise

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Laurent Fabius, político francês que ocupou o cargo de primeiro-ministro da França entre 1984 e 1986, ou seja, na época em que essas notas foram escritas. A frase em destaque deriva de um slogan criado pelo publicitário Daniel Robert em 1984 encomendado pelo Comité Français d'Éducation pour la Santé como parte de uma campanha midiática de conscientização contra a direção alcoolizada — “Un verre ça va, trois verres... Bonjour les dégâts!” (“Um copo tudo bem, mas três copos.... Lá vem problema!”, em tradução livre) —, que acabou caindo no gosto e no vocabulário populares.

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 Castro (“Ça t’habite ou ça t’effleure?”)3, ou B.-H. Lévy4? Não estamos claramente, mesmo se não houvesse nenhum imigrante, no caminho da perda de toda linguagem articulada e de todo raciocínio? Quais canções a juventude de hoje escuta? Quais seitas infinitamente mais ridículas que o Islã ou o Catolicismo conquistaram facilmente poder de influência sobre uma certa fração de idiotas instruídos contemporâneos (Moon5, etc.)? Sem falar nos autistas ou nos profundamente débeis que tais seitas não recrutam porque não há interesse econômico na exploração desse gado; sendo, portanto, deixado a cargo dos poderes públicos. Nós nos fizemos americanos. É normal que encontremos aqui todos os miseráveis problemas dos U.S.A., das drogas à máfia, do fast-food à proliferação de grupos étnicos. Por exemplo, a Itália e a Espanha, americanizadas na superfície e em até certa camada de profundidade, não são miscigenadas. Nesse sentido, elas continuam mais propriamente europeias (assim como a Argélia é norte-africana). Aqui nós temos os problemas da América sem ter a sua força. Não é certo que o melting-pot6 americano ainda funcione por muito tempo (com os chicanos7, por exemplo, que possuem outra língua). Mas é certo que isso não pode funcionar nem por um momento aqui. Porque é nos U.S.A que está o centro da fabricação do modo de vida atual, o coração do espetáculo que estende suas pulsações até Moscou ou Pequim; e que, de qualquer forma, não pode deixar nenhuma independência a seus terceirizados locais (infelizmente, a compreensão disso mostra uma subjugação muito menos superficial do que aquela que os críticos habituais do “imperialismo” gostariam de destruir ou de diminuir). Aqui nós não somos mais nada: colonizados que não souberam

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Françoise Castro, produtora de televisão nascida no México, foi casada com Laurent Fabius de 1981 a 2002. Assim como a frase anterior, essa também é uma expressão coloquial sem tradução exata ou equivalência em língua portuguesa. Em tradução livre: “Isso de marcou profundamente ou só te arranhou superficialmente?”. Bernard-Henri Lévy foi um dos fundadores dos Novos Filósofos (Nouveaux Philosophes), movimento intelectual criado após as revoltas de Maio de 68 que adotou uma postura de desencanto com o marxismo e, posteriormente, de repúdio contra os regimes socialistas da China e da União Soviética. Esse movimento foi duramente criticado por outros pensadores ilustres da época (incluindo Gilles Deleuze, Pierre Bourdieu, Alain Badiou, Jean-François Lyotard e Cornelius Castoriadis) por, dentre outras acusações, propagar ideias superficiais e de fácil absorção pela opinião pública a fim de ganhar maior projeção midiática. A figura de Lévy também já teve sua credibilidade questionada, sendo considerado um impostor intelectual. Sun-Myung Moon (1920-2012), nascido onde hoje é a Coreia do Norte, tornou-se mais conhecido como reverendo Moon. Fundador e líder da Igreja da Unificação, seita neocristã que começou a se espalhar mundialmente entre a década de 1950 e começo dos anos 2000, Moon chegou a ser reverenciado como o próprio Messias pelos seus seguidores. Mesmo rodeado de controvérsias devido a seus métodos de doutrinação considerados antiéticos e ao rápido crescimento de seu império religioso, o reverendo chegou a possuir considerável poder econômico e midiático com negócios que abrangiam desde meios de comunicação de massa até hotelaria, indústria e esporte na Coreia do Sul, Estados Unidos e América Latina. Expressão em inglês no texto original, tem sentido aproximado de “caldeirão cultural” ou “caldeirão de raças”. Designação dada aos imigrantes mexicanos residentes nos Estados Unidos e aos seus descendentes. Outrora, o termo chicano era utilizado para se referir às populações nativas dos estados do Texas, Colorado, Califórnia, Nevada e Novo México, outrora pertencentes ao México. Atualmente, devido ao aumento do número de imigrantes de outros países da América Latina nos Estados Unidos, esse termo passou a ser gradualmente substituído por “hispânicos” e “latinos”.

