lampejo - vol. 8 n.2

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EDITORIAL Como chegar de um lugar a outro? Como nos mover? Talvez se trate de que, no fundo, um caminho é sempre outra travessia. Como já dito por João Guimarães Rosa, há sempre um perigo em atravessar um rio, porque quando a gente pensa que chegou numa outra ponta, o que acontece é que vamos parar num ponto muito mais em baixo, bem mais diverso do que o primeiro que pensamos. Das diversas travessias que imaginamos serem possíveis, ou até impossíveis, pensamos ser possível dar espaço para tantas. São com essas imagens de pensamento que anunciamos mais um número da Revista Lampejo – revista de filosofia e cultura. A presente edição consta de dezenove artigos, um ensaio, quatro traduções, uma resenha e um ensaio fotográfico, das mais diversas abordagens e pontos de vista, e com isso acreditamos estar seguindo a nossa proposta de não sermos apenas uma revista puramente acadêmica, abrindo espaço para outros modos de construção filosófica, mas sem perder o seu devido rigor. No intento de justamente unir diversas travessias para podermos mostrar que não há um único modo de fazer a própria filosofia. A filosofia, ainda mais como é pautada na nossa região, precisa estar sempre à espreita, esperta para poder exercer a crítica e a própria ação do pensamento. Para esse intento a edição consiste de textos tidos como marginais pelo seu modo de escrita, até à maneira ortodoxa das produções de artigos já conhecida. Com isso destacamos o texto de abertura da edição, do professor Ruy de Carvalho, onde busca pensar, dentre tantas outras coisas, o que pode a crítica? O que acontece, como vemos hoje, na postura de aversão ao conhecimento ou à crítica, a chamada misologia? Ainda assim podemos destacar tantos outros textos, como o de Gabriel Crespo Soares Elias e Juliana Alves Garcia da Roza, onde também pensam aspectos visíveis na sociedade brasileira, como os movimentos de ódio e violência a partir de um ponto de vista psicanalista freudiano. Além de artigos sobre pensadores como Immanuel Kant, Aristóteles, Judith Butler, Albert Camus, dentre outros. Por fim destacamos que a atual edição também consiste de um recorde de publicação de traduções, sendo ao total quatro, tendo ainda traduções inéditas. Esperamos que todos vocês, leitoras e leitores, desfrutem a Revista Lampejo e que ela possa


suscitar uma interessante leitura e experiĂŞncia a todos, ou quem sabe possa fazer com que tantas outras travessias se tornem possĂ­veis. Boa leitura!

Dezembro de 2019, Os editores.


Í NDI CE

[ p. 145]FORMALI SMO RUSSO E A OBRA DE ARTE LI TERÁRI A:ENTRE A ESSÊNCI A EA FUNÇÃO J oãoPaul oAf onsoNet o

ARTI GOS [ p. 07]FI LOSOFI A:CRÍ TI CA,LOGOFI LI AE MI SOLOGI A RuydeCar val ho

[ p. 155]A BUSCA PELO I LI MI TADO NO ROMANCE O SUPERMACHO DE ALFRED J ARRY Cássi oRobsonAl vesdaSi l va

[ p. 19]A REI FI CAÇÃO DO NEGRO EM MACHADO DE ASSI S E RUBEM FONSECA:ESTUDO COMP OM ARADO DOS CONTOS “PAICONTRA MÃE” E “PLACEBO” Debor aPr i sci l aAr eval oGut i er r ez Vi t orCei

[ p. 171]OS “ANI MAI S COMO PESSOAS”: A ABORDAGEM ABOLI CI ONI STA DE GARY FRANCI ONE Hel oi saHel enaSi quei r aCor r ei a ÁdnaRosi enedeAr aúj oPar ent e

[ p. 33]BAUDELAI RE:PROFETA DE SARTRE? Renat oPar dalCapi st r ano [ p. 53]OS MOVI MENTOS DE DESTRUI ÇÃO E VI OLÊNCI A NO CONTEXTO POLÍ TI CO DA SOCI EDADE BRASI LEI RA:A ATUALI DADE DAS CONSI DERAÇÕES PSI CANALÍ TI CAS SOBRE A FORMAÇÃO DAS MASSAS Gabr i elCr espoSoar esEl i as J ul i anaAl vesGar ci adaRoza [ p. 76]A I MPLI CAÇÃO DA MELANCOLI A FRENTE À CONDI ÇÃO DE VI DA PRECÁRI A:UMA REFLEXÃO A PARTI R DE J UDI TH BUTLER Regi nal doOl i vei r aSi l va Pâmel aCr i st i naAl mei daQuei r oz [ p. 90]ESCATOLOGI A E DRAMA BARROCO EM WAL TER BENJ AMI N E ARI ANO SUASSUNA J oséVal doBar r osSi l vaJ úni or [ p. 108]O DESVELAMENTO DO MAU ENCONTRO EM O DESCOBRI MENTO DO BRASI LÀ LUZ DO PENSAMENTO DE LA BOÉTI E Pedr oHenr i queAr aúj oSant i ago RenanSoar esEst eves [ p. 123]PROI BI CI ONI SMO DE DROGAS E ( DES) SUBJ ETI VAÇÃO EM UM ESTADO RACI ALI ZADO LucasLei t ão Fel i peCar dosoVal e Pabl oSever i anoBenevi des [ p. 137]A MODERNI DADE ANALI SADA A PARTI R DO FI LME CI NEMA,ASPI RI NAS E URUBUS. Edi valSar ai vadeOl i vei r aNet o

[ p. 183]NARRATI VA E REPRESENTAÇÃO NA FI LOSOFI A DA HI STÓRI A DE FRANK ANKERSMI T J ohnEndr ew GomesdePaul a [ p. 210]PROBLEMAS DA FI LOSOFI A PRÁTI CA KANTI ANA SOB A PERSPECTI VA DA CRÍ TI CA AO VALOR E AO ESCLARECI MENTO, SEGUNDO ROBERT KURZ Pedr oHenr i queMagal hãesQuei r oz [ p. 218]O PENSAMENTO MEDI TERRÂNEOLI BERTÁRI O DE ALBERT CAMUS. LeandsonVasconcel osSampai o [ p. 226]A DI MENSÃO I NTELECTUALE AFETI VA DA FELI CI DADE NO EUDAI MONI SMO ÉTI CO DE ARI STÓTELES El vi sdeOl i vei r aMendes [ p. 242]PONDERAÇÕES SOBRE A FI LOSOFI A MORALDE KANT Di l sonBr i t odaRocha [ p. 262]“O DESCONHECI DO QUE PASSA”: FLÂNERI E,EROTI SMO E J OGOS DE AZAR NO EMERGI R DA MODERNI DADE Ani t aRi ver aGuer r a [ p. 271]O PROBLEMA DA I NDI VI DUALI DADE DA FORMA NOS LI VROS Z E H DA METAFÍ SI CA DE ARI STÓTELES Yasmi nTamar aJ ucksch ENSAI O [ p. 285]( NEO) LI BERALI SMO,DI REI TO E RESI STÊNCI A NO FI M DA MODERNI DADE Thi agoMot a


TRADUÇÕES [ p.293]O TEMPO CI RCULAR PorJ or geLui sBor ges Tr adução:Al l anAl ves [ p.300]SOBRE O HOMEM PorJ oséOr t egayGasset Tr adução:Gust avoAugust odaSi l vaFer r ei r a [ p.304]NI ETZSCHE E O I DEALARI STOCRÁTI CO PorA.K.Roger s Tr adução:Thi agodeSouzaSal vi o [ p.312]CARTA DE HEI DEGGER A HUSSERL PorMar t i nHei degger Tr adução:Fr anci scoAmst er danDuar t edaSi l va RESENHA [ p. 322]CUTUCANDO A I NÉRCI A COM VARA CURTA I vanNevesMar quesj úni or ENSAI O FOTOGRÁFI CO [ p. 328]REGI STROS J oãoPedr oLi ma Revi st aLampej oI SSN 22385274 Edi t or es Gust avoCost a LeonelOl i mpi o LuanaDi ogo Thi agoMot a Comi ssão edi t or i al Át i l aMont ei r o Dani elCar val ho Davi dBar r oso F abi enLi ns Gust avoFer r ei r a Henr i queAzevedo J ul i anaBr agaGuedes Paul oMar cel oBr i t o Rogér i oMor ei r a RuydeCar val ho Wi l l i am Mendes Consel ho edi t or i al Pr of .Dr .Er naniChaves Pr of .Dr .I vanMai adeMel l o Pr of .Dr .J ai rBar boza Pr of .Dr .J oséMar i aAr r uda Pr of .Dr .Lui zFel i peSahd Pr of .Dr .Lui zOr l andi Pr of .Dr .Mi guelAngeldeBar r enechea Pr of .Dr .J oséOl í mpi oPi ment a Pr of .Dr .Pet erPálPel bar t Pr of .Dr .Rober t oMachado Pr of .Dr a.RosaMar i aDi as Pr of .Dr .Syl vi oGadel ha

Pr oj et o gr áf i co edi agr amação Her l anySi quei r a LuanaDi ogo Gust avoCost a


ARTIGOS


Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18

FILOSOFIA: CRÍTICA, LOGOFILIA E MISOLOGIA Ruy de Carvalho1

RESUMO: Este texto pretende discutir os contornos e expressões da forma moderna que vem assumindo a misologia como aversão ao conhecimento, à crítica, ao argumento pretensamente razoável. Pretende apontar para a suspeita de que o modelo mesmo de crítica que herdamos de Nietzsche, Marx e Freud parece patinar, fazer pouco efeito a partir do final do século passado. Para isso retraça, de forma sumaríssima, algumas das significações e papéis ocupados pelas noções de crítica, logofilia e misologia na filosofia, para terminar, sem concluir, apontando para alguns impasses e problemas com uma das formas mais operantes na sociabilidade contemporânea, na qual aquelas noções, não sem estragos, desembocaram: o cinismo. PALAVRAS-CHAVE: filosofia, crítica, logofilia, misologia ABSTRACT: This text intends to discuss the liniaments and expressions of the modern form that is

assuming the misology like aversion to the knowledge, to the critic, to the allegedly reasonable argument. It intends to point to the suspicion that the very model of criticism we inherited from Nietzsche, Marx and Freud seems to be skating, to have little effect from the end of the last century. In order to do it, it most summarizes some of the meanings and roles occupied by the notions of critique, logophilia and misology in philosophy, to finish, without concluding, pointing to some impasses and problems with one of the most operative forms in contemporary sociability, in which those notions , not without damage, ended: cynicism. KEYWORDS: philosophy, criticism, logophilia, misology

1 Professor

do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.

Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 A cicatriz de nascimento da filosofia já a marca como, no mínimo, impulso à logofilia. Uma certa inclinação para o conhecimento ordenado, argumentado, discursivo, por assim dizer, lógicoracional tem sido considerada, fora e dentro das academias, como distintiva da filosofia. Nisso, percebemos indícios da presença de um longo esquecimento. Não costumamos encontrar importantes bibliografias que encarem a história da filosofia como genealogia da misologia, ou enquanto expressão da proteção contra os perigos desta. Aparentemente, filosofia, como logofilia, estaria mesmo nos antípodas da misologia. Na modernidade, entretanto, vemos surgir ou ressurgir, nas preocupações hegelianas com o cinismo iluminista de Rameau, o receio de que o modo de vida cínico possa vir a ameaçar a vinculação imediata entre filosofia e desejo ou amor pelo conhecimento. Um certo ódio, ou pelo menos, indiferença às altas pretensões do conhecimento parece emergir das profundezas de um longo sonho dogmático. A logofilia parece encontrar aqui seu primeiro obstáculo, por assim dizer, auto-consciente. Nos últimos seis, oito anos um número considerável de trabalhos, oriundos de diferentes disciplinas, com distintos interesses, objetivos e compromissos têm problematizado aquele "impulso epistemofílico" (Sandler) que, de Parmênides a Freud, percorreu a história do pensamento filosófico no Ocidente. O retorno a essa trajetória, claro, extrapola em muito os limites deste pequeno ensaio. Os(as) filósofos(as), sempre atentos(as) aos começos, têm preferido refletir sobre a gênese da filosofia dogmático-humanística, da assim chamada metafísica, em e com Sócrates, sem que as circunstâncias e a significação de sua morte sejam consideradas igualmente decisivas na transmissão de seus ensinamentos. Este texto pretende discutir o que considero um dos pontos de chegada desta tradição, por assim dizer, inventada e vivida por Sócrates. Não farei aqui, apesar de julgar necessário, uma genealogia da filosofia como misologia. Tentarei me concentrar na apresentação dos contornos e sintomas da forma moderna, contemporânea, que vem assumindo a misologia como aversão ao conhecimento, à crítica, ao argumento pretensamente razoável. No iluminismo, a filosofia encontra no cinismo uma fonte privilegiada de expressão de sua vocação misológica. Hegel, na Fenomenologia, pressente o perigo na forma de vida encarnada pelo sobrinho de Rameau, de Diderot. Pressentimento repleto de consequências. Kant, contudo, já nos havia advertido do problema, quando concebe a própria filosofia como uma nova e original forma de crítica. Filosofia como uma nova atitude, menos doutrina do que explicitação de ilusões e antinomias, em relação às quais o racional é não esperar por sínteses apaziguadoras, por teorias Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 concebidas como consolos metafísicos. Desde então, teoricamente, devemos aceitar viver as contradições sem esperança de encontrarmos soluções promotoras de algum tipo de trégua ou termo para conflitos de semelhante natureza. O sintoma desta nova demanda, em filosofia, pode ser encontrado na interpretação da problemática noção de coisa em si, como uma forma de ficção (Vaihinger, Arendt), um ponto de vista, uma perspectiva (Nietzsche). O passo seguinte, que não será jamais dado pelo assim chamado Idealismo Alemão, consistirá em demandar, em relação à frustração, no que tange ao conhecimento das coisas em si, não apenas tolerância, mas gozo. Essa pequena história é que gostaria de aqui traçar um pequeno e rápido esboço. Crítica, desde os gregos, significa habilidade ou capacidade de separação, de operar distinções, de estabelecer juízos, de realizar seleções e, assim, poder decidir por um caminho ou articular diversas perspectivas, coordenar pontos de vista díspares. A crítica, enquanto reconhecimento de uma crise, opera um certo desvelamento, explicita o implícito, desdobra e desmascara o que estava encoberto. O principal instrumento na operação crítica é o logos, o discurso ordenado, equilibrado, ajustado à medida precisa, reta. A crença básica era de que existem contradições, paradoxos, antinomias, certamente, mas que não deveriam existir; que um juízo correto e coerente deve ser considerado melhor, mais perfeito, mais completo que os demais. A morte de Sócrates, a crer na Apologia platônica, mostra-nos que aquele que foi considerado um mestre no entretecimento de argumentos, o mais hábil conversador, o melhor dialético produzido por Atenas foi, após o devido processo legal, silenciado com a morte, suicidado. Antes disso, se crermos agora no Fedon, Sócrates propôs um critério altíssimo a todos(as) que pretendam ser considerados(as) filósofos(as): a morte. A maneira como se morre retroage tornando possível operar-se a crítica sobre a forma como se viveu e, assim, podemos identificar o(a) filósofo(a). Filósofo(a), como o(a) cristão(ã) depois dele, identifica-se observando sua forma de vida, mais que suas professadas teorias e/ou doutrinas. A crítica, aqui, separa e distingue desvelando um certo sentido que se expressa nas atitudes e posturas, nas atividades e relações quotidianas. Simetria impressionante, a da "carreira" socrática. O começo e o fim mantêm entre si uma impressionante coerência prática. Sócrates começa a filosofar quando sabe por um amigo, que havia estado em Delfos e, após a consulta a Apolo, teria descoberto que Sócrates seria sábio, ou o mais sábio ateniense. Este, ao saber, não se embrenhou em elucubrações abstrusas objetivando encontrar o sentido oculto pela/na/com a sentença délfica. Não, resolveu investigar em que condições Apolo poderia estar certo. Pragmaticamente, testou a veracidade do oráculo. Inventou um método para operar a crítica e selecionar candidatos (Deleuze). Ao final, apaziguado, pediu a Críton que pagasse Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 suas dívidas a Asclépio/Esculápio sacrificando-lhe um galo. Quão distantes estamos dessa concepção de crítica. Interpôs-se entre nós e eles, todo o cristianismo e, o que aqui nos interessa mais de perto, os iluminismos francês e alemão e, mais recentemente, as imponentes construções de Nietzsche, Marx e Freud. O que Platão e os metafísicos construíram com o espólio socrático foi uma forma de discurso e, em alguns casos, de vida em que a crítica deve ser considerada o distintivo da filosofia que se pretende fiadora e guardiã da verdade, a ser encontrada após longa alquimia, mediante a qual dela separamos todas as impurezas, sensíveis ou não. Na verdade, alquimia não seria uma boa metáfora aqui, pois o modelo no qual a metafísica se sistematizará será sobretudo a geometria, a matemática, muito mais que a biologia. Trata-se, ali, de desvelar, descobrir, explicitar o verdadeiro que jaz, quieto e inerme no turbilhão do real. Este funciona como véu, máscara, que seria preciso transpassar quando se pretende acessar o Real. Crítica, assim, pode ser compreendida como desmascaramento. A grande maioria de nós não se sabe mascarado, tampouco que o mundo em que vivemos e operamos é, igualmente, portador de véus. Daqui, a necessidade da filosofia: realizar a crítica, desmascarando as máscaras e, assim, de certa forma curando-nos desse estranho tipo de cegueira, em que não se sabe cego. Claro, nada mais razoável que, após semelhante "operação de catarata", sacrifiquemos um galinho a Esculápio/Asclépio. A crítica visará um tipo de controle e adestramento logofílicos dos impulsos misológicos; como superação da barbárie sofística, num primeiro momento, e das barbáries cínica e cética, posteriormente; crítica como meio que a filosofia/logofilia se utilizou para civilizar a errância bárbara das caóticas pulsões interiores, expressas nos discursos sofísticos, cínicos e céticos, que trazem perigo à norma e ao mundo, flertando com a a-nomia e o imundo (Mattéi). Eis um esboço, uma caricatura do modelo de crítica que herdamos dos gregos e que começará a encontrarar seus limites no Iluminismo, no Esclarecimento. Kant, reconhecendo que as dificuldades encontradas pela concepção de crítica acima formulada residia menos nesta última do que naquilo que a suportava, reconfigura não apenas o modelo, mas a coisa mesma, a própria filosofia. Crítica, agora, não mais será pensada como forma de desmascaramento do verdadeiro, mas das ilusões (necessárias). Cabe à filosofia menos a formulação de teorias que descrevam, verdadeiramente, o Real, que pensar as condições teóricas que possam sustentar um uso autônomo da razão e, assim, promover atitudes emancipadas das tutelas institucionais : família, escola, igreja, Estado, etc. Crítica e filosofia teórica devem estar interessadas nos limites, na validade das formas de uso de nosso aparato cognitivo, pois somente semelhante objetivo garantiria a fidelidade e o compromisso com nossa finitude. Claro, para isso, Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 Kant cobra uma taxa, altíssima para seus sucessores do Idealismo Alemão; a taxa: "tolerância à frustração" (Sandler), abandono da pretensão de dominação, de docilização das coisas em si. Em todo caso, crítica, aqui, ainda deve ser concebida como separação, distinção, depuração; não mais entre o verdadeiro e o falso, mas entre o que se pode (legitimamente pretender conhecer) e o que não se deve (acriticamente esperar encontrar), entre a atitude teoricamente responsável e as crenças e ilusões produzidas quando do mal uso de nossa razão. Com esta segunda forma de crítica as asas logofílicas da filosofia serão gravemente podadas, dificultando a realização de seu desejo de vôos trans-oceânicos. Uma terceira concepção de crítica, não a última, poderíamos encontrar em pensadores como Nietzsche, Marx e Freud. Crítica como "jogo" entre fundo e superfície: genealogia, crítica do fetichismo e análise, distintas instâncias de diagnóstico crítico do mal-estar. Parece-me evidente que os pensadores citados divergem em pontos fundamentais. O estatuto teórico, os objetivos e interesses de suas obras se distanciam enormemente, o que já foi reconhecido por uma legião de comentadores e intérpretes. Entretanto, o que nos interessa aqui é o fato de que para os três, penso, crítica tem a ver ainda com um certo tipo de desmascaramento, de remissão do manifesto ao latente, do epifenômeno às suas gêneses. São, de maneiras diferentes, três intérpretes da modernidade, da civilização, da sociedade conforme a estruturamos. Críticos da modernidade, suspeitam profundamente da tendência epistemologizante expressa na fixação da filosofia moderna no sujeito de conhecimento, com seu intelecto e consciência contrapostos a um conjunto de objetos, realística ou idealisticamente concebidos, pouco importa. Desconfiam, igualmente, das pretensões da filosofia, tomadas por eles como descabidas, dogmáticas ou suspeitas em mais alto grau. Mostrar o "fundo" amoral da moral, o "fundo" socialmente mundano da divina mercadoria e o "fundo" pulsional da consciência significa colocar-se como tarefa a realização de uma interpretação "infinita", desmitificadora e desmistificadora. Seja como for, o que nos interessa é que o modelo de crítica operante na genealogia, na crítica do fetichismo e na análise permanece tributário de uma noção de crítica em que importa distinguir, "separar", "disjungir". Não mais, novamente, o verdadeiro do falso ou o que se pode do que (não)se deve, mas a vontade de poder de suas manifestações, a lógica do modo de produção capitalista (do valor) de suas mercadorias e o inconsciente de suas apreensões conscientes. Para os três pensadores parece haver algo (valor, lógica/história, pulsão) a ser explicitado, desvelado. Desmascaramento que exige um envolvimento, um compromisso daquele que "adere" a Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 tal projeto; abre igualmente a possibilidade de vivência de diferentes tipos de sofrimento. Tanto a genealogia quanto a crítica do fetichismo e a análise implicam como que um: "eu não sabia, mas agora que sei, modificarei minha atitude". Elas demandam uma mudança não apenas de perspectiva, mas de comportamento, de ação, de atitude. Nisto residiria um dos efeitos positivos e potentes da crítica: ela teria o potencial de modificação das mentalidades mas, igualmente, das ações; espera-se dela um efeito pragmático capaz de, no limite, promover uma revolução no sujeito, em grupos de indivíduos ou mesmo na sociedade e na civilização como um todo. Espera-se que se aja diferentemente quando da "adesão" à genealogia, à crítica da economia política ou à interpretação analítica. O desmascaramento funcionaria mais ou menos como uma espécie de crítica da hipocrisia, da ideologia, das ilusões. Como se esta última fosse uma forma multifacetada e polivalente de mascaramento que, por sua vez, poder-se-ia começar a "romper" ou "rasgar" com Nietzsche, Marx e Freud sem que, com isso, se descubra ou se acesse alguma verdade última, princípio originário ou realidade metafísica. É como se a pergunta "o que fazer?" fizesse menos sentido para o genealogista, o marxista ou o freudiano, a menos que se considere a pergunta do ponto de vista tático, estratégico, metodológico, etc. Herdeiros, cada um a seu modo, da filosofia kantiana, porém muito mais cônscios e preocupados com o potencial disrruptivo da razão, eles perceberam com perspicácia quase profética o risco misológico que desde sempre rondou a filosofia compreendida como logofilia. Como críticos e filhos do Iluminismo e do Esclarecimento sabiam que a loucura, como dobra da razão, dorme e sonha no "dorso de um tigre"; que o ódio à razão nasce e cresce, mesmo que um pouco à sombra, de seu irmão, o "amor" (filia, eros, ágape, etc) à razão. Os frankfurtianos, na estrada aberta por Hegel, mostraram-nos, com a ajuda de duas guerras mundiais e a produção de uma Indústria de Extermínio sem precedentes, que a filosofia, somente quando se aceita o risco da emergência e atuação de fascismos e totalitarismos pode ser reduzida à sua dimensão logofílica. O problema começa quando essa separação, ou aquilo que a sustenta, quer dizer, aquilo que a preocupa e interessa, deflaciona e deixa de fazer efeito. Nossa inquietação começa, quando, no Iluminismo, a máscara deixa de ser um problema e a hipocrisia uma de suas soluções possíveis. A logofilia e a misologia têm expressado e refletido, dentre outras coisas, dois desejos da filosofia, ou duas formas diferentes de relação da filosofia com o desejo. Quer como nostalgia ou esperança, gêmeas irmanadas na carência, quer como absurdo ou potência, a tarefa da filosofia, em Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 ambos os casos, é sempre concebida como necessidade de solução de contradições, no caso mais grave, de paradoxos e aporias, no caso mais leve. Escolher um dos polos, sintetizá-los, colocá-los em movimento por meio dos mais variados dispositivos, suspendê-los - temporariamente ou não foram algumas da mais famosas tentativas de enfrentamento daquela tarefa. Todo esse conjunto de procedimentos tem sua importância creditada não apenas às dimensões teóricas do pensamento, mas sobretudo ao fato de que a logofilia foi concebida, desde o começo, como possibilidade prática de sedimentação de laços sociais, de vínculos intersubjetivos e institucionais julgados necessários a uma excelência na organização da vida comunal dos cidadãos. A misologia não foi concebida, fundamentalmente, como ódio à razão, mas como culto à desordem, ao caos, à desmedida, ao desequilíbrio ou seja, à desproporção, à injustiça, à feiúra e à embriaguês; como ódio à política, ao comum, à humanidade; em uma palavra: como uma forma de misantropia, sua irmã, conforme Platão (Fedon), posteriormente acompanhado por Kant (Fundamentação da metafísica dos costumes) e Hegel (Enciclopédia). Em ambos os casos, parece-me, o teatro "grego", com suas máscaras, bem como a matemática "grega", com sua fixação nos duplos parecem ter sido utilizados na constituição do modelo que usamos para compreender o estatuto, interesse, função do que passamos a chamar de filosofia. Bem, esqueceram de combinar com os cínicos; para não dizer que não falei dos céticos. Deixemos Diógenes dormir sossegado em seus barris e façamos de conta que o cinismo desapareceu do horizonte medieval por incompetência, preguiça ou inanição vampiresca; teria faltado-lhe sangue. Eis, então, que o recalcado bate à porta, maltrapilho, faminto e obscuro, justamente numa época de pompa cortês, nobres excessos gastronômicos e intelectos luminosos. Retorno ainda mais indesejado e incômodo porque presunçosamente indiferente às máscaras, pouco inclinado à hipocrisia, mas munido com uma ironia quase insuportável e com um piscar de olho e o esgar orgulhoso que lembrou, inicialmente, a Hegel, aqueles que ele menosprezou e diminuiu em suas Preleções sobre história da filosofia: os cínicos. Falo, claro, de Diderot, melhor, do sobrinho de Rameau. Este, inaugura aquilo que, penso, tornou-se lugar comum: a implosão indiferente da própria distinção entre logofilia e misologia. Hoje, o ódio à razão caiu apaixonado; o amor à razão ou envelheceu ou comemora, tranquila e flatulentamente, bodas de baobá. Como fazer a crítica? Como, sequer, concebê-la? O que ela pode? Como proceder para que ela volte a fazer efeito? Problema que se apresenta de forma incontornável até mesmo no olho do furacão, no centro do império (Chomsky, Y. Mounk, J. Stanley, S. Levitsky, D. Ziblatt, M. Kakutani). De "eu não sabia, mas agora que sei modificarei minha atitude" começamos a sentir e viver Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 as potencialidades e consequências do "eu sei, mas continuo me comportando como se não soubesse". O cínico, assim como o hipócrita, usa e abusa de máscaras mas, diferentemente deste, não parece ter muito apego a elas, nem dedicar muito empenho em escondê-las, lapidá-las e/ou fazê-las reluzir. Não se coloca ou se concebe como um asceta ou um artista. Esteticamente mais pragmático e economicamente mais oportunista faz das máscaras um uso, por assim dizer, perverso. Sem zelo camaleônico em dissimulá-las ou escamoteá-las, o cínico as assume como tal, ou seja, exige que se lhe reconheça enquanto máscara(s) e, assim, que se espere delas nada mais, mas igualmente nada menos, que aquilo que elas podem lhe dar. Não se trata de eliminar ou propor uma saída para o jogo interminável de véus, mas de realizar, de vivenciar os conflitos, contradições, paradoxos, aporias e antinomias que deram ensejo à própria criação das máscaras de uma outra maneira, ironicamente, isto é, tomando as contradições, paradoxos, etc, como já solucionados, no momento mesmo e enquanto e porque postos. Fim da demanda de solução das contradições, paradoxos e aporias; uma vez postas, uma vez resolvidas. O cinismo mantém juntos os polos contraditórios, paradoxais, etc; nele, as dimensões sintático-semânticas da linguagem remetem, mais intensa e estrategicamente, à pragmática, onde o sentido se constrói num vai-e-vem, meio lúdico meio sério, entre o enunciado, a enunciação e uma cornucópia de expressões corporais em que um caleidoscópio de possibilidades de interpretações é aberto, bem como exigido que se mantenham, equipolentemente, as pretensões de significação, avaliação e validade. Aqui, numa determinada situação, piscar um olho de uma determinada maneira, num certo ritmo, com uma certa torção do lábio inferior esquerdo, emitindo um certo som metálico semelhante a um assobio….pode ser fundamental na formação da posição do cínico, daquele para quem tudo parece contar e, assim, nem eliminação nem multiplicação dos espelhos, mas quebra, ruptura dos espelhos, mantendo juntos os estilhaços (Foucault). As máscaras, mais do que operar especularmente, mantêm abertas as possibilidades racionais de reconhecimento. Um espelho - ou vários - aquieta ou não aquele(a) que nele se mira, em que nele e por ele se apresenta. Isso se dá porque nele se pode se reconhecer, reconhecer-se, forma-se nele e através dele uma imagem, uma representação. Quebre-se o espelho, mas mantenha-se unidos os estilhaços. Ainda teremos imagens, mas agora nelas já não nos reconhecemos, pois as mesmas não representam nada, mas criam monstros, criam incontáveis e ilimitados monstros em que devimos outros. Os cínicos, como espelhos quebrados, operam com imagens, mas estas já não são formadas Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 visando um reconhecimento possível, a partir de identidades que se reforçam mediante este mesmo reconhecimento. As imagens criadas pelo espelho quebrado do cinismo inviabilizam o reconhecimento porque o que nelas se apresenta já não representa nada, não resolve e não soluciona nada, portanto não aquieta quase ninguém. Seja como for, seria preciso um longo desvio pelas filosofias da diferença para apontar para a potência dessa criação de imagens-monstro através da diferença, bem como para mostrar, minimamente, como a impossibilidade de reconhecimento, devido à ausência de representatividade do indivíduo idêntico a si mesmo, exige uma mudança na concepção de razão como lastro da sociabilidade. O que pretendo entretanto é apontar para uma suspeita, de resto já referida por vários autores desde o pós segunda guerra; a suspeita de que o modelo mesmo de crítica que herdamos de Nietzsche, Marx e Freud parece patinar, fazer pouco efeito a partir do final do século passado. Seja porque o diagnóstico nietzcheano de que caminhávamos a passos largos para o niilismo; seja porque, via Grundrisse, quando o trabalho morto tragar o vivo e este deixar de produzir riqueza suficiente, o capital promoverá como que sua auto-dissolução; seja porque terminaremos transitando da neurose à perversão como instância básica de socialização, enfim, por um ou todos estes motivos deveríamos ter boas razões para esperar que uma sensata percepção do problema nos levaria a crer ser possível desmascarar as patologias envolvidas no processo e, minimamente, agir de forma eficaz. Estes três pensadores, penso, esperaram que suas obras contribuissem para a formação da crítica e, com esta, pudéssemos transvalorar e transformar a nós mesmos e o nosso mundo, tanto social quanto físico. Isso, simplesmente, não parece ter sido o caso. Quando o desmascaramento, a desmitificação e a denúncia deixam de funcionar como motor da crítica (Safatle), então genealogia, crítica do fetichismo e interpretação analítica perdem potência e deixam de fazer efeito. Quando, diante das contradições e disfuncões do dito sistema já não nos empenhamos, mediante a crítica, em sua resolução ou superação, mas passamos a gozar com tais patologias, então a norma e sua infração co-incidem, restando a exigência de mais gozo na junção e identificação do que disjunge e difere (Deleuze-Guattari). Nesta situação, a crítica já não mais pode ser concebida como uma questão de distância correta (Benjamin), já não devemos esperar eficácia de nossa logofilia, como tampouco se trata de uma irrupção abrupta ou retorno violento da misologia. A própria distinção entre ambas, primeiramente posta por Platão (Fedon), parece evanescer. A crítica, neste cenário, pode pouco, uma vez que a ironia e o cinismo transam bem com a indeterminação e a polarização, pois não põem para si a exigência de síntese, solução ou superação dos antagonismos, mas requerem que se os vivencie co-juntamente e, mais ainda, que se Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 tome tudo isso como motivo de festa, diria mesmo, de celebração. Esta epidemia de excesso em que vivemos exige a imolação e o sacrifício diário de milhares de pessoas, para as quais, simplesmente, evaporaram as próprias possibilidades de sentido/valor (Nietzsche), de trabalho (Marx), de sublimação (Freud). A crítica genealógica dos valores, da economia política ou libidinal parece ter encontrado seus limites lógico-pragmáticos. A situação se apresenta ainda mais grave se imaginarmos este processo não apenas como mais uma etapa ou um desdobramento histórico da relação entre logofilia e misologia, mas como fim de um mundo (Menegat, Kurz), de um mundo em que sentido e valor se constituíam de uma maneira que já não pode ser nem totalmente dada como morta nem ressuscitada verdadeiramente. Que alcance teria hoje uma crítica nos moldes propostos pelos autores citados? Bem, ela continua a ser feita, sobretudo nas academias. Que efeito ela produz? Com ela se pode obter certificados, diplomas, prestígio, consolo….seja como for, nas ruas, assim me parece, ela tem chegado ou muito tarde ou pouco importa. Devemos, simplesmente, contemplá-la como uma peça fulgurante de museu? Penso que não, afinal essa não é a única forma de relação possível com os mortos. Existem experiências que vêm se tornando modelares como forma de manutenção efetiva da vida, da sobrevivência mesmo, bem como da construção de sentido e valor. O modo MST de organização, por exemplo, transcendeu seu emprego no campo e estradas aportando às grandes cidades, via MTST, por exemplo; as comunidades indígenas do Brasil e da Bolívia, os quilombolas, os zapatistas, as mães da Praça de Maio e os piqueteiros argentinos são formas comunais de organização e atuação que já não se fundam nem esperam da crítica dos valores, do inconsciente ou do modo capitalista de produção uma saída para suas vidas, pois sabem que ou não há nada a esperar ou morrem, literalmente, antes que algo advenha disso. Como pode "o povo da mercadoria", igualmente surdo a uma "crítica xamânica da economia política da natureza"(Kopenawa, Albert), enfrentar os desafios que se colocam neste fechamento de ciclo histórico em que parecemos viver? Que expectativa a crítica tradicional justificaria, quando já nos damos por satisfeitos com o simples fato de ter um emprego e chegar vivo em casa? O problema é que o número dos que vivem sem sentido, sem valor, sem trabalho e sem moradia em breve superará, se já não o tiver feito, o número daqueles que esperam permanecer empregados e com residência. As formas tradicionais de resolução e superação deste problema fracassam, sistematicamente, desde a década de 70, para alguns, desde os anos 1990, para outros (Menegat, Arantes). Seja como for, o cinismo parece se apresentar como saída misológica desesperada - uma Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Filosofia: crítica, logosofia e misologia, pp. 07-18 espécie de último recurso da moda - àqueles que, bem ou mal, ainda conseguem se sustentar no e do sistema, como corajosos malabaristas sem rede de proteção (social, inclusive).

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A REIFICAÇÃO DO NEGRO EM MACHADO DE ASSIS E RUBEM FONSECA: ESTUDO COMPARADO DOS CONTOS “PAI CONTRA MÃE” E “PLACEBO” Debora Priscila Arevalo Gutierrez1 Vitor Cei2 RESUMO: O objetivo geral é analisar como a reificação do negro aparece configurada nos contos “Pai contra Mãe”, de Machado de Assis, e “Placebo”, de Rubem Fonseca. Como objetivo específico, comparamos os dois contos e suas estruturas quanto aos temas abordados, respeitando o contexto histórico e cultural em que as duas obras foram produzidas. Partimos das seguintes questões norteadoras: de que forma a reificação do negro, fenômeno concreto e histórico presente na sociedade brasileira, aparece configurada ficcionalmente nos contos “Pai contra mãe” e “Placebo”? De que maneira as questões raciais são transfiguradas ficcionalmente por autores de épocas distintas e que se utilizam de estratégias de linguagem diferentes? Utilizamos como referencial teórico os estudos sobre reificação de Honneth e Jameson. PALAVRAS-CHAVE: Reificação; Machado de Assis; Rubem Fonseca ABSTRACT: The main objective is to analyse how the reification of black people appears configured in the short stories “Father against Mother”, by Machado de Assis, and “Placebo”, by Rubem Fonseca. As specific objective, we compare the two short stories and their structures in relation to the themes addressed, respecting the historical and cultural context in which the two works were produced. The start point are the following guiding questions: How does the reification of black people, a concrete and historical phenomenon present in Brazilian society, appear fictionally configured in “Father against Mother” and “Placebo”? How are racial issues fictionally transfigured 1 Mestranda em Estudos Literários e licenciada em Língua Portuguesa e suas literaturas pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: deboraarevalo2412@hotmail.com 2 Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: vitorcei@gmail.com

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 by authors of different eras using different language strategies? The theoretical referential is centered in the studies on reification by Honneth and Jameson. KEYWORDS: Reification; Machado de Assis; Rubem Fonseca Introdução Este artigo tem como finalidade abordar e compreender a reificação do negro nos contos “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, publicado em 1906, no livro Relíquias de casa velha, e “Placebo”, de Rubem Fonseca, incluído no livro O buraco na parede, de 1995. A partir desse corpus ficcional, apresentam-se os seguintes questionamentos: como a reificação do negro, fenômeno concreto e histórico presente na sociedade brasileira, aparece configurado literariamente nos contos “Pai contra mãe” e “Placebo”? De que maneira as questões raciais são transfiguradas literariamente por esses dois autores de épocas distintas e que se utilizam de estratégias de linguagem diferentes? Em “Pai contra mãe”, Machado de Assis aborda a reificação a partir do racismo e da escravidão, relacionando o sofrimento da mãe negra e a morte de seu bebê com a sobrevivência do pai branco e seu filho. Ainda que o conto tenha sido publicado 18 anos após a abolição, o enredo é ambientado meio século antes. No contexto daquela época, uma vez que a escravidão ainda não havia sido abolida, o ato de violência contra uma mulher negra seria justificado por não violar nenhuma lei ou valor moral da sociedade de então. Por outro lado, no conto “Placebo”, de Fonseca, a escolha feita pela personagem fere a lei vigente, bem como seus valores morais e éticos, tornando a decisão condenável, ainda que “justificável” – “justificações que condenam” (SCHWARZ, 2000, p. 115) – devido à situação crítica dela. No primeiro conto, o narrador heterodiegético utiliza artifícios de persuasão através da linguagem de forma a justificar os atos que logo depois serão consumados, enquanto no segundo o narrador autodiegético se sente culpado pelas suas escolhas futuras, no entanto, viola suas crenças para poder obter a cura de sua doença. A partir da pesquisa e estudo do processo de reificação nos dois contos se pode compreender o papel de persuasão dos narradores de forma a justificar as ações dos personagens, como também o método de cada autor e as ferramentas utilizadas através da linguagem que possibilitaram a reificação vista em cada conto. Por conseguinte, é possível ancorar as questões raciais como instrumentos configuradores da reificação nas duas narrativas.

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 Reificação, conceito fundamental para as teorias marxistas, designa uma patologia cognitiva ou existencial produzida pela forma específica de organização da sociedade capitalista, que submete o ser humano ao cálculo e à administração da troca mercantil, como se fosse uma coisa (res, em latim). Partindo dessa linha de pensamento, Axel Honneth propôs uma atualização do conceito: Sob “reificação” eu não gostaria de ver entendido, tal como acontece em geral hoje no emprego do conceito, apenas uma postura ou ação através da qual outras pessoas são “instrumentalizadas”; essa instrumentalização significa tomar outras pessoas como meio para fins puramente individuais, egocêntricos, sem precisarmos abstrair de suas características humanas; ao contrário, geralmente serão inclusive as habilidades especificamente humanas destas pessoas que utilizamos para, com sua ajuda, realizar nossos propósitos essa instrumentalização significa tomar outras pessoas como meio para fins puramente individuais, egocêntricos, sem precisarmos abstrair de suas características humanas; ao contrário, geralmente serão inclusive as habilidades especificamente humanas destas pessoas que utilizamos para, com sua ajuda, realizar nossos propósitos. Diferente da “instrumentalização”, a reificação pressupõe que nós nem percebamos mais nas outras pessoas as suas características que as tornam propriamente exemplares do gênero humano: tratar alguém como uma “coisa” significa justamente tomá-la(o) como “algo”, despido de quaisquer características ou habilidades humanas (HONNETH, 2008, p. 69-70).

A visão reificadora é aquela que o capitalismo desenvolveu como meio de coisificar o ser humano e consequentemente, suas ações; fazê-lo útil ao mercado de trabalho e ao sistema. Partindo do termo “utilidade”, relaciona-se este à temática dos contos “Placebo” e “Pai contra mãe”, configurado nas personagens e suas decisões. De tal modo, a desigualdade das raças se encontra como ferramenta de utilidade e como meio para a reificação se concretizar. Assim, podese perceber a relevância de entender o processo de reificação e quais suas formas atuais, influências, causas e consequências a longo prazo. Por essa razão, traz-se como referência o método crítico de Antônio Cândido, quando se parte do modo de ligar literatura e arte ao contexto histórico, social e cultural, já que ele é o principal expoente brasileiro da linha de estudo comparatista que compreende a linguagem literária em suas dimensões estética e sociológica, como algo carregado de sentido histórico e cultural e não somente um meio de descrição ou representação da realidade. A proposta é mostrar a interpenetração entre literatura e sociedade: “averiguar como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura literária, a ponto de ela poder ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que a obra exerce” (CANDIDO, 2006, p. 08). O estudo da reificação pretendido nesta pesquisa é demonstrar seu processo dentro da literatura através dos dois contos e como estes se relacionam ou se diferenciam, levando em consideração o contexto histórico em que eles estão inseridos. Bem como trazer esclarecimento

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 diante desse tema tão urgente e atual, uma vez que ao estar ocorrendo tão ativamente no nosso meio, afeta as relações sociais e a maneira como o outro é visto por nós. Isto posto, teve-se como objetivo geral identificar o processo de reificação no âmbito dos dois contos selecionados, comparando os estilos dos autores para elaborar as características que os diferenciam. Como objetivos específicos, almejam-se: avaliar como a reificação do negro, fenômeno concreto e histórico presente na sociedade brasileira, aparece configurada literariamente nos contos “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, e “Placebo”, de Rubem Fonseca; analisar a estrutura formal de cada conto visando os elementos ficcionais que representam a reificação; comparar os dois contos de maneira a analisar o contexto em que eles estão inseridos, tendo em vista a forma que a reificação toma e finalmente demonstrar como as questões raciais se configuram para que a reificação se manifeste nas obras.

A reificação do negro em “Pai contra mãe”, de Machado de Assis

A personagem principal é Cândido Neves, um homem pobre que tinha “um defeito grave [...] não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo” (ASSIS, 2007, p. 142). Depois de tentar carreira como tipógrafo, caixeiro, carteiro no Ministério do Império, entre outros empregos que foram deixados de lado pela sua vontade e orgulho, ele decidiu achar seu ofício como caçador de negros escravizados fugidos. É a partir desses vícios pequenos que nossa personagem começa a mostrar seu caráter um tanto indolente e escasso de virtudes. Cândido é o típico homem branco desempregado, sem status social ou herança que o salve da miséria. Casa-se com Clara, moça de vinte e dois anos, pobre e órfã, que ainda morava com a tia, Mônica. Fruto dessa união, concebe-se uma criança, a qual traz grandes despesas para o casal mesmo antes de seu nascimento, piorando a situação de grande dificuldade econômica que a família passava. Desta maneira, Cândido teve que procurar ofícios mesmo com desgosto pelo bem de sua família e do seu primogênito. Com o nascimento da criança e o agravamento da situação, a solução seria entregá-la à Roda dos Enjeitados, instituição ligada à Santa Casa da Misericórdia, que acolhia órfãos ou crianças rejeitadas por seus pais. Assim foi feito o acordo entre Cândido e Mônica: O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso (ASSIS, 2007, p. 149-150).

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O sentimento de se agarrar até o último momento ao fruto de seu amor com Clara fez Cândido vagar pelas ruas retardando a tão penosa separação; até que, sem querer, encontrou a escrava que tempo atrás ele procurava pela recompensa que era oferecida a quem a capturasse. Assim, tomado por amor e felicidade, o esposo de Clara não hesitou em entregar a escrava ao seu senhor, mesmo ela implorando que a soltasse, já que levava um filho em seu ventre. No entanto, Cândido não deu ouvidos ao sofrimento da mãe, senão ao próprio e testemunhou a consequência de suas ações: Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem milréis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo (ASSIS, 2007, p. 151-152).

A indignação nem sequer passou pela mente de Cândido, visto que ele unicamente estava preocupado com seu bem-estar e o de sua família. Em seguida, ele correu para buscar seu filho que tinha deixado com um farmacêutico ao ficar totalmente desesperado por ver Arminda; brevemente pensou na mulher escravizada, mas prontamente esse pensamento foi substituído pelo sentimento de alívio que preenchia todos. Note-se que o fato de Cândido substituir as lembranças da tragédia por sentimentos bons e o conforto da família, revela a reificação se manifestando automaticamente nas ações da personagem. Dessa forma, às custas do sofrimento do outro, Cândido obtêm dinheiro suficiente para manter o filho e cuidar das despesas da casa. O conto finaliza com desgraça de Arminda e o pensamento de Cândido, deixando ao leitor a definição de suas atitudes, com amarga ironia: “Nem todas as crianças vingam” (ASSIS, 2007, p. 152). O conto é narrado em terceira pessoa e os fatos se sucedem no Rio de Janeiro do século XIX, época onde a escravidão ainda estava instaurada no Brasil. Assim, no começo do conto, o narrador descreve as condições de subsistência do povo escravo nas mãos dos seus “senhores” e as razões mais justificadas do que informadas quanto aos castigos aplicados a eles: A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado (ASSIS, 2007, p. 141).

Desta maneira, o narrador mostra as barbaridades sofridas pelos negros escravizados como acontecimentos naturais e justificáveis; imagens chocantes para o leitor se formam e despertam

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 seus sentimentos de revolta diante de um acontecimento tão miserável vivido por milhares de pessoas negras trazidas da África no período da colonização. Contudo, o fator que mais surpreende pelo teor do discurso é a amarga ironia do narrador: “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel” (ASSIS, 2007, p. 141). Pode-se perceber que, ao firmar a ordem social no grotesco e no bárbaro o narrador faz o papel de advogado defensor diante de situações que marcam a história da humanidade pela proporção desumana e desigual, como explica Schwarcz: A escravidão, em primeiro lugar, legitimou a inferioridade, que de social tornava-se natural, e, enquanto durou, inibiu qualquer discussão sobre cidadania. Além disso, o trabalho limitou-se exclusivamente aos escravos, e a violência se disseminou nessa sociedade das desigualdades e da posse de um homem por outro (SCHWARCZ, 2012, p. 30).

É neste contexto que a reificação se configura na personagem principal, a escrava que se encontra inferiorizada pelo contexto social e incapaz de responder por si mesma faz o papel de instrumento que salva o homem branco desesperado por salvação. Arminda não é mais do que um ‘objeto’ que traz recompensa pelo seu achado. Assim, este tipo de reificação pode se configurar na concepção de Jameson, sendo visto a partir do modo de produção capitalista: A teoria da reificação [...] descreve o modo pelo qual, sob o capitalismo, as formas tradicionais mais antigas da atividade humana são instrumentalmente reorganizadas ou “taylorizadas”, analiticamente fragmentadas e reconstruídas, segundo vários modelos racionais de eficiência e essencialmente reestruturadas com base em uma diferenciação entre meios e fins. (JAMESON, 1994, p. 02).

Ou seja, a reificação começa a se manifestar na escrava que não é digna do compadecimento de Cândido, já que não é considerada parte dessa sociedade, assim como o fruto do cativeiro que levava consigo a partir do momento em que ela se torna mais uma ferramenta de produção. Na mesma

linha

de

pensamento,

o

filósofo

alemão

Axel Honneth explica

que

a escravidão é classificada como um caso puro de reificação: [...] casos puros de reificação acontecem apenas quando algo que em si não tem características de objeto é percebido ou tratado como um “objeto”. Como candidato para este tipo original primeiramente com certeza se apresenta a escravidão, porque, segundo a convicção de muitos teóricos sociais, ela criou um sistema de produção dentro do qual as forças de trabalho foram tratadas como simples “coisas” (HONNETH, 2008, p. 70).

Esse “instrumento” marcado pela sua cor, torna-se “coisa” tão naturalmente, uma vez que não há compadecimento por parte do agressor; encontra-se apenas a vontade de ser superior ao outro. Nota-se então que a reificação do negro se encontra vinculada com o contexto da época que não encontrava no afrodescendente um igual. Assim, o leitor é colocado entre duas personagens que não podem simultaneamente ter finais felizes, já que a felicidade de uma traria a Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 desgraça da outra; destarte, como na maioria das obras de Machado de Assis, vence a lei do mais forte: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas” (ASSIS, 2008, p. 56). Na prosa machadiana, as formas violentas e corrosivas do trato social que se exercem em todos os setores da vida, ligam-se aos temas da reificação (transformação do homem em objeto do homem) e do egoísmo. Diante da ambivalência amoral dos narradores e personagens machadianos, Natascha Krech avalia que a crítica anti-escravocrata machadiana se dá de maneira sutil e camuflada, de modo que pode não ser notada: [...] a crítica machadiana se dá várias vezes justamente pelo fato de não ser óbvia ou até de não ser explícita. [...] Machado mostra a realidade crua da época na sua obra e a maioria de suas personagens atua como se essa “realidade” fosse algo extremamente “normal”. Confrontadas com os horrores ou preconceitos da época, as suas personagens não reagem de maneira indignada, e sim de maneira fria e insensível, por exemplo, no conto “Pai Contra Mãe” (KRECH, 2010, p. 151-152)

À vista disso, o autor de “Pai contra mãe” transforma suas personagens na própria crítica, tendo como fim principal chegar aos seus leitores da alta aristocracia da época –uma vez que, com o capitalismo em ascensão o mais imprescindível para a sociedade era aumentar o mercado de produção a despeito da mão de obra escrava, bem como elevar o nível de status social – e criticá-los se utilizando de ferramentas pouco comuns em seu tempo. É através deste conto e outros anteriores que Machado se pronuncia mais uma vez sobre a escravidão, que em países vizinhos e da Europa se encontrava já extinta. Isso posto, a reificação se manifesta no conto de Machado de Assis a partir do contexto social escravocrata e estratificado da época que não permitia ao negro ter liberdade de viver, de escolher, de ser o próprio dono de sua história.

A reificação do negro em “Placebo”, de Rubem Fonseca As violentas narrativas de Rubem Fonseca têm um estilo conhecido como “realismo feroz” (CANDIDO, 1989). A sua prosa crua e hiperrrealista mantém o leitor atônito diante das nuances que caracterizam seu estilo, tais como a linguagem de cunho coloquial e ofensivo, a violência que afeta ricos e pobres, a frieza emocional e a perda de valores éticos de suas personagens. A grande cidade – especialmente o Rio de Janeiro – é o cenário privilegiado das narrativas de Fonseca, onde os personagens alternam-se entre o submundo que se esconde nas periferias e os lugares frequentados pela alta sociedade da época: “a marginalidade está no alto e no baixo da sociedade instável das grandes cidades brasileiras, onde as duas formas de desordem constantemente se encontram” (VIDAL, 2000, p. 112). Nesse meio ambiente se manifestam as

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 crises que impactam o mundo contemporâneo: “O espaço urbano é o território por excelência onde se configuram as relações do capital. Expandidas até as últimas consequências no país, promovem uma violência matricial: a exploração sem freios e medidas, sem disfarces e fantasias de cidadania” (AMARAL, 2009, p. 82). O conto “Placebo”, que reúne as características apontadas acima, expõe a história de um bem-sucedido empresário brasileiro que se sente totalmente desconcertado diante da descoberta de uma doença hereditária, fato aterrador e que apesar de se encontrar na fase inicial o obrigaria a contornar a lei e os valores morais impostos pela sociedade. O texto é narrado em primeira pessoa, dando a sensação de proximidade e forçando uma espécie de cumplicidade entre o personagem-narrador e o leitor, porque diante de uma doença somos todos iguais igualmente frágeis e mortais. Logo no começo da narrativa a personagem se encontra em diálogo com quem supostamente o ajudaria em seu grande problema. Belisário é o mensageiro do Dr. Wolf, médico que por meios não comprovados cientificamente promete a cura da doença da personagem principal, já que tinha feito isso acontecer com uma amiga desta, chamada Raquel: “uma coisa era certa, o doutor Wolf havia curado minha amiga Raquel. Foi ela quem me deu o telefone do Belisário” (FONSECA, 2014, p. 142). Observe-se que as personagens possuem nomes e o narrador não, sendo apenas chamado de “doutor, distinto, senhor” o que evidencia o seu próprio anonimato (VIDAL, 2000, p. 114): Não tenho nenhum respeito pela sua fidúcia, não vou chamá-lo de senhor, de doutor, como seu mordomo, ele me disse sacudindo o dedo na minha cara, você vai me fazer uma coisa que o Belisário não conseguiu quando estava fodido igual você, chutar esse pombo que está ciscando na calçada, está vendo?, tem que ser rápido e certeiro (FONSECA, 2014, p. 137).

Pode-se perceber que, além do anonimato da personagem, a citação carrega o sentimento de Belisário diante da pessoa com quem ele se encontra. Sente-se inferiorizado pela presença do narrador-personagem, agindo violentamente para se “defender” da classe social que este representa. Assim, conta ao narrador sua experiência com a doença, provavelmente para salientar que ele a venceu e está livre dela, diferente da personagem: “Meu chapa, eu também sofri dessa doença, tremia mais do que um daqueles crioulos dançando o clipe da MTV, e me roía por dentro. E como todo doente, eu vivia massacrando os infelizes que tomavam conta de mim” (FONSECA, 2014, p. 138). Logo, a narrativa está voltada ao problema que acarreta a doença do protagonista, uma vez que ele precisa arranjar um feto de três meses, negro, fruto de um aborto, “ingrediente” específico

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 para que sua cura seja possível, daí o título do conto ser “placebo”, se referindo ao efeito psicológico benéfico que o experimento pode causar na vida do paciente: Belisário estava na Cinelândia, sentado no mesmo banco. Entreguei a ele a caixa de isopor. Ele entreabriu a caixa, olhou rapidamente lá dentro e fechou a caixa. Depois abriu a caixa novamente, olhou, balançou decepcionado e impaciente a cabeça. Fechou a tampa. Não serve. Como? A porra do feto tem que ser negro. Como? Eu lhe disse, o feto tem que ser negro, o doutor Wolf só trabalha com fetos negros. (FONSECA, 2014, p. 158-159).

Decorrente desse ingrediente específico surge o questionamento ético que envolve o narrador desde a primeira reunião com o mensageiro até a obtenção do “produto”. Ele classifica o ato de “utilizar” um feto produto de um aborto como abominável, de acordo com a fala dele no segundo encontro com Belisário: Tá me sacaneando, ô distinto? Não, estou nervoso, me desculpe. Você consegue o material e eu levo pro doutor Wolf e ele prepara o remédio e te chama e aplica o remédio. O que você me pede é abominável. Então tchau, estou perdendo meu tempo (FONSECA, 2014, p. 149).

No entanto, apesar de classificar o ato como abominável, a personagem é levada a contornar códigos morais e éticos tais como o aborto e a crença na medicina alternativa, desmerecendo a medicina tradicional que julga ser ineficaz, para poder atingir seu principal objetivo. Partindo do vazio existencial que a personagem demonstra sentir durante toda a narrativa, é possível justificar o ato desesperado que o faz confiar num “doutor” cujo nome desconhece, perambular por lugares da periferia e infringir a lei: A ficção do autor encena, assim, o vazio existencial de indivíduos que, diante da impossibilidade de levar a fundo as virtudes que a moral tradicional apregoa, transformamse em figuras errantes e desconstrutoras ou em nostálgicos amargurados ou ainda em cínicos, que se movem, sem culpa, guiados pela moral mercantilista da troca (FIGUEIREDO, 2003, p. 21).

Essa moral mercantilista que Figueiredo cita pode ser considerada consequência da vida moderna e individualista que se vive no século XXI, destarte, por causa do capitalismo muitas pessoas passam a ser instrumentos que visam produtividade, não sendo diferente para a personagem que pelo seu status social acredita poder “comprar” a solução para seu problema, violando o código ético que lhe foi instruído, infringindo a lei para se salvar; assim, o sistema de

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 produção se torna em parte responsável pelo posicionamento individualista dela. Posto isto, a reificação se manifesta como elemento principal e necessário para o efeito placebo se concretizar no conto, uma vez que, sem esse pensamento não seria possível a atuação do Dr. Wolf; entretanto é necessário salientar que no caso de “Placebo”, o pensamento do filósofo Honneth se encaixa satisfatoriamente para melhor entender o uso adequado do termo: Possivelmente a equiparação do conceito “reificação” ao de “instrumentalização” só ocorra com tanta frequência porque com “instrumentos” nós normalmente nos referimos a objetos materiais; mas isto leva a perder de vista que aquilo que torna pessoas adequadas a serem utilizadas como instrumentos para fins de terceiros geralmente são suas características especificamente humanas (HONNETH, 2008, p. 70).

Ao passo que em Jameson a reificação é analisada a partir do capitalismo e suas ramificações, ou seja, nele as pessoas se tornam objetos sendo excluídas suas características humanas, em Honneth são elas que tornam possível a reificação. É dessa forma que no conto o processo de objetificar pessoas fica visível, tanto no discurso das personagens, quanto nos atos desesperados do narrador para obter sua cura – recorrer a uma clínica clandestina e implorar ao médico “fazedor de anjos” (FONSECA, 2014, p. 147) a obtenção do feto negro, perambular pela periferia do Rio de Janeiro, aceitar a ajuda de estranhos. Isto posto, é a partir da aquisição do feto que o narrador consegue se salvar, pois, no final do conto ele afirma estar completamente saudável: Quando acordei vi Belisário sentando na minha cama. Como é, ô distinto? Está se sentindo bem? Levantei-me. Andei pela sala. Olhei a ponta do meu nariz. Estiquei os braços, as mãos não tremiam. [...] Antes de vestir o capuz olhei mais uma vez a ponta do meu nariz. Firme como o pão de açúcar. Estendi as mãos, abri os braços. Firme. Firme. Firme para sempre (FONSECA, 2014, p. 169).

Desta forma, pode-se constatar que através do feto negro o problema tão aterrador que o sucedido empresário estava passando simplesmente se desvaneceu. Graças ao sacrifício ou desprezo de uma mãe negra sem condições para o sustento do bebê é que o homem branco, novamente, conseguiu se sobrepor em questões de raça partindo da sociedade capitalista que preza pela produção mercantilista, trazendo à tona novamente a posição econômica do sujeito como determinante vital de sua história. Assim sendo, explica Schwarcz: O tema da raça é ainda mais complexo na medida em que inexistem no país regras fixas ou modelos de descendência biológica aceitos de forma consensual. Afinal, estabelecer uma “linha de cor” no Brasil é ato temerário, já que esta é capaz de variar de acordo com a condição social do indivíduo, o local e mesmo a situação (SCHWARCZ, 2012, p. 25).

Dessa forma, pode-se afirmar que o status econômico e social influenciam radicalmente nas decisões tomadas pela personagem principal, transformando o ato de reificar o feto numa decisão Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 fácil e sem penalidade pelo descumprimento da lei. As desigualdades econômica, social e racial existentes no Brasil formam um cenário propício para a reificação acontecer no conto de Fonseca, uma vez que elementos como o individualismo, o poder econômico e o vazio existencial que aparecem na narrativa induzem a personagem a tomar as decisões consequentes do efeito placebo. Mostra-se assim, a crítica social carregada na obra do autor próprio de seu estilo.

As formas da reificação em Machado de Assis e Rubem Fonseca

A partir das análises dos contos de Machado de Assis e Rubem Fonseca, é possível determinar padrões que aparecem camuflados por estilos diferentes, e que, no entanto, executam os mesmos papéis nas narrativas. Igualmente, podemos destacar que as diferenças das duas obras são próprias dos autores e dos contextos históricos, sociais e culturais em que foram produzidos. Observamos que em “Pai contra mãe”, Machado de Assis se utiliza da ironia e do papel do narrador – apesar de se encontrar em terceira pessoa – para criar situações de favorecimento ou compadecimento do leitor a Cândido Neves, ainda que tenha cometido grande barbaridade. Em “Placebo”, por sua vez, o narrador em primeira pessoa visa uma aproximação com o leitor, colocando-o no lugar da personagem principal, que segundo Figueiredo “é o homem prisioneiro de valores esvaziados, condenado a uma busca inútil, o eterno personagem de Rubem Fonseca” (FIGUEIREDO, 2003, p. 20). Nesse sentido, é admissível afirmar que, enquanto em Machado o narrador heterodiegético explica e justifica as ações do personagem para o leitor, em Fonseca é o narrador autodiegético que se mostra tal qual é para quem o lê. Em ambos os casos, temos “elogios que incriminam e justificações que condenam” (SCHWARZ, 2000, p. 115). É possível destacar que em “Pai contra mãe” o autor teve como principal objetivo “contribuir para o não-apagamento da memória da escravidão” (DUARTE, 2007, p. 259) e, consequentemente, criticar o recente passado escravocrata da sociedade de época, que, em 1906 (data da publicação), ainda mais do que hoje, mantinha o racismo e a reificação do negro. Já em Fonseca a narrativa é voltada para o rompimento dos valores morais estipulados pela sociedade e as consequências de uma modernidade que deixa os indivíduos egoístas e solitários, confinados em seus próprios sentimentos, à margem do outro. Evidencia-se que no conto de Machado a reificação toma forma a partir da mãe escrava e o aborto de seu filho resultado de sua luta contra o homem branco que tentava privá-la de sua liberdade. Semelhantemente, em Fonseca ela aparece concretizada no feto de três meses fruto Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 também de uma gravidez interrompida. Note-se que nas duas narrativas o aborto e a negritude são empregados como sinais de reificação, sendo no caso do aborto indício de desumanidade decorrente do funcionamento do sistema social e econômico do período. As personagens de Machado e de Fonseca se entrelaçam pelas formas de reificação que se pronunciam em suas ações, sejam interligadas ao contexto da época ou pela individualização que a modernidade e a cidade urbana geram. Sendo assim, cada uma de suas escolhas é baseada no modo de convivência regida na e pela sociedade atreladas ao espírito de conservação da existência. Da mesma forma, outro elemento importante para que a reificação aconteça nas narrativas dos dois autores é a etnia, sendo ela a negra, uma vez que, historicamente é a que mais sofreu abuso e discriminação. Diante do exposto, pode-se constatar que “Pai contra mãe” e “Placebo”, apesar do intervalo temporal e das diferenças nos contextos culturais, históricos e econômicos em que foram elaborados, denunciam problemáticas que dominam a sociedade brasileira do século XIX ao XXI. Preconceitos e sentimentos de poder sobre o outro formam parte do ser humano desde seus primórdios, tornando a literatura universal pela abrangência de questões levantadas sem necessidade de as narrativas estarem ligadas temporalmente umas nas outras, como verificado nesse estudo.

Considerações Finais Esta pesquisa teve como principal objetivo identificar a reificação no conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, e “Placebo”, de Rubem Fonseca, buscando analisar os contextos histórico, cultural e econômico das respectivas épocas e suas características muito presentes nas duas obras, além de comparar as estruturas formais de cada uma constatando os elementos que possibilitam a temática reificadora. As indagações feitas nortearam a pesquisa durante sua elaboração, sendo elas: como a reificação do negro, fenômeno concreto e histórico presente na sociedade brasileira, aparece configurado literariamente nos contos “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, e “Placebo”, de Rubem Fonseca? De que maneira as questões raciais são transfiguradas literariamente por autores de épocas distintas e que se utilizam de estratégias de linguagem diferentes?

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 Partindo da reificação do negro nos dois contos e levando em consideração o objetivo geral – identificar o processo de reificação nos dois contos selecionados, comparando os métodos utilizados pelos autores para construir as características que os diferenciam, demonstrando que a temática do racismo está intrinsicamente ligada à da reificação nas obras – podemos constatar que nas duas obras a temática reificadora se encontra vinculada a determinações históricas e culturais da época. Notou-se, desta forma, que na obra de Machado de Assis a reificação da personagem negra se manifesta pela sociedade escravocrata em que ela estava inserida, tornando-se um mero objeto de trabalho ao seu senhor. Semelhantemente o mesmo processo ocorre no conto de Rubem Fonseca, em que uma sociedade egoísta e individualista influencia nos atos da personagem principal, levando-o a reificar um feto negro fruto de um aborto. Analisando as estruturas formais de cada conto se certificou a importância do papel dos narradores, uma vez que eles contêm grande poder influenciador no leitor. Conseguiu-se compreender que o uso de terceira pessoa na narrativa de “Pai contra mãe” produz no leitor e sensação de que o narrador está fazendo o papel de advogado defensor da personagem principal, justificando seus atos, por mais cruéis que tenham sido. Enquanto em “Placebo” o uso da primeira pessoa na narração traz proximidade do leitor com a personagem, colocando-o no lugar dela e de suas decisões, sendo uma maneira de compreensão e afinidade. Concluímos que a materialização da temática reificadora nas obras está interligada com a etnia das personagens ou é um fator determinante para esse processo acontecer. Comparando as duas obras, verificou-se as disparidades e as semelhanças das narrativas, tanto nas estruturas formais, quanto no estilo dos autores, considerando-se a diferença temporal da produção que separa cada uma delas. Em vista da pesquisa desenvolvida, percebemos as críticas da reificação que Machado e Fonseca nos oferecem dentro de suas narrativas, mostrando seu impacto sociopolítico e filosófico. Desta maneira, foi possível identificar o processo de reificação e suas diferentes formas ao longo dos anos, enquanto no cenário do século XIX do conto “Pai contra mãe” era visto como ato comum e sem transgressão ao ser humano, no cenário moderno de “Placebo” é necessário por questões de sobrevivência e obra do egoísmo construído no indivíduo, provável sintoma da modernidade. Assim sendo, dá-se possibilidade à continuação deste estudo através da pesquisa sobre a reificação em outras obras dos mesmos autores ou na procura de outra temática de cunho social e crítico. Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca, pp. 19-32 REFERÊNCIAS AMARAL, S. F.. Violência: A ficção de Rubem Fonseca. Terceira Margem, Rio de Janeiro, n.1, 2009, p. 79-91. ASSIS, M. de. Quincas Borba. São Paulo: Globo, 2008. ASSIS, M. de. Pai contra mãe. In: DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afro-descendente – escritos de caramujo (antologia). Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2007. CANDIDO, A. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989. DUARTE, E. A. Posfácio. In: DUARTE, E. A. (org.). Machado de Assis afro-descendente – escritos de caramujo (antologia). Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2007. FIGUEIREDO, V. L. F. Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. FONSECA, R. O buraco na parede. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. HONNETH, A. Observações sobre a reificação. Civitas, v. 8, n. 1, 2008, p. 68-79. JAMESON, F. “Reificação e utopia na cultura de massa”. Trad. João Roberto Martins Filho. Crítica Marxista, v.1, n.1, 1994, p. 1-25. KRECH, N. M. O escravo e o protegido. In: BERNARDO, G.; MICHAEL, J.; SCHÄFFAUER, M. (org.). Machado de Assis e a escravidão. São Paulo: Annablume, 2010, p. 147-164. SCHWARCZ, L. M. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012. SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. VIDAL, A. J. Roteiro para um narrador: uma leitura dos contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Ateliê, 2000.

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52

BAUDELAIRE: PROFETA DE SARTRE? Renato Pardal Capistrano1

RESUMO: A publicação do texto Baudelaire, de autoria de Jean-Paul Sartre, marca um dos primeiros empenhos práticos por parte do filósofo em realizar um estudo de psicanálise existencial, tal como prometido aos fins de seu longo ensaio de ontologia fenomenológica O ser e o nada. Neste artigo, pretende-se apontar a metodologia utilizada por Sartre e levantar os tópicos elencados para a composição da análise da “escolha original” tomada pelo autor de As flores do mal, como forma de poetizar a própria vida. PALAVRAS-CHAVE: Existencialismo; Psicanálise Existencial; Lírica Moderna; Má-fé; Baudelaire. ABSTRACT: The publication of the text Baudelaire, by Jean-Paul Sartre, marks one of the philosopher's first practical endeavors to undertake a study of existential psychoanalysis, as promised at the end of his long essay on phenomenological ontology Being and Nothingness. In this article, we intend to point out the methodology used by Sartre and to raise the topics listed for in the composition of the analysis of the “original choice” taken by the author of Les Fleurs du Mal, as a way of poetizing life itself.

Baudelaire conformou sua imagem de artista a uma imagem de herói. Walter Benjamin2

Acredito que o homem é necessariamente erguido contra si mesmo e que ele não pode se reconhecer, amar-se até o fim, se não for objeto de uma condenação. Georges Bataille3

Um prefácio longo 1Titulação: DOUTOR (TEORIA LITERÁRIA: PPGCL/FL-UFRJ). Vínculo profissional: PROFESSOR SUBSTITUTO (UERJ) . E-mail para contato:pardalcapistrano@gmail.com 2 Benjamin, 2000, p. 67. 3 “Baudelaire”. In: Bataille (2015), A literatura e o mal. [e-book].

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 Publicado como volume autônomo pela Gallimard, em 1947, o texto do Baudelaire de Sartre fora originalmente encomendado por outra casa editorial, no ano anterior, como prefácio a uma nova edição do compêndio intitulado Écrits intimes.4 No conjunto da obra de Sartre, o texto Baudelaire ocupa o lugar do livro seguinte previsto pelo autor nas últimas páginas de O ser e o nada. Nessa meta, Sartre aventava os primeiros passos da ambiciosa empresa de acompanhar a proximidade da condição existencial de um indivíduo, seu projeto existencial, a partir de suas escolhas originais confrontadas com suas ações e obras. Uma indicação dos princípios de formulação do método que, mais adiante em sua obra, Sartre denominaria progressivo-regressivo. Na sequência dessa formulação, fundamental para Sartre foi já de início problematizar o epíteto de “maldito” atribuído ao poeta, e vincular à vontade e ação do próprio Baudelaire a conformação de seu destino aos moldes de um “outcast” que assim quis a si. Se ele é maldito, não será porque os outros o fizeram, mas porque desse modo ele, Baudelaire, quis que os outros o vissem, o julgassem. E mais importante: ele próprio pudesse por fim ver que os outros assim o reconheciam. Como que para fazer de si mesmo um objeto (talvez de arte) para o entendimento (ou fruição) do olhar do outro. A respeito dessa orientação de Sartre, Michel Leiris observa a flagrante força de uma busca por entender a vida de Baudelaire através de um ponto de vista não comprometido com a exaltação ou vitimização do homem Charles-Pierre Baudelaire, mas pela concessão de foco narrativo sobre uma consciência individual ativa e livre na escolha de seu próprio destino: Se a imagem que nos foi legada é a de um ser reprovado e que foi injustamente afligido pela má sorte, isso não se deu sem que existisse, entre esse azar e ele, uma cumplicidade. Estamos longe portanto do Baudelaire vítima, proveitoso para os biógrafos piedosos ou condescendentes. Não se trata de uma vida de santo e nem de uma proposta de descrição de caso clínico. Muito mais que isso: a aventura de uma liberdade, retraçada na medida necessariamente conjetural em que ela pode ser conhecida por uma outra liberdade. (Leiris, 2014, p. 13; tradução minha)

Característica curiosamente marcante nessa pequena obra sobre o poeta “maldito”, porém, é a ausência de uma contextualização histórica mais profunda do período em que a vida de Baudelaire se inseriu. Esse traço de negatividade no texto talvez se combine com a tese principal da má-fé que, em certa medida, confere uma conduta voluntária de alienação ao indivíduo que por ela escolheu.5 Vale notar que o texto de Baudelaire, foi escrito logo após estar recém-terminado o ensaio 4

Este publicado pela primeira vez em 1930, pelas Éditions de La Pléiade, o volume compreende os títulos Fusées e Mon coeur mis à nu, além dos textos de um caderno de anotações e algumas cartas selecionadas, tudo de autoria de Baudelaire. 5 Ao contrário do arranjo desse texto, o ensaio de Sartre sobre Mallarmé, por exemplo, mais desenvolvido do ponto de visto metodológico, buscará uma atenção detalhada de aspectos sociais e históricos do século XIX.

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 O que é a literatura?, de maneira que é possível pensar que o não detimento a respeito de aspectos políticos e sociais encontre justificativa na licença que Sartre esquematizara conceder, no outro texto, aos poetas em relação ao engajamento, e que, ao contrário do que deveria ser exigido dos escritores prosadores, podiam se desligar do mundo e da própria recepção. Circunstâncias editoriais podem também ter influenciado a forma final do texto, que como já dito, pretendia-se na prática apenas como prefaciação à republicação de um conjunto autobiográfico e intimamente pessoal de Baudelaire. Seja como for, talvez até pela ideia de achar desnecessário repetir o que então já havia escrito recentemente a respeito do século XIX, em Que é a literatura?, Sartre investe numa análise rigorosamente voltada para a composição do complexo psicológico e estético do poeta. Desenvolve assim a tentativa de uma interpretação casada entre as posturas existenciais adotadas por Baudelaire e o sentido da sua obra poética, visto na perspectiva do destino existencial, da ontologia fenomenológica do indivíduo e de sua escolha original.

Escolha original e má-fé Como não há vínculo de necessidade determinante na consciência para a realização do serde-agora no ser-de-depois, o futuro da autonomia e da espontaneidade da consciência não depende de qualquer causa que seja externa a si. A responsabilidade que a liberdade como realidade imediata da consciência confere ao ser-para-si6 humano abre a categoria de possibilidade como um importantíssimo horizonte. O “possível” é um tipo de categoria que só se realiza na realidade humana e a forma típica de situação que cabe ao ser humano para se encontrar a si mesmo como consciência fadada à liberdade pelo nada que seu caráter de reflexão consciente invoca é a angústia. A realidade da angústia, como modo fulcral de existência humana, é verificada por Sartre na tomada de consciência do homem frente a sua própria liberdade. Desse modo, a consciência de ser da liberdade é dada na angústia. Vale retomar um trecho de O ser e o nada para melhor esmiuçar esse vínculo: Encontro-me decerto já no devir, e é em direção àquele que serei em instantes, ao dobrar a curva do caminho, que me dirijo com todas as minhas forças – e, nesse sentido, existe já uma relação entre meu ser futuro e meu ser presente, mas no miolo dessa relação deslizou um

6 Em O ser

e o nada, Sartre (2009) estabelece três instâncias fundamentais do ser da consciência humana. Tratam-se de aspectos ontológicos que, em conjunto, conformam a sua integridade: o ser-em-si, o ser-para-si, e o ser-para-o-outro. Em resumo, o ser-emsi se refere à silenciosa e opaca presença da materialidade anímica do ser, a sua irredutível e pré-cognitiva existência enquanto vida sensciente; o ser-para-si, por sua vez, registra a dobra reflexiva que a sensibilidade perceptiva empreende sobre si mesma, descerrando toda a problemática de possibilidades que a consciência vem a encontrar sobre o conhecimento de si e suas limitações; por fim, o ser-para-o-outro é a instância ontológica que vincula a necessidade de relacionamento e reconhecimento interexistencial para a consolidação da essência individual do ser consciente, existindo a condição fundamental de projeção dialética com outras consciências para que o ser possa garantir seus predicados completos.

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 nada: não sou agora o que serei depois. Primeiro, não o sou pois o tempo me separa do que serei. Segundo, porque o que sou não fundamenta o que serei. Por fim, porque nenhum existente atual pode determinar rigorosamente o que hei de ser. Contudo, como já sou o que serei (senão não estaria disposto a ser isso ou aquilo), sou o que serei à maneira de não sê-lo. Sou levado ao futuro através de meu horror, que se nadifica à medida em que constitui o devir como possível. Chamaremos precisamente de angústia a consciência de ser seu próprio devir à maneira de não sê-lo. (Sartre, 2008, pp. 75-6)

A ligação entre os dois conceitos se explica pela ausência de uma regência de necessidade no encadeamento dos momentos da existência subjetiva. Para Sartre, na espontaneidade da liberdade, a angústia acompanha a consciência em seu reconhecimento de ausência de causalidade: ela se diferencia do medo, porque o medo é um sentimento vertido em relação aos seres do mundo, enquanto angústia é um sentimento de espelho, da consciência diante de si mesma. A angústia atesta o conhecimento de que o homem nunca está pronto, precisa se fazer a si ou desistir da tarefa de se inventar, sendo ambas as soluções de sua responsabilidade. Para o homem que se descobre livre e responsável, quer dizer, que ultrapassa o estado original de inocência, a demissão da liberdade se dá justamente no refluxo da condição de desamparo para a busca por uma acolhida no seio de um mundo de valores já consolidados, de valores que independam da autoria do indivíduo: a essa fuga Sartre dá o nome de má-fé. A tática da má-fé, como uma espécie de dispositivo de contra-angústia, é um artifício a que a consciência recorre na intenção de expurgar pela negatividade o peso de sua livre responsabilidade diante de si e do mundo. Nas palavras de Sartre: Fujo para ignorar, mas não posso ignorar que fujo, e a fuga da angústia não passa de um modo de tomar consciência da angústia. Assim, esta não pode ser, propriamente falando, nem mascarada nem evitada. Fugir da angústia e ser angústia, todavia, não podem ser exatamente a mesma coisa: se eu sou minha angústia para dela fugir, isso pressupõe que sou capaz de me desconcentrar com relação ao que sou, posso ser angústia sob a forma de “não sê-la”, posso dispor de um poder nadificador no bojo da própria angústia. Este poder nadifica a angústia enquanto dela fujo e nadifica a si enquanto sou angústia para dela fugir. É o que se chama de má-fé (idem, p. 89).

A complexidade da má-fé vislumbra a negação do homem por si mesmo, numa fuga de algo de que não se poderia fugir, quer dizer, numa fuga daquilo que se é. Ao assumir sua conduta como uma busca pela autodesagregação, o indivíduo adota a postura de um “ser-para-não-ser”. Há uma contrapartida de repouso e amparo próprios dessa desagregação, pois aquele que se persuadiu pela má-fé reconhece uma “infinidade de desculpas para seus fracassos e fraquezas” (idem, p. 104). A escolha original de Baudelaire desencadeia um vício de conduta que Sartre identifica como razão de uma repetitiva tendência à má-fé. O sentido dessa má-fé não se encontra como na

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 acepção mais corriqueira da expressão, significando malogro ou mau-caratismo. O que se infere com esse conceito é o mesmo conteúdo que já apresentara esmiuçadamente em O ser e o nada. Trata-se de uma estratégia psíquica de driblar a angústia da falta de solidez do ser-para-si e buscar na cristalização de um ser-em-si o repouso de uma essência que responda às incertezas do destino, substituindo a contínua e sempre insegura práxis de ser responsável a todo momento por ser quem se é por uma certeza essencial respaldada por justificativas de forças externas aos poderes da vontade da consciência de si. Assim: Essa essência fixa e singular que ele busca, ela não aparece senão ao olhar dos outros. E talvez seja necessário estar do lado de fora para se poder agarrar as suas características. Talvez porque não se é para si mesmo ao modo de ser de uma coisa. Talvez ainda porque nunca se é algo de fato: sempre em questão, sempre em sursis, talvez seja preciso fazer a si mesmo perpetuamente. Todo o esforço de Baudelaire será para mascarar esses pensamentos desagradáveis. E porque sua natureza se lhe escapa, ele irá tentar uma armadilha que a prenda no olhar dos outros. (Sartre, 2012, p. 41; tradução minha)

A análise presente nesse livro se vale de um pressuposto de interpretação de psicologia fenomenológica, como bem aponta Noémie Mayer (2003) em artigo em que expõe a categoria de cativeiro afetivo (captivité affective) relacionado justamente à ideia de uma matriz existencial (a escolha original) que constrange todo o resto da vida do indivíduo. O enfoque psicanalítico do livro de Sartre sobre o poeta abre a possibilidade de uma comparação entre o conceito de má-fé, criado pelo filósofo, e o conceito de inconsciente, como estabelecido por Freud. A despeito do crescimento e da popularização da terapia de análise freudiana, Sartre mantém uma recusa longeva e sistemática em aceitar em suas práticas teóricas essa ideia. Isso porque o autor de O ser e o nada terá uma postura intransigente na defesa do predomínio dos poderes da consciência por toda a extensão da vida psíquica do indivíduo. As ideias de responsabilidade e de espontaneidade das ações são exigências pétreas da filosofia de Sartre. Os direitos e prerrogativas da consciência são inegociáveis: a autodeterminação sobre o conjunto total de manifestações de ordem afetiva, intelectual, corporal, sejam de caráter cotidiano (ou supostamente “normais”), sejam de cunho doentio, implica aquilo a que se pode chamar de “projeto”, isto é, um conjunto de ações sempre espontâneas e conhecidas pelo sujeito, único autor possível de si mesmo e de suas formas simbólicas de compreender e valorizar a si e ao mundo. Nesse sentido, o livro escrito a respeito de Baudelaire procura, a partir da ideia de uma escolha original, mapear o projeto existencial daquele indivíduo, na tentativa de responder à interrogação: “O que se pode de fato saber a respeito de um homem?”. Na esteira dessa investigação, dentro do sistema teórico de Sartre, o conceito de inconsciente é impraticável, mesmo Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 nas considerações a respeito da sexualidade e das pulsões, porque as forças que regeriam o inconsciente (essas forças sem controle que residiriam em camadas quase inalcançáveis da vida psíquica, influenciando ou determinando as práticas, sentimentos, sentidos simbólicos, de além do campo das condutas conscientes) seriam alheias à determinação autônoma do indivíduo para consigo mesmo. A má-fé sartreana é uma atitude ontológica, fundamental na escolha do ser que somos. Trata-se de um projeto original e primitivo da consciência ao estabelecer desde cedo, em suas mais priscas manifestações, a isenção de sua própria responsabilidade, a sujeição à autoridade de outrem ou de outras entidades ou estruturas a quem ou a que se possa inculcar a responsabilidade pelo ser que se é. O nada que conforma a realidade humana é uma tormenta para a liberdade da consciência que, na ânsia desesperada por encontrar um conteúdo que identifique a si, que preencha seu vazio existencial, precisa projetar uma fuga a fim de encontrar uma coisa em que se tornar. O problema é que essa identificação, essa coincidência de si com algo concreto e objetificável, é insustentável para além do breve instante de sua suposição. Aliás, sendo a consciência uma perpétua e contínua fluência para fora de si, mesmo nesse momento essa identidade não pode, portanto, ser verificada, pois, segundo a fenomenologia ontológica de Sartre, demandaria uma cristalização impossível de ser empreendida. Essa ordem de coisas antecipa o impasse da autenticidade. Pois em que medida pode o sujeito ser autêntico estando sua psicologia organizada de maneira a fundamentalmente encaminhar a má-fé? Como resposta para o caso de Baudelaire, Sartre desenvolve a hipótese de que o enteado do general Aupick investia em uma objetificação poética de si mesmo, de seu ser, tentando existir para si tal como existisse para os outros. A estratégia que Sartre pretende inculcar ao poeta é a de expandir o espaço da obra para a conformação da vida, fazer de si mesmo uma ficção, uma obra, ao menos na perspectiva dos outros, oferecer-se assim ao mundo. Essa operação se insere numa tentativa de explicação de uma solução para o impasse da tensão entre o ser e a existência, a reconciliação sintética dessas duas categorias. A hipótese analisada será a da tentativa de contornar o desengate da consciência com o ser a partir do projeto de uma estetização totalizadora da própria vida. Tornar-se uma coisa diante dos outros, talvez como na esfíngica e perene presença de uma estátua: definitivo, opaco, exato e inequívoco. O primeiro problema é, no entanto, a perda de controle que essa doação de si como objeto encarrega, já que existe o risco de que aquilo que seja oferecido como “arte” degenere-se em mero utensílio. É a partir dessa tese original que Sartre encaminha sua interpretação de Baudelaire, de Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 que o poeta no plano geral de suas condutas pinta ou esculpe sua própria imagem, oscilando entre o ser (definido) e a existência (aberto), obsessivamente entendendo a si como uma imagem projetada aos outros: ser simultaneamente homem e obra, poeta e poema. O reincidente fracasso desse projeto pessoal ontológico será a constante que marcará a vida do poeta sob o olhar analítico de Sartre. Apenas na morte o homem poderia alcançar a autossuficiência do ser, estando a síntese de existência e ser interditada durante a vida. É impossível para o poeta esculpir para si um ser sem se autodestruir, isto é, sem abdicar do inexorável escorregar contínuo do seu ser para além do controle da sua consciência.