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 se revoltar, béni-oui-oui8 da alienação espetacular. Que pretensão, tendo em vista a proliferativa presença de imigrantes de todas as cores, encontramos repentinamente na França, como se nos fosse roubado algo que ainda seria nosso? E então o quê? Em que acreditamos, ou melhor, no que ainda parecemos acreditar? É um orgulho para seus raros dias de festa quando os escravos puros se indignam que metecos9 ameacem sua independência! O risco de apartheid? É bem real. É mais do que um risco, é uma fatalidade já posta (com sua lógica de guetos, de confrontos raciais, e um dia de banhos de sangue). Uma sociedade que se decompõe por inteiro é evidentemente menos apta a acolher sem maiores conflitos uma grande quantidade de imigrantes do que uma sociedade coerente e relativamente feliz. Já havíamos observado em 1973 essa impressionante adequação entre a evolução da técnica e a evolução das mentalidades: “O meio-ambiente está sendo transformado rápida e descuidadamente para benefício do lucro e do controle repressivo, tornando-se ao mesmo tempo mais vulnerável e mais propício ao vandalismo. O capitalismo em sua fase espetacular reconstrói tudo com material inferior e produz os incendiários. Seu aspecto é tão inflamável quanto uma escola francesa.” 10 Com a presença de imigrantes (que já serviram aos interesses de certos sindicalistas com tendências a denunciar como “guerra de religiões” certas greves de trabalhadores que eles não puderam controlar), podemos ter certeza de que os poderes existentes vão favorecer o desenvolvimento em escala real das pequenas experiências de confrontos que vimos encenados por “terroristas” reais ou falsos, ou por torcedores de times de futebol rivais (não apenas torcedores ingleses). Mas é bastante compreensível por que representantes de todos os espectros políticos (incluindo os líderes do Frente Nacional11) se empenham em minimizar a gravidade do “problema dos imigrantes”. Tudo o que todos eles querem conservar os impede de encarar qualquer problema diretamente, e em seu verdadeiro contexto. Alguns fingem acreditar que é apenas o caso de impor uma “boa vontade antirracista”, e outros que se trata de reconhecer os direitos moderados de uma “xenofobia justa”. E todos colaboram em considerar essa questão como se ela fosse a mais fervorosa, quase a única dentre todos os problemas assustadores que uma sociedade não superará. O gueto do

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Expressão utilizada para se referir de maneira pejorativa a pessoas bajuladoras, servis, que obedecem sistematicamente aos comandos de uma autoridade. Essa expressão possui uma forte carga racial e étnica, tendo surgido durante a ocupação francesa na Argélia para descrever os nativos que colaboravam com os colonizadores. Pode-se fazer uma correlação aproximada da expressão béni-oui-oui com capitão do mato, oriunda do período escravagista colonial brasileiro. Estrangeiros residentes na pólis grega de Atenas. Eram considerados livres, mas não tinham direito à participação política. Essa citação foi retirada da versão cinematográfica de A sociedade do espetáculo de 1973, realizada também por Guy Debord. Conhecido como Rassemblement National desde 2018, o Front National é um partido nacionalista de extrema direita francês liderado por Jean-Marie Le Pen de 1972 a 2011. Atualmente, sua filha Marine Le Pen o substituiu no comando do partido.

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 novo apartheid espetacular (não a versão local, folclórica, da África do Sul), já está lá, na França atual: a imensa maioria da população está lá trancada e embrutecida, e tudo se passaria igual mesmo se não houvesse um só imigrante. Quem decidiu construir Sarcelles e Les Minguettes 12, destruir Paris ou Lion? Certamente, não se pode dizer que nenhum imigrante fez parte desse infame trabalho. Mas eles não fizeram mais do que executar estritamente as ordens que lhes foram dadas: eis o infortúnio habitual do assalariado. Quantos estrangeiros de fato existem na França? (E não somente de acordo com o estatuto jurídico, a cor, o aspecto facial.) É tão óbvio que há tantos que seria melhor se perguntar: quantos franceses ainda restam e onde estão? (E o que caracteriza atualmente um francês?) Como continuar, dentre em pouco tempo, francês? Sabemos que a taxa de natalidade está caindo. Isso não é normal? Os franceses não conseguem mais suportar seus próprios filhos. Eles os enviam para a escola desde os três anos, e pelo menos até os dezesseis, para aprender o analfabetismo. E antes que eles tenham três anos, são cada vez mais numerosos aqueles que os acham “insuportáveis” e os batem mais ou menos violentamente. As crianças ainda são amadas na Espanha, na Itália, na Argélia, entre os ciganos. Geralmente não na França do presente. Nem as habitações nem as cidades são mais adequadas para crianças (daí a publicidade cínica dos urbanistas governamentais sobre o tema: “abrir a cidade às crianças”). Por outro lado, a contracepção é difundida, o aborto é legalizado. Hoje quase todas as crianças na França foram desejadas. Mas não livremente! O eleitor-consumidor não sabe o que quer. Ele “escolhe” qualquer coisa que ele não gosta. Sua estrutura mental não tem mais a coerência de se lembrar que ele quis alguma coisa, quando ele se encontra decepcionado pela experiência dessa mesma coisa. No espetáculo, uma sociedade de classes quis, muito sistematicamente, eliminar a história. E agora fingem lamentar esse resultado particular da presença de tantos imigrantes, porque a França está “desaparecendo”? Que piada. Ela está desaparecendo por diferentes outras razões e, mais ou menos rapidamente, em quase todas as frentes. Os imigrantes têm o mais legítimo direito de viver na França. Eles são os representantes da despossessão; e a despossessão fez da França sua casa, se espalhando por lá de modo a se tornar 12

A comuna de Sarcelles e o bairro Les Minguettes localizam-se nos arredores de Paris e de Lion, respectivamente, tendo recebido grande fluxo de imigrantes de origem magrebina durante as décadas de 1950 e 1960. A “destruição” das referidas cidades mencionada por Debord pode se referir, dentre muitos fenômenos urbanos, à demolição de bairros antigos em nome da modernização urbana cujos símbolos máximos eram as autoestradas e os arranha-céus, à expulsão de proletários do centro da cidade para subúrbios satélites, à gentrificação, isto é, ao processo de reorganização imobiliária e urbanística da cidade para favorecer grupos de maior poder aquisitivo.

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 quase universal. Os imigrantes perderam sua cultura e seu país, muito notoriamente, sem poder encontrar outros. E os franceses estão na mesma condição, mal conseguindo manter em segredo. Com a igualação de todo o planeta na miséria de um ambiente novo e de uma inteligência puramente mentirosa sobre tudo, os franceses, que a aceitaram sem muita revolta (salvo em 1968) não têm qualificação para dizer que não se sentem mais em casa por causa dos imigrantes! Eles têm todo o direito de não se sentir mais em casa, é verdade. É porque não existe mais ninguém, nesse horrível mundo novo da alienação, que não seja imigrante. Haverá pessoas vivendo na superfície da Terra, e até mesmo aqui, quando a França tiver desaparecido. A mistura étnica que dominará é imprevisível, assim como suas culturas e mesmo suas línguas. Podemos afirmar que a questão central, profundamente qualitativa, será a seguinte: esses povos futuros terão dominado, através de uma prática emancipada, a técnica presente, que é globalmente aquela do simulacro e da despossessão? Ou, ao contrário, serão eles dominados por ela de uma maneira ainda mais hierárquica e escravista do que hoje? É preciso considerar o pior, e lutar pelo melhor. A França é certamente lamentável. Mas os lamentos são vãos.