O método de Sartre: busca de valores do indivíduo Para além das críticas que se erguem contra o estudo de Sartre sobre os traços biográficos de Baudelaire, o livro fagulha a inquietação do filósofo em relação à arte. O texto se presta a discutir a insuficiência de uma saída estética como solução para a problemática ontológica. Em última instância não há salvação, nem mesmo por uma estratégia de se travestir de obra de arte. Nas palavras de George Bauer: Este ensaio demonstra-nos mais uma vez as infindáveis fascinação e repulsa de Sartre para com a tentação do artista por superar a temporalidade e a gratuidade por meio do ato criativo. (1969, pp. 165-6)

A relevância que o livro alcança se explica na perspectiva dessa negatividade patente pela qual Sartre considera o poeta. Se por um lado Sartre prevê o desengajamento para a linguagem da poesia em seu ensaio a respeito de Francis Ponge, por outro, quando se refere a Baudelaire, seu foco está no engajamento do poeta na poesia, numa vida poetizada, numa meta de existência que idealiza a impostura de uma vida estetizada. O cerne do texto não trata de interpretar a poesia de Baudelaire à luz de sua vida, mas de colocar o homem Baudelaire como um sujeito que se acossa a buscar uma solução poética para a vida – movimento de sentido oposto –, e que busca enquadrar a biografia pelo filtro da obra. Sem dúvida essa estrutura compromete a forma do texto, que se apresenta como um vertiginoso fluxo de ideias que se justificam para Sartre pela intimidade prévia que ele próprio se imputa com o objeto do estudo. Uma irônica passagem de As palavras dá cabo exemplarmente disso: Ainda hoje resta-me esse vício menor, a familiaridade. Trato esses ilustres defuntos como amigos do peito: acerca de Baudelaire, de Flaubert, expresso-me sem rodeios e, quando me recriminam por isso, tenho sempre vontade de responder: “Não se metam em nossos

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 negócios. Eles me pertenceram. Gênios de vocês, eu os tive em minhas mãos, eu os amei apaixonadamente, com toda irreverência. Vou então andar de luvas com eles?”. (Sartre, 1984, p. 51)

Fora da ironia, é fácil reconhecer que existe nessa dita “familiaridade” uma conexão inseparável entre a análise sóbria de uma obra e uma permissividade para as suas interpretações pessoais. O esforço de Sartre é de buscar encontrar a consciência por inteiro, sua colocação em situação, e não apenas um lado sombrio, escamoteado por soluções do “inconsciente” ou por rigores cientificistas de um biografismo rígido e sóbrio. István Mészaros presta atenção a essa dinâmica teórica e a resume com facilidade ao entender que: O caráter ativo da consciência é estabelecido com base na tautologia de que a existência da consciência é exatamente a mesma coisa que a consciência de sua existência – em outras palavras, que a consciência é consciente e a autoconsciência é consciente de si mesma –, o que, a seguir, declara-se ser a grande lei ontológica da consciência. (2012, p. 109)

O sentido da existência da consciência opera dentro desse limite. A existência será tão ampla quanto a extensão do seu autoconhecimento. Há, porém, uma outra medida que precisa ser levada em conta: a extensão de um autodesconhecimento proposital, ou melhor dizendo uma operação de negação da própria existência da liberdade da consciência, a má-fé. A conduta que Sartre destaca como escolha original em sua visão acerca do caso de Baudelaire segue a direção de uma investigação a respeito dessa situação. O engajamento de Baudelaire será a sua má-fé, sua má-fé será seu engajamento.

Baudelaire Sartre principia sua análise desmerecendo a visão canônica a respeito da infelicidade de Baudelaire. Ele rejeita uma narrativa biográfica que se resolva pela vitimização. Baudelaire deve ser visto como responsável e diretor de sua própria vida, deve ser compreendido como aquele que decidiu por ter o destino que teve. O cerne dessa teoria (talvez seu lado mais frágil) está na localização da origem da conduta de Baudelaire em sua relação obsessiva com a mãe. Esse é ponto de partida que como um olho d’água irá emitir todo fluxo de ação da tese do narcisismo do poeta. Essa solução que definirá a atitude original se baseia, de acordo com Sartre, nas tensões de uma relação simbolicamente incestuosa do menino com a mãe, numa fantasia de fusão comandada pelo desejo da criança de ser

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 um só com sua genitora, essa idílica união absoluta que lhe “protege de toda inquietude” (Sartre, 2012, p. 18) e que, enfim, o justifica. Diante da solidão causada pela separação da mãe, a criança encara a situação como condenação que lhe encaminha um destino. É na postura de contrariedade à suposta injustiça dessa separação que a tese de Sartre apresentará a decisão do menino em fundamentar sua conduta: “Quand on a un fils comme moi on se remarie pas”7 (idem, p. 19). A grande fenda na vida de Baudelaire se inicia no fim desse relacionamento, ou melhor, a partir do segundo casamento da mãe, com o general Jacques Aupick. Daí Sartre prevê que num ato fundador essencial, “Baudelaire reivindica a sua solidão, para que ela surja ao menos dele mesmo para não ter que sofrê-la passivamente” (p. 20; tradução minha), narcisicamente, pelas suas próprias mãos, e não pelas mãos dos outros. É por isso que sua atitude original será definida com a de um homme penché, isto é, de um sujeito contorcido sobre o próprio reflexo, em diálogo com a imagem que o lago lhe oferece na superfície.8 Outcast por escolha própria, o poeta estabelecerá uma distância original entre o mundo e si, construirá um regime de imaginação no qual armará um dispositivo para encontrar seu próprio ser através da mediação do olhar dos adultos. E será (quando já feito ele próprio um adulto) o homem que decidiu se ver como se fosse um outro. Cabe bem a lembrança do que Walter Benjamin infere a respeito do poeta quando, após aludir à vontade de Baudelaire em ser lido como um escritor da antiguidade – ou seja, em pensar a si e à sua própria época através de uma distância longínqua e projetar a imagem que a recepção de seus leitores faria dele como um clássico do passado (no que seria êxito da modernidade em se colocar como contemporânea e mito de si mesma) (Benjamin, 2000, p. 88) –, analisa sua insatisfação concluindo que: Como não possuía nenhuma convicção, estava sempre assumindo novos personagens. Flâneur, apache, dândi e trapeiro não passavam de papeis entre outros. Pois o herói moderno não é herói – apenas representa o papel do herói. A modernidade heroica se revela com uma tragédia onde o papel do herói está disponível. (idem, p. 94)

7 “Quando

se tem um filho como eu, a pessoa não se casa de novo”; em tradução livre minha. É curioso como a situação que Sartre aponta para Baudelaire parece ser diametralmente oposto àquela que, por exemplo, Michel Collot sugere para a ideia de alteridade do sujeito lírico: “Sua verdade mais íntima ele não pode, pois, apoderar-se dela novamente pelas vias da reflexão e da introspecção. É fora de si que ele a pode encontrar. A emoção lírica talvez apenas prolongue ou reacione esse movimento que constantemente leva e expulsa o sujeito para fora de si, e por meio do qual unicamente ele pode ek-sistir e se ex-primir. É somente saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não ao modo da identidade, mas ao da ipsiedade, que não exclui, mas ao contrário, inclui a alteridade, como bem o mostrou Ricoeur (1990). Não para se contemplar no narcisismo do eu, mas para se realizar a si mesmo como um outro” (Collot, 2013, p. 224). 8

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 E curiosíssimas são as afirmações de que o pintor Gustave Courbet reclamava do poeta o fato de a cada dia ter uma aparência diferente, o que lhe dificultava a fixação de seu retrato em tela. Sua insatisfação se consignará numa dupla força de destruição que Sartre chamará, a partir da nomenclatura do filósofo Jean Wahl, de “transascendência” e “transdescendência” (Sartre, 2012, p. 38), duas forças de exílio que projetam a caracterização humana na obra de Baudelaire em direção a dois polos contraditórios: o da besta e o do anjo, mas não como a concepção de Pascal, que prevê uma espécie de estágio natural intermediário entre esses polos. Para Baudelaire a coisa é diferente, não há repouso na ambiguidade da condição, mas uma tensão de dupla autodestruição, porque ambas as forças visam à destruição do humano. Assim: Baudelaire, o homem que se percebe como um abismo. Orgulho, tédio, vertigem. Ele se olha, bem no fundo do coração, incomparável, incomunicável, não criado, absurdo inútil, largado no isolamento mais total, carregando sozinho seu próprio fardo, condenado a justificar sozinho sua existência, e fugindo de si mesmo sem parar, escorrendo para fora de suas próprias mãos, recurvado na contemplação, lançado para fora de si numa perseguição infinita, um abismo sem fundo, sem paredes e sem obscuridade, um mistério à plena luz, imprevisível e perfeitamente conhecido. (idem, p. 40; tradução minha)

A boa fé, que para Sartre se coloca na ideia de aceitar a fugacidade do ser diante do existir,9 abandona Baudelaire. O sentido desse conflito de posse do ser na legitimação veiculadora do olhar do outro estabelece uma tarefa e uma meta: a recuperação e o reconhecimento. É no afã de reconhecer que a mirada externa lhe confere o ser que deseja para si que o eu age na lida social, na intenção de recuperar a posse desse objeto que o outro lhe rouba: “sou projeto de recuperação de meu ser” (idem, p. 454). A unificação sintética pacífica com o outro, porém, é algo absoluta e expressamente irrealizável na concretude ontológica da fenomenologia sartreana. A extensão do sucesso daquela recuperação do ser que institui um projeto fundamental do comportamento e do movimento de alma na relação com o outro se inscreve dentro de limites que nunca poderão ser ultrapassados para o estabelecimento de uma situação de repouso final. Existem contudo, estratagemas comuns que parecem funcionar com recorrência mais frequente nessa lida, e que fundamentam uma gama de atitudes universais da humanidade, dentre elas: o amor, a linguagem, o desejo, a indiferença e o ódio.

9 “Talvez ninguém

seja por si mesmo, ao modo de uma coisa. Talvez ninguém seja nada: sempre em busca, sempre em sursis, talvez seja preciso se fazer o próprio ser perpetuamente. Todo o esforço de Baudelaire será em função de esconder esses pensamentos desconfortáveis”. (Sartre, 2012, p. 41)

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 No quadro de dependência e alienação que o jovem Baudelaire criará a seu redor nessa filiação ao olhar dos outros se dará o fomento pessoal de uma indiferença moral, na qual sua vontade poderá agir como criadora do bem e do mal, à sua maneira. Nesse liberalismo, os poderes e a missão da consciência serão o jorrar das significações no mundo, a impressão do ser nas coisas. A misantropia de Baudelaire segura portanto a contradição de um humanismo da criação poética: É pela criação que ele definirá o humano, não pela ação. [...] A cidade é o reflexo desse abismo: a liberdade humana. E Baudelaire, que odeia o humano e a tirania da face humana, se descobre humanista por seu culto da obra humana. (Sartre, 2012, pp. 42-3; tradução minha)

O deus de Baudelaire é terrível. Mas ao mesmo tempo sua ausência de empenho de fé lhe desampara a falta de um olhar justificador totalizante. Em carta a sua mãe, datada de 6 de maio de 1861, ele lamenta o vazio deixado pela não presença de um ser “exterior e invisível” a se interessar pelo seu destino. A vontade de ser inserido em uma ordem pela intervenção do olhar e juízo de uma entidade criadora, superior, expressa-se claramente. Para Sartre a contraparte material dessa patente judicadora se localiza primariamente nas figuras da mãe a envelhecer e do padrasto cruel, general Aupick, mas também, em ramo civil mais para além da vida familiar, na magistratura do período de reinado de Napoleão III e nos membros da Academia. A propósito da referência aos juízes, Sartre aproveita para defender a não surpresa do poeta em relação à sua condenação por Les Fleurs du Mal: “ele a esperava, suas cartas a Poulet-Malassis o provam. Poderia-se até dizer que ele a buscava” (idem, p. 60). Sartre chama de escolha original também a situação vivida pelo poeta em relação a seu conselho tutelar familiar. Por mais que as obrigações e impedimentos rendessem-lhe humilhações reais, para esse “adorador de chicotes e de juízes” (p. 62) havia uma função indispensável a ser cumprida por aquele tribunal, uma necessidade de colocar a si como “menor”, artifício que ao mesmo tempo que lhe fazia como espécie de réu, garantia a alienação de sua própria liberdade diante da responsabilidade de outrem. Trata-se de um passo interessante do livro de Sartre, em que fica expressamente caracterizada a forma pela qual a interpretação da atitude original do poeta se descobre através do filtro existencialista do biógrafo: Da mesma maneira que ele queria objetivar o fluxo vago de sua vida íntima, ele tenta interiorizar essa coisa que ele é para outrem a partir da feitura de um livre projeto de si mesmo. Trata-se sempre, no fundo, do mesmo esforço constante de recuperação. Recuperar-se, sobre o plano da vida íntima, é tentar considerar sua consciência como uma

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 coisa para melhor poder possuí-la. Mas como se trata do ser que se é para os outros, a recuperação só se dará se se puder assimilar a coisa a uma consciência livre. Só se pode possuir a si se se cria a si; mas se se cria a si, escapa-se de si, não se possui nada mais que uma coisa, e ser coisa no mundo é perder a liberdade criadora que é o fundamento da apropriação. E daí Baudelaire, que tem o sentido e o gosto da liberdade, ficou com medo dela quando ela desceu aos limbos de sua consciência. Ele percebeu que ela conduzia necessariamente à solidão absoluta e à responsabilidade total. (idem, pp. 64-5)

A contradição de Baudelaire está em querer ser ao mesmo tempo duas instâncias inconciliáveis: coisa e liberdade, uma “liberté-chose”. A estratégia se concretiza por meio de uma conduta que busca pautar a própria causalidade de si através da obra literária, província onde pode se sentir um imperador total, acalmando seu orgulho e provando que ele (tomando-se pela obra) é gratuito e injustificável (aliás, no aspecto da criação artística, justifica-se senão que por si mesmo). Não é difícil para Sartre adiantar daí uma chave de leitura para a vocação literária de Baudelaire: Seus poemas são como sucedâneos da criação do Bem, ao qual ele se proíbe. Manifestam a gratuidade da consciência, são totalmente inúteis, afirmam em cada verso aquilo que ele mesmo chama de sobrenaturalismo. E ao mesmo tempo ficam no imaginário, deixam intocada a questão da criação primeira e absoluta. [...] Fazer o mal pelo mal é exatamente fazer tudo ao revés daquilo que sói afirmar como o bem. É querer o que os outros não querem – porque as pessoas abominam as potências malignas – e não querer o que os outros querem – porque o bem se define sempre como o objeto e o fim da vontade profunda. Eis justamente a atitude de Baudelaire. (idem, p. 67; tradução minha)

Para ilustrar a posição do poeta, Sartre se aproveita de uma analogia da diferença entre o ateu e o ministro da missa negra: o ateu dispensa Deus, porque busca a causa e o bem por outros meios que contornam a ordem teológica estabelecida; mas o padre do altar de Satã, que tem no deus bíblico seu inimigo e rival odeia a divindade justamente porque ela é amável ao olhar dos homens, porque eles lhe rendem respeito. Sacerdote rebelde, o satanista empenha sua fé em negar a ordem estabelecida, na qual não encontrou espaço adequado para si. Porém, ao mesmo tempo, porque precisa manter sua postura de contestação, deve também manter (ou defender ainda que indiretamente) essa mesma ordem contra a qual se levanta. Caso seja derrotado o deus, sua revolta e sua infâmia resolvem-se num nada ao qual ele é enviado e de onde emergirá sem Deus, e mais importante, sem justificações ou desculpas, ou numa palavra: com uma responsabilidade total, empecilho que não lhe está de forma alguma colocado como fim desejável. Trata-se de uma dupla postulação, duas atitudes que não são autônomas, mas uma consequente da outra. Eis uma aproximação entre o mal e a poesia: trata-se de uma obra de luxo,

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 gratuita e imprevisível, uma flor do mal. Nessa lógica de contradições, ele conserva o bem apenas para realizar o mal, e se pratica o mal é, por sua vez, para, de forma enviesada, homenagear o bem. Existe nesse quadro de valores, uma economia emocional que prediz uma função prática para o remorso: a viabilização do sentimento de culpa como ligação aos atos atribuindo-lhes valor pecaminoso. “Um crime do qual alguém não se arrepende deixa de ser crime, e é no máximo um lance de má sorte” (idem, p. 78). Baudelaire precisava da culpa como insígnia e consagração de sua posição no avesso daquilo que se estabelecia como o bem (social, moral, político, religioso). Ao mesmo tempo o castigo ou a sua sugestão cumprem o papel de redenção, de renivelamento, limpando a falta, mas mantendo a consciência marcada pela ação pecaminosa cometida. É a ideia ambígua de satisfação de autopunição e martírio que se imiscui no carrasco de si mesmo, aquele que bebe nas próprias lágrimas o nutriente que inunda o deserto de seu ser, o vampiro que morde a si mesmo, o “heautontimoroumenos”. Georges Bataille, no artigo crítico de recepção a esse livro sobre o poeta, “Baudelaire ‘mis à nu’: l’analyse de Sartre et l’essence de la poésie”,10 concede em diversos pontos com a leitura de psicanálise existencialista de Sartre: Sartre tem razão: Baudelaire escolheu estar em falta, como uma criança. Mas antes de julgálo desventurado devemos nos perguntar de que espécie de escolha se trata. Ele a fez por não haver outra? Não foi mais que um erro deplorável? Ao contrário, ela se deu por excesso: de uma maneira miserável, talvez, contudo decisiva? Pergunto-me até: tal escolha não é, em sua essência, a escolha da poesia? A escolha do homem? (Bataille, 2015, versão e-book Kobo)

Endividado, desempregado, sem um relacionamento afetivo estável nem aceito nas linhas da moral cívica do tempo, venereamente adoentado, o círculo vicioso dessa balança de valores tortuosos na vida do filho de madamme Aupick não se deixa superar por ingresso em qualquer nova rotina de salubridade ou correções. Isso porque o efeito trazido pelo ato de punição é também contaminado pela mesma máfé que origina o sentimento de culpa: vítima e carrasco são cúmplices nesse teatro da consciência cuja plateia é ela mesma, duplicada por trás de um biombo irônico. Uma atuação de personagens fascinante. O castigo, qual Sartre aponta, “é uma complacência, assim como o crime. Visa a uma falta livremente constituída como falta, por referência a normas já estabelecidas” (Sartre, 2102, p. 79).

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Como aponta o editor da publicação no volume A literatura e o mal, na fase de manuscrito o artigo recebeu ainda o (irônico) título prévio de “Baudelaire ou Sartre? Sartre instruit le procès de la poésie”.

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 Na esteira do espelhamento que o poeta reivindica, Bataille chama a atenção para o problema de objetivar Baudelaire como um mero caso clínico, sem a devida empatia de reconhecimento: Se é verdade que sob vários aspectos a atitude de Baudelaire é infeliz, tripudiá-lo parece o partido menos humano. Seria preciso fazê-lo, contudo, se não assumíssemos como nossa a atitude inconfessável de Baudelaire, que, deliberadamente, recusa-se a agir como homem consumado, ou seja, como homem prosaico. (2015, versão e-book Kobo)

Esse prosaísmo, que é ambíguo, pois ao mesmo tempo comporta rebeldia e confissão – “suas imagens são originais pela vileza dos objetos de comparação”, dirá Benjamin (2000, p. 96) –, e que se expressa na forma (nos pequenos poemas ao prosa) e no uso vocabular, expõe um uso linguístico sofisticado ao trazer para o ambiente lírico, como numa transgressão, a força surpreendente da fala corrente. Benjamin não deixa esse aspecto passar sem atenção e destaca que: As Flores do Mal é o primeiro livro a usar na lírica palavras não só de proveniência prosaica, mas também urbana. Com isso, não evita expressões que, livres da pátina poética, saltam aos olhos pelo brilho do seu cunho. Usa termos como quinquet (candeeiro), wagon, omnibus e não se atemoriza diante de bilan (balanço), réverbère (lampião), voirie (lixeira). Assim, se substitui o vocabulário lírico no qual, de súbito e sem nenhuma preparação, aparece uma alegoria. (Benjamin, 2000, pp. 96-7)

A súmula daquela complacência alegórica na própria culpa, a sua admissão como fato, pode ser facilmente percebida já nos versos de abertura de As Flores Mal, no poema “Ao leitor”, que se conclui com o apelo de uma cumplicidade pelo olhar do outro: “Tu conheces, leitor, o monstro delicado/ – Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. Daí o dolorismo quase místico de Baudelaire. Sua apologia do sofrimento mesclada a uma valorização da figura demoníaca do anjo decaído expressa uma espiritualidade completamente negativa, pela qual a criatura se coloca propositalmente como evidência das fraquezas e imperfeições da criação. Vitimismo místico e ataque às limitações da entidade criadora, o esquema pretende no fim das contas tentar fazê-lo ultrapassar a posição de objeto, como desesperada solução para fugir ao próprio destino. A fixação na imagem de Satã não é então meramente instrumental. Ela é, como Sartre entende, símbolo de um “tipo consumado de beleza dolorosa”. E indo adiante coloca que: Vencido, caído, culpável, denunciado por toda a Natureza, banido do Universo, afligido pelas lembranças de uma falha inexpiável, devorado por uma ambição insatisfeita, perfurado pelo olhar de Deus que o enquadra em sua essência diabólica, constrangido a aceitar no bojo de seu coração a supremacia do Bem, Satã ainda assim prevalece sobre Deus, seu mestre e vencedor, por sua dor, por essa chama de insatisfação triste que, no mesmo instante em que consente com sua aniquilação, brilha como uma crítica inexpiável. (2012, pp. 92-3; tradução minha)

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Quem perde ganha Sartre retoma assim um de seus motes mais importantes no quadro de sua concepção da poesia moderna (e da atitude existencial poética do poeta moderno): “nesse jogo de ‘quem-perdeganha’ é o vencido que enquanto vencido leva” (idem, p. 93). Trata-se aqui da ideia de que a obra poética é um esforço que necessariamente precisa se voltar contra a ordem linguística e ideológica estabelecida, mas que tem como inexorável solução de sua aplicação o fracasso de sua estratégia: “A poesia pode verbalmente calcar aos pés a ordem estabelecida, mas não pode substituí-la” (Bataille, 2015, versão e-book Kobo). Esse fracasso, porém, não pode ser visto com olhares ingênuos (seja pelo filtro da pena, seja pelo do escárnio) porque ele mesmo, o fracasso poético, ato esquadrinhado e planejado, é uma vitória que, como Satã, deixa no ar o legado de sua crítica à ordem. Não é difícil ler o texto de Bataille e encontrar novo ponto de concordância no diálogo estabelecido com o livro de Sartre: A poesia é sempre, em certo sentido, um contrário da poesia. Creio que a miséria da poesia é representada fielmente na imagem de Baudelaire oferecida por Sartre. Inerente à poesia, existe uma obrigação de fazer de uma insatisfação uma coisa fixa. A poesia, num primeiro movimento, destrói os objetos que apreende, devolve-os, através de uma destruição, à inapreensível fluidez da existência do poeta, e é a esse preço que ela espera reencontrar a identidade entre o mundo e o homem. Mas ao mesmo tempo que opera um desapossamento, ela tenta se apossar desse desapossamento. Tudo o que ela conseguiu foi substituir pelo desapossamento as coisas apossadas da vida reduzida: ela não pôde evitar que o desapossamento tomasse o lugar das coisas. (2015; versão e-book Kobo)

De volta a Baudelaire, Sartre conclui o argumento/retrato sobre o poeta: Orgulhoso e vencido, penetrado pelo sentimento de sua unicidade diante do mundo, Baudelaire se assimila a Satã no segredo de seu coração. E talvez o orgulho humano nunca esteve mais distante que em seu choro abafado, sempre contido e que soa por toda obra baudelairiana. (Sartre, 2012, p. 93; tradução minha)

É interessante ressaltar ainda o sentido de antinaturalismo que a poética de Baudelaire busca valorizar. Justamente porque o que é considerado “natural” é para o poeta aquilo que não se detém sob o cálculo e o raciocínio, assemelhando-se ao comum e ao vulgar. Os interesses animais, biológicos, as marcas da espécie e não do indivíduo, enfim, da natureza e não da cultura, são vistos por Baudelaire, assim ele expressa em trechos de O pintor da vida moderna, por exemplo, como “nada mais que horrendos” (Baudelaire, 1951, p. 903). A valorização do artifício e do trabalho sobre o gratuito natural inscreve uma hierarquia do bem sobre o mal no universo. Não que o poeta vá seguir à risca essa ordem. Como já vimos é importante que a ordem se delineie – mesmo que ela seja Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 defendida para que, em algum grau, haja justamente espaço para sua contestação, para a perversão da norma. Daí que se deve acrescentar uma distinção entre dois tipos de Mal na órbita do poeta: um Mal vulgar, que se insere na equação de igualdade com o natural; e um Mal distinto, que se ergue como produto trabalhado de uma reflexão avançada, e que rende o crime. A aversão à natureza se refere a essa vulgaridade maligna, ao que é feito igual por todos, ordeiramente, sem distinção. Produzido pelo artifício e pela vontade lúcida, refletida, o mal distinto. Segundo Sartre: Eis Baudelaire: quando ele sente subir em si a natureza, a natureza de todo mundo, como uma inundação, ele se crispa e se enrijece, e levanta a cabeça pra fora da água. [...] Porque a natureza em nós é o oposto do raro e do requintado, é o comum. Comer como todos, dormir como todos, fazer amor como todos: que maluquice! Cada um de nós escolhe por si mesmo, mediante suas peculiaridades próprias, a maneira pela qual dirá: sou assim. Os demais, ele os ignora. Ele escolheu não ser natureza, ser essa recusa perpétua e tensa diante de sua “naturalidade”, essa cabeça que se eleva pra fora da água e que olha subir a onda com uma mistura de desdém e medo. (2012, pp. 102-3; tradução minha)

E é como continuidade dessa aversão à natureza que Sartre percebe o elogio do dândi e a eventual misoginia do poeta. Como tipos, a mulher e o dândi se opõem diametricamente. Esse tema, aliás, é o primeiro momento do livro em que Sartre esboça algum tipo de contextualização socio-histórica. Ritual e instituído como modismo, o dandismo atende a um caráter coletivo inescapável. Sartre aposta numa solução reativa para explicar a preocupação do poeta com o vestir e o agir. Trataria-se de uma resposta pessoal “ao problema da situação social do escritor” (idem, p. 127). A postura insere-se simbolicamente no vão de diferença social aberto pela mudança de status e filiação social da classe literária. Vale lembrar Benjamin quando diz que “para Baudelaire, o dândi se apresentava como descendente de grandes antepassados. O dandismo é para ele ‘o último brilho do heroico em tempos de decadência’” (2000, p. 93). Nos séculos XVII e XVIII, tudo se podia resolver como satélites que gravitavam ao redor de uma aristocracia justificada pelo berço, passando mais ou menos ao largo dos interesses da burguesia, ainda em formação incipiente. O escritor era pensionista da nobreza, enquadrava-se na sua ordem, agia sob seus ofícios, tendo nela a classe de leitores e recepção de maior diálogo. Assim: O comércio que travava com a casta sagrada dos padres e dos nobres o desclassificava na verdade, quer dizer, ele estava extraído da classe burguesa de onde emanava, limpo de suas origens, nutrido pela aristocracia sem poder no entanto adentrar seu seio. (Sartre, 2012, pp. 127-8)

E para o escritor acostumado à ordem aristocrática existe uma resistência em aceitar a “decadência” que o ingresso numa classe que, mesmo que vitoriosa politicamente, guarda ainda

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 fortes traços de oposição de status com relação ao sistema de valores sustentado pela nobreza, sistema ao qual o escritor se filiava como protegido. O problema agora se coloca na necessidade imperiosa (entendida aqui a ideia de escritor como noção geral, obviamente) de atuar como um burguês do ponto de vista da sua profissionalização como artista. A burguesia tal como a conhecemos no século XIX é uma classe opressora, mas não é uma classe parasitária, como o fora a aristocracia que a antecedeu. Daí que, consoante a essa nova ordem, na qual o burguês explora, mas também trabalha junto a seus operários, “a criação de uma obra literária no interior de uma sociedade burguesa tonar-se uma prestação de serviço” (idem). Posto na ordem de demanda a que se submetem profissionais liberais como advogados, médicos e engenheiros, a tarefa épica do escritor filiado à burguesia reside em prover o embasamento de justificativas míticas que assegurem os alicerces ideológicos da nova classe dominante, bem como alinhavar a tomada de consciência da mesma consigo própria. A via de mão dupla prevê em retorno a consagração como artista. Essa posição, porém, é, em termos de glória, inferior ao status que se oferecia nas épocas de celebridade aristocrática. Longe da corte, o escritor atende entre seus pares, em associações de artistas, junto aos meios literários e jornalísticos. Sua condição é parelha às glórias de médicos, de qualquer outro tipo de profissional burguês de sucesso e prosperidade. Um lugar secundário, quiçá inferior ao dos medalhões da universidade. Eis o que é tão difícil de aceitar. Sartre enumera exceções contemporâneas a essa lógica, como por exemplo os óbvios casos de Rimbaud, Lautréamont e Van Gogh, que “reivindicaram a grande solidão livre, a escolha de si mesmos na angústia” (idem, p. 129). A maioria, no entanto, de acordo com a visão de Sartre, opta por uma espécie de alheamento simbólico da burguesia, participando materialmente de sua condição burguesa de classe social, mas rompendo nas aparências com ela. Ruptura simbólica, mas não material. Flaubert e Gautier, ao lado do próprio Baudelaire, são marcos desse tipo de estratagema. Para além da filiação classicista, que rende ao escritor um status decadente, Sartre enquadra Baudelaire na perspectiva de um desejo constante por participar de uma retomada da mítica do escritor beneficiado pela aura aristocrática. A saída para essa reintegração simbólica se perfaz na idealização de uma confraria com grandes nomes consagrados do passado, numa espécie de “solidariedade mecânica” (ibidem, p. 130) pela qual todo artista vivo acaba por catalisar em si o legado de todos os demais que o antecederam, à maneira como o “fidalgo carrega a todo canto com ele e representa para todos os olhos sua família e seus ancestrais” (p. 131). O resultado final dessa Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 operação é a substituição da nobreza decaída por uma confraria espiritual, pela salvaguarda de sua missão de clérigo, porque através do escritor é como se se desse um “momento de comunhão dos santos”, santos, entenda-se bem, sendo justamente os participantes desse colégio espiritual dos grandes nomes da literatura. “O que significa”, Sartre dirá, “que na alma mística de Baudelaire, a comunidade laica dos artistas ganhou um valor profundamente religioso. Ela se torna uma igreja” (idem, p. 133). A tese de Sartre enquadra o interesse de Baudelaire pelo seu “par” americano Edgar Allan Poe dentro da perspectiva dessa busca de filiação. Sobretudo porque: Poe estava morto. Seu argumento se completa nessas palavras: Vivo, o autor de Eureka nada mais era que uma carne vaga como a sua: de que maneira colocar lado a lado duas gratuidades injustificáveis? Morto, ao contrário, sua figura se completa e se define, os nomes de poeta e de mártir se aplicam a ele com toda naturalidade, sua existência é um destino, suas tristezas parecem o efeito de uma predestinação. É aí que as semelhanças ganham todo seu valor: elas fazem de Poe uma espécie de imagem do passado de Baudelaire, algo como o João Batista desse Cristo maldito. (ibidem)

Essa proposição põe em evidência a propensão a um culto do passado, destacando a dimensão principal da temporalidade para o poeta. O que condiz com a estagnação prática da sua existência, sempre abalada pela repetição dos mesmos problemas, das mesmas queixas, das mesmas preocupações, da mesma insalubridade, da mesma dependência familiar, financeira, afetiva. A fuga do escoamento que o fluxo do tempo presente (o seu tempo a se esvair, a sua própria hora a passar) marca, estabelece o itinerário de uma fuga da realidade do presente. Vale explicar que para Sartre não se trata de negar o real do presente, mas de lhe esvaziar do valor. “O valor pertence ao passado, porque o passado é” (idem, p. 159; grifo do original) e qualquer característica de bondade ou de beleza que o presente lhe possa dispor, isso se dá porque essas valiosas qualidades foram por algum motivo despejadas de empréstimo pelo passado. Tratase de uma espécie de dependência moral, de uma hierarquia de valores, que põe em ordem a lógica da decadência. E é dessa relação essencial com o passado que Sartre enunciará o que pretende chamar de “fato poético baudelairiano”: Cada poeta persegue à sua maneira essa síntese da existência e do ser, que já reconhecemos como uma impossibilidade. Sua busca os conduz a eleger certos objetos do mundo que lhes parecem os símbolos mais loquazes dessa realidade onde a existência e o ser irão se confundir e a tentar se apropriar deles por meio da contemplação. [...] O objeto que Baudelaire criou por uma emanação perpétua em seus poemas, e também pelos seus atos em vida, é aquilo que ele nomeou, e que nós também chamaremos, o espiritual. O espiritual é um ser, e que se manifesta como tal: do ser possui a objetividade, a coesão, a permanência e a identidade. (idem, p. 160; tradução minha, grifos do original)

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 O destino como projeto A intenção final de Sartre em seu livro sobre Baudelaire é encaminhar um apelo à intuição da estreita interdependência de todas as condutas assumidas pelo poeta, na busca por reconstituir a sua verdade. Cada traço da personalidade, cada hábito, cada valor, cada visão de mundo age sobre as demais, constrangendo-as e como que estabelecendo com elas um vínculo de exigências mútuas. Suicida simbólico, maligno paradoxal (por revolta e manutenção do Bem), erótico frígido, odioso da corporeidade biológica da natureza, dândi heroico pela profissão de sua própria decadência. A criação poética, que ele preferiu a todas as demais formas de ação concreta no mundo, forma de buscar algo que “o transformará em uma essência que será, por sua vez, dada para sempre e para sempre criada por si mesmo” (idem, p. 176), uma maneira de alcançar a autenticidade e o controle do ser e do destino talvez só equivalentes ao suicídio, ao procurar produzir a imagem de si mesmo, “uma restauração de sua memória que oferece a aparência de uma síntese do ser e da existência” (idem, p. 177). O paradoxo da vida do poeta é que em nenhum instante é possível eximi-lo de sua total responsabilidade. Cada pequeno evento, pelo olhar de Sartre, resgata o espectro da “totalidade indecomponível” que costurou todos os dias da existência de sua consciência. Bataille parece ter captado o sentido dessa luta desesperada entre posse e alienação no jogo de definição de um destino poético: A poesia, num primeiro movimento, destrói os objetos que apreende, devolve-os, através de uma destruição, à inapreensível fluidez da existência do poeta, e é a esse preço que ela espera reencontrar a identidade entre o mundo e o homem. Mas ao mesmo tempo que opera um desapossamento, ela tenta se apossar desse desapossamento. Tudo o que ela conseguiu foi substituir pelo desapossamento as coisas apossadas da vida reduzida: ela não pôde evitar que o desapossamento tomasse o lugar das coisas. (Bataille, 2015; versão e-book Kobo)

A escolha livre que o homem (e principalmente o poeta) faz de si identifica-se com seu destino.

REFERÊNCIAS BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Texto estabelecido e anotado por Y.-G. Dantec. Paris: Gallimard, 1951. ____________. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Apres. Marcelo Jacques. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. BATAILLE, Georges. “Baudelaire”. In: A literatura e o mal. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

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Baudelaire: profeta de Sartre?, pp. 33-52 BAUER, George Howard. Sartre and the Artist. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1969. _____________. “O sujeito lírico fora de si”. In: Signótica. Trad. Zênia de Faria & Patrícia Souza Silva Cesaro. vol. 25, nº 1, pp. 221-41, jan/jun 2013. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. LEIRIS, Michel. Glossaire j’y serre mes gloses. Paris: Gallimard, 2014. MAYER, Noémie. “Baudelaire et Mallarmé de Sartre, ou la captivité affective”. In: Sartre Studies International. vol. 19. n. 2, pp. 78-96, 2013. MÉSZAROS, István. A obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2012. SARTRE, Jean-Paul. Baudelaire. Paris: Gallimard, 2012. _____________. As palavras. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Nova Fronteira, 1984. _____________. O que é a literatura?. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2004. _____________. Situações, I. Trad. Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005. _____________. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2009.

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OS MOVIMENTOS DE DESTRUIÇÃO E VIOLÊNCIA NO CONTEXTO POLÍTICO DA SOCIEDADE BRASILEIRA: A ATUALIDADE DAS CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A FORMAÇÃO DAS MASSAS1 Gabriel Crespo Soares Elias2 Juliana Alves Garcia da Roza3 RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar e discutir criticamente, a partir da teoria psicanalítica, os movimentos de ódio, violência e destruição presentes no contexto político da sociedade brasileira. Em nosso texto apresentaremos a psicanálise como um saber que se relaciona, desde o trabalho freudiano, diretamente com a cultura, de modo a apontar para a atualidade das considerações psicanalíticas sobre a psicologia das massas na contemporaneidade. Desse modo, mencionaremos alguns recentes movimentos de massa no Brasil contemporâneo de modo a 1 Agradecemos ao professor Dr. Marcelo de Abreu Maciel, do departamento de Psicologia do Instituto de Humanidades e Saúde da Universidade Federal Fluminense, campus Rio das Ostras, pelas lições e apontamentos imprescindíveis para a realização deste trabalho. 2 Graduando em psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Contato:gabrielcrespo@id.uff.br 3 Graduanda de psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Contato:ju-roza@hotmail.com

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 mostrar como Freud e a psicanálise pode nos ajudar a compreender as origens aparentemente irracionais da violência, do fascismo e da destruição que tem feito parte cada vez mais do nosso cotidiano político. PALAVRAS-CHAVE: psicanálise; psicologia de massas; violência; sociedade brasileira; fascismo. The movements of destruction and violence in the political context of Brazilian society: the relevance of psychoanalytic considerations about group formation ABSTRACT: The purpose of this article is analyze and critically discuss, based on psychoanalytic theory, the movements of hatred, violence and destruction present in the political context of Brazilian society. In our text, we will present psychoanalysis as a knowledge that relates, since Freudian work, with the culture, in order to show how psychoanalytic considerations about group psychology are still applicable today. In this way, we will mention some recent group movements in present Brazil to highlight how Freud and psychoanalysis can help us understand the seemingly irrational origins of violence, fascism and destruction that have been increasingly observed in our everyday political life. KEY WORDS: psychoanalysis; group psychology; violence; Brazilian society; fascism.

Introdução: a psicanálise e sua relação com o social Há muito a psicanálise tem sido acusada pelas mais variadas formações de pensamento de ser um saber que não trata apropriadamente das questões relativas à sociedade. Podemos considerar que esta crítica, de nenhum modo ingênua ou totalmente destituída de razão, dirige-se corretamente a certa tradição de leitores de Freud que interpretaram o seu pensamento de modo a não perceber que ele não se constitui como um pensamento exclusivamente centrado no indivíduo, como se fosse apático ao social. Contudo, a despeito destas determinadas correntes pós-freudianas, que centram sua leitura no indivíduo, na escuta clínica dos sintomas como se estes fossem de ordem apenas individual e não social, não é possível afirmar que a psicanálise, nem mesmo que Freud, não relacionasse a sua teoria do indivíduo com a análise da cultura4. Desde seus primeiros escritos psicanalíticos é possível perceber que Freud não separa indivíduo e cultura, embora arbitrariamente os tome como duas categorias a fim de tornar clara a sua escrita e exposição de seu pensamento. Na clínica da histeria e da neurose, campo original da 4 Caminhamos na mesma direção do sociólogo Herbert Marcuse que na sua obra Eros e Civilização (1981) indica que o pensamento de Freud pode ser considerado uma teoria crítica do social e não pode ser tomado como não-cultural e apolítico. Este pensador da escola de Frankfurt criticará ainda algumas correntes neofreudianas que trataram de ‘esquecer’ algumas noções fundamentais em Freud, tais como a teoria das pulsões e da repressão, em prol de uma clínica apática à cultura, reafirmando uma separação entre individual e social que não há em Freud. Para Marcuse este ‘esquecimento’ da ligação entre teoria das pulsões em Freud e teoria crítica social, certamente, tem intenções políticas de tornar a psicanálise neutra diante da realidade social.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 atuação do criador da psicanálise, Freud percebeu que a formação dos sintomas histéricos e neuróticos se relacionava diretamente com a cultura vigente. Em Estudos sobre a histeria (1895/1996) Freud e Breuer apresentam a relação entre os sintomas histéricos e a educação moral rigorosa das jovens histéricas do final do século XIX: essas mulheres desconheciam a vida sexual, eram educadas a reprimirem todo e qualquer pensamento desejante como considerado impuro. A despeito das convenções de sua época que considerava a histeria uma simples criação da mente das mulheres, algo incurável e que se encerrava no esforço da histérica em forjar sintomas reais, Freud procura o sentido oculto, a mensagem que se esconde por trás das paralisias, afasias, desmaios, esquecimento de língua natal, perda de sentido, entre outros sintomas histéricos. A psicanálise, desde o início (que é Freud) levou em consideração na análise do sujeito as questões da sociedade (o papel da moral na repressão da sexualidade e as consequências patológicas disto), contudo, neste primeiro momento o trabalho freudiano centrava-se na clínica e na análise do indivíduo, dando ensejo a uma interpretação da posteridade recortada, equivocada e pobre do pensamento freudiano, como se este dissesse respeito apenas à análise e tratamento privados do sofrimento psíquico. Ao longo do desenvolvimento posterior de seu trabalho, Freud fez a teoria psicanalítica avançar em direção ao estudo da cultura, deslocando cada vez mais a análise da dimensão individual para a dimensão social, mostrando que ao invés de separá-las, a psicanálise as relaciona como dimensões intimamente vinculadas. Em Moral ‘sexual’ civilizada e doença nervosa moderna (1908/1996), Freud apresenta pela primeira vez um texto que dá um tratamento mais demorado ao tema da sociedade. Neste texto, ele mostra a relação direta entre as doenças psíquicas modernas com a moral social vigente. Para mostrar a importância deste trabalho, cabe salientar que é neste texto que o autor aponta a diferença entre a liberdade concedida pela cultura ao homem e à mulher: para o primeiro é permitido maior satisfação erótica, podendo inclusive satisfazer-se para além da união monogâmica, enquanto a segunda é privada de qualquer abertura sexual para além do casamento. Podemos dizer que, de certo modo, Freud identifica esta ‘moral sexual’ civilizada que impõe maiores

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 impossibilidades de satisfação sexual paras as mulheres como possível para entender a incidência das doenças nervosas nas mulheres5, e porque elas aparecem em menor número em homens. Os anos da Primeira Guerra Mundial, o crescimento do sentimento antissemita na Europa, o crescimento das instituições militares no entre guerras e a formação de massas políticas fascistas, influenciaram o trabalho de Freud e o levaram a dedicar seu pensamento à questão da destruição e das expressões aparentemente irracionais da guerra e do ódio, como observado no texto Reflexões para tempos de guerra e de morte (1915b/1996). Esses tempos de destruição, guerra e morte trouxeram transformações à própria teoria psicanalítica que incorporou nos seus registros os conceitos de compulsão à repetição e pulsões de morte, de modo a tentar explicar os quadros clínicos e culturais em que a autodestruição se manifestava como vemos em Além do princípio de prazer (1920/1996) e Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011). Finalmente em O mal-estar na civilização (1930/1996), Freud irá organizar seu pensamento sobre a cultura e apontar definitivamente que as origens da insatisfação, do descontentamento, o mal-estar do homem na vida de animal civilizado (assim como as origens dos sintomas que compõem os quadros de sofrimento psíquico) localizam-se na repressão cultural e na educação oferecida pela família para conter os impulsos de interesse natural do homem: a agressividade e o erotismo. No Mal-estar, Freud apresentará ainda seu receio sobre o futuro da civilização (ele não chegou a ver a Segunda Guerra Mundial) e dirá que o quadro social se dá do mesmo modo como o quadro da vida psíquica, em ambos observa-se a luta entre os impulsos vitais e os impulsos mortíferos, não se podendo dizer com certeza qual das duas classes sairá vitoriosa. Apesar de não poder ser lida adequadamente como revolucionária (até porque seu criador recusava à psicanálise este caráter), não se pode esquecer que a teoria psicanalítica deve ser tomada como um saber que relaciona profundamente as suas teorias da constituição do aparelho psíquico com as formações culturais. Deste modo, compreendemos que a teoria freudiana indica ainda caminhos para se pensar nos modos como os sujeitos se constituem em sociedade, como se formam e estruturam seus valores, ideais e discursos.

5 A histeria era entendida nos séculos XVIII e XIX como uma doença exclusiva da mulher. A própria etimologia da palavra histeria quer dizer útero em grego. A medicina da época acreditava que a histeria era uma patologia própria do sexo feminino, o que é contestado pelos estudos de Freud e Breuer. A originalidade de Freud consiste em perceber que há um sentido oculto nas manifestações histeria. Ele então procura entender o que se esconde por detrás daqueles sintomas (ROUDINESCO & PLON, 1998).

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 O presente trabalho que entregamos tem como objetivo apresentar a atualidade das considerações psicanalíticas sobre a análise da cultura e sua psicologia das massas, a fim de lançar uma luz sobre o contexto político em que vivemos e lamentavelmente vemos crescer massas e movimentos de ódio e violência, aparentemente de origens irracionais. Em tempos em que o espaço político que já foi dedicado ao diálogo (embora jamais exclusivamente) está se transformando em campo de agressão e violência, Freud e suas noções de inconsciente, repressão dos impulsos, formação das massas, poderão nos auxiliar na compreensão destes movimentos de destruição e morte. Cabe salientar que, apesar de nos apropriarmos mais da obra de Freud, não nos limitaremos a este autor, buscamos na Psicologia de massas do fascismo (1933/2015) de Wilhelm Reich relevantes elucidações sobre o momento político brasileiro atual em que vemos crescer o autoritarismo, e as forças reacionárias consoantes a um patriotismo maniqueísta (que divide a sociedade em iguais e inimigos, pessoas pró e pessoas contra), assim como também observamos a exponencial naturalização dos discursos de ódio. Utilizaremos também o filme alemão A Onda (Die Welle) (2008) como ilustração para a noção de movimentos de massas em Freud e como fio que ilustrará e conduzirá as considerações psicanalíticas que apresentaremos e nos ajudará a compreender o contexto político de autoritarismo e fascismo do Brasil atual. O presente artigo também apresentará reflexões livres sobre alguns movimentos de massa que ocorreram nesta última década e que podem auxiliar nesta breve leitura sobre a nossa sociedade contemporânea. A formação das massas segundo Freud Em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011), Freud estabelece diálogo com os autores da psicologia social de seu tempo, tais como Gabriel Tarde, William McDougall e Gustave Le Bon, a fim de responder aos questionamentos feitos pelo seu pensamento inquieto: o que é e como se forma uma massa? Como ela influencia a vida psíquica do indivíduo? Como é essa modificação subjetiva que a massa impõe ao indivíduo? Como explicar, por exemplo, os comportamentos aparentemente irracionais que nascem no seio de massas, mas que raramente se encontra no indivíduo isolado? Freud entende que o indivíduo não existe completamente isolado das relações humanas e sociais, como apresentamos anteriormente, desde o início do desenvolvimento de sua teoria, ele considerava o sujeito como sendo formado a partir das suas relações com os pais, a família, os

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 educadores. No entanto, apenas neste texto de 1921, é possível notar uma mudança de interesse no trabalho do autor. Se até então a psicanálise se debruçava sobre as relações do sujeito sendo influenciado por uma, duas ou um número limitado de pessoas (seus pais, por exemplo), agora Freud busca pensar em uma dimensão mais ampla, pensa no indivíduo sob influência de algo maior, de um número maior de pessoas – o que ele chamará de massa6. Em um primeiro momento, Freud (1921/2011) se apoia em Gustave Le Bon para apresentar suas ideias sobre o lugar da mente do indivíduo e sua intimidade psíquica na massa, no coletivo. Este sociólogo francês se interessa por questões semelhantes às de Freud: ele se questiona por que o indivíduo se comporta de uma forma dentro da massa e de modo diferente quando está fora dela. Ao exemplo de um indivíduo do tipo calmo, pacífico, que em um contexto de massa torna-se uma pessoa violente e mortífera, podemos chegar a pensar que não estamos tratando da mesma pessoa. Le Bon afirma que não importa se os sujeitos são iguais ou não, a massa trata de homogeneizá-los, é como se existisse na massa uma “alma coletiva”. Nas palavras do pensador social: O fato mais singular, numa massa psicológica, é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem sejam semelhantes ou dessemelhantes o seu tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva. Esta alma os faz sentir, pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria, pensaria e agiria isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos aparecem ou se transformam em atos apenas nos indivíduos em massa (LE BON apud FREUD, 1921/2011, p. 17).

Freud concorda apenas parcialmente com essa leitura leboniana, pois percebe que este ela carece da falta de compreensão do que a psicanálise chama de inconsciente. Ou seja, falta ao pensamento de Le Bon aquilo que Freud enxerga como a maior contribuição da psicanálise para o entendimento do sujeito e da cultura. A noção de inconsciente postulada por Freud diz respeito a uma instância psíquica independente da consciência, embora se relacione com esta. O inconsciente seria a instância mental que serve de morada para todos os conteúdos psíquicos que reprimidos, ou seja, é o reservatório de tudo aquilo que o sujeito considera indesejado para consciência (FREUD, 1915a/1996).

6 De modo a rever os equívocos da tradução brasileira, que é herdeira da edição inglesa das obras de Freud, da qual deriva a tradução brasileira de Group Psychology para “psicologia de grupo”, utilizaremos a tradução do Freud direta do alemão feita por Paulo César de Souza que traduz a expressão alemã Massenpsychologie por “psicologia de massas”, mantendo maior fidelidade à expressão utilizada por Freud. Utilizamos o termo ‘massa’ para oferecer um sentido menos mecânico e mais dinâmico que o termo grupo.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 Fazem parte do inconsciente os impulsos primitivos mais profundos do ser humano, os impulsos que o levam à destruição e agressividade. Estes impulsos serão chamados por Freud de pulsões de morte, que junto das pulsões de vida, atuam de modo a regular a existência psíquica. Em termos metapsicológicos, as pulsões de vida atuam para a fusão das partes vivas em unidades cada vez maiores, enquanto as pulsões de morte atuam para a desfusão das unidades maiores em partes menores, que em última instância seria a morte destas partes (FREUD, 1920/1996). No pensamento freudiano, todo o esforço da cultura (da educação e da criação familiar) consiste em reprimir as pulsões que seriam contrárias ao propósito da manutenção e sobrevivência da civilização. Ou seja, o papel da cultura seria fortalecer o recalcamento a fim de que as pulsões sejam contidas no inconsciente e domesticadas de modo a atenderem aos propósitos éticos e valores da civilização (FREUD, 1930/1996). No entanto, o que chama a atenção de Freud é que estas barreiras criadas pela civilização para a repressão dos mais profundos interesses humanos caem por terra quando o indivíduo faz parte desta “alma coletiva”. As barreiras do recalque não o impedem de ceder às pulsões de destruição inconscientes quando o indivíduo encontra-se fazendo parte de uma massa (FREUD, 1921/2011). Observando o indivíduo em grupos é possível notar que, aparentemente, a sua responsabilidade individual, a sua consciência desaparece. No mínimo pode-se observar que fica em estado de suspensão. A simplicidade e o exagero dos sentimentos e pensamentos dos sujeitos nas massas, a sua abertura às influências múltiplas e o seu caráter impulsivo e violento, são apontados por Freud como características análogas aos conteúdos inconscientes mais primitivos da psique humana7, são movimentos cada vez mais próximos das forças de desfusão, das pulsões de morte. A massa seria então o contexto no qual o indivíduo se sentiria autorizado a fazer coisas que conscientemente e sem a massa não faria. Ela permite que o sujeito se livre dos processos de recalcamento. Graças a isso, como elucida Le Bon, a massa é como se fosse invencível, indestrutível. É dotada de uma potência que seus componentes isolados não têm.

7 Cabe salientar que neste momento Freud ainda não havia proposto o seu modelo final do aparelho psíquico. Apenas em 1923/1996 em O Ego e o Id, após a criação de conceitos como compulsão à repetição, pulsão de morte e o lançamento os problemas da sua psicologia das massas, Freud irá organizar a sua segunda tópica: constrói o modelo do aparelho psíquico, que define as três “estruturas” da mente. Seriam elas: o Eu, instância formada para a racionalidade, para lidar com os conteúdos do consciente; o Supereu, voltado para o mundo exterior da educação transmitida pelos pais, dos costumes herdados pela tradição, que acabaram por ser interiorizados, formados como estrutura psíquica, e o Isso seria a estrutura mais primitiva, as profundezas de onde provêm os interesses mais profundos do ser humano, as pulsões de agressividade e destruição.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 Freud ainda observa a semelhança do comportamento de massas no fanatismo religioso e nas experiências de fé e êxtase. A analogia com a religião é interessante, pois para o autor, qualquer massa, como as religiosas, não buscam ou desejam a verdade; elas anseiam apenas pelas suas ilusões e, aliás, sobrevivem por meio delas. A massa seria, então, o processo humano mais próximo da irracionalidade. Uma das características que levam o sujeito a adquirir as qualidades da massa a qual faz parte é o estado de sugestionabilidade a que ele está submetido. O sujeito obedece, acata todas as sugestões como se fossem suas, obedecendo às ordens do líder com respeito, admiração ou temor. Para investigar o papel do líder e a importância de uma liderança na massa, alguém que exerce fascínio e a entrega da massa, Freud vai usar como exemplo a Igreja e o exército, duas instituições que formam massas que seguem sem reflexão a ordens estabelecidas. Para ele, o que ocorre na entrega de uma pessoa a uma massa guiada por um líder, seja ele militar, religioso ou político, é semelhante ao que ocorre nos relacionamentos amorosos, quando uma pessoa se entrega ao outro ao ponto de apagar um pouco a si mesmo em prol da adoração do outro que é tomado como objeto de amor. A formação das massas autoritárias e fascistas Essa entrega irrefletida ao outro, o abandono do seu próprio eu em nome de um movimento liderado por alguém (à semelhança da experiência romântica), levou o ex-aluno e discípulo de Freud chamado Wilhelm Reich8 a investigar mais a fundo a psicologia das massas. Em seu livro Psicologia de massas do fascismo (1933/2015), Reich analisou o desejo e a psicologia das massas fascistas no período do crescimento e do governo nazista assim como os discursos de algumas personalidades de liderança do partido nazista (atendo-se mais precisamente aos discursos de Hitler e Goebbels, identifica no pensamento autoritário destes as pistas que

8 Wilhelm Reich foi um médico e psicanalista da segunda geração, discípulo de Freud, que aproximou a teoria freudiana da sexualidade com o pensamento marxista. Foi filiado à IPA (Associação Internacional de Psicanálise) e ao PCA (Partido Comunista da Áustria) ao mesmo tempo. Suas críticas a estas duas instituições desagradaram seus líderes e ele acabou sendo expulso das mesmas. Dentre suas ideias no período ainda mais próximo da psicanálise, Reich enxergou um aspecto revolucionário na sexualidade, o desejo das massas em serem dominadas e propôs formas de transformação da moral e dos costumes que desagradaram a Freud e os psicanalistas da época. Sobre este autor vale lembrar que as técnicas de intervenção corporais, as teorias e explorações desenvolvidas no seu trabalho pós-psicanalítico, assim como a sua personalidade controversa, continuam a produzir polêmica e discordância no movimento psicanalítico, que convencionou não considerar Reich um psicanalista (ROUDINESCO & PLON, 1998).

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 indicam as origens inconscientes do fascismo). Dentre as descobertas oferecidas por este estudo, é interessante notar que para o autor essas massas desejaram o fascismo. Diferente de seu antigo professor, Reich pontua que as pessoas não sofrem apenas o efeito de enamoramento, encantamento, fascinação por um líder. Para ele o líder não tem totalmente o poder de despertar nas massas a suspensão da consciência individual e o destino dado aos impulsos reprimidos no inconsciente. O que liga o indivíduo ao líder é o desejo: as massas também desejam o fascismo, desejam servir a uma figura autoritária, buscam a obediência. Elas não são totalmente passivas, não são fascinadas por figuras atraentes como Hitler e Mussolini, elas também gozam na sua posição de obediência. Não enxergando o homem como sendo separado do restante da natureza, tomando-o na esteira das demais espécies de animais, Reich não toma a obediência humana como uma condição natural do homem, ele se pergunta por que o homem é o único animal que, voluntariamente, abre mão da sua liberdade para receber ordens de outro. Reich se preocupa com o fato de haver tantos indivíduos que desejam servir a um líder, a uma ilusão, a um partido, a um movimento. Para ele este comportamento da massa em seguir as ordens de alguém como um “espírito de rebanho”, como diria Nietzsche, é algo que tem sua origem na cultura e mais precisamente na forma como esta cultura é mantida viva – através da criação familiar. Na leitura de Reich, a estrutura familiar ocidental é autoritária, patriarcal e repressora. Os movimentos nacionalistas que se dá pela valorização de seus iguais e no ódio ao diferente, aos inimigos, aos estrangeiros, àqueles que não fazem parte desta nação ou são indignos dela, serão tomados por Reich como algo que ocorre em decorrência de uma fraqueza criada por esta cultura opressora dos impulsos biológicos primários. A partir de sua experiência clínica, Reich localiza a raiz desta fraqueza na relação do bebê com a sua mãe. O desejo de ser dominado pelo outro lembra o recém-nascido que, ao chorar em seus primeiros anos de vida, é atendido por este outro que é a sua mãe e que sabe manejar seu corpo de modo a promover a descarga dos estímulos instintivos (saciar a fome, por exemplo)9. A permanência

9 Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996), Freud postulará a sua teoria da sexualidade. Sua originalidade se encontra na descrição da experiência de satisfação sexual que ocorre concomitante à descarga das excitações que mãe realiza no sujeito-bebê. Ao oferecer o substrato orgânico (o leite, o alimento), a mãe também oferece prazer sexual que será registrado no corpo do bebê através da estimulação das suas zonas erógenas. Neste momento se distingue os estímulos instintivos, necessidade fisiológica, das pulsões (impulsos), advindos da experiência desta experiência de prazer. O psiquismo trabalhará da seguinte maneira: as pulsões sexuais forçam o indivíduo a buscar reviver tais experiências de prazer. Se no primeiro momento é o alimento (saciar a fome) que o bebê deseja, no segundo momento ele deseja o peito (objeto de satisfação erótica). Para Freud, a relação do

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 (a fixação) neste estágio de satisfação infantil faz com que o sujeito, mesmo depois de atravessado o período da infância, continue a desejar que alguém dê um destino para o seu desejo, ofereça um objeto para a satisfação de seus impulsos. Ao invés de se haver com seu próprio desejo, que seria a sua expressão de liberdade, a maioria dos indivíduos deseja que alguém lhe diga o que fazer com ele. Levando a análise psicanalítica a extremos não desejados por Freud, Reich dirá que o autoritarismo e o fascismo nascem no colo da mãe que reproduz a forma autoritária da família ocidental em reprimir as pulsões sexuais. A mãe participa fundamentalmente do processo de castração, que consiste em reprimir os impulsos eróticos em prol da educação e da manutenção da civilização, desse modo a mãe perpetua a moral cultural vigente, perpetua uma estrutura familiar autoritária, castradora. A dependência do animal humano de um outro que cuide dele (cumpra esta função originalmente exercida pela mãe), esta fixação na figura materna, nasce de em um contexto cultural ocidental, em uma estrutura familiar autoritária, em uma nação que preza pelo sentimento nacionalista. Estas são as condições necessárias para o nascimento do autoritarismo e do fascismo. O sentimento nacionalista é, portanto, o prolongamento direto da ligação familiar e, tal como esta, tem a sua origem na ligação fixa à figura da mãe. Isso não se pode explicar biologicamente. Pois mesmo esta ligação à mãe passa a ser um produto social, na medida em que se transforma em ligação familiar e nacionalista. Ela cederia o lugar, durante a puberdade, a outro tipo de relações — por exemplo, as relações sexuais naturais —, se as limitações sexuais da vida amorosa não contribuíssem para perpetuá-la. É nesta perpetuação socialmente motivada que a ligação à mãe constitui a base do sentimento nacionalista do homem adulto, transformando-se, assim, numa força social reacionária (REICH, 1933/2015, p. 63).

Do Angriff, jornal de propaganda nazista criado por Goebbels, Reich extraiu a seguinte referência que este personagem fazia à figura da mãe, chegando a propor que o dia das mães fosse celebrado como o dia da mãe Alemanha. A revolução nacional varreu tudo o que é mesquinho! São de novo as ideias que comandam e que unificam — família, sociedade, nação. A ideia do Dia das Mães presta-se a honrar o que a ideia alemã simboliza: a Mãe alemã! Em parte nenhuma a esposa e a mãe tem a importância que lhe é atribuída na nova Alemanha. Ela é guardiã da vida familiar, da qual brotam as forças que reconduzirão o nosso povo à supremacia. Ela — a Mãe alemã — é a única portadora do pensamento do povo alemão. A ideia de “Mãe” é inseparável da ideia de “ser alemão”. Poderá alguma coisa unir-nos mais do que a ideia de prestar um tributo comum a todas as mães? (ANGRIFF apud REICH, 1933/2015, p. 63).

bebê com a mãe será fundamental para a constituição do aparelho psíquico e para compreensão da forma como aquele sujeito lidará com o outro ao longo de sua existência.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 Para Reich é de interesse do Estado que a estrutura familiar seja autoritária, pois assim as massas podem ser mais facilmente moldadas, sujeitas à sugestão, obediência e ainda desejarão pela servidão (advinda da dependência da figura da mãe) como estivem desejando sua própria liberdade. A psicanálise de homens e mulheres de todas as idades, países e classes sociais leva às seguintes conclusões: a combinação da estrutura socioeconômica com a estrutura sexual da sociedade e a reprodução estrutural da sociedade verificam-se nos primeiros quatro ou cinco anos de vida, na família autoritária. A Igreja só continua essa função mais tarde. É por isso que o Estado autoritário tem o maior interesse na família autoritária; ela transformou-se numa fábrica onde as estruturas e ideologias do Estado são moldadas. (REICH, 1933/2015, p. 45)

Agora não parece nos surpreender mais o fato de que no atual momento político brasileiro a ideia de “preservação da família tradicional” esteja tão presente nos discursos dos nossos políticos e suas massas seguidoras. Os estudos sobre psicologia das massas em Le Bon, Freud e Reich nos ajudam a compreender os movimentos inconscientes dos indivíduos nas massas e quem sabe buscar vias possíveis de solução para os problemas que surgem nestes movimentos. É importante compreender que, para Reich, a repressão da sexualidade, a moral vigente, que estão nas origens de tanto ressentimento, violência e ódio não são condições naturais. Elas são formações que aparecem em determinado contexto cultural ocidental, patriarcal, fundamentado no autoritarismo familiar e respaldado por uma educação baseada na repressão de todas as expressões da liberdade ainda nos primeiros anos da infância. A importância da análise psicanalítica que aqui oferecemos consiste em mostrar que, a repressão, o autoritarismo e suas manifestações mortíferas, não sendo categorias primordiais, não tem razão de serem permanentes, são movimentos transitórios. Ora, se a repressão social da sexualidade natural das massas pode ser eliminada, e se nessa repressão reside o mecanismo central da estrutura de caráter que condiciona a incapacidade de liberdade, então a conclusão lógica será que não se trata de uma situação desesperada. Nesse caso, a sociedade tem amplas possibilidades de eliminar toda a espécie de circunstâncias sociais a que chamamos “peste emocional” (REICH, 1933/2015, p.174).

Não estamos fadados a permanecer nesta dependência emocional de uma estrutura familiar autoritária, nem de um líder ou governo autoritário, assim como a nível pessoal (que se amplia para o social) não estamos fadados a permanecer da mesma forma como foram gerados os nossos mecanismos de defesa na infância e nem mesmo somos limitados a viver eternamente a partir dos registros passados que constituíram nosso aparelho psíquico. Através da análise crítica da cultura é possível romper com as forças da repressão, com as marcas do autoritarismo, com a ordem social vigente, assim como a análise individual auxilia na superação das estruturas causadoras de sofrimento psíquico. Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 O filme A Onda como ilustração Impossível falar em fascismo e cultura contemporânea e não lembrar do filme alemão A Onda (Die Welle) do diretor Dennis Gansel (2008). A obra retrata a experiência realizada pelo professor Rainer Wenger, em uma escola na Alemanha, sobre como um sistema autocrático e fascista pode ainda emergir nos dias atuais. Wenger percebe que seus alunos não estão muito interessados em estudar o tema da autocracia, visto que acreditam que isso é algo do passado, que já foi discutido milhares de vezes, e que não seria possível acontecer de novo na Alemanha algo semelhante ao nazismo, pois o fato de termos consciência do que fizemos no passado garantirá que não venhamos a cair nestes mesmos erros. Para mostrar aos alunos que o retorno do fascismo era sim possível, Werner começa um experimento com a turma. Primeiro o professor muda a disposição das cadeiras; antes se tinha mesas reunidas em grupos, mas agora todas estão viradas para frente, de modo que todos os alunos fiquem voltados para o professor. Em seguida, ao explicar quais são os requisitos de um sistema autocrático, o professor ressalta que mais do que uma ideologia, controle e vigilância, é imprescindível à massa a figura de um líder. À semelhança do que elucida Freud (1921/2011, p. 25): “a massa é um rebanho dócil, que não pode jamais viver sem um senhor”. O líder, fundamental na massa, ocupa um lugar de prestígio e tem poder de fascinar tanto quanto um hipnotizador. O professor pergunta quem seria o líder naquele grupo e eles concordam democraticamente (sem imposição) que o próprio professor, seria o melhor líder. Inicialmente os alunos tomam aquela situação como uma brincadeira apenas e seguem voluntariamente as primeiras ordens do mestre: tirar tudo da mesa, sentar direto, ter que se levantar para falar, etc. Desse modo, o professor mostra que o poder se dá através da disciplina, uniformidade e união da massa. Quanto à uniformidade e união, imprescindíveis para a boa condução de uma massa, Wenger cria condições para que aqueles alunos se tornem uma massa forte: eles marcham juntos, começam a usar uniforme, escolhem um nome para o grupo e elaboram uma saudação própria. Assim nasce a ideia de um coletivo que tem que prezar pela união e apoiar uns aos outros para que juntos sejam mais fortes que separados. Surge então “A Onda”. Essa organização se aproxima do que McDougall, citado por Freud (1921/2011), aponta: a massa possui uma identidade própria para substituir a identidade que o sujeito tinha antes de se

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 junta a ela. Algumas condições que McDougall cita para a formação da massa são: materiais que deem continuidade à massa (se vê isso no ao longo de todo o filme), tradições e costumes (eles criam uma saudação própria para o grupo) e ter uma rivalidade com outras massas (mais tarde a turma de Wenger vê outros alunos do colégio, não participantes da onda, como inimigos). O aspecto irracional da onda transparece na fala de uma das alunas que diz: “de repente todo mundo tava fazendo. Era uma energia estranha que pegou todo mundo”. Esta ‘energia estranha’ refere-se ao que Le Bon chama de contágio, que diz que toda ação e todo sentimento é contagioso no interior de uma massa. O que faz parte da identidade da massa prevalece e é difícil de explicar como, ‘do nada’, todos estão fazendo a mesma coisa, como se estivessem contagiados uns pelos outros. O contágio é esse mecanismo aparentemente misterioso que mantém a unidade entre as partes na massa para Le Bon. No filme ainda podemos perceber a noção de alma coletiva de que Le Bon. Ao fim da experiência, os alunos contam que “não importa agora quem é o mais bonito, o mais popular, ou faz mais sucesso. A onda nos tornou iguais”, “raça, religião e classe social não importam mais. Pertencemos a um movimento. A onda deu significado à nossa vida, ideais pelos quais lutar”, “antes eu batia nos outros, agora quanto mais penso nisso, mais vejo como era idiota” e “é muito melhor ser parte de uma causa. Quando podemos confiar uns nos outros, conquistamos muito mais, mesmo que isso signifique sacrificar a nós mesmos”. Ou seja, fora dela, os indivíduos são outros, conseguem se diferenciar, é possível de certa forma contornar uma subjetividade, mas quando estão dentro de uma ‘onda’ o que prevalece é esta alma coletiva. Desaparece o indivíduo em sua multiplicidade, resta uma identidade compartilhada. Outra noção interessante que Freud (1921/2011) discute e que o filme apresenta é a de que a massa “tem o sentimento da onipotência; a noção do impossível desaparece para o indivíduo na massa” (p. 22). Em outras palavras, não se é guiado pela racionalidade, pela razão consciente, mas pelo inconsciente, por sentimentos extremos, como a onipotência. Isto fica claro quando professor diz aos alunos que “juntos podemos fazer qualquer coisa”. Ou seja, “inclinada a todos os extremos, a massa também é excitada apenas por estímulos desmedidos. Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa” (FREUD, 1921/2011, p. 23).

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 Por fim, quando Wenger percebe que seu experimento estava indo longe demais, ele decide terminar o experimento e diz que seus alunos não precisam mais chamá-lo de ‘senhor Wenger’. No entanto, isso não acontece. E mais, o experimento extrapola as quatro paredes da sala de aula; ‘A Onda’ está presente em todos os lugares da cidade - como adesivos nas paredes e pichações nas ruas. Chega um momento em que até mesmo o professor, alguém que supostamente teria em suas mãos o controle da atividade, na verdade já havia sido vítima de seu próprio experimento. Entretanto, como quem produz um insight, Wenger enxerga ser preciso colocar um fim àquilo. Ele então reúne todos os alunos para o ato final do experimento. O professor, fingindo, diz que a onda é muito potente e não deve acabar após aquela semana, que deve continuar a expandir por todo o país; novamente ilustrando o sentimento de onipotência da massa. Os alunos, hipnotizados, o aplaudem, mas um deles se manifesta contra e é chamado de traidor pelo professor. Este ordena que o traidor seja levado até ele e a massa prontamente segue a ordem e o leva ao professor– como aponta Freud –, ela é desprovida de crítica. Diante disto, Wenger coloca essa falta de pensamento crítico em questão. Pergunta a um dos garotos por que ele trouxe o traidor até lá e o menino responde por que foi ele quem mandou. O professor então indaga o aluno se mataria aquele que vai contra a onda se ele mandasse; se ele o torturaria até concordar com as ideias do grupo. Com isso, Wenger quer trazer aquela massa que está guiada pelo inconsciente a pensar conscientemente sobre suas ações. Esta parte ilustra como a massa libera o sujeito dos processos de recalcamento, permitindo que o sujeito experimente a agressividade, que é um profundo interesse humano. Na massa o indivíduo está sujeito a condições que lhe permitem se livrar das repressões dos seus impulsos instintivos inconscientes. As características aparentemente novas, que ele então apresenta, são justamente as manifestações desse inconsciente, no qual se acha contido, em predisposição, tudo de mal da alma humana (FREUD, 1921/2011, p. 19).

Assim, os alunos conseguem perceber como aquela situação tinha escalado a um extremo inimaginável. Eles estavam vivendo aquilo que afirmaram há uma semana antes ser impossível ser vivido de novo. Com isso, o professor anuncia que ‘A Onda’ acabou. No entanto, um aluno chamado Tim não consegue assimilar isso e acaba se matando dada a ausência de sentido que o fim da onda causou em sua existência. O seu investimento naquele movimento tão grande ao ponto de que quando ‘A Onda’ acaba sua vida acaba também. Isso se aproxima da noção de libido de Freud, que diz que as massas se juntam por um processo análogo ao enamoramento.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 Para Freud, o que regula as massas é o Eros. Este enamoramento exige que haja harmonia entre o sujeito e seu objeto de amor. Uma vez enamorado, uma parte do Eu do sujeito se perde e aquilo que o distinguia do grupo, deixa de existir para que seja mantida esta harmonia da massa. É, então, amparado por este conceito de identificação libidinal que Freud explica o funcionamento das multidões como aquilo que liga seus componentes entre si e faz com que elas sejam, exatamente, multidões: cada indivíduo projeta sobre os outros, sobre o líder, a idealização do que cada ego individual estruturou para si próprio (BENEVIDES & JOSEPHSON, 2017, p.10).

No longa-metragem, a postura do aluno Tim é uma demonstração clara desse Eu que se projeta na figura do líder, no sentimento de poder e de pertencimento que este inspira. Uma vez que este enamoramento acaba, todo este investimento libidinal entra em colapso. É isto o que ocorre com o jovem personagem: a onda deu um sentido que a sua vida até então era destituída, isso fez com que ele investisse tanto libidinalmente para a sobrevivência da onda, a fim de não perder aquilo que se tornou seu grande objeto de satisfação, o que deu um propósito a sua existência. A trágica experiência de Wenger demonstrou que o nazismo, o fascismo, as ditaduras e os regimes autoritários não fazem parte das páginas dos livros de história. Eles são realidades, pois como diria Reich, nós desejamos servir a alguém que seja uma autoridade capaz de conduzir o nosso desejo. A sede por ilusões presente nas massas, segundo Freud (1921/2011), pode nos levar a crer (independentemente da nossa educação moral e ética) que se justifica que o outro morra pelo fato de ser e pensar diferente, de não se submeter à autoridade pela qual eu admito me submeter. Disto provêm as expressões irracionais do ódio, da violência e da morte. Alguns jornais nos trazem ao conhecimento informações assustadoras sobre os movimentos neonazistas na Europa e na América do Norte. O fascismo parece estar na moda, pois é possível observar em vários países os saudosistas de um período de autoritário e ditatorial. Membros da Ku Klux Klan, famoso clã do ideário da supremacia branca americana, saíram às ruas com tochas nas mãos há pouco mais de três anos atrás. Sem contar nas novas expressões do conservadorismo nos costumes, movimento não exclusivo do Brasil, que tentam naturalizar ataques às populações que estão saindo da marginalidade nas últimas décadas, a exemplo dos homossexuais e das mulheres e a conquista de seus direitos. Independente das leis que criminalizam tais práticas, elas continuam a ocorrer e, ao que tudo indica, tem tomado uma proporção assustadora nos últimos anos. As massas das ruas, das redes sociais e dos grupos de whatsapp, indicam o caráter irracional, impulsivo e sedento por destruição que em nossos tempos não estão reservados aos ginásios de luta

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 ou grandes disputas em finais de jogos em estádios de futebol, mas tem feito parte do nosso cotidiano afetivo e social. Assusta saber que o homem não tem condições apenas para repetir os erros de antes, mas tem um potencial de garantir que as novas ações sejam mais fatais que as anteriores. É possível que nossa civilização rume por caminhos cada vez mais obscuros. Movimentos de destruição e violência no contexto político do Brasil atual Em junho de 2013, milhares de pessoas foram às ruas em várias cidades brasileiras para protestar... Sobre exatamente o quê? Esta questão é difícil responder, pois o motivo do movimento aparentemente era protestar contra um aumento na tarifa de ônibus na cidade de São Paulo, no entanto logo se tornou um movimento sem uma só causa, sem organização e confuso de entender. Era possível ver nas ruas pessoas pedindo o fim do governo (na época ainda o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff). O que, à primeira vista, parecia ser apenas o movimento compreensível de cidadãos indignados com os escândalos de corrupção (em que vários partidos políticos estavam sendo acusados exaustivamente nas mídias), logo se transformou em imensas ondas de pessoas violentas e odiosas. Frases de ódio, manifestações de raiva e ressentimento tomaram conta das ruas e das mídias sociais. A violência e o enfrentamento entre as partes contrárias no jogo político apareceram de tal modo que forçaram qualquer um que quisesse manter um pouco de sua postura crítica, desconfiado de que aquelas pessoas estavam afundadas em uma atmosfera semelhante ao transe. As ruas das nossas metrópoles pareciam arquibancadas de estádios de futebol. A manifestação se transformou em torcida organizada. Não é à toa que o uniforme de um dos grupos tenha sido a camisa amarela da seleção brasileira. Deste evento até o momento de agora, as massas nas ruas têm se tornado cada vez mais frequentes. O que pode parecer uma manifestação normal da democracia, em verdade mais se parece com os fins da própria democracia10. Quando um grupo toma o outro não como rival político, mas como um estranho que deve ser eliminado, algo de destrutivo começa a nascer nestas massas, pois a democracia é fundamentada no ideário da liberdade política. O desejo de retirar a liberdade do outro, por sua vez, é um atentado à democracia.

10 Sobre a irracionalidade das massas, a forma como estas são fáceis de serem manipuladas e como isso ocorreu na sociedade brasileira desde as manifestações de 2013, ver o documentário Democracia em Vertigem da diretora Petra Costa, lançado em 2019 pelo Netflix.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 O psicanalista Contardo Calligaris, em sua coluna na Folha de S. Paulo, vem analisando o panorama atual da política brasileira e tecendo reflexões interessantes acerca do comportamento de massas. Em um artigo de 7 de março deste ano, intitulado Patriotismo e patriotice, ele distingue dois modos distintos de sentimento patriótico. O primeiro seria o sentimento de orgulho por pertencimento a sua pátria, algo que seria razoável e de certo modo até importante para a constituição de uma identidade brasileira. Contudo, o que ele chama de patriotice seria a dominação de um sentimento irracional de orgulho da sua pátria, no qual você se une aos que se sentem defensores do “melhor para a nação” e admite, sem maior reflexão, tudo aquilo que está sendo posto como voltado para “o bem da nação”. Na estúpida atmosfera da patriotice, as massas admitem a perigosa sentença de que “os fins justificam os meios”, ou “vale tudo” em defesa do que estas consideram ser o melhor para a sua pátria amada. No final do ano passado, assistimos mais de mil venezuelanos que estavam refugiados na cidade de Pacaraima (RR) sendo expulsos por uma massa de “cidadãos de bem” ao som do hino nacional. Sob a justificativa de que estavam defendendo o Brasil, inclusive o direito ao trabalho dos próprios brasileiros (que não teriam que disputar emprego com esses ‘intrusos’), eles queimaram os acampamentos de refugiados e seus pertences. Felizmente, cenas como essas não são vistas todos os dias. Este evento nos permite refletir da seguinte maneira: o quê exatamente autorizou aqueles indivíduos a agirem daquela maneira? Por que agiram de forma tão odiosa e de onde tiraram a coragem de tornar esse ódio público? No mesmo artigo citado, Calligaris salienta: “São os grupos que nos autorizam a sermos os canalhas que, sozinhos, nós não nos autorizaríamos ser. A pátria é um desses grupos possíveis” (Folha de S. Paulo, mar. 2019). A pátria, ou os brasileiros com sentimento ‘patriótico’, seria uma massa com todas as características de apagamento da subjetividade como vimos em Freud (1921/2011), uma massa mortífera que autoriza o indivíduo a fazer aquilo que sozinho não teria condições físicas e psíquicas para realizar. Na massa patriótica nos autorizamos a pedir morte àqueles que estamos convictos de que estão contra a nação, pedir a volta da ditadura militar, ameaçar as instituições democráticas (inclusive o Supremo Tribunal Federal) dentre outros absurdos.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 A (re)produção das frases de ódio e consensos como “direitos humanos é para humanos direitos”, “bandido bom é bandido morto”, “comunista tem que morrer”, “a polícia tem mesmo é que matar”, entre outros, se tornaram tão comuns que a capacidade de conversar, tentar se colocar no lugar do outro, em um exercício racional e consciente, tem se tornado cada vez mais rara, principalmente nas aglomerações de manifestantes, seja nas ruas ou nas redes sociais virtuais. Nós que fazemos parte de uma cultura que tem seus fundamentos na racionalidade e na consciência, sem o auxílio de autores como Freud, certamente, teremos dificuldades em entender o atual momento em que nos encontramos. Se a massa produz no sujeito uma operação de desrecalcamento, que pode permitir a ebulição dos impulsos do mais profundo interesse humano – as expressões da agressividade e do erotismo – devemos estar atentos aos movimentos produzidos pelas massas e sinalizar sobre os riscos de se entregar completamente a um determinado movimento grupal. “(...) ao se reunirem os indivíduos numa massa, todas as inibições individuais caem por terra e todos os instintos cruéis, brutais, destrutivos, que dormitam no ser humano, como vestígios dos primórdios do tempo, são despertados para a livre satisfação instintiva” (FREUD, 1921/2011, p. 24). No que diz respeito ao atual momento político do nosso país, se faz necessário prestar atenção aos movimentos dos dois extremos que se dizem contrários (encarnados sob a velha ‘atualizada’ separação entre esquerda e direita), pois ambas as massas têm o poder de tolher a nossa possibilidade de ser singular, que consiste na nossa liberdade de pensar para além do que está sendo posto no grupo. Se analisarmos criticamente os discursos das pessoas da esquerda ou da direita, da oposição ou situação, conseguimos perceber que existem pontos em comum entre seus discursos, tais como: ausência do pensamento autocrítico, a certeza de que estão “do lado certo da história”, a ideia de que “o outro” é um inimigo e a convicção de que suas ações, até mesmo seus excessos, se justificam em nome de um “bem maior”, dando margens à radicalidade e ao fanatismo que certamente embaraçam a racionalidade e toleram abusos e violências contra o grupo ao qual se toma como inimigo a ser combatido, eliminado. Em nossos tempos de polarização política, em que os adjetivos comunista, fascista, direitista, esquerdista, são tomados pelo discurso de um dos lados do jogo político como uma ofensa, vale retomar a lucidez reichiana ao considerar que deve existir uma análise mais sincera e complexa sobre como se organizam as massas políticas fascistas. Quando ele chama o nazismo de fascista, ele não

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 o faz de forma displicente como se o simples fato de chamar o nazismo de fascista encerrasse a discussão sobre este movimento político. Reich ele descreve de forma pormenorizada os aspectos de dominação do outro pelo abuso da autoridade. As considerações de Reich continuam atuais para os tempos de agora: A palavra fascismo não é um insulto, e nem a palavra capitalismo. Representa um conceito que designa uma forma muito particular de dirigir e influenciar as massas: regime autoritário, sistema de partido único, portanto totalitário, o poder à frente dos interesses objetivos, distorção política dos fatos, etc. Deste modo há "judeus fascistas" e "democratas fascistas". (REICH, 1933/2015, p.171). Não há anjos revolucionários de um lado e diabos reacionários do outro. Não há capitalistas ávidos de um lado e trabalhadores generosos de outro. Para que a sociologia e a psicologia de massas possam vir a funcionar como verdadeiras ciências, é preciso que se libertem da maneira de ver tudo como branco ou preto, maneira esta própria da política. Têm de mergulhar no caráter contraditório do homem que teve uma educação autoritária, procurar a reação política no comportamento e na estrutura das massas trabalhadoras, para então contribuírem para a sua articulação e eliminação (REICH, 1933/2015, p.175).

Considerações finais No verão que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, Freud estava caminhando na companhia da psicanalista Lou-Andreas Salomé e do poeta Rainer Maria Rilke, quando este último lastimou que toda a beleza da natureza estivesse condenada a perecer. A transitoriedade, própria do duelo entre os “poderes celestes” Eros e Thanatos, era para Rilke motivo de tristeza e perturbação de espírito. Diante do desânimo e pessimismo do companheiro com a mudança que está sempre presente na existência, Freud escreveu: [...] contesto o poeta pessimista, que associa a transitoriedade do belo com sua desvalorização. Ao contrário, há um aumento de valor! O valor da transitoriedade é raro em nossa época. A limitação das possibilidades de fruição eleva sua preciosidade. Considero incompreensível que a ideia da transitoriedade do belo possa perturbar nossa alegria diante dele. No que diz respeito à beleza da natureza, após sua destruição pelo inverno, ela voltará novamente no próximo ano, e esse retorno em relação à duração de nossa vida deveria ser caracterizado como eterno (FREUD, 1916/2017, p. 222).

Em tempos de tantas análises pessimistas (muitas respaldadas em um panorama real desanimador e entristecedor) sobre a política e o atual momento da nossa civilização brasileira, há valor em não perder a alegria de afirmar a existência mesmo diante dos movimentos de ódio e destruição de certas massas, que se apresentam nas expressões fascistas de eliminação de minorias, populações nativas e retrocesso em questões de ordem e direitos humanos e sociais. É neste momento de crise da democracia que devemos voltar nossos esforços no fortalecimento das pulsões do Eros que, diariamente, apesar das circunstâncias, esforça-se em cada

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 indivíduo para manter a espécie humana em movimento de crescimento e criação de novas estratégias para viver/sobreviver e é isso que ainda tem nos mantidos vivos enquanto espécie. Pois assim como existem massas de destruição, grupos imbuídos no extermínio, não deixam de existir por isso os grupos mantidos pelo desejo de união e construção11. Eros se faz presente nos movimentos de resistência, nas lutas e manifestações daqueles que não admitem o desrespeito aos seus direitos. Há a importância das minorias e dos grupos que se encontram sob ataque na atualidade em afirmarem, com alegria, a sua existência, não deixarem de ser quem originalmente são (ou desejam ser) e continuarem a requerer os direitos que ainda não lhes são garantidos. Sempre houve e sempre haverá o conflito entre as forças de vida e de morte. O que vemos na história é a alternância entre estas duas forças. Sem associar as pulsões de vida a um bem primordial e as pulsões de morte a um mal primordial, devemos nos situar para além do otimismo ilusório e do pessimismo paralisante. É importante não perder no horizonte que quanto maior é a força imposta pelas massas de destruição, mais as massas de resistência buscam meios de multiplicar-se, perpetuar-se, afirmarem a sua posição política. E é exatamente por este conflito pulsional que o quadro da vida e toda a sua multiplicidade e diferença existem. E apesar das tentativas de se reescrever a história do nosso país de modo a formar pensamentos voltados para a admiração do autoritarismo de um passado e um presente escritos sob a violência, a repressão e a morte, há ainda vias de transformações do que está sendo posto. As vias de transformação, embora exijam de nós uma movimentação política, possuem bases naturais: dizem respeito às pulsões de vida que sempre encontram um meio de forçar o psiquismo humano a buscar satisfação e se diferenciar num processo de criação e transformação que é próprio do Eros. Sem querer apresentar uma saída última para a situação em que nos encontramos, até porque não seríamos capazes de apresentar tal proposta (e também não acreditamos que ela já exista), decidimos registrar nas considerações finais deste trabalho as últimas palavras de Freud em outro texto seu que discute os destinos da sociedade – O mal-estar na civilização:

11 Apesar de darmos ênfase aos aspectos negativos da massa, que podem levar às experiências de destruição e violência (que é o propósito do nosso trabalho analisar), as massas não necessariamente são um mal. Existem massas que se esforçam na direção da manutenção da vida e na manutenção da civilização. No entanto, estas não deixam de ter problemas, pois assim como as massas de destruição, elas são contagiosas, irracionais, anseiam por ilusões, liderança e submissão. Podemos observar estas características nos dois polos do cenário político brasileiro atual: as pessoas dos dois lados desejam um ídolo (mito) a quem possam reverenciar, imitar e cultuar. Os apontamentos freudianos alertam que todas as formações de massas são perigosas, pois não se pode determinar seu curso. Não podem ser lidos, contudo, como considerações pessimistas.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? (FREUD, 1930/1996, p.151).