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Anexo: Carta de Guy Debord a Mezioud Ouldamer, 22 de novembro de 1985

Caro Mezioud,

Esperaremos por você dia 21 de dezembro. Falaremos de seu plano com mais detalhes. O primeiro resumo está bom. Já acredito que podemos dizer que esse livro, derrubando as idiotices doentes da esquerda e da direita, deve ser, sobre esse assunto falsamente “passional”, escrito em um tom perfeitamente impassível (Tucídides,

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 Maquiavel, mais recentemente Bolloten)13, evitando se possível qualquer julgamento de valor, como se fosse geologia. É aqui que está o maior escândalo. A tese geral deve ser (partindo das citações de erros risíveis de outros autores, como se desculpar por ter dito fatos tão óbvios): não haverá integração: é tarde demais para isso, assim como é tarde demais para expulsão. A França não poderá integrar ninguém, não porque eles são muitos, mas porque ela se tornou muito pouca. Não existe mais França. Não existe mais cultura francesa, certamente. Não existe mais “modo de vida francês” (nós somos a América dos pobres). Não existe mais povo francês. Não restam nem mesmo mais cristãos, de modo que não se trata de saber se os outros são muçulmanos: “o infiel” pressupõe o fiel, e os franceses foram infiéis ao seu destino, à sua história, à sua velha reputação; eles perderam até seus velhos defeitos! São espectadores, gado midiático. Se os imigrantes podem ser “uma chance” para a França e podem ensinar outros países, será mostrando pela experiência a extensão do desastre que varreu todos os países, a perfeição de sua despossessão. Para estudar o estilo que certos autores chamariam de “cinismo”, releia o Relatório do Censor14, e algumas passagens do meu Prefácio italiano15. Abraços. Guy

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Tucídides, historiador grego da Antiguidade, escreveu sobre a história da Guerra do Peloponeso; Nicolau Maquiavel, pensador florentino da Renascença, contribuiu para o entendimento dos trâmites políticos em obras como O Príncipe e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio; Burnett Bolloten, escritor britânico, publicou trabalhos sobre a Guerra Civil Espanhola. Pseudônimo de Gianfranco Sanguinetti, escritor e membro da seção italiana do movimento Internacional Situacionista, do qual Debord foi um dos fundadores. Debord se refere ao prefácio à quarta edição italiana de A sociedade do espetáculo, de 1979.

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410

NOTES SUR LA “QUESTION DES IMMIGRÉS” Notes pour Mezioud

Tout est faux dans la “question des immigrés”, exactement comme dans toute question ouvertement posée dans la société actuelle; et pour les mêmes motifs: l’économie — c’est-à-dire l’illusion pseudo-économique — l’a apportée, et le spectacle l’a traitée. On ne discute que de sottises. Faut-il garder ou éliminer les immigrés? (Naturellement, le véritable immigré n’est pas l’habitant permanent d’origine étrangère, mais celui qui est perçu et se perçoit comme différent et destiné à le rester. Beaucoup d’immigrés ou leurs enfants ont la nationalité française; beaucoup de Polonais ou d’Espagnols se sont finalement perdus dans la masse d’une population française qui était autre.) Comme les déchets de l’industrie atomique ou le pétrole dans l’Ocean — et là on définit moins vite et moins “scientifiquement” les seuils d’intolérance — les immigrés, produits de la même gestion du capitalisme moderne, resteront pour des sciècles, des millénaires, toujours. Ils resteront parce qu’il était beaucoup plus facile d’éliminer les Juifs d’Allemagne au temps d’Hitler que les Maghrébins, et autres, d’ici à présent: car il n’existe en France ni un parti nazi ni le mythe d’une race autochtone! Faut-il donc les assimiler ou “respecter les diversités culturelles”? Inepte faux choix. Nous ne pouvons plus assimiler personne: ni la jeunesse, ni les travailleurs français, ni même les provinciaux ou vielles minorités ethniques (Corses, Bretons, etc.) car Paris, ville détruite, a perdu son rôle historique qui était de faire des Français. Qu’est-ce qu’un centralisme sans capitale? Le camp de concentration n’a créé aucun Allemand parmi les Européens déportés. La diffusion du spectacle concentré ne peut uniformiser que des spectateurs. On se gargarise, en langage simplement publicitaire, de la riche expression de “diversités culturelles”. Quelles cultures? Il n’y en a plus. Ni chrétienne ni musulmane; ni socialiste ni scientiste. Ne parlez pas des absents. Il n’y a plus, à regarder