A atualidade destas palavras publicadas há quase noventa anos pode assustar alguns e inspirar outros. Mesmo ainda não sabendo o resultado do que está ocorrendo no momento de agora, pois prever o futuro não foi algo confiado aos humanos, apostamos na esperança de que a força de fusão, reunião, multiplicação e geração das pulsões do Eros, prevaleçam às forças mortíferas, aquelas que estão na raiz das expressões de violência e de ódio irracionais. E para preservar um pouco da nossa esperança cabe observar criticamente os movimentos das massas e os discursos produzidos pelas mesmas. Somente prezando pela nossa liberdade de pensamento e autocrítica podemos nos manter à distância das perigosas forças irracionais observadas nas massas. Isto não significa o isolamento, tampouco as tentativas inúteis de neutralidade ou passividade política, mas sim a preservação da nossa capacidade de raciocinar em tempos obscuros, em que as pessoas parecem que abdicaram do diálogo em prol dos discursos de ódio e da militância apaixonada e não menos irracional. Talvez desse modo permaneçamos vivos e sóbrios após esta onda de violência e destruição passar. REFERÊNCIAS A ONDA. Direção: Dennis Gansel. Produção: Christian Becker, Nina Maag e Anita Schneider. Alemanha: Constantin Film, 2008. BENEVIDES, R.; JOSEPHSON, S. A invenção das massas: a psicologia entre o controle e a resistência. Em: JACÓ-VILLELA, A.M.; FERREIRA, A.A.L.; PORTUGAL, F.T. História da Psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2007, p. 441-462. CALLIGARIS, C. Patriotismo e patriotice. Folha de S. Paulo. São Paulo, publicado na coluna do autor no

dia

07

de

março

de

2019.

Disponível

em:

<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2019/03/patriotismo-epatriotice.shtml>. Acessado em 24 de junho de 2019 às 14h.

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 FREUD, S.; BREUER, J. (1895). Estudos sobre a histeria. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol. 2). FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade . In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol.7, p.119-230). FREUD, S. (1908). Moral ‘sexual’ civilizada e doença nervosa moderna. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol.9, p.167-187). FREUD, S. (1915a). O inconsciente. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol. 14, p.165-217). FREUD, S. (1915b). Reflexões para tempos de guerra e morte. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol. 14, p.285-311). FREUD, S. (1916). Transitoriedade. In: FREUD, S. Arte, literatura e os artistas. Obras incompletas de Sigmund Freud. Tradução de Ernani Chaves. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (p.221-225). FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol. 18, p.11-75). FREUD, S. (1921). Psicologia das massas e análise do eu. In: FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923)/ Sigmund Freud Obras Completas Volume 15. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (p.13-99). FREUD, S. (1923). O ego e o Id. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol.19, p.15-82). FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. (Vol.21, p.65-151).

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Os movimentos de destruição e violência no contexto político da sociedade brasileira, pp. 53-75 MARCUSE, H. Eros e civilização – uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. REICH, W (1933). Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2015. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89

A IMPLICAÇÃO DA MELANCOLIA FRENTE À CONDIÇÃO DE VIDA PRECÁRIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE JUDITH BUTLER* Prof. Dr. Reginaldo Oliveira Silva** Pâmela Cristina Almeida Queiroz*** RESUMO: Este estudo problematiza, a partir de textos de Judith Butler, a relação entre vida precária e melancolia. Butler parte de uma concepção de precariedade comum a todos para então examinar os modos com que a condição de vida precária é fabricada. Já o conceito de melancolia, amparado em Freud, é reinterpretado como o mecanismo por trás da vida psíquica do poder, o qual atua na formação do sujeito. As formas de poder confluem para a distinção entre vidas passíveis e não passíveis de pranto, sendo estas últimas as vidas em condição precária. Assim, o poder produz e regula vidas em condição precária, possivelmente cultivando a instância psíquica da melancolia em sua dimensão social. Sendo a melancolia caracterizada por um Super-eu severo, surge a hipótese de essa severidade induzir o Eu a despejar sua agressividade para a vida em condição precária. PALAVRAS-CHAVE: Vida precária. Melancolia. Poder. Proibição do luto. Butler. THE IMPLICATION OF MELANCHOLY IN THE FACE OF PRECARIOUS LIFE CONDITION: A REFLECTION FROM JUDITH BUTLER ABSTRACT: This study problematizes, from Judith Butler’s texts, the relationship between precarious life and melancholy. Butler starts from a conception of precariousness common to all to examine then the ways in which precarious life condition is manufactured. The concept of *

Este artigo é o resultado de pesquisa realizada pelo Programa de Iniciação Científica da Universidade Estadual da Paraíba, Cota/20182019, com a participação de Pâmela Cristina Almeida Queiroz, sob a orientação do Prof. Dr. Reginaldo Oliveira Silva. ** Doutor em Letras, Professor Associado da Universidade Estadual da Paraíba, atuando no curso de Licenciatura em Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade. *** Graduanda do curso de Psicologia, na Universidade Estadual da Paraíba.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 melancholy, anchored in Freud, is reinterpreted as the mechanism behind the psychic life of power, which acts in the formation of the subject. The forms of power converge for the distinction between lives susceptible and not susceptible to mourning, these not susceptible lives are in precarious condition. Thus, power produces and regulates lives in precarious condition, possibly cultivating the psychic instance of melancholy in its social dimension. Being the melancholy characterized by a severe Super-ego, arises the hypothesis that severity might induce the Self to drive its aggressiveness towards life in precarious condition.

KEYWORDS: Precarious life. Melancholy. Power. Prohibition of mourning. Butler.

Diante de um cenário político e social no qual as vidas são diferenciadas entre passíveis e não passíveis de luto, isto conforme apreendidas como mais ou menos humanas, o presente trabalho busca examinar a associação entre o conceito de melancolia e de vida precária em Judith Butler, porquanto considera a possibilidade de a melancolia se constituir como formação psíquica facilitadora do não reconhecimento de vidas precárias. Assim, apresenta como objetos de discussão o conceito de vida precária, em uma dimensão política, social e ética; a interpretação de Butler do conceito freudiano de melancolia ampliado para as relações sociais; e, por fim, o entrelaçamento entre a concepção de vida precária e melancolia em Butler. Subdividido em dois momentos, este estudo busca, primeiramente, compreender o conceito de vida precária a partir das obras Vida precaria: el poder del duelo y la violencia, de 2004, e Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, de 2009. A seguir, examina o conceito de melancolia e suas possíveis relações sociais a partir da leitura de Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, onde Butler propõe uma melancolia de gênero, e da interpretação da autora pertinente ao processo de sujeição em Freud, com Luto e melancolia e O Eu e o Id, Foucault, em O Sujeito e o Poder e História da sexualidade: a vontade de saber, e Althusser, em Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, autores referenciados por Butler em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Ao partir de uma concepção universal de precariedade da vida, Judith Butler empreende um estudo acerca dos modos com que determinadas vidas humanas têm ampliada a vulnerabilidade à violência e fabricada a condição de impossibilidade de luto público. Tendo em conta o enfoque social da melancolia proposto pela autora, e sendo possível uma associação com o conceito de vida precária, talvez por trás da violência (ou da indiferença à violência) voltada para o outro em condição precária haja um Eu melancólico que, desesperado por sobreviver à fúria do Super-eu, redireciona a

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 própria agressividade para esse outro com quem não é capaz de admitir uma identificação; de modo que a destruição do outro pode retratar a tentativa de destruir algo em si mesmo. Em Vida precaria: el poder del duelo y la violencia, Butler explana quanto ao cenário público pós Ataques do 11 de Setembro nos Estados Unidos, o qual é qualificado como de aumento do antiintelectualismo e da censura midiática à qualquer perspectiva crítica da guerra. O antiintelectualismo faz referência ao enquadramento como absolvição de toda tentativa de explicação por intelectuais das motivações para tais ataques. Isto é, como uma forma de freio à reflexão pública acerca de uma história dos acontecimentos, com espaço inclusive para uma préhistória do 11 de Setembro, os argumentos contrários à guerra são, quando não totalmente privados de exposição pública, distorcidos como defesa dos ditos terroristas. Diz Butler: O grito de que "não há desculpas para o 11 de Setembro" tornou-se um meio de afogar toda e qualquer tentativa séria de discussão pública sobre o modo como a política externa dos Estados Unidos colaborou na criação de um mundo onde tais atos terroristas são possíveis (BUTLER, 2006, p. 27, tradução nossa)1.

A autora argumenta que a tentativa de compreender as condições por trás da violência é, em vez de uma tentativa de justificá-la moralmente, uma abertura para a transformação dessas condições e interrupção do ciclo da violência2. Butler chama atenção para uma precariedade compartilhada quando aponta que “a perda e a vulnerabilidade parecem ser a consequência de nossos corpos socialmente constituídos, sujeitos a outros, ameaçados pela perda e suscetíveis à violência, por causa desta exposição”3, de modo que um acontecimento tal como o 11 de Setembro expõe o fato de que população nenhuma, ainda que pertencente à uma grande potência mundial, é imune à violência. Dada essa noção de precariedade comum da vida, em decorrência de nossos corpos socialmente construídos: “o corpo tem uma dimensão invariavelmente pública. Constituído na esfera pública com um fenômeno social, meu corpo é e não é meu”4, é possível tomá-la como base para uma solução política pacífica, assim como negá-la, sob o amparo de fantasias de dominação, tende a fortalecer a atitude pró-guerra5. A concepção de uma sociabilidade fundamental da vida corporal não nega o direito de reivindicação dos corpos como nossos, apenas elucida que, diante de nossa inserção na esfera pública, os corpos não são apenas nossos, uma vez que “estamos desde o princípio, e em virtude de 1 Todas as traduções seguintes para o português da edição espanhola de

Vida precaria: el poder del duelo y la violência são de responsabilidade dos autores. 2 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. 3 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 46. 4 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 52. 5 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 sermos seres corporais, entregues a outros, mais além de nós mesmos, implicados em vidas que não são as nossas”6. A vulnerabilidade é, pois, comum à vida humana. Contudo, afirma Butler, essa vulnerabilidade é amplificada sob certas condições sociais e políticas, sobretudo quando a violência torna-se uma forma de vida7. As formas de distribuição da precariedade podem ser radicalmente diferentes a nível global, de maneira que, enquanto certas vidas mantém-se sob forte proteção, bastando uma ameaça para a justificação moral de uma guerra, outras não dispõem de amparo legal, não sendo sequer enquadradas como vidas passíveis de luto8. Ao investigar as condições com que uma vida torna-se passível de luto, Butler destaca o papel do obituário como instrumento no qual o luto é publicamente distribuído: “trata-se do meio pelo qual uma vida se converte em – ou deixa de ser – uma vida para recordar com dor, um ícone de autorreconhecimento para a identidade nacional; o meio pelo qual uma vida chama atenção”9. Dessa forma, com atos de luto publicamente autorizado, é produzida a norma que regula que mortes são passíveis de serem pranteadas e quais não o são, sendo estas últimas muitas vezes decorrentes de violência militar10, uma violência que termina por ser racionalizada/legitimada em favor das vidas que "valem a pena". Porquanto determinados nomes, rostos, histórias de vida e morte não aparecem nas mídias, há operante um luto proibido, uma melancolia generalizada. É por via de proibições e repressões de um pranto e discurso, pois, que se dá a desumanização de determinadas vidas, cuja vulnerabilidade é maximizada porém negada. Argumenta Butler acerca da relação entre vulnerabilidade e humanização que: se a vulnerabilidade é uma condição para a humanização e esta tem lugar de diferentes formas através de normas variáveis de reconhecimento, então a vulnerabilidade, caso seja atribuída a algum sujeito humano, depende fundamentalmente das normas existentes de reconhecimento.11.

Esse reconhecimento tem menos a ver com reconhecer o que um sujeito já é, do que com reconhecer o seu devir. Trata-se de incitar um futuro sempre em relação com o Outro12. O Outro, através de seu rosto, diz Butler, amparada pelo conceito em Levinas, faz uma demanda ética: “responder pelo rosto, compreender o que ele quer dizer, significa despertar para o que é precário de outra vida ou, antes, a precariedade da vida mesma”13. O rosto do Outro, porém, transmite uma 6

BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 54. BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. 8 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. 9 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 61. 10 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. 11 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 70-71. 12 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. 13 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 169. 7

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 dupla mensagem: "matarás" e "não matarás", isto é, além de uma tentação ao assassinato, o rosto carrega também a proibição de executá-lo. Perante a tentação de matar, que o rosto do Outro incita ao comunicar a precariedade da vida, é produzido um dilema que fundamenta uma ética da não violência, que consiste na luta interna para não assassinar o Outro14. Nas palavras da autora, lê-se: “se o Outro, o rosto do Outro, que depois de tudo é o que comunica o sentido desta precariedade, tenta-me ao mesmo tempo com o assassinato e me proíbe de executá-lo, então o rosto serve para produzir uma luta em mim e a instala no coração da ética”15. Ainda com base na noção de rosto em Levinas, Butler examina a relação entre representação e humanização, argumentando que os sujeitos que têm a oportunidade de serem representados têm mais probabilidades de serem humanizados e aqueles que não dispõem de tal oportunidade podem ser considerados menos que humanos16. A eliminação do humano nas mídias através da imagem ocorre por meio de esquemas normativos de inteligibilidade que fabricam ideais que distinguem sujeitos entre mais ou menos humanos, a partir de duas formas: ou produzindo a imagem do rosto como inumano, ou borrando radicalmente o rosto, de forma que não comunica precariedade, uma vez que “ali nunca houve nada humano, nunca houve uma vida e, portanto, não ocorreu assassinato”17 Já em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, Butler dá continuidade ao exame acerca de que condições convergem para a apreensão de uma vida como precária e que condições dificultam ou até mesmo impossibilitam essa apreensão. Partindo da noção de precariedade comum a todos, examinada em 2004, a qual, entretanto, é minimizada para uns e maximizada para outros, a autora sustenta que há enquadramentos que “não só organizam a experiência visual como também geram ontologias específicas do sujeito.”18. Com a produção de um continuum de vida, no que o valor da vida é tomado diferencialmente conforme a adequação às normas que condicionam o reconhecimento do humano, toda apreensão de vida e morte é regulada por um determinado enquadramento19, um esquema variável de inteligibilidade, um condicionante da interpretação do que conta ou não como uma vida digna de ser vivida e uma morte passível de ser lamentada.

14

BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 170. 16 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. 17 BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 183. 18 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 17. 19 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 15

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 Se uma vida é enquadrada como impassível de luto, como menos que humana e assim sendo não há o que nela perder, as condições sociais e políticas das quais dependem sua manutenção são negligenciadas por certas formas de poder, de modo que os portadores de uma vida em tal condição precária “são obrigados a suportar a carga da fome, do subemprego, da privação de direitos legais e da exposição diferenciada à violência e à morte.”20. Eis então o problema dos enquadramentos em seus efeitos de exploração de sujeitos e populações-alvo, consideradas como “ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias”21. É assim que, ao invés de um reconhecimento recíproco, a condição compartilhada de precariedade tem conduzido a formas política e socialmente desiguais de sua administração. Em uma perspectiva crítica das guerras contemporâneas, também presente no texto de 2004, Butler aponta a produção de um cenário em que as populações são divididas entre aquelas compostas por pessoas por quem lamentamos e aquelas por quem não lamentamos, sendo que “Se estamos falando de luto público ou de indignação pública, estamos falando de respostas afetivas que são fortemente reguladas por regimes de força e, algumas vezes, sujeitas à censura explícita”22. Acerca dos enquadramentos que, ao articular os modos de apreensão da vida precária, condicionam a autorização ou proibição do luto público para determinadas vidas, a autora reflete que a forma como respondemos à dor dos outros, isso quando há uma resposta, se essa dor incita uma comoção e/ou formulação de uma crítica moral ou não, depende de já ter sido estabelecido certo campo de realidade perceptível23, um enquadramento que direciona a interpretação. Ao adentrar a questão da fotografia de guerra, a qual pode fortalecer atitudes favoráveis ou contrárias à manutenção da guerra, Butler enfatiza menos o que mostra a fotografia do que como mostra o que mostra, como a organização da imagem organiza o campo perceptivo de seu observador24; enfatiza, pois, como a imagem é enquadrada, e, nesse sentido, como funciona a serviço de uma forma de poder. Nas palavras de Butler: “A fotografia não é simplesmente uma

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BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 45-46. 21 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 53. 22 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 66. 23 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 24 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 imagem visual à espera de interpretação; ela mesma está interpretando ativamente, algumas vezes forçosamente”25. O enquadramento em uma fotografia atua não apenas pelo que mostra, mas também, simultaneamente, pelo que descarta, pelo leque de possibilidades representativas que termina por excluir. No modo como restringe o que podemos ver, questiona Butler, “o governo e a mídia também não estão limitando os tipos de provas que o público tem à sua disposição para fazer julgamentos sobre a conveniência e o curso da guerra?”26. A autora argumenta que, a depender de como é discursivamente enquadrada, a fotografia pode ser instrumentalizada em direções alternativas, podendo operar até mesmo na instituição de um modo de reconhecimento de uma vida passível de luto27. Através da crítica à violência do próprio enquadramento normativo, por funcionar em prol de uma concepção de humano altamente excludente, e dessa forma produzir a condição precária de sujeitos em divergência com as normas de apreensão da precariedade que tornam o reconhecimento do outro possível, Butler compreende que “essa maneira de diferenciar as vidas não pode ser entendida como um problema de identidade nem sequer de sujeito. Trata-se, antes, de uma questão de como o poder configura o campo em que os sujeitos se tornam possíveis ou, na verdade, como eles se tornam impossíveis”28. A ética da não violência emerge como um discurso ou um apelo cuja reivindicação e/ou recepção requer “uma vigilância agressiva da tendência da agressão a surgir como violência." 29. Trata-se de uma luta interna, um conflito constante, uma tentativa, ainda que completamente falível, de responder à precariedade da vida com a interdição de transformá-la em não vida. Tal prática deriva da conscientização da precariedade comum a todos, o que envolve uma “luta contra essas noções de sujeito político que supõem que a permeabilidade e a condição de violável podem ser monopolizadas em um local e completamente rechaçadas em outro.”30.

25

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 110. 26 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 123. 27 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 28 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 231-232. 29 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 240. 30 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 255.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 Todavia, os modos com que as mídias, em paralelo com regimes políticos, produzem rostos não humanos (ou os ocultam por completo), o que dificulta ou impossibilita o reconhecimento da precariedade da vida, confluem para a manutenção das normas de violência que rejeitam o caráter igualitário da condição de ser passível de luto. Esse contexto pode estar relacionado com uma estrutura melancólica, em sua dimensão social, que predispõe ao acolhimento da diferenciação normativa de vidas. Ou seja, se de início o poder distribui as vidas em reconhecíveis e nãoreconhecíveis como humanas, as quais serão ou não protegidas, seja pelas leis seja pelos afetos, ele também parece constituir certo tipo de sujeito capaz de assim se portar ante o outro, considerado humano ou não-humano. Portanto, aquilo que o poder produz será repetido pelo indivíduo nas relações intersubjetivas, o que sugere, por conseguinte, ao exame da vida precária, examinar não mais como o poder fabrica a vida precária, mas sobretudo como ele produz sujeitos inaptos para o reconhecimento da precariedade do outro. Com Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, uma das primeiras obras de Judith Butler, a autora já explora o conceito freudiano de melancolia, porém em uma reflexão sobre a formação da identidade de gênero. A hipótese de a melancolia se constituir como um mecanismo essencial à formação do Eu, o que dá margem à uma perspectiva melancólica da formação da identidade de gênero, é em Butler um ponto de destaque da teoria psicanalítica, uma vez que permite compreender como a identificação com objetos/amores perdidos "pode ser o único caminho em que o ego pode sobreviver à perda de seus laços afetivos essenciais com o outro." 31. Tendo em vista que as identificações são substitutivas das relações de objeto e decorrentes de uma perda não enlutada, “a identificação de gênero é uma espécie de melancolia em que o sexo do objeto proibido é internalizado como proibição. Essa proibição sanciona e regula identidades de gênero distintas e a lei do desejo heterossexual”32. Posto isso, Butler prossegue na teorização da identidade como um efeito, uma incorporação regulada por formas de poder, com enfática crítica à premissa do poder jurídico de categorização de identidades como fundantes e permanentes, de forma que gera e restringe os sujeitos que assegura meramente representar33.

31

BUTLER, judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 93. 32 BUTLER, judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 98. 33 BUTLER, judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 Mas é mais tarde, em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, que Butler, em uma genealogia da sujeição, referenciando autores como Freud, Foucault e Althusser, explora a dimensão social da melancolia como possível pano de fundo para a constituição e regulação do sujeito pelo poder. E é em Luto e melancolia, de Sigmund Freud, que a autora alicerça sua reflexão acerca do processo de sujeição pela melancolia. Neste texto, Freud delineia alguns pontos de convergência e divergência entre a condição clínica da melancolia e o afeto normal do luto, afirma ele que: Via de regra, luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc. Sob as mesmas influências observamos, em algumas pessoas, melancolia em vez de luto, e por isso suspeitamos que nelas exista uma predisposição patológica.34

Diante de uma perda, enquanto a melancolia converge com o luto pelo abatimento doloroso, pela suspensão do interesse pelo mundo exterior e da capacidade de amar, e pelo tolhimento de toda atividade, tal condição diverge do luto pelo declínio acentuado da autoestima 35. O Eu empobrecido da melancolia se vê identificado com o objeto perdido, o que, nos dizeres de Freud, permite a seguinte diferenciação: “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu”36. Como a perda do objeto torna-se, no quadro da melancolia, uma perda do próprio Eu, também o conflito da relação objetal repercute no Eu: há uma “cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação”37. O texto de Freud aponta ainda o que seriam as precondições da melancolia, destacando entre elas o conflito da ambivalência. Sobre esse conflito, o autor defende que, não havendo renúncia ao amor ao objeto, o amor encontra refúgio em uma identificação narcísica, enquanto o ódio recai sobre o objeto substitutivo, isto é, sobre o próprio Eu, do qual obtém certa satisfação sádica 38. Além da ambivalência, os outros pressupostos da melancolia citados pelo autor são a perda do objeto e a regressão da libido para o Eu. Freud torna a falar da melancolia em O Eu e o Id, admitindo que “Se um tal objeto sexual deve ou tem de ser abandonado, não é raro sobrevir uma alteração do Eu, que é preciso descrever como 34

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In.: ______. Obras completas, Vol. 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 128. 35 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In.: ______. Obras completas, Vol. 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 127-142. 36 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In.: ______. Obras completas, Vol. 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 130. 37 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In.: ______. Obras completas, Vol. 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 134. 38 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In.: ______. Obras completas, Vol. 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 estabelecimento do objeto no Eu, como sucede na melancolia”39. Assim colocado, é possível compreender, como Butler40 acentuou, que

o mecanismo

da melancolia contribui

significativamente com o processo de formação do Eu por via das identificações que representa. Freud esclarece ainda, acerca das primeiras identificações do Eu, que estas agem regularmente como instância especial dentro do Eu, confrontando este como Supereu, enquanto mais tarde o Eu fortalecido pode se comportar de modo mais resistente às influências dessas identificações. O Super-eu deve a sua especial posição no Eu ou ante o Eu a um fator que deverá ser estimado a partir de dois lados: é a primeira identificação, acontecida quando o Eu era ainda fraco, e é o herdeiro do complexo de Édipo, ou seja, introduziu no Eu os mais imponentes objetos.41

O Super-eu, enquanto herdeiro do complexo de Édipo e, desse modo, representante da relação com os pais, alude à instância crítica do Eu, que torna-se extremamente severa e arrebatadora da consciência na melancolia. É como se vigorasse no Super-eu, declara Freud, uma “pura cultura do instinto de morte”42. Dessa maneira, por influência do contato com o mundo externo e seus objetos potencialmente perdíveis, emerge um Eu capaz de tomar a si mesmo como objeto e puni-lo, conforme diverge do ideal do Eu, com toda a agressividade de que é composto. Em uma maneira de ampliar o arcabouço teórico na discussão acerca dos condicionantes do assujeitamento, um outro autor a quem Butler recorre com frequência é Foucault, para compreender como o poder atua na formação do sujeito. Em O Sujeito e o Poder, Foucault afirma que há dois significados para sujeito: sujeito ao outro pela dependência e fixado à própria identidade por meio da consciência ou autoconhecimento43. O autor esclarece que, a fim de compreender a objetivação do sujeito, é necessário analisar as relações de poder, como operam para as formas de subjetivação e submissão. Diz Foucault, quanto às modalidades instrumentais do poder, que: o poder se exerce pela ameaça das armas, dos efeitos da palavra, através das disparidades econômicas, por mecanismos mais ou menos complexos de controle, por sistemas de vigilância, com ou sem arquivos, segundo regras explícitas ou não, permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivos materiais etc.44

39

FREUD, Sigmund. O Eu e o Id. In.: ______. Obras completas, Vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 26. 40 BUTLER, judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 41 FREUD, Sigmund. O Eu e o Id. In.: ______. Obras completas, Vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 45. 42 FREUD, Sigmund. O Eu e o Id. In.: ______. Obras completas, Vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 50. 43 FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In.: DREYFUS, H. e RABONOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. 44 FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In.: DREYFUS, H. e RABONOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 246.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 Já em um capítulo de A história da sexualidade, "Direito de morte e poder sobre a vida", Foucault destaca que o poder já não se encarrega apenas de confiscar a vida, mas de controlá-la nos mais diversos âmbitos, e que a persistente tática dos combates passa a atuar sob a prerrogativa do direito à existência biológica de uma dada população. O direito de causar a morte ou deixar viver é substituído, em uma era do bio-poder, por um direito de causar a vida ou devolver à morte, direito esse exercido de forma assimétrica45. Ainda como referência para refletir quanto ao problema da sujeição, Butler convoca a perspectiva de Althusser da subordinação através da linguagem que é enunciada por uma voz de autoridade. Em Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, Althusser descreve os ditos aparelhos ideológicos do Estado como “um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas” 46, que, assim como os aparelhos repressivos, funcionam tanto pela ideologia como pela violência. Também, pondo em cena sua doutrina da interpelação, o autor declara que toda ideologia, no jogo de dupla constituição com a categoria de sujeito, interpela os indivíduos concretos como sujeitos concretos, e afirma que “a existência da ideologia e interpelação dos indivíduos como sujeitos são uma única e mesma coisa”47. Acerca das teorias da sujeição de Foucault e de Althusser, Butler 48 infere que, tanto partindo de uma noção de produtividade discursiva com que o poder age sobre o sujeito quanto pela noção de interpelação, o processo de constituição do sujeito requer uma submissão primária ao poder. Apontando que Foucault concebe o sujeito como fundado pela fabricação discursiva do corpo, o qual é invadido por um ideal normativo que confere uma identidade psíquica, de forma que um poder regulador dos corpos age não apenas como subordinador, mas também como subjetificador, Butler explica que é possível compreender o corpo como um lugar onde ocorre uma perda constitutiva, uma vez que "O sujeito aparece à custa do corpo"49. Já considerando a interpelação em Althusser, Butler pontua que a sujeição que se dá por um chamado, uma nomeação, sugere “uma cena social em que o sujeito primeiro é chamado, depois se vira, e por fim aceita os termos pelos quais é chamado"50, e logo completa que “trata-se, sem dúvida, 45

FOUCAULT, Michel. Direito de morte e poder sobre a vida. In: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade - A vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017. 46 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução de Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença / Martins Fontes, 1970, p. 43. 47 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução de Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença / Martins Fontes, 1970, p. 100. 48 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 49 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 99. 50 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 113.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 de uma cena tanto punitiva quanto reduzida, pois o chamado é feito por um oficial da "Lei", um oficial projetado como singular e falante."51. Essa virada para a voz da autoridade é condicionada não só pela lei, mas também pelo próprio interpelado, que, cúmplice da voz interpeladora, se predispõe ao alinhamento à lei, apropriando-se de um sentimento de culpa, a fim de gozar de uma existência. Ainda, tal cena, de virada na direção da lei e concomitantemente volta contra si mesmo, é, por caracterizar um movimento reflexivo, indício de uma ação já da consciência 52. Como a predisposição do sujeito a alinhar-se à lei revela certa afeição à lei, é por via desse apreço, essa dependência fundamental, que se constitui “o círculo apaixonado no qual o próprio Estado enreda o sujeito"53. Tendo em conta que a sujeição não é uma mera internalização de um poder externo, mas requer, em vez disso, um apego à subordinação como forma de garantir a existência, isto é, que a sujeição alude à uma dimensão psíquica do poder, interessa a Butler o exame das condições nas quais o poder investe sobre a vida psíquica. É então que emerge a melancolia como possível mecanismo de sujeição, uma vez que, dado o redirecionamento do objeto para o Eu, ou seja, uma regressão da libido, "o apego transita do amor para o ódio, mas também o Eu é produzido como objeto psíquico; na verdade, a própria articulação desse espaço psíquico, às vezes retratado como ‘interno’, depende dessa volta melancólica"54. Assim, surge o Eu como fruto de um luto incompleto, que, à medida que incorpora o objeto, eclipsa o mundo externo, o que acaba por marcar a própria divisão entre mundo externo e interno, entre social e psíquico. Mas se Freud compreende que o amor ao objeto é premissa da melancolia, que afinal requer a perda desse objeto, não é assim para Butler, que afirma que "não existe Eu sem melancolia"55, de modo que a perda melancólica é constitutiva do Eu. Essa perda é como que uma perda do mundo social, haja vista que o Eu coloca a si mesmo no lugar do mundo que o rodeia, no que as relações externas entre os atores sociais são substituídas por partes conflitantes da vida psíquica que a melancolia engendra56. Sobre a relação entre melancolia e vida social, Butler expõe que essa relação se dá pelas “formas de poder social que regulam quais perdas serão e não serão pranteadas"57, pela organização do mundo em certos tipos de forclusão, uma violência da regulação social, pois, que não age 51

BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 113. BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 53 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 137. 54 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 176-177. 55 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 179. 56 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 57 BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 191. 52

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 unilateralmente, mas encontra na própria tendência do Eu em substituir objetos perdidos, em incorporar as perdas recusadas, a condição de sua possibilidade. Entretanto, propõe a autora, o sujeito que poderia prantear suas perdas está imerso na perda de autonomia decorrente da vida linguística e social, e é assim que “Desde o começo, esse Eu é outro que não si mesmo; o que a melancolia mostra é que somente ao absorver o outro como si mesmo é que o Eu se torna algo de fato"58. A sujeição pela melancolia ocorre então a partir desse rastro do outro perdido e incorporado, um outro cuja perda forcluída é regulada pelo poder social que delimita quais objetos são passíveis de pranto e quais não, de modo que demarca os objetos para a morte. A partir de todo o exposto acima, é possível compreender a vida em condição precária como produzida por formas de poder, em cumplicidade com as mídias, que negligenciam a noção de precariedade comum à vida e alocam em determinados sujeitos e populações um excedente de vulnerabilidade à violência e morte, fazendo dos modos diferenciais de luto público um regulador das vidas passíveis e não passíveis de luto. Enquanto condição de luto incompleto, a melancolia engendra o sujeito apto a acolher essa distinção entre vidas elegíveis e não elegíveis para o pranto, conforme o imperativo dos ideais normativos que conferem inteligibilidade ao humano. Assim sendo, dada a noção de uma sujeição melancólica, a melancolia, na fronteirização entre mundo interno e externo, prepara o terreno para a manutenção política e social da vida em condição precária. Convocada essa relação possível entre vida precária e melancolia, abre-se caminho para pensar formas alternativas de instrumentalizar a tendência melancólica do sujeito, a fim de dificultar a imposição de ideais normativos que, tão exigentes, amarguram o Eu e dificultam o reconhecimento do outro. Considerando a crueldade com que o Super-eu em sua criticidade pode arrebatar o Eu, é possível que a violência perpetrada no outro em condição de vida precária seja um redirecionamento de uma agressividade que o Eu já não suporta voltar para si, de modo que, como tentativa de sobrevivência, o Eu projeta no outro a punição pela culpa que carrega em si. Se, ainda, o Super-eu se constitui em conformidade com ideais incorporados das relações sociais, um afrouxamento das exigências normativas talvez fizesse emergir um Super-eu com menos acúmulo de agressividade a despejar nas vidas impassíveis de luto.

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BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 203.

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A implicação da melancolia frente à condição de vida precária, pp. 76-89 REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução de Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença / Martins Fontes, 1970. BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. BUTLER, judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. FOUCAULT, Michel. Direito de morte e poder sobre a vida. In: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017. FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In.: DREYFUS, H. e RABONOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In.: ______. Obras completas, Vol. 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 127-142. FREUD, Sigmund. O Eu e o Id. In.: ______. Obras completas, Vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 9-64.

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107

ESCATOLOGIA E DRAMA BARROCO EM WALTER BENJAMIN E ARIANO SUASSUNA José Valdo Barros Silva Júnior1

RESUMO: O objetivo deste artigo é explicitar a relação entre escatologia e Drama barroco a partir de uma aproximação entre Walter Benjamin e Ariano Suassuna. Apresentar-se-á as características básicas do significado de história natural barroca em Benjamin, para então estabelecer um diálogo com o sentido de messianismo no Romance da Pedra do Reino de Suassuna. Para isso, será seminal expor o conceito de melancolia atrelado à teoria da linguagem alegórica de Benjamin. Defender-se-á a ideia do caráter escatológico do Drama barroco sertanejo de Suassuna a partir de uma interpretação do sentido alegórico da morte da onça-Caetana presente na obra desse autor paraibano. PALAVRAS-CHAVE: Drama barroco. Escatologia. Messianismo. Morte. ABSTRACT: The purpose of this article is to explain the relationship between eschatology and Baroque from an approximation between Walter Benjamin and Ariano Suassuna. We will present the basic characteristics of the meaning of baroque natural history in Benjamin, and then establish a dialogue with a sense of messianism in Romance da Pedra do Reino. For this, it will be seminal to expose the concept of melancholy attached to Benjamin's allegorical language theory. The idea of the eschatological character of the Baroque of Suassuna will be defended from an interpretation of the allegorical sense of the death of the Caetanajaguar present in the work of this author from Paraíba. KEYWORDS: Baroque. Eschatology. Messianism. Death.

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Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Brasileiro, residente em Fortaleza-CE. E-mail: valdo.barros15@gmail.com

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 “A Sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. Só lhe pertence o que por você for decifrado. Beba o Fogo na taça de pedra dos Lajedos. Registre as malhas e o pelo fulvo do Jaguar, o pelo vermelho da Suçuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o Pássaro com sua flecha aurinegra e a Tocha incendiada das macambiras cor de sangue. Salve o que vai perecer: o Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o Heroico assassinado em segredo, o que foi marcado de estrelas — tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu. Celebre a raça de Reis escusos, com a Coroa pingando sangue; o Cavaleiro em sua Busca errante, a Dama com as mãos ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol malhado do Divino com seu Gavião de ouro. Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, você caminha no Inconcebível. Por isso, mesmo sem decifrá-lo, tem que cantar o enigma da Fronteira, a estranha região onde o sangue se queima aos olhos de fogo da Onça-Malhada do Divino. Faça isso, sob pena de morte! Mas sabendo, desde já, que é inútil. Quebre as cordas de prata da Viola: a Prisão já foi decretada! Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na Cadeia. Ergueram o Patíbulo com madeira nova e afiaram o gume do Machado. O Estigma permanece. O silêncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensanguentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para sempre destroçados.” (SUASSUNA)

1 História natural O Drama barroco não é uma mera forma literária e artística, como o Classicismo e o Romantismo, mas o índice mesmo de constituição do ser histórico do homem na Modernidade, cuja existência contraditória está implicada na concepção de vida como imanência e na visão da história como natureza. 2

2

Benjamin em um pequeno texto de sua juventude, ao tratar da distinção entre Drama barroco e Tragédia grega, afirma o seguinte em Trauerspiel e Tragédia, para salientar o caráter eminentemente histórico e não artístico do Drama barroco, que implicaria uma nova concepção do tempo histórico: “Talvez a profunda compreensão do trágico não deva partir da arte, mas da história. Ou, ao menos, há que se presumir que o trágico marca um limite do reino da arte, não menos que o do âmbito próprio da história. De fato, o

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 Segundo Walter Benjamin, em Origem do Drama Barroco Alemão, ele tem por conteúdo próprio a história enquanto grande palco teatral do mundo, no qual os acontecimentos se desdobram em um espetáculo lutuoso, cuja expressão alegórica não é outra coisa senão a história mundial do sofrimento em um cemitério de caveiras. Tal história está em tensão extremada com a questão da história da salvação, porque o caráter de imanência da vida barroca carece de um sentido último transcendente, encontrando-se, pois, tal vida imersa nas coisas mundanas arrastadas pela obsessão da ideia de catástrofe. A imanência do mundo é dotada de uma força peculiar que configura a trama desse palco teatral na urdidura do profundo estado de luto do homem no mundo tecido por crimes e calamidades. O espetáculo lutuoso do teatro do mundo de sofrimento histórico é ilusão lúdica que reflete a realidade como jogo, o qual pode reafirmar a ilusão desse espetáculo ou negá-la, dependendo, pois, da disposição do humor melancólico dos seus personagens, bem como de sua capacidade de ludibriar astutamente a facticidade catastrófica e ameaçadora da história natural3. Portanto, o teatro barroco do mundo está circunscrito à ordem da história natural, cujo caráter cego e desprovido de teleologia reduz seus personagens à mera condição de criatura sofredora sujeita ao destino da morte violenta inexorável, enquanto a forma natural da necessidade histórica. O destino é a cifra do fator do eterno retorno do sofrimento na ordem da história natural; e a morte é a prova extremada da impotência e do desamparo da criatura humana perante o destino, enquanto força elementar da natureza imanente ao processo histórico. O traço fundamental da história natural barroca consiste na experiência do transitório no teatro do mundo, cujo gesto de hesitação no agir decorre do aspecto efêmero e de ocaso do mundo de ruínas e de morte com o qual o homem se depara. Esse traço é tensionado internamente por uma contradição dialética entre a petrificação do tempo histórico em um eterno retorno mítico, que se cristaliza com rigidez de cadáver, e a interrupção do contínuo de sofrimento da história lutuosa do mundo, enquanto redenção possibilitadora de uma vida histórica verdadeira.4 Portanto, pode-se dizer que a história natural barroca é a construção da tempo da história percorre pontos determinados e sobressalentes de seu transcurso pelo tempo trágico, a saber, nas ações dos grandes indivíduos. Entre a grandeza histórica e a tragicidade existe, sem dúvida, uma conexão necessária que, por conseguinte, não se pode reduzi-las à identidade.” (BENJAMIN, 2007, 137-138, grifo do autor) 3 Para determinar a especificidade da ideia de história natural em relação ao mito, Benjamin faz as seguintes considerações no texto O Maior Monstro do Mundo, Os Ciúmes de Calderón e Herodes e Marienne de Hebbel, Observações sobre o Problema do Drama histórico: “O mito tem sentido por si mesmo em cada um de seus cerrados complexos de legenda, mas a história não. Daí que o modelo da arte (pois o objeto da mímeses é, sem dúvida, o modelo, não o exemplo) nunca seja a história, nem sequer no Drama histórico. Antes disso, o significado desta forma se poderia entender (com a brevidade que é necessária aqui) como a exposição da natureza que impregna as vicissitudes do histórico e que, finalmente, triunfa sobre elas. Então o resultado do Drama histórico é a natureza dos homens, ou melhor dito, a natureza das coisas”. (BENJAMIN, 2007, 253) 4 “O drama barroco tem como objeto e conteúdo próprio a história, como a época a compreendia. O conteúdo da tragédia é o mito, a saga pré-histórica, embora trabalhada por tendências atuais. Tanto o protagonista do drama barroco como o herói trágico têm uma condição principesca, mas no drama essa condição se destina a ilustrar a fragilidade das criaturas, mais visível nas de alta linhagem, enquanto na tragédia ela remete a um passado que efetivamente se articulava em torno da condição senhorial. A morte do herói trágico é um destino individual, um sacrifício pelo qual o herói quebra o destino demoníaco, anunciando a vitória sobre a ordem mítica dos deuses olímpicos. Ela é ao mesmo tempo uma expiação devida aos deuses, guardiães de um antigo direito, e a promessa de um novo estado de coisas, a antecipação de uma nova comunidade, ainda virtual: um sacrifício ao deus desconhecido. O herói prenuncia novos conteúdos, mas eles são desproporcionais à vida de um só homem, e por isso ele morre. No drama barroco, a morte é apenas a prova mais extrema da impotência e do desamparo da criatura. Não é um destino individual, mas da criatura humana. Não exprime

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 natureza como cenário fúnebre de sofrimento dos homens no mundo de perecimento e catástrofe. A natureza, enquanto história petrificada, é o registro de que a existência humana se despojou de todo significado último transcendente, pois não se sustenta mais na ideia de um ser eterno, fixo e imutável, enquanto fundamento do seu modo de ser no mundo. A história em tudo o que nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira. E porque não existe, nela, nenhuma liberdade simbólica de expressão, nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano, essa figura, de todas a mais sujeita à natureza, exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo. Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio. (BENJAMIN, 1984, 188, grifos nossos)

No interior do espetáculo lutuoso do mundo de sofrimento, os homens se encontram sob o poder das coisas, e suas ações evidenciam um mau-caratismo sem par, refletindo, pois, a sua rendição desesperada ante uma conjugação enigmática de constelações malignas do fatal. Com isso, evidencia-se uma fuga cega para uma natureza desprovida de graça – sendo esta uma das características peculiares do Drama barroco alemão. Já o Drama barroco espanhol, com Pedro Calderón de la Barca, segundo Benjamin, assume uma outra perspectiva, apresentando uma outra configuração à contradição entre o ocaso e a redenção no interior do palco lutuoso da história, cuja “representação em miniatura é a corte de um monarca que detém, em sua forma secularizada, o poder de redimir” (BENJAMIN, 1984, 104), sem renunciar à aspiração de atingir o cerne mesmo da existência humana na sua condição de criatura malograda. Os traços barrocos muito mais brilhantes e bem-sucedidos do Drama desse espanhol se devem a como ele articula a dimensão do Trauer (luto) com a dimensão do Spiel (jogo). Nas peças do Drama barroco de Calderón de la Barca, os seus heróis manipulam a todo instante a ordem do destino pelo virtuosismo implacável da reflexão, confrontando liminarmente, por um lado, a reflexividade terrena do homem lutuoso sobre sua condição de criatura sujeita à dor e ao sofrimento e, por outro lado, o poder hierárquico do príncipe, que também está situado no domínio da imanência da criação. Com isso, abre-se um espaço profano no qual a atividade histórica se confunde com as maquinações depravadas, as conspirações infames contra um monarca petrificado no poder, imerso nos cálculos da intriga política. O espetáculo lutuoso de grandeza e de queda dos reis não aparece, no escopo do Drama barroco espanhol, como resultado da moralidade deles, mas como algo “natural” do processo histórico, com o qual teriam de saber jogar, astuciosamente, para se manter no poder, mesmo tendo ciência de sua condição de

nenhum desafio, nem anuncia uma ordem nova, porque qualquer transcendência é alheia ao Barroco, e sua utopia é a utopia conservadora da Contra-Reforma. Na tragédia, o tempo é linear: o herói rompe o destino mítico, através da orgulhosa aceitação da culpa, e com isso a maldição se extingue. No drama barroco, o destino é onipotente, e a culpa é a sujeição da vida da criatura à ordem da natureza. Movido pelo destino, o drama barroco não tem tempo, ou está sujeito ao tempo do eterno retorno.” (ROUANET, 1984, 28-29)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 criatura humana mundana.5 O jogo lúdico é modo de suportar o sofrimento lutuoso da existência dilacerada pelos infortúnios do destino no interior da histórica natural. Há uma conexão íntima entre jogo e reflexão em Calderón, como explicita Benjamin neste texto: Ela [a reflexão – V.B.] é para o drama de Calderón o que é a voluta para a arquitetura da época. Ela se repete até o infinito, e diminui até o incomensurável o círculo que ela circunscreve. Os dois lados da reflexão são igualmente essenciais: a miniaturização da realidade e a introdução no espaço fechado, finito, de um destino profano, de um pensamento reflexivo infinito. Pois podemos dizer, a título de antecipação, que o mundo dos dramas de destino é um mundo fechado. Isso é particularmente verdade em Calderón, cujo drama heródico, El Mayor Monstruo del Mundo, é considerado o primeiro drama de destino da literatura mundial. Era o mundo sublunar no sentido forte, o mundo da criatura sofredora ou magnífica, no qual as leis do destino deveriam impor-se, de forma ao mesmo tempo intencional e surpreendente, ad maiorem Dei gloriam e para deslumbramento dos espectadores. (BENJAMIN, 1984, 106-107)

Ariano Suassuna foi profundamente influenciado por Calderón de la Barca, mas criou um estilo de Drama barroco próprio, fundido ao fogo da cultura do Nordeste brasileiro do romanceiro popular. A partir disso, faz-se necessária uma análise desviada da estrutura do Drama barroco exposta por Benjamin pelo fogo poético transfigurador do estilo de Suassuna, expresso no Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, de 1971, para vermos se o Drama barroco espanhol de Calderón é o mais acabado mesmo. O aspecto fundamental será apreender como se dá a articulação peculiar entre os fatores do Trauer e do Spiel no Drama barroco sertanejo de Suassuna, para então se poder caracterizar sua determinação específica. 2 A estrutura contraditória do Drama barroco A análise benjaminiana da variedade de Dramas opera isolando os fenômenos em seus elementos fundamentais, destacando-os em seus aspectos extremos de oposição contraditória. Benjamin tem uma clara consciência do caráter abismal do espírito barroco, que produz uma sensação, ao mesmo tempo, de vertigem e de fascínio oriunda da “visão de um universo espiritual dominado pelas contradições” (BENJAMIN, 1984, 79). Portanto, segundo ele, uma teoria do Drama barroco tem de possuir uma “orientação necessária para os extremos” (BENJAMIN, 1984, 81), buscando, assim, recolher os elementos em extrema oposição sob uma unidade antagônica, para compor a representação do Drama como ideia. Desta feita, o objeto do Drama ascende ao mundo das ideias e passa a ter uma interpretação objetiva em um ordenamento virtual. Ora, o caráter contraditório e tenso do Barroco6 não escapou à compreensão de Suassuna, pois é esse caráter mesmo que tece a trama do desenvolvimento de sua obra, na qual o seu reino literário é marcado pela

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“Porém, o Drama de Calderón sobre a história de Herodes não nos oferece, aqui, em nenhum caso, o desdobramento moral de um mítico acontecimento na tragédia, mas a moderna exposição do que é o transcurso natural do destino também no moderno Trauerspiel. Entretanto, precisamente como os ciúmes monstruosos de Tetrarca, agora exonerados de toda problemática moral (visto que o destino já os havia condenado), entram como adereço no enredo, o amor toma espaço para o desdobro de sua magnificência. Na natureza do amor, a natureza dos ciúmes se submete ao príncipe. E, embora aquela seja monstruosa, este último nada tem de monstruoso. Tão somente Calderón logrou apresentar juntos o amor mais profundo e os ciúmes mais exaltados.” (BENJAMIN, 2007, 269) 6 A índole dialética e contraditória do Barroco, pautada pela união de contrários extremados, é anunciada por Suassuna neste texto

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 dor do sopro do infortúnio e pelo riso violento e desembandeirado no interior do sertão, onde sopram duas ventanias guerreiras opostas e extremadas: o vento cariri, frio e áspero, e o vento espinhara, quente e abrasador. Suassuna expressa a tensão contraditória extremada nessa passagem lapidar que trata da configuração do seu sonhado reino de castelo sertanejo marcado pelo traço da história natural: Seria um Reino literário, poderoso e sertanejo, um Marco, uma Obra cheia de estradas empoeiradas, caatingas e tabuleiros espinhosos, serras e serrotes pedreguentos, cruzada por Vaqueiros e Cangaceiros, que disputavam belas mulheres, montados a cavalo e vestidos de armaduras de couro. Um Reino varrido a cada instante pelo sopro sangrento do infortúnio, dos amores desventurados, poéticos e sensuais, e, ao mesmo tempo, pelo riso violento e desembandeirado, pelo pipocar dos rifles estralando guerras, vinditas e emboscadas, ao tropel dos cascos de cavalo, tudo isso batido pelas duas ventanias guerreiras do Sertão: o cariri, vento frio e áspero das noites de serra, e o espinhara, o vento queimoso e abrasador das tardes incendiadas. Nas serras, nas caatingas e nas estradas, apareceriam as partes cangaceiras e bandeirosas da história, guardando-se as partes de galhofa e estradeirice para os pátios, cozinhas e veredas, e as partes de amor e safadeza para os quartos e camarinhas do Castelo, que era o Marco central do Reino inteiro. (SUASSUNA, 2012a, 115 e 116, grifos nossos)

Pode-se dizer, pois, que uma interpretação “objetiva” da organização virtual da obra suassuniana, Romance d’A Pedra do Reino, passa pela compreensão fundamental do Drama barroco sertanejo como traço constitutivo da estrutura complexa da mesma, servindo-nos, com isso, de fio condutor à apreensão do seu sentido determinante. Esta compreensão fornecerá uma conceituação sobre a origem da história natural apontada por Benjamin em Origem do Drama Barroco Alemão, cujo núcleo é formado por uma tensão dialética entre a destruição crítica da história natural e a expectativa de redenção messiânica. O tratamento dessa contradição dialética implica a inclusão da perspectiva de significação alegórica do poeta Quaderna, personagem narrador dessa obra de Suassuna, sobre o enigma do sertão-mundo enquanto palco lutuoso da história natural. O teor dos temas narrados pelo Drama barroco, segundo Benjamin, são “o arbítrio dos reis, assassínios, desesperos, infanticídios e parricídios, incêndios, incestos, guerras e insurreições, lamentos, gemidos e outros semelhantes” (BENJAMIN, 1984, 86). Isto se deve ao fato de o elemento da catástrofe ser o fator imanente mais próprio do objeto autêntico do Drama barroco, a saber, a vida histórica natural, no interior da qual o principal expoente é o soberano, enquanto representante da história que “segura em suas mãos o acontecimento histórico, como se fosse um cetro” (BENJAMIN, 1984, 88). O rei assume, portanto, um papel central no Drama barroco, porque ele é o protagonista que fará frente ao destino, “para corporificar um passado imemorial, como chave para uma comunidade nacional viva” (BENJAMIN, 1984, 86). Quem reina, levando-se em conta o aspecto de imanência do mundo profano da história natural, exerce poderes ditatoriais no estado de exceção7 da realidade contraditória barroca. Não é por acaso, pois, a recorrente também: “O Barroco ibérico, ou, melhor ainda, o brasileiro, principalmente o Barroco nordestino, talvez mais sóbrio de todos, ainda que permanecendo com a sua característica geral, dialética e contraditória, de união de contrários, de unidade de contrastantes, de fusão de elementos clássicos e românticos, é, em todo o Barroco, a primeira manifestação romântica de dissolução do clássico”. (SUASSUNA, 2012b, 126) 7 Note-se que uma conceituação do Drama barroco está intimamente ligada a uma teoria do estado de exceção, visto que a própria

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 “comparação entre o Príncipe e o sol” (BENJAMIN, 1984, 91), porque é em torno do soberano que gravita toda a constelação de acontecimentos da história natural, marcada essencialmente pelo sofrimento e pela possibilidade real de uma catástrofe final. Por sua vez, o mundo mítico do sertão de Suassuna é também concebido como um mundo barroco dramático, e sua narrativa histórica é eivada de desgraças e infortúnios, já que o que vigora na história mundial e na brasileira são o sofrimento e a injustiça. A face infernal do sertão-mundo suassuniano no palco lutuoso do teatro da história natural é apresentada pelo Corregedor – que, no Romance d’A Pedra do Reino, é a figura que faz a acareação judicial do processo contra Quaderna – nos seguintes termos: O destino dos gênios é esse mesmo, Dom Pedro Dinis Quaderna! A História está cheia da narração das desgraças deles! São, todos, uns infortunados! Principalmente os que carregam a História de suas pátrias no sangue e nos ombros, como uma cruz. Aliás, a própria História não passa de uma narrativa sombria, enigmática e sangrenta, para usar as palavras que o senhor usou em relação à morte do velho Rei e à vida de seu sobrinho Sinésio, o Rapazdo-Cavalo-Branco! Passe uma vista pela História do Brasil: são massacres, infortúnios, incestos, morticínios, guerras, calamidades e desgraças de todo tipo! Toda coroa é manchada de sangue, como o senhor mesmo disse. (SUASSUNA, 2012a, 736 e 737, grifos nossos)

Portanto, a figura do rei, que também em Suassuna é identificada com a representação do sol, mesmo detendo um poder soberano extraordinário, é uma criatura humana sujeita à força da imanência mundana da ordem do destino trágico da morte violenta8. Há, pois, uma tensão dialética contraditória e, por isso mesmo, barroca na figura do rei, visto que ele é, ao mesmo tempo, o responsável pela resolução do estado de exceção pelo exercício de seu poder soberano ditatorial anômico e também incapaz de decidir sobre a restauração da ordem jurídica, por causa da sua condição de criatura mundana suscetível ao destino trágico da execução pelos seus próprios súditos, não podendo, então, instaurar uma nova ordem jurídica estável. Com isso, o tirano se apresenta na cena teatral do mundo lutuoso do Barroco como um mártir, e o mártir como um tirano. A representação alegórica do rei como o sol, de natureza profundamente contraditória com os sinais da masculinidade e da feminilidade da tomada de decisão, foi mostrada por Suassuna nesta xilogravura no Romance d'A Pedra do Reino:

vida histórica natural é o cerne mesmo do teatro do mundo lutuoso de sofrimento, cujo elemento determinante é a imanência da catástrofe no tempo histórico barroco sob a ordem do destino. O estado de exceção é o tópos onde irrompe a possibilidade real do poder anômico do soberano de suspensão da vigência do direito para intervir no acontecimento histórico, tensionado pela contradição dialética extrema entre imanência e transcendência de sua ação em relação à facticidade inexorável da realidade barroca. O estado de exceção só pode se tornar efetivo pela contradição dialética e barroca entre o soberano e o Messias. 8 Como diz os versos deste Romance popular nordestino de João Melquíades, o cantador da Borborema, citados por Suassuna: “Neste Planeta terrestre / o Homem não se domina: / tem que viver sob o jugo / da Providência Divina / Foi feito do pó da terra / no pó da terra termina! // Assim, eu mostro a estrada / no Passado e do Presente / Estrada onde morrem Reis / molhados de Sangue quente! / Hoje, tornados em Pó, / resta a Memória, somente!” (SUASSUNA, 2012a, 101) Quanto a essa condição de criatura do soberano e, por conseguinte, sujeito à morte violenta pela imanência da ordem profana da história natural de sofrimento e infortúnio, Benjamin escreve o seguinte: “O estado da criação é o solo no qual se desenvolve o drama alemão, e ele influencia inequivocamente o próprio soberano. Por mais alto que ele paire sobre o súdito e sobre o Estado, sua autoridade está incluída na Criação, ele é o senhor das criaturas, mas permanece ele próprio uma criatura” (BENJAMIN, 1984, 108).

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Outro componente fundamental à estrutura básica do Drama barroco é a figura do cortesão. Esse tipo curioso da galeria barroca aparece como intrigante e como santo. Como intrigante, o cortesão é o organizador do enredo do Drama barroco em um continuum espacial, no qual se desenrolam as suas maquinações infames. O intrigante é um exímio conhecedor da lógica da política, de como ela é determinada pelas paixões humanas mais viscerais. A ação política é perpassada por motivações afetivas de fio a pavio. Visto que o intrigante sabe bem manipular as paixões humanas, ele pode bem assessorar o rei, em sua tarefa de governar a organização social e política contra o advento da catástrofe. Porém, o saber pragmático do intrigante é permeado de melancolia, porque é marcado por uma grande desilusão em relação aos homens e ao curso do mundo, sendo-lhe, então, ela uma profunda fonte de sofrimento. A intriga maneja o ponteiro dos segundos, impondo seu ritmo aos acontecimentos políticos, que com ele se domesticam e estabilizam. A sabedoria desiludida do cortesão é para ele uma profunda fonte de sofrimento, e pode tornar-se perigosa para os outros, pelo uso que ele faz desse saber. Nessa ótica, a figura do cortesão assume seus traços mais sombrios. Só quem examina a vida do cortesão pode perceber por que a corte é o cenário por excelência do drama barroco. (BENJAMIN, 1984, 119, grifos nossos)

Existe um tom sombrio na intriga que acentua os traços infernais do cortesão. O choque entre o “ideal do perfeito homem do mundo” e sua índole real de “hipócrita, sem honra e incitador de crimes” produz uma acerba e terrificante sensação de luto nesse tipo peculiar do Drama barroco. A sua peculiaridade diz respeito ao caráter de santidade, embora incorporado ficticiamente, assumida por ele na sua condição de enlutado, mas que por isso mesmo “abre o caminho para o grande compromisso com o mundo que caracteriza o cortesão ideal”. Contudo, em relação ao cortesão, por que “os dramaturgos – se indaga Benjamin – não se atreveram a explorar em um só personagem a profundeza vertiginosa dessa antítese”? Será que “os dois rostos do cortesão”, como intrigante e como servidor leal ao rei, são suficientes para dar conta da “dialética, muito barroca, de sua posição”? Será mesmo a corte o cenário por excelência do Drama barroco? (Cf.

9 Cf. SUASSUNA,

2012a, 159.

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 BENJAMIN, 1984, 120 e 121) Vejamos mais de perto como esses questionamentos são tratados a partir da análise do intrigante na obra de Suassuna sob a forma do sertanejo pícaro ou quengo. No romance dramático e enigmático de crime e sangue de Suassuna, o próprio sertão é o grande palco do mundo lutuoso da história natural, propício ao desenrolar dos acontecimentos decisivos da trama do Drama barroco sertanejo. Ora, o sertanejo ou o homem do sertão é um ser já “familiarizado com a ruína”10, pois acostumado a viver em uma “terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol embraseado” (SUASSUNA, 2012a, 32), é por isso mesmo capaz de encarar os perigos e desafios enigmáticos de seu desertão. O sertão é o palco lutuoso e desmedido do mundo no qual o sertanejo põe para si mesmo a questão existencial fundamental, ao mesmo tempo dilaceradora e aporética, sobre o seu Ser-tão, colocando em jogo o problema crucial de seu ocaso (morte) e de sua redenção (felicidade). É condition sine qua non à existência do homem que ele decifre o grande segredo de seu Ser-tão e lhe confira um sentido, porque é desse de-sertão ameaçador que irrompe demônios, anjos, deuses apavorantes e grandiosos, que povoam as profundezas dessa terra-de-ninguém abrasadora e calcinante no rio da desordem abismal e do sofrimento. Sob esse aspecto, o sertão parece com uma grande cadeia na qual os homens se encontram a ferros e na solidão; ele é, por conta disso, terra desolada que mais parece um cemitério de ruínas de uma cidade de pedra incendiada.11 O próprio Suassuna profere uma definição precisa do sertão com sua verve poética áspera, pela voz barroca de Quaderna, nesta passagem fenomenal: O Sertão é bruto, despojado e pobre, mas, para mim, é exatamente isso o que faz dele o Reino! É exatamente isso o que me dá coragem para enfrentar o sofrimento e a degradação que me despedaça e mancha todos os momentos de minha vida – ao ver a fome, a penúria, a feiura e a injustiça, ao ter o pressentimento da morte, da tristeza e da insanidade, em mim e nos outros. O que me dá ainda coragem é poder esperar pelo dia em que minha vida se identificará – pelo Deserto ou pela Morte, não sei! – com essa áspera Terra, pedregosa, crestada pelo Sol do divino, misericordioso e cruel, pela faca da poeira e pelo chicote da ventania, e onde galopa, em cavalos magros, facínoras bronzeados, sujos e maltrapilhos – esses que são os Heróis da minha Epopeia pobre e extraviada. (SUASSUNA, 1977a, 65)

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“O que realmente interessa sublinhar para uma correta introdução à obra de Ariano Suassuna é o fato especial de que ele é um homem do sertão, um sertanejo […] dessa zona desértica, triângulo de fogo solar e fome […]. No sertão, o que salta aos olhos é a sua virilidade […]. E o homem desta terra, o sertanejo, é sobretudo um homem familiarizado com a ruína. […] É terra brava, que nos faz pensar, insistimos, numa Castela ideal, por muitas coisas além da paisagem. Por sua fome, que mantém ágeis e combativos os corpos e aguça o engenho em picardias sutis. Por seu sonho de água e mar, cujo frescor e riqueza saem a procurar os homens num êxodo eterno. Pelo ardente misticismo que às vezes incende de milagres estas soledades imensas, onde imperou a alucinação sangrenta de Antônio Conselheiro ou a bondade carismática do Padre Cícero do Juazeiro, padrinho do sertão. […] Por suas sangrentas defesas de honra e de palavra empenhada. E sobretudo pela viva tradição jogralesca que percorre suas cidades poeirentas.” (LÓPEZ, Martínez Enrique, apud SUASSUNA, 2012b, 128 e 129, grifos nossos) 11 “Sr. Corregedor, de fato, é uma cegueira muito estranha, essa que me assaltou os olhos, naquele dia. A meu ver, ela é parenta próxima da epilepsia genial que também me atacou, como lhe disse. Deixaram-me, as duas, numa espécie de vidência-penumbrosa, na qual o Mundo me aparece como um Sertão, um Desertão, o De-Sertão de que falavam os geniais escritores Manoel de Oliveira Lima e Afrânio Peixoto, repetindo velhos cronistas brasileiros do tempo dos Conquistadores, segundo me contaram Clemente e Samuel. É aí que o Sertão me aparece como o Reino da Pedra Fina do qual já lhe falei. Há pouco, quando eu vinha chegando aqui para a Cadeia, tive essa ideia de que o próprio Sertão era uma Cadeia enorme, cercada de pedras e sombras, de lajedos fantásticos e solitários, parecidos com Lagartos venenosos, cinzentos e empoeirados que dormissem numa Terra Desolada. Ou então parecidos com as ruínas, os esqueletos gigantescos e queimados de uma Cidade de pedra, incendiada.” (SUASSUNA, 2012a, 573, grifos nossos)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 Quaderna é um sertanejo12 que representa a personagem principal do Romance d'A Pedra do Reino. Ele joga ludicamente com a indômita fera-terra, utilizando-se de várias máscaras de caráter para desempenhar seu papel trágico e cômico no interior do palco teatral do mundo mítico e lutuoso do sertão. Encarnando ora a figura do rei, ora a do profeta, ora a do palhaço, Quaderna busca, na sua travessia pelas encruzilhadas de fogo das caatingas dessa terra desolada e triste, decifrar o grande enigma do sertãomundo13, em que a sua estranha desventura de vida e de morte está profundamente implicada, movido pelo intenso humor da melancolia e pelo poder subversor do riso. Portanto, Quaderna é uma personagem-chave para se compreender a profundeza vertiginosa da antítese que constitui o Drama barroco14, visto que o luto (Trauer) e o lúdico (Spiel) são os modos do Ser-tão do sertanejo impulsionado pelas potências da melancolia e do riso15 que irrompem do sangue trágico e cômico desse homem que habita essa áspera terra, pedregosa e crestada pelo sol do divino. Portanto, em seu jogo lutuoso e lúdico de combate contra o sofrimento e a penúria do sertão, fera enigmática e perigosa, terra-palco de desafios, o sertanejo constitui a sua existência pela experiência de vida e de morte em busca de decifrar o enigma do Ser-tão, para decidir sobre a pedra do seu destino fatídico ou talvez de sua redenção. 3 Melancolia e linguagem alegórica A melancolia é um aspecto fundamental da teoria do luto desenvolvida por Benjamin ao tratar do Drama barroco.16 A situação de enlutamento dos homens é peculiar ao tempo moderno do grande palco da história natural, pois diz respeito, a princípio, à crença sombria de resignação deles diante do poder do destino que, com isso, provocou a desvalorização das ações humanas e o esvaziamento do sentido do mundo, o qual não representa nada mais que um campo de ruínas. Porém, “a própria vida protesta contra isso” (BENJAMIN, 1984, p. 162), ao sentir uma profunda sensação de terror pela ideia da morte. A morte é o alvo para o qual apontam os acontecimentos históricos determinados pelo destino, o qual, segundo Benjamin, é “a enteléquia

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“Minha vida, cinzenta, feia e mesquinha, de menino sertanejo reduzido à pobreza e à dependência pela ruína da fazenda do Pai, enchia-se dos galopes, das cores e bandeiras das Cavalhadas, dos heroísmos e cavalarias dos folhetos. Assim, quando agora me acontecia evocar os acontecimentos da Pedra do Reino, o que eu via eram os Pereiras, como uma espécie de Cavaleiros Cristãos do Cordão Azul, assediando e assaltando o Reino criado e defendido pelos Reis Mouros do Cordão Encarnado da família Quaderna. Sonhava em me tornar, também, um dia, Rei e Cavaleiro, como meu bisavô.” (SUASSUNA, 2012a, 100) 13 “O Sertão, como eu disse, é o mundo, que o homem tem que decifrar, para lhe dar aquilo que ele não tem por si só, um sentido. É a esfinge a resolver, a Onça a domar, mesmo sabendo que essa fera, bela como seja, é hostil e feroz e terminará por nos despedaçar com suas garras.” (SUASSUNA, 2012b, 144-145) 14 “Diga-se de passagem que é por isso que todo escritor do Barroco tem uma tendência para o humorismo épico: o humorismo é a categoria do risível que une o riso à mais amarga melancolia – contradição já por si dialética e barroca e que, portanto, teria que seduzir e tentar Cervantes ou Shakespeare, presente que está tanto no Dom Quixote quanto no Hamlet.” (SUASSUNA, 2012b, 126) 15 O riso é, aí, uma potência profanadora contra o poder entranhado do mundo do sertão, pela qual o pícaro Quaderna busca suportar a sua dor abismal e enfrentar o jogo lutuoso e belicoso da vida sertaneja barroca. O pícaro Quaderna se serve do riso para travestir, mesmo que ilusoriamente, a visão trágica do mundo, buscando desesperadamente anular as forças horrendas da história natural, as quais determinam a situação absurda do mundo. O riso tem uma competência transfiguradora das deformações do mundo e do homem. Quanto à deformação do personagem Quaderna, Suassuna afirma o seguinte: “Meu personagem Quaderna, o Decifrador, é deformado, entre outras coisas, pela visão torcida e doentiamente exacerbada do Sexo, pela violência da Revolução, pelo opressivo e sufocante terror do Estado e pela corrupção moral ligada ao Dinheiro. A sociedade do século XX deifica três ídolos – Falos, Moloc e Mamon – e as marcas de suas deformações e dessa idolatria são perfeitamente visíveis em Quaderna.” (SUASSUNA, 2012b, 225) 16 Para se ter uma boa compreensão do significado da melancolia em Walter Benjamin, cf. LAGES, 2007, 101-159.

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 do acontecimento na esfera da culpa” (BENJAMIN, 1984, 153).17 Contudo, a teoria do luto tem de tratar como se dá o olhar do melancólico sobre esse mundo desprovido de sentido, porque esse olhar é determinado pela disposição de espírito apaixonada de reanimar, ao seu modo, “o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse mundo uma satisfação enigmática” (BENJAMIN, 1984, 162). O melancólico é representado, paradigmaticamente, pelo príncipe, o qual é tomado, constantemente, por sonhos terríveis que o apavoram com fantasmagorias de destronações, incêndios, perda da coroa, sofrimento e morte, visto que “a imagem da corte não é muito diferente da imagem do inferno, que de resto foi chamado o lugar da eterna tristeza” (BENJAMIN, 1984, 167 e 168). A melancolia também é o protótipo do gênio, que é impelido por ela aos mais sublimes feitos antes de mergulhar na loucura. Não por acaso, o dom divinatório é a principal manifestação da genialidade do melancólico que, com seus sonhos proféticos, é capaz de anunciar o que está por vir. Portanto, “a tristeza absoluta é prenunciadora de todas as catástrofes futuras” (BENJAMIN, 1984, 170). O melancólico é regido pela influência astral de Saturno, planeta este que investe a alma numa antítese demoníaca entre, por um lado, a preguiça e a apatia e, por outro, a força da espirituosidade e da contemplação. Ora, essa antítese se expressa em Hamlet, cujas ações vacilantes de comportamento de enlutado se deve ao fato de ele se situar no limiar entre dois mundos. A sua condição é essencialmente ambivalente, porque Hamlet é, ao mesmo tempo, criatura sujeita à natureza e soberano, cuja tarefa é subjugar a natureza. “Em particular, a indecisão do Príncipe não é outra coisa que a acedia. Saturno torna os homens 'apáticos, indecisos e vagarosos'. O tirano é destruído pela inércia do coração.” (BENJAMIN, 1984, 178) Entretanto, o saber do melancólico, pela influência saturnina, provém dos abismos, fazendo com que ele lance seu olhar às profundezas do mundo das coisas, para lhe dar uma forma alegórica. A linguagem alegórica de expressão do saber do melancólico18 se origina da vinculação da significação com a morte, e não com a vida, visto que “quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte” (BENJAMIN, 1984, 188). Tal linguagem lida jocosamente com o choque extremo de forças opostas entre si, em prol da criação de imagens-palavras sempre renováveis, retiradas do abismo existente entre expressão e significação, porque a alegoria (alla-agorein) é uma forma de linguagem singular que sempre diz algo outro do que aquilo que uma

17 “Melhor

dito, o núcleo do conceito de destino é a convicção de que só a culpa (que neste contexto sempre é uma culpa da condição de criatura, como o é o pecado original), e não um erro moral, faz da causalidade o instrumento de um destino que avança de maneira inconcebível. Destino é a enteléquia de um acontecer em cujo centro se lança a personagem culpável que, porém, fora do âmbito da culpa vem a perder já toda a sua força.” (BENJAMIN, 2007, 270, grifos nossos) 18 “O homem barroco – o melancólico na medicina clássica – é aquele que tem o poder de penetrar no objeto até que ele se revele e até a morte do objeto, que coincide com essa revelação. ‘O objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, e com isso sua vida se esvai, e assume o aspecto da morte.’ O melancólico extrai o objeto de seu contexto, verruma-se incansavelmente, esvai-o de sua significação própria, mata-o e o ressuscita, no momento em que o investe de novas significações. Arrancado ao seu solo original, em que ele era história, o objeto se mineraliza, transformando-se em natureza – tíbia ou pedra – e nessa mineralização, produzida por esse olhar de medusa do melancólico, o objeto acede a uma nova vida. O orgânico assume a rigidez do inorgânico. A morte usurpa os direitos da vida. O mundo se pulveriza em fragmentos, cada um dos quais pode ser investido do poder de significar. E nisto consiste sua redenção.” (ROUANET, 2009, 64)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 suposta intenção visa. Para o alegorista não existe unidade entre ser e palavra, como pensa a linguagem simbólica, e é por isso que “a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o traço fundamental da alegoria” (BENJAMIN, 1984, 199). A criação alegórica tem, por conta disso, um aspecto arbitrário, que se constitui na fuga constante de um sentido último, percorrendo então os caminhos abismais do terreno e transitório, com o sentimento de tristeza (Trauer) pela perda de uma referência última e definitiva pela qual se guiar nesse processo. Entretanto, com isso, fortalece-se a capacidade importante de jogar (Spiel) com a ressignificação do mundo das coisas pela utilização de palavras-imagens, a fim de compensar, de modo sempre precário, a perda do objeto último de seu desejo, inventando, pois, novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros. “A alegoria é o único divertimento, de resto muito intenso, que o melancólico se permite” (BENJAMIN, 1984, 207).19 Além da arbitrariedade, a alegoria tem outro aspecto relevante: a historicidade.20 A grandeza da alegoria consiste no fato de a sua criação artística se abrir à negatividade da história e da morte, ao absorver a sua existência real no torvelinho do tempo histórico, pela sua condição de finitude sujeita ao arbitrário. Cai por terra, dessa forma, a concepção da arte como ideal de beleza e de reconciliação. Há, portanto, na visão alegórica de expressão artística barroca do melancólico, uma negação do ideal clássico da bela aparência do espírito na sua forma imediata sensível, em que a beleza da obra de arte remeteria à harmonia orgânica da natureza de modo supratemporal. O estado de exceção se instala também no domínio da arte. A criação alegórica do gênio de Suassuna sob a forma de personagens que representam o bem e o mal, que vigora na narrativa de mistério do ciclo romanesco popular dos folhetins sobre o religioso e as moralidades, não tem um teor moral em si mesmo em relação a tais personagens que encarnam, alegoricamente, o mundo, o tempo, o diabo e Deus, em suma, o Ser-tão. Sob esse prisma invertido, os fatos narrados são acontecimentos fortuitos e fatídicos que independem da mera vontade moral das personagens, porque dizem respeito ao modo de ser barroco da realidade na qual os mesmos estão inseridos, envoltos, portanto, pela força imanente do conteúdo histórico-natural do Ser-tão. 4 O caráter escatológico do Barroco

19 “A melancolia hebraica possui, como toda manifestação alegórica, matizes diversos, fundamental é que, ao menos na forte tradição

veiculada pelo hassidismo, ela possa ser combatida por meio da busca da alegria e da libertação, na expectativa da vinda futura do Messias. Mas a experiência da alegria não se chega senão por meio de sua contrapartida dolorosa, a angústia e o sofrimento […]. A melancolia hebraica está pois ligada a um fato fundamental: segundo o relato bíblico, Deus alternativamente revela-se e oculta-se, é simultaneamente presença e ausência, constituindo-se na sua dimensão processual de seu aparecer num determinado momento histórico.” (LAGES, 2007, 118-119, grifo da autora) 20 Jeanne Marie GAGNEBIN explicitou com bastante propriedade os traços essenciais da linguagem alegórica do Drama Barroco em Walter Benjamin, e afirma o seguinte: “Lembrávamos que a alegoria tinha sempre sido criada em razão da sua historicidade e do seu caráter arbitrário. Com efeito, estas duas propriedades constituem, segundo Benjamin, sua especificidade, mas também explicam sua grandeza, sob a condição de que se abandone uma definição exclusiva da arte como ideal de beleza e de reconciliação. A doutrina benjaminiana está, neste sentido, muito próxima das considerações de Hegel a respeito da arte romântica cristã, superior espiritualmente ao ideal clássico da ‘bela aparência do espírito na sua forma imediata […] sensível’, uma arte que se abre para a negatividade e para a morte e que quer ‘absorver’ a ‘existência real na sua deficiência de existência finita’”. (GAGNEBIN, 1999, 36)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 Entretanto, no contexto barroco da realidade singular, a alegoria artística armorial21 de Suassuna é a forma de transfiguração do mundo enlutado das coisas desprovidas de sentido pelo fogo ressignificador de sua linguagem poética, a fim de decifrar o grande segredo da vida, para com isso se unir em um átimo do tempo-de-agora, pela experiência da morte, com o “sangue do divino”. No átimo desse tempo-de-agora, talvez a existência do seu Ser-tão tenha entrado no ritmo do reino sagrado-profano da redenção, que não é puramente sagrado nem meramente profano. Sobre o caráter sagrado-profano dessa experiência da morte, Suassuna afirma o seguinte: Somente o fato de essa morte possuir tal significado no meu mundo particular, no meu mundo doido, pessoal e arbitrário de um homem só, dá-lhe importância para qualquer coisa. Todos nós, Sr. Corregedor, repetimos a mesma vida, a mesma áspera e estranha desventura de Vida e de Morte. Todos nós sonhamos em nos unir pela Morte com o sangue do Divino, superando os Demônios e tornando-nos iguais a Deus. Aqui no Sertão, a Morte é uma mulher e, desde menino, foi nessas encruzilhadas de fogo que eu vivi, atraído e fascinado: a Vida e a Morte, a Mulher e a Sina; Deus e o Demônio; o Mundo e a Cinza. (SUASSUNA, 1977a, 87)

A escatologia do Drama barroco sertanejo de Suassuna está intimamente conectada com o seu messianismo castanho22, expresso na personagem do rapaz-do-cavalo-branco (Sinésio), que ressurge, segundo o enredo da obra, no estalar de um tempo trágico no qual se consumará um grande acontecimento epocal. O rapaz-do-cavalo-branco representa, na constelação messiânica da alegoria de Suassuna, “o filho mais moço do nosso Rei Degolado, Dom Pedro Sebastião! É nosso Prinspe Alumioso do Cavalo Branco, que voltou ressuscitado, para fazer a desgraça dos ricos e a felicidade dos pobres aqui do Sertão!” (SUASSUNA, 2012a, 587). Não à toa, o contexto no qual o rapaz-do-cavalo-branco volta ressurreto é um sábado à véspera do dia de Pentecostes, depois de ter sido raptado, morto e ressuscitado. Segundo Quaderna afirma no seu inquérito ao Corregedor, o povo acreditava no retorno desse Prinspe Alumioso para chefiar uma revolução sertaneja. Ora, Sinésio concentrava em torno dele, durante todos aqueles anos, as esperanças de justiça da ralé sertaneja, como o senhor chamou a pouco. O Povo nunca perdera a fé na sua volta, quando ele, ressurreto, realizaria a Restauração, ou instauração de não sei que Reino, um Reino sertanejo no qual os proprietários seriam devorados por dragões e todos os Pobres, aleijados, cegos, infelizes e doentes, ficariam de repente poderosos, perfeitos, venturosos, belos e imortais. (SUASSUNA, 2012a, 422)

Em Fragmento Teológico-político, Benjamin afirma que “o Messias mesmo é quem, sem dúvida, completa todo acontecer histórico, e isto no sentido de que é ele quem redime”. A ordem do profano, no interior da história natural, não pode se fundar na ideia do reino de Deus, porque “o reino de Deus não é meta, mas termo”. Não existe um télos no curso do devir histórico dos acontecimentos. “A ordem do profano tem, 21 O

Armorial é uma expressão artística brasileira que tem por principal fonte inspiradora o universo popular do Nordeste; ele é um estilo que engendra o entrelaçamento dos folhetos do Romanceiro popular da literatura de cordel, da música e da xilogravura com os espetáculos dramáticos populares. 22 “Há em mim uma visão trágica e pessimista do mundo e do homem – o que só não me leva ao desespero porque eu me proponho à modificação da realidade, entre outras coisas pelo messianismo castanho, político e mítico da Rainha do Meio-Dia.” (SUASSUNA, 1977b, 183, grifos nossos)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 por conseguinte, que se endereçar à ideia de felicidade”, pois, assim, pode-se promover a chegada do reino messiânico. Embora, “tudo o que é terreno aspire à sua própria dissolução”, a restitutio in integrum da ordem profana tem de reconhecer, para além do seu traço histórico de sofrimento e infelicidade, o ritmo messiânico da natureza de busca da felicidade, por conta de “sua eterna e total transitoriedade”. (Cf. BENJAMIN, 2007, 206-207) Contudo, há uma oposição liminar entre a concepção de Benjamin e a de Suassuna sobre o caráter escatológico ou não do Barroco, no qual está inscrito o problema messiânico, porque a consumação de todo acontecer histórico pelo Messias implica um eschaton, no qual ocorre a interrupção do contínuo de sofrimento do ser humano na história natural do mundo de espetáculo lutuoso. Nesta passagem muito importante da Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin escreve o seguinte: No pensamento teológico-jurídico, tão característico do século, manifesta-se o efeito de retardamento provocado por uma superexcitação do desejo de transcendência, que está na raiz dos acentos provocativamente mundanos e imanentistas do Barroco. Pois ele está obcecado pela ideia da catástrofe, como antítese ao ideal histórico da Restauração. É sobre essa antítese que se constroi a teoria do estado de exceção. Por isso, para se explicar por que desaparece, no século seguinte, 'a consciência aguda do significado do estado de exceção, que domina o direito natural do século XVII', não basta invocar a maior estabilidade política do século XVIII […]. Se o homem religioso do Barroco adere tanto ao mundo, é porque se sente arrastado com ele em direção a uma catarata. O Barroco não conhece nenhuma escatologia: o que existe, por isso mesmo, é uma dinâmica que junta e exalta todas as coisas terrenas, antes que elas sejam entregues a sua consumação. O além é esvaziado de tudo que possa conter o menor sopro mundano, e dele o Barroco extrai inúmeras coisas que até então tinham resistido a qualquer estruturação artística, e em seu apogeu, ele as traz violentamente à luz do dia, a fim de criar, em sua vacuidade absoluta, um céu derradeiro, capaz de dia de aniquilar a terra, numa catástrofe final. (BENJAMIN, 1984, 89-90, grifos nossos)

Urge decifrar o enigma desta passagem para se poder compreender melhor o que é que realmente está em jogo no destino histórico do Drama barroco, a saber, a constituição do caráter histórico do homem na modernidade, profundamente marcado pela dilaceração existencial entre a ideia de vida como imanência destinada ao ocaso e a visão da história como natureza coisificada, a ser superada. O eschaton (dia do Juízo Universal), na obra de Suassuna, é considerado sob uma profunda contradição barroca entre o tempo de Herodes23 e o tempo dos profetas, que podem prenunciar tanto a vinda do Anticristo quanto a aproximação do reino messiânico. Com o eschaton, “chegou o derradeiro momento em que as escolhas ainda são possíveis. Nosso tempo é perigoso, mas glorioso” (SUASSUNA, 2012a, 313). Há, aí, uma concepção “místico-judaica” da história, sob o prisma do Barroco sertanejo, não como progresso linear para um estádio mais avançado, segundo o tempo homogêneo e abstrato do Esclarecimento, mas

23 “A figura de Herodes, que aparece em toda parte, nessa época, no teatro europeu, é ilustrativa da concepção do tirano. Sua história

dá à representação da arrogância monárquica seus traços mais fortes. Um segredo terrível cercava a pessoa desse rei, mesmo antes da época barroca. Antes de ter sido visto como uma autocrata demente e como símbolo da Criação pervertida, Herodes foi visto pelos primeiros cristãos, sob uma luz ainda mais cruel – como o Anticristo. Tertuliano, entre outros, fala de uma seita de herodianos que o adoravam como o Messias.” (BENJAMIN, 1984, 93)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 como possibilidade real de interrupção da marcha do contínuo de sofrimento no palco lutuoso da história natural do mundo do sertão. O tempo messiânico do mundo barroco do sertão é o tempo do instante-deagora heterogêneo e concreto, no qual se efetua a revelação do sentido do Ser-tão pela experiência erótica da morte24 em relação à onça-Caetana do mundo.25 Na constelação barroco-sertaneja de Suassuna, há uma interpenetração de imagens solares e imagens lunares em relação ao significado alegórico da morte. Vejamos um soneto desse autor no qual há o embricamento semântico dessas imagens contraditórias, cuja rima conduz inevitavelmente para o seu próprio fim: A Moça Caetana – A morte sertaneja Com tema de Deborah Brennand

Eu vi a Morte, a Moça Caetana, com o Manto negro, rubro e Amarelo. Vi o inocente olhar, puro e perverso, e os dentes de Coral da Desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel, os peitos fascinantes e esquisitos. Na mão direita, a Cobra cascavel, e, na esquerda, a Coral, rubi maldito,

Na fronte, uma coroa e o Gavião. Nas espáduas, as Asas ofegantes, que, ruflando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes, caules de prata, Espinhos estrelados

24 Suassuna

articula uma relação muito íntima entre sexo e morte. Para ele, o sexo não é um fato qualquer e normal da vida humana, mas uma situação extrema, cujo instante de êxtase introduz o ser humano no limiar indefinido de vida e de morte, de sagrado e de profano, de beleza e de horror. A morte é o toque de Deus nos homens, é êxtase sexual que nos estremeços orgiásticos promove o contato imediato com Deus: “Em minha visão-de-mundo, o Sexo não é apenas, como costumam dizer os superficiais, um fato ‘normal e saudável’. Muito mais que isso, o Sexo é a situação extrema, o êxtase, a crispação do Amor, do carinho e da ensonação amorosa, motivo pelo qual atinge a fronteira do Sagrado e da Beleza, a fronteira de Deus […]. É como se, ao entrar em contato direto com a Divindade, a natureza humana não suportasse esse terrível fato e sucumbisse aos estremeços orgiásticos da Morte, fêmea e amante para os homens, macho e amante para as mulheres, materna, paterna e terrível para todos. Daí a ligação, sempre ressaltada também, entre o êxtase sexual da Morte, a fruição da Beleza e o êxtase mortal do Amor, inclusive sexual.” (SUASSUNA, 2012b, 225) 25 “Assim, a história é o meio entre criação e redenção. A história revela sua escatologia. Em algum momento da criação a história tem seu começo, e em algum momento da redenção ela chega ao seu fim. O ‘entre’ entre criação e redenção é o caminho da história. O proceder da criação à redenção é a salvação. O fundamento da história é a memória. Pois, sem memória, presente, passado e futuro estariam definitivamente cindidos. O saber histórico é um despertar. O acontecimento objetivo externo é internalizado pela memória: o homem recorda em si a profundidade dos tempos.” (TAUBES, 2010, 33)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 e os cachos do meu Sangue iluminado. (SUASSUNA, 1999, 180-181)

Eis que, aí, a moça Caetana representa tanto o sagrado terrificante quanto o profano fascinante, visto que ela é emblema do belo corpo sem lei próprio à figura feminina. A alegorização da morte manifesta também a oposição radical entre imanência e transcendência, pela revelação de um limiar entre vida e morte. O ardil poético utilizado para expressar essa oposição da figura da morte centra-se na intersecção dos signos da luz e da escuridão num mesmo espaço textual. A figura da morte associada a “Manto negro, rubro e amarelo; o inocente olhar, puro e perverso” realça os aspectos semânticos da noite. Porém, o olhar melancólico do poeta não se restringe em revelar esse único aspecto ameaçador, ele quer mergulhar ainda mais profundamente no carácter abismal imanente à coisa mesma, para revelar pela experiência erótica da morte sua natureza redentora. Num gesto violento e excepcional, o poeta melancólico faz irromper das profundezas do “Ser” obscuro a contemplação fulgurante do numinoso “Tão”, pela qual o instante místico se converte no agora atual do “meu Sangue iluminado”, no último verso do soneto. A alegorização da morte como onça-Caetana é ideia-chave à decifração do significado do eschaton, enquanto instante-de-agora no qual se consuma todo o acontecer histórico pelo Messias. A onça-Caetana é a alegoria mais profana da ordem do profano que redireciona a intensidade messiânica imediata para a felicidade mundana eternamente efêmera da humanidade, que na era barroca é marcada pela superexcitação do desejo de transcendência, mas que está profundamente mergulhada na ordem do profano sob a iminência de uma catástrofe final. É essa alegoria que entrelaça a ordem do profano com o próprio messiânico no instante-de-agora do acontecer histórico, em que se tem de juntar e exaltar todas as coisas terrenas, antes que elas sejam entregues à sua consumação. A onça-Caetana da morte, enquanto fera devoradora que possui tanto o fogo de Deus quanto do Diabo, é a imagem alegórica, ao mesmo tempo sagrada e profana, que exprime a contradição barroca mais extremada entre o mundo e o tempo, a vida e a morte, no instante do perigo no interior do Ser-tão, que excita o homem à decifração do sentido da existência.26 É na visão devastadora e orgiástica da morte (“Eu vi a morte”) que se revela o sentido do tempo histórico barroco, sentido este que não é literal, mas alegórico, porque a verdade jamais se revela literalmente, já que o sentido do verdadeiro só pode ser expresso por um gesto de violência poética de uma linguagem alegórica sobre o núcleo histórico lutuoso que cifra o Barroco. Aquele que decifrou o enigma do Ser-tão já pode ser devorado pela onça-Caetana da morte. O rosto da morte é o signo do tempo do fim, no interior do qual se entrelaçam e se cindem vida e morte para a consumação da história natural do sofrimento.

26“1) Mundo

e tempo No processo de revelação do divino, o mundo – o cenário da história – está submetido a um grande processo de decomposição, e o tempo – a vida do ator – a um grande processo de realização. O fim do mundo – a destruição e libertação de uma representação (dramática). Libertação da história em relação ao sujeito da representação. Mas talvez neste sentido a mais profunda oposição a ‘mundo’ não seja ‘tempo’, mas ‘o mundo por vir’.” (BENJAMIN, 2010, 29)

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 Com isso, na tradução alegórica de Suassuna sobre as sagradas escrituras bíblicas, o dia de Pentecostes, enquanto dia da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, não é mais uma festa religiosa que repetiria o eterno retorno mítico de atualização do tempo sagrado do que é sempre idêntico, mas o grande evento messiânico de chegada do rapaz-do-cavalo-branco à vila de Taperoá, para a consumação do tempo histórico-natural do sofrimento. O eschaton é a verdade efetiva do Trauerspiel, enquanto profanação, ao mesmo tempo festiva e belicosa, da ordem do destino no teatro do mundo da história natural. CONCLUSÃO Só é possível adquirir um parâmetro apropriado sobre a essência do tempo em relação à experiência barroca da história natural do ponto de vista do eschaton. Para o messianismo barroco de Suassuna, a análise da escatologia tem por propósito último, não só a neutralização de uma forma sagrada da histórica, cuja secularização na modernidade iluminista confere um caráter progressivo ao tempo, mas uma ruptura profanadora do caráter mítico de destino miserável dos tempos modernos. A vida histórico-natural no desertão do mundo barroco é exílio no qual os povos sertanejos da terra peregrinam até o fim dos dias; tal vida só é possível por uma suave força messiânica de espera pela redenção. Portanto, para compreendermos a intensidade messiânica do ritmo da natureza, temos que assinalar que o olhar melancólico do sertanejo Quaderna sobre o mundo das coisas tem de reanimar o mundo da natureza do sertão com a força do fogo da linguagem alegórica armorial, mesmo caminhando no inconcebível abismo do enigma da onça da morte, mesmo com a sentença já proferida, mesmo com as grossas barras e correntes ferrujosas já colocas na cadeia, mesmo com o erguimento do patíbulo, e o afiar do gume do machado. Ainda assim, ele tem de salvar o que vai perecer: o efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o heroico assassinado em segredo. Este poeta melancólico da história derradeira terá de reconhecer o eschaton imanente à natureza histórica, e trazer bruscamente à luz do dia uma articulação artística de violência poética, mesmo na iminência de uma catástrofe final, caminhando no inconcebível campo de sono do ensanguentado, onde arde em brasa o sonho perdido, tentando em vão reedificar seus dias para sempre destroçados. Só assim ele será capaz de anunciar, ao cantar o enigma da fronteira, a aproximação da chegada do Messias, que fincará a pedra do reino da felicidade do ser-Tão.

REFERÊNCIAS

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Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, pp. 90-107 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. São Paulo: Editora da universidade de São Paulo, 2007. PENSKY, Max. Melancholy Dialetics: Walter Benjamin and the Play of Mourning Critical Perspectives on Modern Culture. New Jersey: University Massachusetts Press, 1993. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. __________. “Apresentação”. In: BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 11-47. SUASSUNA, Ariano. Romance d'A Pedra do Reino e príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2012. __________. Almanaque Armorial. Org. Carlos Newton Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2012a. __________. Poemas. Org. Carlos Newton Júnior. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999. __________. História d'O Rei degolado nas Caatingas do Sertão: Ao Sol da Onça Caetana. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977a. __________. “Posfácio”. In: MARINHEIRO, Elizabeth. A intertextualidade das formas simples: aplicada ao Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Tese de livre docência – Instituto de Letras e Artes da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1977b. TAUBES, Jacob. Escatología occidental. Trad. Carola Pivetta. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2010.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122

O DESVELAMENTO DO MAU ENCONTRO EM O DESCOBRIMENTO DO BRASIL À LUZ DO PENSAMENTO DE LA BOÉTIE Pedro Henrique Araújo Santiago1 Renan Soares Esteves2 RESUMO: A presente investigação se debruçou sobre dois problemas conforme o pensamento de La Boétie: o que é o mau encontro e quais são os seus elementos fundantes com o objetivo de desvelá-los do filme O descobrimento do Brasil. Para tanto, selecionamos algumas imagens da película de Mauro: a chegada das caravelas portuguesas em 1500; os índios carregando um crucifixo construído com a devastação da mata brasileira; e a prostração dos nativos diante do símbolo cristão. Por fim, concluímos que o mau encontro, os seus elementos fundantes e a sua ferramenta de perpetuação se encontram ocultados no filme. PALAVRAS-CHAVE: La Boétie. Mau encontro. Elementos fundantes. O descobrimento do Brasil. Ferramenta de perpetuação. The unveiling of the bad encounter in the The Discovery of Brazil in the light of La Boétie’s thought ABSTRACT: This research addressed two problems according to La Boétie’s thought: what is the bad encounter and what are founding elements, aiming at order to unveil them from the movie The discovery of Brazil. To do so, we selected some images from Mauro’s film: the arrival of the Portugese caravels in 1500; the Indians carrying a crucifix built with the devastation of the Brazilian forest; and 1 Graduado em Filosofia/ Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestrando em Filosofia pelo Programa de PósGraduação da Universidade Federal do Ceará (UFC) na linha de Filosofia da Linguagem e do Conhecimento. Bolsista/CAPES. Membro do Grupo de Estudos Platônicos da UFC. Tem interesse na área de Filosofia Antiga, com ênfase em Ontologia, Epistemologia e Linguagem. E-mail: pedro_010994@hotmail.com 2 Graduado em Filosofia/ Licenciatura pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestrando em Filosofia pelo Programa de PósGraduação da mesma instituição na linha de Filosofia da Linguagem e do Conhecimento. Bolsista/ CAPES. Membro do Grupo de Estudos Filosofia, Metafísica e Cognição da UFC. Tem interesse nas áreas de Lógica, Filosofia da Ciência, Filosofia da Mente e Ética Aplicada. Email: renan.soares.e@gmail.com.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 the prostration of the natives before the Christian symbol. Finally, we conclude that the bad encounter, its founding elements and its perpertuation tool are hidden in the movie. KEYWORDS: La Boétie. Bad encounter. Founding elements. The discovery of Brazil. Perpertuation tool.

1. Introdução Diziam ser “Guerra Justa” Com o Demônio travada, Com hereges que negavam A religião Sagrada… Exterminar sua raça Seria como uma graça Numa matança alcançada Cientes da “guerra justa” Os colonos passam a ter O direito de matar A razão de converter Aqueles índios, sem lógica, À religião católica, Submissos ao poder. (Medeiros Braga3. A Guerra dos Bárbaros).

As questões que impeliram a consecução desta investigação são duas: 1) propor uma definição, a partir do pensamento de La Boétie, para o conceito de mau encontro, responsável pelos homens protagonizarem o esquecimento de seu estado original de liberdade; e 2) compreender quais elementos fundam e perpetuam o mau encontro, que tanto degrada a espécie humana, ensinando-a a não desejar a liberdade, mas a se submeter à servidão. Em síntese, conceituamos o infortúnio, o vício infeliz, a aberração que a natureza nega ter gestado e que a língua se recusa a nomear, ou seja, o corpo político da servidão voluntária. E, posteriormente, analisamos quais elementos são responsáveis pelo enraizamento da vontade de servir nas relações humanas. Para a articulação dessas duas questões, contrapomos dois modos de vida: o do colono português que, vivendo numa sociedade estratificada socialmente, alimenta a servidão voluntária e a tirania; e o do indígena que tem a liberdade como um bem irrecusável à vida. Ilustramos esses dois modos de vida por intermédio de três cenas da obra cinematográfica brasileira O descobrimento do

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Poeta e romancista popular que transcreve os grandes clássicos da literatura mundial em cordel pela editora Queima-Bucha de Mossoró-RN.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 Brasil4, a saber: a recepção amigável da esquadra portuguesa pelos autóctones; os indígenas carregando voluntariamente uma enorme cruz de madeira sobre os ombros; e a conversão de bom grado dos selvagens ao cristianismo, prostrando-se ao símbolo cristão que haviam fixado em seus domínios para celebração da primeira missa no Brasil. Essas cenas propõem uma descrição harmoniosa5 para um conflito, ou marcado pelo extermínio das comunidades locais, ou pela sua escravização. O referido filme corrobora com a consolidação da ideia de que os indígenas serviram voluntariamente ao Estado Português ou no momento em que são hospitaleiros com os recémchegados tripulantes, ou quando se curvam à cruz cristã, convertendo-se ao cristianismo. O modo como essas cenas são arrumadas parece querer revelar que a história universal destinou ao europeu a missão sagrada de civilizar um modo de vida supostamente inferior. Nessa perspectiva, Graciliano Ramos, em talvez sua única crônica cinematográfica, critica a fita de Humberto Mauro, considerando que: “(…) lamentamos que nesse trabalho de Mauro, trabalho realizado com tanto saber, se dê ao público retratos desfigurados dos exploradores que aqui vieram escravizar e assassinar o indígena”. O escritor utiliza expressões como “desgosto” e “são uns santos os portugueses”, sendo esta última colocação claramente irônica para se referir a visão harmoniosa proposta pelo cineasta. No fundo, o que incomoda o romancista é uma reconstrução histórica que favorece uma interpretação harmônica de dois polos: o indígena, como ingênuo e perfeito selvagem, que se extasia facilmente com a presença do homem branco; e a figura beata do

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O descobrimento do Brasil é uma produção cinematográfica dos anos trinta de Humberto Mauro, um dos pioneiros do cinema brasileiro. A obra supracitada, acompanhada de Os bandeirantes, compõe o ciclo em que nosso diretor, patrocinado por instituições públicas, almejava fazer reconstituições históricas do Brasil. O descobrimento do Brasil restaura a chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral em 1500. O clímax da obra está no encontro de dois povos completamente antagônicos: os portugueses com uma sociedade apartada entre dominantes e dominados e as comunidades indígenas marcadas pela rejeição da hierarquia das regalias. Cf. GOMES, Paulo Emílio Sales. 4ª Época: 1933 a 1949. In: Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p.72. 5 A obra do diretor mineiro busca reproduzir a carta de Pero Vaz de Caminha por dois motivos: o primeiro é uma tentativa de dar um caráter verídico e documental ao seu filme, deixando as “provas” do fato histórico “falarem por si”; e o segundo tem a função de apresentar o benefício que, supostamente, foi trazido pelos portugueses com a colonização, devido o modo pacífico que foi mediado às relações pessoais entre europeus e indígenas em o Descobrimento do Brasil. Por essa razão, Humberto Mauro simula a Primeira Missa no Brasil, quadro de Victor Meirelles, inspirada nos relatos do escrivão português. Assim como na pintura, a película se utiliza de diversos recursos estilísticos, como evidenciar em tom mais claro a cruz ao centro, contrastando com a tonalidade mais escura dos indígenas que estão em volta do símbolo sagrado cristão, de modo a ressaltar o equilíbrio dos dois elementos constitutivos da nação: o branco e o índio. O cineasta procura evidenciar uma harmonia de interesses, pois tudo converge para assimilação da religião católica no novo território. Cf. MORETTIN, Eduardo. Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. Revista Brasileira de São Paulo, v.20, n. 39, 2000, p.135-165.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 invasor que possui “uma solicitude, uma delicadeza de mãe” com aqueles que nestas terras já habitavam6. A preocupação desta investigação, portanto, é a mesma de Graciliano: desocultar a falsa benevolência dos invasores “que destoa das façanhas que andaram praticando em Terras da África e da Ásia e por fim neste hemisfério”. O poeta alagoano afirma que a intenção dos criadores de O descobrimento do Brasil “não foi denegrir o invasor: foi melhorá-lo, emprestar-lhe qualidades que não tinha (…) vemos um sorriso beato nos lábios daqueles terríveis aventureiros”. Contudo, para Ramos, o ápice da boa convivência entre colonos e colonizados pode ser percebido quando “vemos o comandante da expedição, com desvelo excessivo, lançar cobertas sobre os tupinambás e retirarse nas pontas dos pés, para não acordá-los 7”. Dito isso, utilizou-se a película de Mauro com o intuito de desvelar o véu que esconde a resistência de uma comunidade que, até em tempos hodiernos, luta contra seu fim, que por não aceitar a servidão voluntária do modo de vida europeu, a tirania relegoulhes dois caminhos quase incontornáveis: o extermínio ou a escravidão. No desenvolvimento do presente trabalho, a mencionada obra cinematográfica é utilizada de modo estratégico, tendo em vista a necessidade de se pensar o conceito e as ferramentas de manutenção da servidão voluntária, evidenciando dois modos de vida contrapostos, mas que na obra cinematográfica em questão se encontram harmonizados. É uma tarefa difícil distinguir esses modos de vida numa fita, onde portugueses e indígenas se relacionam tão amigavelmente. Todavia, foi proposto pensar tais questões, com o intuito de desocultar da fita de Mauro, por um lado, a servidão voluntária e a sua perpetuação, enquanto pressuposto da organização social portuguesa; e, por outro lado, a recusa indígena a qualquer possível negociação de sua liberdade.

2. Uma passagem da liberdade para servidão em O Descobrimento do Brasil de Humberto Mauro A história, então, escrita Que chegou aos estudantes Não mostrou o extermínio, Nem índios agonizantes Porque, com todo cuidado, Ela foi feita ao agrado Das elites dominantes O que houve com os índios 6 É possível acessar

a crônica cinematográfica de Graciliano Ramos na íntegra, bem como os trechos citados anteriormente em: MAURO, Humberto. Uma tradução de Pero Vaz. In: Humberto Mauro: sua vida/ sua arte/ sua trajetória no cinema, Rio de Janeiro: Artenova, 1978, p.67. 7 Os trechos entre parênteses são outras passagens da crônica cinematográfica de Graciliano Ramos ao Descobrimento do Brasil. Cf. MAURO, Humberto. Uma tradução de Pero Vaz. In: Humberto Mauro: sua vida/ sua arte/ sua trajetória no cinema, Rio de Janeiro: Artenova, 1978, p.67.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 Foi a vil usurpação, Chegaram aqui onde havia Já uma população E de repente, sem modos, Desalojaram a todos E lhes tiraram a razão (Medeiros Braga. A guerra dos bárbaros).

A cena da chegada da tripulação de Pedro Álvares Cabral marca o mau encontro entre portugueses e as comunidades autóctones. A preocupação dos europeus, no período da conquista do Novo Mundo, era a criação de um conceito que justificasse a escravização daquela gente nova tida como sem fé, sem lei e sem rei.8 As outras cenas, a saber, a dos nativos carregando uma cruz e, posteriormente, a destes ajoelhados, na mais pura posição de adoração ao símbolo cristão, deixanos com uma dúvida no ar: qual item estaria por detrás do fenômeno da servidão? O fascínio pelos governantes9? A força do costume? A coerção brutal do tirano? Ou a esperança de possuir alguém que nos sirva prontamente10? Tais interrogações que dizem respeito ao que é o mau encontro e quais elementos são seus sustentáculos, gravitam em torno da problemática que se segue: o poder do tirano advém de um infortúnio do qual não temos culpa ou provém porque deliberamos ignorar a nossa liberdade? Só faz sentido perguntarmos se o fascínio, o hábito, o poderio bélico do soberano e o nosso desejo de tiranizar são causas da servidão, se também respondermos: há algo de voluntário no mau encontro com o poder que nos transcende e que se concentra nas mãos do governante? Quão contraditória é essa problemática, será possível que optamos abdicar da nossa própria liberdade para obedecermos somente a um?

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“Com esse fim, os teólogos e os juristas inventaram a positividade de um conceito juridicamente válido, pelo qual conseguem determinar a condição dos índios e justificar a Conquista ‒ trata-se do conceito de servidão voluntária” (CHAUÍ, Marilena. Contra o Um, contra o Estado: o contradiscurso de Clastres e de La Boétie. In: Contra a servidão. Organizador Homero Santiago. 2ed. Belo Horizonte. Autêntica. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014, p. 142). 9 Para uma melhor compreensão de como se manifesta tal fascínio pelo tirano, é interessante dar peso a consideração que Marilena Chauí faz acerca de como o mito fundador da sagração do governante se estabelece em uma sociedade “(…) do lado dos dominados, ele se realiza pela via milenarista com a visão do governante como salvador, e a sacralização-satanização da política. Em outras palavras, o mito engendra uma visão messiânica da política que possui como parâmetro o núcleo milenarista como embate cósmico final entre a luz e a treva, o bem e o mal, de sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem) ou satanizado (treva e mal)” (CHAUÍ, Marilena. Sagração do governante. In: Brasil mito fundador e sociedade autoritária. 1ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 53). 10 É interessante, nesse momento, fazermos um paralelo de nossas interrogações com as palavras de La Boétie: “Mas ó, bom Deus! O que é isso? Que nome damos a esse fenômeno? Que infortúnio é esse? Que vício é esse, ou melhor, que infeliz vício é esse? Ver infinitas pessoas servindo em vez de obedecer; sendo tiranizadas em vez de governadas; sendo desprovidas de bens e parentes, mulheres e crianças, até mesmo de uma vida própria! Sofrendo as pilhagens, as obscenidades, as crueldades não de uma armada, não de um exército bárbaro do qual devam, antes de tudo, defender seu sangue e sua vida, mas sim de um único indivíduo; não de uma Hércules nem de um Sansão, mas deu um reles homenzinho (…)” (LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 36).

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 É confortável respondermos que o acaso, a coação ou a ilusão são preponderantes para que deixemos de ser servos da razão para sermos servos de um ditador. Afinal, não existe concílio maior com o mundo do que transferirmos as nossas desgraças a uma entidade transcendental chamada destino. Ou acreditar que, por meio da coação, fomos impedidos de agir em consonância com nossa vontade e até crer que nos iludiram pelos discursos e promessas de bens e liberdade. Podemos até admitir que tudo isso sustenta um cenário ideal para um autocrata ascender ao poder. Todavia, ainda o enigma permanece: depois que o déspota toma o poder do povo, como ele o conserva? Diante de tal problemática, não há aqui nenhuma negociação possível, precisamos nos confrontar urgentemente com o mau encontro, que é ocultado por Humberto Mauro, na medida em que o seu filme transmite uma imagem harmônica dos recém-chegados portugueses com os aborígenes. Nessa perspectiva, O antropólogo Pierre Clastres, interpretando a filosofia de La Boétie, fornece-nos uma interessante elucidação do mau encontro, definindo-o como a gênese de uma nova espécie de homem, que está degradada, dado renunciar sua humanidade ou seu estatuto ontológico de liberdade11. O descobrimento do Brasil revela-nos o desencontro entre uma sociedade estratificada socialmente, favorecendo a instalação de tiranias e outra sem divisões sociais, negando veementemente qualquer relação de poder12. O mau encontro é, portanto, o contato entre duas formas de vida opostas: uma que vive conforme a natureza humana de liberdade e outra desnaturada, já que se divide entre um tirano opressor e o amor do seu povo em servi-lo. Esse encontro desemboca no total aniquilamento da primeira sociedade, a qual tem seu ser de liberdade destroçado por uma nova configuração social,

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CLASTRES, Pierre. Liberdade, mau encontro, inominável. In: Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 111-112. 12 Aqui é possível fazermos uma conexão com Sobre os canibais de Michel de Montaigne. O filósofo humanista, amigo de La Boétie, argumenta que as sociedades europeias, desde cedo, trataram de inverter a noção de selvageria. Atribuindo às tribos indígenas o estigma de não possuírem alma, caricaturando-as como ingênuas e atrasadas, e, que, por essa razão, elas deveriam ser moldadas pelo Espírito Europeu. Em contrapartida, o filósofo nota o quão equivocada é essa visão disseminada em seu continente, visto que, quem deveria receber a nomenclatura de selvagens e atrasadas são as nações colonizadoras, uma vez que invadiram uma terra já habitada com o intuito de explorar e saquear. Montaigne, um colecionador dos mais diversos artefatos da cultura indígena e alguém que conversou pessoalmente com alguns tupinambás que atracaram um navio, juntamente com os franceses, em Rouem, infere que não havia nenhum termo que cunhasse superioridade intelectual ou política para aqueles povos, que viviam tão longe de relações artificiais, mediadas por alguma espécie de contrato ou sucessão. Também, segundo o pensador humanista, eram inexistentes palavras que pudessem designar mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, tendo em vista que estas palavras estavam muito distantes daquilo que os indígenas experimentavam no seu horizonte cultural. Nessa perspectiva, pautavam um cotidiano sem práticas de subordinação, de riqueza ou de pobreza, mas guiavam-no por ocupações que não ultrapassavam o ócio e pelo respeito mútuo. Esse exercício de alteridade é facilmente observado no fato do cultivo da amizade das mulheres pelos índios. De acordo com Montaigne, isso nos é revelado quando os profetas, que moravam no alto das montanhas as desciam para fazer as seguintes exortações: “valentia contra os inimigos e a amizade por suas mulheres!” (MONTAIGNE, Michel de. Sobre os canibais. In: Os Ensaios. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 145-149). Essa exposição muito contribui para construirmos um quadro mental, a partir da figura dos tupinambás, sobre como seriam as sociedades que antecederam o mau encontro. Esclarecendo-nos o quão contraditório é chamar de bárbara estas comunidades que rejeitavam qualquer autoridade ou divisão de classes. No fim das contas, os bárbaros não seríamos nós?

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 onde um manda em muitos. Essa é a razão de ser um mau encontro, na medida em que passamos de uma realidade, na qual a liberdade é primordial para uma, onde sua essência é a submissão. Nesses termos, o mau encontro é a substituição do desejo de liberdade pelo amor à servidão, ou de outro modo, o abandono daquilo que é demasiadamente humano, a liberdade, em prol dos prazeres do jugo.

2.1 O fenômeno da servidão voluntária O filme, que aqui tratamos, reporta como os colonos portugueses estabeleceram o mau encontro com os índios, os quais habitavam todo o território que, posteriormente, viria se chamar Brasil. Os exploradores lusitanos tramaram ardilosamente diversas armadilhas para ter a conivência dos nativos na sua própria escravidão e na devastação de suas florestas. As artimanhas são as mais diversas, como a prática de escambo de espelhos, tesouras e facas; o oferecimento de bebidas; o aconchego, dando-lhes cobertores para protegê-los do frio noturno; e a participação em suas danças. Toda essa interação, entre povos tão antagônicos, acarretou a decadência e alienação dos que já habitavam o Novo Mundo. Essa degradação pode ser verificada pela supressão da cultura local mediante um crucifixo, fixado no território dos autóctones, o qual, a partir de então, deveria ser o único objeto de adoração tantos dos portugueses recém-chegados, quanto dos que já tinham se fixado ali, muitos anos antes, com seus singulares costumes e rituais religiosos. As sociedades primitivas foram progressivamente se desnaturando e se esquecendo de que um dia desfrutaram de sua liberdade natural originária. A desnaturação, promovida pelo mau encontro, impede que conheçamos o que é essencial em nós, fazendo-nos crer que as relações entre dominantes e dominados são atemporais e estão além de qualquer construção histórica. De acordo com Chauí, “(…) os humanos, inicialmente forçados ou inicialmente iludidos, se acostumam a servir e criam seus filhos alimentando-os no leite da servidão; por isso os que nascem sob a tirania não percebem13 (…)”. Porém, tentando contrariar essa visão involuntária da servidão, La Boétie levanta a seguinte reflexão: Portanto, resta à liberdade ser natural, e do mesmo modo, a meu ver, não nascemos em posse apenas de nossa liberdade, mas também do desejo de defendê-la. Ora, se por ventura tivermos dúvida quanto a isso e se estivermos tão degenerados que não possamos reconhecer nossos bens nem nossas afeições inatas, serei obrigado a tratar-vos como mereceis e convocar, por assim dizer, as brutas bestas ao púlpito para vos ensinar sobre vossa natureza e condição. (…) Muitas delas morrem assim que são capturadas: como um 13 CHAUÍ,

Marilena. Servidão voluntária ou mau encontro. In: Contra a servidão voluntária. Organizador Homero Santiago. 2ed. Belo Horizonte. Autêntica. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014, p. 128.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 peixe que padece fora d’água, entregam-se à escuridão e não têm mais o desejo de sobreviver à perda de sua liberdade natural (…) Os outros dos maiores aos menores, quando capturados, resistem tanto com unhas, chifres, bicos e patas que evidenciam o quanto estimam aquilo que perdem (…) Apascentamos o cavalo desde que nasce pra acostumá-lo a servir; e, por mais que acariciemos, quando está sendo domado ele morde o freio, escoiceia contra a espora, como que para mostrar à natureza e declarar, ao menos dessa forma, que serve não por vontade, mas por imposição nossa. Que dizer então14?

Desse modo, de acordo com La Boétie, se os animais de modo geral resistem à dominação, é porque minimamente são capazes de constatar os males da sujeição. Eles lutam por sua liberdade ferozmente e na maioria das vezes quando a perdem, acabam morrendo por não encontrar razões para persistir numa existência desprovida de liberdade. Se até os bois e os pássaros, no instante em que estão presos, lamentam e choram por sua situação, que insensatez e cegueira tamanha não é nossa recusa à liberdade? Vivemos desprovidos de tudo. Entregamos nossos bens, famílias e vidas a somente um governante o qual nos tiraniza, não por um infortúnio, mas pelo poder que o concedemos. Somos os responsáveis por nossa ruína, pois ao contrário dos bichos que não cedem ao costume da subjugação, servimos voluntariamente. Ainda segundo o filósofo, somos nós que doamos ao soberano os nossos olhos para ele nos vigiar; as nossas mãos para ele nos injuriar; nossos pés para ele nos pisar; nossos filhos para ir à guerra em nome de seus interesses; e nossas filhas para alimentar sua luxúria 15. Fomos desapropriados de nossas famílias e de nossos bens, corpos e vidas. Contudo, para que esta desapropriação ocorresse, precisou-se que traíssemos a nós mesmos, tolerando o ladrão que nos rouba e o assassino que nos mata. Não foi isso o que aconteceu quando os indígenas se ajoelharam em posição de adoração diante a cruz cristã na primeira missa celebrada no Brasil? Traição aos seus costumes e conivência com os seus assassinos? Que mau encontro! É nessa conjuntura que Lefort argumenta que o senhor procede do escravo:

Como entender que o senhor procede do escravo? (…) não se torna senhor por querer, e sim por ter ocupado um lugar já preparado, por ter respondido a uma demanda já formulada por aqueles, naqueles que domina: o povo (…) é melhor admitir que a cada momento de seu império a tirania se engendra a partir da vontade de servir 16 (…).

Costumeiramente, atribui-se ao senhor a origem do escravo, acreditando-se que, mediante as forças coercivas do déspota, obriga o outro a servir contra sua vontade. Entretanto, esse tipo de

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LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, pp. 45-46. LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 41-43. 16 LEFORT. O nome de um. In: Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 125-126. 15 Cf.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 resposta desvia-nos da seguinte interrogação: “como é possível que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações tolerem, por vezes, um tirano sozinho 17 (…)”. É admissível que um pequeno agrupamento de homens seja incapaz de combater o mal da submissão imposto autoritariamente. Todavia, não há uma razão suficiente, que não a voluntariedade da servidão, capaz de explicar o porquê de grandes aglomerados se sujeitarem aos desejos de um.

2.2 Os elementos fundantes do mau encontro Poderíamos defender que a servidão está associada ao encanto e a sedução que possuímos pelos nossos algozes, ou, argumentar, sem muito esforço, que as comunidades indígenas se deixaram arrastar pelo fascínio por artigos, como facas, tesouras, espelhos, que naquele momento histórico estavam distantes de seu universo de possibilidade. Também, poder-se-ia exaltar o caráter do fascínio, ligado a sacralização dos detentores do poder, sobretudo, na cena da vinda dos portugueses em suas caravelas, fato que provavelmente soou tão esquisito para aquelas comunidades, que não beiraria ao absurdo, levantarmos a hipótese que, num primeiro momento, esse evento tenha instaurado a crença que tudo aquilo era a realização de uma profecia. Nessa perspectiva, La Boétie refere-se à sagração dos governantes nos contextos dos egípcios e dos epirotas: Os primeiros reis do Egito também só apareciam em público carregando ora um gato, ora um cajado, ora uma chama sobre a cabeça. Quando o faziam, pela estranheza da coisa, suscitavam em seus súditos reverência e admiração, ao passo que, a meu ver, àqueles que não fossem demasiados parvos ou servis, não se prestariam senão ao entretenimento e à troça. (…) O que dizer de outra bela mistificação que os povos antigos tinham como líquida e certa? Eles acreditavam piamente que o dedão de Pirro, rei dos epirotas, fazia milagres e curava os doentes do baço (…). É assim que o povo tolo inventa as próprias mentiras – para depois acreditar nelas. (…) insistiram (os tiranos) em utilizar a religião como proteção e, quando possível, emprestar alguns traços de divindade para assegurar sua vida nefasta 18.

La Boétie almeja desvelar as táticas utilizadas pelo tirano para conservar o seu poderio. O francês explicita-nos que o cultivo à devoção do soberano, no imaginário popular, é uma artimanha sem a qual jamais uma liderança se perpetuaria. A imagem que o governante quer passar é a de um ser divino e justiceiro capaz de vingar todas as penúrias de seu povo. Afinal, é essa esperança de a justiça ser feita, que ludibria e enfeitiça uma nação. Dessa forma, conjectura-se o seguinte: foi o sentimento de estar lado a lado com seres transcendentais ou de outro mundo que impeliu as 17 LA 18

BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 34. LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, pp. 64-65.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 comunidades indígenas a derrubarem suas matas para a construção de crucifixos que depois seriam carregados sobre seus ombros. Entretanto, outras hipóteses, que nada tem a ver com o encantamento dos escravos pelos seus senhores, são capazes de explicar o fenômeno da servidão, visto que em muitas situações não somos fortes o suficiente para fazer ruir o avantajado exército de nossos inimigos. Nas guerras, por exemplo, quando as perdemos, não há nada que possamos fazer. Somos presas fáceis dos vencedores, prontas a serem escravizadas ou liquidadas. A única coisa que está em nosso alcance, nesse momento penoso, é lamentar o presente e esperar um futuro melhor. Nessa perspectiva, a coerção física como se sucedeu na colonização brasileira, retratada no filme em questão, evidencianos quão desproporcional era a luta entre portugueses e indígenas. Enquanto os primeiros faziam uso de armas de fogo, como revólveres e canhões, os segundos recorriam a métodos mais rudimentares como lanças e flechas. Étienne, propositalmente, coloca o seu leitor em circunstâncias de conflito e tensão, pois na proporção que indica as razões para servidão, ele as elimina. Vejamos um exemplo: “É verdade que, no início, serve-se por obrigação, por força da derrota; mas os que seguem servem sem pesar e fazem de modo voluntário aquilo que seus antecessores faziam compulsoriamente19”. Ele admite que a coerção física possa ser responsável por um tirano chegar ao poder, mas jamais por permanecer nele. São os nascidos e criados sob o açoite da sujeição, que não enxergam outros horizontes, considerando sua realidade como estática, natural, e, consequentemente, impossibilitada de tomar outros rumos. Quando o filósofo renascentista nega que a coerção física seja o sustentáculo da servidão, ele levanta uma terceira hipótese: não seria o costume que levaria os indivíduos a aceitarem o jugo de outrem? Nem o fascínio, nem a coerção física, mas o hábito é o que exerceria enorme poder sobre nós? Como diz La Boétie, a educação sobre a qual crescemos tem capacidade de “ensinar-nos a engolir e não achar tão amargo o veneno da servidão20”. Precisamos perdoar aqueles que desconhecem qualquer experiência de liberdade, tendo em vista que, por ignorá-la não tem noção do quão é degradante para sua humanidade ser escravo. Para ilustrar o que dizíamos, afirma La Boétie: Se houvesse um país como os dos cimérios, descrito por Homero, onde o sol, diferentemente do nosso, brilha por seis meses contínuos e depois deixa-os adormecidos na escuridão, sem voltar a vê-los por mais meio ano, será que aqueles que nascessem durante

19 LA 20 LA

BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 49. BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 50.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 essa longa noite, se não ouvissem falar da claridade, se espantariam ou, nunca tendo presenciado o dia, se acostumariam às trevas em que nasceram, sem desejar a luz 21?

Se os homens nascem e são educados para serem servos, é razoável que sintam falta da liberdade? O homem naturalmente é e deseja ser livre, contudo, se os hábitos impostos pela criação não colaboram para o pleno desenvolvimento dessa liberdade, a tendência é que sejamos moldados pela autoridade do déspota. A influência do costume em nossas vidas é tamanha, que aqueles que estão deformados pelo exercício da servidão não possuem vigor em lutar pela liberdade, uma vez que por ela “não sentem mais arder no coração22 (…)”.

2.3 A servidão voluntária, enquanto ferramenta de perpetuação do mau encontro Estrategicamente, Étienne de La Boétie apresenta três hipóteses, a saber: o fascínio, a coerção física e o costume, que explicariam o porquê da dominação. Ao fim da exposição delas, o filósofo argumenta: “Chego agora a um ponto que é, a meu ver, a força e o segredo da dominação, o suporte e o fundamento da tirania23”. Entendemos com essa afirmação que as hipóteses supracitadas têm o seu valor na compreensão de como os soberanos ascendem ao poder. Mas, se quisermos saber o que sustenta e conserva qualquer tipo de dominação, precisamos explicitar cuidadosamente o que está para além das alabardas e das guardas do soberano. Acompanhemos sua fala:

Em meu juízo, muito se engana quem pensa que as alabardas, as guardas e a disposição de sentinelas protegem os tiranos, que delas se servem, creio eu, mais pela formalidade e pela demonstração de força do que por depositarem confiança nelas. Os arqueiros impedem a entrada no palácio dos maltrapilhos sem nenhum recurso, não dos homens armados que poderiam realmente fazer alguma coisa. Sobre os imperadores romanos, decerto é fácil afirmar que poucos escaparam do perigo pela proteção de seus guardas, mas muitos foram mortos pelos próprios arqueiros. Não são as tropas de cavaleiros, não são os corpos da infantaria, não são as armas que protegem o tirano24.

Quem protege o tirano é toda a malha social que lhe está subordinada, todos aqueles que fazem favores aos poderosos em troca de ganhos particulares, dando tudo o que ele vos pede, inclusive vossas vidas e os corpos de seus amigos e seus familiares. Somos tiranetes, então, já que estamos inseridos numa rede interligada de interesses que refletem os do déspota, onde almejamos

21 LA

BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 54. LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 58. 23LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 68. 24 LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 68. 22

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 servir para que aquele que está logo abaixo de nós, na pirâmide social, sirva-nos também. Segundo Chauí, “A servidão é voluntária porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica25”. As relações interpessoais estão corrompidas pelo medo, dado que o tirano subjuga os súditos por intermédio de outros súditos. Por isso, como confiar em alguém, quando todos querem tirar alguma vantagem da tirania? Étienne descreve minuciosamente a rede de interesses entre tirano e tiranetes: À primeira vista, parece difícil crer, mas é a verdade: são sempre quatro ou cinco que mantêm o tirano, quatro ou cinco que mantêm todo o país em servidão. Foram sempre cinco ou seis os depositários de sua confiança, cinco ou seis que deles se aproximaram ou foram convocados como cúmplices de suas crueldades, companheiros em seus prazeres, alcoviteiros de suas volúpias, compartes dos bens de suas pilhagens. Esses seis têm tanta influência sobre o líder que este parece, à sociedade, mau não apenas por suas maldades, mas também pelas deles. Esses seis têm 600 outros que deles se beneficiam e com eles fazem o mesmo que eles fazem com o tirano. Esses 600 têm, abaixo de si, 6 mil (…) e, aquele que se aventurar a desenrolar o fio verá que há não 6 mil, mas 100 mil, milhões de indivíduos ligados ao tirano por meio desse cordão26.

Sendo assim, sempre que tentarmos indicar os elementos que sustentam o mau encontro, evento responsável pela desnaturação dos homens, é necessário que consideremos também a existência de algo voluntário nesse processo. Ou seja, por mais que levantemos as hipóteses de o fascínio, a coerção física e o hábito motivarem a passagem de um estado de liberdade para um estado de servidão, não podemos desconsiderar os jogos de interesses que medeiam às relações entre tiranos e tiranetes (tiranizados que também querem tiranizar). Isso porque os vínculos tirânicos estabelecidos, entre os sujeitos de uma sociedade, são o segredo e o fundamento da servidão, isto é, La Boétie quer evidenciar que toda sujeição também é sustentada por uma dimensão subjetiva da vontade dos seres humanos de serem tiranizados. Nessa perspectiva, o filme O Descobrimento do Brasil de Humberto Mauro metaforiza com excelência o conceito de servidão voluntária, articulado por La Boétie. Afinal de contas, a chegada dos portugueses em terras brasileiras reporta-nos ao mau encontro, na medida em que há o contanto entre duas sociedades opostas, uma divida em classes e outra que nega qualquer hierarquia de privilégios. O mau encontro se concretiza quando o modelo de organização social indígena, pautado pela preservação do estado natural de liberdade, sucumbe diante a organização estatal portuguesa.

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CHAUÍ, Marilena. Servidão voluntária ou mau encontro. In: Contra a servidão voluntária. Organizador Homero Santiago. 2ed. Belo Horizonte. Autêntica. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014, p. 129. 26 LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017, p. 69.

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 Os selvagens ficaram enfeitiçados com aqueles homens de barba e roupa que cruzaram o mar, através de embarcações mais bem elaboradas que as suas, trocando mercadorias que jamais tinham visto. Toda essa inesperada visita se assemelhava com um acontecimento escatológico ou com o aparecimento de uma figura messiânica. Além de estarem seduzidos com aquele contato primário, tem-se o poder coercitivo dos colonizadores portugueses, que deixavam os indígenas em uma situação que não havia meio termo: ou se derrubava a mata para construção do crucifixo cristão ou se morria. E, por último, o hábito de servir daqueles autóctones, que diferentemente dos seus antecessores na linha hereditária, foram obrigados a crescer no contexto da sujeição, sem nunca ter tido uma experiência direta com a liberdade, acostumados não mais a entoar seus cânticos tradicionais que imitavam o som dos pássaros, mas a louvar os santos cristãos. Entretanto, segundo Étienne, esses elementos não são suficientes para perpetuar um tirano no poder. Essas hipóteses afastam-nos do cerne da questão, uma vez que a servidão tem seu enigma revelado no amor em servir dos servos, que não medem as consequências da abdicação de sua liberdade em troca dos favores prometidos pelo ditador. Dispomos de um componente até difícil nomear devido ser paradoxal, a saber, a servidão voluntária. A esperança de receber regalias do soberano e de possuir os olhos, as mãos, os pés, e a vida de alguém que está abaixo de nós socialmente, faz com que os sujeitos aceitem receber um mal, para depois direcioná-lo a alguém que deseja subjugar.

3. Conclusão Com os títulos de selvagem De demônio, canibal, E a afirmação do índio Ser pior que animal; Todos os ditos profanos Incentivaram colonos Ao extermínio total. (Medeiros Braga. A guerra dos bárbaros).

O esforço intelectual de La Boétie, elucidado nesta investigação, é o de compreender o que é o fenômeno da servidão e quais são seus elementos fundantes. Para respondermos estas perguntas reavivamos a obra cinematográfica brasileira O descobrimento do Brasil de Humberto Mauro. Ao relacionarmos a argumentação de O discurso sobre a servidão voluntária com as imagens oferecidas pelo filme, extraímos a seguinte tese: o fenômeno da servidão não é fruto do infortúnio,

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O desvelamento do mau encontro em O descobrimento do Brasil à luz do pensamento de La Boétie, pp. 108-122 ou seja, de um destino que determina nossa vida até perdemos completamente o seu controle. A servidão tem também sua razão de ser na sua escolha deliberada pelos indivíduos. Nem o fascínio pelos governantes, nem os muros e os arqueiros do tirano e nem o leite da servidão que, ao nascer já amamentamos, são eficientes para imobilizar os seres humanos em uma condição tão antinatural e tão contrária a sua humanidade que é a da escravidão. Somos livres e desejamos a liberdade a qualquer custo. Se as bestas e os insetos lutam, muitas vezes, até a morte em busca de reconquistar seu bem perdido, porque nós agiríamos de outra maneira? Se dezenas de homens, centenas de cidades e milhares de nações resolverem seguir as regras impostas por um, é em razão, instrui-nos La Boétie, de querermos submeter aqueles que estão logo abaixo de nós com o intuito de obtermos ganhos por intermédio disso. Contudo, é preciso fazer uma ressalva: os aborígenes não viviam a lógica dos ganhos da servidão voluntária, mas os portugueses sim. Estes, logo quando atracaram em terras tropicais, tentaram impor seu horizonte de compreensão cultural com a celebração da primeira missa. Mas, ao contrário do olhar harmonioso, proposto pelo O descobrimento do Brasil, queremos enfatizar que se havia uma sociedade dividida entre dominados e dominantes, esta sociedade era a portuguesa, basta olhar a penúria e a fome que a tripulação passa em contraposição às regalias que possui o capitão-mor. Em suma, o mau encontro é o choque de duas culturas que se contrapõem radicalmente: a cultura da servidão voluntária (colonos) e a cultura da liberdade (colonizados). Esta foi corrompida e devorada por aquela. É pertinente ressaltarmos também que, por não se adequar a essa imposição, muitas comunidades indígenas foram exterminadas, por não aceitarem a ideia de ter que viver precariamente em nome de um deus, de uma lei e de um rei que não os seus. Desse modo, o nosso intuito foi desvelar da obra cinematográfica O descobrimento do Brasil, que escondeu diferenças culturais entre dominados e dominantes, exaltando uma harmonia inexistente entre ambos, dois modos de vida antagônicos, os quais, contemporaneamente, ainda são antípodas.

REFERÊNCIAS ANDRIES, André. O cinema de Humberto Mauro. Rio de Janeiro: Funarte, 2001. CHAUI, Marilena. Contra a servidão voluntária. Organizador Homero Santiago. 2ed. Belo Horizonte. Autêntica. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014.

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136

PROIBICIONISMO DE DROGAS E (DES)SUBJETIVAÇÃO EM UM ESTADO RACIALIZADO Lucas Leitão1 Felipe Cardoso Vale2 Pablo Severiano Benevides3 RESUMO: Na pesquisa empreendida, inspirada na arqueogenealogia foucaultiana, buscou-se investigar em quais estratégias de poder o proibicionismo das drogas se inscreve enquanto dispositivo - conceito referente a determinada cisão que atende à urgência de uma época. Para tanto, fez-se necessária uma incursão acerca do histórico dessa proibição a nível global, enfatizando suas peculiaridades em território brasileiro. Um elemento de capital importância para a potencialização da perspectiva aqui trabalhada é o dispositivo de racialidade, concebido por Michel Foucault e desenvolvido na leitura foucaultiana de Sueli Carneiro, enquanto norteador das políticas de Estado, agenciadas à grande mídia, que, através da produção de um inimigo fictício, culminam no extermínio da população negra do Brasil e com isso discutir sobre aqueles que normalmente sofrem os preconceitos e as intervenções do estado mediante ao dispositivo “drogas”, colocando questões acerca dessa problemática em nosso país, já que esta questão se mostra tão presente nos dias de hoje. PALAVRAS-CHAVE: proibicionismo de drogas, racismo de Estado, dessubjetivação ABSTRACT: In the following research, inspired by foucaultian archeogenealogy, it was sought to investigate in which strategies of power the prohibitionism of drugs inscribe itself as a device concept concerning to a certain split that attends to an urgency of a time. In order to do so, an incursion into the history of this prohibition at a global level was necessary, emphasizing its peculiarities in Brazilian territory. An element of capital importance for the potential of the 1 Aluno mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade (LAPSUS), e-mail: lucas.raje@gmail.com. 2 Aluno mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade (LAPSUS), e-mail: feli.albiere@gmail.com 3 Professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma Universidade. Graduado em Psicologia (UFC), Mestre em Filosofia (UFC), Doutor em Educação (UFC-UERJ) e Pós-Doutor em Filosofia da Educação (Universitat de Barcelona). E-mail: pabloseverianobenevides@hotmail.com

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 perspective worked here is the device of raciality, conceived by Michel Foucault and developed in the foucaultian reading of Sueli Carneiro, as the guiding force of the State policies, agenciated to mass media, that, through the production of an enemy, culminate in the extermination of Brazil's black population and thus discuss about those who usually suffer prejudice and state interventions through the "drug" device, asking questions about this problem in our country, since this issue is so present today. KEYWORDS: drug prohibitionism, State racism, desubjectivation Introdução Através de uma breve revisão bibliográfica de inspiração arqueogenealógica, pretendemos, como o próprio título do trabalho sugere, problematizar os discursos oriundos das políticas proibicionistas de drogas, desde seus primórdios no século XIX até a atual conjuntura neoliberal transnacional, precisamente no tocante aos arranjos de poder contingenciais à consolidação do capitalismo. Uma proposição que aqui será exposta para que a discussão suscite as perguntas caras aos autores será aquela, amplamente defendida por críticos do capitalismo, de que o mesmo se utiliza do autoritarismo em sua periferia como uma forma de contenção de massas não mais assimiláveis ao seu atual modelo de produção. Assim, podemos entender que golpes militares e/ou jurídicosmidiáticos vêm sendo fomentados em países latino-americanos por uma suposta crise do capitalismo, que implicaria em um cessar das tentativas de incorporação da questão social pela lógica de produção de tal sistema que, ante os ideais da Modernidade, prometia um desenvolvimento econômico acelerado e a futura consolidação de um bem-estar social no qual toda a população pudesse usufruir da comodidade que os avanços tecnológicos, animados pela livre concorrência e pelo lucro dos grandes empresários, proporcionariam. Mediante uma breve incursão por um passado colonialista, iremos nos ocupar com a proposta de descrever os mecanismos de racialização do estado, seus alicerces discursivos e suas consequências na produção subjetiva da população brasileira que, através de tecnologias identitárias, desenvolvidas em maior parte pela grande mídia, operam múltiplas cisões no intuito de definir quem somos nós, cidadãos, e quem é o outro, o inimigo de Estado.

Metodologia Para além de uma análise do discurso, o método da arqueogenealogia foucaultiana consiste em lançar luz sobre as contingências históricas que viabilizaram a legitimação de determinados

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 saberes, em detrimento de outros. Para tanto, comumente empreende-se, na forma de pesquisa em arquivos, incursões acerca de narrativas de diversas áreas que possam contextualizar determinados saberes em seu período histórico, e possivelmente desvelar a quais instâncias não-discursivas estes estavam a serviço. Não se trata de procurar origens ou essências, pois segundo o pensamento de Foucault, neste ponto se mostrando agudamente influenciado pela filosofia nietzscheana, as coisas se formam pelo detalhe. “A invenção trata-se dessas pequenas coisas que vão se juntando para formar as grandes coisas; não há um surgimento de algo do nada que possa se caracterizar como origem” 4.Portanto, as questões fundamentais da arqueogenealogia se produzem não através de uma análise teórica e epistemológica acerca da coerência de determinados discursos, mas ao tomar como objeto “as grandes mesquinharias e baixezas atuantes na construção deste templo magno da verdade”5. Especificamente na presente revisão, faz-se necessário investigar como o discurso do colonizador europeu, símbolo da emancipação prometida pelos ideais da Modernidade (ilustrada, por exemplo, pela figura do navegador, que sai da imaturidade através de um esforço autóctone para desbravar os mares da ignorância e da ilusão) foi, durante a breve história da sociedade brasileira, agenciado à Psiquiatria, à Medicina Legal, à Criminologia e ao Urbanismo higienistas para, posteriormente, engendrar o Direito Penal e a Segurança Pública. Intentamos, através da seleção de narrativas em questão, explicitar um denominador comum de viés racista que pode ser apontado como um elemento chave na produção do arranjo discursivo proibicionista, que hoje é responsável pelo extermínio da população subalterna - jovem e negra - no Brasil, assim como em outras regiões da periferia do capitalismo. Aqui buscamos entender quais contingências históricas, o que inclui determinados acontecimentos pontuais, deram visibilidade e dizibilidade ao discurso da guerra às drogas, e como este é amparado e retroalimentado por outros discursos que atualizam dispositivos de poder de natureza colonialista, racista e, portanto, violenta.

Agenciamentos históricos entre racismo e criminalização de drogas Devemos considerar as particularidades do projeto de consolidação da ordem burguesa no Brasil. Posto que, “bem ou mal, a ‘questão social’ é incorporada na Revolução Francesa, onde cada homem

4 5

Ramos, 2010, p. 9 Benevides; Barreto, 2014, p. 162

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 é um cidadão”6, não encontramos pares no centro do capitalismo para interpretarmos o que ocorreu durante o Brasil colônia, no qual o negro (oficialmente) não era sequer visto como humano, tampouco como cidadão - era mercadoria, sujeito a dispositivos legais que garantiam sua despersonalização. Não apenas um reflexo, como uma atualização dessa configuração se perpetuou após a abolição da escravatura, em uma “modernização” social baseada, segundo Batista 7 ,na luta entre dois campos: “de um lado ‘o progresso, a civilização e a regeneração’, do outro a ‘cidade atrasada, suja e doente’”. Como postula a autora, “a urbanização do Rio de Janeiro (e do Brasil) é o retrato fiel de sua visão de cidadania: a exclusão permanente das classes subalternas”8. Cardoso9 ressalta que, durante a escravidão, o negro tinha um péssimo lugar na escala social, mas tinha. Os libertos já não teriam lugar nenhum, nem como mercadoria e força de trabalho, dentro da escala social do projeto civilizatório que a ascendente burguesia nacional empreendia naquele período. Tendo em vista a abolição dos escravos como concomitante ao processo de urbanização norteado por ideais positivistas, o advento de discursos científicos como o do psiquiatra italiano Cesare Lombroso possibilitou que as obras de modernização assumissem o significado de operações de higiene social, “exprimindo bem o ‘medo branco’ e o projeto de exclusão e de marginalização dos libertos, a representação burguesa do que seria a cidadania negativa das classes subalternas” 10. Pereira Rego, médico com certa notoriedade, propunha uma “cirurgia” na cidade, que objetivava esvaziar o centro, impelindo as comunidades pobres para as margens do plano urbanístico, fora respaldado por outros representantes do ideário da elite da época, como o advogado Rodrigues Alves, que defendia a demolição de cortiços para que tais obras se efetivassem11. De fato, para a mentalidade da minoria branca do Brasil no século XIX, talvez o perigo oferecido por uma massa populacional biologicamente indolente (segundo as teorias lombrosianas) e contingencialmente ociosa, após a libertação da condição de escravos sem nenhuma perspectiva de ascensão social e econômica, não fosse apenas uma paranóia coletiva. No censo de 1849, o Rio de Janeiro apresentou a maior população escrava negra das Américas12,o que não é de se espantar,

6 Batista,

2003, p. 38 2003, p. 41 8 Batista, 2003, p. 41 9 Cardoso, 1998 10 Batista, 2003, p. 21 11Batista, 2003, p. 21 7 Batista

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Batista, 2003, p. 21

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 dado que, entre 1500 e 1822, enquanto vieram cerca de um milhão de portugueses, foram trazidos aproximadamente três milhões de africanos13. Ainda durante essa breve digressão acerca do processo de segregação do negro em solo brasileiro, já podemos situar o elemento “droga” como alvo de um dispositivo proibicionista que teria por objetivo “marcar” um determinado grupo como incompatível ao projeto de civilização que pretendia-se empreender. Segundo Luiz Mott, a primeira norma a criminalizar efetivamente o uso de alguma droga no Brasil - e no mundo - foi um Código de Postura da cidade do Rio de Janeiro datado de 1830, através do qual foi “proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas”14. Após a abolição da escravatura, o hábito de fumar maconha, trazido da África e claramente associado aos seus dissidentes, fato este ilustrado pelas mais antigas denominações da erva em solo brasileiro - “fumo de negro”, “fumo de Angola” e “veneno africano”15 ,assim como o próprio “pito de pango”16 - começou a ser alvo de políticas de segurança pública do Estado que, na prática, representavam medidas de perpetuar o exercício de controle sobre a liberdade do ex-escravo. Um elemento indispensável que vem a corroborar a argumentação, aqui empreendida, do proibicionismo enquanto dispositivo racial é a existência, no primeiro Código Penal da República do Brasil, então recém-proclamada, da “Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação", promulgada com fins de criminalizar a capoeira, as expressões musicais, os saberes curativos e a religiosidade de origem africana, assim como o uso da cannabis, ocasionalmente utilizada em rituais do Candomblé e da Umbanda, outrora considerados “baixo espiritismo”17. Posteriormente, com fins de garantir sua legitimidade, a Umbanda abdicou do uso da maconha, significativo sacramento ritualístico e marcador identitário africano, para, então, ser descriminalizada, “embranquecimento” de práticas este simultâneo ao recrudescimento das penas sobre aqueles que consumissem, cultivassem, portassem, vendessem ou distribuíssem a planta, através do artigo 281 do Código Penal de 194018. Anos depois, por outro lado, dessa vez munidos de um discurso pseudo-científico, bastante cobiçado pela elite do início do século XX, a classe médica defendia que o uso da maconha potencializava tendências comportamentais incompatíveis com a boa civilidade, de acordo com os

13

Peres e Barros, 2011 Mott, 1986, p. 131 15 Saad, 2013 16 Mundim, 2006 17 Peres e Barros, 2011 18 Peres e Barros, 2011 14

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 ideais positivistas. Como um ilustre representante desse saber, de influência claramente lombrosiana, o psiquiatra e político sergipano Rodrigues Dória, que outrora referira-se à chegada do “vício” da maconha em terras brasileiras como uma espécie de vingança do africano contra o colonizador, aqui postula: (...) é possível que um individuo já propenso ao crime, pelo efeito exercido pela droga, privado de inibições e de controle normal, com o juízo deformado, leve a prática seus projetos criminosos . (…) Entre nós a planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de certas beberragens, empregadas pelos “feiticeiros”, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos “candomblés” - festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que lhes herdaram os costumes e a fé – é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em Pernanmbuco a herva é fumada nos “atimbós” - lugares onde se fazem os feitiços, e são frequentados pelos que vão aí procurar a sorte e a felicidade. Em Alagoas, nos sambas e batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que “porfiam na colcheia”, o que entre o povo rústico consistem em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas últimas palavras de contendor19.

Devemos atentar que tais características que descrevem o indivíduo alterado sob o efeito da cannabis eram precisamente as mesmas atribuídas comumente a condição imanente de ser negro em suma, visavam combater a instituição dos mesmos enquanto cidadãos, com direitos garantidos, através de dispositivos raciais que os projetavam para o lado da irracionalidade, como regidos unicamente pelas forças da natureza e, portanto, inassimiláveis pelo modelo de modelo de sociedade “cultivada” e “selecionada” defendido por Lombroso. Com esse exemplo, podemos encontrar já no século XIX um paralelo com a lógica da criminalização do “ser” enquanto tomado de um certo “fazer” oculto, precisamente endereçada à população negra ainda nos dias de hoje, seja durante as rotineiras operações militares ou nas justificativas das mortes de “envolvidos” por parte da sociedade civil, que deslegitimam vidas perdidas enquanto passíveis de luto e as selam sob os signos do ódio, da vingança ou do esquecimento. O pioneirismo do Brasil no que tange ao proibicionismo das drogas, inflamado pelas particularidades da nossa segregação colonial e a herança do que autores como Batista denominaram “afetividade inquisitorial Ibérica”, iria ainda deixar um legado para o mundo no século posterior. Não exatamente exercendo influência sobre a maior potência mundial do período, mas vindo a calhar a alguns de seus interesses, o papel de um certo médico conhecido como Dr. Pernambuco foi fundamental para a proibição a nível global que seria imposta pelo governo norteamericano. Durante a II Conferência Internacional do Ópio, ocorrida em Genebra no ano de 1925, o 19 Doria,

1958, p. 5

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 mesmo defendeu para as delegações de 45 países que a erva fumada pelos escravos brasileiros era muito mais nociva do que a própria substância que havia motivado a reunião em questão. “Em outras palavras, foi baseada nas ideias racistas e escravocratas presentes no discurso de um psiquiatra brasileiro, que a criminalização da maconha viria a ser internacionalizada”20. Em um contexto no qual a fibra de cânhamo, uma das principais matérias-primas da indústria têxtil daquele período (que inclusive compunha as folhas do primeiro livro impresso da história - uma Bíblia - e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, assim como as cordas e outros apetrechos marítimos das embarcações de Cristóvão Colombo em sua vinda às Américas) e outros derivados como o óleo da cannabis ainda apresentavam uma forte ameaça a então recente ascensão da indústria baseada em combustíveis fósseis - representada pela empresa petroquímica Dupont, que tinha como braço direito Harry Aslinger, primeiro diretor da Agência Federal de Narcóticos (FBN), idealizador e executor das primeiras campanhas repressivas e difamatórias contra a cannabis21 - a declaração do médico pernambucano em questão gerou reverberações que traçariam os rumos do proibicionismo de drogas nos países ao redor do globo, catalisado pelos interesses da indústria petrolífera norte-americana. A culminância desse processo aconteceu quando, durante o próximo encontro desse tipo, a Convenção de Genebra de 1931, dessa vez com caráter decisivo, a cannabis foi incluída na lista de substâncias mais perigosas e sua proibição foi imposta ao mundo. A semente plantada por Dr. Pernambuco no exterior logo deu frutos em solo tupiniquim, através do decreto 2930 que “passava a penalizar também o usuário, porém, diferenciando-o do traficante”22.

Das populações subjetivadas pelo “dispositivo droga” No caso do Brasil contemporâneo, podemos visualizar claramente os elementos que consolidaram a Alemanha Nazista enquanto o arquétipo de estado racista, assassino e suicida, como o amparo de suas medidas de exceção na produção de um inimigo de Estado fictício, e o decorrente sacrifício de boa parte da população, inclusive dos “cidadãos de bem”, na empreitada de transformar a manutenção da paz em uma “guerra sem fim”. Porém, aqui encontramos o racismo de Estado não

20

Peres e Barros, 2011. 1999 22 Peres e Barros, 2011. 21 Robinson,

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 exatamente amparado de forma legal, mas subsistente nas práticas institucionais de setores como a Polícia Militar e a grande mídia23. Ademais, é possível conceber toda uma cultura punitivista - agenciada pelo sistema penal, juntamente com as instituições militares, os meios de comunicação e a própria sociedade civil como sendo a reguladora das tensões intrínsecas a esse projeto excludente de sociedade. As classes média e alta distribuem-se nos territórios urbanos, geralmente, sem sequer perceberem que o circuito onde se deslocam é apenas uma bolha em uma paisagem árida, e que as pessoas com as quais convivem representam uma minoria em meio aos esquecidos da cidade, com os quais não compartilham nenhuma característica, aparentemente. Tal lógica de alheamento é assombrada apenas pelo irromper da violência, que usualmente é cooptada com sucesso pela grande mídia aquilo que poderia ser um sintoma de uma lógica fadada ao fracasso, e um convite à crítica dessa produção de “fantasmas”, é transformada com sucesso pela grande mídia em um motivo de recrudescer cada vez mais tais instâncias normativas, culminando na produção de estereótipos do inimigo, como o: Jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda 24.

Os programas policiais visam neutralizar a problematização ao investir maciçamente na tentativa de mascarar tais operações perversas aqui discutidas através da culpabilização de tais pessoas, ressaltando o cinismo e a afronta dos infratores como características inatas dessa espécie inumana que “sobrevive para atormentar a vida”. Quando selada pelo signo da inimizade, a morte de jovens pobres e negros é esquecida ou mesmo celebrada. Quando lançamos um olhar crítico sobre essa distribuição desigual do luto público, costumamos nos questionar quais mecanismos operam para estabelecer essa linha divisória que faz com que a eventual morte de uma única pessoa de classe média seja regularmente revisitada pela mídia, inflamando campanhas para convocar a sociedade através do medo e da indignação, e, ao mesmo tempo, todos os dias moradores de territórios tidos como “nebulosos” sejam humilhados e chacinados em grande número, sem que tais acontecimentos requisitem do brasileiro médio, ao menos, alguns segundos de sensibilidade e reflexão acerca dos ocorridos enquanto “perdas”. No sentido de responder a essa questão para

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Batista, 2003 Batista, 2003, p. 36

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 suscitar muitas outras, Butler25 nos questiona: como lamentar a morte de algo que não era sequer reconhecido enquanto vida? De fato, o olhar daqueles que, através de tais enquadramentos, reconhecemos como nossos pares, nos sãos percebidos como portadores de sentimentos identificáveis, sonhos que também sonhamos. No entanto, as silhuetas que nascem, se criam e desaparecem sabe-se lá como, apenas são percebidas quando se materializam em cenas de violência. O que se esperar de pessoas que só conhecem a cidadania através de seu avesso rotineiras humilhações, espancamentos e chacinas? Batista ressalta que tais estereótipos, ao criminalizarem a própria pobreza e a negritude que não são ações, mas, sim, condições inerentes - terminam por fechar o cerco daquele que, “vítima do desemprego e da destruição do Estado pelo aprofundamento do modelo neoliberal, é recrutado pelo poderoso mercado de drogas”26.A demonização de tal parcela da população é imbricada, sobretudo, à imperiosidade pela qual suas vidas são cooptadas pelo setor em questão. Se todas as instâncias de reconhecimento social referem-se à cor da pele como o fundamento do “ser criminoso”, qual seria o espaço, em meio a um mercado de trabalho recessivo e excludente, para relativizar tal normatividade e, enfim, escapar de sê-lo? Como seria possível, para tais multiplicidades, agenciar linhas de singularidade esquivadas do constrangimento pela colagem da representação - no caso, de “encarnação do mal”? Tais questões podem emergir no sentido de problematizarmos o potencial que estes regimes de visibilidade, empregados pela mídia, possuem para invisibilizar outras formas de subjetivação. Em outras palavras, essas existências só são remetidas à vida enquanto ameaça a mesma; quando são, finalmente, rostificadas - conceito deleuze-guattariano relativo à moldabilidade de uma superfície de reconhecimento político por parte dos agenciamentos que compõem a “máquina abstrata” social27 - em programas policiais pelo estereótipo do “envolvido”, através do qual transitam do campo da ininteligibilidade e da ambivalência para expressões e trejeitos facilmente identificadas à sociopatia e à monstruosidade ou, na melhor das hipóteses, à condição de “pirangueiro”, sendo esta muitas vezes até comicizada pelos apresentadores. Ao operar no controle de virtualidades28, o espetáculo midiático monta o palco onde os “identificados” percorrem a curta

25

Butler, 2015 2003, p. 41 27 Deleuze e Guattari, 2004 26 Batista,

28

Deleuze, 1990

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 trajetória que, enfim, os projeta de anos de desprezo para alguns minutos de ódio e vingança no regozijo fascista do telespectador. O estado de direito da democracia neoliberal, segundo Butler29, assim como Batista e Carneiro, tem como condição de possibilidade a produção de um inimigo própria do estado de exceção, seja dentro do próprio território nacional ou além-fronteiras, nas zonas de matabilidade elegidas pelos países capitalistas centrais. É nesse contexto calamitoso que são abandonadas as metas às quais Batista30 se referiu enquanto “ilusões re”: ressocializações, recuperações, reeducações, para então adotar-se o armazenamento, emparedamento e neutralização dos marginalizados. A esse respeito, Hilário comenta: Aquela ideia de que o sistema carcerário operava no sentido positivo, isto é, ressocializador, constituindo-se enquanto espaço no interior do qual os indivíduos que cometiam crimes eram relançados para a sociedade melhores do que ingressaram, hoje é capaz de provocar risos31.

O autor postula a teoria de que, se durante o processo que viria a consolidar o capitalismo como um sistema hegemônico, imperava a noção de que, ao enviar o criminoso para a penitenciária este seria corrigido e retornaria melhor para a sociedade, no atual declínio desta forma social, a proposição agora consiste em acumular a maior quantidade possível de massa sobrante a fim de proteger esta mesma sociedade, de modo que a prisão então se torna, nos termos de Wacquant, um “armazém de dejetos humanos do mercado”32. Acerca da questão, com base em Castelo33 , Hilário comenta: “Na medida em que a “questão social” já não é mais solúvel no interior das instituições sociais capitalistas, a sua consequente militarização e barbarização aparece como modelo de gestão possível”34.Especificamente no contexto brasileiro, o autor explicita o definhamento das instituições disciplinares por excelência escolas, prisões, hospitais, etc. - através de dados que demonstram um aumento de 30% da população carcerária de 1990 a 2010, “tendo crescido numa taxa 15,7 vezes maior do que a taxa de crescimento da população nacional”35 ,o que denuncia um certo processo de decomposição das formas de sociabilidade próprias do capitalismo até então.

29 Butler,

2015 Batista, 2003 31 Hilário, 2016, p. 206 32 Wacquant, 2007, p. 126 33 Castelo, 2014 34 Hilário, 2016, p. 205 30

35

Hilário, 2016, p. 206

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 Aí então, a crítica intenta por intervir e evidenciar o fracasso das tentativas de instituir a humanidade, e logo, a cidadania de alguém através dos mesmos padrões normativos que não os do reconhecimento da precariedade da vida humana - conceito este utilizado por Butler36 para evidenciar que a possibilidade de manutenção da vida depende não apenas de impulsos internos ao ser, mas de condições sociais e políticas que a reconheçam como tal, e garantam sua existência e alguma responsabilidade para com esta por parte do Estado. Sintetizando: podemos nos perguntar qual é o sentido de este mesmo Estado convulsionarse em malabarismos para re-assimilar o jovem negro da periferia - protagonista da inimizade na qual se funda a “ex-colônia” que tomamos por país - sem modificar tal lógica de cidadania fundamentada na exclusão - ou, em outras palavras, de “construção do outro como ‘não-ser’ como fundamento do ser”, didático título da tese de Carneiro acerca da dinâmica instituída pelo dispositivo de poder enquanto “definida pelo dinamismo do Ser em contraposição ao imobilismo do Outro”37 - a imagem cristalizada do inimigo. Seria este “um jogo de cartas marcadas? ”

Considerações Finais Quando nos deparamos com as diversas possibilidades de relacionamento entre políticas de Estado e drogas, principalmente tomando como referência as experiências pós-descriminalização dos países ricos e do Uruguai, assim como de outros países que sequer possuem legislação relativa a determinadas drogas, é inevitável nos questionarmos como se agenciaram os discursos que desenharam o atual cenário brasileiro - tomado por alguns como uma modalidade de “guerra civil” e por outros, resumidamente, enquanto um legítimo “extermínio”-, e a quais interesses estes estão a serviço. Após uma breve digressão apresentada no início desse artigo sobre a história da cannabis e da relação com a mesma no Brasil, adentramos nas questões próprias ao Estado e suas implicações na racialização da droga sobre a persona do negro através de diversos dispositivos de poder, como a mídia por exemplo. Assim, pudemos visualizar como as drogas, ao serem visibilizadas enquanto questão, fomentam a fabricação de um “rosto próprio”. Este inimigo que fora produzido então pelo Estado, apresenta suas características em torno de preconceitos e estereótipos que são distribuídos

36 Butler,

2015 2005, p. 40

37 Carneiro,

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Proibicionismo de drogas e (des)subjetivação em um Estado racializado, pp. 123-136 na população, fazendo com que o medo se instaure e seja mais fácil a discriminação da identidade criada e dos elementos que a cercam. É importante ressaltar que, apesar da recente flexibilização que o discurso proibicionista vem adotando, resultado, em grande parte, da popularização do uso da maconha em determinadas camadas sociais que não as marginalizadas, o quadro de interesses, que abrange desde a indústria farmacêutica até a armamentista, ainda vem se desenhando, e a tendência é que aponte para estruturas cada vez maiores - para enfim, conseguirmos visualizar minimamente a dimensão da rentabilidade que legitima as nossas dezenas de milhares de mortes violentas anuais enquanto “aceitáveis”. Para concluir, propomos que a problematização dos dispositivos que delineiam tal identidade implica pôr em cheque as próprias normas de reconhecimento da cidadania como a concebemos. Podemos, neste ponto, relembrar quando, no dia 20 de junho deste ano, Marcos Vinicius, adolescente de catorze anos morador da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, foi baleado pela PM e, em seguida, segundo sua mãe, indagou a mesma: “ele não viu que eu estava com roupa de escola”? Percebemos neste caso, como em muitos outros, o quão impetuosamente a identidade do inimigo é afincada por tecnologias de poder, e o quão dolorosamente fadadas ao fracasso são as tentativas de, para aqueles que a encarnam, incluir-se na “regra”- aqui, mais uma vez, a detecção de características de inimizade se mostra implacável, alheia a qualquer “vontade”. Reiterando a problemática da produção de um não-ser como fundamento do ser; da exceção enquanto alicerce democrático; e, enfim, da produção deste inimigo sem o qual não há condição para a cidadania, servimo-nos de Foucault (2000), em suas discussões tangentes à ética, para questionar a nós mesmos acerca da extrapolação dos limites do necessário: no atual momento histórico, a exclusão ainda se faz realmente imprescindível para a constituição de nós mesmos enquanto sujeitos autônomos?

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144

A MODERNIDADE ANALISADA A PARTIR DO FILME CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS. Edival Saraiva de Oliveira Neto1

A modernidade ou é vista com um entusiasmo cego e acrítico ou é condenada segundo uma atitude de distanciamento e indiferença neo-olímpica. (BERMAN).

RESUMO: Este presente trabalho tem por objetivo analisar a categoria da modernidade partindo do filme Cinema, aspirinas e urubus, um Road Movie2 de 2005, dirigido pelo pernambucano Marcelo Gomes. Partindo do ponto de vista dos dois protagonistas da história, Ranulpho e Johann, planejamos esboçar umas discursão sobre a modernidade, que nos debates contemporâneos, nas ciências, fomenta ainda muitos debates. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade, Cinema, Nordeste. ABSTACT: This paper aims to analyze the category of modernity starting from the movie Cinema, aspirins and vultures, a 2005 Road Movie3, directed by the Pernambucan Marcelo Gomes. From the point of view of the two protagonists of history, Ranulpho and Johann, we plan to outline some discourse on modernity, which still fosters many debates in contemporary debates, in the human sciences. KEY-WORD: Modernity, movie, Northeast. INTRODUÇÃO.

1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri -URCA. E-mail: edivalsaraiva09@gmamail.com ; edvalsaraiva@hotmail.com 2 Um gênero cinematográfico em que grande parte da narrativa fílmica se passa dentro de um veiculo ou na estrada. 3 A film genre in which much of the film narrative takes place inside a vehicle or on the road.

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144 A modernidade é uma categoria de analise que permeia discursões nas ciências humanas em geral. E várias conceituações e opiniões divergentes sobre este conceito são produzidas por estudiosos que se dedicam a esse tema. Há autores que afirmam que a modernidade foi superada e que vivemos na chamada pós-modernidade (François Lyotard, Stuart Hall, entre outros) e autores que defende a modernidade enquanto fenômeno ainda vigente (Anthony Giddens e Jurgen Habermas). 4 Contudo, como base para análise do conceito de modernidade utilizaremos as reflexões de Marshall Berman, no seu conhecido Tudo que é solido se desmancha no ar, e das reflexões realizadas por Perry Anderson em seu texto Modernidade e revolução que, analisando a obra de Berman, elabora sua percepção do que seria modernidade, modernismo e modernização. Tendo como base conceito de modernidade, buscamos compreender como o discurso referente à modernidade aparece no filme Cinema, aspirinas e urubus. Filme lançado em 2005 e que é dirigido pelo pernambucano Marcelo Gomes e no ano de seu lançamento teve reconhecimento internacional5. Compreendendo que o cinema é um instrumento que facilita a disseminação de discursos, aqui no caso sobre a região Nordeste6, e de possuir relação com a sociedade. À análise do filme Cinema, aspirinas e urubus, torna-se uma ferramenta para se entender muitos dos discursos criados sobre o Nordeste e seus habitantes, assim como sobre o Brasil, abordando questões identitárias num determinado contexto histórico, o que torna o filme rico não só esteticamente, como para análise social. A região Nordeste aqui não será vista apenas como uma região geograficamente fixa, algo natural. Mas será analisada como fruto de relações de poder, e que é produzida por discursos que passam a atribuir características homogêneas a essas regiões, sendo assim a região passa a adquiri um caráter simbólico Uma identidade espacial, construída em um preciso momento histórico, final da primeira década desse século e na segunda década, como produto do intercruzamento de práticas e discursos “regionalistas”. Esta formulação de nordeste, dar-se-á a partir do agrupamento conceituais de uma série de experiências, erigidas como caracterizadoras desse espaço e de uma identidade regional. (MUNIZ, 2001, p.22).

4

As discursões que relacionam a diferenciações entre modernidade e pós-modernidade não serão abordadas no desenvolvimento desse trabalho, sendo aqui exposto apenas como uma forma de situar o leitor. 5 Foi escolhido para representar o Brasil no Oscar, participou da seleção oficial da Mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar) do Festival de Cannes de 2005, conquistou o prêmio de melhor filme latino-americano no Festival Internacional de Mar del Plata - Argentina, 2006 e, no Brasil, conquistou o prêmio de melhor ficção na 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Grande Prêmio Cinema Brasil como melhor filme, o “Prêmio especial do júri” no Festival Internacional do Rio de Janeiro, entre outros prêmios. Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67602/cinema-aspirinas-e-urubus 6 Local em que o filme é ambientado.

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144 Por isso é importante analisar também os discursos que são atribuídos a determinadas regiões, e como esse discurso acabam criando uma identidade cristalizada e estereotipando determinadas características de determinados povos ou regiões, no caso especifico desse trabalho a região Nordeste. Sendo assim o trabalho terá como objetivo analisar a forma de como o discurso acerca da modernidade nos é apresentado no filme anteriormente citado e qual a concepção dos dois personagens principais Johaan (interpretado por Peter Ketnath) e Ranulpho (interpretado por João Miguel), aparentemente divergentes sobre ao que é modernidade e o que é ser moderno.

CINEMA E ASPIRINAS: UM IDEAL DE MODERNIDADE.

Foi construído e, constantemente, reconstruído, ao longo dos anos, um imaginário a respeito da região Nordeste, de seus moradores e de seu subdesenvolvimento, principalmente em relação à região Sudeste. Tendo como base os discursos reproduzidos pelo senso comum, principalmente se analisado pelo viés puramente econômico, chega-se quase sempre a uma mesma conclusão que enquanto a região sudeste continua em um processo crescente de desenvolvimento a região nordeste permanece estagnada ou sem grandes crescimentos. A falta de investimentos do governo seja a nível federal ou estadual, e a forma de política exercida no Nordeste em contraponto, à forte industrialização da região sudeste contribuíram para caracterizar o nordeste enquanto subdesenvolvido. Durante o desenvolver do filme essa dicotomia Nordeste e Sudeste se torna evidente principalmente nas falas do personagem nordestino Ranulpho, que tem como sonho sair de sua região natal e ir à busca de melhores condições que seria encontrada na cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro. O filme se passa no sertão nordestino no conturbado ano de 1942 e conta a história de Johaan, um alemão que fugiu de seu país devido à Segunda Guerra Mundial e que em um caminhão trabalha vendendo aspirinas no interior do Nordeste, utilizando-se do cinema como uma estratégia para vender tal produto. Johann decide dar carona ao sertanejo Ranulpho que está querendo sair de uma vida de miséria e sem perspectivas de melhorias rumo à região Sudeste, mais especificamente o Rio de Janeiro que, no seu imaginário, oferecia mais oportunidades e melhor qualidade de vida do que a encontrada no sertão. Os dois migrantes param em algumas cidades do interior do Nordeste para, por meio de um filme publicitário, vender as aspirinas. E, são nas paradas para abastecimento, Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144 alimentação, além de exibições dos comerciais sobre as aspirinas, assim como durante o percurso até um próximo destino que desenvolve a narrativa de Cinema, aspirinas e urubus. Movido por esse desejo de melhoria de vida, busca de novas oportunidades, desapego aos laços pessoais, afirmando que “saudade é boa porque passa”, percebemos então que a modernidade mudou não só o que Anderson chama de condições objetivas causadas pelo mercado mundial relacionado ao “desenvolvimento” econômico como mudou as condições subjetivas do indivíduo. Essas mudanças vão acarretar no que Berman chamou de sensibilidade moderna que seria uma […] atmosfera de agitação e turbulência, vertigem e embriaguez psíquica, expansão das possibilidades da experiência e destruição das fronteiras morais e dos laços pessoais, autoexpansão e auto-perturbação, fantasmas na rua e na alma (BERMAN, 1982, p.18 apud ANDERSON, 1984, p.3).

E é justamente essa embriaguez psíquica, baseada em uma promessa de possibilidades em larga escala, novas experiências e a associação da modernidade com a noção de progresso é que faz com que essa ideia e essa sensibilidade moderna seja vista apenas pelo seu lado positivo, principalmente pelos moradores do sertão nordestino que tem, na maioria de suas histórias de vida uma associação ao atraso, seca, miséria, enfim muito dos discurso que o senso comum acaba por naturalizar. Como dito anteriormente, a modernidade promete aventura, possibilidades, em que as fronteiras geográficas são atravessadas e, talvez por esses fatores ela se torne tão atraente. Pensamos que esse ideal de atração que a modernidade exerce só é possível através de alguns fatores e o cinema pode ser um dos mais influentes na construção dessa imagem da modernidade como algo somente positivo. Percebendo então o poder que a imagem em movimento exerce sobre as pessoas, um dos filmes que é exibido durante a venda de aspirinas começa com uma frase “Brasil maravilhoso” seguido de uma imagem de uma cachoeira, logo um narrador começa anunciando que “São Paulo se apresenta aos olhos do forasteiro ainda pouco informado, como produto inequívoco de extraordinárias virtudes humanas. Nelas, se encontram à primeira vista, os exemplos de disciplina, de pertinácia, de energia e de habilitação que caracterizam a vida dos povos chamados a cumprir no mundo uma extraordinária missão civilizadora”. 7Logo em seguida na tela são reproduzidas imagens de carnaval e com o final dessa festa de prazeres do homem só sobram à lembrança e a dor, e o narrador finaliza então o filme dizendo que “na hora da dor não perca a cabeça. Tome aspirina, e mostre que tem cabeça”.

7 Para

uma melhor compressão do termo civilizado e não civilizado/selvagem ver Laplantine (2007), Aprender antropologia.

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144 Terminada a exibição do filme, Ranulpho exprime sua surpresa e diz que “pelo que se diz aqui, isso faz vender bíblia para satanás, menino!”. Essa admiração em relação às imagens exibidas em tela é demonstrada não só pelo personagem do nordestino, mas por toda a população que se encontra no espaço durante a exibição – vemos simultaneamente as imagens do filme exibido e da reação do público que admira as imagens como se fosse algo mágico. Duas características do filme exibido merecem uma análise mais atenta. A primeira é a forma de como a cidade de São Paulo é apresentada com suas belezas arquitetônicas, lugar de possibilidades e experiências além de ser um lugar de povo festeiro, com imagens da festa do carnaval, e feliz e ainda colocam os moradores de São Paulo como o povo destinado a cumprir uma missão civilizadora. Já o segundo fator interessante presente no filme são os slogans das aspirinas: “o fim de todos os males” e “use aspirinas, mostre que tem cabeça”, este último remetendo a certo evolucionismo, como se o uso do medicamento estivesse atrelado a uma suposta superioridade intelectual dos modernos habitantes das cidades em contraponto aos habitantes do sertão. Nesse período é comum encontrar filmes e outras produções culturais que, inclusive em seus títulos, colocavam a cidade de São Paulo como sinônimo de desenvolvimento, urbanidade progresso. Slogans como “São Paulo, locomotiva do Brasil” e “a cidade que mais cresce no mundo” eram reproduzidos e compunham um imaginário social cujo exemplo cinematográfico mais conhecido é São Paulo a sinfonia da metrópole. 8(1929). Contudo o filme não mostra o fenômeno da modernidade apenas do ponto de vista do migrante nordestino, o também migrante italiano, Johaan que se tratando do tema modernidade tem posições que divergem. O alemão é o primeiro personagem a aparecer em tela e na primeira cena Johaan aparece dirigindo o caminhão da empresa de aspirinas, com isso o filme nos mostra um ambiente pedregoso, sem nenhum verde, não se vê muitas pessoas, ou seja, imagem recorrente quanto se apresenta o Nordeste, seja na literatura, no cinema ou na música. Os pensamentos de Johaan se assemelham com os de Walter Benjamim que alerta: Não podia prever a chegada de uma forma de tecnologia militar mais moderna e mais mortífera do que os gases tóxicos- a arma atômica- mesmo assim percebeu, com uma acuidade extraordinária, o tipo de perigos de que era portador o progresso técnico no quadro da civilização (burguesa) moderna (BENJAMIM, 2013, p.10). 8

Baseado no filme Berlim Sinfonia da cidade (1927), dirigido por Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig e mostra a São Paulo dos anos 20, seus monumentos públicos, fatos históricos, com ênfase em ícones da modernidade como carros, edifícios e aceleração da vida social

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144 Durante todo o filme, o alemão evita ao máximo falar/ouvir sobre a segunda grande guerra. “pelo menos não caem bombas do céu”; “ eu não concordo com essa guerra” em outro momento do filme, em um diálogo com Ranulpho, Johaan e o nordestino acabam por imaginar como seria se ambos fossem lutar na guerra e em um momento Johaan imita o som de uma bomba e logo em seguida, pega um punhado de terra e diz “você é isso agora, poeira” e essas são algumas das frases ditas durante o filme por Johaan que demonstram um pensamento que não positivava a guerra, não a coloca como sinônimo de progresso, em que todo conhecimento técnico-cientifico existente nesse período seria um progresso para a civilização. Percebemos então que os dois protagonistas da história possuem posições ambíguas sobre a modernidade que para esse presente trabalho pode ser pensada como [...] Um modo de experiência vital- experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida- que é hoje em dia compartilhado por homens e mulheres em toda parte do mundo. Chamarei este corpo de experiência modernidade. (BERMAN, 1982, p.15).

Nota-se que a narrativa fílmica não coloca apenas um lado do que seria a modernidade, ou seja, em nenhum momento do filme percebemos uma idolatria ao moderno, assim como não percebemos uma visão predominantemente negativa sobre o ideal que se tem de modernidade. A visão dos personagens sobre a modernidade deriva de suas histórias de vida, enquanto um dos personagens vê a modernidade enquanto possibilidade, mudança e progresso (ideias essas disseminadas, principalmente pelos meios culturais tais como cinema, livros, músicas) o outro personagem tem certa repulsa a essa ideia de moderno, pois estar em guerra, a violência, o progresso que o conhecimento cientifico teria para com a sociedade, e prefere viver em uma região em que seus moradores e o das demais regiões consideram como sendo o oposto do moderno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Percebemos com as considerações anteriormente discorridas anteriormente nesse texto que a modernidade e os discursos que a positivam são de diversas maneiras disseminados e um dos mais comuns são as mídias, considerando que o cinema, desde a criação do cinematógrafo9 no século XIX pelos irmãos Lumiére, passou a ser um símbolo de modernidade. E essa era a estratégia que a companhia de aspirinas em que Johaan trabalhava utilizava para vender seus produtos e disseminar

9 Equipamento

que foi capaz de colocar as imagens em movimento, e esse aparelho foi considerado o precursor do cinema.

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144 uma ideia da cidade de São Paulo, ou da região Sudeste, como um sinônimo de progresso, oportunidades, ou seja, a modernidade. Essa imagem positiva que é atribuída à modernidade é “vista com um entusiasmo cego e acrítico” (BERMAN, 1982, p.18 apud ANDERSON, 1984, p.4). principalmente pelas pessoas que, como Ranulpho não possuem ferramentas que possam de maneira mais critica, assim como se coloca o personagem alemão. Ludibriado pelas oportunidades que a cidade maravilhosa pode lhe oferecer, Ranulpho decide manter sua ideia inicial de ir para o Rio de Janeiro, enquanto o migrante alemão é impossibilitado de realizar suas atividades devido a sua nacionalidade e o apoio brasileiro aos Estados Unidos durante a segunda guerra, vai se tornar um soldado da borracha10 e esse é o desfecho da narrativa que acompanha esses dois personagens que são mais complexos do que, nessa analise expõem deles. Além disso, esse trabalho pretende contribuir para o debate que se encontra muito presente nas discursões sobre a modernidade e como essa categoria de analise impacta na vida dos indivíduos seja de ordem mais material, como o mercado econômico, ou de ordem psíquica como mudanças de identidade entre outras mudanças.