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 un seul instant la vérité et l’évidence, que la dégradation spectaculaire-mondiale (américaine) de toute culture. Ce n’est surtout pas en votant que l’on s’assimile. Démonstration historique que le vote n’est rien, même pour les Français, qui sont électeurs et ne sont plus rien (1 parti = 1 autre parti; un engagement électoral = son contraire; et plus récemment un programme — dont tous savent bien qu’il ne sera pas tenu — a d’ailleurs enfin cessé d’être décevant, depuis qu’il n’envisage jamais plus aucun problème important. Qui a voté sur la disparition du pain?). On avouait récemment ce chiffre révélateur (et sans doute manipulé en baisse): 25% des “citoyens” de la tranche d’âge 18-25 ans ne se sont pas inscrits sur les listes électorales, par simple dégoût. Les abstentionnistes sont d’autres qui s’y ajoutent. Certains mettent en avant le critère de “parler français”. Risible. Les Français actuels le parlent-ils? Est-ce du français que parlent les analphabètes d’aujourd’hui, ou Fabius (“Bonjour les dégâts!”) ou Françoise Castro (“Ça t’habite ou ça t’effleure?”), ou B.-H. Lévy? Ne va-t-on pas clairement, même s’il n’y avait aucun immigré, vers la perte de tout langage articulé et de tout raisonnement? Quelles chansons écoute la jeunesse présente? Quelles sectes infiniment plus ridicules que l’islam ou le catholicisme ont conquis facilement une emprise sur une certaine fraction des idiots instruits contemporains (Moon, etc.)? Sans faire mention des autistes ou débiles profonds que de telles sectes ne recrutent pas parce qu’il n’y a pas d’intérêt économique dans l’exploitation de ce bétail; on le laisse donc en charge aux pouvoirs publics. Nous nous sommes faits américains. Il est normal que nous trouvions ici tous les misérables problèmes des U.S.A., de la drogue à la Mafia, du fast-food à la prolifération des ethnies. Par exemple, l’Italie et l’Espagne, américanisées en surface et même à une assez grande profondeur, ne sont pas mélangées ethniquement. En ce sens, elles restent plus largement européennes (comme l’Algérie est nord-africaine). Nous avons ici les ennuis de l’Amérique sans en avoir la force. Il n’est pas sûr que le melting-pot américain fonctionne encore longtemps (par exemple avec les Chicanos qui ont une autre langue). Mais il est tout à fait sûr qu’il ne peut pas un moment fonctionner ici. Parce que c’est aux U.S.A. qu’est le centre de la fabrication du mode de vie actuel, le coeur du spectacle qui étend ses pulsations jusqu’à Moscou ou à Pékin; et qui en tout cas ne peut laisser aucune indépendance à ses sous-traitants locaux (la compréhension de ceci montre malheureusement un assujettissement beaucoup moins superficiel que celui que voudraient détruire ou modérer les critiques habituels de “l’impérialisme”). Ici, nous ne sommes plus rien: des colonisés qui n’ont pas su Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 se révolter, les béni-oui-oui de l’aliénation spectaculaire. Quelle prétention, envisageant la proliférante présence des immigrés de toutes coleurs, retrouvons-nous tout à coup en France, comme si l’on nous volait quelque chose qui serait encore à nous? Et quoi donc? Que croyons-nous, ou plutôt que faisons-nous encore semblant de croire? C’est une fierté pour leurs rares jours de fête quand les purs esclaves s’indignent que des métèques menacent leur indépendance! Le risque d’apartheid? Il est bien réel. Il est plus qu’un risque, il est une fatalité déjà là (avec sa logique des ghettos, des affrontements raciaux, et un jour des bains de sang). Une société qui se décompose entièrement est évidemment moins apte à accueillir sans trop de heurts une grande quantité d’immigrés que pouvait l’être une société cohérente et relativement heureuse. On a déjà fait observer en 1973 cette frappante adéquation entre l’évolution de la technique et l’évolution des mentalités: “L’environnement, qui est reconstruit toujours plus hâtivement pour le contrôle répressif et le profit, en même temps devient plus fragile et incite davantage et vandalisme. Le capitalisme à son stade spectaculaire rebâtit tout en toc et produit des incendiaires. Ainsi son décor devient partout inflammable comme un colège de France.” Avec la présence des immigrés (qui a déjà servi à certains syndicalistes susceptibles de dénoncer comme “guerres de religions” certaines grèves ouvrières qu’ils n’avaient pu contrôler), on peut être assurés que les pouvoirs existants vont favoriser le développement en grandeur réele des petites expériences d’affrontements que nous avons vu mises en scène à travers des “terroristes” réels ou faux, ou des supporters d’équipes de football rivales (pas seulement des supporteurs anglais). Mais on cromprend bien pourquoi tous les responsables politiques (y compris les leaders du Front national) s’emploient à minimiser la gravité du “problème immigré”. Tout ce qu’ils veulent tous conserver leur interdit de regarder un seul problème en face, et dans son véritable contexte. Les uns feignent de croire que ce n’est qu’une affaire de “bonne volonté anti-raciste” à imposer, et les autres qu’il s’agit de faire reconnaître les droits modérés d’une “juste xénophobie”. Et tous collaborent pour considérer cette question comme si elle était la plus brûlante, presque la seule, parmi tous les effrayants problèmes qu’une socitété ne surmontera pas. Le ghetto du nouvel apartheid spectaculeire (pas la version locale, folklorique, d’Afrique du Sud), il est déjà là, dans la France actuelle: l’immense majorité de la population y est enfermée et abrutie; et tout se serait passé de même s’il n’y avait pas eu un seul immigré. Qui a décidé de construire Sarcelles et les Minguettes, de détruire Paris ou Lyon? On ne peut certes pas dire qu’aucun immigré n’a participé à cet infâme