REFERENCIAS ALBUQUERQUE Júnior, Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. 5°edição. São Paulo: Cortez, 2001. ANDERSON, Perry. Modernidade e revolução. Revista novos estudos CEBRAP,n.14, p. 2-14, 1984. BENJAMIN, Walter, 1992-1940. O capitalismo como religião; [organização Michael Löwy; tradução: Nélio Schneider, Renato Ribeiro Pompeu]. 1. Edição- São Paulo: Boitempo, 2013. LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007. Sites eletrônicos http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67602/cinema-aspirinas-e-urubus

https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/cinema-aspirinas-e-urubus Filmes

Cinema, aspirinas e urubus. Direção Marcelo Gomes. Patos; Picote; Pocinhos e Cabaceiras- PB. 2005. (100 min), son, colorido.

10

Nome das pessoas que iam para a Amazônia trabalhar na extração da borracha.

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A modernidade analisada a partir do filme Cinema, aspirinas e urubus, pp. 137-144 São Paulo, Sinfonia da Metrópole. Direção: Adalberto Kemeny, Rodolfo Lustig 1929 ‧ Preto e branco/Filme mudo ‧ 1h 30m

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154

FORMALISMO RUSSO E A OBRA DE ARTE LITERÁRIA: ENTRE A ESSÊNCIA E A FUNÇÃO João Paulo Afonso Neto1

A obra de arte me dá ideias, ensinamentos, não prazer. Paul Valéry

RESUMO: O presente texto pretende refazer o percurso de construção dos conceitos: literariedade, procedimento e estranhamento e sua influência no pensamento teórico literário e estético. Antes, delinear-se-á o espaço e o tempo da possibilidade de se pensar a ciência da literatura: seu objeto, seu método, no âmbito do Formalismo Russo e frente às vanguardas artísticas europeias, cuja consciência crítica exigiria mais dos críticos e teóricos da arte. A partir da nova abordagem da ciência da linguagem, os teóricos formalistas tomariam a poesia e a literatura como produtos de linguagem verbal, descreveriam seus caracteres, e orientariam os estudos literários futuros à investigação imanentista. PALAVRAS-CHAVE: Formalismo Russo; Literariedade; Procedimento; Estranhamento. ABSTRACT: This text intends to retrace the construction of the concepts: literarity, procedure and strangeness and their influence on the literary and aesthetic theoretical thought. Before that, the space and time of the possibility of thinking about the science of literature will be delineated: its object, its method, within the Russian Formalism confronting the European artistic vanguards, whose critical conscience would demand more from the critics and theorists of literature and art. From the new approach to language science, formalist theorists would take poetry and literature as products of verbal language, describe their features, and guide future literary studies to immanentist inquiry. KEYWORDS: Russian Formalism; literaturnost; proceeding; strangeness.

1 Mestrando

em Estudos Literários (MEL – UNIR). E-mail: jpaulo.afonso@gmail.com

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 Introdução Pelo menos desde Hegel (1770-1831), a arte concorre com a filosofia e a religião a um espaço no interesse cognoscitivo. Quer dizer, a arte e a literatura são entendidas como elaborações do Espírito, contêm teor inteligível que demanda investigação sistemática. Então, de Platão (c. 429 a.C-348 a.C.) e Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C.) até Potebnia (1835-1891; linguista e filósofo, principal influência do Simbolismo russo) e os formalistas russos, passando pela fundação das ciências humanas, temos, sintomaticamente, a literatura como problema, igualmente como o de toda a ciência. Importante salientar que nesse contexto histórico os pensamentos sobre a arte e a literatura estão em disputa por uma definição da natureza e metodologia mais adequada ao desvelamento do objeto em questão. Chegando ao fim do século XIX, na Europa, a aceitação de qualquer discurso deve passar pelo critério de cientificidade. Não menos, o discurso acerca do que é relativo à literatura. Como o centro cultural e científico passa pela Paris Belle Époque, seus critérios dispersam-se pelo mundo e chegam até a Rússia czarista. Sua influência sobre a academia russa resulta numa revisão das proposições sobre a natureza do poético e possibilidades imanentes de sua investigação, concretizando um grupo de estudos (Círculo Linguístico de Moscou – 1914/1915 - interesses de estudo: poética e linguística) que ficou conhecido como Formalismo Russo. Uma outra Poética surge como forma de categorizar os discursos. Categorizar é uma noção/regra que sirva para qualquer investigação; noção que serve para indagar e para compreender uma realidade. O problema do que é a literatura para os formalistas russos distancia-se da absolutização da arte enquanto finalidade, matéria do discurso estético. O Formalismo surge como reação à crítica conteudista da época. A distinção entre uma Poética tradicional (mesmo a simbolista, muito problematizada) e a defendida pelos formalistas russos tem por essência um valor científico próprio (imanente) à literatura, um discurso sobre o literário, este é arte verbal. O principal critério de cientificidade é o de funcionalidade, o objeto deve ser compreendido do ponto de vista da funcionalidade. Pode-se pensar que funcional é o método, porque ele é que delimita o objeto. Mesmo as tendências filosóficas e científicas de abordagem da literatura e da arte convergem na procura por uma proposição verdadeira sobre o pretenso objeto. Qual o verdadeiro problema que a arte e a literatura inspiram ao espírito humano? Que importância tem o discurso

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 literário para a vida humana, no sentido mais amplo, em sua relação com uma época culturalmente ocupada e distraída com a produção e desenvolvimento da indústria, produtos técnico-científicos, de política revolucionária tendenciosa ao imperialismo? Só se pode pensar assim num espaço de disputas e efervescências, numa época de grandes transformações sociais relacionadas às técnicas em desenvolvimento. Essas novas transformações demandaram das recentes ciências humanas novas problematizações ou desconfianças. A maneira como até aqui se expôs o problema indica uma imprecisão ou mesmo falácia do problema da essência e da função da literatura, mas se impõe outra questão que está em íntima relação com a história cultural europeia do final do século XIX: o valor funcional da arte, proposição paradoxal: juízo e pragmatismo – início da época paradoxal2. E o Formalismo tendera à substancialidade e à funcionalidade de seu objeto3. O mérito formalista é o da ambígua identificação do problema da literatura no espaço próprio da linguagem verbal, da ciência da linguagem verbal: Linguística, - bem melhor definida metodologicamente. Os novos estudos linguísticos, de ordem saussuriana4 na Rússia, entraram em contato e diálogo com a revolucionária produção poética da sua atualidade, o Futurismo Russo; seus poetas tinham interesses nas pesquisas de poética dos linguistas, filólogos e teóricos da literatura do grupo Círculo Linguístico de Moscou, que fora reforçado pelas contribuições da OPOIAZ, Associação para o Estudo da Linguagem Poética, fundada em 1917. Chega à ciência a crise porque passava a consciência criativa dos poetas, crise da linguagem poética, que pode ser entendida como busca de autonomia da palavra frente à discursividade de uma poesia, entendida como já saturada. Pensando analogamente, uma ciência pode surgir das insuficiências de uma linguagem; práticas discursivas levam ao limite um problema, forjam-se discursos outros. Para afirmar o vínculo epistemológico entre Poética e Linguística, assegura Roman Jakobson (1896-1982)5: “a Linguística é a ciência global da estrutura verbal, a Poética pode ser

2

Cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. No livro temos sugestões de subversão (crítica à transcendência) ao platonismo hegemônico da cultura ocidental, conforme já denunciara Nietzsche. 3 Cf. POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo: a teoria formalista russa e seu ambiente poético. São Paulo: Perspectiva, 1972. Neste texto a autora divide o Formalismo em dois períodos: um propriamente formalista, ou substancialista; o outro funcionalista. 4 Ferdinand de Saussure (Genebra, 1857 – Morges, 1913) foi um linguista e filósofo suíço, cujas elaborações teóricas propiciaram o desenvolvimento da linguística enquanto ciência autônoma. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferdinand_de_Saussure acesso em 15/02/2014. 5 JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 19ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 119.

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 encarada como parte integrante da Linguística”. E o objeto desta ciência, especificamente, seria a literariedade6.

Elucidação e características regulares para a cientificidade da arte literária: percursos de Chklovski e de Jakobson No caso do Formalismo Russo como estudo imanente (descritivo e morfológico) ilustra Tzvetan Todorov (1939-2017): O objetivo da pesquisa é a descrição do funcionamento do sistema literário, análise de seus elementos constitutivos e a evidenciação de suas leis, ou, num sentido mais estreito, a descrição científica de um texto literário e, a partir daí, o estabelecimento de relações entre seus elementos.7

No dizer de Todorov percebe-se a motivação funcional apontada por Krystyna Pomorska8 (19281986), que é a desvinculação do primeiro período, formalista, caracterizado por esta estudiosa como busca teórica do puramente formal, intrínseca a uma linguagem (poética) que faz de si mesma a evolução da literatura distante e inconfundível com a linguagem prática (função referencial). Desse primeiro período percebe-se sua investigação para a definição da natureza do fenômeno literário, o que caracteriza uma obra enquanto literária. Viktor Chklovski (1893-1984), figura ilustre do primeiro período, sugere termos que ficaram patentes à Teoria da Literatura: procedimento e estranhamento. As definições da linguagem poética aparecerão em contraposição à definida linguagem prática, função referencial, prosaica: linguagem que tende à automatização da percepção. Essa automatização na verdade aniquila, apaga a potencialização da percepção, fundando um mundo vazio, porque enrijece a sensibilidade humana. No máximo, há apenas um reconhecimento, a identificação de algo. Antiteticamente, a finalidade da arte é a desautomatização dos gestos humanos; o artista deve criar situações que restaure o interesse ao conhecimento. A linguagem poética deve dificultar certas percepções de um objeto, através do procedimento (rearranjo linguístico com finalidade estética). Diz Chklovski9: “chamaremos objeto estético, no sentido próprio da palavra, os objetos criados através de procedimentos particulares, cujo objetivo é

6 Cf.

JAKOBSON apud SCHNAIDERMAN. In. Teoria da Literatura: formalistas russos. 3º ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1976, P. IX Tzvetan. As Estruturas Narrativas. 3ª reimp. 4ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 30. 8 POMORSKA, Krystyna. Fomalismo e Futurismo. Tradução Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972. 9 CHKLOVSKI, Viktor. A Arte Como Procedimento. In. Teoria da Literatura: formalistas russos. 3º ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1976, p. 41. 7 TODOROV,

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 assegurar para estes objetos uma percepção estética”. Na arte, na literatura tem o caráter de singularizar os objetos; coloca o sujeito frente ao infamiliar, num processo de estranhamento. A partir da proposição do procedimento, que é pura elaboração formal, surgem dúvidas quanto ao efeito pretendido. A consciência do fazer artístico, melhor, a crítica ao fazer poético, marca da poesia moderna, fomenta outro desenvolvimento nas artes. E isto ao extremo pode gerar um tipo de linguagem artística mais para especialistas, distanciando a lógica discursiva da arte da lógica discursiva do público mais amplo. Por isso Chklovski é criticado como substancialista, por propor uma arte que se dê por si mesma, sem os predicados externos, sociais. Contradição apontada desde o início do Formalismo: arte desvinculada do social: conquista da autonomia da palavra, mas não independente da língua. Já Jakobson, alheio aos dogmas formais do primeiro período substancialista, aposta numa investigação social, dialética da linguagem poética, assinala Boris Schnaiderman (1917-2016): Como ele estava longe, já em 1919, das afirmações extremadas de alguns de seus companheiros do Formalismo Russo, no sentido de que a arte e a literatura nada teriam a ver com a vida social! Pois, no mesmo trabalho lemos: ‘O desenvolvimento da teoria da linguagem poética será possível somente quando a poesia for tratada como um fato social, quando for criada uma espécie de dialetologia poética’. E no mesmo ano escrevia: ‘A tarefa iminente é superar o estático e por de lado o absoluto’. 10

Em resposta a uma ironia de Chklovski sobre o biografismo, pontua Jakobson11: A crítica literária rebela-se contra as ligações imediatas, diretas, entre a poesia e a biografia do poeta. Mas é absolutamente impossível concluir por uma necessária desvinculação entre a vida do artista e sua arte. Tal antibiografismo seria o lugar-comum invertido de um biografismo mais que vulgar.

Jakobson perseguia um método seguro, que desse conta de um objeto particular (sincrônico) em sua relação com coletivo, histórico (diacrônico). Para tal precisava se desfazer dos pressupostos filosóficos transcendentes que permeavam a linguística de Saussure e epígonos. Explique-se a crítica ao objetivismo abstrato, pensamento filosófico-linguístico incidente na primeira fonte da Linguística moderna advinda de Saussure. O empréstimo teórico da linguística realizado pelos formalistas concentra inquietações, isto é, contradições ao objeto literário que não se quer abstrato, formal ou normativo. Mikhail Bakhtin (1895-1975) faz objeções ao sistema objetivista da língua para mais precisa 10

SCHNAIDERMAN, Boris. Uma Visão Dialética e Radical da Literatura. In. Linguística. Poética. Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 178. 11 JAKOBSON, Roman. Geração que Esbanjou seus Poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.39.

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 compreensão de seus elementos, (visão de que os formalistas se aproximaram); diz Bakhtin, “Nenhum dos objetivistas abstratos chegou a compreender de maneira clara e precisa o funcionamento intrínseco da língua como sistema objetivo”. A posição dos objetivistas abstratos, como designa Bakhtin, é a de que não há subjetivação da língua em nenhuma hipótese. E continua, Devemos, agora, perguntar-nos se a língua existe realmente para a consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas e intocáveis. (...) A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua como de um sistema de formas normativas. (...) O sistema linguístico é o produto de uma reflexão sobre a língua, reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comunicação.12

Embora, desde Saussure, se pense a língua essencialmente social, não obstante independente do indivíduo. Assinala Bakhtin13: “a consciência linguística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas”. Mesmo consciente do sistema formal, partindo da reflexão sobre a língua, nada pode fazer para modificá-lo enquanto tal. Bakhtin exemplifica a contradição do objetivismo abstrato com a noção de sinal e signo. Este, ativo, está para a compreensão, implica não a palavra, mas seu conteúdo ideológico ou vivencial; aquele, passivo, está para o reconhecimento, vazio de sentido, apenas funciona para identificação precisa de um objeto. A arte literária tendo por matéria o signo, a partir dos problemas elencados pelos formalistas em reação ao método tradicional de investigação, indica, também, sua natureza racional, no sentido de que a arte é uma forma de pensamento, uma forma de conhecimento. Tem sua lógica própria, assim como a ciência e a filosofia. Como bem sinalizaram os formalistas, toda linguagem será caracterizada por sua forma e atenderá a certas exigências comunicativas. Aproximativas são as visões de Bakhtin e Jakobson no que tange ao dialético. Ambos trabalham a materialidade do signo, todavia, com finalidades diferentes. Jakobson é o teórico representativo do segundo período (funcionalista) do Formalismo Russo, Pomorska; investigador da linguagem verbal no que há de mais científico: na classificação das suas funções. Para delinear a literariedade, Jakobson distinguirá seis fatores (funções da linguagem) do processo linguístico: destinador; destinatário; referente; contato; código; mensagem. Assim se refere Haroldo de Campos (1929-2003) à operação desses fatores:

12 13

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 13ª Ed.São Paulo: Hucitec, 2009, p. 95. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 13ª Ed.São Paulo: Hucitec, 2009, p. 98.

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 O destinador envia uma mensagem ao destinatário. A mensagem tem um referente, um objeto ou situação ao qual ela se refere, suscetível de ser verbalizado, e que deverá ser apreendido pelo destinatário. Para tanto, é preciso que destinador e destinatário disponham de um código comum, no todo ou em parte, e que haja entre ambos um contato, um liame, uma conexão física ou psicológica.14

Qualquer mensagem combina esses fatores. Cada um desses fatores origina uma função. Ainda Campos: “O que distingue a natureza de uma dada mensagem é a hierarquia que nela se confere às funções em concorrência. A função dominante será a definidora do perfil da mensagem”15. Localizemos a função poética, ou função estética da linguagem. Jakobson leva em conta o dualismo linguagem prática e linguagem poética. A linguagem prática é do domínio da função referencial (denota coisas, refere-se ao mundo real, a fatos, informações cotidianas, etc.); a função poética ou estética é, de acordo com Wolf-Dieter Stempel sintetizando a noção jakobsoniana, o “enunciado que se orienta para a expressão” 16. A mensagem literária é auto centrada; apresenta seus próprios meios de expressão, valendo-se das potencialidades das línguas. No geral, os formalistas valorizaram os estudos em direcionados para a expressão. Desde o início de suas investigações linguísticas, Jakobson tinha como preocupação os aspectos fonêmicos da linguagem (som e significado), tanto que em contato com os poetas futuristas pode aprofundar suas argumentações em prol de uma ciência; ou seja, desde o início de suas pesquisas o que Jakobson fez foi expandir sua doutrina fonológica, hoje reconhecidamente importante, determinando e minando aspectos fulcrais referentes às linguagens prática e poética, diz Stempel) “A ‘orientação para a expressão’ tem primeiramente o significado genérico de que a comunicação, a raison d’être da linguagem prática, na poesia ‘ fica reduzida a um mínimo’”17. Em se tratando de funções, porque num texto temos correlações de funções, conforme disse Jakobson, “A dominante orientação para a expressão não pode ser negada, na medida em que ela está associada à percepção estética”18. A orientação para a expressão indica a obrigatoriedade de um significado, uma lógica, distinção da poesia frente a outras artes, ainda Stempel: “O significado é necessário, porque só ele em união com sua manifestação sonora, e não o som em si, assegura o específico do

14

CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. 5ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 137. Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. 5ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 137. 16 STEMPEL, Wolf-Dieter. Sobre a Teoria Formalista da Linguagem Poética. in. Literatura em suas Fontes. Vol. I. LIMA, Luiz Costa (org.). 2ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1983, p.397. Nesse texto o autor expõe as convergências na teoria formalista; as contribuições de vários autores para a teoria e o método formal. 17 STEMPEL, Wolf-Dieter. Sobre a Teoria Formalista da Linguagem Poética. in. Literatura em suas Fontes. Vol. I. LIMA, Luiz Costa (org.). 2ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1983, p. 401-2. 18 STEMPEL, Wolf-Dieter. Sobre a Teoria Formalista da Linguagem Poética. in. Literatura em suas Fontes. Vol. I. LIMA, Luiz Costa (org.). 2ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1983, p. 404. 15 CAMPOS,

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 material verbal em confrontação com as outras artes”19. E também o ritmo, em oposição à métrica, ditaria característica distintiva a outras formas de linguagem. Com Yuri Tynianov (1894-1943) temos o ritmo como base da teoria do verso: sintaxe e semântica estavam sujeitas ao ritmo no verso; e o valor inverso estaria para a prosa20. Dessa confluência de proposições acerca da orientação para expressão foram feitas apenas indagações de sua possibilidade e aplicação à prosa (tarefa levada ao Estruturalismo, e fundação de uma Narratologia). Fica patente que a orientação para a expressão poética está delimitada e determinada enquanto mais uma forma de criação artística, ou outra forma

de

criar

arte

e

crítica,

imanentemente.

Conclusão Longe de finalizar as questões e limitar as proposições apresentadas pelos formalistas cabe ao estudioso de literatura relançar a flecha, porque o alvo pode até ser o mesmo mas o arremesso não foi, não é e não será. Cabe situar pelo menos um desdobramento das tentativas formalistas, um problema-herança: a dúvida da tradição. Mesmo com todas as classificações sobre os fenômenos linguísticos e poéticos que hoje temos (de Aristóteles aos pósestruturalistas) pode-se relê-las, e elas ainda podem afetar-nos. Exemplos são as reações que não mais distinguem, confluem: gêneros textuais sem limiar, o discurso de todos e a escritura de ninguém. Voltando para a cientificidade. Pode-se caracterizar uma personalidade como Roman Jakobson com o que Michel Foucault (1926-1984) chamou de autor fundador? Veja-se. Entendendo a poesia enquanto produto linguístico, cujo processo de elaboração está, também, na alteração material da linguagem comum, desvio - no sentido construtivo (Chklovski, 1976); e contra o perigo de absolutização da palavra, Jakobson tinha consciência do “perigo”, melhor, da contradição, que o programa formalista substancialista defendia; tal particularização da linguagem poética seria contra o outro programa em formação na Rússia, o socialismo. Em suas reflexões, Jakobson não afastou o senso de historicidade: A história literária está intimamente ligada às outras ‘séries’ históricas. Cada uma dessas ‘séries’ se caracteriza por leis estruturais próprias. Fora do estudo dessas leis, é impossível estabelecer conexões entre a ‘série’ literária e os outros conjuntos de fenômenos culturais. 19 STEMPEL,

Wolf-Dieter. Sobre a Teoria Formalista da Linguagem Poética. in. Literatura em suas Fontes. Vol. I. LIMA, Luiz Costa (org.). 2ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1983, p. 405. 20 TYNIANOV apud STEMPEL. STEMPEL, Wolf-Dieter. Sobre a Teoria Formalista da Linguagem Poética. in. Literatura em suas Fontes. Vol. I. LIMA, Luiz Costa (org.). 2ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1983.

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154 Estudar o sistema dos sistemas, ignorando as leis internas de cada sistema individual, seria cometer um grave erro metodológico.21

Vimos que a ciência da literariedade serve aos dois programas formalistas, tanto que fomentou métodos diversos fazendo reaparecerem os termos transcendência (Chklovski) e o assentado e mais valorizado, imanência. Mas, mais do que isso suscitou até mesmo questões éticas e políticas. E para responder à questão: Jakobson é um autor fundador? que o diga Foucault22: Esses autores [fundadores ou instauradores de discursividades]23 têm de particular o fato de que eles não são somente autores de suas obras, de seus livros. Eles produziram alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos. [...] Abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto, pertencem ao que eles fundaram. [...] Portanto, a instauração da discursividade parece ser do mesmo tipo, à primeira vista, da fundação de não importa que cientificidade. Entretanto, acredito que há uma diferença, e uma diferença notável. De fato, no caso de uma cientificidade, o ato que a funda está no mesmo nível de suas transformações futuras; ele faz, de qualquer forma, parte do conjunto das modificações que ele torna possíveis” 24.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 13ª Ed.São Paulo: Hucitec, 2009. CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. 5ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. EICKHENBAUM, B. et al. Teoria da Literatura: formalistas russos. 3º ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1976. FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos. Vol. 3. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 19ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003. ________________ Linguística. Poética. Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970. ________________ A Geração que Esbanjou seus Poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006. LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da Literatura em suas Fontes. Vol. I. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1983. 21 JAKOBSON,

Roman. Linguística. Poética. Cinema. Tradução Francisco Achcar, Haroldo de Campos et alii. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 192. 22 FOUCAULT, Michel. O Que é um Autor? In. Ditos e Escritos. Vol. 3. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 280. 23 Grifo nosso. 24 FOUCAULT, Michel. O Que é um Autor? In. Ditos e Escritos. Vol. 3. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 282.

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Formalismo russo e a obra de arte literária: entre a essência e a função, pp. 145-154

POMORSKA, Krystyna. Fomalismo e Futurismo. Tradução Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. 3ª reimp. 4ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170

A BUSCA PELO ILIMITADO NO ROMANCE O SUPERMACHO DE ALFRED JARRY Cássio Robson Alves da Silva1

RESUMO: Alfred Jarry (1873-1907) escreve O Supermacho em 1902 como paradigma imaginário do homem moderno. Neste artigo, duas performances contidas nessa obra serão analisadas – uma corrida e um encontro amoroso. Investigaremos como elas são possibilitadas pelo consumo do alimento do movimento perpétuo (Perpetual Motion Food). Desse modo, tais façanhas poderão forjar a busca pelo ilimitado na condição humana. Por fim, são estabelecidas relações teóricas com outros pensadores, tendo em vista o entrelaçamento entre filosofia, literatura e ciência. PALAVRAS-CHAVE: Ilimitado. Supermacho. Deus. Máquina. Jarry. ABSTRACT: Alfred Jarry (1873-1907) writes The Supermale in 1902 as the imaginary paradigm of modern man. In this work, two performances contained in this work will be analyzed - a race and a love encounter. We will investigate how they are made possible by the consumption of Perpetual Motion Food. In this way, such exploits could forge the search for the unlimited in the human condition. Finally, theoretical relationships are established with other thinkers, in view of the intertwining of philosophy, literature and science. KEY-WORDS: Unlimited. Supermale. God. Machine. Jarry.

1 INTRODUÇÃO “Não se poderia compreender que prazer o ser mais perfeito poderia encontrar numa máquina, por mais aperfeiçoada que fosse. Em qualquer maneira que se pense a procedência dos seres de deus, esta nunca pode ser um mero mecanismo, uma simples efetivação

1 Atualmente é doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Email:cassioalvesdasilva13@gmail.com

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 ou instalação onde o efeito nada seria para si mesmo.” (Friedrich W. J. Schelling)

Este artigo, para tomar emprestada a palavra do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, parte de “um esforço fragmentário”2 no sentido de que não pretende fixar o tema aqui trabalhado numa única área do saber, embora seja possível prever um entrecruzamento mais sedimentado entre filosofia, literatura e ciência. Que essa relação será efetivamente seguida, não temos dúvida e isso se perceberá no decorrer da discussão. Algumas questões preliminares podem ser colocadas para tentarmos entrar propriamente na atmosfera de Alfred Henri Jarry. Nascido em Laval, na França, em 8 de setembro de 1873, estudou no Liceu de sua cidade natal e no Liceu Henri- IV em Paris, onde foi aluno de Henri Bergson. Da cultura que adquiriu e da vida errante que levava, Jarry tirou sua maior inspiração e influenciou autores como Marcel Duchamp, Eugène Ionesco e André Breton, para citar apenas alguns. Veio a falecer em 1º de novembro de 1907 deixando uma obra capaz de influenciar grandes movimentos culturais do século XX (do Surrealismo ao Teatro do Absurdo).

2 A IMPORTÂNCIA DA ’PATAFÍSICA Quando, na história da filosofia, o que se convencionou chamar de ontologia se propôs a estabelecer os postulados do Ser enquanto tal, a compreensão do fenômeno esteve subjacente àquilo que o possibilitava ser enquanto aparência. A ’Patafísica3 do dramaturgo francês surge para concorrer com a metafísica e superá-la. Trata-se da ciência de soluções imaginárias, é a ciência do que se acrescenta à metafísica como epifenômeno, como o excedente ontológico, o contingente que, ao invés de encontrar-se defasado e retraído na margem interna de uma estrutura conceitual, faz de seu próprio limite uma capacidade valorativa.

2

Cf. KIERKEGAARD, Søren. Ou-Ou. Um fragmento de vida – Primeira Parte. Tradução: Elisabete M. de Sousa, Lisboa: Relógio D’água, 2013, p. 173. 3 A palavra –’Patafísica – aparece precedida de uma apóstrofe para, segundo o autor, evitar trocadilhos. Etimologicamente quer dizer: o que está acima do que está além da física (ἐπὶ τὰ μετὰ τὰ φυσικά). Alfred Jarry escreveu em 1898 e publicou apenas em 1911 a obra “Artimanhas e opiniões do Doutor Faustroll, o patafísico” (Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphysicien: roman néo-scientifique). “A obra de Jarry é marcada por analogias e neologismos que tiram seu sentido do grego e do latim, bem como do vocabulário técnico associado ao tema central dos seus escritos. ” Cf. CARROUGES, Michel, As Máquinas Celibatárias. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. São Paulo: n-1 Edições; Belo Horizonte: Relicário Edições, 2019, p. 112 [Nota da Revisão da Tradução].

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 A exceção da ’patafísica apresenta-se tal como o limite da física surge para a metafísica. Vemos que não é fácil formular um problema filosófico partindo de um tratamento tradicionalmente conceitual. Experimentemos, então, como se dá essa degradação do ser através do amor evocado no romance O Supermacho (1902). Logo na primeira frase do livro percebemos que a limitação enquanto exceção pode levar o epifenômeno a uma entificação indefinida realizada pela sua extrema contingência: André Marcueil, anfitrião no castelo de Lurance, diz “que fazer amor é um ato sem importância, já que se pode fazê-lo indefinidamente”.4 A ’patafísica aplica-se à nossa análise, pois podemos compreender o amor como um sentimento definitivo e universal, bem como seu fenômeno cujas forças humanas seriam levadas ao limite de seu fazer, nesse caso, através do ato sexual. O excedente ontológico é, nesse sentido, a realidade contingencial do homem levada até o limite, mesmo que esse limite lhe custe a própria vida, tendo em vista que “a repetição de um ato vital leva à morte dos tecidos[do corpo]. ” 5 As opiniões contidas no começo do romance O Supermacho redundam num erotismo reduzido ao mero prazer sexual. Porém, mais do que buscar uma incompatibilidade entre esses aspectos, não seria importante explorar o afastamento gradativo do limite delineado pelo mundo cristão? Pode parecer blasfêmia tal presunção. Não por acaso a Sociedade dos Amigos de Alfred Jarry (Societé des Amis d’Alfred Jarry) transcreveu, na revista L’Étoile-Absinthe6, edição de 1995, uma emissão radiofônica (de 1951 e 1952) fruto de uma enquete polêmica na qual Benjamin Péret perguntava: Jarry é um poeta cristão? Dentre as várias respostas, destaca-se o melancólico sofisma de que se ele blasfema, ele crê. Outro ouvinte e participante da enquete, Michel Carrouges, recusa fortemente classificar Jarry como cristão ao dizer que a sua obra “significa a fusão do erotismo obscuro com uma blasfêmia das mais subversivas”7 e diz ainda que a obra de Jarry é toda ela dominada pela noção da máquina celibatária sobre a qual voltaremos a falar no decorrer deste artigo. Não pretendemos entrar nesta polêmica e definir se Alfred Jarry é ou não um autor cristão. Para o que nos importa, resta alinhar nossa discussão com a concepção linguística de Michel

4

JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 7. JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 10. 6 L’Étoile Absinthe Nº 65-66, p. 15. Arquivo digitalizado disponível em: http://alfredjarry.fr/amisjarry/fichiers_ea/etoile_absinthe_065_66reduit.pdf. Acesso em: 14/08/2019. Tradução nossa. 7 L’Étoile Absinthe Nº 65-66, p. 15. Arquivo digitalizado disponível em: http://alfredjarry.fr/amisjarry/fichiers_ea/etoile_absinthe_065_66reduit.pdf. Acesso em: 14/08/2019. 5

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 Arrivé: a obra de Jarry define-se como isotopia excremental.

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Este nome talvez não facilite a

compreensão imediata aos não especialistas em linguística ou semiótica, mas significa dizer que a obra de Jarry repousa na convergência de aspectos fundamentais da religião e da sexualidade (erotismo) e visa preencher, justamente pela excrescência, as possíveis lacunas semânticas deixadas pela metafísica cristã. Mais ainda, trata-se da evolução do signo, da proliferação até a morte, cujo seu caráter provisório impede a fixação de uma substância, por mais absoluta que ela seja – Deus. 9 Talvez a blasfêmia não vise a provisoriedade do ser, mas sim a alternância constante do que ele pode significar. Ela pode, com seu potencial destrutivo, desmantelar ontologicamente a metafísica cristã a ponto suprimir o que fora tradicionalmente definido como Deus, fazendo com que, ainda com Michel Arrivé, a transformação do signo acarrete na transformação do ser.

10

No

entanto, este exercício filosófico-patafísico é feito para que, discursivamente, haja um deslocamento interno do indivíduo com o intuito de exceder e forçar os limites estabelecidos pela moralidade cristã. Donna J. Haraway nos lembra que “blasfêmia não é apostasia”. 11 Isto é, ufanar contra Deus não é excluir a possibilidade da crença em sua existência. A destituição de Deus, desse modo, é sucedida pela assunção do homem como postulante defasado dessa condição absoluta. Essa estratégia aparentemente perdulária do ser ganha um novo impulso e, portanto, uma nova realidade dentro do desamparo da “subjetividade humana que se vê construída em ruínas”. 12 Ora, com a morte de Deus, o homem não vê na exterioridade do Ser a satisfação necessária e passa a transitar no reino ilimitado do limite.13 Essa é a tônica das performances físicas empreendidas em O Supermacho com o auxílio do alimento do movimento perpétuo como combustível do motor humano negando o amor como ato atenuado, isto é, apenas ato em potencial. Ao invés, portanto, de falar da ruína da metafísica pela destituição de Deus, é mais

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ARRIVÉ, Michel. Estruturação e destruição do signo em alguns textos de Jarry in: Ensaios de semiótica poética. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, Editora USP, 1975, p. 24. 9 ARRIVÉ, Michel. Estruturação e destruição do signo em alguns textos de Jarry in: Ensaios de semiótica poética. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, Editora USP, 1975, p. 80. 10 ARRIVÉ, Michel. Estruturação e destruição do signo em alguns textos de Jarry in: Ensaios de semiótica poética. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, Editora USP, 1975, p. 80. 11 HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue in: Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 35. 12 TADEU, Tomaz. Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 p. 9. 13 Morte de Deus anunciada por Nietzsche em Gaia Ciência (1882) e Assim Falava Zaratustra (1883). Sabe-se que Alfred Jarry “já conhecia Nietzsche desde 1889, das aulas de filosofia no liceu de Rennes. O bom aluno certamente concordou com o filósofo. ” Cf. JARRY, A. Ubu Rei. Tradução: Theodomiro Tostes. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 29.

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 estratégico erguer o aspecto violento que visa reavivar o que definhou no limite da relação criadorcriatura. Nesse sentido, é válido compactuar com George Bataille, para quem “o erotismo é a aprovação da vida até morte”. 14 Consequentemente, a deificação do homem visa encontrar na imagem ilimitada apenas um prolongamento das suas capacidades mecânicas. Assim, com o uso da energia elevada ao infinito, o homem deseja resguardar-se da missão de fazer nascer outro deus que não seja ele próprio, e assim poder se lançar no ilimitado.15 Em outras palavras, enquanto a metafísica afasta o homem da vida (entendida aqui enquanto physis), a técnica, elemento da ’patafísica, como tática de vida16 vem para provar o contrário, vem, portanto, para resguardar a tensão interna do ser sempre em vias de desaparecer, seja pela descontinuidade da vida (a morte), seja pela postulação de um Ser absoluto, impelindo o homem à mera malfadada sobrevida no interior da submissão. Por outro lado, em última instância, a mística do super-homem confirma-se quando o homem, revoltado contra Deus, pretende se divinizar ele mesmo17, visto que sua miséria é imensa, porém pior é aceitar esta miséria.

3 A BUSCA PELO ILIMITADO Pois EU é um outro (Arthur Rimbaud)

Sabemos, com Bachelard, que “alguns poderão levar suficientemente longe o empirismo para pensarem que experiência objetiva normal basta para explicar a coerência subjetiva”.18 E Alfred Jarry não escapa deste risco. Mais ainda, inverte essa lógica ao submeter a ciência (objetividade) aos paroxismos da subjetividade. As especulações em torno do amor não obedecem ao rigor teórico, mas se inserem nas elucubrações “científico-lírico-filosóficas”19 discutidas pelos convidados, dentre os principais estão:

14

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Editora Arx, 2004, p. 19. FOUCAULT, Michel. Prefácio à transgressão in: Ditos e Escritos III. Estética e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. Numa peça de tonalidades surrealistas de 1895, César-Antéchrist, é o Rei, o homem na figura do ilimitado, apresentando-se como o infinito que é engendrado a partir do nada: “O anticristo nasceu, o César nasceu. É necessário ser Deus para ser homem”. Cf. JARRY, Alfred. César-Antechrist. Paris: Editions du Mercure de France 1895, p. 19, tradução nossa. 16 SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica. Tradução de Érico Veríssimo. Porto Alegre: Edições Meridiano, 1941, p. 26. 17 CARROUGES, Michel. La Mystique du Surhomme. Paris: Gallimard, 1948, pp. 15, 17. Tradução nossa. 18 BACHELARD, Gaston. Os pensadores. Tradução de Joaquim José Moura Ramos. São Paulo: Nova Cultura, 1978, p. 3. 19 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 89. 15 Cf.

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 o químico William Elson e sua filha Ellen Elson, o engenheiro mecânico Artur Gough e o Dr. Bathybius. Ao tomarem a polêmica frase de que fazer amor é um ato sem importância, parecem reduzir o amor ao ato sexual e para tanto, evocam as proezas antigas das quais se sobressai uma: a do Indiano tão celebrado por Teofrasto, capaz de reproduzir o ato sexual seguido do gozo – 70 vezes. Precedida pela violência animalesca da própria liberdade do homem, o contato irascível da personagem contra os objetos técnicos é o prenúncio da guerra contra a limitação. Trata-se do momento em que André Marcueil converte um dinamômetro (medidor de força) em bicho: “Olha só, vou matar o bicho – disse Marcueil, muito calmo. (...) – Vou matar esse negócio – repetiu Marcueil com obstinação. (...) Ele está cheio de força (...). Quebrá-la? Ah, não! Eu quero matar essa coisa”. 20 Nessa perspectiva, embora seja chamado à atenção para não “por dano a monumento de utilidade pública”, André Marcuiel, sua enunciação, aproximou-se da dos animais e “sua frase terminou num barulho terrível de ferragens, as peças arrebentadas se retorciam no chão como as vísceras de um bicho”.21 Tais ruídos ecoam em todo romance O Supermacho como um tipo de rubrica trágica da obra. Por que a livre mobilidade dos animais é luta, nada mais, nada menos que luta. É a tática de vida, a sua superioridade ou inferioridade em face do “outro” (seja ele Natureza animada ou inanimada) que decide a história dessa vida, que determina se seu destino é sofrer a história dos outros ou é ser ele a história desses outros. A Técnica é a tática de vida; é a forma íntima cuja expressão é a conduta do conflito. 22

Ora, a análise de Spengler pode ser reforçada quando o dinamômetro, como máquina, padece da mesma destrutibilidade (dissolução ontológica) sofrida por Deus com a aplicação da ’patafísica. Com efeito, a exuberância física de André Marcueil lhe autorizava lançar – e aqui percebemos a estratégia meta narrativa de Alfred Jarry – o Indiano como personagem poética servindo-lhe como dispositivo fictício para alcançar o incógnito da sensação (o recorde) e levar até o limite desconhecido as suas forças naturais. Para não entramos em cientificismos ou incorrermos em “tecnicismos safados”23, podemos dizer que esse componente gerador extra da força sobrehumana está ancorada na apropriação da linguagem científica transformada em caricatura.

24

20

JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 41, 42. Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 42. 22 SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica. Tradução de Érico Veríssimo. Porto Alegre: Edições Meridiano, 1941, p. 26. 23 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 17. 24 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 264. 21 JARRY,

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A


A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 princípio, William Elson, sugere a Marcueil uma corrida entre um quintuplette (quintupleta, bicicleta com cinco lugares) contra um trem e diz: Você poderia julgar os efeitos do Perpetual Motion Food sem se expor ao incômodo de ter que tomá-lo, permanecendo um simples espectador de performances físicas. (...) Depois de amanhã vai haver uma corrida de bicicletas, onde uma equipe toda de ciclistas vai estar alimentada exclusivamente com ele.25

Sem citar muitos detalhes sobre a composição, o químico Willian Elson, afirma se tratar de um tônico à base de estricnina e álcool, cujas características, se servidas em cubinhos, eram: incolor, crocante e acre. Ainda que esse alimento seja absurdo em suas condições de aplicação para o ciclismo, para o

fazer amor, por seu turno, não se incorre, segundo o criador da ’Patafísica, em equívocos para erigir um constructo (vida, morte, Amor, Deus), cujo “consentimento universal já é algo consideravelmente miraculoso e incompreensível”. 26 Aqui, não se busca o amor divino, não se trata, portanto, de um limite paradoxalmente colocado como universal. Observa-se, por sua vez, que se não há mais o referencial metafísico, o homem aceita a passividade da pedra que cai e aceita, na visão do Dr. Bathybius, que Deus é infinitamente pequeno: o germe é este Deus em duas pessoas, este Deus que nasce da união das duas ínfimas coisas vivas, as semicélulas que são o Espermatozoide e o Óvulo. 27 Todavia, diferentemente do Dr. Bathybius, ainda que aceitando o fluxo bem-sucedido do orgânico, Ellen, a filha do químico, acreditava, com uma crença melancólica, que o Indiano poderia existir e colocava-o cada vez mais em posições distantes da mera constatação científica: O Amante absoluto deve existir, pois a mulher sonha com ele, da mesma forma que só existe uma prova da imortalidade da alma, é que o ser humano, por medo do nada, deseja a imortalidade! Assim, eu acredito nele porque ninguém vai acreditar... porque é absurdo... como creio em Deus. 28

É nesse sentido que Ellen afirma que o Indiano é pura curiosidade. É com o interesse de um voyeur, portanto, que Miss Ellen – antes de seu ápice erótico com o Supermacho–, seu pai, Willian Elson, e André Marcueil presenciaram no vagão dianteiro da locomotiva, a corrida de Dez Mil Milhas. Devemos dar atenção aos eventos a seguir, posto que neles o corpo humano e a máquina encontrarão, incorporados no devir-máquinico, a condição para o ilimitado – aqui compreendido como limite indeterminado. 29

25

JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp.12, 13. Alfred. Artimanhas e opiniões do Doutor Faustroll, patafísico. Kindle Edition, [200-]. 27 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 28 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 47. 29 SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1989, p. 148. 26 JARRY,

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 A corrida empreendida – registrada pelo jornalista Ted Oxborrow no jornal New York Herald – alcança resultados até agora jamais sonhados. Com efeito, para superar o mero mimetismo da lei da conservação da vida por meio da conformidade com o ambiente, o químico William Elson e engenheiro Artur Gough lança os atletas, alimentados com a substância, num acontecimento inédito promovido para “proclamar o motor humano superior aos motores mecânicos nas grandes distâncias”. 30 É assim que a “bicicleta transforma a paixão como metafísica cristã da morte de Deus em corrida de etapas eminentemente técnica”.

31

E para o que se propõe, a corrida alcança seus

objetivos e acaba por mostrar o ilimitado das forças e, paradoxalmente, quando se sente um “fedor (...) da decomposição incompreensivelmente acelerado, oriundo da rigidez cadavérica dos atletas”. 32No

entanto, é possível afirmar, ainda com Deleuze e Guattari, que o sacrifício empreendido na

máquina apocalíptica, projetada para velocidades inimagináveis, é realçado quando carrega outras máquinas (os atletas) que se rejeitam entre si e acaba produzindo o fluxo necessário do movimento infinito (pois nem a morte é capaz de parar). 33 Há nos objetos uma carga escatológica, cuja função é especificamente anunciar o fim premente. Basta que evoquemos os ruídos, o som da máquina voadora em forma de trombeta durante a corrida ecoando “na corrente de ar, como uma convocação para o Juízo Final”.

34

Por

conseguinte, era necessário continuar a correr, vivo ou morto. Aliás, a morte de um dos atletas (Jewey Jacobs) era a imagem da rigidez cadavérica e apenas um detalhe a ser superado, não obstante, gradativamente, percebermos que o homem já “deixa de crer na substituição de Deus pelo homem, de crer no homem-Deus que ficaria no lugar de Deus-homem”. 35 Jewey Jacobs este morto! morto! morto!Ah! Ele este morto? Foda-se. (...) Jewey Jacobs estava empenhado em concorrer, o quarto, na grande e honorável corrida do Perpetual Motion Food; tinha assinado o contrato com multa de vinte e cinco mil dólares, pagáveis com as corridas futuras. Morto, não corria mais, e não poderia pagar a dívida do contrato rompido [corte]. Tinha que continuar a correr, vivo ou morto. Dorme-se bem numa máquina, e não tem nenhum inconveniente. Afinal, a corrida se chamava do movimento perpétuo. 36

30

JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 52. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 120. 32 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 58, 60. 33 “A máquina só produz um corte de fluxo se estiver conectada a outra máquina que se supõe produzir o fluxo. Sem dúvida, esta outra máquina, por sua vez, é na realidade corte, mas ela só o é em relação a uma terceira máquina [homem, trem e bicicleta] que produz idealmente, ou seja, relativamente um fluxo contínuo infinito”. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 55. 34 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 58, 59. 35 DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. 1ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2004, p. 88. 36 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 59. Grifo do autor. 31 DELEUZE, Gilles.

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 André Marcueil viu os atletas ganharem magistralmente a corrida graças ao consumo do Perpetual Motion Food e quis, como homem da sociedade [socius], que sua força fosse igualmente ilimitada. Todavia, é importante notar um evento alucinatório digno de destaque durante a corrida. Na trepidação constante do contato da locomotiva com a quintuplette, na descrição de Alfred Jarry toda a performance dispõe de uma pista branca e uma noite clara e, em qualquer posição, o pelotão de atletas formava uma “silhueta indistinta”, fazendo com que eles mergulhassem na sua própria sombra quíntupla. Tal aparição [aparência] era “alucinação, sem dúvida, reflexo deformado da quintuplette no mogno do grande vagão-dormitório mais límpido que um vidro, um aspecto de ser humano corcunda – corcunda ou carregado de um enorme fardo – pedalava atrás do trem”. 37 Mas o que era inédito era proclamar o motor humano superior aos motores mecânicos nas grandes distâncias. A bela confiança que seu sucesso inspirou a Willian Elson em sua descoberta o levaria a concordar pouco a pouco com as ideias de André Marcueil a respeito do ilimitado das forças humanas. Mas, como homem prático, quis que elas só fossem ilimitadas graças à cooperação do Perpetual Motion Food. 38

37 JARRY, 38

Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 61. JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 52.

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 A nossa discussão dispõe, ainda que muito brevemente, da análise da topografia acima. Sim, topografia, pois, segundo o próprio artista, Jean Louis Coutourier39, trata-se de ler a obra literária através dessa superfície plana. Embora o mapa/tela não seja território, o que se registra/desenha na ilustração dá mostras da tentativa exitosa do artista de legitimar a materialidade da personagem monstruosa, o que “dava tão bem a sensação de algum ídolo talhado em materiais desconhecidos e puros”.

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Assim, a topografia, essa escrita, por assim dizer,

desenhada pode muito bem ser concebida como um elogio à superficialidade, capaz de fornecer uma equivocidade imagética e, por que não dizer, subjetiva. Veremos por qual razão. André Marcueil viu os atletas ganharem magistralmente a corrida graças à cooperação do Perpetual Motion Food e quis, como homem da sociedade [socius], que sua força fosse igualmente ilimitada. É justamente esse socius que impede Marcueil de mostrar-se por inteiro e não comprometer o seu eu social (buscar a imortalidade) e, por isso, o “fantasma individual está inserido no campo social existente, mas que apreende sob qualidades imaginárias que lhe conferem uma espécie de transcendência ou de imortalidade ao abrigo das quais o indivíduo, o eu representa seu pseudodestino”. 41 O eu que se refugiará numa alteridade mostrenga é fruto dessa modernidade fantasmagórica. Nesse sentido, o papel da qualidade imaginária era dissimular o homem diante da sociedade, “mas a ironia fria não desistia dos seus direitos sobre Marcueil, mesmo pulverizado com pó de ouro vermelho e maquilado como Indiano, tão ridículo no fundo – ele percebeu num instante – quanto o Marcueil homem da sociedade”. 42 Com efeito, o encontro amoroso entre Ellen e André Marcueil (o Supermacho) não é, por assim dizer, apenas um mero prolongamento das capacidades corporais, pois tudo que havia era um homem e uma mulher, livres, frente a frente, por uma eternidade: “Vinte quatro horas não era uma eternidade para um homem que insistia que o número de vezes não tinha importância?” 43 Na miseen-scène digna de um espetáculo teatral, os dois corpos se unem no divã-leito num percurso de autoconhecimento. Aliás, para André Marcueil, esse conhecer-se a si mesmo fica aquém do 39 Com minha

correspondência (entre Junho e Julho de 2017) por e-mail com o autor dessa ilustração, Jean-Louis Couturier, pude corroborar aquilo que Michel Carrouges já tinha afirmado. Trata-se de um “exercício de ótica mental”. Cf. CARROUGES, Michel, As Máquinas Celibatárias. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. São Paulo: n-1 Edições; Belo Horizonte: Relicário Edições, 2019, p. 7. 40 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 97. 41 DELEUZE, Gilles; GUATTARI Félix. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 88. 42 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 94. 43 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 93.

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 reconhecimento desse outro sombrio, pois se trata apenas de um eu precedente (O Indiano tão celebrado por Teofrasto) tentando identificar-se confusamente com suas projeções. Aqui, a liberdade parece fundir no corpo, padecendo no sofrimento, uma experimentação subjetiva, um movimento imaginário para forjar a imagem do coração. Porém, o coração, este órgão vital, não está nem à esquerda nem à direita: está, pois, “nos músculos das suas barrigas-da-perna” 44, as quais palpitavam como dois corações de albatroz, e no falo transcendente, como se, para usar uma expressão de Deleuze e Guattari, “o erotismo maquinal libertasse outras potências ilimitadas”. 45 Essa concepção facilita a incorporação topográfica de si por meio de uma “expedição longínqua, uma grande viagem de núpcias que não percorria cidades, mas todo o Amor” 46, cuja cerimônia não é menos do que a simbiose imagética do homem com seu outro. Para demover o homem do seu lugar comum, o movimento do corpo é o componente que estabelece a fronteira da identidade pessoal e isso se perfaz justamente quando André Marcueil aprofundava em Ellen a fonte de prazer angustiado, que amante algum jamais tinha atingido. No entanto, duvidava Marcueil: Tem certeza, depois de tudo, que eu sou o Indiano? Vou sê-lo... talvez... depois. Não sei – disse Ellen, não sei de nada, vai sê-lo e depois não vai ser mais... vai ser mais que o Indiano. E MAIS? – Marcueil divagou. – O que quer dizer isso? É como a sombra fugitiva na corrida... E mais, isso não é mais fixo, recua mais longe que o infinito, é inalcançável, um fantasma... – Você era a Sombra – disse Ellen. E ele a abraça, maquinalmente, para se agarrar num lugar palpável. 47

Aqui já podemos vislumbrar, recorrendo a Günther Anders, a obsolescência do homem. Esta se deve ao fato da produção em escala de imagens-sombras rivalizarem com o homem. Dada a sua visibilidade (orgânica ou inorgânica), geram uma ambiguidade ontológica, pois os “acontecimentos emitidos são, ao mesmo tempo, presentes e ausentes, reais e aparentes (...): são fantasmas”.

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Percebe-se que as sombras são produzidas por máquinas, pensamentos, sonhos,

alucinações, delírios, existentes não para fixar o ser e contribuem para o surgimento de um outro totalmente transfigurado: “As forças humanas foram superadas, como, de um vagão, a gente vê

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JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 71. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010, pp. 33, 84. 46 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 96. 47 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 95. 48 ANDERS. Günther. La obsolescencia del hombre. Tradução de Josep Montep Pérez. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2011, p. 136. 45

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 desaparecerem as paisagens familiares de algum recanto”, enquanto a atmosfera musical provocada pela trombeta voadora espalhava-se por todo o céu.49 Como todo ritual, também este exige uma execução compartilhada-motorizada; por isso, quem executa esta música como mera música artística diante de meros ouvintes, (...) não cria um novo público artístico ou culto, mas engana sua comunidade de culto, cujo membros em vez de participarem de maneira efetiva dos mistérios, ficam condenados a contentar-se com o papel de ouvintes, em certo sentido voyeurs da maquinização. 50

O Perpetual Motion Food auxiliou o Supermacho em sua adesão de si e contribuiu para que ele se movimentasse em sua liberdade. À medida que avança o corpo em sua póiesis, a força empreendida pelos esforços sobre-humanos dá a impressão de tempo dilatado. Ora, movido pelo tônico, é possível afastar o limite do esgotamento para longe de si, enquanto, inversamente, empreende um recuo subjetivo até às profundezas de seu ser. Depois ele achou graça, meio contra a vontade, embora um eu obscuro lhe sussurrasse lá dentro que era melhor chorar; daí ele chorou, embora um outro eu, que parecia alimentar um ódio particular contra um eu precedente, lhe explicasse copiosamente, se bem que por um instante, que a hora era perfeita para morrer de rir. 51

O desempenho fora dos padrões humanos enseja o limite indistinto, o ilimitado, da condição do Supermacho (fantasma, sombra de si mesmo), pois ele “é esse ser homem do homem que já não conhece a distinção entre homem e mulher (...) e só o homem [ser genérico] sobrevém como potência celibatária ou poder-ser”. 52 Ellen acariciava Marcueil com paixão: “sua boca, que mordia, estava com raiva de o homem ainda não estar esgotado. O Indiano desfaleceu várias vezes, passivo às vezes como homem, às vezes como uma mulher”.53 Desse modo, quando Michel Carrouges incide sobre o supermacho o conceito de máquina celibatária é com a finalidade de incluí-lo no “no grupo de transformação” e situá-lo, “descrevê-[lo] [n]a travessia automática de meios diferentes (campos de consciência, de inconsciência e de representações)”. 54 A inserção de alguns objetos surge como aparelhamento dos eventos, cuja finalidade é materializar a presença até então inconspícua de uma realidade inverossímil: dinamômetro, trombeta, janela/tela, claraboia/observatório, máscara, fonógrafo e, finalmente, a máquina amorosa. Tais dispositivos podem ser qualificados como tipos de mediação técnica da linguagem de 49 JARRY,

Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 60 e 97. ANDERS. Günther. La obsolescencia del hombre. Tradução de Josep Montep Pérez. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2011, p. 97. (Grifo do autor e tradução nossa). 51 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 113. 52 DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 123. 53 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 106. 54 CARROUGES, Michel, As Máquinas Celibatárias. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. São Paulo: n-1 Edições; Belo Horizonte: Relicário Edições, 2019, p. 16. 50

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 Alfred Jarry. Esta, por sua vez, opera fora da dicotomia verdade e mentira; dito de outro modo, opera como qualidade metamórfica da linguagem tal como entendia Nietzsche. Além disso, a análise do filósofo alemão converge oportunamente com os desdobramentos aqui apresentados quando ele indaga: “o que sabe o homem, de fato, sobre si mesmo! Seria ele capaz, em algum momento, de perceber-se inteiramente como se estivesse numa iluminada cabine de vidro?”55 Tal constatação parece emanar do fluxo inventivo das próprias experiências das personagens e também do lugar escolhido para a cooperação mútua de Marcueil e o Dr. Bathybius. Este último estava consciente de que o evento, no qual André Marcueil iria realizar suas façanhas erótico-maquínicas, era voltado somente aos “íntimos celibatários”. 56 Tratava-se simplesmente – simplesmente! disse Bathybius – de controlar a tentativa que faria um “Indiano”, na grande sala de Lurance, de bater o recorde “celebrado por Teofrasto”, de meia-noite a meia-noite. A grande sala, onde para a ocasião tinha sido preparado um divã-leito, tinha sino escolhida não pode sua dimensão, mas porque uma pequena vizinha permitia que por uma claraboia se observasse tudo o que se passava nela. Nesse recinto, equipado como quarto de toalete, Bathybius poderia ainda proceder a todas as constatações que julgasse necessárias para estabelecer a autenticidade da experiência. 57

Não seria por esse motivo que o mito das máquinas celibatárias é entendido como a “distância ou diferença entre a máquina e a solidão humana”?58 Ora, na sequência do romance, a relação entre os protagonistas não passa de um receptáculo de ordens reproduzidas por alguns aparelhos. André e Ellen, inebriados pelo amor, reagem irrefletidamente às palavras de ordem de uma linguagem mediada por aparelhos técnicos (Fonógrafo, cinematógrafo) os quais, além de emitirem os sons na sua perfeição mimética, são capazes de anunciar o destino cruel do homem: “Destino, Destino, ó mui cruel Destino”. 59 Por conseguinte, é necessário, já encaminhando nossa discussão para o fim, falar do episódio em que os efeitos do perpetual motion food são atenuados e a sinergia com o álcool já não é suficiente para garantir ao supermacho o melhor rendimento de suas performances. Para tanto, surge uma traquitana capaz de inspirar o amor naquele que se vê exaurido por suas recentes experimentações eróticas. Para tanto, nos deteremos brevemente na descrição técnica da máquina-para inspiraramor, para daí entender que os arroubos científicos dos doutores Arthur e William Elson estavam

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NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. Tradução de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Editora Hedra, 2008, pp. 28, 29. 56 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 73. 57 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 74. 58 CARROUGES, Michel, As Máquinas Celibatárias. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. São Paulo: n-1 Edições; Belo Horizonte: Relicário Edições, 2019, p. 16. 59 JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 120.

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 permeados de inconsequência quando “rolos de eletrodos, envoltos em borracha e seda verde, cingiram o Supermacho pelas têmporas; serpenteavam e se perdiam, furando a parede como um verme” e em seguida viram-no eletrocutado já sem vida.60 Em outros termos, o horizonte de possibilidade alcançado pela confiança desmedida na ciência atravessa “as metamorfoses das máquinas celibatárias quando se projetam em uma série de perspectivas diferentes: sexual, penal, criminal, patológica, esportiva, artística, teatral, antecipadora, nas encenações iniciais e, por fim, convergentes”. 61

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A verve literária de Alfred Jarry se precipita acintosamente na descoberta do homem e da mulher como máquinas de poder-ser. Em nossa análise, as relações humanas resultam de uma civilização mecânica, cujos espectadores podem testemunhar o impossível através de invenções maquínicas sobrepostas umas às outras. Mostrou-se a tentativa de despertar o amor por meio do alimento do movimento perpétuo e, em última instância, acompanhamos o Supermacho na superação de outras máquinas e dos próprios limites. Qual seria o epifenômeno (o mostrar-se do fenômeno) identificado nessa apoteose? Ora, entregue às incumbências extravagantes, recordes apoteóticos e subordinado às consequências apocalípticas e prefiguradas do devir-máquina ilimitado do corpo, a personagem imaginária tem a função de deslocar indefinidamente a relação do homem com a máquina, com deus, com a vida, com a morte e, sobretudo, consigo mesmo. Com isso, em vez de operar a partir de falsas dicotomias, o Supermacho vacila no movimento vertiginoso do autoconhecimento e conhecimento do outro em direção ao limite desconhecido, o ilimitado. Como possibilidade de ser além de si mesmo, Alfred Jarry/André Marcueil/Supermacho (o Indiano) encontraram na fórmula do Perpetual Motion Food, superaram o mero fazer sexual através do alcance infinito da experimentação erótica; isto é, o incógnito da força humana ganha contornos maquínicos, uma vez que opera partindo de mecanismos que solicitam ao corpo não apenas o postulado de suas qualidades naturais.

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JARRY, Alfred. O Supermacho. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 126, 128. Michel. As Máquinas Celibatárias. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. São Paulo: n-1 Edições; Belo Horizonte: Relicário Edições, 2019, p. 16. 61 CARROUGES,

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A busca pelo ilimitado no romance O supermacho de Alfred Jarry, pp. 155-170 PÉRET, Benjamin. Jarry est-il un poète chrétien?. L’Étoile Absinthe (Societé des Amis d’Alfred Jarry), Paris, nº 53-54, 1995. Disponível em: http://alfredjarry.fr/amisjarry/fichiers_ea/etoile_absinthe_065_66reduit.pdf. Acesso em: 14/08/2019. SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. 3ª ed. Paris: Aubier, 1989. SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica. Tradução de Érico Veríssimo. 1ª ed. Porto Alegre: Edições Meridiano, 1941.

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OS “ANIMAIS COMO PESSOAS”: A ABORDAGEM ABOLICIONISTA DE GARY FRANCIONE Heloisa Helena Siqueira Correia1 Ádna Rosiene de Araújo Parente2

RESUMO: O presente artigo versa sobre a abordagem abolicionista proposta pelo filósofo norte americano Gary L. Francione, considerado um dos maiores ativistas do direito dos animais na atualidade. O artigo discute os principais conceitos de Francione na defesa dos animais nãohumanos, por exemplo, a identificação da esquizofrenia moral na relação dos seres humanos com os animais não-humanos, tendo como um dos seus principais fatores o status de propriedade estabelecida aos animais não-humanos. Uma das premissas principais de Francione é a crítica desse estatuto de propriedade, que acaba implicando nas relações morais entre seres humanos e animais. Para combater esse estatuto de propriedade, por tanto tempo fixado aos animais, Francione apresenta o princípio da igual consideração de interesses, que advoga que se deve tratar semelhantes semelhantemente. Para ele, o que nos assemelha aos animais é o interesse de não sentir dor (senciência), logo, os animais não humanos são merecedores da aplicação desse princípio e, ao mesmo tempo, possuem o direito de que seus interesses sejam considerados e tenham importância moral. A partir da aplicação desse princípio aos animais não-humanos, seus interesses se tornam moralmente significativos e, assim, acabam por deixar de serem considerados meras coisas, tornando-se pessoas, garantindo, com esse novo status, que os seres humanos venham reconhecer a obrigação moral de não causar sofrimento aos animais. A abordagem abolicionista de Francione abre a possibilidade de inserção dos animais não-humanos em uma comunidade moral, portanto, como sujeitos detentores de direitos morais. PALAVRAS-CHAVE: Francione; Abolicionismo; Ética e direitos dos animais; Propriedade; Autoconsciência. “ANIMALS AS PERSONS”: THE GARY FRANCIONE’S ABOLITIONIST APPROACH 1 Doutora.

Programa de Mestrado em Filosofia. Programa de Mestrado em estudos literários. Universidade Federal de Rondônia. heloisahelenah2@hotmail.com 2 Mestranda. Programa de Mestrado em Filosofia. Universidade Federal de Rondônia. adnaparentee@gmail.com

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ABSTRACT: This paper thematizes the abolitionist proposal regarding non-human animals of the north-American philosopher Gary Francione, who is considered one of the biggest nowadays activist of animals rights. The paper discusses the Francione’s main concepts in terms of defense of nonhuman animals, as the identification of the moral schizophrenia in the relation of human beings with non-human animals, which conducts to the status of property of these non-human animals by humans. One of the basic Francione’s ideas is the criticism of this status of animal property, which implicates directly in the type of the relations between human beings and animals. In order to face this condition of animal property imposed to animals along the human history, Francione presents the principle of equal consideration of interests that advocates for the similar treatment to similar beings. According to him, what equalizes humans to animals is the interest of avoiding pain (sentience), then, non-human animals are entitled of the application of this principle and at the same time have the right to have their interests considered and assuming moral importance. From the application of this principle to non-human animals, their interests become significantly in moral terms and, therefore, they are not anymore merely things, coming to persons, guaranteeing with this new status that human beings must recognize the moral obligation of not committing suffering to animals. The Francione’s abolitionist approach allows the possibility of insertion of non-human animals in a moral community, therefore, as subjects of moral rights. KEY-WORDS: Francione; Abolitionism; Animal Ethics and Rights; Property Self-Consciousness. 1. Considerações introdutórias Em suas obras principais – Introdução aos Direitos dos Animais, Rain Without Thunder: The Ideology of the Animal Rigths Movement, Animal, Properthy and the Law, Animals as Persons: Essays on the Abolition of Animal Exploitation, dentre outros –, Gary L. Francione propôs uma teoria ético-filosófica chamada de abordagem abolicionista dos direitos dos animais, cujo objetivo principal é a inserção de todos os animais não-humanos autoconscientes em uma mesma comunidade moral. Sua argumentação repousa em algumas premissas principais: a crítica do estatuto da propriedade e suas implicações nas relações morais entre os seres humanos e os animais; a formulação de uma teoria moral baseada exclusivamente na autoconsciência, e não em outras características ou habilidades cognitivo-psicológicas específicas; no núcleo de sua teoria dos direitos dos animais está contida a tese de que os animais não devem ser tratados como recursos substituíveis (que era um dos aspectos defendidos por Singer em sua teoria bemestarista dos animais não humanos); etc. O princípio da igual consideração de interesses pressupõe a universalidade dos julgamentos morais, desprovidos, portanto, de todo interesse próprio ou de grupos; trata-se de um princípio que permite a imparcialidade e a universalidade no julgamento e na avaliação dos interesses morais dos seres envolvidos. Além disso, esse princípio resolveria a causa principal da

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 esquizofrenia moral humana em relação aos animais, a saber: o estatuto moral/legal da propriedade em que os animais não-humanos estão inseridos (as filosofias de Kant e Locke negam aos animais o direito à participação a uma comunidade moral). Dois argumentos principais são adotados para justificar essa posição: no caso de Kant, é errado causar sofrimento aos animais; eles seriam concebidos como meras mercadorias em posse dos seres humanos; além disso, pela ausência de racionalidade, eles não poderiam ser integrados no âmbito de uma comunidade moral. Para Locke, os animais são uma concessão de Deus aos homens, constituindo-se, portanto, como um bem material econômico, sem direitos morais. Neste artigo, nosso objetivo é (i) refletir sobre a crítica de Francione ao estatuto da propriedade dos animais, argumentando que, aos seus olhos, a posse dos animais seria a expressão mais nítida da violação moral dos seus direitos; (ii) demonstrar a tese de Francione de que os animais são pessoas, assentada na ideia de que os seres humanos devem reconhecer sua obrigação moral de não causar sofrimentos e de não violar os direitos e o bem-estar dos animais; (iii) a partir disso, demonstrar que Francione desenvolve uma abordagem abolicionista do direito dos animais, cujo objetivo é a inserção de todos os animais sencientes em uma mesma comunidade moral.

2. Noção de Esquizofrenia moral dotada por Francione Francione denuncia, em alguns pontos de sua escrita, o problema da esquizofrenia moral nas relações morais dos humanos para com os não-humanos, traduzida em atitudes duvidosas e incompreensíveis dos seres humanos que, ao mesmo tempo que defendem que é moralmente errado proporcionar sofrimento desnecessário aos animais, praticam esse sofrimento em relação aos mesmos por motivos supérfluos. Em outras palavras, não existe conexão naquilo que se prega (teoria) e no que realmente se pratica (prática). Para o filósofo e jurista, existe comumente a negação, por parte dos seres humanos racionais, em um primeiro momento, de que os animais são meras coisas; porém, ao mesmo tempo, concordamos que esses animais não-humanos são tratados como se fossem meros recursos econômicos, demonstrando, mais uma vez, a existência dessa visão comportamental esquizofrênica. Para Francione, um exemplo desse comportamento contraditório é a relação dos seres humanos com seus animais domésticos: ao mesmo tempo que os amam e ao mesmo tempo que os consideram membros de suas famílias, na hora de suas refeições, os seres humanos colocam em suas mesas outros animais não-humanos que possuem a mesma senciência, isto é, a mesma capacidade de sentir dor de seus animais domésticos tão amados. Portanto, a esquizofrenia é nítida na distinção de alguns animais não humanos como merecedores de amor, Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 carinho e cuidados, enquanto outros, que são semelhantes aos seus animais domésticos, não possuírem o mesmo direito. Na perspectiva de Francione, por parte dos animais humanos há a esquizofrenia de diferenciar tipos de animais não-humanos, rotulando cada animal em seu grupo e, também, ignorando a capacidade de sofrimento de cada um, mas distinguindo e ordenando a função de cada animal nãohumano. Para ele, portanto, a causa principal dessa esquizofrenia é que o ser humano (animal humano) classifica e delimita os animais em grupos: animais domésticos, animais para alimentação, animais para pesquisa, animais para caça, animais de entretenimento, animais de zoológico etc.

3. O princípio do tratamento humanitário O “princípio do tratamento humanitário” tem origem na teoria utilitarista do filósofo Jeremy Bentham, que rejeitava a tese de que, por falta de racionalidade ou comunicação pela linguagem e pela ausência de autoconsciência, os animais poderiam ser tratados como coisas. Aos seus olhos, o que provava o status moral dos animais era somente a senciência ou a capacidade de sentir dor e prazer. Para Bentham, “a questão não é ‘Eles podem raciocinar’?, nem ‘Eles podem falar’?, mas sim ‘Eles podem sofrer’?”. Na visão de Francione, Bentham nunca combateu o status dos animais como propriedade dos humanos. Pois, para Betham, os animais tinham interesse em não sofrer, mas, diferente dos humanos, não tinham interesse em continuar vivendo, e essa aceitação da falta de autoconsciência contribuía para a distinção qualitativa entre os animais e humanos, o que, em última instância, justificava o tratamento dos animais como coisas em relação as suas vidas, mas, por outro lado, não permitia esse mesmo tipo de tratamento em relação ao interesse do animal em não sofrer. Portanto, o reconhecimento dos animais como propriedade humana levou a uma falha da teoria moral na formulação das leis anticrueldade modernas, pois o princípio do tratamento humanitário exige que se tenha um equilíbrio dos interesses dos humanos com os dos animais, levando, assim, os interesses dos animais como moralmente significativos. Porém, na perspectiva do filósofo abolicionista, tal exigência se encontra predestinada ao fracasso, na medida em que, mesmo com o princípio do tratamento humanitário, os animais ainda existem como recursos exclusivos dos seres humanos. Francione também defende a tese de que nosso pensar moral em relação aos animais é informado por duas intuições, as duas estando relacionadas ao conceito de necessidade. Na primeira intuição, encontramos a afirmação de que podemos preferir os humanos em situações de necessidade. Em Introdução aos direitos dos animais, Francione afirma: Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 Não pensamos que os animais sejam “o mesmo” que nós. A maioria de nós tem a posição de que, em situações de verdadeiro conflito entre os interesses dos humanos e os dos animais, ou em alguma emergência que requeira que escolhamos entre um humano e um animalisto é, quando for necessário fazer isso -, devemos preferir os interesses de um humano aos interesses de um animal (FRANCIONE, 2013, p.24).

Na segunda intuição, encontramos a afirmação de que é errado ocasionar dor “desnecessária” aos animais, pois o reconhecimento da senciência nos animais deixa explícito o interesse em não experenciar dor ou sofrimento. Considerando esse interesse como moralmente significativo, na perspectiva de Francione, não devemos infligir nenhum sofrimento sem necessidade aos animais. Em sua ótica, “embora possamos preferir humanos a animais em situações de verdadeira emergência ou conflito, também reconhecemos que, como nós, e diferentemente das plantas e das pedras, os animais são sencientes – o animal corresponde a um tipo de ser que é consciente e pode ter experiências subjetivas de dor e sofrimento” (FRANCIONE, 2013, p.25) Francione enfatiza que, apesar de sustentarmos que é errado impor sofrimento desnecessário aos animais, a maioria dos usos que deles se faz vem com meras justificativas por conveniência, prazer, divertimento – entre outras. Como exemplo, Francione cita os usos de animais em circos, em rodeios, na caça esportiva, em casacos de peles, consumo de carne etc. Portanto, esses exemplos, tomados do ponto de vista ético e dos direitos dos animais, tal como defendido por Francione, não apresentam nenhum tipo de necessidade justificável, portanto, são atividades protegidas por leis que proíbem o sofrimento animal desnecessário. A inconsistência de nosso discurso para com nossa prática resulta na afirmação da condição do animal como propriedade: os animais continuam como mercadorias cujos valores são estabelecidos pelos proprietários. Ou seja, essa condição tira todo o sentido de equilíbrio de interesses no princípio do tratamento humanitário, porque o que se encontra em jogo realmente são os interesses dos proprietários versus os interesses dos animais (suas propriedades). Para Francione, nessa lógica, a balança de equilíbrio nunca pesará a favor dos animais, pois estes são vistos sempre como mercadorias, portanto, como meras propriedades. No fundo, o que se considera é tão somente o lado econômico que irá adquirir com sua propriedade animal. Na perspectiva de Francione: O animal em questão é sempre um “animal de estimação” ou “pet”, ou um animal de “laboratório”, ou um animal de “caça”, ou um animal para “comida”, ou um animal de “rodeio”, ou alguma outra forma de propriedade animal que existe somente para nosso uso e que só tem valor como um meio para os nossos fins. Não há realmente nenhuma escolha a ser feita entre o interesse do humano e o interesse do animal porque a escolha já está predeterminada pelo status de propriedade animal (FRANCIONE, 2013, p.28).

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 Em Introdução aos direitos dos animais, Francione alega que, se levarmos os interesses dos animais a sério, não tem como – e nem podemos – continuar considerando-os como meros recursos humanos. Essa teoria, que rejeita a tese dos animais como coisas, deve estar ligada, portanto, a abolição total da exploração animal – e não apenas como uma irrelevante regulação “humanitária” do uso desses animais, na medida em que esse princípio humanitário de maneira alguma protege os interesses dos animais, uma vez que os animais ainda são vistos como propriedades e, na verdade, na maioria das vezes o que se proíbe é o tratamento ineficiente de lucros, ou seja, algum mal direcionado ao animal que não irá servir para algum interesse econômico. Na realidade, há defesa dos interesses dos animais somente quando se tem alguma vantagem econômica: é totalmente ineficiente estender para esses animais cuidados mais do que são necessários para explorá-los. Nesse sentido, enquanto os animais continuarem sendo tratados como meio para os fins humanos, seus interesses sempre serão dessemelhantes aos interesses humanos. Nas palavras de nosso autor: Nós supomos que os proprietários de animais vão agir em seu próprio interesse econômico, e não vão impor mais dor e sofrimento do que for necessário para usar eficientemente o animal como um recurso econômico. Impor mais dor e sofrimento seria danificar essa propriedade animal e diminuir seu valor, sem um ganho econômico correspondente, o que não seria racional. Em um sistema de propriedade privada, geralmente supomos que os proprietários sejam os melhores juízes do valor de sua propriedade e o deixamos usar essa propriedade como lhes convém (FRANCIONE, 2013, p.136).

4. O princípio da igual consideração de interesses (Picis) A solução para levarmos os interesses dos animais a sério é aplicarmos aos animais a norma segundo a qual devemos tratar semelhantes semelhantemente, ou seja, o princípio da igual consideração de interesses. O princípio é essencial para colocarmos em evidência e logo rejeitarmos formas de pensamentos que tentam justificar atitudes discriminatórias, além de ser um princípio fundamental de uma teoria ético-filosófica que almeja chegar a uma categoria de “universalidade moral”. Na ótica de Francione, “o princípio da igual consideração é um componente necessário de qualquer teoria moral; qualquer teoria que rejeite esse princípio é inaceitável como teoria moral” (FRANCIONE, 2013, p. 161). Nesse sentido, os animais possuem um interesse em comum, semelhante com os humanos, a saber, o interesse em não sofrer, logo, devemos tratar esse interesse da mesma maneira, justamente porque esse interesse em comum nos faz entender que eles são semelhantes a nós, ao menos no aspecto da senciência. Portanto, se o interesse dos animais em não sofrer é moralmente significativo, devemos aplicar o Picis como critério universal, e não nos basearmos em interesses próprios ou de um determinado grupo. Diz Francione: No fim, a única diferença entre eles e nós é a espécie, e a espécie, apenas, não é um critério

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 moralmente relevante para excluir os animais da comunidade moral, assim como a raça não é uma justificação para a escravidão humana, ou o sexo uma justificação para fazer das mulheres a propriedade de seus maridos. Usar a espécie para justificar a condição de propriedade dos animais é especismo, assim como usar a raça ou o sexo para justificar a condição de propriedade de humanos é racismo ou sexismo (FRANCIONE, 2013, p. 32).

O princípio da igual consideração de interesses determina que tratemos interesses semelhantes de um modo semelhante, de modo que, somente assim, conseguiremos determinar que os interesses dos animais tenham importância moral. Em outras palavras, ao aplicarmos este princípio aos animais, teremos condições de assegurar que estes adquiram o mesmo direito básico que todos os seres humanos possuem, a saber, o direito de não serem tratados como coisas. Francione argumenta que reconhecemos que nenhum humano deve ser propriedade de outra pessoa tanto que abolimos a escravidão e não apenas a regulamentamos para que se torne mais humanitária; em sua visão, o mesmo reconhecimento deveria ser estendido também aos animais, reconhecendo esse direito básico para os animais; em outras palavras, não há qualquer justificativa para a nossa exploração institucional dos mesmos. Portanto, se levarmos efetivamente os interesses dos animais moralmente a sério, não existe escolha, pois estaremos comprometidos com a abolição da exploração animal, e não somente com a mera regulação dessa exploração. Nas palavras de Francione: Se o interesse dos animais em não sofrer é, de verdade, um interesse moralmente significativo, e se os animais não são meras coisas moralmente indistinguíveis de objetos inanimados, então devemos interpretar a proibição do sofrimento animal desnecessário de um modo semelhante àquele como interpretamos a proibição do sofrimento humano desnecessário. Os humanos e os animais devem ser protegidos, em qualquer circunstância, contra o sofrimento resultante de seu uso como propriedade ou recurso alheio (FRANCIONE, 2013, p. 33).

Em suma, o princípio da igual consideração requisita a proteção aos animais contra qualquer sofrimento consequente do seu uso como propriedade humana; no seu núcleo, está a tese de que devemos conceder aos animais o direito básico de não serem usados ou tratados como recursos.

5. A tese dos animais como “pessoas” A partir do momento que estendemos o princípio da igual consideração de interesses aos animais, esses animais se tornarão pessoas, pois afirmar que um ser é pessoa é concordar que esse ser tem interesses moralmente significativos e que esse ser não é uma mera coisa. Para Francione, “não devemos pensar que o fato de considerarmos que os animais são pessoas signifique que os animais sejam o mesmo que os humanos, ou que os animais tenham todos os mesmos direitos que os

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 humanos têm (FRANCIONE, 2013, p.181). Francione argumenta que existe um problema na instauração de categoria de quase-pessoas: por algum tempo, houve a tentativa de implantação de um sistema de três níveis: a) as coisas (propriedade inanimada); b) as pessoas (livres) e c) as quase-pessoas (escravos). Porém, segundo ele, esse sistema fracassou, pois reconheceu-se que, se os escravos possuíssem interesses moralmente significativos, os mesmos não poderiam mais ser considerados escravos: “reconhecemos que o universo moral se limita a apenas dois tipos de seres: pessoas e coisas. As ‘quase pessoas’ (ou ‘algo mais do que coisas’) necessariamente correrão o risco de serem tratadas como coisas, porque o princípio da igual consideração não pode se aplicar a elas (FRANCIONE, 2013, p.181). De modo semelhante, Francione alega que não se pode considerar os animais “quase pessoas”: ou eles são considerados pessoas, onde o princípio da igual consideração pode ser aplicado e em relação aos quais os humanos possuem obrigações morais diretas, ou são meras coisas, em que não se aplica o princípio e, muito menos, que os humanos não têm qualquer obrigação moral direta. Francione confirma que o fato de considerarmos os animais pessoas, de maneira alguma significa que não possamos preferir humanos a animais em situações de emergências: trata-se antes que devemos parar de criar esse tipo de conflito tratando os animais como propriedade. Nesse sentido, como nos sugere Francione, assim como acreditamos que os humanos não devem sofrer como escravos sendo propriedade de outro humano, os animais também não deveriam sofrer como meros recursos para os humanos.

6. Divergências teóricas entre Francione e Singer Francione rejeita o argumento de Singer no que se refere ao uso e ao tratamento dos animais como nossos recursos. Para ele, enquanto os animais forem tratados como meios para os fins humanos, seus interesses nunca terão um status igualitário ao dos seres humanos. Ele argumenta que, se for para ter importância moral, devemos estender aos animais um direito básico de não ser considerado como meras coisas. Francione apresenta alguns aspectos problemáticos da visão de Singer na questão da senciência e da autoconsciência. Ele rebate a afirmação de Singer segundo a qual matar um ser senciente não inflige dano a esse ser. Nas palavras de Francione: A morte é o maior dano para qualquer ser senciente, e que meramente ser senciente já implica, pela lógica, um interesse na existência continuada e alguma consciência desse interesse. Ser um ser senciente, significa ter um bem estar experiencial. Nesse sentido, todo ser senciente tem interesse não apenas na qualidade de sua vida como também na

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 quantidade da sua vida. Os animais podem não ter pensamentos sobre quantidade de anos que viverão, mas, em virtude de terem interesse em não sofrer e experienciar prazer, eles têm interesse em permanecer vivos. A senciência não é um fim em si mesma- é um meio pra o fim de ficar vivo. Os seres sencientes usam a sensação de dor e sofrimento para escapar das situações que ameaçam suas vidas, e a sensação de prazer para procurar situações que as melhorem (FRANCIONE, 2013, p.235).

Francione continua sua argumentação comparando a dor de um animal senciente com a de um ser humano. Para ele, ambos suportariam a dor, por mais forte que seja, e tentariam de todas as maneiras livrar-se dela. Singer reconhece que um animal pode lutar contra algo que ameaça sua vida, mas ele não considera isso um indício de que o animal deseje realmente permanecer vivo (Cf.: SINGER, 2010, p. 228). Francione contesta Singer afirmando que, se no pensamento do bemestarista os animais não são autoconscientes, teríamos muita dificuldade em explicar como os animais aprendem algo, a não ser que justifiquemos que todo comportamento dos animais obedece exclusivamente à lógica estímulo-resposta. Para ele, por exemplo, o cachorro, ao colocar a sua pata em uma chapa quente e retirar, dificilmente irá repetir isso outras vezes. Ora, como explicar que o cachorro reconheceu que ele próprio sentiu dor porque era sua pata? Se os animais não tivessem autoconsciência, diz Francione, teríamos muita dificuldade para entender e explicar isso. Além disso, um outro exemplo dado por Francione foi o da antecipação do futuro pelos animais: como um cachorro pode antecipar o encontro com seu dono chegando em casa? Francione também critica Singer por este considerar os animais recursos substituíveis “de um ponto de vista imparcial, convertido em algo bom pela criação de um novo animal que terá uma vida igualmente agradável” (FRANCIONE, 2013, p. 239). Como explicar, então, nosso sofrimento mais profundo quando um de nossos animais morrem? Para ele, isso ocorre porque nós mesmos consideramos nossos animais como recursos substituíveis. Francione também questiona que Singer realmente aplicasse a PICIS, teria que tratar casos semelhantes semelhantemente, e teriam que dar a esses interesses uma proteção semelhante, do tipo direitos.Com isso, alcançaríamos a extinção da instituição de propriedade animal: “[...]enquanto Singer efetivamente rejeitar o status de propriedade dos humanos, mas não dos animais, fica impossível aplicar o princípio da igual consideração de interesses” (FRANCIONE, 2013, p. 249). Francione critica a linha do bem-estarismo adotado por Singer por esta não questionar o uso dos animais, mas somente focar sua reflexão no tratamento dos animais (aumento de gaiolas, métodos de abate “humanitários” etc.). Francione encontra nessa afirmação um problema moral gravíssimo, uma vez que, na visão abolicionista adotada por ele, é inadmissível o uso dos animais.

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 Francione designou pelo termo neo-bem-estarismo (criado em 1994) a visão que realmente deveríamos parar de usar animais; no entanto, para chegarmos ao abolicionismo, deveríamos apoiar o bem-estarismo, ou seja, entendê-lo como uma ponte para chegarmos à abolição animal. Portanto, na perspectiva de Francione, a partir do momento que se adota a reforma do bem-estar, aderimos com ela uma zona de conforto e desculpas para continuarmos explorando os animais, pois, no bemestarismo, conforme nos mostra Francione, é incentivado o consumo de subprodutos de animais que estão sendo tratados de forma “humanitária”, ou seja, uma exploração feliz e tendo como consequência uma maior comercialização da exploração desses animais. Como então podemos afirmar que levamos os interesses dos animais a sério ao mesmo tempo em que os comemos? – questiona Francione.

7. Educação vegana criativa e não-violenta Francione é totalmente contra o uso da violência, tanto de uma maneira geral quanto dentro do movimento abolicionista. A violência, em sentido estrito, não faz parte da mudança que ele busca, na medida em que o que está no núcleo de sua reflexão é a transformação por meio da utilização de uma ética não violenta. Ele cita como exemplo a aceitação de alguns para o uso da violência na defesa contra a exploração animal aplicada contra agricultores, exploradores, comerciantes de peles etc., e esquecem de analisar que aqueles praticam tais atos de exploração porque há um público exigindo seus produtos. Portanto, se parássemos de obter tais produtos, estes poderiam investir em outras atividades; em outras palavras, se existissem mais pessoas veganas, o incentivo do uso de animais diminuiria como também diminuiria o consumo exacerbado, resultando, inevitavelmente, em uma responsabilidade maior para aqueles que consomem e exigem produtos de origem animal. Francione ressalta que é um equívoco titular os fazendeiros como os únicos “vilões” pelo sofrimento animal, na medida em que, se analisarmos mais a fundo, perceberemos que há um público grande que demanda produtos de origem animal e que, portanto, são ética e moralmente responsáveis – e autorizam – a crueldade para com os animais. Para Francione, só conseguiremos visualizar uma mudança significativa quando houver a diminuição da demanda de produtos de origem animal e o gradativo incentivo a outras pessoas a não consumir praticando o que ele designou de veganismo criativo, ou seja, realizando oficinas sobre veganismo, sites ou blogs sobre abolição e veganismo; amostra de comidas veganas em eventos; na escrita de editoriais pra jornais, revistas, distribuindo literatura sobre veganismo – dentre outras atividades –, na tentativa de mostrar que o veganismo é uma base moral, pois, se os animais Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 importam moralmente, não existe nenhuma justificativa sólida para continuarmos usando-os como mercadorias (ou seja, não há justificativa para o uso em roupas, comidas, cosméticos etc).

8. Considerações finais Neste artigo, discutimos sobre a ética e os direitos dos animais a partir da abordagem abolicionista de Gary L. Francione. O filósofo argumenta que quase todas as pessoas concordam que seria errado ocasionar sofrimento desnecessário aos animais, mas, ao mesmo tempo, praticam tais atos por motivos egoístas e banais, que visam somente o benefício dos seres humanos, esquecendose totalmente de levar em consideração o sofrimento animal, resultando, assim, em uma esquizofrenia moral. Essa esquizofrenia moral resulta do estatuto de propriedade atribuído aos animais não-humanos e nunca retirado nem mesmo pelo princípio do tratamento humanitário que teve origem com a teoria de Jeremy Bentham. Francione questiona os motivos que nos levaram a acreditar que a regulação – e não a abolição – da exploração animal seria suficiente para prover a importância moral dos interesses dos animais. Nesse princípio, os animais ainda são vistos como propriedade (o lucro que esses animais podem proporcionar), pois efetivamente há defesa dos interesses dos animais somente quando se tem alguma vantagem econômica em jogo. Assim como Singer, Bentham acreditava que os animais tinham interesse em não sofrer, mas diferente dos humanos não tinham interesse em continuar vivendo. Para Francione, todo ser senciente está ciente da dor e do prazer que ele vivencia e, além disso, que é ciente do significado de uma existência continuada. Discordando de Singer e Bentham, ele alega que a morte é o maior dano que um senciente pode sofrer, pois acaba com o interesse de continuar vivo. Portanto, para Francione, a senciência já é o suficiente para que um ser vivo seja considerado detentor de direitos morais. Na perspectiva de Francione, se os seres humanos realmente desejam levar o sofrimento animal a sério, deveriam aplicar o princípio da igual consideração de interesses, considerando os interesses dos animais não-humanos em não sofrer pela adição do mesmo valor moral a esse interesses – interesses esses que nos tornam semelhantes a estes animais. A partir do momento que for estendido o conceito de pessoa para os animais não-humanos, estes não poderão mais ser considerados meros recursos econômicos: no abolicionismo proposto por Francione rejeita-se a ideia de animais como coisas ou simplesmente como recursos para os humanos; no cerne dessa teoria está a total abolição da exploração animal, pois, para ele, enquanto os animais continuarem sendo tratados como meios para fins humanos, seus interesses continuarão sendo dessemelhantes ao interesse humano. Por fim, Francione alega, dada a importância moral dos animais, que o Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Os “animais como pessoas”: a abordagem abolicionista de Gary Francione, pp. 171-182 veganismo se traduz na base moral da defesa dos interesses e dos direitos dos animais. Portanto, não existem justificativas para os usarmos em nossa comida, roupas, como se fossem mercadorias. O veganismo criativo, e não violento, é a única possibilidade na transformação das relações entre os seres humanos e os animais não-humanos.

REFERÊNCIAS FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis, SC: EDUFSC, 2007. ___. Por uma questão de princípio: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis, SC: Boiteaux, 2003. FRANCIONE, Gary L. Animals as persons: essays on the abolition of animal exploitation. New York: Columbia University Press, 2008. _____.Animals, property, and the law. Philadelphia: Temple University Press, 1995. __. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro? Tradução Regina Rheda. 1ª Edição. Campinas, SP: Unicamp, 2013.

SINGER, Peter. Ética prática. Tradução Jeferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SINGER, Peter. Libertação Animal. Tradução Marly Winckler e Marcelo Brandão Cipolla. 1º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. NACONECY, Carlos M. Ética e animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS, 2006. NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209

NARRATIVA E REPRESENTAÇÃO NA FILOSOFIA DA HISTÓRIA DE FRANK ANKERSMIT John Endrew Gomes de Paula1 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar a narrativa e o lugar ocupado por ela na produção do conhecimento histórico. Para tal, o estudo realizado baseou-se nas noções de narrativa, representação e epistemologia da história, presentes na filosofia da história de Frank Ankersmit. A discussão apresenta-se em três momentos distintos: no primeiro momento, a partir das reflexões epistemológicas de Ankersmit, investiga-se a narrativa histórica enquanto uma proposta capaz de intervir na relação entre realidade e linguagem. Em seguida, trabalha-se com a teoria da representação histórica elaborada pelo autor e discute-se a função representacional da narrativa na produção do conhecimento histórico. Por fim, conclui-se o artigo através de uma breve síntese do que foi apresentado nas seções um e dois, evidenciando a relação entre narrativa e representação, e apresentando uma concepção de conhecimento histórico que conjugue ambas. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa. Representação. Conhecimento histórico. Filosofia da história. Frank Ankersmit. ABSTRACT: This article aims to analyze the narrative and its place in the production of historical knowledge. To this end, the study was based on the notions of narrative, representation and epistemology of history, present in Frank Ankersmit's philosophy of history. The discussion presents itself in three distinct moments: in the first moment, from Ankersmit's epistemological reflections, the historical narrative is investigated as a proposal capable of intervening in the relationship between reality and language. Then, we work with the theory of historical representation elaborated by the author and discuss the representational function of narrative in the production of historical knowledge. Finally, the article concludes through a brief synthesis of what was presented in sections one and two, highlighting the relationship between narrative and representation, and presenting a conception of historical knowledge that combines both. KEYWORDS: Narrative. Representation. Historical knowledge. Philosophy of history. Frank Ankersmit.

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Licenciado em História. Mestrando em Filosofia na UFPR. johnendreww@hotmail.com

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209

Introdução O termo história, por si só, é um termo polissêmico, dificultando, muitas vezes, uma compreensão imediata do que exatamente se está querendo dizer com ele. Em contrapartida, quando se fala em conhecimento histórico, a definição do objeto que se investiga, assim como da trajetória que se pretende percorrer, passa a ser mais clara. Recorda-se, então, a distinção feita por Hegel entre história res gestae e história rerum gestarum, segundo a qual, a primeira seria a realidade passada que denomina-se comumente como história, enquanto a segunda seria o conhecimento histórico que se produz sobre esse passado, ou também, “a história que podemos narrar sobre o passado” (ANKERSMIT, 2012, p. 17). Sendo assim, a investigação apresentada no presente artigo, se ocupa da história rerum gestarum e estuda a história enquanto um tipo de conhecimento vinculado, sobretudo, ao saber produzido por historiadores e pesquisadores ligados ao âmbito da história. A concepção de uma historiografia profissionalizada compartilhada atualmente pela maioria dos historiadores, delimitando a historiografia como a escrita da história orientada por princípios científicos e baseada em métodos, é uma concepção que consolidou-se ao longo do século XIX, com o Historicismo alemão e a escola Metódica francesa, e buscou distanciar-se da filosofia, esforço que permeou também os Annales e particularmente seu diálogo com as Ciências Sociais, no início do século XX. A tentativa dos Annales, ao longo da primeira metade do século XX, em aprimorar a história científica afastando-a da narrativa e do acontecimento, na prática não gerou uma separação efetiva entre narrativa e historiografia. Embora existam autores que se refiram a um esquecimento da narrativa, como é o caso de Lawrence Stone (1979), e outros que prefiram falar em um eclipse narrativo, opinião sustentada por Paul Ricoeur (1983), o fato é que não houve um rompimento explícito entre historiografia e narrativa, na primeira metade do século XX. Como questiona muito bem François Hartog: “É suficiente, pois, recusar o acontecimento e o indivíduo para escapar à narrativa?” (1998, p.195), e conclui mais adiante no mesmo ensaio: “Renunciar à história-narrativa, quer dizer, à história événementielle era deixar de lado não a narrativa, mas simplesmente uma forma particular de narrativa” (1998, p. 200, grifo do autor). A história-problema apresentada pelos Annales, jamais deixou de ser uma história narrativa; tratou-se, na verdade, de outro tipo de narrativa, como Paul Ricoeur identifica ao analisar o trabalho de Braudel sobre o Mediterrâneo e sua construção narrativa em parte de seu livro Tempo e narrativa Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 (1983). Ou seja, só pode-se falar em um abandono da narrativa nesse período, se a narrativa for concebida como objeto de reflexão teórica e não como forma de escrita. Enquanto a primeira metade do século XX foi marcada por um predomínio da influência dos Annales, assim como das Ciências Sociais, em contrapartida, a historiografia produzida a partir da segunda metade do século XX sofreu grande influência do linguistic turn que, ao repensar as relações entre conhecimento, verdade e linguagem, influenciou profundamente a produção do conhecimento dentro das humanidades, inclusive, dentro da história. O linguistic turn pode ser caracterizado como um movimento que teve início no começo do século XX, ganhou

maior expressividade a partir da década de 1960 e se desenvolveu,

principalmente, a partir da filosofia da linguagem, demonstrando às diversas áreas do conhecimento, como é o caso da história, que a linguagem não poderia mais ser considerada um meio transparente entre sujeito (isto é, historiador) e objeto (isto é, passado) e que caberia a epistemologia investigar a função conciliadora ou não e, em alguns, construtora desempenhada pela linguagem, na produção do conhecimento (histórico). Os desdobramentos do linguistic turn e dos problemas relacionados à opacidade da linguagem atingiram vários departamentos de história nas décadas de 1960/70 e foram impulsionados, sobretudo, pela filosofia analítica anglo-saxônica, pela hermenêutica e pelas teorias estruturalista e pós-estruturalista. O campo historiográfico que se conciliava com as Ciências Sociais, buscando desenvolver seus próprios métodos e se estabelecer enquanto ciência, a partir da metade do século XX e dos diálogos com a filosofia analítica, com a hermenêutica e com o pós-estruturalismo, se reaproximava das discussões filosóficas. A reaproximação entre história e filosofia, e os debates retomados no campo teórico da história a partir do que desenvolvia-se na epistemologia e na filosofia da linguagem pelas linhas de pensamento acima citadas, tiveram impacto, sobretudo, nas investigações acerca do conhecimento histórico e de como as discussões em torno da linguagem e da narrativa formulavam novas questões a respeito dos limites desse conhecimento. Apesar da vasta produção sobre a narrativa e a escrita da história que se desenvolveu a partir desse contexto, pouco consenso foi obtido e esclarecer o lugar ocupado pela linguagem (isto é, a narrativa) na produção do conhecimento histórico ainda é um anseio ao qual se dedicam muitos teóricos e filósofos da história.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Diante disso, o presente artigo busca identificar, a partir da filosofia da história de Frank Ankersmit, o lugar ocupado pela narrativa na produção do conhecimento histórico. Investiga-se, conjuntamente, como o conceito de representação pode esclarecer o funcionamento da narrativa dentro da epistemologia histórica, ou seja, como a representação pode esclarecer o entendimento a respeito da narrativa e de sua relação com o conhecimento histórico. Para fins de esclarecimento ressalta-se que, embora muitas vezes as noções de linguagem e narrativa apareçam sobrepostas no presente artigo, ele não tem por objetivo defender que ambas sejam sinônimas, pelo contrário. O intuito é apenas acompanhar o raciocínio desenvolvido pelo próprio autor em questão, Frank Ankersmit, e realizar a aproximação entre linguagem e narrativa partindo da hipótese de que a narrativa pode ser compreendida enquanto a manifestação linguística presente na escrita da história, mas se reconhece que essa não é a única possibilidade de compreender a relação entre ambas e que a narrativa não se manifesta apenas linguisticamente.

1. Frank Ankersmit: filosofia da história e narrativismo Franklin Rudolf Ankersmit nasceu em 20 de março de 1945, em Deventer, Holanda. Iniciou seus estudos na área das ciências exatas e só mais tarde (por volta do final dos anos 1960 e inícios dos 1970) passou a estudar história e filosofia, tendo concluído seu doutorado em filosofia em 1981, na Universidade de Groningen. Em 1986 tornou-se membro da Academia Real de Ciências da Holanda e é coeditor da Revista de Filosofia da História, desde 2007. A partir de 1992 passou a ocupar a cadeira de História Intelectual e Teoria da História e Historiografia na mesma universidade em que se formara. Sua pesquisa foi e ainda é influenciada pelos trabalhos de Hayden White (1928-2018), conforme reconhecido pelo próprio autor, seus primeiros trabalhos foram dedicados a filosofia lógica de Leibniz, e suas produções posteriores foram influenciadas por Richard Rorty (1931-2007), Arthur Danto (1924-2013) e, de certa forma, por grande parte da filosofia da linguagem e do narrativismo produzidos no século XX. Atualmente Ankersmit está aposentado, porém continua desenvolvendo pesquisa na área da filosofia da história. De acordo com Ankersmit, a filosofia da história passou por três principais fases no período pós-guerra, responsáveis por moldar e preparar o momento em que o debate sobre a filosofia da história alcançou no século XXI, tendo como maior foco os problemas referentes a historiografia e a narrativa histórica. Em primeiro lugar, as discussões sobre o caráter científico da história estiveram associadas ao modelo de “leis de cobertura” de Carl Hempel, e as tentativas foram de estipular leis para a Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 produção ou explicação da história e, em alguns casos, admitida a impossibilidade de tais leis na história, de averiguar a que tipo de ciência ou conhecimento a história se assemelhava (ANKERSMIT, 2012, p. 18). Abandonado o modelo de leis de cobertura, foi a vez da hermenêutica entrar em cena e propor uma análise muito mais condizente com o perfil do conhecimento histórico, ainda que, até mesmo grandes nomes da filosofia hermenêutica, como é o caso de Hans-Georg Gadamer e suas contribuições tanto à história quanto às humanidades em si, não tenham resultado numa saída e superação completa do modelo de leis de cobertura (ANKERSMIT, 2012, p. 18-20). Por fim, Ankersmit destaca que a terceira fase foi inaugurada por Hayden White, importante teórico da história da década de 1970, propagador da virada linguística no âmbito da filosofia da história e o responsável por adensar essa discussão com elementos trazidos da teoria literária. Diferentemente dos defensores do modelo de leis de cobertura e dos hermeneutas, que preocupavam-se apenas com o nível das explicações históricas, Hayden White tornou os teóricos da história cientes da importância do texto histórico como um todo para se compreender a escrita do historiador. (ANKERSMIT, 2012, p. 20-21). Todavia, Devemos notar que a teoria da história de White, tal como desenvolvida em seu livro, focaliza exclusivamente o nível do texto histórico, ou seja, ela não deixa espaço para uma análise da relação entre a escrita da história e aquela parte do passado em si que está exposta no texto (ANKERSMIT, 2012, p. 22).

E esse é, justamente, um ponto central na filosofia da história de Ankersmit, sucessor dessas três fases da filosofia da história e das indagações abertas, principalmente, por Hayden White. Ainda que os estudos sobre a linguagem não tenham sido esgotados e possam oferecer novas questões sobre o processo de produção (ou sistematização) do conhecimento histórico, o autor julga essencial pensar uma teoria da história para além da virada linguística e da teoria literária.

1.1. A narrativa histórica como organizadora de conhecimento Ankersmit deixa claro que mesmo ao tratar da narrativa e da historiografia, a teoria da história tem um compromisso com um passado que transcendente meramente o que é textual, entretanto sua postura não implica na defesa de uma noção de história ingênua, que se considere capaz de reconstruir o passado exatamente como ele foi. Pois, se por um lado o autor sugere que não se esqueça da existência da dimensão empírica do passado, que não pode ser resumido apenas à linguagem, por outro recomenda que se abandone a noção de história como ciência, pois só assim seria possível compreender de fato a natureza do conhecimento histórico. Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Uma vez que para uma determinada área do conhecimento ser considerada ciência, é condição que ela fale de leis ou então de objetos gerais, definir a história enquanto ciência teria como primeira pressuposição considerar a neutralidade da linguagem, e tal neutralidade Hayden White e seus contemporâneos já haviam contestado no início da década de 1970. Conforme Ankersmit: Para a descoberta de leis gerais, requer-se que as declarações que as descrevem sejam intersubjetivamente aceitáveis, e isto não apenas para mim, mas também para você e qualquer outro. Em outras palavras, a declaração geral requer um sujeito geral, ou um sujeito do conhecimento intercambiável. [...] Este paralelismo entre o estado geral de coisas por um lado, que é conhecido por um sujeito do conhecimento geral e intercambiável por outro, implica a transparência da linguagem. Entrelaçados entre o estado geral de coisas descrito pela declaração geral por um lado, e o sujeito do conhecimento geral por outro, os significados gerais das palavras da linguagem permanecem fixos, e a linguagem não tem a chance de ser criativa ou imaginativa (ANKERSMIT, 2012, p. 39-40, grifos do autor).

Abandonar a noção de história enquanto ciência e de que sua formulação se dê através de declarações gerais, não implicaria apenas reconhecer a opacidade da linguagem, mas também negar a ideia de que cabe à história produzir conhecimento. Por outro lado, o autor entende que o papel da história é o de organizar o conhecimento. (ANKERSMIT, 2012, p.38-41). Ao abordar a natureza das declarações gerais características do conhecimento científico, o interesse de Ankersmit não é demonstrar o contraste entre declarações gerais e declarações singulares, mas a diferença entre a declaração geral e a narrativa histórica. Observando tanto a declaração geral quanto a narrativa, percebe-se que ambas são compostas por declarações singulares; todavia, o papel desempenhado pelas últimas em cada tipo de discurso é determinante para suas respectivas definições. Enquanto a declaração geral é uma generalização de uma declaração singular e, por outro lado, apenas uma declaração singular já é capaz de individualizar a declaração geral, a narrativa é composta por várias declarações singulares distintas, mas finitas, que só conseguem dar individualidade a uma narrativa histórica se consideradas no seu conjunto (ANKERSMIT, 2012, p. 41-42). A distinção entre narrativa histórica e declaração geral pode ser visualizada mais claramente através da comparação entre as seguintes declarações: um copo deixado em suspenso cai em direção ao chão; Atenas foi uma cidade-Estado. A primeira declaração singular diz respeito a um fenômeno físico, e normalmente é usada no âmbito da ciência. A segunda declaração, também singular, diz respeito a um fenômeno histórico e normalmente é estudada nas humanidades. Todavia, a principal diferença entre ambas é que a declaração singular, “um copo deixado em suspenso cai em direção ao chão”, já é o suficiente para

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 formular a declaração geral, “todo e qualquer copo no mundo deixado em suspenso cairá em direção ao chão” (o que não à toa conhece-se como “lei” da gravidade), enquanto a declaração “Atenas foi uma cidade-Estado” é apenas uma das diversas declarações singulares que normalmente se encontra numa narrativa sobre Atenas (ou sobre cidades-Estado), e dela não se pode concluir que Atenas sempre foi e será uma cidade-Estado, e nem que toda cidade-Estado é obrigatoriamente Atenas. Por outro lado, declarações singulares como “fez parte da Grécia Antiga”, “desenvolveu a democracia” e “participou da Guerra do Peloponeso”, são todos exemplos de outras declarações singulares que poderiam construir uma narrativa histórica singular sobre Atenas. Sendo assim, A declaração geral é uma generalização de uma declaração singular e pode ser obtida por meio de operação formal simples. A relação entre as declarações geral e singular é de tipo formal e dedutivo. A declaração singular individualiza a declaração geral. Mas a narrativa histórica, consistindo em um largo número de declarações singulares diferentes, apenas pode ser individualizada tomando cada uma delas em conta. O número de declarações singulares, tacitamente referido pela declaração geral, é infinito, e ainda apenas uma é suficiente para definir a declaração geral e vice-versa. Contudo, o número de declarações singulares contidos junto à narrativa histórica é finito, e todos eles devem ser considerados a fim de individualizar a narrativa histórica específica contada pelo historiador (ANKERSMIT, 2012, p. 42).

Conforme afirma o autor, é justamente o fato de a história exigir um sujeito individual ao invés de um intercambiável sujeito do conhecimento, como a ciência, que proporciona à historiografia o caráter de nunca ser um texto fechado, e sendo esse um reflexo da própria linguagem irremediável da qual o historiador faz uso, não deveria ser visto como um problema à produção histórica. Haverá uma disparidade sistemática entre o que um historiador diz ou pensa sobre esta realidade e as opiniões de outros historiadores a ela concernentes. Cada tentativa de definir (parte da) realidade histórica pode satisfazer alguns historiadores, mas nunca todos eles. Em outras palavras, o link entre linguagem (i.e. narrativa) e realidade não pode ser fixado de uma maneira aceitável a todos os historiadores, tornando-se, assim, o conhecimento de um sujeito do conhecimento generalizado (ANKERSMIT, 2012, p. 43, grifos do autor).

As constantes interpretações e reinterpretações de conceitos históricos são um exemplo claro de que o elo entre narrativa e passado nunca alcança uma forma satisfatória a todos os historiadores. Tudo isso pode ser ilustrado por meio de conceitos históricos típicos como a Renascença ou a Guerra Fria. Como apontei em outro lugar, tais conceitos não se referem à realidade histórica em si, mas a interpretações narrativas do passado. O termo a Renascença refere-se a uma interpretação narrativa e não à realidade histórica, ainda que as declarações contidas na narrativa do historiador o façam. Dessa forma, não é de se surpreender que conotações de termos como a Renascença estejam sujeitas a contínua reformulação (ANKERSMIT, 2012, p. 43, grifos do autor).

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1.2. A ciência formula leis, a história faz propostas Pois bem, se os conceitos históricos não se referem ao passado em si, mas a uma interpretação narrativa dele, não estaríamos presos no cárcere da linguagem (do qual o autor insiste ser necessário se libertar)? Para que seja possível afastar-se do determinismo linguístico, Ankersmit convida o leitor a pensar a partir da teoria construtivista da história. De acordo com a teoria construtivista, uma vez que o passado se faz ausente, ao historiador resta apenas alguns vestígios deste passado, portanto seu trabalho com base nestes vestígios será de construção, e não de reconstrução, de uma realidade passada. Sendo assim, a teoria construtivista da história estaria em consonância com as proposições narrativistas e concederia certa autonomia à historiografia com relação à realidade passada (ANKERSMIT, 2012, p. 46-47). Abandonada a ideia de que exista uma equivalência entre a narrativa e o passado em si, “podemos dizer que cada narrativa histórica é uma tentativa ou proposta de definição, em um caso específico, a correspondência entre linguagem e realidade histórica” (ANKERSMIT, 2012, p. 49). Ou seja, o trabalho do historiador seria o de “organizar” o conhecimento sobre o passado, com o intuito de propor ao leitor, segundo as declarações singulares escolhidas por ele, de que maneira o passado poderia ser visto para ser melhor compreendido ou compreendido através de outra perspectiva (ANKERSMIT, 2012, p. 50-51). Quando um historiador constrói sua narrativa, ele seleciona aquelas declarações que pensa serem melhores guias para um entendimento do passado. Ele acredita que sua seleção seja a melhor proposta de como o passado deveria ser visto. Sendo propostas, as narrativas históricas não transmitem conhecimento cognitivo (embora as declarações que elas contêm tenham esta capacidade). Não importa quão boa seja minha razão para sugerir uma proposta a você, minha proposta é um convite para que você faça alguma coisa e não a afirmação de que algo é o caso. Propostas não são nem verdadeiras, nem falsas; elas não afirmam que a realidade é igual (embora a natureza da realidade vá influenciar, ou mesmo determinar) ao conteúdo de nossas propostas. Estas propostas são, essencialmente, meios de demonstração da realidade histórica. Demonstrações e propostas são ambas o meiotermo entre ser baseado no conhecimento e ter ou obter conhecimento. Ambas são mais compreensivas que o conhecimento: demonstrando (o passado) e sugerindo uma proposta (de como o passado deveria ser visto) formam uma estrada para o conhecimento do passado e uma indicativa de como lidar com ele (ANKERSMIT, 2012, p. 50-51, grifos do autor).

Reconhecer o caráter propositivo da historiografia não a reduz a um mero instrumento para obtenção do conhecimento do passado, mas serve para recordar que se uma narrativa histórica fosse considerada a única forma de olhar para o passado, ela deixaria de ser uma proposta e passaria a ser uma lei. E não é essencial à história que formule leis. Por outro lado, se uma narrativa histórica

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 for aceita como uma proposta, ela sempre estará sujeita à discussão racional sobre seu conteúdo (ANKERSMIT, 2012, p. 51-52). Novamente, se a historiografia não se refere ao passado propriamente dito e se pode ser discutida racionalmente, de que modo a interpretação de Ankersmit não se basearia em uma análise meramente linguística? Como a narrativa permitiria tal discussão racional? Para tal, seguindo a linha de raciocínio do autor, deve-se assumir que a narrativa histórica é composta por declarações. Quando se qualifica uma narrativa histórica, isso também é feito através de declarações; no entanto, as declarações que formam a narrativa e as que são usadas para se referir a ela nunca se cruzam. Pode-se falar sobre uma narrativa qualquer, mas a narrativa nunca aparecerá nas declarações que são feitas sobre ela mesma (ANKERSMIT, 2012, p. 53). Deste ponto de vista, narrativas históricas são similares às coisas extralinguísticas que conhecemos da vida cotidiana, como cadeiras e casas. Se falarmos sobre uma cadeira ou uma casa, as palavras usadas para denotar tais coisas aparecerão em nossa linguagem, mas nunca aquelas coisas em si mesmas. Parece razoável definir as coisas como aquelas entidades sobre as quais podemos falar sem que estas nunca tenham feito parte da linguagem. [...] se aceitamos a definição dada há um momento atrás, as narrativas históricas são coisas, como cadeiras ou casas. Este é um resultado interessante à medida que ele indica que, aparte da linguagem e das coisas – ordinariamente reconhecidas como sendo as únicas categorias – há ainda uma terceira categoria que combina características de cada uma das anteriores (ANKERSMIT, 2012, p. 53, grifo do autor).

As três categorias mencionadas pelo autor podem ser representadas pelo seguinte esquema:

I. Propostas narrativas

II. Linguagem III. Realidade

(ANKERSMIT, 2012, p. 54)

De acordo com o esquema, as propostas narrativas funcionariam como um meio-termo, nas quais nunca se faz presente o passado em si mesmo e, ao mesmo tempo, não se pode falar de uma redução da narrativa somente à linguagem. Ocorre, na verdade, que as propostas narrativas “usam” a linguagem para se referir ao passado (ou sendo mais específico, para representá-lo), mas não pertencem a essa linguagem específica que estão usando (ANKERSMIT, 2012, p. 54). Em alguns casos, pode ocorrer de uma proposta narrativa ser elevada à condição de proposta mais plausível ao se falar sobre o passado, “tornando-se, então, uma regra concernente em como a realidade deve ser vista e, portanto, de como a linguagem deve estar conectada com a realidade” (ANKERSMIT, 2012, p. 54), e assim deixando de ser uma proposta. O conceito de Guerra Fria fornece uma visão mais clara sobre isso:

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 [...] a expressão guerra fria refere-se, assim, à certa interpretação da história política desde, digamos, 1944 a 1960 (cá estou eu ignorando as diferenças entre as interpretações individuais propostas por historiadores do período). Embora a referência seja feita ao passado, nas declarações contidas em tal interpretação narrativa, a expressão a guerra fria se remete a tal interpretação e não ao passado em si mesmo. Ademais, suponhamos que por um longo tempo todos os historiadores estiveram de acordo que esta proposta de como o passado deveria ser visto é razoável. Em tal situação, a questão de se realmente houve ou não uma Guerra Fria terá se tornado igualmente boba, tal como a questão de se realmente houve um indivíduo chamado Harry Truman que foi presidente dos Estados Unidos. Uma proposta universalmente acordada foi engessada em um fenômeno histórico o qual é parte do passado em si mesmo (ANKERSMIT, 2012, p. 54-55, grifos do autor).

Logo, noções como Guerra Fria, Revolução Francesa e outras que aparecem com frequência nas narrativas dos historiadores, impedem que se faça uma distinção clara entre o que é linguagem e o que é realidade nessas propostas (ANKERSMIT, 2012, p. 55). Isso demonstra que Foucault (1973) estava certo quando observou que nosso inventário da realidade pode mudar drasticamente com o tempo, uma vez que a questão acerca de que coisas a realidade contém está sujeita ao debate racional, e esta é uma importante tarefa da filosofia para esclarecer a natureza de tais debates. Que (tipos de) coisas que acreditamos compor o inventário da realidade são sempre resultado de uma interpretação essencialmente histórica da realidade e nunca um mero dado (ANKERSMIT, 2012, p. 55, grifo do autor).

Uma vez que, na história, a linguagem pode ser usada para falar tanto sobre as ações humanas intencionais, como dos resultados não intencionais dessas ações, a linguagem servirá no primeiro caso para descrever o passado, e no segundo, para interpretá-lo. O segundo caso é mais relevante aqui, pois nele a linguagem não se refere ao passado em si, mas a uma dimensão narrativa desse passado. A linguagem interpretativa na história, então, não proporciona “a descoberta de uma nova parte do passado, mas de uma nova dimensão para o uso da linguagem (historiográfica)” (ANKERSMIT, 2012, p. 56, grifo do autor). E a consciência dessa nova dimensão é o que proporciona o debate histórico (ANKERSMIT, 2012, p. 56-57). Todavia, como o autor recorda, mencionar a ideia de um debate histórico presume que haja meios de argumentar qualitativamente sobre o objeto em discussão e como pode se alegar tal característica nas propostas narrativas se o passado por si só não é capaz de garantir a existência desses meios? Mais uma vez, Ankersmit convida ao leitor que retome as propostas narrativas enquanto coisas: “É uma propriedade das coisas a de possuir certa unidade e coesão, se uma coisa não possui tais propriedades ela não poderia ser uma coisa, mas um mero agregado” (ANKERSMIT, 2012, p. 57). Se entende-se as narrativas não apenas enquanto coisas, mas enquanto coisas construídas, logo, cabe ao historiador, e não ao passado, garantir essa coesão e unidade através da narrativa

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 (ANKERSMIT, 2012, p. 56-57). E se esse é um trabalho do historiador, é o presente que será determinante na maneira com que se olha para o passado. Essa constatação não é uma negação de que o historiador trabalha com vestígios reais do passado; ela apenas indica que, quando se fala em produção de sentido, o sentido que se dá ao passado será fruto de uma narrativa do presente. Ainda no que diz respeito à unidade e à coerência, é comum que elas sejam buscadas dentro das declarações singulares que compõe uma narrativa; e, de fato, num primeiro momento, analisar as declarações singulares que compõem a narrativa parece a forma mais simples e segura de verificar tal coerência. Porém, uma proposta narrativa, como argumentado anteriormente, só pode ser individualizada se compreendida como um todo. Olhando para a narrativa dessa forma, “devemos, em primeiro lugar, ser capazes de identificar a proposta feita na narrativa em questão a qual declara como o passado deveria ser visto” (ANKERSMIT, 2012, p. 59, grifo do autor). E essa identificação só é capaz caso se tenha acesso a outras propostas sobre o mesmo assunto, ou seja, O nível da unidade e coerência da narrativa é, portanto, um caso relativo: podemos apenas chegar a conclusões concernentes a ele comparando a narrativa em questão com outras sobre o mesmo (ou intimamente relacionado) assunto (ANKERSMIT, 2012, p. 59).

De acordo com o autor, a coerência da narrativa histórica vem de fora. Uma narrativa deve ser analisada em comparação com outras e não por ela mesma segundo princípios formais internos; ou seja, seus princípios formais são externos, e serão determinados por algumas contingências do presente, como por exemplo: a historiografia que já foi produzida sobre o assunto, o lugar de onde esse historiador escreve e o lugar dos outros historiadores que receberão esse texto. Ankersmit coloca a produção do conhecimento histórico como um problema, acima de tudo, do presente. É o presente que ressignifica o passado através de um consenso obtido pela comparação de várias propostas narrativas, mas o passado por ele mesmo pouco fala. O passado está sempre à procura de um “terapeuta” que saiba quais perguntas devem ser feitas para que seu paciente confidencie todos os seus segredos e anseios. Vale lembrar também que o intuito do autor é desvencilhar-se de uma compreensão da narrativa historiográfica que seja apenas linguística ou literária e que não problematize a própria relação entre linguagem e realidade, que a tome como dada, pois, para Ankersmit “[...] a teoria literária não problematiza realmente o vácuo linguagem/realidade, uma vez que isto é feito em epistemologia e na filosofia da linguagem em geral” (ANKERSMIT, 2012, p. 110-111). É importante notar que para a epistemologia de maneira geral, e nesse caso, a epistemologia histórica, problematizar o vácuo entre linguagem e realidade não é apenas concluir que existe um

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 grande vazio entre ambas que não pode ser ocupado, mas é dizer que esse vácuo pode ser conectado de inúmeras formas. Para ser mais ilustrativo, pode-se dizer que na teoria literária (ou em áreas em que não se problematiza a linguagem segundo uma abordagem epistemológica) comumente se traça uma linha reta entre linguagem e realidade, enquanto na epistemologia questiona-se desde a possibilidade de se traçar essa linha até a perspectiva de se falar em um ponto médio entre o âmbito da linguagem e o da realidade. Dessa forma nota-se que dar conta de compreender este “vácuo” entre realidade e linguagem é o assunto do dia nos escritos de Ankersmit. Se O teorista literário “naturaliza” a linguagem e seu relacionamento com o mundo. Para o filósofo, há realidade, por um lado, e linguagem, por outro, e cruzar o vácuo entre ambas implica cobrir a trajetória na qual todos os tópicos de pesquisa podem ser situados (ANKERSMIT, 2012, p. 111).

Por isso, a teoria literária é muito menos útil quando temos de lidar com o problema central da teoria histórica, qual seja, o problema de como o historiador conta ou representa a realidade passada. É uma teoria sobre onde deveríamos buscar pelo significado dos textos, mas não sobre como um texto pode representar outra realidade senão a de si mesmo ou sobre o relacionamento entre texto e realidade (ANKERSMIT, 2012, p. 115).

Para Ankersmit, os historiadores devem ser gratos a autores como Hayden White, por ter lhes mostrado a importância da forma para o texto (histórico). Todavia, não devem “levar ao pé da letra” suas análises tropológicas do discurso, uma vez que elas não seriam suficientes para compreender de que modo o texto histórico representa o passado (ANKERSMIT, 2012, p. 119-121).

1.3. A narrativa e o universo narrativista Ankersmit elenca Against narrativity (2008), um ensaio recente do filósofo analítico britânico Galen Strawson (1952-), como guia para se compreender o “universo narrativista”. Para entender o restante de seu argumento é importante que se esteja ciente de duas distinções feitas por Strawson, logo no início de seu ensaio, ao analisar como nós nos experimentamos. A primeira distinção diz respeito “a experimentação de si mesmo como ‘um todo indistinguível’ […] e a experimentação de si como ‘uma entidade mental’” (ANKERSMIT, 2012, p. 279), enquanto a segunda distinção seria entre a autoexperiência diacrônica e a autoexperiência episódica.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Com relação a segunda, ainda pode-se dizer que a “‘Autoexperiência diacrônica’ é narrativista desde que aqui nós nos experimentamos como uma narrativa contínua conectando passado, presente e futuro” (ANKERSMIT, 2012, p. 279-280), enquanto a “‘autoexperiência episódica’ [...] não envolve sugestão alguma de passado ou futuro” (ANKERSMIT, 2012, p. 280). De acordo com Strawson, muitos narrativistas defendem a existência de uma relação próxima entre a percepção que temos de nós mesmos e uma certa experiência narrativa do mundo, postura que o autor chama de tese da identidade narrativa (2008 apud ANKERSMIT, 2012. p. 280). No entanto, [...] Strawson argumenta “que o passado pode estar presente, ou vivo no presente, sem estar presente ou vivo no passado”. Em outras palavras, a impressão de termos uma autoexperiência narrativista diacrônica, resultante de uma inferência errônea sobre o fato de que podemos experimentar parte de nossa vida como passado, não significa que nós temos uma experiência do passado, porque toda experiência necessariamente ocorre no presente. Então a “autoexperiência episódica” não narrativa é tudo que nos é oferecido; e Strawson conclui que a tese narrativista deve ser falsa (2008, p. 192 apud ANKERSMIT, 2012).

Disposto a concordar com os argumentos de Strawson, mas insatisfeito com sua conclusão, Ankersmit reconhece certa falta em seu pensamento, por discutir a autoexperiência sem tocar nenhuma vez em autoconhecimento. Ainda que toda experiência ocorra no presente, é possível que tenhamos um conhecimento prévio do eu. Logo, “A autoexperiência episódica de Strawson e uma compreensão cognitiva (diacrônica ou narrativista) de si mesmo podem, portanto, muito bem caminhar juntas” (ANKERSMIT, 2012, p. 280). Tal percepção é útil para resolver um embate antigo entre narrativistas que defendem a autonomia da narrativa frente à vida, concepção defendida por Louis Mink e também por Ankersmit, e narrativistas que alegam existir certa afinidade entre a maneira que compreendemos nossas vidas e uma narrativa, como é o caso de Paul Ricoeur e David Carr (ANKERSMIT, 2012, p. 281-282). Em tal debate, se, por um lado, Mink está certo em dizer que nós experimentamos a vida de forma não narrativa. Que o eu da autoexperiência é necessariamente um eu “episódico”, usando a terminologia de Strawson. Mas por sua vez, Carr está certo quando argumenta que esse eu episódico sempre está junto com um eu diacrônico, portanto, um essencial narrativismo contínuo. Mas esse narrativismo contínuo não nos é dado como autoexperiência, mas como autoconhecimento (ANKERSMIT, 2012, p. 282).

Seguindo este raciocínio a narrativa pode ser compreendida como a condição de possibilidade de todo autoconhecimento, ou seja, “a única e exclusiva forma de atingir

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 autoconhecimento (ANKERSMIT, 2012, p. 282). E aqui cabe uma ressalva, não devem ser confundidos autoconhecimento com conhecimento do eu. A diferença entre autoconhecimento e conhecimento do eu pode ser entendida se retomada a primeira distinção feita por Strawson entre a experimentação de si como um todo indistinguível e a experimentação de si como uma entidade mental e relacioná-la com a segunda distinção, entre autoexperiência diacrônica e episódica. Nossa experimentação de nós mesmos como um todo indistinguível, poderia equivaler à junção de todas as nossas autoexperiências episódicas, ao passo que a experimentação como uma entidade mental seria nossa autoexperiência diacrônica (narrativa) (ANKERSMIT, 2012, p. 282-283). E seriam “Essas entidades diacrônicas narrativistas [...] a condição transcendental para mover-se da autoexperiencia para (a possibilidade de) autoconhecimento (que é diferente de conhecimento do eu)” (ANKERSMIT, 2012, p. 283). Relacionando o que foi visto sobre a narrativa como condição para o autoconhecimento com a noção de narrativa enquanto escrita da história, Ankersmit sugere que se reconheça a proximidade da distinção de Strawson entre o eu episódico (o eu que experiencia o mundo sempre no presente) e o eu diacrônico (o eu que toma conhecimento de si narrativamente) com a diferenciação feita por Arthur Danto entre declarações de verdade singular e sentenças narrativas. De acordo com as ideias de Danto, o trabalho de uma sentença narrativa seria unir num todo dois acontecimentos separados pelo tempo. Conforme o exemplo dado pelo próprio autor, “‘Newton nasceu em Woolethorpe no Natal de 1642’”, poderia ser classificada como uma declaração de verdade singular e “o autor de Principia Mathematica nasceu em Woolethrope no Natal de 1642”, poderia ser classificada como uma sentença narrativa, unindo assim as declarações a respeito do nascimento de Newton e da publicação de uma de suas obras. Danto ainda nos recorda que tal sentença narrativa só poderia ser pronunciada após 1678, ou seja, apenas após a publicação de Principia Mathematica. E esse detalhe é justamente o que demonstra o senso histórico presente em uma sentença narrativa, pois não apenas as sentenças narrativas, como o conhecimento histórico de maneira geral, só pode ser construído após a consumação dos fatos presentes na narrativa (ANKERSMIT, 2012, p. 284). Uma sentença narrativa construída no presente é sempre composta por declarações de verdade singular que já ocorreram no passado, ainda que não seja composta apenas por essas declarações e esse tipo de verdade. As aproximações entre as noções de Strawson e de Danto apresentadas acima, mais especificamente entre as noções do eu diacrônico e da sentença narrativa, permitem dizer que a narrativa histórica é capaz de produzir entidades mentais (retomando a primeira distinção de Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Strawson sobre a experimentação de si), e essas entidades mentais podem ser caracterizadas como coisas narrativistas, ou seja, pertencentes exclusivamente à linguagem narrativa (ANKERSMIT, 2012, p. 285). Por exemplo, Ao contrário de personalidades como Petrarch, Luís XIV ou Napoleão, o Renascimento pertence à categoria das “coisas” [...] que somente emergem, e que podem somente ser discutidas de forma significativa em narrativas sobre o passado. Elas são exclusivamente coisas narrativistas, por assim dizer (ANKERSMIT, 2012, p. 286, grifos do autor).

Diferentemente dos seres humanos que não dependem da linguagem para obter unidade e continuidade, noções particularmente históricas como Idade Média, Renascimento e Revolução Francesa têm sua unidade e continuidade construídas pela linguagem narrativa (ANKERSMIT, 2012, p. 286). Portanto, se Ankersmit viu no ensaio de Strawson a possibilidade de a narrativa funcionar como meio de obtenção de autoconhecimento, na concepção de narrativa histórica de Danto ele encontrou “a condição transcendental da possibilidade de ter conhecimento de ‘coisas’ tipicamente históricas, tais como ‘a Idade Média’, ‘a Revolução francesa’, ou a ‘Renascença’. Apenas graças à narrativa essas ‘coisas narrativistas’ vieram a existir” (ANKERSMIT, 2012, p. 287).

2. História, narrativa e representação Como comentado anteriormente, é um interesse explícito de Ankersmit pensar categorias que ultrapassem o domínio da narrativa sobre o conhecimento histórico e que tornem possível uma conexão com o real. Devido a isso, essa seção trata do caminho da narrativa à ideia de representação. Em primeiro lugar, porque essa noção não está contaminada com tudo o que os narrativistas associam com a narrativa; e, em segundo lugar, porque a noção sugere fortemente o que é representado: se você tem representações também deve haver algo que é representado por elas. Deste modo, você pode corrigir o distanciamento entre linguagem/realidade, tão característico da teoria narrativista (ANKERSMIT, 2012, p. 321).

Mas o que seria uma representação histórica e de que forma a representação seria capaz de conjugar a narrativa e a realidade num mesmo entendimento sobre o processo de constituição do conhecimento histórico?

2.1. Do conceito de verdade para a história Ankersmit argumenta que parte dos problemas envolvendo o entendimento da representação histórica se dá devido a equívocos conceituais que acabam diluindo uma

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 compreensão mais clara sobre o conceito de representação e sobre o papel dela no funcionamento do conhecimento histórico. Uma primeira confusão que proporciona certas distorções e malentendidos sobre o lugar da representação dentro do conhecimento histórico ocorre em torno do conceito de verdade e de sua aplicação dentro da teoria da história. De acordo com o filósofo da história holandês, a partir da virada linguística e de suas contribuições às humanidades, a noção de verdade teria ganhado novos sentidos e maneiras de ser aplicada. Uma das funções da verdade pós virada linguística, seria, precisamente, dar legitimidade à realidade linguística e não apenas à realidade empírica enquanto produtora de um tipo de verdade. [...] o que acreditamos ser verdade pode, pelo menos, às vezes, ser interpretada como uma declaração sobre a realidade e como uma declaração do significado da linguagem e das palavras que nela usamos. Assim, a linguagem pode ser uma produtora de verdade não menor do que a realidade (ANKERSMIT, 2012, p. 67).

Ankersmit sugere que, a partir das discussões propiciadas pela virada linguística, o embate sobre a verdade na história passou a considerar tipos de verdade, dado que [...] de qualquer ângulo que escolhermos para observar a Virada Lingüística, ela jamais poderá ser interpretada como um ataque à verdade, ou como uma licença ao relativismo, pois não questiona a verdade em nenhum sentido, apenas o critério empirista de distinção entre verdade empírica e analítica (ANKERSMIT, 2012, p. 72).

A existência desses dois tipos de verdade, uma empírica e outra analítica, pode ser elucidada pela seguinte passagem: Pense em um estudo da Renascença ou do Iluminismo. Então, assim como no caso da lei de Newton, alguém pode dizer pelo menos duas coisas sobre tal estudo. Em primeiro lugar, poderia ser argumentado que uma investigação histórica da parte relevante do passado é a base empírica para a visão específica sobre a Renascença ou o Iluminismo. Mas poder-se-ia dizer, igualmente, que tal estudo nos presenteia com uma definição – ou com uma proposta de definição – da Renascença ou do Iluminismo. Outros historiadores escreveram outros livros a respeito da Renascença ou do Iluminismo e associaram-nos com uma série de aspectos diferentes da parte relevante do passado – e esta é a razão pela qual eles vieram com uma definição diferente da Renascença e do Iluminismo. E se é dessa forma que eles decidiram defini-los, então tudo o que eles vinham dizendo a respeito deve ser (analiticamente) verdade, desde que o que foi dito puder ser analiticamente derivado do significado dado aos termos Renascença ou Iluminismo. Será, assim, uma verdade conceitual, tal como a lei de Newton pode ser interpretada como uma verdade conceitual (ANKERSMIT, 2012, p. 68, grifos do autor).

Ou seja, o autor tenta demonstrar que, tanto na física quanto na história, recorrer apenas a uma verdade empírica provocaria uma simplificação de nosso entendimento a respeito destes conhecimentos, negligenciando uma verdade que também pode ser formada e discutida pela linguagem. Para além disso, ele manifesta uma compreensão do conhecimento histórico que agrega

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 as duas dimensões, a empírica e a linguística, e não se apresenta apenas como uma noção sucessora que sirva como uma “substituta mais moderna” à compreensão empírica da história. Ankersmit ainda salienta que, propor uma distinção aplicável à historiografia entre verdades empírica e analítica [...] não implica que não possamos dar bons (ou pobres) argumentos em favor de nossa visão sobre a lei de Newton ou de uma conceituação específica sobre Renascença ou Iluminismo. O debate histórico é uma prova suficiente do fato de que existem critérios racionais, além do critério da verdade, aos quais podemos apelar à medida que nos movemos para este nível (ANKERSMIT, 2012, p. 71-72).

O empenho do autor em refletir sobre os usos da ideia de verdade na teoria da história busca, justamente, evidenciar que recorrer à categoria do “verdadeiro ou falso” na discussão historiográfica é uma tentativa improdutiva. A historiografia trata, justamente, de analisar [...] quais verdades são mais úteis para se entender a natureza do período em questão do que outras. Semelhantemente, não podemos utilizar a verdade como sendo o critério pelo qual nos vemos habilitados a determinar se devemos definir o ser humano como um bípede com pernas ou como criatura dotada de razão – e perceber qual das duas definições é a mais útil dependerá de em qual tipo de conversação sobre a natureza humana desejamos nos engajar (ANKERSMIT, 2012, p. 75).

Ankersmit demonstra em seus escritos, para além do interesse com relação à verdade analítica do texto histórico, preocupação com o caráter inovador da historiografia. A persistência em caracterizar a verdade como elemento fraco e de pouco valor na análise historiográfica, corrobora com sua disposição em defender uma historiografia que, acima de tudo, busque tornar o passado significativo e não um mero aglomerado de declarações verdadeiras de pouco interesse. Como ele comenta: É bem possível que o historiador que propõe uma visão pobre da Renascença nunca peque contra o mandamento de dizer a verdade e nada além da verdade. E pode até ser que as verdades por ele desveladas nunca tenham sido notadas antes – e ainda assim seus colegas podem desprezar seu trabalho como algo que não adicionou nada de significativo em nossa compreensão do passado. Em nosso itinerário pelo passado, a verdade pode sempre ser nossa companheira, mas nunca nossa guia – pela simples razão de que ela jamais poderia ser nossa guia; nem sequer no campo das ciências (ANKERSMIT, 2012, p. 108, grifo do autor).

As colocações do autor certamente podem ser submetidas a críticas e o demasiado intento em desqualificar uma concepção tradicional de verdade também pode ser interpretada como uma possível abertura a relativizações e ao emprego do conceito de verdade em contextos específicos, nos quais “os tipos de verdade” se tornam inumeráveis e cada indivíduo passa a defender uma verdade segundo uma perspectiva muito restrita. O que remeteria também a uma provável falta de

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 preocupação do autor com relação a recepção de sua obra e aos usos (e abusos) políticos de seus textos. Todavia, Ankersmit deixa claro que suas proposições de modo algum são um ataque ao nível da pesquisa histórica: Meu interesse no narrativismo (não me aventurarei a falar por Hayden White) não tem nada, seja lá o que for, a ver com desprezo para com a pesquisa histórica, ou seja, com o processo de coletar informações factuais sobre o passado (para serem expressas em descrições verdadeiras), com explicações causais em um nível elementar, e assim por diante. Pelo contrário, eu estou profundamente impressionado com as realizações quase inacreditáveis de arqueólogos, filólogos e historiadores da ciência e pela forma como eles têm ampliado nosso conhecimento sobre o passado de tal maneira que as gerações anteriores teriam acreditado ser totalmente impensável [...] (ANKERSMIT, 2012, p. 94).

E como o autor coloca ao comentar as críticas de Carlo Ginzburg aos autores narrativistas, “Todo mundo pode ser justamente criticado por não discutir o que eles não discutem (embora seguindo esta estratégia possa-se facilmente tornar o debate intelectual em um mais tedioso e improdutivo dialogue des sourds)” (2012. p. 91, grifo do autor). Logo, criticar a obra de Ankersmit por não evidenciar o trabalho do historiador com as fontes, seria cobrar uma posição do autor sobre um tema que nunca foi foco direto de sua análise e, por isso, não foi discutido. A relação entre historiografia e fontes é apenas um dos enfoques que podem ser abordados dentro das discussões realizadas na teoria e filosofia da história. O objeto ao qual se dedica Ankersmit é a historiografia e seu caráter narrativo e representativo. Ambos, historiografia (escrita da história) e fontes (objeto do mundo que remete ao passado), podem ser cruzados em um trabalho analítico; todavia a abordagem de apenas um não reflete necessariamente a negação do outro.

2.2. Descrição e representação Todo o argumento do autor a respeito da verdade empírica e analítica na história foi exposto uma vez que, para ele, essa discussão pode ser simplificada através da distinção entre os conceitos de descrição e representação (ANKERSMIT, 2012, p. 76). Nessa distinção, a verdade empírica estaria próxima do que se compreende por descrição, enquanto a verdade analítica estaria mais perto da noção de representação. Entretanto, as noções de descrição e representação também enfrentam certa confusão e, em alguns casos, uma convergência conceitual que dificulta suas definições. Amparado nos termos do filósofo norte-americano, Willard van Orman Quine (1908-2000), Ankersmit propõe que se conceba descrição e representação como dois níveis distintos do discurso histórico: a descrição como o nível da fala e a representação como o nível da fala sobre a fala.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Por um lado, o texto histórico contém o nível da “fala” (isto é, o nível no qual o historiador descreve o passado em termos de declarações individuais sobre eventos históricos, assuntos estatais, ligações causais etc.). Por outro, é também composto pelo nível no qual a discussão que toma lugar é sobre que porção da linguagem (isto é, qual texto histórico) melhor representa ou corresponde a tal parte da realidade passada. Este é o nível da “fala sobre a fala”, em que podemos, por exemplo, indagar a nós mesmos qual melhor definição se tem dado ao conceito de “Renascença”, ou “Revolução”, a fim de chegar a um entendimento ótimo de certa parte do passado (ANKERSMIT, 2012, p. 79).

Ankersmit busca ilustrar a distinção entre descrição e representação através de uma comparação entre a escrita da história e a pintura: Pense na pintura de um retrato. Quando um artista pinta um retrato, tendemos a acreditar que a realidade retratada é objetivamente ou intersubjetivamente dada a nós (tal como quando um fotógrafo tira uma foto do gato preto). A pessoa que está sentada (modelo) oferece ao pintor uma presença física, e pode parecer que não pode haver desacordo sobre sua natureza exata. O modelo pode parecer o mesmo para qualquer pintor, ou para qualquer pessoa que lhe esteja olhando cuidadosamente. Mas observe, em seguida, que, se uma pessoa for pintada por diferentes pintores, ter-se-á como resultado tantas pinturas ou representações diferentes quantos pintores. Nossa reação inicial a este estado de coisas será a de que algumas pinturas são mais precisas e com uma abordagem mais minuciosa que outras. Uma intuição, aliás, que pode mais contraintuitivamente conferir à fotografia a honra de ser o último marco de excelência artística – que já serve como advertência acerca da conclusão a seguir. Sabemos bem que não julgamos retratos (exclusivamente) com base em sua precisão fotográfica. Um bom retrato deveria, antes de tudo, dar-nos a personalidade da pessoa representada (ANKERSMIT, 2012, p. 80-81).

Segundo o autor, é justamente esta busca pela “personalidade de um tempo” que caracteriza a representação histórica como uma tarefa com um caráter muito mais profundo que o da descrição. [...] Em ambos os casos, tanto no do retrato como no da escrita histórica, deparamo-nos com um movimento de uma superfície (intersubjetiva) para baixo, em camadas cada vez mais profundas da realidade. Nossa apreciação de um retrato pode muito bem iniciar com o critério da precisão fotográfica, mas dali partir-se-á para níveis cada vez mais profundos de avaliação, dando-nos acesso à personalidade do modelo. E quase a mesma coisa é verdadeira acerca da escrita histórica. Enquanto (a suma de) uma descrição, o texto histórico deve ser irrepreensível, esta é a “superfície”, por assim dizer. Mas um texto histórico dandonos descrições corretas do passado não é suficiente: o texto deve também nos dar a “personalidade” do período (ou um aspecto dela) com o qual lidamos [...] (ANKERSMIT, 2012, p. 81).

Se a descrição pode ser entendida como a camada mais superficial do texto histórico, enquanto a representação trata de explorar as camadas mais profundas deste, elevar as duas noções a um significado comum ou tratá-las praticamente como sinônimos, acarreta, consequentemente, outro equívoco: considerar aquilo que se representa (a coisa, assunto ou tema investigado pelo historiador) como um objeto estático que pode ser descrito da mesma maneira por todo e qualquer um, logo, que será sempre representado de um mesmo modo (ANKERSMIT, 2012, p. 82). Fato que colocaria por terra todo o raciocínio do autor, de que a historiografia se consolida enquanto um trabalho dinâmico, de constante reinterpretação e ressignificação.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Essa confusão entre descrição e representação para a qual Ankersmit alerta, é o que o autor nomeia como “ilusão referencial”: [...] isto é, a crença de que referências são feitas em relação à realidade quando a linguagem é utilizada representativamente. Lembre-se da distinção entre descrição e representação. Resulta que nenhuma referência a coisas individuais no mundo é feita no campo da representação, já que simplesmente não há sujeitos-termos na representação, a referência está fora do jogo. A ‘ilusão referencial’, ao convidar-nos a modelar a representação na descrição verdadeira, faz-nos acreditar no contrário (ANKERSMIT, 2012, p. 214).

Para o autor, o antídoto à ilusão referencial é compreender o papel da representação em um espectro mais amplo e complexo, e tal compreensão exige que se conceba a representação histórica como uma operação de três lugares.

2.3. Os três lugares na representação histórica De acordo com Ankersmit, a representação é uma operação de três lugares, sendo estes: aquilo que é representado, o mundo do qual o que é representado faz parte e a representação em si. Novamente usando uma metáfora para ilustrar suas ideias, Ankersmit propõe que se observe a representação artística. Pense novamente na pintura-retrato. Nossa inclinação natural seria a de equiparar o representado a um objeto identificável e único no mundo, e dizer que, neste caso, o representado é a pessoa que foi pintada pelo artista. Mas, a intuição prova-se equívoca se considerarmos a situação em que temos várias pinturas (representações) de uma mesma pessoa – por exemplo, Napoleão como descrito por David, Baron Gros, Girodet-Trioson, Gillray etc. Essas representações são todas diferentes, e às vezes até de forma drástica (compare o Napoleão de David ao de Gillray), e se as representações são representações de um representado, os representados devem diferir também, na medida em que um representado é aquilo que é representado por uma representação. Isto obriga-nos a abandonar a visão de que o representado deve ser identificado com o modelo que se senta em frente ao pintor. Devemos rejeitar a identidade dos representados com o objeto de referência – e reconhecer que a identidade é uma projeção ilegítima da estrutura do enunciado sobre a representação (ANKERSMIT, 2012, p. 189).

Trocando a terminologia para que a distância entre os três lugares da representação fique mais evidente, o autor sugere que se use o termo “aspecto” ou então, “apresentado”, no lugar de representado. Assim, então, cada representação arrasta consigo o seu próprio representado ou aspecto – da mesma forma que todos nós somos acompanhados por nossas sombras num dia de sol – e todos esses representados estão indissoluvelmente ligados a uma representação específica correspondente a eles – e só a essa. Assim, do ponto de vista lógico, a representação é uma operação de três lugares, e não de duas: uma representação (1) define um representado (2) em termos dos quais o mundo (3) é visto – e devemos evitar a confusão entre (2) e (3). [...] O termo “representado” é estranho e engana, já que se poderia dizer propriamente de ambos, 1) e 3), que são uma representação do representado, enquanto que todo o raciocínio do meu argumento foi justamente que não confundamos 1) e 3). Por conseguinte, vou trocar o termo “representado” por ‘apresentado’. Esta terminologia já

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 antecipa meu argumento posterior, de que a representação apresenta-nos a certos aspectos da realidade representada, de forma que você pode chamar a atenção de alguém para certas características de algo (ANKERSMIT, 2012, p. 194).

O que Ankersmit parece querer demonstrar é que o recorte, o qual os historiadores normalmente estão acostumados a fazer e estão cientes de sua necessidade, ocorre não só uma, mas duas vezes, quando se trata de representações históricas. O autor adiciona mais uma camada ao nosso entendimento a respeito da realidade e do conhecimento histórico. Não se trata de reconhecer apenas que a representação fala sobre uma contingência histórica ao invés de uma realidade ou passado “global”. Trata-se, na verdade, de admitir a existência de uma especificidade dentro da própria contingência. De um recorte dentro do próprio recorte. Sendo assim, a representação não fala simplesmente sobre um aspecto do mundo, ou, no caso da representação histórica, do passado. Ela é uma visão específica sobre determinado aspecto do mundo. É, de certa forma, como a manifestação de um dos aspectos de um objeto que, por sua vez, é a expressão de algum aspecto do mundo. A partir de uma abordagem parecida com a do autor e destrinchando suas próprias palavras presentes na última citação, sugiro o seguinte: quando o autor conclui, “[…] a representação apresenta-nos a certos aspectos da realidade representada [...]” (2012, p. 194), poder-se-ia ler: a representação apresenta-nos a certos aspectos (1 – os aspectos apresentados do objeto representado) da realidade (2 – o mundo ao qual o objeto representado pertence) representada (3 – a representação que, normalmente, se entende como diretamente de algo do mundo, mas, na verdade, é de um aspecto do objeto representado que faz parte desse mundo). Para dar outro exemplo que fuja de uma comparação artística ou de uma análise estritamente terminológica, pensemos a teoria da representação de Ankersmit de acordo com um exemplo histórico mais claro e direto: A Revolução Francesa. Nenhum historiador hesitaria em admitir que um trabalho historiográfico a respeito da Revolução Francesa fala sobre uma parte específica da história da França. O que Ankersmit tenta mostrar é que se forem considerados inúmeros trabalhos sobre a Revolução Francesa, se obterá, por sua vez, inúmeros aspectos distintos que se busca apresentar em cada uma dessas representações sobre a Revolução. É por isso que podem ser realizados trabalhos que abordam a Revolução Francesa sob a perspectiva dos intelectuais da época, de Luís XVI, da burguesia, dos camponeses ou através de inúmeras outras perspectivas.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Logo, se a Revolução Francesa é uma parte do passado, os aspectos apresentados em determinada representação sobre ela também são apenas uma parte do que foi a revolução. Isso não quer dizer que existiram várias Revoluções Francesas, mas que cada historiador opta por trabalhar com um determinado enfoque sobre um fenômeno histórico, que por sua vez é um fenômeno dentre outros do passado; assim se tem os três lugares da representação histórica: o passado, o aspecto da Revolução Francesa trabalhado pelo historiador e a representação que ele faz com base nesse aspecto. O argumento anterior evidencia também outros dois pontos mencionados anteriormente a respeito das teorias de Ankersmit. Em primeiro lugar, como comentado na primeira seção desse artigo, uma análise historiográfica significativa ocorre quando uma narrativa histórica propõe determinada visão de como um aspecto do passado poderia ser visto, e essa proposta, por sua vez, é analisada de acordo com outras propostas a respeito do fenômeno histórico em questão, podendo ser estas propostas baseadas no mesmo ou em outro aspecto desse fenômeno. Ou seja, uma representação histórica (que seria a função desempenhada pela narrativa do historiador no seu todo) sobre a Revolução Francesa é elaborada, num primeiro momento, com base em um aspecto específico da Revolução que se busca representar; todavia, a consolidação dessa representação no campo historiográfico depende de um trabalho analítico que possivelmente irá comparar essa representação da Revolução Francesa com outras e concluirá, por conseguinte, se esta representação pode ser útil ou não para o tipo de representação que se pretende. O segundo aspecto, mencionado no início desta seção, diz respeito a ineficácia do critério da verdade para os debates a respeito da representação, pois, como tentou-se expor, na maioria das vezes o debate gira em torno de qual representação apresenta aspectos mais significativos sobre o fenômeno histórico e o tipo de análise que se pretende realizar, e não de qual representação está mais próxima da verdade ou é mais verdadeira. O que não quer dizer que tal distinção não possa ser feita. Obviamente, uma pesquisa histórica pode se mostrar “enganosa” ou realizada com “má-fé” se comparada com outra que tenha assumido um compromisso com a verdade e seja fiel ao conteúdo das fontes. Contudo, quando se trata da obra de Ankersmit, pode-se dizer que autor toma esse problema como superado ou menos relevante e dirige-se ao historiador que, antes de qualquer coisa, já assumiu uma postura ética desde o início de sua pesquisa e no trabalho com as fontes.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 Como argumenta Ankersmit no trecho a seguir, a representação pode ser concebida como um ir além da verdade: A representação é um preparado mais forte que a verdade. A representação contém a verdade – pense nas afirmações contidas por uma representação histórica –, não está contra, mas além da verdade. A representação contém a verdade, mas também pode fazer algo com ela. Por exemplo, enquanto nunca podemos passar da verdade à ação, do é ao deve ser (Hume, Kant), a representação pode brindar-nos com uma perspectiva sobre o mundo convidandonos a certo tipo de ação. A representação é o ‘elo perdido’ entre o é e o que deveria ser, levanos à criatividade e ao uso retórico da linguagem, nos quais a linguagem pode comover-nos e ser uma fonte de alegria ou tristeza (ANKERSMIT, 2012. p. 223, grifos do autor).

À representação cabe, então, a função de assimilar as verdades empíricas, descritivas, do trabalho do historiador, junto a dimensão criativa da escrita da história que se manifesta na prática do trabalho historiográfico e no uso da linguagem, e resulta por último, na produção do conhecimento histórico.

3. Considerações finais A filosofia da história de Ankersmit busca distanciar-se de uma concepção científica da história, assim como da perspectiva exclusivamente literária, e propõe, no lugar destas, uma reaproximação entre história e filosofia. O interesse do autor é demonstrar como a epistemologia que se desenvolveu a partir da filosofia da linguagem, pode ser mais bem-sucedida ao lidar com o papel da narrativa na construção do conhecimento histórico. Preocupado igualmente com a contingência histórica, Ankersmit defende que não cabe à história produzir conhecimento, mas organizá-lo, uma vez que a narrativa se apresenta como a seleção de quais declarações singulares podem formular melhor uma proposta narrativa de como se conceber o passado. Com relação à análise destas propostas narrativas, diferentemente de abordagens exclusivamente linguísticas, que prezam por uma análise interna do texto, a teoria de Ankersmit considera necessário conceber o texto histórico como um todo, devendo ser analisado externamente em comparação com outras propostas narrativas. O raciocínio desenvolvido pelo autor sobre as propostas narrativas torna-se o ponto essencial para se entender a transição da narrativa apenas como texto para o entendimento da narrativa como um elemento da realidade. Lembra-se aqui do esquema utilizado pelo autor e apresentado na primeira seção do artigo: I. Propostas narrativas

II. Linguagem III. Realidade

(ANKERSMIT, 2012, p. 54)

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Esse esquema foi elaborado por Ankersmit, para realocar a narrativa num terceiro lugar, situando-a entre a realidade e a linguagem. Retoma-se também que antes de propor o esquema acima, apresentou-se o raciocínio do autor, no qual ele define a narrativa histórica como uma “coisa”. O termo coisa pode ser substituído por objeto, ente, ou ainda, por um sinônimo de um elemento que faça parte do inventário do real. Sendo assim, o esquema do autor também pode ser apresentado da seguinte forma:

Linguagem

Propostas narrativas

Realidade

Ao reproduzir o esquema dessa forma, duas coisas podem ser notadas. Em primeiro lugar, a tese defendida pelo autor de que as propostas narrativas funcionam como um ponto médio entre a linguagem e a realidade. Em seguida, que esse ponto convergente entre o que é linguagem e o que é realidade carrega elementos de ambos os lados, ou seja, a narrativa não deixa de usar a linguagem, assim como não deixa de participar do real. Contudo, poder-se-ia indagar: quem discordará de que a narrativa está mais próxima do domínio da linguagem do que do domínio do real? E para responder essa pergunta é necessário retomar outros argumentos do autor. Primeiramente, retoma-se o exemplo usado sobre o conceito de Guerra Fria. [...] a expressão guerra fria refere-se, assim, à certa interpretação da história política desde, digamos, 1944 a 1960 (cá estou eu ignorando as diferenças entre as interpretações individuais propostas por historiadores do período). Embora a referência seja feita ao passado, nas declarações contidas em tal interpretação narrativa, a expressão a guerra fria se remete a tal interpretação e não ao passado em si mesmo. Ademais, suponhamos que por um longo tempo todos os historiadores estiveram de acordo que esta proposta de como o passado deveria ser visto é razoável. Em tal situação, a questão de se realmente houve ou não uma Guerra Fria terá se tornado igualmente boba, tal como a questão de se realmente houve um indivíduo chamado Harry Truman que foi presidente dos Estados Unidos. Uma proposta universalmente acordada foi engessada em um fenômeno histórico o qual é parte do passado em si mesmo (ANKERSMIT, 2012, p. 54-55, grifos do autor).

Alguém duvidaria que a Guerra Fria de fato ocorreu, logo, que faz parte do inventário da realidade passada? Por outro lado, como não reconhecer a Guerra Fria enquanto uma proposta narrativa? Ou seja, como negar que os estudos e definições em torno do termo, Guerra Fria, não se tratam de um convite de como linguagem e realidade podem ser conectadas? Nesse ponto outro argumento que deve ser revisitado é a capacidade da narrativa histórica de produzir coisas especificamente narrativistas.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 A partir da análise dos trabalhos de Galen Strawson e Arthur Danto, Ankersmit concluiu que nosso inventário do real é muito mais complexo do que a separação tradicional entre mundo físico e mundo das ideias nos leva a crer. Dentro do que se entende por realidade, a realidade imaterial tem tanto valor quanto a material, pois se assim não fosse, restaria a categoria do real apenas os objetos e corpos físicos. Discussões e formulações como Guerra Fria, Idade Média, Revolução Francesa e Renascimento são a prova de que a narrativa histórica é a possibilidade de existência dessas “coisas”, e que ela é capaz de produzir um conhecimento que também se insere no real, e não se restringe apenas a discussões textuais. A exposição realizada na segunda seção, sobre a teoria da representação elaborada por Ankersmit, coaduna com a interpretação do autor a respeito da narrativa historiográfica. Ankersmit deixa claro que o trabalho historiográfico necessita de descrições; descrições essas que só podem ser feitas através do manuseio das fontes e dos documentos. Entretanto, segundo o autor, a atividade representacional vai muito além da descrição. A descrição funciona como uma garantia da verdade empírica do conhecimento histórico. Por outro lado, é a representação que possibilita a discussão analítica a respeito de como o passado pode ser visto. Considerar outros trabalhos que foram produzidos sobre um mesmo tema, apresenta-se ao historiador como uma tarefa analítica em torno do passado estudado, o que não deixa de ser uma busca pela verdade desse passado, ainda que se busque nisso uma verdade conceitual. Logo, embora a descrição seja parte fundamental do trabalho histórico, é a representação efetuada pela narrativa histórica que possibilitará uma análise comparativa entre esta representação e outras. A representação atua, então, a partir de uma proposta narrativa. É a confecção de uma narrativa histórica que possibilita e propõe como uma parte do passado pode ser vista, sendo assim, narrativa e representação caminham juntas. Cabe à narrativa histórica organizar o conhecimento e propor, dessa forma, uma visão de como o passado poderia ser representado; de como a linguagem poderia ser conectada à realidade nessa situação específica. Por fim, a hipótese de Ankersmit sobre a representação como uma operação de três lugares, reafirma sua preocupação em demonstrar a relação entre historiografia e passado, como uma relação mais complexa do que aparenta num primeiro olhar. Se, como foi visto, a narrativa não deve ser confundida simplesmente como um tipo de linguagem, mas compreendida enquanto um elemento do real que usa a linguagem, a

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 representação também não deve ser concebida como um reflexo do que se tenta representar, e sim como uma operação composta por três lugares. A divisão entre: representação, aspecto representado e mundo que se pretende representar demonstra, mais uma vez, que o entendimento acerca do real e do que é a realidade histórica deve evitar distinções binárias. As coisas narrativistas são a prova de que a narrativa se refere ao real, tanto quanto o aspecto representado é a garantia do passado que se busca representar. A narrativa, encarregada de seu papel representacional, assegura sua capacidade não somente de conectar a linguagem ao mundo, mas de elaborar um tipo de conhecimento que fala significativamente sobre aspectos do passado.

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Narrativa e representação na filosofia da história de Frank Ankersmit, pp. 183-209 ZAGORIN, Perez. Historiografia e pós-modernismo: reconsiderações. Topoi (Rio de Janeiro), v. 2, n. 2, p. 137-152, 2001.

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Problemas da filosofia prática kantiana sob a perspectiva da crítica ao valor e ao esclarecimento, segundo Robert Kurz, pp. 210-217

PROBLEMAS DA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA SOB A PERSPECTIVA DA CRÍTICA AO VALOR E AO ESCLARECIMENTO, SEGUNDO ROBERT KURZ Pedro Henrique Magalhães Queiroz*

RESUMO: O objetivo deste artigo é levantar alguns problemas acerca do postulado kantiano de um princípio formal que tem por fim a si mesmo, o dever moral, o imperativo categórico, enquanto fundamento da ação humana, e de seu conceito de liberdade (autonomia) vinculado a tal princípio. Tais problemas serão apresentados a partir das leituras da obra Fundamentação da metafísica dos costumes de Immanuel Kant. Diferir-se-á uma crítica da razão iluminista a partir do pensamento crítico de Karl Marx e Robert Kurz. PALAVRAS-CHAVE: Iluminismo; Crítica; Razão sangrenta. ABSTRACT: The aim of this paper is to raise some problems about the Kantian postulate of a formal principle that has for itself the moral duty, the categorical imperative, as the foundation of human action, and its concept of freedom (autonomy) linked to such a principle. Such problems will be presented from the readings of Immanuel Kant's Founding Metaphysics of Customs. A critique of Enlightenment reason will be elaborated from the thinking of Karl Marx and Robert Kurz. KEYWORDS: Enlightenment; Criticism; Bloody reason.

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Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: pedro.magalhaes-7@outlook.com

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Problemas da filosofia prática kantiana sob a perspectiva da crítica ao valor e ao esclarecimento, segundo Robert Kurz, pp. 210-217 Introdução À altura do século XXI se impõe uma exigência inescapável: “A assim chamada modernidade deve ser medida a partir de seus resultados desastrosos” 1. Para isso, faz-se necessário compreender o caráter próprio tanto da sociedade moderna quanto da ideologia do Esclarecimento, à qual o pensamento de Immanuel Kant está fortemente atrelado. Duas são as bases fundamentais da modernidade: por um lado, a forma social dinâmica da valorização do valor e do dinheiro (capital) e, por outro – e essencialmente ligada à forma social – a forma reflexiva do Esclarecimento. Quanto à primeira, foi Karl Marx quem lhe lançou uma crítica fundamental enquanto relação fetichista que promove realmente uma inversão entre sujeito e objeto, entre ser humano e mercadoria. Quanto à segunda, nas sendas abertas pela crítica do valor (Wertkritik) de Marx, destaca-se Robert Kurz, levando a cabo uma crítica radical do Esclarecimento. Há também dois pontos que justificam a exigência de avaliar a modernidade a partir de seus desastres: 1) a atual crise das relações sociais mediadas pelo dinheiro e da relação predatória da sociedade com a natureza; e 2) o esgotamento da lógica da valorização do valor e do dinheiro (capital) que vem se consolidando desde o outono de 2008 a partir da crise do capital especulativo imobiliário norte-americano, cujos efeitos desastrosos foram contidos pela emissão de dinheiro público (Estado); porém, esta emissão está demonstrando sua enorme incapacidade de resolver os fundamentos do problema desde 2011 com a crise das finanças públicas, sendo, à época, a Grécia o exemplo cabal desse impasse. Nesse sentido, há que se fazer uma pergunta fundamental nesta discussão: os ideais de liberdade e igualdade não foram realizados e devem ser redimensionados para o século XXI, ou, ao contrário, são eles mesmos a realidade efetiva da modernidade em crise e, portanto, devem ser criticados? A segunda formulação nos parece mais consequente, e Marx, nos Grundrisse, pode nos dar uma primeira contribuição ímpar quanto a tais ideais: Se... a forma econômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva, que impele à troca, põe a liberdade. Igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade.2

Portanto, se é o valor da mercadoria a forma social e a razão do Esclarecimento a forma reflexiva modernas, ambas devem ser postas em questão. E mais especificamente, se é o

1 KURZ, 2

2010, p. 38. MARX, 2011, p. 188.

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Problemas da filosofia prática kantiana sob a perspectiva da crítica ao valor e ao esclarecimento, segundo Robert Kurz, pp. 210-217 Esclarecimento “uma ‘ideologia de imposição’ do moderno sistema produtor de mercadorias”3, então as bases do pensamento de seus respectivos teóricos devem ser postas em questão. É nessa perspectiva que é preciso avaliar criticamente o pensamento kantiano.

1. Para uma crítica da filosofia prática ascética de Kant A filosofia kantiana se divide em dois eixos cindidos: um teórico e o outro prático. Quanto ao primeiro, é Kant o responsável por uma reviravolta – “revolução copernicana”, no seu próprio dizer – no debate sobre o entendimento humano. A questão do sujeito que conhece – diferentemente da problemática sobre o ser, da coisa conhecida, própria dos gregos e medievais – passa a ser o eixo axial, versando sobre as condições de possibilidades a priori do conhecimento. Sua formulação remete ao próprio sujeito (transcendental) que possui formas a priori (da sensibilidade, do entendimento e da imaginação) que lhe permitem o conhecimento dos fenômenos da experiência possível, solucionando, com isso, a oposição doutrinal entre racionalismo e empirismo a partir de uma filosofia transcendental. O desenrolar dessa formulação transcendental na Crítica da razão pura (1781A e 1787B) desemboca na tese de que ao entendimento humano não é dado conhecer a coisa em si (das Ding an sich), mas apenas o que se manifesta enquanto fenômeno. Quanto ao segundo eixo, Kant busca um fundamento a priori, independente das circunstâncias externas e inclinações sensíveis, para a ação moral do homem no mundo. Tal fundamento é o dever, cujo teor é um imperativo categórico. Essa formulação foi desenvolvida na Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e na Crítica da razão prática (1788). Apresentarse-á dois pontos problemáticos da teoria prática de Kant: 1) a relação intrínseca entre o fundamento a priori como fim em si e indiferente face ao conteúdo sensível e concreto da realidade e do homem e a forma social do valor; e 2) o “conceito repressivo de liberdade” como “moderna autodomesticação do ser humano”.4

1.1 Da relação intrínseca entre o fundamento a priori como fim em si e indiferente face ao conteúdo sensível e concreto da realidade e do homem e a relação social do valor A sociedade moderna se estrutura a partir de dois pilares, dois polos fundamentais que se entrelaçam, a saber, o da economia e o da política, o do Estado e o do mercado/Capital. De modo genérico, os modernos filósofos da política e os teóricos da economia formularam opiniões que 3 4

KURZ, 2010, p. 40. KURZ, 2010, p. 54.

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Problemas da filosofia prática kantiana sob a perspectiva da crítica ao valor e ao esclarecimento, segundo Robert Kurz, pp. 210-217 também se entrelaçam, ou seja, há um mesmo princípio que identifica tanto a “vontade geral” na esfera político-estatal quanto a “mão invisível” na “esfera” socioeconômica, a saber, o domínio do abstrato (universal e não-sensível) sobre o concreto (singular e sensível). Segundo esta estruturação conceitual, o determinante não são as múltiplas particularidades, mas um princípio geral, puro e único, isolado e superior a elas. A teoria moral de Kant se assenta essencialmente nesta intuição invertida, e pode ser definida como a internalização do que fundamenta a esfera político-estatal, a lei moral, o direito, que por sua vez é o outro polo do que fundamenta a “esfera” econômico-social, o valor. Para essa compreensão crítica, o 8° item do ensaio Não há Leviatã que vos salve de Robert Kurz é de fundamental importância: A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) de Kant inclui o célebre ‘imperativo categórico’ que deve representar o fundamento de todo o direito e de toda a estatalidade. Diz o imperativo categórico de Kant: ‘Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal’. Uma tal determinação é estritamente ‘sem conteúdo’, ou seja, o conteúdo é a forma abstracta de uma ‘lei em geral’ (...) A ‘máxima’ nesta ‘forma vazia’ universal naturalmente que não pode ser uma máxima subjectiva, sendo, pelo contrário (...) dada a priori como princípio da razão transcendental e, portanto, inegociável e objectivo, princípio que, segundo Kant, tem de ser válido não apenas para a humanidade, mas para todos os seres inteligíveis de todos os mundos imagináveis. O conteúdo verdadeiro só pode ser a abstracção social transcendental do valor do capitalismo em desenvolvimento, que exclui como critério qualquer conteúdo das necessidades e, pelo contrário, submete estas à produção de ‘riqueza abstracta’.5

Há, portanto, uma lógica abstrativa e ascética que preside tanto o pensamento moral de Kant quanto a realidade social moderna baseada no valor. Segundo Kant, o que caracteriza uma ação prático-moral como boa é ela se fundar em uma vontade pura determinada por dever incondicional, sem qualquer influência das inclinações sensíveis. Ora, visto que o homem é um ser dual, ao mesmo tempo sensível e suprassensível, ele tem então de agir moralmente derrogando a sua sujeição ao mecanismo natural do mundo dos sentidos (primeira natureza) e se elevando ao mundo inteligível regido por lei prática racional e universal. No entanto, a sujeição do homem a algo não é abolida, já que sua ação, embora tenha de ser determinada independentemente do mecanismo natural, torna-se dependente necessariamente da lei prático-moral (segunda natureza). Tal lei deve exercer uma coerção interna objetiva e incondicional na disposição de caráter moral do

5

KURZ, Robert. Não há Leviatã que vos salve: Teses para uma teoria crítica do Estado. Primeira Parte. Trad. Boaventura Antunes e Lumir Nahodil. In: <<http://obeco.planetaclix.pt/>>. Acesso em 02 de novembro de 2019.

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Problemas da filosofia prática kantiana sob a perspectiva da crítica ao valor e ao esclarecimento, segundo Robert Kurz, pp. 210-217 indivíduo sob a égide da obrigação imperiosa de agir conscientemente, não só de acordo com o dever (legalidade), mas por dever em si mesmo (moralidade). Em que é que reside pois este valor, se ele se não encontra na vontade considerada em relação com o efeito esperado dessas acções? Não pode residir em mais parte alguma senão no princípio da vontade, abstraindo dos fins que possam ser realizados por uma tal acção; pois que a vontade está colocada entre o seu princípio a priori, que é formal, e o seu móbil a posteriori, que é material, por assim dizer numa encruzilhada; e, uma vez que ela tem de ser determinada por qualquer coisa, terá de ser determinada pelo princípio formal do querer em geral quando a acção seja praticada por dever, pois lhe foi tirado todo o princípio material. 6

Todavia, o princípio canônico que deve conectar a vontade boa à lei moral em geral é o imperativo categórico, visto que existe uma tensão radical no ser humano entre uma vontade sensível, particular e empírica (subjetiva), e uma vontade pura, geral e a priori (objetiva). Esta última vontade tem de suprimir aquela primeira através do imperativo categórico, o qual prescreve apoditicamente que tal vontade aja tão somente submissa à lei geral da razão prática pura por dever.7 Portanto, o imperativo categórico ordena que a ação moral seja praticada sem qualquer relação como o conteúdo sensível e concreto da realidade, nem em vista a qualquer fim particular, mas somente em relação à pura forma da lei como um fim em si mesmo geral.8 Há, pois, duas condições determinadas por tal imperativo: a formalidade e a universalidade abstratas da lei. Este procedimento da ação prático-moral defendido por Kant não é algo condizente apenas com um dever-ser situado em um reino dos fins9 ideal. Mas constitui o modo de ser próprio à vida social moderna baseada no real reino da mercadoria. No interior da moderna sociedade produtora de mercadorias todos os indivíduos são obrigados a agir praticamente sem levar em consideração as suas determinações sensíveis e concretas, enquanto seres empíricos portadores de necessidades reais. Mas têm de se reduzir a sujeitos transcendentais cuja natureza é a pura forma social e abstrata do dispêndio de energia de seus músculos, nervos e cérebro (trabalho abstrato). Portanto, são coagidos a atuar socialmente tendo em vista somente a pura forma abstrata e universal do valor como um fim em si mesmo necessário e objetivo. Desta perspectiva, tais indivíduos não são mais detentores de vontades particulares, mas estão sujeitados a uma única 6 KANT,

2007, p. 30, Grifos do autor. “Ora, se uma acção realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objecto da vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei objectivamente, e, subjectivamente, o puro respeito por esta lei prática, e por conseguinte a máxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações.” (KANT, 2007, p. 31, Grifos do autor). 8 “A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo. Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (sollen), e mostram assim a relação de uma lei objectiva da razão para uma vontade que segundo a sua constituição subjectiva não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação).” (KANT, 2007, p. 48, Grifo do autor). 9 Quanto ao conceito de reino dos fins, cf. KANT, 2007, p. 75. 7

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Problemas da filosofia prática kantiana sob a perspectiva da crítica ao valor e ao esclarecimento, segundo Robert Kurz, pp. 210-217 vontade geral regida pela lei universal do valor. O imperativo categórico da valorização do valor os obriga apoditicamente a efetivar praticamente os ditames desta lei como sendo uma legislação universal da natureza (segunda natureza objetificada fetichisticamente), como se eles fossem objetos autômatos e fantasmagóricos, separados da sensualidade e materialidade. Este processo absurdo é elucidado por Kurz no seguinte texto: Por conseguinte, o livre sujeito do valor é, ele mesmo, um objeto, o qual se objetiva a si próprio como ser empírico e é conceitualizado na ética kantiana como uma autoviolação verdadeiramente monstruosa do indivíduo real, de acordo como a forma vazia de uma ‘lei em geral... [O] sujeito enquanto sujeito, conjuntamente com sua ‘liberdade’, não pertence a este mundo, achando-se, de acordo com sua essência, separado de toda sensualidade e materialidade prática e necessidade social; é um mero fantasma da forma vazia e fetichista do valor.10

1.2. Do “conceito repressivo de liberdade” como “moderna autodomesticação do ser humano” Em Espinosa as coisas do mundo são modalidades da substância-Deus, pensamento e extensão são modalidades suas. Com isso, não havendo contingência nem possibilidade, a liberdade é definida como consciência da necessidade. Essa relação contraditória entre liberdade e necessidade é um problema que perpassa toda a filosofia moderna. Kant, por sua vez, não está fora dessa compreensão, sua definição de autonomia consiste em o querer se identificar com o dever, e o dever se fundamenta a priori na autonomia da vontade pura, sendo deduzido da condição do ser humano como ser racional e se justificando em uma lei universal. Porém, diferentemente de Espinosa, Kant não funda uma autonomia religiosa, mas uma autonomia moral, cuja fonte é a própria razão prática pura do ser humano, e não Deus. Na terceira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant apresenta a existência de dois modos de liberdade: uma negativa e uma positiva. A liberdade negativa consiste na independência da vontade de ser determinada por causas eficientes estranhas à sua própria disposição, visto que não há uma necessidade natural em tal determinação. Porém, há um outro modo de ser da liberdade, mais condizente com a sua essência, sendo “mais rico e fecundo” 11. A liberdade positiva é aquela propriedade da vontade, não de se determinar por leis naturais alheias (heteronomia), mas de autodeterminação de si mesma enquanto lei moral para si mesma (autonomia). Portanto, para Kant a autonomia é princípio supremo da moralidade, cujo teor é metafísico e cuja validade é universal para todos os seres humanos dotados de razão e vontade própria.

10

KURZ, 2010, p. 50. 2007, p. 93.

11 KANT,

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Problemas da filosofia prática kantiana sob a perspectiva da crítica ao valor e ao esclarecimento, segundo Robert Kurz, pp. 210-217 “A vontade é, em todas as acções, uma lei para si mesma”, caracteriza apenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquela que possa ter-se a si mesma por objecto como lei universal. Isto, porém, é precisamente a fórmula do imperativo categórico e o princípio da moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa.12

Robert Kurz, na tese IX do ensaio Razão Sangrenta, capta criticamente o problema da aporia desse conceito de liberdade: “Hegel conceitualizou essa aporia com sua famigerada declaração: ‘A liberdade é a compreensão da necessidade’. No desenvolvimento capitalista, esse conceito repressivo de liberdade acha-se presente de fio a pavio como máxima norteadora da ação (...) Essencialmente, o Esclarecimento é uma ideologia da autoviolação e da autossubmissão dos indivíduos sobre a égide do imperativo objetivado da ‘segunda natureza’ e de acordo com critérios do automovimento da forma do valor (valorização do valor), que se tornou independente em relação a eles”. Quanto a Kant, a crítica se dá nos seguintes termos, no ensaio Não há Leviatã que vos salve: Kant (...) não visa de modo nenhum uma autonomia ‘anti-autoritária’ dos indivíduos e do seu pensamento social. Bem pelo contrário, só é ‘sujeito’ quem no seu auto-entendimento se torna objeto da razão da valorização e da sua forma jurídica universal. A questão, portanto, é que o fim exterior definido estatalmente é suprido por uma ‘internalização’ do princípio racional capitalista e desde logo tornado supérfluo num certo grau. ‘Emancipado’ neste sentido é quem já por si pensa e age nas categorias do fim em si a priori, sem para isso precisar sequer da ‘tutela’ de uma autoridade externa. Isto não é a abolição do princípio da autoridade, mas sim a sua objectivação transcendental.