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 travail. Mais ils n’ont fait qu’éxecuter strictement les ordres qu’on leur donnait: c’est le malheur habituel du salariat. Combien y a-t-il d’étrangers de fait en France? (Et pas seulement par le statut juridique, la couleur, le faciès.) Il est évident qu’il y en a tellement qu’il faudrait plutôt se demander: combien reste-t-il de Français et où sont-ils? (Et qu’est-ce qui caractérise maintenant un Français?) Comment resterait-il, bientôt, de Français? On sait que la natalité baisse. N’est-ce pas normal? Les Français ne peuvent plus supporter leurs enfants. Ils les envoient à l’école dès trois ans, et au moins jusqu’à seize, pour apprendre l’analphabétisme. Et avant qu’ils aient trois ans, de plus en plus nombreaux sont ceux qui les trouvent “insupportables” et les frappent plus ou moins violemment. Les enfants sont encore aimés en Espagne, en Italie, en Algérie, chez les Gitans. Pas souvent en France à présent. Ni le logement ni la ville ne sont plus faits pour les enfants (d’où la cynique publicité des urbanistes gouvernementaux sur le thème “ouvrir la ville aux enfants”). D’autre part, la contraception est répandue, l’avortement est libre. Presque tous les enfants, aujourd’hui, en France, ont été voulous. Mais non librement! L’électeur-consomateur ne sait pas ce qu’il veut. Il “choisit” quelque chose qu’il n’aime pas. Sa structure mentale n’a plus cette cohérence de se souvenir qu’il a voulu quelque chose, quand il se retrouve déçu par l’expérience de cette chose même. Dans le spectacle, une société de classes a voulu, très systématiquement, éliminer l’histoire. Et maintenant on prétend regretter ce seul résultat particulier de la présence de tant d’immigrés, parce que la France “disparaît” ainsi? Comique. Elle disparaît pour bien d’autres causes et, plus ou moins rapidement, sur presque tous les terrains. Les immigrés ont le plus beau droit pour vivre en France. Ils sont les représentants de la dépossession; et la dépossession est chez elle en France, tant elle y est majoritaire, et presque universelle. Les immigrés ont perdu leur culture et leur pays, très notoirement, sans pouvoir en trouver d’autres. Et les Français sont dans le même cas, et à peine plus secrètement. Avec l’égalisation de toute la planète dans la misère d’un environnement nouveau et d’une intelligence purement mensongère de tout, les Français, qui ont accepté cela sans beaucoup de révolte (sauf en 1968) sont malvenus à dire qu’ils ne se sentent plus chez eux à cause des immigrés! Ils ont tout lieu de ne plus se sentir chez eux, c’est très vrai. C’est parce qu’il n’y a plus personne d’autre, dans cet horrible nouveau monde de l’aliénation, que des immigrés.