Considerações finais A crítica do esclarecimento a partir de uma crítica do valor é algo que já há algum tempo vem sendo desenvolvida, e possui antecedentes, por exemplo, em Alfred Sohn-Rettel. Na atualidade é Robert Kurz e o grupo EXIT! quem tem dado contribuições nesse sentido. As questões aqui levantadas foram postas na perspectiva do que já foi escrito e formulado, mas tem a importância de pontuar algumas das críticas desenvolvidas relacionadas à filosofia prática kantiana. Tanto o a priori kantiano quanto o seu conceito de liberdade postos em Fundamentação da metafísica dos costumes precisam ser questionados a partir de sua relação intrínseca ao fundamento e à dinâmica social da modernidade produtora de mercadorias: o valor e seu processo de valorização. É nessa perspectiva que é preciso reavaliar a razão esclarecida da modernidade, sobretudo no contexto atual, em que sua crise está posta a olhos vistos.

12

KANT, 2007, p. 94.

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REFERÊNCIAS KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. KURZ, Robert. Razão sangrenta: Ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e de seus valores ocidentais. Trad. Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2010. KURZ, Robert. Não há Leviatã que vos salve: Teses para uma teoria crítica do Estado. Primeira Parte.

Trad.

Boaventura

Antunes

e

Lumir

Nahodil.

Disponível

em:

<<http://o-

beco.planetaclix.pt/rkurz390.htm>>. Acesso em 02 de novembro 2019. MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.

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O PENSAMENTO MEDITERRÂNEOLIBERTÁRIO DE ALBERT CAMUS. Leandson Vasconcelos Sampaio1

RESUMO: O presente trabalho busca apontar na obra do pensador franco-argelino Albert Camus (1913-1960) a relação entre o pensamento mediterrâneo e a dimensão ética da revolta à luz de uma filosofia política libertária no qual ele se refere, sobretudo, nos últimos capítulos de O Homem Revoltado (1951). Partindo das críticas ao Socialismo-cesariano do século XX, o trabalho visa mostrar uma filosofia prática de Camus com influências do pensamento Socialista do mediterrâneo, desvelando também a sua reflexão ética sobre a revolta; O trabalho mostra também a diferença entre o pensamento mediterrâneo sobre a Natureza em contraponto aos pensamentos historicistas, sobretudo, do século XIX e XX. Em outras palavras, o trabalho busca mostrar no pensamento mediterrâneo do escritor franco-argelino as contribuições de um pensamento que luta contra as tiranias a favor do pensamento Socialista e Libertário, tendo em vista os limites da Política e os limites da racionalidade e da Natureza, que remonta à memória das origens do pensamento grego. PALAVRAS-CHAVE: revolta, ética, política ABSTRACT: The present work seeks to point out in the work of the Franco-Algerian thinker Albert Camus (1913-1960) the relation between Mediterranean thought and the ethical dimension of the revolt in the light of a libertarian political philosophy in which he refers, especially, in the last chapters of The Rebel (1951). Starting from the criticism of 20th century Socialism-Caesarean, the work aims to show a practical philosophy of Camus with influences of the Socialist thought of the Mediterranean, also revealing his ethical reflection on the revolt; The work also shows the difference between the Mediterranean thought on the Nature in opposition to the historicist thoughts, mainly, of century XIX and XX. In other words, the work seeks to show in the Mediterranean thought of the Franco-Algerian writer the contributions of a thought that fights tyrannies in favor of Socialist and Libertarian thought, in view of the limits of Politics and the limits of rationality and Nature, which goes back to the memory of the origins of Greek thought. 1 (Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC)

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O pensamento mediterrâneo-libertário de Albert Camus, pp. 218-225

KEYWORDS: revolt, ethic, politics O filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960) em sua contribuição à Filosofia Política do século XX ficou conhecido como um dos grandes críticos aos regimes políticos totalitários. No diagnóstico de sua época, Camus identifica que regimes totalitários são também justificados por filosofias totalizantes em nome de ideologias Imperialistas, como o Socialismo cesarista da União Soviética e o Nazismo alemão. A crítica a estes regimes se dá a partir das críticas às filosofias que para atingir os seus fins utilizam-se do terrorismo de Estado como técnica de controle através da violência. O ensaio O Homem Revoltado (1951) demarca esta crítica de forma clara e contundente, o que levou inclusive ao seu rompimento com Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), dentre outros intelectuais que condenaram a obra, sobretudo, intelectuais de esquerda; Pela sua crítica aos rumos da Revolução russa de 1917 e às suas consequências, Camus muitas vezes é erroneamente apropriado pelo pensamento Liberal. Todavia, a nossa hipótese aqui se trata de compreender Camus não como um pensador Liberal, mas sim Libertário. Tendo em vista que Camus não se identificou enquanto Libertário e nem se definiu rotulado a nenhuma escola filosófica em específico (apesar de frequentemente o autor ser vinculado ao Existencialismo, por exemplo), a nossa hipótese é a de que Camus enquanto defensor da liberdade e crítico do Estado durante toda a sua trajetória de vida, se encaixa em características filosófico-políticas que se aproximam da tradição libertária, sobretudo, a tradição mediterrânea. Apesar de suas críticas ao Socialismo da União Soviética, Camus não se afastou do pensamento Socialista, mas sim se aproximou ao Socialismo por outra via diferente do marxismo. Fazendo um diagnóstico crítico do Socialismo de sua época, Camus busca um Socialismo diferente do praticado pelos Partidos Comunistas. No Editorial de Nem Vítimas Nem Carrascos (1944) do jornal Combat intitulado “Socialismo Mistificado”, Camus critica todo o marxismo que como uma espécie de religião secularizada tenta convencer a todos que “não se pode ser socialista se não for marxista” (CAMUS, s/dA: 185). Neste sentido, pretendemos mostrar na filosofia política de Camus uma via Socialista alternativa ao marxismo, não simplesmente abandonando todas as teorias marxistas, mas sim buscando aproximar o filósofo africano de outra tradição2. Em O Homem Revoltado Camus nos dá a dimensão do seu pensamento libertário no último Capítulo, intitulado O Pensamento Mediterrâneo. “A história da Primeira Internacional, em que o socialismo alemão luta sem trégua 2

Cf. ONFRAY, Michel. L'ordre libertaire: La vie philosophique d'Albert Camus. Paris: Flammarion, 2012.

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O pensamento mediterrâneo-libertário de Albert Camus, pp. 218-225 contra o pensamento libertário dos franceses, dos espanhóis e dos italianos, é a história das lutas entre a ideologia alemã e o espírito mediterrâneo.” (CAMUS, 1993: 342). Com efeito, o pensamento camusiano põe luz a um conflito entre os socialistas que está em suas origens, entre o pensamento alemão e o pensamento mediterrâneo. Continua Camus: “A Comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a sociedade absolutista, a liberdade refletida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas” (Ibidem). O conflito entre os teóricos do Socialismo em suas origens para Camus está entre uma Filosofia Prática Libertária e uma Filosofia Absoluta que desemboca em tiranias políticas: “são portanto antinomias que traduzem, de uma vez por todas, o longo confronto entre a medida e a desmedida que anima a história do Ocidente desde o mundo antigo.” (CAMUS, 1993: 342-343). Então, no diagnóstico camusiano, o conflito se dá entre as ideologias alemãs absolutistas e a tradição mediterrânea ou entre a desmedida alemã e a medida do pensamento mediterrâneo: “O profundo conflito deste século talvez não se estabeleça tanto entre as ideologias alemãs da história e a política cristã, que, de certa forma, são cumplices, quanto entre os sonhos alemães e a tradição mediterrânea [...]; enfim, entre a história e a natureza.” (CAMUS, 1993: 343). Neste horizonte, podemos dizer que Camus se refere ao pensamento que prioriza a história e o pensamento que prioriza a natureza. “Mas a ideologia alemã é neste sentido uma herdeira. Nela se encerram vinte séculos de luta vã contra a natureza, primeiro em nome de um deus histórico e, sem seguida, da história divinizada”. (Ibidem). Ou seja, o pensamento mediterrâneo é também uma crítica a toda tradição que visa transformar a natureza para conduzir a História. À luz do pensamento-mediterrâneo camusiano, notamos que existe um conflito que diagnostica um modo de filosofar que visa transformar a Natureza sem limites e um pensamento da medida da Natureza. “A natureza, que deixa de ser objeto de contemplação e de admiração, não pode mais ser em seguida senão a matéria de uma ação que visa transformá-la” (Ibidem). A crítica camusiana a esta relação com a Natureza está também no fato de que esta concepção de conquista da natureza e da história termina em tirania. “Expulso Deus desse universo histórico, nasce a ideologia alemã, na qual a ação não é mais aperfeiçoamento, mas pura conquista, isto é, tirania”. (Ibidem). A crítica camusiana aos regimes totalitários se dá a partir de um horizonte de pensamento da medida mediterrânea. E também sua crítica ao niilismo burguês e ao socialismo autoritário nos lembra da exigência feita pelo pensamento mediterrâneo como contraponto: “Os pensamentos revoltados, os da Comuna ou os do sindicalismo revolucionário, não deixaram de proclamar essa exigência tanto diante do niilismo burguês quanto ao socialismo cesariano”. (Ibidem). Este conflito Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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O pensamento mediterrâneo-libertário de Albert Camus, pp. 218-225 se dá entre um pensamento libertário e um pensamento autoritário: “O pensamento autoritário, por meio de três guerras e graças à destruição física de uma elite de revoltados, mas essa pobre vitória é provisória, o combate continua sempre”. (CAMUS, 1993: 343-344). O diagnóstico camusiano busca pensar um equilíbrio europeu entre luzes e sombras: “A Europa sempre existiu nessa luta entre luz e sombras. Ela só se degradou ao renunciar a essa luta, eclipsando o dia pela noite. A destruição desse equilíbrio dá belos frutos hoje em dia.” (CAMUS, 1993: 344). Este embate remonta ao embate entre a natureza e a história que se dá no pensamento europeu. Diz Camus: Na desgraça comum, renasce a eterna exigência; a natureza volta a insurgir-se contra a história. Na verdade, não se trata de desprezar nada, nem de exaltar uma civilização em detrimento da outra, mas sim de dizer simplesmente que há um pensamento do qual o mundo de hoje não pode se privar por mais tempo. (Ibidem).

Ou seja, não se trata de xenofobia ou uma crítica pela crítica ao pensamento alemão, mas sim de, a partir do diagnóstico de sua época, dar luz ao pensamento da medida contra a desmedida. “Em 1950, a desmedida é sempre um conforto e, às vezes, uma carreira. A medida, ao contrário, é pura tensão”. (CAMUS, 1993: 345). É interessante notar que esta questão da medida e desmedida já estava inserida em seu pensamento de juventude, como podemos observar em seus Cadernos em A Desmedida na Medida (1937-1939). Aqui entramos na questão da medida e da revolta, que busca o horizonte das origens e o equilíbrio da medida, como os mediterrâneos. A verdadeira loucura da desmedida morre ou cria a sua própria medida. Ela não faz os outros morrerem a fim de criar para si um álibi. No dilaceramento mais extremo, ela reencontra o seu limite, no qual, como Kalyayev, ela se sacrifica se for necessário. A medida não é o contrário da revolta. A revolta é a medida, é ela quem a exige, quem a defende e recria através da história e de seus distúrbios. A própria origem desse valor nos garante que ele só pode ser dilacerado. A medida, nascida da revolta, só pode ser vivida pela revolta. Ela é um conflito constante, perpetuamente despertado e dominado pela inteligência. Ela não vence nem a impossibilidade, nem o abismo. Ela se equilibra com eles. Não importa o que fizermos, a desmedida conservará o seu lugar no coração do homem, no lugar da solidão. Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combate-los em nós mesmos e nos outros. A revolta, a secular vontade de não ceder que falava Barrès, ainda hoje está na base desse combate. Mãe das formas, fonte de verdadeira vida, ela nos mantém sempre de pé, no movimento selvagem e disforme da história. (Ibidem).

A noção de medida para Camus à luz do pensamento grego Antigo não corresponde especialmente a um filósofo em específico ou uma escola filosófica, mas sim à vida e a Cultura helênica Clássica, que tinha a noção de medida, de certa maneira, como um paradigma de virtude3. 3

Neste horizonte, comenta Nilson Silva no Posfácio da edição brasileira de A desmedida na medida (1937-1939) dos Cadernos de Camus: “Para a filosofia ocidental, a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles é incontornável; mas, para Camus, mais do que os três pensadores gregos, o fundamental é a Grécia em seu sentido mais amplo, incluindo não só os filósofos canonizados pela História da Filosofia, mas igualmente seus mitos, seu povo, sua geografia, sua luminosidade.” (CAMUS, 2014b: 93-94).

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O pensamento mediterrâneo-libertário de Albert Camus, pp. 218-225 Esta questão vai em direção à reflexão camusiana sobre a deusa grega da medida, Nêmesis 4. Vale aqui ressaltar que Camus pretendia continuar a sua trilogia que começou com Sísifo e continuou com Prometeu. A reflexão sobre mediterrâneo com Camus também é um diálogo com a mitologia grega em seu método de filosofar também a partir dos mitos. Além da linguagem da Cultura mítica, o que interessa para Camus no pensamento grego-mediterrâneo é a questão da sua filosofia prática, que desvela um êthos5. Ou seja, trata-se de pensar a questão da medida e da desmedida do ponto de vista ético-político a partir do retorno às origens gregas. Comenta Nilson Silva no Posfácio de A desmedida na medida: O pensamento mediterrâneo é, para Camus, um pensamento do retorno às origens da sabedoria grega, em que ele busca não apenas o apego à concretude da vida e à linguagem dos mitos, mas também uma filosofia eminentemente ética, baseada na noção de “medida” ou “limite”. Camus aprendeu com os gregos que é na razão e na justiça que se fundamentam a moral e a política verdadeiramente humanas. (CAMUS, 2014b: 103-104).

O que está em jogo nesta ética da medida camusiana enquanto retorno à origem grega clássica é a questão da dignidade e do respeito à vida, como comenta Nilson Silva ainda no Posfácio de A desmedida na medida: “A ética, oposta à renúncia e ao conformismo, revela a paixão da existência e da consciência individual como fonte de valor, e se fundamenta no respeito à vida e à eminente dignidade dos seres humanos” (CAMUS, 2014b: 119). Destarte, a questão ética da filosofia prática camusiana está ligada ao retorno às origens gregas do diálogo sobre a questão da medida. O equilíbrio do horizonte mediterrâneo será então o seu horizonte ético-político de modo a aprofundar também os limites da racionalidade. Como comenta Nilson Silva: Na conclusão de O Homem revoltado, Camus opõe ao niilismo o pensamento mediterrâneo, libertário e ateniense, que traduz a alegria de viver sob o sol, uma referencia à Grécia clássica e a uma forma de pensamento que não cai na pura abstração, porque não perde de vista a concretude do mundo. O mundo moderno parece preso ao ideal do homem teórico, que superestima suas faculdades de conhecimento e trabalha a serviço da ciência. Entre os gregos antigos, o desejo do conhecimento está associado à constatação dos limites da razão. (CAMUS, 2014b: 103-104, grifo nosso).

4

Diz Camus no capítulo “Medida e Desmedida” de O Homem Revoltado: “A dialética histórica, por exemplo, não continua indefinidamente em busca de um valor desconhecido. Ela gira em torno do limite, seu valor primeiro. Heráclito, inventor do devir, fixava entretanto um marco para esse processo contínuo. Esse limite era simbolizado por Nêmesis, deusa da medida, fatal para os desmedidos. Uma reflexão que quisesse levar em conta as contradições contemporâneas da revolta deveria procurar a sua inspiração nesta deusa”. (CAMUS, 1993: 339). 5 Neste sentido é que falamos de ética em Camus, como afirma Amitrano em Albert Camus: um pensador em tempos sombrios (2014) em nota de rodapé: “Ao designar um êthos em Camus, pressuponho que ele possua em sua filosofia a inserção de um pensamento da práxis, isto é, a inserção de uma teoria cujo objeto seja a ação humana. Com a designação de êthos é possível visualizar, em seu pensamento, algo que se difere de uma posição teorética; isto é, de uma Metafísica ou Física. O que, de fato se vê é a inserção de um pensamento da práxis, uma teoria cujo objeto é a ação humana e pela qual se investiga aquilo que, de certo modo, constitui uma forma de política”. (AMITRANO, 2014: 26-27).

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O pensamento mediterrâneo-libertário de Albert Camus, pp. 218-225 O elo entre o pensamento mediterrâneo, libertário e ateniense se baseia em um mundo concreto e não em abstrações teóricas idealistas que terminaram em tirania e assassinatos. A ética da medida camusiana desenvolvida ao longo de sua obra é também uma ética da preservação da vida que também está nas origens da revolta libertária e mediterrânea. Camus critica o fato de que as revoltas que esquecem as suas origens terminam em tirania, servidão e terror de Estado. Diz ele em O Homem Revoltado: Com isso, a revolta prova que ela é o próprio movimento da vida e que não se pode negá-la sem renunciar à vida. Seu grito mais puro, a cada vez, faz com que um ser se revolte. Portanto, ela é amor e fecundidade ou então não é nada. A revolução sem honra, a revolução do cálculo, que, ao preferir o homem abstrato ao homem de carne e osso, nega a existência tantas vezes quanto necessário, coloca o ressentimento no lugar do amor. Tão logo a revolta, esquecida de suas origens generosas, deixa-se contaminar pelo ressentimento, ela nega a vida, correndo para a destruição, fazendo sublevar-se a turba zombeteira de pequenos rebeldes, embriões de escravos, que acabam se oferecendo hoje, em todos os mercados da Europa, a qualquer servidão. Ela não é mais revolta nem revolução, mas rancor e tirania. Então, quando a revolução, em nome do poder e da história, torna-se mecânica assassina e desmedida, uma nova revolta é consagrada, em nome da moderação e da vida. Estamos neste extremo. No fim destas trevas, é inevitável, no entanto, uma luz, que já se adivinha – basta lutar para que ela exista. (CAMUS, 1993: 349, grifo nosso).

A revolta, que reivindica a vida, não pode abdicar da liberdade política contra a tirania, pois o seu esquecimento formou uma mecânica assassina desmedida na história. Assim, a partir da crítica às tiranias de Estado, há um elo fundamental em Camus entre o retorno às origens do pensamento mediterrâneo e o retorno das origens libertárias da revolta e do pensamento político Socialista. A questão das origens do Socialismo em seu viés Libertário será o contraponto ao Socialismo cesariano instaurado em sua época. O retorno ao elo entre a justiça social e a liberdade política das origens do Socialismo se torna também um combate às tiranias dos Estados policialescos que esquecem as origens da revolta. Este retorno às origens do Socialismo a partir de um pensamento libertário do mediterrâneo com a crítica ao terror e à violência de Estado visa também contribuir para o debate político e filosófico contemporâneo. A ética da revolta camusiana está ligada ao retorno às origens da revolta levando em consideração que o retorno às origens mediterrâneas também é o retorno à questão dos limites da racionalidade em contraponto ao racionalismo desmedido europeu que troca “o presente pelo futuro, a humanidade pela ilusão do poder, a miséria dos subúrbios por uma cidade fulgurante, a justiça cotidiana por uma verdadeira terra prometida. Perdem a esperança na liberdade das pessoas e sonham com uma estranha liberdade da espécie.” (CAMUS, 1993: 349). O já mencionado embate entre o pensamento idealista alemão e o pensamento prático mediterrâneo está nas origens das discussões sobre o projeto Socialista

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O pensamento mediterrâneo-libertário de Albert Camus, pp. 218-225 libertário-mediterrâneo e o chamado Socialismo científico, que acabou por tornar-se sinônimo de autoritarismo. Ao tentar conduzir a História, o pensamento idealista alemão esqueceu os limites da Natureza. Na procura por um mundo ideal no futuro, a Filosofia Política Socialista acabou por aceitar em sua acepção alemã a injustiça no presente. “A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente”. (CAMUS, 1993: 348). Neste horizonte, comenta Weyembergh: O movimento por excelência que anima a obra camusiana é este do retorno: o presente recebe sua espessura da memória destes presentes passados; não se trata, portanto, de se perder no passado em si, que é muito longe, mas de compreender, aprofundar e justificar o presente atual e de preparar aos presentes futuros. (WEYEMBERGH, 1996: 11-12, tradução nossa). 6

Nesta perspectiva, a questão do retorno às origens em Camus não se dá de forma a aludir a certo anacronismo, mas, ao contrário, se dá com relação à medida do presente. O retorno às origens dá luz aos problemas contemporâneos, sobretudo, relacionados à ética e à Filosofia Política Socialista em um viés diferente do marxismo. Retornar às origens em um diagnóstico genealógico quer dizer aqui enfrentar os problemas contemporâneos tendo em vista também a história de como foram criados os conceitos que fomentam os problemas do presente. O engajamento camusiano dessa forma está ligado ao seu presente, mas crítico do marxismo e da Revolução Burguesa nas suas origens, aproximando-se também do viés mais libertário do Socialismo mediterrâneo, fomentando assim o que chamamos aqui de pensamento mediterrâneo-libertário de Camus, pensando também a partir da cultura grega Clássica e a sua influência da noção de medida que perpassa por toda a sua filosofia. Em suma, mostramos que, apesar de Camus não se filiar a uma escola filosófica específica, há em seu pensamento ético-político uma relação entre o pensamento mediterrâneo e as filosofias libertárias críticas dos Estados totalitários, fazendo uma relação com a ética da medida da revolta. Desse modo, há em sua filosofia prática uma crítica ao pensamento abstrato que em sua desmedida se desliga das situações concretas do presente, fomentando um engajamento que se utiliza da filosofia também como forma de denúncia das práticas políticas que colocam o terror de Estado encarnados no cotidiano. Como podemos pensar no contexto político atual a conciliação entre justiça social e liberdade que está nas raízes do Socialismo? Como pensar os “presentes futuros” no atual cenário do Capitalismo globalizado que continua produzindo tiranias e miséria, à luz do 6

“Le mouvement par excellence qui anime le travail camusien de ce retour: le présent, sa mémoire est l’épaisseur de ces présents passés; Je n’étais pas pris au piège, je ne me sentais pas perdu dans le passé, c’est très long, mais comprendre, approfondir et justifier le présent et préparer notre futur présent".

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O pensamento mediterrâneo-libertário de Albert Camus, pp. 218-225 pensamento mediterrâneo-libertário de Camus? Como combater os socialismos cesaristas contemporâneos? Trata-se então de pensarmos com Camus contribuições ao pensamento político libertário na filosofia contemporânea e as exigências éticas da revolta no presente.

REFERÊNCIAS AMITRANO, Georgia Cristina. Albert Camus: um pensador em tempos sombrios. Uberlândia, EDUFU, 2014. CAMUS, Albert. Cadernos (1937-1939). A Desmedida na Medida. São Paulo, Editora Hedra, 2014b. _______. O Homem Revoltado. São Paulo. Record, 1993. MARIN, Lou. Albert Camus et les libertaires. Paris: ÉGRÉGORES Ed., 2008. _______. Albert Camus et les libertaires, Anarchisme et Non-Violence 2, 27 de octubre de 2007, http://anarchismenonviolence2.org/spip. php?article108&var_recherche=Camus. Acesso em: Abr. 2019. ONFRAY, Michel. L'ordre libertaire: La vie philosophique d'Albert Camus. Paris: Flammarion, 2012. WEYNBERG, M. Albert Camus ou la mémoire des Origines. Le point philosophique. De Boeck Université, 1996.

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241

A DIMENSÃO INTELECTUAL E AFETIVA DA FELICIDADE NO EUDAIMONISMO ÉTICO DE ARISTÓTELES Elvis de Oliveira Mendes1 RESUMO: Em Ética a Nicômaco a natureza da investigação de Aristóteles não é meramente descritiva, de fato, o filósofo de Estagira não direciona seus esforços apenas a fim de conhecer ou responder o que é ou em que consiste a excelência moral. Na verdade, sua investigação consiste em dizer o que nos torna bons. Sendo assim, sua reflexão ética possui um caráter axiológico, prescritivo e deontológico par excellence, sua compreensão abarca não apenas a investigação do que é bom por natureza, mas o cultivo da vida boa e feliz. Deste modo, a ética em Aristóteles se configura como uma “teoria da conduta”. Por um lado, trata-se de teoria porque deve estar “de acordo com a reta razão”; por outro, trata-se de conduta porque está necessariamente ligada ao agir, nesse sentido, a excelência moral só é possível no ato, é na ação que a virtude se mostra, portanto, a vida feliz é a pedra angular entre o intelecto e o bem prático. Diante disso, a reflexão proposta no presente estudo é a de analisar de que maneira Aristóteles em sua investigação acerca da felicidade coloca os aspectos intelectual e afetivo (moral) dentro do mesmo plano, como elementos constitutivos da mesma esfera, a saber, a polis, lugar privilegiado da política, capaz de promover a vida do cidadão virtuoso e feliz. PALAVRAS-CHAVE: Eudaimonismo Aristotélico; Felicidade; Vida Feliz; Vida Contemplativa. THE INTELLECTUAL AND AFFECTIVE DIMENSION OF HAPPINESS IN ARISTOTLE’S ETHICAL EUDAIMONISM ABRSTRACT: In Nicomachean Ethics the nature of Aristotle's investigation is not merely descriptive, in fact, the philosopher of Estagira doesn’t direct his efforts solely in order to know or answer what moral excellence is or consists of. Actually, your investigation consists in saying what makes us good. Thus, his ethical reflection has an axiological, prescriptive and deontological character par excellence, his understanding encompasses not only the investigation of what is good by nature, but the cultivation of good and happy life. Thus, ethics in Aristotle is configured as a “theory of conduct”. 1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 On the one hand, it is a theory because it must be “according to right reason”; on the another hand, it is conduct because it is necessarily linked to action, in that sense moral excellence is only possible in the act, it is in the action that virtue shows itself, therefore, happy life is the cornerstone between the intellect and the practical good. Thus, the reflection proposed in this paper is to analyze how Aristotle in his research on happiness places the intellectual and affective (moral) aspects within the same plane, as constitutive elements of the same sphere, namely the polis, privileged place of politics, able to promote the life of the virtuous and happy citizen. KEYWORDS: Aristotelian Eudaimonism; Happiness; Happy life; Contemplative Life. Introdução Compreende-se o termo “éticas eudemônicas”, como um conjunto de teorias éticas antigas que possuem como objetivo precípuo a busca da felicidade ou dizer o que é a vida feliz. De fato, questões fundamentais como: “qual a melhor forma de viver?”, “o que devo fazer?”, “como ser feliz?”, entre outras, são questões que nortearam séculos de reflexão filosófica. No entanto, essas questões são colocadas por qualquer indivíduo comum em algum momento de sua vida, não é necessário ser filósofo ou desenvolver alguma reflexão sistemática para elaborar questões como estas2. Talvez seja esta uma das principais características das éticas antigas, o fato de elas terem sido pensadas para tentar de alguma maneira orientar a multidão em suas práticas. Dessa forma, as éticas antigas tentavam trazer respostas às questões e inquietudes do ser humano comum e ordinário, e por isso, possui em seu bojo um caráter intrinsecamente moral. As éticas eudemônicas são assim chamadas porque possuem como base de suas reflexões a busca pela eudaimonia (εὐδαιμονία), termo grego que pode ser compreendido de forma simplista como felicidade. De fato, vale dizer que “a característica comum das teorias éticas antigas (na medida em que há uma) é a sua suposição de que a felicidade é a nossa meta na vida e sua organização em torno da questão, o que é felicidade?”3 Deste modo, o eudemonismo julga ser boa toda conduta ou escolha que leva o indivíduo à felicidade, sendo então esse o fim último e natural da vida humana. Essa forma de pensar foi comum aos filósofos do mundo grego e romano, embora cada um tenha desenvolvido uma concepção diferente tanto no que se refere à ideia de bem como a ideia de felicidade4. Porém aqui daremos ênfase a um tipo específico de ética eudemônica, qual seja; o 2

ANNAS, J. The Morality of Happiness. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 27. MEYER, Susan. S. Ancient Ethics: a critical introduction, Routledge, New York, 2008, p. 4. 4 De fato, vale dizer que há uma retomada notória do interesse pelos estudos das “éticas da virtude” e das éticas eudemônicas, sobretudo se pensadas como filosofias práticas, em especial porque essas éticas são ego-centradas, isto é, coloca no próprio agente da ação os benefícios de um comportamento virtuoso. Parte-se de um pressuposto axiológico de que, “ao ser virtuoso posso ter 3

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 eudemonismo intelectualista de Aristóteles5, que vê a felicidade na contemplação da verdade, e na busca do bem supremo do homem seu telos, isto é, seu fim último, aquele em vista do qual se direciona e são investigados todos os outros fins. Vale dizer que não se trata só do bem de cada indivíduo, mas do bem de toda polis, pois o singular é parte dela, por isso a ciência que dele se ocupa é a ciência da cidade ou a ciência “política”6. Vale dizer que o presente estudo trata de uma exposição de alguns dos principais pontos da ética de Aristóteles, em especial em sua abordagem sobre a felicidade nos livros I, II e X da monumental obra Ética a Nicômaco. Portanto, o objetivo precípuo desse estudo será o de analisar de que maneira o ideal de uma vida contemplativa como felicidade suprema e, portanto, melhor forma de vida abarca de uma forma ampla os aspectos intelectual e afetivo da vida humana univocamente, sem abrir brecha para a duplicidade entre razão e emoção, já que para o filósofo de Estagira ambos são traços fundamentais da alma humana e fazem parte de sua natureza única.

A excelência moral e a mediania As éticas antigas se configuram sempre como a busca do sumo bem (uma boa vida ou uma vida que valha a pena ser vivida); não é à toa a afirmação categórica de Aristóteles bem no início do primeiro livro da Ética a Nicômaco de que: “toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito visam a algum bem; por isso foi dito acertadamente que o bem é aquilo que todas coisas visam”7. Assim, para Aristóteles é “bem definido desde o começo em termos de meta, o propósito ou o fim ao que se dirige uma pessoa ou coisa. Afirmar que algo é bom é dizer que certas condições é o objeto de uma aspiração ou de um esforço”8. Evidentemente que os bens podem ser muito uma vida boa”, portanto esse modelo ético é autorreferente. Ver sobre isso: NUSSBAUM, M. C. The Therapy of Desire, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1994, pp. 78-101. Ver também: ZINGANO, M. Eudaimonia e contemplação na ética Aristotélica, In. Estudos de ética antiga. 2º Ed. – São Paulo: Paulus, 2009, pp. 485-520. Ainda no tocante a essa retomada, no que tange à filosofia política Enrico Berti explica que: Durante os anos sessenta e setenta do século XX houve na Alemanha, como é bem conhecido, uma espécie de reavivamento, ou renovação, da antiga “filosofia prática” (uma expressão que remonta a Aristóteles, mas que até o final do século XVIII indicava todas as reflexões filosóficas sobre a práxis, isto é, ética, economia e política, bem como as respectivas disciplinas ensinadas em universidades europeias), polemizando contra a exaltação da “ciência política” moderna, inspirada por Max Weber e, especialmente, contra a impossibilidade de uma ética baseada no conhecimento, afirmada pela filosofia analítica anglo-saxã. A ideia da ciência de volta à Weber já tinha sido acusada durante os anos quarenta e cinquenta, por causa de sua “avaliabilidade” (Wertfreiheit), que a impedia de exercer uma função de orientação no que diz respeito às práticas comportamentais - e se opôs, especialmente a alguns filósofos alemães que emigraram para os Estados Unidos, a “filosofia política” de Platão e Aristóteles, como capaz de conseguir a unidade entre teoria e prática (ver especialmente as obras de Leo Strauss, Eric Voegelin e Hannah Arendt). BERTI, Enrico. La philosophie pratique d'Aristote et sa "réhabilitation" récente, Revue de Métaphysique et de Morale, 95e Année, No. 2, INTERPRÉTATIONS DE PHILOSOPHIE ANTIQUE 2013, p. 250. Ver também do mesmo autor: Aristóteles no século XX. Trad. Dion Davi Macedo, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1997, pp. 229-299. 5 Sobre isso ler: HOBBUS, João. Eudaimonia e Autossuficiência em Aristóteles. 2º Ed. rev. e aum. – Pelotas: da UFPEL, 2009. 6 BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles. Trad. Dion Davi Macedo, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1998, p. 118. 7 EN, livro I, 1094a1-3. Já no início da Política esse bem aparece como o objetivo não só de um indivíduo, mas de toda comunidade política que é a cidade, já que o bem da cidade é a soma das ações dos homens, Cf. Política, livro I, 1252a 1-7. 8 MACLNTYRE, A. Historia de la ética, 1991, p. 64-65.

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 diversos e as suas finalidades mais diversas ainda, no entanto, algumas finalidades são atividades, “outras são produtos distintos das atividades de que resultam; onde há finalidades distintas das ações os produtos são por natureza melhores que as atividades”9. Portanto, se isso é verdadeiro, a finalidade então é sempre a meta, o objetivo ou resultado desejado e não a atividade. Evidentemente que se toda ação tem uma finalidade que é desejada por si mesma, e não em virtude de outras, “essa finalidade é o bem ou o melhor dos bens”10. Sendo assim, o alvo de Aristóteles é justamente determinar o que é esse bem. Logo em um movimento inicial ele determinará qual a ciência é capaz de tal investigação, qual seja; a ciência política. Segundo o filósofo, esta é a ciência que possui o domínio sobre tudo, pois é a ciência política “que determina quais as demais ciências que devem ser estudadas em uma cidade, e quais são os cidadãos que devem aprendê-las, e até que ponto”11. Deste modo, a finalidade da ciência política está diretamente conectada com a finalidade de todas outras ciências, portanto, sua finalidade maior deve ser o bem do homem. Porém, esse bem do homem possui um caráter dialético intrínseco já que esse bem deve ser para o homem individual e também para o homem social, pois: Ainda que a finalidade seja a mesma para um homem isoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo algo maior e mais completo, seja para atingirmos, seja para perseguirmos; embora seja desejável atingir a finalidade apenas para um único homem, é mais nobilitante e mais divino atingi-la para uma nação ou para as cidades. Sendo este o objetivo de nossa investigação, tal investigação é de certo modo o estudo da ciência política12.

Dessa forma, existe uma relação direta entre a atividade virtuosa na polis e da vida feliz na polis e da consolidação da cidade igualmente virtuosa e feliz. Nesse sentido, a virtude para Aristóteles está ligada à moralidade civil, ou como a busca da ação certa, a vida e a busca da felicidade são vistas como uma atividade virtuosa. Assim, a eudaimonia pode ser compreendida de forma mais precisa como “atividade da alma conforme a excelência perfeita”13. A virtude aparece então como caminho para o bem ou para a felicidade14, portanto, para Aristóteles não há separação entre moralidade e felicidade, as virtudes são uma parte constitutiva da boa vida, não como mero instrumento, mas como elemento básico da vida feliz. Não obstante, a moralidade sempre tenha sido vista pelos indivíduos comuns como algo castrador, ou até aprisionador, por seu caráter

9 EN,

livro I, 1094 a 5-6. EN, livro I, 1094 a 22. 11 EN, livro I, 1094 a 29-30; 1094 b1. 12 EN, livro I, 1094 b 7-13. 13 EN, livro I, 1102 a 6. 14 ANNAS, J. The Morality of Happiness. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 29. 10

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 regulador e limitador das liberdades, o esforço dos filósofos antigos (cada um à sua maneira) era justamente o de mostrar que só seria possível obter uma vida boa e feliz, se antes de tudo, prioritariamente o indivíduo cultivasse bem suas virtudes por meio de uma vida moral. De fato, desde a Antiguidade a grande maioria dos homens não pensava de acordo com os sábios e não tinham a mesma concepção de bem e de felicidade que os filósofos o que leva Aristóteles a afirmar que “se formos julgar pela vida dos homens, estes em sua maioria e os mais vulgares entre eles, parecem (não sem algum fundamento) identificar o bem, ou a felicidade com o prazer”15. Diante da constatação de que maioria dos homens identificam o bem e a felicidade com a satisfação de seus desejos e vicissitudes, o filósofo elenca três tipos de vida, quais sejam: a vida dedicada aos prazeres, a vida dedicada à política e, por fim, a vida dedicada à contemplação. Diante dessa lógica, Aristóteles conclui que “a humanidade em massa se assemelha aos escravos, preferindo uma vida comparável a dos animais”16, que faz tudo pelo mero instinto seguindo seus impulsos de forma irracional. De outro modo, os que se dedicam à política e à vida pública a ocupar cargos importantes e exercem poder identificam a felicidade com as honrarias e com o reconhecimento de seus méritos, fazendo disso o objetivo maior de suas vidas. Vivem semelhantes aos primeiros, ambos tem o bem e a felicidade em coisas externas e passageiras, dependentes dos outros, tanto os prazeres animalescos e compulsivos quanto as honrarias e os títulos são facilmente retiráveis, sendo então esses tipos de felicidades inconsistentes e pueris17. Diante do exposto, a compreensão desses tipos e a ilustração do que é a felicidade da multidão nos leva a captar a oposição radical entre o vulgo e o sábio no mundo antigo. De fato, a razão para os antigos é algo único e indivisível, por isso é necessário o encaixe da moralidade na felicidade. Para Aristóteles a virtude deve ser uma disposição, qual seja: a disposição virtuosa relativa à escolha. Sendo assim, as éticas antigas analisam a vida como um todo, deste modo, as emoções seriam crenças falsas que podem ser harmonizadas (a harmonia perfeita entre emoção e razão). Dessa maneira, agir moralmente ou agir com base na virtude é encontrar seu lugar na natureza, em outras palavras, agir racionalmente é viver de acordo com a natureza, pois para Aristóteles, “tudo que ocorre segundo a natureza é naturalmente tão bom quanto pode ser; o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialmente se depende da melhor de todas as causas”18. Assim, o desenvolvimento das emoções afeta a apreensão 15 EN,

livro I, 1095 b 17-19. livro I, 1095 b 21-22. 17 Cf. EN, livro I, 1096 a. 18 EN, livro I, 1099 b 25-28. 16 EN,

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 da coisa certa a fazer, o que compromete a ação. É necessário então que a virtude seja uma disposição da alma, a ação virtuosa é boa por si mesma, independentemente de seu resultado 19, portanto a ação virtuosa não é consequencialista, como explica o próprio Aristóteles: Digamos primeiro que a sabedoria filosófica e o discernimento devem ser dignos de escolha porque são a excelência das duas partes respectivas da alma, ainda que nenhuma delas produza qualquer efeito. Ademais, elas produzem algum efeito, não como a arte da medicina produz a saúde, mas como as condições saudáveis são a causa da saúde; é assim que a sabedoria filosófica produz a felicidade, pois, sendo uma parte da excelência como um todo, por ser possuída, ou melhor, por ser usada a sabedoria filosófica faz o homem feliz20.

Nesse sentido, o papel da reflexão é o de analisar seus juízos morais, mas não só apenas a reflexão, ele deve ser testado na prática e gerar a coerência entre discurso e prática. Portanto a garantia de determinados resultados não é o objetivo precípuo e fundamental das éticas antigas, diferentemente das éticas modernas, essas por sua vez, funcionam quase sempre como uma espécie de procedimento que só terá sucesso se gerar as consequências esperadas. A ética de Aristóteles, por outro lado, está baseada na phronesis, termo grego que normalmente é traduzido de forma simples como prudência ou discernimento, mas phronesis deve ser compreendida como uma unidade de virtudes (a virtude intelectual somada a virtude de caráter ou razão mais intuição). Essa fusão torna o indivíduo inclinado à prudência, porque “o homem feliz vive bem e se conduz bem, pois praticamente definimos a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem”21. Há então, para Aristóteles, dois tipos de excelência, como podemos perceber, quais sejam: a intelectual e a moral22. No entanto, embora elas sejam inseparáveis, elas possuem origem e lugar diferente na vida, pois enquanto a primeira, a saber, a excelência intelectual, depende do nascimento e da instrução23, a segunda, portanto a excelência moral, é produto do hábito. De fato, Aristóteles não é um inatista, e parte da premissa de que os hábitos ou a excelência moral não são dados por natureza, porque se o fosse, não poderiam ser mudados, porque nada que é por natureza pode ser mudado24. Nesse sentido, o filósofo enfatiza diretamente a relevância da educação25 na formação dos hábitos como percebemos claramente na seguinte passagem: 19 Não

há assim nenhum paradigma privilegiado de raciocínio moral, o foco está na distinção entre o iniciante e o iniciado ou entre o vulgo e o sábio. 20 EN, livro VI. 1144 b. 21 EN, livro I, 1098 b 22-24. 22 Cf. EN, livro I, 1103 a 4-5. 23 Cf. EN, Livro I, 1095 b 7. 24 Cf. EN, livro II, 1103 b. 25 “Perguntaram-lhe (a Aristóteles) se havia muita diferença entre uma pessoa educada e outra sem educação; a resposta foi: ‘tanto quanto os vivos se diferem dos mortos’. Ele costumava afirmar que a educação é um ornamento na prosperidade e um refúgio na adversidade”. DIÔGENES, Laêrtios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 133.

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 Ademais toda excelência moral é produzida e destruída pelas mesmas causas e pelos mesmos meios, tal como acontece com todas artes, pois é tocando cítara que se formam tanto os bons quanto os maus citaristas, e uma afirmação análoga se aplica aos construtores e a todos os profissionais; os homens são bons ou maus construtores por construírem bem ou mal. Com efeito, se não fosse assim não haveria necessidade de professores, pois todos os homens teriam nascido bem ou mal dotados para as profissões. Logo, acontece o mesmo com as várias formas de excelência moral; na prática de atos em que temos que engajar-nos, dentro de nossas relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos; na prática de atos em situações perigosas, e adquirindo o hábito de sentir receio ou confiança, tornamo-nos corajosos ou covardes. O mesmo se aplica aos desejos e à ira; algumas pessoas se tornam moderadas e amáveis enquanto outras se tornam concupiscentes ou irascíveis, por se comportarem de maneiras diferentes nas mesmas circunstâncias. Em uma palavra, nossas disposições morais resultam das correspondentes às mesmas. É por isto que devemos desenvolver nossas atividades de uma maneira pré-determinada, pois nossas disposições morais correspondem às diferenças entre nossas atividades. Não será pequena a diferença, então, se formarmos os hábitos de uma maneira ou de outra desde nossa infância; ao contrário, ela será muito grande, ou melhor, ela será decisiva 26.

Sendo assim, os argumentos filosóficos só afetam positivamente os indivíduos que foram educados e treinados para amar o que é nobre e belo, e por isso se tornam compelidos a agir bem. Nesse sentido, a filosofia nesses indivíduos bem educados os elevará como pessoas e os alegrará por viver virtuosamente. Por outro lado, em indivíduos que não foram educados e treinados a amar o que é nobre e belo, isto é, não tiveram uma educação voltada para as virtudes, a racionalidade filosófica não fará nenhum efeito, pelo contrário, soará aos seus ouvidos como algo castrador, terrível e indesejável, diante de sua falta de discernimento. Em outras palavras, a educação filosófica é um treinamento para o reconhecimento da beleza em detrimento do que é vil. Ademais, para Aristóteles não se trata aqui de investigar ou responder acerca do que é a excelência moral ou criar um conhecimento teórico acerca disso como uma espécie de manual a ser seguido. De fato, é bem verdade que os escritos de Aristóteles tendem a serem abordados geralmente como tentativas diretas de apresentar um relato puramente científico ou teórico de seu assunto. No entanto, os tratados éticos e políticos não podem ser vistos sob esta luz27. Sendo assim, no tocante à ética percebe-se que ele parece buscar uma compreensão mais profunda do que pode nos tornar bons, dessa forma, se trata então de “examinar a natureza das ações”28, e assim, estabelecer uma relação entre razão e excelência. Porém, sabe-se que as ações humanas possuem um caráter totalmente impreciso, e por ser assim, a excelência depende da escolha prudente no que diz respeito à capacidade humana de deliberar. Deve-se então, compreender com a devida atenção 26 EN,

livro II, 1103 b, 11-31. Carnes. Aristotle, In. STRAUSS, L. CROPSEY, J. The History of Political Philosophy, p. 119. Como se sabe, Aristóteles indica que existe uma diferença fundamental entre as ciências “teóricas”, que são buscadas para o conhecimento, e as ciências “práticas”, que são perseguidas principalmente em busca dos benefícios delas decorrentes, deste modo, a política é para Aristóteles uma ciência “prática” por excelência. 28 Cf. EN, livro II, 1104 a. 27 LORD,

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 de que maneira Aristóteles entende a virtude da prudência, para tal tarefa é necessário que sejam feitas algumas distinções dessa virtude em relação às todas as outras. Vale dizer que, a prudência não é uma ciência, pois só se é prudente frente ao contingente ou circunstancial, enquanto a ciência toca diretamente ao necessário. A prudência também não é uma arte, pois visa à ação, enquanto a arte visa à produção. Isso intuitivamente nos leva à compreensão de que a prudência é uma virtude, porém, não qualquer tipo de virtude, já que as virtudes morais nos direcionam à escolha, enquanto a prudência é uma disposição prática que concerne à regra da escolha29. Diante disso, Aristóteles em sua análise das ações argumenta: Consideremos primeiro, então que a excelência moral é constituída, por natureza, de modo a ser destruída pela deficiência e pelo excesso, tal como vemos acontecer com o vigor e a saúde (temos que explicar o invisível recorrendo a evidência do visível); os exercícios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor, e de maneira idêntica as bebidas e os alimentos de mais ou de menos destroem a saúde, ao passo que seu uso em proporções adequadas produz, aumenta e conserva aquele e esta. Acontece com a moderação, a coragem e as outras formas de excelência moral. O homem que evita e teme tudo e não enfrenta coisa alguma torna-se covarde; em contraste o homem que nada teme e enfrenta torna-se temerário; da mesma forma, o homem que se entrega a todos os prazeres, como acontece com os rústicos, torna-se de certo modo insensível; a moderação e a coragem, portanto, são destruídas pela deficiência e pelo excesso, e preservadas pelo meio termo 30.

Posto isto, como se percebe, Aristóteles reivindica o ato da mediania, do meio termo como princípio basilar da excelência moral, porque todas nossas ações estão mergulhadas nos afetos, que nos levam ao prazer ou ao sofrimento, e é justamente com qual disposição moral lidamos com esses afetos que vem a tornar nossas ações virtuosas ou não. “efetivamente, as pessoas que se abstêm dos prazeres do corpo e se alegram com a abstenção, são moderadas exatamente por procederem assim, enquanto as pessoas que se irritam com isto são concupiscentes”31. Ora, a prudência pode ser definida justamente como o cálculo entre a razão e as paixões onde seu resultado deve ser o meio-termo. Sendo assim, agir de acordo com a reta razão, isto é, de forma virtuosa, está diretamente ligado ao caráter afetivo da ação, pois toda ação gera prazer ou sofrimento. Inevitavelmente as atitudes humanas tem a inclinação de serem influenciadas pelos sentimentos, então o que fará com que a ação virtuosa (racional) gere prazer é a disposição da alma para melhorar a própria alma do agente, só assim a virtude passa a constituir os hábitos. O que parece estar em jogo para Aristóteles é a profunda relação entre razão e emoção na construção dos hábitos e da excelência moral. Para o

29 AUBENQUE,

Pierre. A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes. 2º Ed. - São Paulo: Paulus, 2008, p. 61. EN, livro II, 1104 a, 22 - 1104 b, 5. 31 EN, livro II, 1104 b, 17-20. 30

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 Estagirita, não basta só o bom uso intelectivo para que o indivíduo seja bom e justo, o caráter intelectual da excelência moral não preenche sua totalidade, mas apenas parte importante do todo. Como o próprio Aristóteles explica na seguinte passagem: É correto, então dizer que é mediante a prática de atos justos que o homem se torna justo, e mediante a prática de atos moderados que o homem se torna moderado; sem os praticar ninguém teria se quer remotamente a possibilidade de tornar-se bom. Muitos homens não os praticam, mas se refugiam em teorias e pensam que estão sendo filósofos e assim se tornarão bons, procedendo de certo modo como pacientes que ouvem atentamente seus médicos, mas nada fazem do que lhes é prescrito. Da mesma forma, que a saúde do corpo destes últimos não melhorará com este modo de tratamento, a saúde da alma dos primeiros não melhorará com a prática da filosofia32.

Ora, a excelência moral para Aristóteles deve ser então compreendida como uma disposição arraigada ao hábito que levará o indivíduo que busca ininterruptamente a excelência a fazer bem o que faz, e isso tem a ver inequivocamente com o uso da moderação33 ou do meio termo, já que A excelência moral, então é uma disposição da alma relacionada com escolha de ações e emoções, disposição consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças a qual um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado intermediário, porque na várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto na excelência moral encontra e prefere o meio termo. Logo a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um meio termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo 34.

Portanto, a excelência moral, além de uma disposição da alma como já foi apresentado aqui mais de uma vez, deve ser também estabelecida em um meio termo entre duas formas de deficiência moral, a saber, a falta e o excesso. O meio termo não é afastar-se completamente do prazer e nem do sofrimento, mas a precaução diante do que é demasiado confortável. De fato, Aristóteles nos alerta que não devemos ser imparciais diante de nossos afetos, porque, se o fôssemos, geraria igualmente o erro, por isso a necessidade da mediania. Embora o meio termo seja algo de difícil alcance, mas ainda é preferível a tentativa insistente de busca-lo do que a entrega total às contingencias do mero acaso de nossos vícios e sentimentos vis.

A Felicidade na Vida Contemplativa No Livro X da Ética a Nicômaco Aristóteles identifica a vida contemplativa como a melhor e a única forma de vida realmente feliz em detrimento dos outros tipos de vida, o que parece gerar 32

EN, livro II, 1105 b 15-25. Vale dizer que, a moderação não é para Aristóteles equivalente à mediania tout court, i. e., a mediania em sentido absoluto, mas, antes, uma forma de mediania, a saber, aquela que se aplica aos prazeres. 34 EN, livro, II, 1106 b 38-47. 33

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 algumas incongruências, quais sejam: primeiro com a afirmação do primeiro livro da Ética de que a felicidade da polis é mais importante e mais nobilitante do que a felicidade do indivíduo35. Segundo, contrasta com a mesma força com a clássica afirmação de que a felicidade emana também daqueles que estão próximos, nossos concidadãos e aqueles que amamos, “pois o homem é por natureza um animal social”36. Afirmação também reiterada na Política a fim de mostrar a dependência do homem em relação à polis e formação da família37. Da mesma forma, também no livro X da Ética, Aristóteles estabelece uma contraposição entre prazer e sofrimento38, já que todos buscam o prazer e tentam a todo custo se afastar do sofrimento, assim o prazer está logo colocado como um bem e o sofrimento como um mal. Porém, para o filósofo nem todos os prazeres são bons, pois há dois tipos de prazeres, quais sejam: os degradantes, que não são agradáveis, e se são agradáveis para algumas pessoas, é porque essas pessoas não se alegram com a excelência moral, portanto são mal constituídas moralmente, e por isso preferem os prazeres aviltantes39. Por outro lado, há os prazeres nobilitantes, esses são desejáveis por si mesmos, e não em prol de outra coisa, assim, se torna claro que nem todos os prazeres são desejáveis40. Dessa maneira, o prazer só é considerado bom quando acompanha as atividades boas. Assim, “pode-se dizer em sentido lato que os prazeres que tornam perfeitas as atividades são os prazeres adequados às criaturas humanas”41. Nesse sentido, reitera Aristóteles que de fato, “se a felicidade consiste na atividade conforme a excelência, é razoável que ela seja uma atividade conforme à mais alta excelência da melhor parte de cada um de nós” 42. Evidentemente que cada indivíduo desenvolve aptidões e habilidades diferentes, mas só será uma atividade virtuosa se o indivíduo que a realiza se alegra ao fazê-la e nisso consiste a felicidade, em buscar a excelência em tudo que faz. Deste modo, se o que há de melhor em nós é a razão, a atividade do intelecto então será naturalmente onde buscaremos a excelência, e buscar a excelência do intelecto é buscar o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas. Sendo assim, a atividade mais feliz e perfeita é a atividade contemplativa como Aristóteles explica a seguir: 35

Cf. EN, livro I, 1094 b. livro II, 1097 b 8-9. 37 Cf. Política, I, 1253 a 13-30. 38 Cf. EN, livro X, 1172 b. 39 Cf. EN, livro X, 1173 b. 40 Cf. EN, livro X, 1174 a. 41 EN, livro X, 1176 b, 37-39. 42 EN, livro X, 1177 b, 21-24. 36 EN,

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 Com efeito, em primeiro lugar esta atividade é a melhor, já que não somente o intelecto é nossa melhor parte, mas também os objetos com os quais o intelecto se relaciona são os melhores entre os objetos passíveis de ser conhecidos; em segundo lugar, esta é a atividade mais contínua, já que a contemplação pode ter uma continuidade maior que a de qualquer outra atividade que possamos exercer. Ademais, supomos que a felicidade deve conter um elemento de prazer, e que a atividade conforme a sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais agradável das atividades conformes à excelência; seja como for, considera-se que a busca da sabedoria filosófica oferece prazeres de maravilhosa pureza e serenidade, e é de esperar que as pessoas que já conhecem a sabedoria filosófica passem o seu tempo mais agradavelmente que aquelas que ainda se esforçam por alcançá-la43.

Entre outras coisas, embora a atividade contemplativa possa ser uma atividade praticada entre amigos, ela não depende necessariamente disso para se efetivar. Sendo assim, enquanto o justo precisa de alguém para efetuar seus atos de justiça, o bondoso precisa de outrem para fazer o bem e legitimar sua bondade, o corajoso igualmente precisa de outras pessoas que vejam e reconheçam seus atos de coragem, diferentemente desses exemplos apresentados, a atividade contemplativa é autorreferente e autossuficiente, portanto: o filósofo, todavia, mesmo quando está só, pode exercer a atividade da contemplação, e tanto melhor quanto mais sábio ele for; ele talvez possa fazê-lo melhor se tiver companheiros de atividade, mas ainda assim ele é o mais auto suficiente dos homens. E somente esta atividade de contemplar parece ser estimada por sua própria causa pois nada decorre dela além da própria atividade de contemplar, enquanto com as atividades de ordem práticas obtemos algumas vantagens maiores ou menores, além da própria ação44.

Diante disso, há algo de divino no filósofo, porque uma vida de contemplação é digna dos deuses, e é justamente por possuir algo de divino em si que o filósofo é capaz de viver uma felicidade superior porque sua atividade é superior em relação à todas as outras. Para Aristóteles, o intelecto é divino, sendo assim, uma vida de acordo com o intelecto é divina em comparação aos outros estilos de vida ocupada com as coisas do mundo. Deste modo, o filósofo mesmo sendo mortal deve, quando possível, agir como se fosse imortal e assim elevar tudo que tem de melhor em si mesmo. Não obstante o intelecto seja uma ínfima parte presente nos seres humanos, ele tem mais importância e poder que todo resto45. Sendo então a atividade contemplativa uma atividade que transcende a mera existência mundana, o filósofo como indivíduo que se alegra por contemplar, e ininterruptamente busca a excelência nessa atividade, é capaz da autossuficiência e de exercer essa excelência solitariamente, sua existência por assim dizer, extrapola os limites da vida social, acontecimento que ultrapassa os muros da polis, e por ser assim o filósofo é o mais livre de todos os indivíduos por superar o caráter 43

EN, livro X, 1177 a, 31-43. EN, livro X, 1177 a, 50-51; 1177 b, 1-6. 45 Cf. EN, livro X, 1177 b; 1178 a. 44

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 meramente mundano e convencional do “animal social” que é o ser humano46. Portanto, se se diz que a felicidade da polis é mais importante que a felicidade individual, é porque todas as atividades virtuosas só são possíveis se forem exercidas coletivamente na relação entre os sujeitos, isto é, de um com os outros, enquanto na contemplação a virtude se realiza em si mesma na própria atitude de contemplar, já que esta ocorre sem a carência de nenhum bem externo47 e finalidade. De fato, existem várias formas de excelência moral, e essas formas estão ligadas às variadas formas de emoções, dada a nossa natureza heterogênea que caracteriza a pluralidade dos indivíduos. Diante disso, Aristóteles afirma que “a felicidade compatível com o intelecto é uma coisa à parte”48, pois esse tipo de felicidade necessita de pouquíssimos recursos externos, enquanto todos outros modos de felicidade necessitam de vários atributos exteriores ao indivíduo. Portanto, Aristóteles parece assumir que a felicidade do filósofo é a mais perfeita de todas, porque é a mais livre e independente em relação às coisas do mundo. Tendo em vista que até os homens mais poderosos e ricos dependem da boa administração de seu poder e bens materiais para continuar a serem felizes, sendo assim, se comportam igualmente aos escravos, sempre presos às atividades fundamentais à manutenção de seu poder e riquezas. Com efeito, a defesa feita por Aristóteles da supremacia da vida contemplativa sobre a vida política e moral, se sustenta no argumento que preconiza que, na medida em que a dimensão intelectiva do homem possui duas virtudes distintas, quais sejam; a phrónesis e a sophía, a felicidade mais perfeita para o homem se dá justamente mediante a atualização da virtude que se determina como a mais elevada ou superior. Da qual, segundo Estagirita, é a sophía, excelência dianoética que, tendo por finalidade a contemplação daquilo é eterno, necessário e divino, estabelece-se hierarquicamente acima da phrónesis, compreendida esta como uma espécie de inteligência prática destinada a lidar apenas com os assuntos humanos e, portanto, com o que é marcado pela efemeridade ou pela possibilidade da mudança. Por isso a felicidade individual do filósofo exercida na atividade contemplativa, o bios theoretikós é a mais livre e feliz de todas, sendo a menos dependente de bens e finalidades externas, 46 Sobre isso

ler: OLIVEIRA, R.R. Para além da cidade: uma reflexão entre as relações entre política, excelência e racionalidade em Aristóteles. Síntese, Belo Horizonte, v. 38, n. 121, 2011, pp. 157-181. 47 Porém, Aristóteles ressalta a necessidade do mínimo de bens externos, embora não seja isso o principal. Nesse sentido, Aristóteles afirma que a eudaimonia não depende unicamente da virtude, sozinha ela não é suficiente para a felicidade. No entanto, por ser necessária, a virtude possui um status especial entre os bens que compõe a Eudaimonia. Essa é a tese da “dominância da virtude” para a felicidade. Cf. EN, Livro II, 1099 b, 25. Deste modo, Aristóteles concebe a eudaimonia com um misto de fins na medida em que é composta tanto pela virtude quanto por bens externos. No entanto, da mesma forma que a virtude possui um status especial e é predominante, como já foi dito, o agente deve sacrificar os bens externos se esses entrarem em conflito com as necessidades da virtude. 48 EN, livro X, 1178 a, 28.

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 e por ser assim, se distingue tanto das outras excelências morais como a da felicidade da polis, já que essas últimas são dependentes, em considerável medida, das contingências, dos bens externos e, sobretudo, das convenções e da realização de suas finalidades. Constatado isso, elimina-se a possibilidade de incongruência enunciada a pouco. De fato, Aristóteles coloca a atividade filosófica em outro patamar e, assim, a felicidade do sábio se efetiva em outras bases, muito diferentes da felicidade dos cidadãos comuns. Pois, o filósofo mesmo sendo mortal almeja a condição dos deuses que não carecem de contratos, atos de coragem ou da produção de riquezas materiais na busca do reconhecimento dos homens. Assim, como aos deuses só resta a contemplação, isso ocorre de igual maneira para o filósofo, já que: De fato, toda existência dos deuses é bem aventurada, e a atividade dos seres humanos também o é enquanto apresenta alguma semelhança com a atividade divina, mas nenhum dos outros animais participa da felicidade, porque eles não participam de forma alguma da atividade contemplativa. Então a felicidade chega apenas até onde há contemplação, e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade não como um acessório da contemplação, mas algo inerente a ela, pois a contemplação é preciosa por si mesma. A felicidade, portanto, deve ser alguma forma de contemplação49.

Evidentemente que todos os indivíduos necessitam de alguns bens externos, de fato, uma boa saúde depende de uma boa alimentação, exercícios físicos e outros cuidados50, no entanto, não são apenas os bens externos que irão fazer o indivíduo feliz. Assim, Aristóteles concebe a felicidade de duas formas, a primeira, a felicidade do cidadão que por ter sido desde jovem educado e instruído para desenvolver hábitos de acordo com as leis corretas51, a saber, aquelas que levam o indivíduo a agir de forma prudente de acordo com a mediania52, vive então a buscar e excelência na polis, pois a felicidade da polis é a felicidade coletiva de seus habitantes. Enquanto isso, o filósofo se alegra na contemplação solitária e na liberdade trazida por sua autossuficiência em detrimento dos bens materiais e necessidades externas, o sábio é aquele que é feliz com pouco, por não depender de nada para ser feliz, o que determina a segunda forma de felicidade, para Aristóteles, a melhor e mais perfeita.

49 EN,

livro X, 1178 b, 45-54. A excelência moral para Aristóteles também inclui o “amor próprio” e o cuidado de si, preocupar-se consigo e com o próximo, sobretudo com aqueles que amamos, mas não só esses, é uma extensão do amor próprio. Portanto, vida boa é aquela à qual o sujeito incorpora valor (as coisas têm valor em si), assim para Aristóteles desenvolver virtudes seria a expressão do amor próprio (Ver sobre isso os livros VIII e IX da Ética a Nicômaco). 51 Transição para a Política. EN, livro X, 1179 b, 32. 52 Cf. EN, livro X, 1179 b, 25-35. 50

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 Em suma, para Aristóteles o sábio é feliz com pouco por buscar a mesma condição dos deuses que verdadeiramente de nada precisam53. Assim, as glórias humanas, o poder, a fortuna, o reconhecimento e as honrarias não fazem sentido para o filósofo autêntico, pois esse genuinamente se alegra apenas com a aurora, com o quebrar das ondas do mar e com a magnitude do pôr do sol. Deste modo, a atividade filosófica é de profunda meditação e interiorização, e para aqueles que se alegram em conhecer e pertencer à natureza, isto é, viver de acordo com ela, não há atividade mais nobilitante e prazerosa. Essas pessoas, diz Aristóteles, “são as mais caras aos deuses, e quem estiver nessas condições será provavelmente mais feliz. Sendo assim então, o sábio é o homem mais feliz”54.

Conclusão Em última análise, percebe-se que Aristóteles está comprometido com a disposição para a boa vida55 ou para a vida virtuosa e feliz. Nomeia-se disposição porque o indivíduo precisa desenvolver a inclinação para o bem em sua alma através de uma educação que lhe ensine a amar e alegrar-se com o que é nobre e belo. Desse modo, o eudemonismo intelectualista de Aristóteles se configura como foi dito bem no início dessa abordagem, como uma “teoria da conduta”, que busca a boa vida ou a vida feliz através do cultivo das virtudes e da racionalidade. Mas, por outro lado, assume que é impossível se desconsiderar os prazeres, porque são parte importante da natureza humana. O Estagirita então parece tentar oferecer elementos para uma investigação profunda dos pressupostos que podem levar os indivíduos e a própria polis à felicidade suprema. Assim, identifica a felicidade com as virtudes e com as excelências morais, a partir de uma premissa teleológica de que tudo visa algum bem e, por ser assim, é feliz quem age de acordo com a busca desse bem. Portanto, se só será feliz quem busca o bem, é necessário primeiro o discernimento de qual o melhor bem entre vários tipos de bens. Aristóteles conclui que o melhor bem é aquele que é o bem em si mesmo, isto é, que tem seu fim em si mesmo, que não precisa de nenhuma outro bem para se realizar. Deste modo, compreendido que Aristóteles vincula a felicidade humana à vida intelectiva, como foi apresentado aqui, é possível concluir que para o filósofo há duas virtudes intelectuais

53

Ver o que Aristóteles diz no livro I da Política, em 1253 a, 41-45. EN, livro X, 1179 a, 38-40. 55 Cf. EN. Livro I, 1095b, 25-26. 54

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 fundamentais, a phrónesis e a sophía (a primeira, de caráter prático; a segunda, de caráter teorético), de forma que a realização da perfeição humana estará consequentemente relacionada à atualização daquela dessas virtudes que é a mais elevada ou superior. Ora, na concepção aristotélica, tal virtude é justamente a sophía, donde encontra-se o vigoroso elogio da vida contemplativa (ou consagrada ao exercício da sophía) com que Aristóteles encerra a Ética . Em sua investigação surgem dois tipos de felicidades distintas: primeiro, a do cidadão que necessita da polis para realizar suas virtudes através da prática do bem para com seus concidadãos e familiares, e por ser bom e justo alcança a felicidade suprema na polis, sendo capaz de desenvolver o meio-termo entre o sofrimento e o prazer e assim discernir entre os bons e os maus atos, e por discernir entre esses dois saberá agir bem. O segundo tipo de felicidade é o do filósofo, este tipo por sua vez não depende da polis, pois ele desenvolve um tipo de felicidade totalmente diferente, que independe de causas externas e por isso é mais feliz, porque sua felicidade por não necessitar de coisas ou de outras pessoas para se efetivar, não é retirável de maneira alguma. Portanto, percebe-se que, como é mostrado por Aristóteles, o sábio é feliz com pouco porque se regozija e se alegra apenas em contemplar de forma desinteressada, sua contemplação e seu eros pelo conhecimento têm um fim em si mesmo, e por isso Aristóteles julga essa felicidade comum da atividade contemplativa a melhor de todas, porque está baseada numa liberdade autêntica, de fato, livre de todas as necessidades materiais e contingenciais comuns às convenções sociais.

REFERÊNCIAS

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A dimensão intelectual e afetiva da felicidade no eudaimonismo ético de Aristóteles, pp. 226-241 BERTI, Enrico. La philosophie pratique d'Aristote et sa "réhabilitation" récente, Revue de Métaphysique et de Morale, 95e Année, No. 2, INTERPRÉTATIONS DE PHILOSOPHIE ANTIQUE (Avril-Juin 1990), pp. 249-266. DIÔGENES, Laêrtios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres; Trad. Mário Gama Kury. – 2º Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1977. HOBBUS, João. Eudaimonia e Autossuficiência em Aristóteles. 2º Ed. rev. e aum. – Pelotas: da UFPEL, 2009. LORD, Carnes. Aristotle, In. STRAUSS, L. CROPSEY, J. The History of Political Philosophy, 3º Edition, The University of Chicago Press, 1987. MACLNTYRE, A. Hitoria de la ética, Trad. Roberto Juan Walton Cubierto de Mario Eskenazi y Pablo Martín, 4º reimpresión, Gràfique 92, Barcelona, 1991. MEYER, Susan. S. Ancient Ethics: a critical introduction, Routledge, New York, 2008. NUSSBAUM, M. C. The Therapy of Desire, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1994. OLIVEIRA, R.R. Para além da cidade: uma reflexão entre as relações entre política, excelência e racionalidade em Aristóteles. Síntese, Belo Horizonte, v. 38, n. 121, 2011, pp. 157-181. WOLFF, F. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina F. Stummer, Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. ZIGANO, M. Eudaimonia e contemplação na ética Aristotélica, In. Estudos de ética antiga. 2º Ed. – São Paulo: Paulus, 2009, pp. 485-520.

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261

PONDERAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA MORAL DE KANT Dilson Brito da Rocha1

RESUMO: Immanuel Kant (1724-1804) vai arquitetar sua primeira crítica (Crítica da Razão Pura) com um objetivo bem definido: dar fundamentação à objetividade do juízo de verdade. A rigor, mostra como o sujeito estabelece, julga e discrimina o verdadeiro do falso e, em o fazendo, instaura uma espécie de respaldo para a razão. Grosso modo, isso se deveu ao contato que teve com a obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A partir de então se certifica de que o problema da moralidade se localiza na urgência de haver um inventário e uma teoria da razão, o que nos leva a induzir tão logo que na Crítica da Razão Pura já teria delineado os pilares nos quais se apoiaria para construir as críticas vindouras, como é o caso de seu vultoso projeto moral. PALAVRAS-CHAVE: Fundamentação; juízo; razão; inventário; moralidade. THOUGHTS ON THE MORAL PHILOSOPHY OF KANT ABSTRACT: Immanuel Kant (1724-1804) constructs his first criticism (Critique of Pure Reason) with a well-defined objective: to give foundation to the objectivity of the judgment of truth. In fact, it shows how the subject establishes, judges and discriminates truth from falsity and, in doing so, creates a type of support for reason. In part, this was the result of his contact with the work of JeanJacques Rousseau (1712-1778). From then on he realizes that the problem of morality lies in the urgency of having an inventory and a theory of reason, which leads us to immediately deduce that the Critique of Pure Reason would already have outlined the pillars which would support the construct of criticisms to come, as is the case of his massive moral project. KEYWORDS: Rationale; judgment; reason; inventory; morality.

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Mestre em Filosofia pela UNESP/Marília; Mestre em Teologia pela PUG/Roma, Itália. Docente nas Faculdades Integradas de Bauru (FIB). E-mail: dilsondarocha@hotmail.com

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 Preâmbulo No Prefácio da Fundamentação Kant estabelece que a moralidade precisa ser inteiramente a priori, significando que o homem deve se desvencilhar das ações heterônomas, visto que são contingenciadas por elementos empíricos, a saber, cultura, religião estatutária, história etc., sendo necessário avançar para a exigência do imperativo categórico,2 que no que lhe diz respeito, não é condicionado, mas puro. Portanto, no Prefácio é garantida a aprioricidade do imperativo da moralidade kantiana. Para ele, mesmo o homem do senso comum tem consigo a moralidade, todavia, está empiricamente circunstanciado, devendo fazer o salto imprescindível da moral vulgar para o dever moral a priori, abreviando numa fundamentação filosófica, que é igual a viabilização da razão pura prática. (cf. REZENDE, 2001, p. 134). Na primeira seção (Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico), Kant anuncia a obrigação moral de “agir por dever” (e não “conforme o dever”) como sendo conditio sine qua non para que consideremos uma vontade como boa em si mesma, que por sua vez é o princípio fundamental da moralidade. No que tange a segunda seção (Transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos costumes), temos clarificada a distinção entre os imperativos hipotético e categórico, ficando evidente o que concerne ao dever e tudo que dele decorre. Para Kant importa as ações abalizadas no imperativo categórico, dado sua pureza e seu caráter apriorístico, onde o sujeito se vale tão somente da lei da boa conduta, que é autônoma, e não busca orientação em algo heterônomo. Autonomia, então, é o agir pela égide da razão. “Autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional.” (Fundamentação, p. 79).

Panorama geral Na filosofia moral de Kant a ação pode ser regida pela razão, quando a vontade é autônoma. Devido a isso é que o homem pode estipular preceitos e regras de conduta a si mesmo de modo apriorístico. Nesta esteira, Kant precisa uma diferença entre “máxima” e “lei”. Rezende (2001) pormenoriza tal distinção como se segue: “Se ele se propuser fins empíricos, objetos subjetivos ou particulares, as regras de unificação das ações chamar-se-ão “máximas” (...) Se o indivíduo se

2 O motivo pelo qual Kant defende o

imperativo categórico como sendo ético, em contraste com o hipotético, se deve ao fato de que somente ele reivindica uma lei universalizável: “A vontade absolutamente boa, cujo princípio tem que ser um imperativo categórico, indeterminada a respeito de todos os objetos, conterá pois somente a forma do querer em geral, e isto como autonomia; quer dizer: a aptidão da máxima de toda a boa vontade de se transformar a si mesma em lei universal é a única lei que a si mesma se impõe a vontade de todo o ser racional, sem supor qualquer impulso ou interesse como fundamento.” (Fundamentação, p. 91).

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 propuser fins morais, a regra de sua ação será praticamente objetiva e chamar-se-ão “lei.”” (p. 134). E, em si tratando da lei, há que entender uma discriminação: É preciso distinguir lei prática de lei natural. Ambas possuem as características básicas da universalidade e da necessidade; mas, enquanto a lei natural é heterônoma ou determinista, a lei prática é livre, denominando-se por isso autônoma ou heterônoma, livre ou determinada, é a vontade individual em relação à lei, não a lei mesma, que é natural ou prática. Lei autônoma significa autodeterminação racional. A lei prática é a forma universal de uma vontade boa. Todavia, pelo fato de o homem ser ao mesmo tempo racional e sensível, ele não segue sempre espontaneamente a lei, isto é, não assume por si só uma forma universal de ação, tornando então a lei para ele um caráter de imperativo. Kant alcunha o imperativo moral de “imperativo categórico”, pelo fato de reivindicar uma universalização incondicionada de regras moralmente relevantes, e sua formulação mais conhecida pode ser conferida na seguinte máxima: “Age de tal modo que a máxima de tua ação sempre e ao mesmo tempo possa valer como princípio de uma legislação universal”. O imperativo categórico funda-se no princípio da autonomia. A autonomia, isto é, a existência de leis livres, é considerada a grande descoberta da segunda crítica. (cf. REZENDE, 2001, p. 138). Para Kant é a razão mesma quem dá a si o imperativo moral, a obrigação ou o dever. “[...] Porque este dever, como dever em geral, anteriormente a toda experiência, reside na ideia de uma razão que determina a vontade por motivos a priori.” (Fundamentação, p. 41). Isso nos obriga a ler que não há outro lugar (extrínseco) onde encontrar o princípio para a moralidade senão nas estruturas do próprio sujeito. Este entendimento kantiano dista de correntes outras, que segundo o filósofo localiza os princípios morais em outras esferas, o que para ele é um engano. Basta que lancemos os olhos aos ensaios sobre a moralidade feitos conforme o gosto preferido para breve encontrarmos ora a ideia do destino particular da natureza humana (mas por vezes também a de uma natureza racional em geral), ora a perfeição, ora a felicidade, aqui o sentimento moral, acolá o temor de Deus, um pouco disto, mais um pouco daquilo, numa misturada espantosa; e nunca ocorre perguntar se por toda a parte se devem buscar no conhecimento da natureza humana (que não podem provir senão da experiência) os princípios da moralidade, e, não sendo este o caso, sendo os últimos totalmente a priori, livres de todo o empírico, se se encontrarão simplesmente em puros conceitos racionais e não em qualquer outra parte, nem mesmo em ínfima medida. (Fundamentação, p. 44).

Kant entendeu que precisaria ser procurado o fundamento da moralidade, os princípios éticos, a partir de princípios racionais, tendo ele nesta etapa operacional, já identificado as fronteiras da razão e endereçado a razão à moral. “Assim, dentro do mundo constituído pela razão teórica, a razão prática nos direciona para a formação de um mundo moral, ao impor a ordem moral tanto sobre o conjunto de toda a sociedade humana quanto sobre nossos desejos individuais.” Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 (SCHNEEWIND, 2009, p. 405). Desta forma, a razão tem a moral como sendo sua destinatária, não podendo, em hipótese alguma, extraviar. Neste certame, Reale (1990) corrobora: “[...] todo interesse é prático e até mesmo o interesse da razão especulativa só é perfeito condicionadamente e no uso prático.” (p. 917). Este entendimento orientou Kant a anuir que os princípios racionais devem ser buscados no interior da estrutura do próprio sujeito, em sua estrutura racional e não em algo estranho a ele, sendo o próprio sujeito o agente da moralidade, não precisando de um tutor, a quem recorrer, seja ele de qual natureza for. “Kant inventou uma nova maneira de compreender a moralidade e a nós mesmos como agentes morais.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 369). A moral é um fato na realidade humana, tendo o próprio homem os princípios éticos e sendo ele o protagonista de seus atos, bem como responsável por eles. Neste senso, queria Kant que os homens praticassem a moral não como uma circunstância, mas por necessidade interna e livre de grilhões passados, devendo se orientar pelas “exigências transcendentais”, constituintes da própria estrutura do sujeito.3 Kant insiste em que cada um de nós recuse permanecer sob a tutela de outrem, ad exemplum, dependentes da esfera religiosa, que tinha um olhar especial de Kant de entre suas críticas. Para ele não precisamos basear-nos num livro que entenda por nós, num sacerdote que tenha consciência por nós. Devemos pensar e decidir por nós mesmos. Para alimentar isso, a liberdade pública de discussão é necessária, particularmente com respeito à religião. (cf. SCHNEEWIND, 2009, p. 369). As ações, segundo ele, deveriam ser baseadas na autonomia da vontade,4 e não na heteronomia, ligada que é a um imperativo condicionado, contingente, circunstanciado àquelas situações mundanas. Nesta seara, Kant determina que a razão pura é prática, mas não eudemonista: Esta analítica estabelece que a razão pura pode ser prática, isto é, pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de tudo que é empírico. E ela o estabelece, na verdade, por um fato no qual a razão pura se manifesta em nós como realmente prática, ou seja, pela autonomia no princípio da moralidade, pela qual determina a vontade no ato. (KANT, 2006, p. 60).

Kant chegou ao entendimento de que a razão pura pode ser prática depois que elaborou a crítica da razão, isto é, somente com a composição do “criticismo”5 é que a razão foi entendida como

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Tal questão pode ser confrontada em ALLISSON, H. e CARANTI, L. (2000). Libertà Transcendentale e autorità della morale in kant. Roma: Luiss Edizioni. 4 Neste concernente cf. SCHNEEWIND, J. B. Autonomia, obrigação e virtude: uma visão geral da filosofia moral de Kant. In: GUYER, Paul (Org.). Kant. Aparecida: Ideias & Letras, 2009. (Coleção Companions & Companions). p. 369-408. 5 O que se designa por criticismo é o posicionamento contrário àquela defesa do dogmatismo epistêmico, o atribuído por Kant a René Descartes (1596-1650), onde os objetos suprassensíveis são tidos como acessíveis ao sujeito. O criticismo kantiano é, grosso modo, a análise crítica das possibilidades do conhecimento, a origem, o valor e o limite da razão. Ou seja, trata-se de mostrar qual sua fronteira, a fim de se saber até onde ela pode ir. De toda maneira, Kant não incorreu no ceticismo, nem tampouco no dogmatismo,

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 havendo um fim, o das ações humanas e, consequentemente deixou de extrapolar as fronteiras do conhecimento, o que consiste justamente em seu limite, quisto por Kant, por ser necessário. A razão humana não é somente “razão teórica”, ou seja, capaz de conhecer, mas também é “razão prática”, isto é, razão capaz de determinar também a vontade e a ação moral. No caso da razão teórica foi necessária uma crítica da razão teórica “pura”, posto que esta, como se viu, tende a exorbitar além dos limites da experiência e além do lícito (com as consequências expostas na dialética transcendental). Já a razão prática não corre o risco, dado que ela tem como objetivo determinar a vontade (ou seja, mover a vontade) e, portanto, possui sem dúvida uma realidade objetiva (precisamente a determinação ou a moção da vontade). (cf. REALE, 1990, p. 901). Para Kant os critérios que vão estabelecer os juízos da moral, ou seja, o que é o bem e o mal, correto e incorreto, não podem ser transferidos a algo fora do sujeito, como que tendo a tutela de outrem, havendo, portanto, uma exaltação da dignidade do homem, ao mesmo tempo em que o exige fazer um constante exame de consciência, pois é o próprio homem que se impõe a lei, que obedece esta lei e que faz uma avaliação se tal lei foi ouvida ou desobedecida. O valor ético de uma ação não depende dos seus resultados externos, mas da vontade interior que lhe dá origem. Daí se segue que só é moral a ação que resulta do dever ou do respeito pela lei moral. A moralidade, pois, não se pode derivar de uma subordinação à autoridade e é aí que Kant separa a ética da obediência passiva a preceitos religiosos. “Certos atos devem ser considerados mandamentos divinos por serem intimamente inibidores e não intimamente inibidores porque considerados mandamentos divinos.” (BENDA, 1976, p. 36). Esta lei imposta a nós mesmos e por nós mesmos nos faz agir de tal forma e não de outra: “Impomos a nós mesmos uma lei moral, e essa lei produz a obrigação, uma necessidade de agir de certas maneiras.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 372). Esta tarefa é do sujeito mesmo e não pode ser posta em algo que lhe seja alheio, não pode ser transportada a uma lei que tem por base alguma autoridade estranha ao sujeito ou a uma instância divina. “A lei que nos une vem de dentro de nós mesmos e não de algum outro lugar, não de alguma outra vontade, não da vontade de algum soberano hobbesiano e nem mesmo da vontade de Deus.” (GUYER, 2009, p. 37). De igual modo,

mas, por meio de seu criticismo, pode, sistematicamente, revisitar os assuntos metafísicos, como em um motu proprio, ou seja, tomando este ramo do saber como sendo uma disciplina capaz de perguntar pelas fronteiras do conhecimento. Para um melhor entendimento da impossibilidade da metafísica como conhecimento objetivo ver: LACROIX, J. (1988). Kant e o Kantismo. Trad. Maria Manuela Cardoso. Porto: Rés editora. Ainda acerca do enfrentamento da metafísica por Kant cf. ROSALES, J. R. (1993). El punto de partida de la metafísica transcendental: um studio crítico de la obra kantiana. Madrid: Lerko Print. E, sobre o criticismo kantiano cf. CAMPO, M. (1953). La genesi del criticismo kantiano. Varese: Editrice Magenta e MARÉCHAL, J.; CASTELLANI, L. (1946). La crítica de Kant. Buenos Aires: Ediciones Penca.

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 não precisamos de nenhuma teonomia, de conhecimento da natureza de Deus (ontoteologia) para sermos morais, nem tampouco que o admitamos para que sejamos bons. Ao contrário, a moral é intransponível e autossuficiente. Não precisamos de um conhecimento demonstrativo de Deus, da providência e da imortalidade para dar uma fundamentação para a moralidade. Pois a moralidade deveria ser um fim em si mesmo, independentemente dos prospectos de recompensa eterna e independentemente de se a alma é imortal ou não. (cf. BEISER, 2009, p. 79). Quando Kant aborda da lei, a entende como sendo uma imposição que o homem deve referir a si mesmo, sempre no sentido de obstar às inclinações, que por seu turno são condicionadas à outras motivações e não derivadas da razão. “Pois, só a lei traz consigo o conceito de uma necessidade incondicionada, objetiva e consequentemente de validade geral, e mandamentos são leis a que tem de se obedecer, quer dizer que se têm de seguir mesmo contra a inclinação.” (Fundamentação, p. 55). Sobre as inclinações e desejos, Kant é peremptório ao proferir em sentido contrário: Daqui se provém que o homem se arrogue uma vontade que não deixa medrar nada que apenas pertença aos seus apetites e inclinações, e que, pelo contrário, pensa como possíveis por si, e mesmo como necessárias, ações que só podem acontecer desprezando todos os apetites e todas as solicitações dos sentidos. (Fundamentação, p. 109).

Isso pelo fato de que, como defende o filósofo, nós temos faculdades cognitivas capazes de fornecer, elas mesmas, os fundamentos para a moralidade, por isso, delegar tal função seria falta de esclarecimento e menoridade.6 Disso se entende a repulsa de Kant para com a velha metafísica, que não situava no sujeito mesmo a causa da moralidade, mas em outras instâncias. Para ele, querer encontrar os fundamentos morais em outros domínios não é algo condizente com a liberdade e com a autonomia. “Ora à ideia de liberdade está inseparavelmente ligado ao conceito de autonomia, e a este o princípio universal da moralidade, o qual na ideia está na base de todas as ações de seres racionais como a lei natural está na base de todos os fenômenos.” (Fundamentação, p. 102).

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No concernente ao esclarecimento, Kant insiste no fato de que os sujeitos se tornem “esclarecidos” (= pensar autonomamente), sobretudo no item religioso, desvencilhando da menoridade religiosa, que já era um processo, segundo ele, iniciado em sua era, mas que ainda demandaria um tempo para se efetivar. Ele entende que a suprema vocação de sua época é a de um fim da menoridade religiosa. Assim, ele descreve sua época, cuidadosamente, não como uma época esclarecida, mas (de maneira otimista) como uma época de esclarecimento, na qual forças progressivas inevitavelmente libertarão as pessoas da menoridade religiosa, se apenas a autoridade secular salvaguardar a liberdade de pensamento e de expressão e se recusar a “apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os demais súditos.” (WOOD, 2009, p. 493). Para Kant este processo demandaria certo tampo: “Não vivemos em uma época de esclarecimento. Falta ainda muito para os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento.” (KANT, 2005, p. 70).

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 Liberdade então, tem uma relação muito estreita com autonomia.7 Por isso Kant não admitia a maneira de raciocínio dos adeptos da velha metafísica, já que, em detrimento da liberdade, punham as balizas da moralidade em outros campos que não no próprio sujeito. A fonte fundamental da moralidade, ele agora acreditava, era a própria liberdade, o poder da vontade de prescrever leis universais. O problema com a metafísica, então, era que ela projetava a fonte da moralidade no mundo fora de nós, renunciando à liberdade e nos alienando de nossos poderes. Assim como muitas das artes e das ciências, ela nos fez ignorar a verdadeira fonte da virtude, que está dentro de nós. (cf. BEISER, 2009, p. 88). Kant insiste que é a metafísica que tem que ter a moral como alicerce e não o inverso. “Em vez de basear a moralidade na metafísica, devemos fazer o contrário: basear a metafísica na moralidade. Pois, Kant argumenta, a única base de sustentação de nosso interesse na metafísica são nossos sentimentos morais.” (BEISER, 2009, p. 70). Mas, precisa ficar claro que os juízos morais, não obstante tenham uma fundamentação também nas estruturas cognitivas do sujeito, eles não são propriamente fruto de “sínteses transcendentais”, o que é peculiar ao juízo da razão teórica. De toda forma, o que era impossível outrora (noúmeno = a coisa em si), na moral se faz viabilizável. “[...] aquela esfera numênica que era teoricamente inacessível torna-se agora ‘praticamente’ acessível.” (REALE, 1990, p. 902). A prática da virtude não deve ter outro motivo senão a lei da boa vontade mesma. “Não é nem o medo nem a inclinação, mas tão somente o respeito à lei que constitui o móbil que pode dar à ação um valor moral.” (Fundamentação, p. 84). A crítica que Kant tece à metafísica se deve ao fato de que segundo ele nela há um equívoco, além dos já arrolados, quando embute que a prática da virtude deve ser estimulada por meio da promessa de alguma recompensa ou do amedrontamento das pessoas, que por este sobrepeso vivem tensas, com receio do castigo e que, muitas vezes introduzidas numa seita religiosa, absorvem tais conteúdos impertinentes (uma espécie de “teologia do medo”). Todas as tentativas metafísicas de provar a imortalidade da alma foram motivadas, dizia Kant, pela necessidade de permitir que as ações virtuosas feitas na vida comum sejam recompensadas; mas elas são inteiramente desnecessárias, porquanto somente uma moralidade que nos motive a fazer nosso dever sem promessa de recompensa nem medo de punição

7 No que toca à liberdade, em Rezende (2001) consta que: “ A liberdade é o conceito-chave da prática, porque sem ela não existe ação.