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 Il vivra des gens sur la surface de la Terre, et ici même, quand la France aura disparu. Le mélange ethnique qui dominera est imprévisible, comme leurs cultures, leurs langues mêmes. On peut affirmer que la question centrale, profondément qualitative, sera celle-ci: ces peuples futurs auront-ils domine, par une pratique émancipée, la technique presente, qui est globalement celle du simulacre et de la dépossession? Ou, au contraire, seront-ils dominés par elle d’une manière encore plus hiérarchique et esclavagiste qu’aujourd’hui? Il faut envisager le pire, et combattre pour le meilleur. La France est assurément regrettable. Mais les regrets sont vains.

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À Mezioud Ouldamer 22 novembre 85

Cher Mezioud,

On vous attendra donc le 21 décembre. On parlera de ton plan plus en détail. Le premier sommaire va bien. Je crois déjà que l’on peut dire que ce livre, renversant les infectes sottises de la gauche et de la droite, doit être, sur ce sujet faussement “passionné”, écrit dans un ton parfaitement impassible (Thucydide, Machiavel, plus récemment Bolloten), en évitant si possible tout mot de jugement valoratif; comme s’il s’agissait de géologie. C'est là qu’est le plus grand scandale. La thèse générale doit être (partant des citations des risibles erreurs des autres, comme pour s’excuser de devoir dire de telles évidences): il n’y aura pas d’intégration: il est aussi tard pour elle que pour l’expulsion. La France ne pourra intégrer personne, non parce qu’ils sont trop, mais parce qu’elle est devenue trop peu. Il n’y a plus de France. Il n’y a plus de culture française, certes. Il n’y a plus de “mode de vie français” (nous sommes l’Amérique du pauvre). Il n’y a plus de peuple français. Il n’y a du reste même plus de chrétiens, de sorte qu’il ne s’agit pas de savoir si les autres sont musulmans: “l’infidèle” suppose le fidèle, et les Français ont été infidèles à leur destin, à leur histoire, Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274

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Notas sobre a “questão dos imigrantes”, pp. 397-410 à leur vieille réputation; ils ont même perdu leurs vieux défauts! Ce sont des spectateurs, des veaux médiatiques. Si les immigrés peuvent être “une chance” pour la France, et aussi pour instruire d’autres pays, c’est en leur montrant par l’expérience l’étendue du désastre qui a emporté tous ces pays, la perfection de leur dépossession. Pour étudier le style de ce que d’autres pourraient appeler le “cynisme”, relis le Rapport de Censor, et certains passages de ma Préface italienne. On vous embrasse. Guy

REFERÊNCIAS: DEBORD, Guy. Notes sur la “questions des immigrés”. In. DEBORD, Guy. Œuvres. Paris: Gallimard, coll. Quarto, 2006, p. 1588-1592. DEBORD, Guy. Lettre à Mezioud Ouldamer de 22 novembre 1985. In. DEBORD, Guy. Correspondance: vol. 6 (Janvier 1979 – Décembre 1987). Paris: Librairie Arthème Fayard, 2007, p. 362.

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