Inicialmente e de um ponto de vista teórico, Kant entendeu a liberdade como espontaneidade, isto é, como ideia de um início absoluto de uma série causal. Do ponto de vista prático, entendeu-a, negativamente, como independência de determinações empíricas ou estranhas e, positivamente, como autodeterminação (...) A liberdade é, em Kant, não só o fundamento da prática, mas de todo o seu sistema crítico, é sua cunha de sustentação. (p. 134).

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 é virtuosa Essa insistência em que a virtude deve nos motivar por si mesma e em que a fé em doutrinas religiosas da imortalidade e da providência não devem ser a base para a moralidade, mas somente uma consequência dela, continuaria a reverberar na obra de Kant pelo resto de sua vida. (cf. GUYER, 2009, 42). Assim como se deu no campo lógico-epistemológico, a guinada kantiana sucede, talqualmente, no ético-moral. Na Crítica da razão Prática Kant é seguro em ver no sujeito a capacidade de encontrar nele próprio os princípios morais, o que não é ignoto, já que ele usou deste mesmo princípio metodológico quando da sua primeira crítica, depositando no próprio sujeito as estruturas cognoscíveis. Evidentemente, o motivo que leva o sujeito a obedecer a lei não pode ser encontrado fora de si mesmo. “Kant nos diz explicitamente, em diversas ocasiões, que a única lei do mundo inteligível que sabemos ser verdadeira é a lei moral. O mundus vere intelligibillis é o mundus moralis.” (BEISER, 2009, p. 75). Em consequência disso, nosso filósofo apregoa que a conduta da boa vontade se basta a si mesma, sem que tenha outro telos, pois a moral é autônoma.8 Depois, ocorre que o ser humano está em constante mudança (convertio), a fim de agir boamente. A doutrina moral kantiana contradita com aquele tipo de ação na qual a pessoa observa seu querer individual. Antes, ele investe numa conduta que considere o respeito.9 “A ação baseada no respeito é o único tipo de ação que mostra interesse verdadeiro pela moralidade. Nenhuma outra motivação me dá direito de ser um agente virtuoso.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 397). São vários os motivos que nos levam a fazer o que é certo, mas o único motivo ético é o respeito, sem que haja qualquer tipo de permutação, pois numa ação onde o que tem como princípio é o escambo e não o respeito, seria um ato egoístico (voltado para as paixões), desde a intenção à sua consumação. (...) outros motivos, como o medo de punição, a ganância, o amor ou a piedade podem levarnos a agir de maneira correta. Mas é de maneira unicamente contingente que o fazem. O amor, assim como a ganância ou o ódio, pode levar alguém a agir de maneira moral. O único motivo que nos move a agir corretamente por necessidade é o respeito, porque só ele é ativado unicamente pelos ditames do imperativo categórico. (SCHNEEWIND, 2009, p. 396, grifo nosso).

Desta forma, a partir da razão pura prática, o sujeito não obedecerá aos instintos, que lhe causam escravidão, mas ouvirá o comando racional e as leis advindas daí e, consequentemente, será livre pelo fato de não ter uma lei imposta por outrem, senão aquela de sua própria razão que dá as máximas, no sentido de lei prática. “Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objeto (isto 8

Em virtude de uma melhor clareza acerca da boa vontade ver NODARI, P. C. (2005). “A noção de boa vontade em Kant”, In: Revista Portuguesa de Filosofia, v. 61, n. 2, p. 533-558. 9 Para um melhor enfrentamento da temática sobre o “respeito” em Kant ver: REALE, 1990, p. 914.

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 é, o que serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) é a lei prática.” (Fundamentação, p. 115). Sobre este particular, Schneewind (2009) mostra que a máxima é uma exigência da razão: “Uma máxima é um plano pessoal ou subjetivo de ação, que incorpora as razões do agente para agir e também uma indicação suficiente de qual ação a razão exige.” (p. 385).10 Para Kant as ações são boas quando as intenções ou os motivos são bons. “Portanto, a moralidade não consiste naquilo que se faz, mas no como [intenção] se faz aquilo que se faz.” (REALE, 1990, p. 907). Diferentemente de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), ele não quererá uma ética teleológico e eudemonista (que tem como finalística a felicidade),11 entendendo que as ações humanas podem ter intenções egoístas, interesseiras. “Não podemos calcular nossas ações baseados na finalidade que quer a eudaimonia.” (Fundamentação, p. 78). Em particular, deve-se destacar que todo tipo de ética que se baseia na “busca de felicidade” é heterônoma, porque introduz fins “materiais”, com toda uma série de consequências negativas. A busca de felicidade polui a pureza da intenção e da vontade, posto que aponta para determinados fins (para aquilo que se deve fazer e não para o como se deve fazê-lo) e assim a condiciona. A busca da felicidade dá lugar a imperativos hipotéticos e não a imperativos categóricos. Toda a ética grega, que era precisamente eudaimônica é assim derrubada. (cf. REALE, 1990, p. 909). Para Kant, a felicidade não é algo peculiar ao homem que segue os ditames da boa vontade, da razão prática. Pelo contrário, ela é peculiar às inclinações, que querem se saciar constantemente. “(...) pois que a felicidade não é um ideal da razão, mas da imaginação, que assenta somente em princípios dos quais é vão esperar que determinem uma conduta necessária para alcançar a totalidade de uma série de consequências de fato infinita.” (Fundamentação, p. 56). Distintos dos animais, os homens não devem viver colados na natureza, nas inclinações, mas há de se desvencilhar deste círculo, isso quando a égide é a razão, que dita o dever, e não os sentimentos e inclinações.12 Não é, de forma alguma, a natureza quem determina a lei, sendo ela contingente. Mas esta lei deve ser oriunda do sujeito mesmo. Em verdade, Kant rompe também nesta hora com o pensamento grego antigo, que no que lhe atina, está vinculado à natureza, cosmologicamente. 10

Para um aprofundamento sobre as “máximas” ver: REALE, 1990, p. 903. Nela temos que: “Com efeito, as causas de onde se origina o que se faz consistem nos fins visados.” (ARISTÓTELES, 1987, VI, 5, 1140b, 16). Kant refuta tal construção, conforme se pode ver em seu discorrer acerca dos imperativos: “Portanto, o imperativo que se relaciona com a escolha dos meios para alcançar a própria felicidade, quer dizer, o preceito de prudência, continua a ser hipotético; a ação não é ordenada de maneira absoluta, mas somente como meio para uma outra intenção.” (Fundamentação, p. 52). 12 Para Kant o dever não pode admitir inclinações: “A necessidade prática de agir segundo este princípio, isto é, o dever, não assenta em sentimentos, impulsos e inclinações, mas sim somente na relação dos seres racionais entre si, relação essa em que a vontade de um ser racional tem de ser considerada sempre e simultaneamente com legisladora, porque de outra forma não podia pensar-se com fim em si mesmo.” (Fundamentação, p. 77). 11 Na Ética a Nicômaco é clarividente a ética finalística de Aristóteles.

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 A natureza bem como a arte nada contêm que à sua falta se possa pôr em seu lugar, pois que o seu valor não reside nos efeitos que delas derivam, na vantagem e utilidade que criam, mas sim nas intenções, isto é nas máximas da vontade sempre prestes a manifestar-se desta maneira por ações, ainda que o êxito as não favorecesse. (Fundamentação, p. 78).

No denominado formalismo kantiano, a avaliação das ações não pode basear em suas consequências. “O valor moral da ação não reside, portanto, no efeito que dela se espera; também não reside em qualquer princípio da ação que precise de pedir o seu móbil a este efeito esperado.” (Fundamentação, p. 31). Kant defende que as ações devem ser analisadas tendo como base suas motivações, as que intencionam somente a obediência à lei da boa conduta, que não visa outra coisa senão ela mesma, e não os planeamentos que intentam o bem próprio, como a felicidade. “Mas a verdadeira moral, Kant sustentava, daria necessidade a um ato independentemente daquilo que o agente quer.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 376). Assim, o valor da pessoa está em seus motivos e não no que busca como finalidade. Todo ser humano é municiado pela razão, tendo, portanto, condições para ser um sujeito moral, não precisando se valer de outro suporte que não a boa conduta em si. Kant enxerga equívoco no modelo de ética finalística, já que não há uma preocupação com a motivação, mas tão somente com o atingimento do telos. Esta ética está limitada a algo condicional, significando que com ela o sujeito somente agirá eticamente se tal ação puder conduzir à felicidade, caso contrário deixará de fazê-lo. A boa vontade não segue tal lógica. “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma coisa: uma boa vontade.” (Fundamentação, p. 109). Segundo ele, às vezes, mesmo sabendo que com algum tipo de ação não se poderá atingir a felicidade, se deve praticá-la, pois o que deve prevalecer é sempre a lei da boa vontade, sendo por isso sua ética alcunhada de ética deverista ou deontológica. Na primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes Kant assinala que todos os nossos talentos (a inteligência, o discernimento, a prudência, a coragem, o temperamento, o caráter etc.) se não forem determinados pela boa vontade, tornam-se prejudiciais. A boa vontade escolhe os melhores fins para empregar estes talentos como meio para alcançá-los. A vontade é boa não em função dos fins que realiza mas segundo a máxima que a determina, ou seja, a forma como se quer aquilo que se quer, na observância irrestrita do dever moral. (cf. FREIRE, 2005, p. 42). Nesta esteira, Kant aposta na “lei universal”,13 onde o sujeito deve sempre avaliar se sua ação particular pode ser universalizada ou não, e em caso de não sendo, não se deve praticá-la. “Podes tu

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Segundo Kant, esta lei deve ser buscada dentro do sujeito mesmo (= autonomia) e não em outras instâncias. “Quando a vontade busca a lei, que deve determina-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer de seus objetos, o resultado é então

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 querer também que a tua máxima se converta em lei universal? Se não podes, então deves rejeitála, e não por causa de qualquer prejuízo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros, mas porque ela não pode caber como princípio numa possível legislação universal.” (Fundamentação, p. 34). Segundo Reale (1990), a moral em Kant deve ser encarada pela ótica do universal, a fim de se ter um parâmetro: “Olha as tuas ações pela ótica do universal e compreenderás se são ações moralmente boas ou não.” (p. 913). Então, a universalização é uma espécie de métron, no qual o sujeito deve recorrer antes de agir, a fim de medir se sua ação poderá ser universal, e não se será feliz ou não com tal. “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (Fundamentação, p. 59). A ética de Kant é deontológica,14 ou seja, é baseada no dever15 como princípio para as ações. Para ele o dever é de suma importância, haja vista que “[...] o conceito de dever contém em si o de boa vontade.” (Fundamentação, p. 26). A importância também se deve ao fato de o dever ser consonado com a lei. “Dever é uma necessidade de uma ação por respeito à lei.” (Fundamentação, p. 31). E este é o parâmetro para mensurar se a ação foi correta ou não, ou seja, se houve o dever como princípio ou outro motivo estranho à pessoa mesma, logo, um motivo heteronômico, que ao invés da autonomia prevalece a sujeição. “Chamarei, pois, a este princípio, princípio da Autonomia da vontade, por oposição a qualquer outro que por isso atribuo à heteronomia.” (Fundamentação, p. 75). A mentalidade moral da heteronomia é farta em elaborações de outrora. Todas as morais que se baseiam nos “conteúdos” comprometem a autonomia da vontade, implicam dependência dela em relação às coisas e, portanto, à lei da natureza e, por conseguinte, comportam a heteronomia da vontade. Na prática, todas as morais dos filósofos anteriores a Kant, medidas com esse novo critério, revelam-se “heterônomas” e, portanto, falazes. (cf. REALE, 1990, p. 911). Kant vai asseverar que o que distingue o homem dos outros animais é a vontade, pois no que toca aos instintos, estes últimos também os tem. A vontade para Kant está ligada à razão que orienta as ações. “[...] a vontade não é outra coisa senão Razão Prática.” (Fundamentação, 123). Os desejos e os instintos estão ligados ao corpo, ao passo que a vontade está ligada às deliberações que os homens devem fazer, por meio da razão, que dita o dever moral. (...) a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade,

sempre heteronomia.” (Fundamentação, p. 86). Para um exame sistemático acerca da lei universal em Kant cf. KLEMME, H. F. (2008). A discreta antinomia da razão pura prática de Kant na Metafísica dos Costumes. Cadernos de filosofia alemã, n. 11, p. 11-32. 14 Reale (1990) vai se referir a este tipo de ética em Kant como sendo um “rigorismo” e um hino ao dever. (cf. p. 913-915). 15 Kant define o dever da seguinte forma: “A necessidade objetivamente de uma ação por obrigação chama-se dever.” (Fundamentação, p. 84).

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos. Esta vontade não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda aspiração de felicidade. (Fundamentação, p. 26).

Sucede, pois, o embate entre o corpo que deseja e a razão que impera limites. Assim, não obstante os desejos interpelem para a obediência ao corpo, a pessoa deve ouvir a vontade, ligada à razão que é, e que por isso, aponta para uma via contrária às inclinações voltadas para os desejos. “A vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, que dizer, como bom.” (Fundamentação, p. 23). Neste certame, Kant é influenciado por Rousseau também no atinente à questão da vontade, que é enfrentada por ele como sendo ela legisladora, já que é ligada à razão, e tendo que caber dentro do princípio da universalidade, pleiteado por ele. Rousseau convenceu Kant de que todos devem ter a capacidade de serem agentes morais que se autogovernam, e que essa característica é a que dá a cada pessoa um tipo especial de valor ou dignidade. No seu presente estado corrompido, a cultura esconde essa nossa capacidade, segundo Rousseau; e a sociedade deve, portanto, ser mudada para que ela apareça e seja efetiva. No Contrato Social, Rousseau reclamava a construção de uma comunidade em que todos concordam em ser governados pelos ditames da “vontade geral”, uma vontade que representa os objetivos mais profundos e genuínos de cada indivíduo, direcionado sempre ao bem comum. A vontade geral teria de conseguir sobrepujar os desejos passageiros que cada um de nós tem por bens privados. Pensadores anteriores frequentemente usaram a metáfora da escravidão para descrever a condição em que somos controlados por nossas paixões, mas para eles, a alternativa era seguir as leis que a natureza ou Deus prescreveram. Rousseau sustentava que fazemos nossa própria lei e que ao fazê-la criamos os princípios para uma ordem social livre e justa. Esse pensamento se tornou central para o entendimento da moralidade tido por Kant. (cf. SCHNEEWIND, 2009, 379). A vontade é legisladora,16 havendo de ser necessariamente universalizável e está em consonância com a razão. “A vontade não é outra coisa senão a razão prática (...) a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom.” (Fundamentação, p. 47). Neste senso, Kant destaca: “A vontade não está, pois, simplesmente submetida à lei, mas o está de tal maneira que

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Tanto é legisladora que Kant assere: “[a vontade] é a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis.” (Fundamentação, p. 134).

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 possa ser também considerada legisladora ela mesma, e precisamente por isso então submetida à lei.” (Fundamentação, p. 72). A lei que Kant se refere deve ser uma lei advinda da própria razão, que é a autonomia da lei moral. “[...] nós não estamos somente submetidos a uma lei, mas que essa lei também é fruto de nossa racionalidade e, portanto, depende de nós: somos nós, com a nossa vontade e racionalidade, que damos as leis a nós mesmos.” (REALE, 1990, p. 907). A vontade contanto, é fundada na razão. Essa realidade dista dos instintos, que por sua vez são as inclinações, os desejos e impulsos. Não se trata, pois, do ser humano basear suas ações tendo em vista sua felicidade ou honras, glórias pessoais, mas sempre o agir por dever, que independe da satisfação dos desejos. Eu afirmo, porém, que neste caso uma tal ação, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efetivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais ações se pratiquem, não por inclinação, mas por dever. (Fundamentação, p. 28).

A pessoa se tornaria escrava dos desejos se os obedecesse. Em consequência disso, o homem é livre somente quando tem a capacidade de deliberar, por meio da razão, aquela que impõe uma espécie de frenum àquilo ligado às pulsões. A dignidade só a tem aquele capaz de fazer a deliberação, obedecendo, portanto, aquela que impõe limites, a razão. A boa vontade é a obediência à razão, de maneira que as ações regidas pela boa vontade, pelos critérios da pura racionalidade prática, estarão bem orientadas. Evidentemente, em Kant há uma clara diferenciação entre o desejo e a vontade, aquele ligado às pulsões e esta à razão. Quando o homem age, se ele for regido pela boa vontade, esta se mostrará através do dever, ou seja, ela dita para o homem a correta ação, tocando ao homem, livremente, ouvi-la. “Os desejos, ele supõe, como tais não são racionais. Eles surgem em nós porque somos seres finitos, como necessidades corporais e outras. Se deve haver alguma racionalidade na ação, a vontade deve ser sua fonte. Kant, portanto, equaciona a vontade com a razão prática.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 380). A vontade, portanto, nos difere do autômato, que não se guia pela reflexão, mas que se deixa controlar pelo desejo. Em Kant a boa conduta se dá quando a pessoa age por dever e não conforme o dever. “Pois que aquilo que deve ser moralmente não basta que seja conforme a lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei.” (Fundamentação, p. 16). Neste seguimento, a pessoa deve agir boamente não porque espera algo recompensador para ela mesma, como a felicidade (conforme o dever), mas tão somente em respeito à lei da boa conduta (por dever), quer dizer, não Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 por legalidade, mas em observação da moralidade,17 independentemente se isso a fará feliz ou não, pois o mais importante para os homens não é isso, mas a obrigação moral do dever. (cf. REALE, 1990, p. 913). Então, o conceito “dever” na filosofia moral de Kant ocupa um posto insubstituível. O termo “dever” é central para o nosso vocabulário moral porque a tensão entre a razão e o desejo é central para a nossa experiência. “Dever” pode ser definido, na visão de Kant, dizendo-se tudo aquilo que uma vontade santa, ou uma vontade perfeitamente racional, necessariamente faria é o que agentes imperfeitamente racionais deveriam fazer. (cf. SCHNEEWIND, 2009, p. 378). O que são evidenciadas não são as ações em si mesmas, mas as motivações pelas quais as pessoas agem. No agir conforme o dever não há um respeito ao dever nem moralidade, pelo fato de que, agindo assim a pessoa se mostra egoísta em seu motivacional, e pelo fato de que o fazendo desta maneira se almeja, ao obedecer ao dever, propriamente seu bem particular, ou seja, age esperando um bem para si mesmo, tendo, portanto, a lógica da “moral da retribuição”. De outro modo, agindo por dever a pessoa obedece e age acordado com a vontade, sendo capaz de deliberar, como uma voz de comando interior, sem que haja qualquer recompensa egoísta. “[...] praticasse a ação sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral.” (Fundamentação, p. 28). Naturalmente, o dever suplanta e precede qualquer interesse. A noção de dever, portanto, requer na ação, objetivamente, acordo com a lei e, subjetivamente, na sua máxima que o respeito pela lei seja único pelo qual se determina a vontade. Nisto reside a distinção entre a consciência de ter agido de acordo com o dever e pelo dever, isto é, em respeito à lei. A primeira (legalidade) é possível mesmo que as inclinações tenham sido os princípios determinantes da vontade; mas da última (moralidade), valor moral, só se pode dizer que a ação foi realizada por dever, isto é, simplesmente por amor à lei. (cf. BENDA, 1976, p. 123). Como mencionamos, o que interessa a Kant não é a conduta em si mesma, mas os motivos pelos quais a pessoa tem tal conduta. Assim, agir moralmente bem é fazer o que se deve e não fazêlo na lógica retributiva, visando consequências boas para si mesmo, pois assim, a pessoa só faria o bem se isso lhe trouxesse coisas boas e, em caso contrário, deixaria de agir boamente. Agir em conformidade com o dever diz respeito àquelas ações onde nelas há o cumprimento do dever apenas visando uma satisfação, onde a pessoa espera se beneficiar agindo de tal maneira e não pelo fato de ser correto agir de tal forma. Ou seja, agir conforme o dever é fazê-lo esperando um resultado que 17

A partir de Benda (1976), temos a seguinte diferenciação entre legalidade e moralidade: “O essencial no valor moral determina diretamente a vontade. Se a determinação da vontade se dá de fato de conformidade com a lei moral, mas apenas através de um sentimento, não importa de que espécie, que tenha de ser pressuposto a fim de que a lei seja suficiente para determinar a vontade, e, portanto, não por causa da lei, então a ação se reveste de legalidade, mas não de moralidade.” (p. 113).

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 possa ter um benefício próprio, onde o dever aparece como secundário, pois a pessoa não reconhece um valor nele mesmo (no próprio dever), mas somente na finalidade, se tornando aquele apenas um meio para se alcançar um fim pretendido, podendo, a depender da utilidade, ser descartado, em prejuízo do imperativo da moralidade. De maneira diversa, agir por dever diz respeito àquelas ações que não esperam barganha, mas que se dão pelo fato de serem corretas, apenas. Refere-se que, o motivo pelo qual a ação é baseada é apenas o cumprimento do dever mesmo, e nada mais para além dele ou exterior à boa vontade. Na filosofia moral kantiana vão aparecer, de forma diversa, dois tipos de imperativos, a saber, os hipotéticos e os categóricos. Ele distingue-os como se segue: Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética – ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade (...) no caso da ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico. (Fundamentação, p. 50).

Como se pode conferir, o imperativo categórico consiste naquele fundante da moralidade kantiana.18 Mas antes precisamos dar conta da existência de outro tipo, o hipotético ou condicional. Como o próprio nome indica, imperativo, moral e gramaticalmente é sempre uma ordem. Neste senso, poder-se-ia falar da ética kantiana por meio de dois tipos específicos de orações. Ele as chama de imperativas, por aquele motivo de ordenamento oriundo de ambas. Primeiramente, temos os imperativos hipotéticos. Neste caso, não obstante haja a ordem, há um condicionamento na estrutura frasal. Este tipo de frase explica e justifica o motivo da ordem estipulada, havendo neste caso particular uma barganha, o que Kant não aprecia. “Ele é hipotético porque a necessidade da ação que ele impõe é condicional. Você deve fazer certo ato se [condicional] quiser certo fim.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 386). A preferência de Kant é pelo segundo tipo de modo frasal, o categórico, uma vez que para ele a pureza apriorística lhe é atribuída como distintivo,19 e, diferentemente do hipotético, não é 18

No tocante aos imperativos ver: REALE, G. ANTISERI, D. História da filosofia: do Humanismo a Kant. Vl. 2. São Paulo. Paulus: 1990, p. 902-907. 19 No excerto que segue poder-se-á notar tal pureza: “E assim são possíveis os imperativos categóricos, porque a ideia da liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível; pelo que, se eu fosse só isto todas as minhas ações seriam sempre conformes à autonomia da vontade; mas como ao mesmo tempo me vejo como membro do mundo sensível, essas minhas ações devem ser conformes a essa autonomia. E esse dever categórico representa uma proposição sintética a priori, porque acima da minha vontade afetada por apetites sensíveis sobrevêm ainda a ideia dessa mesma vontade, mas como pertencente ao mundo inteligível, pura, prática por si mesma, que contém a condição suprema da primeira, segundo a razão; Mais ou menos como ás intuições do mundo sensível se juntam conceitos do entendimento, os quais por si mesmos nada mais significam senão a forma de lei em geral, e assim

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 condicionado. “O imperativo categórico, pelo contrário, não é limitado por nenhuma condição.” (Fundamentação, p. 53). Neste tipo imperativo não há uma condição. Tanto é verdade a predileção que Kant o elege de “imperativo da moralidade”, e, em o fazendo, rechaça da moralidade aquele hipotético, mesmo que nele a ação seja correta, ficando salientado que não basta ser correta, mas precisa não ter intenções ou motivos, exceto o da boa vontade. Há por fim um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente este comportamento. Este imperativo é categórico. Não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside na disposição (gesinnung), seja qual for o resultado. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da moralidade. (Fundamentação, p. 52).

Kant refuta o hipotético a fim de obrigar o homem a se orientar apenas pelo dever e repugnar tudo o que possa evocar o calculismo nas ações, onde os atos dos homens pendem para a satisfação dos próprios interesses, como se dá nos animais que se orientam pelos instintos. “Se o dever é um conceito que deve ter um significado e conter uma legislação real para as nossas ações, essa legislação não se pode exprimir senão em imperativos categóricos, e de forma alguma por imperativos hipotéticos.” (KANT, 2004, p. 55). Este tipo de imperativo não deve ser aniquilado pelos desejos. “(...) a darmos a nós mesmos um caráter em que os ditames do imperativo categórico nunca sejam contrariados pelas paixões e desejos.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 404). Este tipo frasal é um mandamento absoluto que tem seu encerramento na ordem mesma, sem que haja um telos, por isso, ele é necessário e universalizável, como reza a máxima kantiana: “Age só segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (Fundamentação, p. 51). No imperativo categórico há tão somente uma voz ordenadora, sem que haja necessidade de dar uma explicação acerca da frase e, por outro lado, não quer necessariamente fazer feliz o receptor da ordem, aquele que é ordenado, ou que tenha outro fim. “Haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser base de leis determinadas, nessa coisa e só nela é que estará a base de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática.” (KANT, 2004, p. 134). O modo categórico é um tipo de ordem direta, sem palavreado, estando em consonância com a autonomia, pois não busca outros motivos para agir senão a lei do dever, que é intrínseca ao sujeito. Quando a vontade procura a lei que a deve determinar em outro lugar que não aquele em que a justiça das suas máximas constitui suas leis

tornam possíveis proposições sintéticas a priori sobre as quais repousa todo o conhecimento de uma natureza.” (Fundamentação, p. 104).

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 universais e, quando consequentemente, sai de si mesma para buscar a lei no caráter de algum dos seus objetos, o resultado é sempre a heteronomia. Nesse caso a vontade não traça a sua própria lei; é o objeto que o faz, através da sua ligação com a vontade. Esta ligação, quer se apoie na inclinação quer em algum conceito da razão, só admite imperativos hipotéticos: devo fazer alguma coisa por que desejo alguma outra coisa. O imperativo moral e, portanto, categórico, diz, ao contrário: devo fazer assim e assim, mesmo que não deseje qualquer outra coisa. (cf. BENDA, 1976, 179). Kant denomina este modo frasal de juízo categórico. Nesta forma imperativa não podemos agir em vista de nosso bem-estar, mas sempre por dever. "O imperativo categórico exige claramente certa espécie de imparcialidade no nosso comportamento. Não nos é permitido abrir exceções para nós mesmos ou fazer o que racionalmente não permitiríamos aos outros.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 390). Este modo ainda é vinculado à boa vontade, pois nele não há preocupação com as consequências, mas o que é relevante é somente o ato em si do dever, onde o que prevalece é a ordem dada, e nada mais fora disso. Dada a afirmação de Kant de que a necessidade entre meio e fins é inadequada para a moralidade, é evidente que ele deve pensar haver outra lei do querer racional e, portanto, outro tipo de “dever” ou imperativo. O tipo de “dever” que não depende dos fins do agente surge da lei moral; e Kant chama a versão imperativa dessa lei de “imperativo categórico”. A própria lei moral, ele sustenta, só pode ser a forma da conformidade à lei ela mesma, porque nada mais resta uma vez que o conteúdo já foi rejeitado. (cf. SCHNEEWIND, 2009, p. 394). Ocorre que a diferenciação que Kant estabelece entre os dois tipos frasais o faz optar pelo categórico, uma vez que este exclui a intenção das ações. O imperativo hipotético diz pois apenas que a ação é boa em vista de qualquer intenção possível ou real (...) O imperativo categórico que declara a ação como objetivamente necessária por si, independentemente de qualquer intenção, quer dizer, sem qualquer outra finalidade, vale como princípio apodítico (prático). (Fundamentação, p. 51).

A dileção de Kant pelo modo do imperativo categórico se deve ao fato deste ser puro e incondicional, mas também pelo fato de ser o único ato moral universalizável, ou seja, que se pode aplicar universalmente. De toda maneira, ele apregoa a necessidade da lei moral ser universalizada.20 Para ele a ação do indivíduo somente será boa quando puder vir a ser legitimada como sendo uma regra que valha universalmente, sendo esta a máxima recomendável. Mas, uma segunda máxima kantiana é anunciada. Diz respeito ao fato de ter a humanidade como fim e nunca

20

A fim de um aprofundamento sobre a universalização em Kant cf. MUNZEL, J. F. (1999). Kant’s Conception of Moral Character. Chicago: The University Press, p. 28-52.

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Ponderações sobre a filosofia moral de Kant, pp. 242-261 como meio, tendo, também neste caso peculiar, um imperativo prático, assim concebido: “Age de tal maneira que possas usar a humanidade tanto em tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (Fundamentação, p. 59). Outrossim, Kant defende que o ser humano precisa encontrar os padrões universais não de maneira externa a ele mesmo, uma vez que é dotado de razão. Ele discorre que a coerção não deve advim de fora do sujeito, mas de dentro dele mesmo, dado que deve ser um sujeito esclarecido, autônomo, já que é racional, e não um infante, que depende da exterioridade e se deixa, sem poder discernir, coagir por isso. No centro da teoria ética de Kant está a afirmação de que adultos normais são capazes de se autogovernar completamente em assuntos morais. Na terminologia de Kant, somos “autônomos”. A autonomia tem dois componentes. O primeiro é que nenhuma autoridade externa a nós é necessária para constituir ou nos informar das demandas da moralidade. Cada um de nós sabe, sem que seja dito, o que deveria fazer porque as exigências morais são exigências que nos impomos a nós mesmos. O segundo é que no autogoverno podemos efetivamente nos controlar a nós mesmos. As obrigações que impomos a nós mesmos passam por cima de todos os outros chamados à ação e frequentemente vão contra nossos desejos. Apesar disso, sempre temos um motivo suficiente para agir conforme deveríamos. Por conseguinte, nenhuma fonte externa de motivação é necessária para que nossa autolegislação seja eficiente em controlar nosso comportamento. (cf. SCHNEEWIND, 2009, p. 367). No mais, a adesão à ordem não deve se dá pelo fato desta advir de fora, mas do próprio sujeito. “Não há espaço para que outros nos digam o que a moralidade exige, nem pessoa alguma tem autoridade para isso – nem nossos próximos, nem os magistrados e suas leis, nem mesmo aqueles que falam em nome de Deus.” (SCHNEEWIND, 2009, p. 371). Kant apregoava o sapere aude (ouse saber) (cf. KANT, 2005, p. 63-64), sendo avesso a qualquer controle moral (sendo aquele religioso o que ele considerava o mais pernicioso)21 que não fosse oriundo da autonomia do sujeito, que pauta suas ações na eticidade e que não é tutelado. Kant não negava a importância moral da ação beneficente, mas sua ênfase teórica na importância da obrigação ou da necessidade moral reflete sua rejeição do paternalismo benevolente e do servilismo que o acompanha, assim como a centralidade da autonomia na sua teoria mostra seu objetivo de limitar o controle político e religioso sobre nossas vidas. (cf. SCHNEEWIND, 2009, p. 374).

21

Relativamente à crítica kantiana endereçada à religião estatutária, em confronte com a religião da razão, que tem o respaldo do filósofo cf. KANT, I. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992, como também REBOUL, O. Kant et la religion. Revue d´histoire et de philosophie Religieuses, v. 50, n. 2, p. 137-153, 1970.

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Considerações finais A propósito de conclusão, poder-se-ia asserir que o ser humano, caso fosse restringido à constatação de que se encontra inserido no mundo natural, não teria liberdade. Advém que, enquanto pertencente ao mundo fenomênico ele é condenado por leis que não tem como ser ludibriadas. Neste senso, não parece desmedido dizer que as leis físicas anulam a liberdade, uma vez não tem como se esquivar daquilo que está sujeito às leis da natureza. Resta, portanto, tomar a liberdade a partir do prisma moral, do comportamento. Este é, sem dúvida, o dispositivo que Kant encontrou para engendrar seu vultoso pensamento ético. Enfim, a questão da liberdade, que reza a autonomia do sujeito, abrevia o pensamento ético de nosso filósofo e, de igual modo, o que defendemos neste ensaio, tendo ela perpassado, ainda que implicitamente, o texto.

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“O DESCONHECIDO QUE PASSA”: FLÂNERIE, EROTISMO E JOGOS DE AZAR NO EMERGIR DA MODERNIDADE Anita Rivera Guerra1

RESUMO: O presente trabalho busca analisar obras literárias de Charles Baudelaire, Álvares de Azevedo, Fiodor Dostoievski e Stéphane Mallarmé a partir de três temáticas correntes em suas obras: o tédio, o acaso e os jogos de azar. Relacionando os temas entre si e analisando-os sob as perspectivas da flânerie e do erotismo, ambos elementos fundamentais do éthos corrente na intelectualidade boêmia da época, o objetivo é compreender como, na segunda metade do século XIX, as novas configurações urbanas – como o surgimento das multidões – influenciaram subjetivamente os autores analisados, além de como as temáticas em questão aparecem em suas obras. A partir dessas percepções, investigaremos como o acaso atua não apenas como temática, mas como a própria forma poética, e permite uma reflexão em torno da suspensão e da dissolução mútua da noção de Eu e Outro tanto na literatura quanto na vida social. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade; literatura; acaso; jogos de azar; multidão RÉSUMÉ: Le présent travail vise à analyser les œuvres littéraires de Charles Baudelaire, Álvares de Azevedo, Fiodor Dostoievski et Stéphane Mallarmé à partir de trois thèmes récurrent de ses œuvres: l'ennui, le hasard et le jeu. En rapprochant les thèmes et en les analysant sous les angles de la flânerie et de l’érotisme, éléments fondamentaux de l’ethos actuel de l’intelligentsia bohémienne de l’époque, l’objectif est de comprendre comment, dans la seconde moitié du XIX, l'émergence des multitudes ont subjectivement influencé les auteurs analysés, ainsi que la façon dont les thèmes en question apparaissent dans leurs œuvres. À partir de ces perceptions, nous étudierons comment le hasard agit non seulement en tant que thématique, mais en tant que forme poétique elle-même et permet une réflexion sur la suspension et la dissolution mutuelle de la notion de Soi et d’Autre dans la littérature et la vie sociale. MOTS CLEFS: Modernité; littérature; hasard; jeu; multitude 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. anita.rg@hotmail.com

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Charles Baudelaire, em seu Spleen de Paris (1869), narra uma noite de jogatina com o Diabo. Distraído, o narrador aposta – e perde – a alma. Tal perda, porém, não significa mais para ele que o sumiço de “um cartão de visitas num passeio” (BAUDELAIRE, 2018, p. 77) – salvo quando seu oponente, “o jogador generoso” (BAUDELAIRE, 2018, p. 76) que intitula o conto, concede-lhe, como forma de compensar a alma perdida, a possibilidade de realizar todos os desejos mundanos para acabar com “essa bizarra sensação de tédio que é a fonte de todas as suas doenças e de todos os seus miseráveis progressos” (BAUDELAIRE, 2018, p. 80). A palavra “spleen”, em Baudelaire, se refere justamente a esse sentimento de melancolia, tédio e desânimo que aparece persistentemente em sua obra. Na série de poemas homônimos, do livro As flores do mal (1857), o autor afirma que “O tédio, taciturno exílio da vontade,/Assume as proporções da própria eternidade” (BAUDELAIRE, 2012, p. 283). O tédio parece ser um Zeitgeist da modernidade emergente do século XIX; outros autores da época, dentro e fora da Europa, exploram o sentimento em suas obras. O brasileiro Álvares de Azevedo, por exemplo, em Noite na taverna – publicada postumamente em 1855, três anos após a morte prematura do autor, que faleceu de tuberculose aos 20 anos – narra, sob a voz de Bertram, um jogo em que aposta a amante, de quem havia se cansado: “A saciedade é um tédio terrível” (AZEVEDO, 2009, p. 30). Fiodor Dostoievski, em O jogador, de 1866, também traz a questão do tédio sentido pelo protagonista Alexis Ivanovich após ganhar uma fortuna na roleta e vivenciar a experiência burguesa da Paris oitocentista. Walter Benjamin associa esse sentimento à perda da “experiência” que a modernidade trouxe; à indiferença dos habitantes das cidades em rápida expansão e desenvolvimento tecnológico. Essa indiferença – o spleen – seria uma consequência dos “choques” sofridos por esses indivíduos bombardeados constantemente pelos estímulos dos novos centros urbanos, uma forma do consciente se proteger dos choques traumáticos que acaba por deixá-lo amortecido. Para o autor, a aposta “é uma forma de emprestar aos acontecimentos um caráter de choque, de subtraílos do conceito da experiência” (BENJAMIN, 1994, p. 129) – nas três obras citadas, a temática do tédio aparece ligada diretamente ao jogo de azar. Os jogos de azar seriam, assim, um dos mecanismos

compensatórios

dos

sujeitos

modernos

nessa

dinâmica

cíclica

de

estímulo/amortecimento, como nos mostra Dostoievski: “Talvez, depois de ter passado por um número tão grande de sensações, a alma não possa deleitar-se, exigindo novas sensações, sempre Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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“O desconhecido que passa”: flânerie, erotismo e jogos de azar no emergir da modernidade, pp. 262-270 mais violentas, até o esgotamento total” (DOSTOIEVSKI, 2011, p. 87). Os jogadores do conto de Baudelaire também experimentam essa exigência de “novas sensações”: “jamais vi olhos brilhando mais energicamente do horror do tédio e do desejo imortal de se sentir viver” (BAUDELAIRE, 2018, p. 78). Para Benjamin, a partir de Bergson e sua obra Matéria e memória (1896), o conceito de experiência está intimamente ligado aos de memória e tradição. Não seria, portanto, referente à experiência do homem moderno, mas à de um tempo em que se valorizava a experiência precedente, como o próprio Benjamin ilustra em “Experiência e pobreza” com a fábula do pai moribundo que ensina os filhos a alcançarem o sucesso através do trabalho ao enganá-los, dizendo que havia um enorme tesouro sob suas videiras e obrigando-os, assim, a arar arduamente a terra (BENJAMIN, 1987). A experiência moderna iria no sentido oposto: o que importa é o presente, a matéria; transforma o choque em vivência ao invés de experiência, tornando-o “estéril para a experiência poética” (BENJAMIN, 1994, p. 110). “[Os jogadores] vivem sua existência de autômatos e se assemelham às personagens fictícias de Bergson, que liquidaram completamente a própria memória” (BENJAMIN, 1994, p. 128). Benjamin compara o jogo de azar ao trabalho dos operários não-especializados nas linhas de produção das fábricas; ambos conservam “a inutilidade, o vazio, o não poder concluir” (BENJAMIN, 1994, p. 127), uma ausência de continuidade; “ambas as ocupações estão isentas de conteúdo” (BENJAMIN, 1994, p. 127). E ambos só poderiam existir desta forma na sociedade moderna: com as máquinas instrumentalizando os operários e a burguesia adotando a prática do jogo, que até o século XIX era exclusiva da aristocracia (BENJAMIN, 1994). Dostoievski trabalha a diferença entre os jogadores burgueses e aristocratas em O Jogador: “Há dois jogos: o dos cavalheiros e o da plebe” (DOSTOIEVSKI, 2011, p. 11). Os “cavalheiros” não se importariam em ganhar ou perder e apostariam quantias modestas, estariam ali apenas pelo amor ao jogo; “este desprezo pela questão do lucro, por sua parte, é muito aristocrático...” (DOSTOIEVSKI, 2011). Mas Benjamin reconhece que há uma diferença essencial entre o jogador e o operário; “falta a esse último o traço da aventura, a Fada Morgana que seduz” (BENJAMIN, 1994, p. 127). Nas linhas de produção não há espaço para o acaso; tudo é programado e previsível. E é justamente o acaso o que dá sentido ao jogo.

Vós todos, que amais o jogo, que vistes um dia correr naquele abismo uma onda de ouro – redemoinhar-lhe no fundo, como um mar de esperanças que se embate na ressaca do acaso, sabeis melhor que vertigem nos tonteia então: ideais melhor a loucura que nos delira

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“O desconhecido que passa”: flânerie, erotismo e jogos de azar no emergir da modernidade, pp. 262-270 naqueles jogos de milhares de homens, onde fortuna, aspirações, a vida mesma vão-se na rapidez de uma corrida, onde todo esse complexo de misérias e desejos, de crimes e virtudes que se chama a existência se joga numa parelha de cavalos. (AZEVEDO, 2009, p. 57)

Para Benjamin, o lucro aparece como o fim último do jogo – “o jogador parte do princípio do ganho – isso é o óbvio” (BENJAMIN, 1994, p. 128). Embora reconheça que existe uma “determinação obscura” que move o jogador, afirma que “em todo caso, ele não se encontra em condições de dar à experiência a devida importância” (BENJAMIN, 1994, p. 128-129). Álvares de Azevedo explicita, na passagem acima, que não é o lucro o leitmotiv do jogador; o que está em jogo é a própria existência. O que se lança nas mãos do acaso não é apenas o dinheiro, é a vida em si – se não o fosse, qualquer um abandonaria as apostas depois de ganhar uma soma alta na sorte. Por isso se põe tudo a perder – há um ímpeto de se continuar a apostar mesmo após desafiar a sorte repetidas vezes. Dostoievski demonstra o mecanismo: Creio que a soma que eu tinha em mãos subiu a quatrocentos fredericos em alguns minutos. Neste momento eu poderia ter saído, mas uma sensação estranha se manifestou em mim: um desejo de provocar o destino, de lhe dar um piparote, deixá-lo de língua de fora. Arrisquei o lance mais alto que era permitido, quatro mil florins e perdi. Em seguida, entusiasmado, apanhei tudo o que me restava e repeti a aposta anterior e perdi novamente. Atordoado, abandonei a mesa. (DOSTOIEVSKI, 2011, p. 18)

Não é a avareza que move o jogador, mesmo o da “plebe”, é o risco; não foi pelo lucro que Alexis Ivanovich não abandonou a mesa, foi pelo “desejo de provocar o destino”. O acaso pressupõe o risco. Lançar algo ao acaso é perder o controle sobre seu destino, é lançá-lo à sorte – ou ao azar. Baudelaire, no poema “O Sol”, fala de seu processo criativo como uma busca dos “acasos da rima”;

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros Persianas acobertam beijos sorrateiros, Quando o impiedoso sol arroja seus punhais Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais, Exercerei a sós a minha estranha esgrima, Buscando em cada canto os acasos da rima, Tropeçando em palavras como nas calçadas, Topando imagens desde há muito sonhadas.

(BAUDELAIRE, 2012, p. 307)

A própria criação literária se dá, assim, como um lançamento de si ao acaso. O poeta caminha pelas ruas da cidade em busca de rimas, palavras e imagens que estão vagando por aí – está nas mãos do acaso se eles se encontrarão. É a figura do flâneur que caça, no meio da multidão, aquela centelha Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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“O desconhecido que passa”: flânerie, erotismo e jogos de azar no emergir da modernidade, pp. 262-270 do acaso que resulta na poesia; o movimento das mãos de uma passante alta e esguia por entre os corpos da multidão, seu olhar, “céu lívido onde aflora a ventania” (BAUDELAIRE, 2012, p. 307), que se encontra com o dele uma única vez, por não mais que um instante, para nunca mais – mas que guarda, em si, a potência da ventania, a suspensão do porvir. Um porvir que, por nunca vir, não deixa nunca de ser potência.

A uma passante A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa Erguendo e sacudindo a barra do vestido. Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina. Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade? Longe daqui! tarde demais! nunca, talvez! Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! (BAUDELAIRE, 2012, p. 331-333)

O acaso não tem passado ou futuro; ele é o presente inflado que ocupa o lugar do eterno. Pouco importa para onde vai ou de onde veio a passante de Baudelaire, pouco importa quem era o próprio Baudelaire na cena; e é justamente essa a razão de ser do breve “amor” entre os dois. Baudelaire afirma que Isto que os homens denominam amor é bem pequeno, bem restrito, bem frágil comparado a esta inefável orgia, a esta solta prostituição da alma que se dá inteiramente, poesia e caridade, ao imprevisto que se apresenta, ao desconhecido que passa. (BAUDELAIRE, 2018, p. 18).

Georges Bataille, em A literatura e o mal, diz que “a essência da poesia de Baudelaire (...) é operar, ao preço de uma tensão ansiosa, a fusão com o sujeito (a imanência) desses objetos, que se perdem para causar a angústia e ao mesmo tempo refleti-la” (BATAILLE, 1989, p. 37) (grifo do autor). A imagem da “orgia” a que o poeta alude – temática, aliás, recorrente em sua obra e na de Álvares

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“O desconhecido que passa”: flânerie, erotismo e jogos de azar no emergir da modernidade, pp. 262-270 de Azevedo – também remete à fusão entre sujeito e objeto. Os corpos em profusão, entregues ao prazer como num ritual, não são mais do que essa fusão – o corpo entregue ao erotismo é, em última instância, o corpo em que “EU me perco” (BATAILLE, 2017, p. 55). Entregar-se ao prazer imediato é, para Bataille, entregar-se à violência – o erotismo está sempre ligado à violência: “Que significa o erotismo dos corpos senão uma violação do ser dos parceiros?” (BATAILLE, 2017, p. 41). Essa entrega se dá no âmbito da transgressão, que se opõe ao interdito – este último, intimamente ligado ao trabalho, pressupõe um futuro; atua enquanto negação da morte, do incontrolável, do acaso. A transgressão, ao contrário, é “o abandono imediato ao excesso” (BATAILLE, 2017, p. 64); como o acaso, não há passado ou futuro. No mundo do interdito, “os movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo, não são admitidos” (BATAILLE, 2017, p. 64). Ao mesmo tempo, um não pode existir sem o outro; a transgressão assusta e fascina o interdito, e, por vezes, reforça suas limitações – “a transgressão não é a negação do interdito, mas o supera e completa” (BATAILLE, 2017, p. 87). Para Benjamin, o flâneur é necessariamente uma figura transgressora; “no fundo, o indivíduo só pode flanar se, como tal, já se afasta da norma” – se pensarmos no “prazer que assassina” inspirado pela passante, a afirmação de Benjamin nos leva imediatamente a Bataille. O flâneur encontra esse prazer violento, assassino, no instante em que seu olhar se cruza com o da mulher desconhecida – esse instante em que sujeito e objeto se suspendem e se confundem. Assim a poesia se coloca, também, como transgressão. Baudelaire constrói sua poética a partir da própria dissolução ao lançar-se em direção à imanência do “desconhecido que passa” e que não pode permanecer, à breve troca de olhares com a passante – é o flâneur se entregando à violência do acaso. Não por acaso, as narrativas de Baudelaire e Azevedo costumam relacionar o tema do jogo ao do erotismo – e, não raro, ao do duelo: “Quis esquecê-la no jogo, nas bebidas, na paixão dos duelos. Tornei-me um ladrão nas cartas, um homem perdido por mulheres e orgias, um espadachim terrível e sem coração.” (AZEVEDO, 2009, p. 29). Baudelaire, em As flores do mal, coloca a “Orgia e a Morte” como “duas boas irmãs” (BAUDELAIRE, 2012, p. 383). O próprio Bataille era um libertino e frequentador assíduo das mesas de jogos (BATAILLE, 2018); Benjamin afirma que “o jogador diz ‘meu número’ como o libertino diz ‘meu tipo’” (BENJAMIN, 1994, p. 129). Há algo em comum entre os três que suspende a linha contínua do tempo e funde os seres em questão – o “abandono imediato ao excesso” do destino, do prazer e da possibilidade da morte.

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“O desconhecido que passa”: flânerie, erotismo e jogos de azar no emergir da modernidade, pp. 262-270 Lançar-se ao acaso pressupõe uma suspensão. Alexis Ivanovich narra que, entre uma aposta alta e o resultado enunciado pelo crupiê, “houve um momento de expectativa, uma emoção semelhante, talvez, àquela que experimentou a Senhora Blanchard quando despencou de um balão de Paris” (DOSTOIEVSKI, 2011, p. 86). Sophie Blanchard, aviadora e esposa do inventor do paraquedas, morreu quando seu balão de hidrogênio foi incendiado em um espetáculo de fogos de artifícios, em 1819. Existe algo entre o subir aos céus e o se estatelar na terra, uma espécie de purgatório em que o sujeito se vê momentaneamente – por não mais que um instante – suspenso, submetido à violência do acaso. Esse instante se traduz na eternidade. Bataille cita Rimbaud, “um dos poetas mais violentos”, para concluir que a poesia “nos conduz à eternidade, nos conduz à morte e, pela morte, à continuidade: a poesia é a eternidade. É o mar partido com o sol” (BATAILLE, 2017, p. 48) (grifo do autor). Nesse purgatório também está a poesia. Na “estranha esgrima” de Baudelaire também há violência; o risco de perder o duelo e, consequentemente, o risco da morte. O que é narrado não é o encontro ou a perda dos “acasos da rima”, é sua procura – talvez o risco esteja tanto em encontrálas quanto em perdê-las. O flâneur está suspenso entre essas duas possibilidades como o está em relação à modernidade – e à consequente multidão – que o rodeia: “O poeta goza desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de qualquer um” (BAUDELAIRE, 2018, p. 18). Como uma alma lançada ao acaso, o poeta-flâneur transita por entre os corpos e as narrativas, desencarnado, despossuído. Para Bataille, “entre um ser e outro há um abismo, há uma descontinuidade” (BATAILLE, 2017, p. 36); uma “violência elementar” (BATAILLE, 2017, p. 48) que define a alteridade de ambos. A poesia – e o erotismo – seriam uma tentativa de buscar uma continuidade entre esses dois seres a partir, inevitavelmente, da violência; da rememoração da morte, da possessão do corpo alheio e da suspensão do próprio corpo e, com isso, reafirmar a própria existência. Quando Baudelaire afirma o flâneur como “um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vívidas que a própria vida” (BAUDELAIRE, 1996, p. 21. Grifo do autor.) ele traz à tona justamente esse mecanismo de possessão e despossessão dos sujeitos; um mecanismo que constantemente faz o Eu rememorar sua unicidade a partir do choque com o Outro. Benjamin fala do duelo de Baudelaire consigo mesmo como uma inserção da “experiência do choque no âmago de seu trabalho artístico” – para duelar consigo mesmo é necessário reconhecer-se tanto como Eu quanto como Outro, chocar-se com a própria descontinuidade. O flâneur não encontra a poesia quando é só o Eu ou só o Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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“O desconhecido que passa”: flânerie, erotismo e jogos de azar no emergir da modernidade, pp. 262-270 Outro, mas no momento de suspensão entre essas duas coisas – quando tanto um quanto o outro podem ser tanto um quanto outro – na poesia, no erotismo, nos jogos de azar; “a passagem implica entre os dois um instante de continuidade” (BATAILLE, 2017, p. 38. Grifo do autor).

O relógio Relógio! deus sinistro, hediondo, indiferente, Que nos aponta o dedo em riste e diz: “Recorda! A Dor vibrante que a lama em pânico te acorda Como num alvo há de encravar-se brevemente; Vaporoso, o Prazer fugirá no horizonte Como uma sílfide por trás dos bastidores; Cada instante devora os melhores sabores Que todo homem degusta antes que a morte o afronte. [...] Virá a hora em que o Acaso, onde quer que te aguarde, Em que a augusta Virtude, esposa ainda intocada, E até mesmo o Remorso (oh, a última pousada!) Te dirão: Vais morrer, velho medroso! É tarde!” (BAUDELAIRE, 2012, p. 301).

A linha contínua do tempo leva ao futuro; o futuro de todo homem é a morte. A busca desse instante de continuidade, de eternidade, de fusão entre o Eu e o Outro, entre o sujeito e o objeto, “é o desejo imortal se sentir viver” dos jogadores de Baudelaire. Talvez seja esse trânsito entre os corpos – o momento em que não existe corpo – a própria razão de ser da poesia e da literatura em geral. Bataille utiliza a afirmação de Sartre, sobre Mallarmé, de que em sua obra “‘leitor e autor se anulam ao mesmo tempo, se aniquilam reciprocamente para que, finalmente, só o Verbo exista’” para dizer que isso ocorre “‘em toda parte em que a literatura se manifesta’” (BATAILLE, 1989, p. 166). A poesia de Mallarmé é construída pelo acaso – não apenas na temática, mas na própria forma poética. Mallarmé lança a linguagem ao acaso como os jogadores lançam a própria existência. Um lance de dados, de 1897, narra uma partida entre o homem e o acaso, em que o Pensamento – a linguagem, a poesia – se suspende face ao Acaso, a morte ou o nada, e se torna ele próprio acaso; “Todo Pensamento emite um Lance de Dados” (MALLARMÉ, 2013, p. 103). Jogam-se os dados contra o acaso, para lutar contra ele, contra o incontrolável e, em última instância, contra a morte; busca-se a continuidade. Ao mesmo tempo dessa revolta perante o acaso, Mallarmé reconhece que não é possível vencê-lo – “um lance de dados jamais abolirá o acaso”. A poesia se coloca como essa Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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“O desconhecido que passa”: flânerie, erotismo e jogos de azar no emergir da modernidade, pp. 262-270 tentativa de continuidade, de enfrentar a morte para reconhecer a própria existência; Bataille de certa forma disse, ao comparar o erotismo à poesia, que ela “é a aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2017, p. 35). Como Baudelaire, lançando-se à procura dos “acasos da rima” sem dizer se o risco está em encontrá-los ou não, a poesia se coloca enquanto busca, e a busca pressupõe falta. Talvez o acaso apareça como a possibilidade de trazer esse algo que falta. A busca pela eternidade – a poesia, o erotismo, o jogo – é negar a morte; o sujeito transforma-se em acaso para lutar – em vão, diria Mallarmé – contra o próprio acaso.

REFERÊNCIAS

DOSTOIEVSKI, Fiodor. O jogador. Porto Alegre: L&PM, 2011. BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. ______. História do olho. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. ______. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989. AZEVEDO, Álvares de. Noite na Taverna. Porto Alegre: L&PM, 2009. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. ______. O Spleen de Paris: Pequenos poemas em prosa. Porto Alegre: L&PM, 2018. ______. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire” In Obras escolhidas v. III. São Paulo: Brasiliense, 1994. ______. “Experiência e pobreza” In Obras escolhidas v. I. São Paulo: Brasiliense, 1987. MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013.

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283

O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE DA FORMA NOS LIVROS Z E H DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES* Yasmin Tamara Jucksch1

RESUMO: A candidatura dos universais (e, por conseguinte, dos gêneros) ao título de substância é veementemente descartada na Metafísica, uma vez que para Aristóteles o domínio sensível não pode ser explicado pela sua fundação em um domínio supra-sensível que seria dotado, este sim, de substancialidade. Essa impossibilidade se daria, dentre outras razões, pelo fato de que a ousía deve atender aos requisitos de determinabilidade e separabilidade, sendo, portanto, peculiar àquilo que não pode ser predicado de mais nada. O problema que nos interessa aqui é uma das principais consequências que se originam no interior dessa teoria, que preconiza que (i) nenhum universal pode ser substância, (ii) a forma não é universal, mas, ao contrário, substância primária e (iii) a forma é uma especificação comum a vários membros de uma espécie ínfima. Neste texto, nosso intuito será o de analisar duas discussões relativas a esta problemática, ambas desembocando em conclusões notadamente distintas: trata-se da posição de Lesher (1971) e da solução proposta por Frede (1987), tomando como apoio também os comentários de Ross, na sua introdução à Metafísica, sobre a aparente inconsistência entre o trio das teses aristotélicas que afirmam a cognoscibilidade suprema da forma, a caracterização da forma como individual e a indefinibilidade do individual. PALAVRAS-CHAVE: Metafísica, substância, forma, universais. ABSTRACT: The aspiration of the universals (and, consequently, of the genera) to the status of substance is strongly refuted in the Metaphysics, as Aristotle affirms that the sensible realm cannot be explained by its foundation in a suprasensible realm that would be endowed with substantiality. Among other factors, this impossibility is attributed to the fact that the ousía must meet the requirements of determinability and separability, thus being peculiar to what cannot be predicated * O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes/soal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. 1 Doutoranda em filosofia – USP. yasminjucksch@hotmail.com

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 of anything else. The problem discussed in this article is one of the main consequences generated within this theory, affirming that (i) no universal can be a substance, (ii), the form is a primary substance rather than universal, and (iii) the form is a common specification to several members of a species. The present article aims at analyzing two discussions concerning this problem, each one reaching a distinct conclusion: the position of Lesher (1971) and the solution proposed by Frede (1987), also supported by the commentaries of Ross in his introduction to the Metaphysics, regarding the apparent inconsistency between the three Aristotelian theses alleging the supreme cognoscibility of the form, the characterization of the form as individual, and the undefinability of the individual. KEY-WORDS: Metaphysics, substance, form, universals. 1. Introdução Não pairam dúvidas sobre o fato de que, no Livro Z da Metafísica, a tese de que nenhum universal possa ser substância esteja bem estabelecida e demarcada por Aristóteles. A candidatura dos universais (e, por conseguinte, dos gêneros) ao título de substância (“não de substância individual, mas de elemento substancial nas coisas individuais”, segundo Ross, 1924, pp. 93) é veementemente descartada ao longo de Z13 a Z16. A principal das teses adversárias visadas é, evidentemente, a Teoria das Ideias platônica, cujo escopo primordial é a indicação da ousía como aquilo que é o ser, a verdadeira realidade. Dado que sua força ontológica deriva da não admissão da mudança, essa realidade encontra-se em franca oposição ao domínio do vir-a-ser, do fluxo temporal dos seres que aparecem e desaparecem nos vagalhões da geração e da destruição2. Em Platão, o domínio daquilo que tem atemporalidade e imutabilidade tem como característica primordial, evidentemente, uma estabilidade ontológica máxima que jamais poderá ser atribuída aos seres sujeitos à mudança. A demarcação de Aristóteles da diferença entre essa teoria e a sua própria pode ser basicamente indicada pela imanência que ele passa a atribuir às formas, em contraste com a transcendência reificada que ele compreende nas Ideias platônicas. Para o autor da Metafísica, o domínio sensível não pode ser explicado pela sua fundação em um domínio supra-sensível que seria dotado, este sim, de substancialidade, dado que, dentre outras razões, a ousía deve atender aos requisitos de determinabilidade e separabilidade. Obviamente, o fato de que tais requisitos não devem ser compreendidos no sentido de que um gênero determinado possa ser separado dos individuais é um truísmo; na verdade, o sentido dessa determinação é o de que a ousía será peculiar àquilo que não pode ser predicado de mais nada (“For primary substance is that kind of substance 2

Ver por ex. PLATÃO, Fédon, 78c; 92d; Fedro 237c; 245e; Timeu, 29c; 35a-b; República, 509b; 535c.

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 which is peculiar to an individual, which does not belong to anything else” [Aristóteles, Metafísica, 1038b8-9]). O problema que nos interessa aqui, exatamente, não é a maneira como Aristóteles argumenta em favor desta tese contra os platônicos ou Platão, mas sim uma das principais consequências que se originam no interior da sua própria teoria. Tentemos apresentá-la do seguinte modo: se (i) nenhum universal pode ser substância (a Exclusividade Mútua3 de Lewis); (ii) a forma não é universal4, mas tomada como a substância primária; (iii) a forma é uma especificação comum a vários membros de uma espécie ínfima, segue-se daí uma dificuldade de não pouca monta no caminho da compreensão da ousía enquanto conceito medular do corpo conceitual da metafísica aristotélica, pois, a menos que possamos distinguir diferentes sentidos para os termos que aparecem nas afirmações acima, teremos um problema lógico de não somenos importância. Neste texto, nosso intuito será o de analisar duas discussões relativas a essa problemática, ambas desembocando em conclusões notadamente distintas: trata-se da posição de Lesher (1971)5 e da solução proposta por Frede (1987), tomando como apoio também os comentários de Ross, na sua introdução à Metafísica, sobre a aparente inconsistência entre o trio das teses aristotélicas que afirmam a cognoscibilidade suprema da forma, a caracterização da forma como individual e a indefinibilidade do individual.

2. Problemática Depois de afirmar que o primeiro dos sentidos do ser corresponde à substância (“(...) a classe dos predicados que significam a substância é chamada de categoria da essência” [MANSION, 2009, pp. 80), indicando-a como sujeito determinado em contraste com predicados que só secundariamente são substâncias, Aristóteles decide investigar a substância para aquém de sua própria posição teórica, isto é, nos registros de seus antecessores. Ele o faz incluindo na arena não só seus próprios candidatos especiais, o substrato e o tò ti ên eînai, mas também os gêneros e os

3

“X é universal a y e z (y ≠z), somente se x não é substância nem de y ou de z”. (LEWIS, 2013, p. 203, tradução nossa). A individualização da forma contradiz, prima facie, a afirmação reiterada de que não é a forma, mas a matéria que individua (1034a5-8; 1054a34; 1074a31-34). Frede-Patzig (1988) I, 39 and 52, II, 256–7, and Irwin (1988), cap. 12, apud Lewis, p. 231, n. 64, entendem que a doutrina aristotélica indica formas essencialmente individuais, enquanto que o que é defendido por Lesher (e tomado como pressuposto por Lewis [2013, p. 231 e 210] para sua tentativa de solução), é que a forma deve ser necessariamente predicada de todos os membros de uma espécie determinada, i.e., universal em sua definição. 5 Publicação original. Neste estudo, fizemos uso da tradução por Paulo Fernando Tadeu Ferreira, In: ZINGANO, 2009. 4

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 universais, que posteriormente acabarão sendo descartados em conjunto, sob os mesmos argumentos. Embora sua preocupação com as substâncias não sensíveis o faça avançar para além de Z e H, o seu propósito basilar aqui é o trabalho anterior do bosquejo da natureza da substância primeira (1028b30-32). Portanto, é através da análise dessa candidatura quádrupla que ele poderá manifestar seu método na Metafísica, que é em sua maior parte, diz-nos Ross, (...) not that to advance from premises to conclusion, but a working back from commonsense views and distinctions to some more precise truth of which they are an inaccurate expression, and the confirmation of such truth by pointing out the consequences of its denial (ROSS, 1924, p. 77).

Essa descrição parece ser bastante apropriada para o exato modo pelo qual Aristóteles procede a sua lapidação da substância no processo de candidatura à ousía. Trata-se primeiro de depurar a noção de substrato como substância, começando por vedar a possibilidade de se identificar o substrato como a matéria indeterminada; por não ser separada nem determinada, a matéria em geral “não é chóristón e não é tóde ti” (MANSION, 2009, p. 82). No que se refere à substância sensível, “a forma (...) é sempre forma de um composto, sendo imanente a algo que tem uma matéria do qual é feito”, (ZINGANO, 2003, p. 290), ao passo que a matéria só é alguma coisa graças à forma. “And so form and the compound of form and matter would be thought to be substance, rather than matter” (Metafísica, 1029a29-30). Abandonando a matéria indeterminada e buscando o que é mais causal no composto matéria e forma, Aristóteles chega à forma enquanto essência, e passa a examiná-la em um processo que culmina na sua eleição como a candidata vitoriosa no páreo aristotélico da busca pela substância. Essência, tò ti ên êinai, é o que ele descreve ser “what it is said to be in virtue of itself” (1029b18-19), cujo correspondente linguístico da essência é uma definição em sentido estrito (1029b13-1030a17). O problema em questão é como salvaguardar a radicalização da Metafísica em relação às Categorias no que diz respeito à determinação da ousía: a posição anterior – mais confortável – de que o composto é que seria a substância é modificada pra que se possa assumir agora, na Metafísica, que é a forma (com sua preeminência e preponderância sobre a matéria e o composto) a verdadeira ousía. Este brilhante resultado da lapidação da sua teoria da substância, contudo, dá abertura para um questionamento que se impõe imediatamente: se a forma não é universal, mas é o princípio do ser e do movimento, como poderá ser individual? Aristóteles repete veementemente que a ousía deverá ter as características que o universal, obviamente, jamais terá: a autonomia (katá autó),

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 individualidade (tóde ti) e separação (tò choristón), sendo o sujeito último de predicação (καὶ γὰρ τὸ χωριστὸν καὶ τὸ τόδε τι ὑπάρχειν δοκεῖ μάλιστα τῇ οὐσίᾳ, 1029a27-28)6. Entretanto, observamos claramente que a forma se repete dentre os membros de uma determinada espécie. Desse ponto de vista, a forma como espécie não poderia ser substância, pois é comum; ou, nos termos usados por Frede no exemplo de Theoris I e II (FREDE, 1987, p. 76-77)7, a pergunta poderia ser reposta do seguinte modo: como duas ou mais formas idênticas podem ser particulares se suas especificações são as mesmas nos mínimos detalhes? De qualquer modo, é preciso partir do fato claro de que Aristóteles já firmou sua posição de que o que um objeto é, é de fato a sua forma (1038b10-17, 1032b1-2, etc.).

2.1 . A solução de Frede (1987) Parece-nos que podemos dizer que a solução de Frede, ao argumentar a favor da possibilidade de salvaguardar a teoria aristotélica desta aparente inconsistência, lança mão (como seu trunfo principal) da relação que há entre, de um lado, uma forma realizada em ato em um composto, como tóde ti, e de outro o esteio temporal específico no qual essa realização das propriedades se dá de maneira única. Ademais, parece-nos que com essa solução ele também acaba se aproximando da diferenciação sutil pontuada por Ross e que ele afirma ser mal observada, quando requerido, entre o uso de forma como uma variedade do substrato, a configuração (shape) sensível e forma como tò tí ên eînai, a natureza inerente, aquilo que faz a coisa ser o que é8. Parece ser essa diferenciação uma das consequências da indicação de Frede de que, não obstante suas especificações idênticas, a diferença entre as formas de dois seres animados pode ser sustentada pela diferença que há entre a alma de Sócrates e a alma de Platão: ainda que as suas especificações formais enquanto homens sejam as mesmas, a forma de um difere da forma do outro (Metafísica, 1071a 24-29).

δὴ κατὰ δύο τρόπους τὴν οὐσίαν λέγεσθαι, τό θ' ὑποκείμενον ἔσχατον, ὃ μηκέτι κατ' ἄλλου λέγεται, καὶ ὃ ἂν τόδε τι ὂν καὶ χωριστὸν ᾖ· τοιοῦτον δὲ ἑκάστου ἡ μορφὴ καὶ τὸ εἶδος. (Metafísica, 1017b25); εἰ δέ τί ἐστι πρῶτον ὃ μηκέτι κατ' ἄλλο λέγεται ἐκείνινον, τοῦτο πρώτη ὕλη· οἷον εἰ ἡ γῆ ἀερίνη, ὁ δ' ἀὴρ μὴ πῦρ ἀλλὰ πύρινος, τὸ πῦρ ὕλη πρώτη οὐ τόδε τι οὖσα (Metafísica ,1049a24-27). 7 Frede dá um exemplo de um navio, que chama de Theoris. Ele é reformado muitas vezes até que as tábuas originais são totalmente substituídas. Mas o construtor usa as antigas tábuas e constrói outro navio com as mesmas especificações do primeiro. Claramente Theoris I é o antigo, e o navio com as velhas tábuas é o novo, Theoris II, embora suas tábuas e seu plano sejam idênticos ao do original , enquanto que o original tem tábuas novas. Theoris I é idêntico ao original porque havia uma disposição que era a das tábuas originais, depois a disposição de um conjunto de tábuas um pouco diferente, e finalmente, a disposição de um conjunto de novas tábuas. A disposição de Theoris II, embora seja a disposição do arranjo original de tábuas, e embora construído com a mesma especificação, não tem aquela mesma história e, consequentemente, não tem a disposição do navio original. 8 Cf. Ross, 1924, p. 94. 6 συμβαίνει

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 De fato, ele argumenta, as coisas têm a mesma forma no sentido de que coisas do mesmo tipo têm a mesma especificação de suas formas (1071a29); mas a distinção fática de formas particulares no mesmo ponto do tempo é possível de ser feita em matérias diferentes (como também aponta Lewis). E o fato de que a matéria possa mudar completamente (como no exemplo de um navio cujas partes são gradualmente substituídas e que, ao final, não possui nenhuma de suas tábuas originais), leva Frede a afirmar que, ainda assim, será possível fazer a identificação contínua no tempo de uma mesma forma porque ela simplesmente poderá ser identificada por sua história singular: “a particular form (...) can be identified through time by its continuous history of being realized now in this and now in that matter, of now being the subject of these and then being the subject of those properties” (FREDE, 1987, p. 78). A leitura de Frede busca nos convencer de que a forma substancial9 particular sintetiza a concretização temporal e individual de uma disposição que, mesmo sendo sempre igual a si mesma, comum a vários membros e anterior ao composto e ao tempo, só se realiza de fato na instanciação temporal. Diferentemente da tese platônica, aqui o tempo é fundamental para que o real se dê. Assim, a realização das capacidades de uma forma em um composto e em uma linha de tempo específico realiza uma trajetória que é própria e intransferível, a qual poderá assegurar a característica primária de individualidade da forma.

2.2 . A posição de Lesher (1971) Evidentemente, esta solução parece ter menos sucesso no caso dos entes inanimados. Para Lesher, a tese de que a forma possa ser, sem mais, tomada como individual, tenta debalde buscar apoio nas formas dos seres animados, em cujo domínio termos como “trajetória” ou “história” fazem algum sentido. É difícil encaixá-la nos mesmos moldes quando se trata de analisar, sob o mesmo escopo, as substâncias inanimadas (LESHER, 1987, p. 239). Embora Frede não conste entre os interlocutores de Lesher, a tentativa daquele de salvaguardar a individualidade das formas pelas suas realizações temporalmente específicas pode ser aqui seguramente confrontada com o texto de Lesher. Neste diálogo hipotético, provavelmente Lesher diria que a tese de Frede não pode se sustentar como teoria ontológica, dado que o fato de ser comum a vários membros é logicamente anterior às suas instanciações individuais; em se 9 Cf.

1042a3-15: “(...) it should be clear that Aristotle now does mean to say that substantial forms, rather than particular objects, are substances in primary sense” (Frede, 1987, p.80). “Aristotle (…) has come to assume separate substantial forms which , on his view, are paradigms of substances, but which are not substances in the same way as the composites or the concrete particular objects are” (Frede, 1987, p. 79).

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 tratando de forma, isso é essencial (“Form indicates a ‘such’, never a ‘this’, a characteristic, never the concrete thing that bears it”10). Isso necessariamente compromete Aristóteles com a tese de que a forma é universal, justamente porque é comum a vários ou a mais de um membro de uma espécie. “Existe apenas uma forma e, enquanto é peculiar ao indivíduo em um sentido, existe um segundo sentido, talvez mais relevante, em que Aristóteles se compromete com a universalidade da forma” (Lesher, 2009, p. 239). Lesher cita em seu favor as seguintes passagens, profícuas também para uma resposta hipotética a Frede: em 1034a5-8, Aristóteles afirma que “Sócrates e Cálias são diferentes, mas o mesmo em forma, pois a forma deles é indivisível”, e que “o que é comum a muitas coisas é um universal” (1038a28). Lesher também extrai da passagem de as Partes dos Animais (644a24-25) a afirmação aristotélica de que “esses indivíduos (Sócrates e Corisco) possuem uma forma específica comum” (apud Lesher, 2009, n. 2). Como os interlocutores de Lesher buscam argumentar a favor da negação dessa consequência não desejada por Aristóteles, isto é, da negativa de que a forma acabe sendo considerada como universal? Vejamos dois deles, cujas saídas são afetas à de Frede: Rogers Albritton11, que busca sustentar a ideia de que matéria, forma e força motriz são estritamente individuais (de acordo com Lambda, 1071a28) e que, como argumenta Frede, a forma de uma substância animada (a alma) é peculiar a ela (conforme a definição de alma contida nos Livros Z e H). Por outro lado, A. R. Lacey12 entende que Aristóteles esteja distinguindo diferentes sentidos de substância, e, na linha de Frede, afirma que a ousía não pode ser identificada com o objeto particular, mas sim que deve ser entendida como ousía deste objeto: “(...) termos como “homem” não são os mesmos de uma ousía no sentido em que alguém pode falar em uma ousía como um objeto, mas são usados para dizer o que a ousía de um objeto é” (Lacey apud Lesher, 2009, pp. 241). Lesher, ao contrário, visa mostrar que, ao fim e ao cabo, nem mesmo assim Aristóteles logra o intento de se desenredar da perturbadora consequência da universalidade da forma. Em resposta a Albritton, Lesher afirma que o sentido mais importante da forma é o da sua comunidade, e que, se Aristóteles afirma que a definição universal de cada uma das formas é a mesma (1071a29), então Albritton “(...) não pode concluir disso que a forma não é um universal, mas apenas que a forma existe apenas nas substâncias individuais que a têm”. “A doutrina da forma imanente de Aristóteles (...) não salvará Aristóteles das dificuldades presentes”, pois, para mostrar 10

Ross, 1924, p. 123. Rogers. “Forms of Particular Substances in Aristotle´s Metaphysics”, Journal of Philosophy, vol LIV, no. 22, 1957, p. 699-708. 12 LACEY, A. R. “Ousía and Form in Aristotle”, Phronesis, vol. X, no. 1 (1965), p. 54-69. 11 ALBRITTON,

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 que Aristóteles, no fim das contas, não provou a individualidade ontológica da forma, “temos apenas que encontrar evidências de que a forma é comum àquelas coisas que a têm, ‘uma vez que é chamado universal o que é tal que pertença a mais de uma coisa’ (1038b11-12)”. Já contra Lacey – que alega que a forma específica é dita substância apenas em um sentido diferente – Lesher argumenta que Aristóteles distingue tipos, e não diferentes sentidos de substância; e, ainda que os distinguisse, a teoria continuaria sujeita à inconsistência, dado que se, nenhum universal é substância, então nenhum universal será qualquer tipo que seja de substância. Não há evidência, segundo ele, para sustentar esta posição. A força [da afirmação de que nenhum universal poderá ser substância] tem de residir (...) no fato de que nenhum universal pode ser uma substância de qualquer tipo que seja; consequentemente, não será suficiente simplesmente sustentar que a forma específica é um tipo de substância diferente das substâncias que são compostos de forma e matéria. (LESHER, 2009, p. 241).

Além disso, Lesher aduz em seu proveito a força da unidade pròs hén: embora existam vários sentidos de é ou ser, a estrutura linguística da Metafísica de Aristóteles é a de que existe um sentido nuclear ou focal que é o da substância13.

3. Cognoscibilidade da substância Outro aspecto importante do problema diz respeito à sua faceta gnosiológica. Lesher insiste, ainda em sua resposta à Albritton, no problema científico da suprema cognoscibilidade da substância em relação à incognoscibilidade do indivíduo: Um mundo em que os indivíduos possuíssem formas que fossem não apenas ontologicamente particulares, mas também epistemologicamente particulares seria um mundo em que a ciência aristotélica seria inoperante. À luz da importância do conhecimento cientifico para Aristóteles e da centralidade da forma no interior desse conhecimento, podemos concluir que a forma tem de ser universal em sua definição. (Lesher, 2009, p. 240)

13 Para

Lesher, o dilema de Aristóteles poderia ser evitado pela distinção de duas proposições, ambas derivadas da afirmação de que “nenhum universal pode ser uma substância”. São elas:Nada que seja não- particular pode existir como substância. Nada que seja comum a muitos pode existir como substância. Para Lesher, Se tomamos a posição de Aristóteles como aquela expressa em 1, evitamos o dilema, pois a doutrina da forma imanente não compromete Aristóteles com substâncias não-particulares. No entanto, evita-se o dilema, diz ele, às custas da força argumentativa de Zeta 13, que “se transforma em uma simples exposição da posição de Aristóteles em contraste com a posição dos platônicos”.

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 A questão da definição importa para nossos intuitos, pois a pergunta “o que é” (que com mais sentido se dispõe como “por que isso é assim”14, é respondida com uma definição que pretende apontar para causas, e como tal faz uso de termos que são em todo caso universais, pois do indivíduo concreto nunca haverá definição (there is neither definition nor demonstration of sensible individual substances, because they have matter whose nature is such that they are capable both of being and of not being”. Metafísica, 1039b27-30). Com uma definição, portanto, pretende-se manifestar a essência do que a coisa é a partir de termos universais. Mas se só o universal é cognoscível para a ciência (principalmente para a aristotélica), redundar-se-ia na conclusão de que só ele seria substância, ao menos primariamente. Entretanto, como vemos no dissenso com a tese de Sócrates, o jovem, se a definição de homem deve incluir o cérebro e o coração, sem os quais não há homem algum, parece que na maioria dos casos cada forma realizar-se-á plenamente apenas em um certo tipo ou uma certa gama de tipos de matéria. Poderíamos nos perguntar se, quanto mais específica for a forma, mais específico será o material (ou a gama de materiais) requerido? A função de uma serra só será salvaguardada se ela for constituída de certos materiais que compõem um arco de opções limitado. De todo modo, pura forma é substância para Aristóteles, mas poucas das coisas que prima facie são puras formas acabam sendo realmente puras da matéria (Ross, 1924, p. 101), seja ela sensível ou inteligível. O fato é que nas substâncias sensíveis e inteligíveis a forma é preexistente ao composto (o princípio formal é causa do material sensível ou inteligível), mas ambas não podem existir em ato separadamente15. Se a definição que revela a essência das substâncias sensíveis não pode prescindir da matéria, ela então manifesta uma determinação individual (que não é a matéria pura, como vimos), mas é esta matéria informada, o conjunto de matéria e forma, um tóde ti. Lewis parece fornecer uma argumentação importante na abordagem do problema por outro ângulo: a forma não é predicável do composto, somente da matéria, e portanto não pode ser universal para o composto16:

14

Segundo Ross, o modo de aproximação da forma ou essência é a seguinte: “é consenso que a substância é uma fonte e causa originária, i.e., que é o que faz as coisas serem o que são. Esta é a resposta para a questão “Por quê?” Mas a questão ‘por quê?’ não se dá na forma “por que A é A?” – que é uma questão estúpida. (...)”. “(…) nós estamos procurando por uma causa que é – para dizer abstratamente – a essência, mas em alguns casos é o fim a ser promovido, e em outros (como no trovão) é a causa motriz” (Ross, 1924, p. 111, tradução nossa). 15 “Havendo razões para postular uma substância que seja puro ato, sem nenhuma potência ou matéria, isto pode agora ser feito, pois não há mais incompatibilidade com a doutrina da substância, visto que, nesta, o princípio formal foi distinguido do material em termos tais que um é causa do outro, ainda que, no que toca às substâncias sensíveis, não possam existir separadamente” (ZINGANO, 2003, p. 287). 16 “Man and horse and the things that <apply> in this way to particulars, but universally, are not substance but a kind of compound of this form and this matter, taken universally”. (Cf. Z 10,1035b27–30. LEWIS, 1987, p. 181).

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if Aristotelian forms are universals, we must suppose that one and the same form, ψ, is found both in Socrates and in Callias; but if ψ is also substance of them both, then apparently, ψ is both universal to and the substance of the very same things, contrary to Mutual Exclusivity (…). [But] “ψ is predicated neither of itself, nor of Socrates or Callias, but of their matter (…); so ψ is not predicated of or universal to the very things of which it is the substance. (LEWIS, 2013, p. 210).

Ainda assim, a coexistência que se pretende aproblemática, na teoria aristotélica, entre a cognoscibilidade dos universais, a impossibilidade de ciência dos individuais e a afirmação da substância justamente como tóde ti, e como o que é mais real e cognoscível, enreda seus intérpretes em sérias dificuldades. Ross oferece duas saídas para este problema: em primeiro lugar, se os indivíduos podem ser conhecidos com a ajuda da nóesis ou por percepção17 (substâncias inteligíveis e sensíveis, respectivamente), tais modos concretos de conhecimento serão os relativos aos indivíduos, pois pelo fato de que nosso conhecimento do indivíduo não seja o mero resultado de um simples conjunto de universais, ele não poderia ser expresso nestes termos. No entanto, isso não significa que o conhecimento do indivíduo seja impossível, nem que esteja em oposição ao conhecimento científico. Isso porque, para Aristóteles, o conhecimento do indivíduo seria o verdadeiro conhecimento atual, de acordo com a passagem apontada por Ross: For knowledge, like knowing, is spoken of in two ways—as potential and as actual. The potentiality, being, as matter, universal and indefinite, deals with the universal and indefinite; but the actuality, being definite, deals with a definite object,—being a ‘this’, it deals with a ‘this’. But per accidents sight sees universal color, because this individual color which it sees is color; and this individual which the grammarian investigates is an a. For if the principles must be universal, what is derived from them must also be universal, as in demonstrations; and if this is so, there will be nothing capable of separate existence—i.e. no substance. But evidently in a sense knowledge is universal, and in a sense it is not. (Metafísica, 1087a15-25)

Se objetássemos que, ainda assim, o conhecimento do individual será sempre dependente do conhecimento universal, entraríamos na querela inamovível sobre se e como seria possível o conhecimento dos universais independer completamente das instanciações individuais.

3

Reflexões finais

17 Cf.

1036a5-6.

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 Sem dúvida Aristóteles visa a antinomia do Um e do Múltiplo com a sua teoria da substância (MANSION, 2009), e é também em meio a essa antinomia que se encontram seus intérpretes. Nesta arena, seria impossível pretender garimpar uma interpretação unívoca a respeito do problema da consideração da forma como substância (e aqui nos referimos mais especificamente ao tratamento do problema no registro das substâncias sensíveis, escopo de Z e H). De um lado, se a condição de atualização plena da forma é (quase) sempre a de realizar-se em um composto (seja ele formado por matéria sensível ou inteligível), então a realização dessa sua indivisibilidade – desta sua unidade que não é um conglomerado de outras substâncias, mas substância ela mesma, irredutível a nada mais – em uma sequência temporal específica é, justamente, o que apontaria para o caráter individual da substância (como quer Frede), e a forma poderia ser assim salva do problema da universalidade. Por outro lado, críticos na linha de Lesher reafirmam a dificuldade lógica a que a teoria permanece se expondo neste exíguo ponto: vide as tintas carregadas do autor quando afirma que “nenhuma das tentativas de salvar Aristóteles da contradição teve sucesso e é difícil vislumbrar qualquer outra doutrina aristotélica que possa ser invocada em defesa” (LESHER, 2009, p 242). De fato, é notório que para Aristóteles nada que seja universal será um tóde ti. Mas se ele não nega que o que é tóde ti possua especificações comuns a vários membros de uma espécie, isso talvez se deva à abertura de Aristóteles para a possibilidade de conceder à universalidade algum papel definido no interior da sua substância imanente. Smith (1921), ao afirmar que o tóde ti é tanto um ‘isto’ quanto um ‘algo’, parece traduzir estes desígnios que supomos poderem ter sido os de Aristóteles: o tóde ti seria assim uma instanciação extraordinária, a única entidade capaz de realizar a coalescência entre individual e universal de forma absolutamente perfeita. Dessa feita, poderíamos aventar a possibilidade de que, com o tóde ti Aristóteles não queira afirmar que os universais não estão excluídos das substâncias, mas apenas que eles não sejam substância eles mesmos. Constituir-se como ousía é primariamente possuir coesão interna – e mesmo que o fato de formar-se como um certo tipo de unidade possa ser inerente a muitas outras coisas, é apenas na instanciação que ela se realiza de fato. A forma não é perecível e, portanto, permanece, mas só nas suas instanciações, pois são elas que parecem fazê-la de fato realizar a substância, o que é mais ser. O critério exigido é que ela se manifeste como uma instanciação num tóde ti, pois o que algo é em si só pode se realizar enquanto choristón. É essa autonomia ontológica da forma, esse seu caráter imanente e de preexistência ao composto que justificam seu coroamento com o título de ousía primária. Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 Desse modo, Aristóteles pode se decidir pela primazia da individualidade da forma na candidatura à substancialidade pelo gênero ou pelo universal. Poderíamos portanto considerar que Aristóteles, conquanto não negligenciasse a presença de caracteres universais na substância, estivesse decidido a mostrar que antes de mais nada ela é uma unidade, e só secundariamente uma multiplicidade de caracteres comuns ou universais que o tornam membro de uma espécie ou classe? Seja como for, é indiscutível que, ao negar a reificação de qualidades ou abstrações e realocar nos entes a imanência substancial, Aristóteles julga devolver-lhes a realidade que, segundo ele, lhes fora sacada pelo platonismo. O fato é que esta enorme envergadura da afirmação da preexistência e proeminência da forma, e, portanto da “natureza como princípio, e não como elemento material”18, mostra o quão arqueologicamente fértil é o ambiente para os estudiosos da monumental edificação da Metafísica. Mas à expressão “monumental edificação” acresçamos uma ressalva: que a imagem da “edificação” e a pujança argumentativa que ela sugere, como belamente exprimiu Ross, não nos leve à ideia de que a Metafísica é um sistema dogmático, mas um colosso filosófico resultante das “aventuras da mente em sua busca pela verdade” (ROSS, 1924, p. 77; tradução nossa).

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Complete Works of Aristotle: The Revised Oxford Translation. Edited by J. Barnes. Vol 2. Bollingen Series. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1984. BOSTOCK, D. Metaphysics. Books Z and H: translated with a commentary by David Bostock. Oxford: Clarendon Press, 1994. FREDE, M. Substance in Aristotle´s Metaphysics. In: Essays in Ancient Philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987. LESHER, J. H. Sobre forma, substância e universais em Aristóteles: um dilema. In: ZINGANO, M. Sobre a Metafísica de Aristóteles. 2ª ed. São Paulo: Odysseus, 2009 (1971). LEWIS, F. How Aristotle gets by in Metaphysics Zeta. Oxford: Oxford U. P., 2013. MANSION, S. A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles. In: ZINGANO, M. Sobre a Metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2009 (1946).

18

“But it would seem that this is something, and not an element, and that it is the cause which makes this thing flesh and that a syllable. And similarly in all other cases. And this is the substance of each thing; for this is the primary cause of its being; and since, while some things are not substances, as many as are substances are formed naturally and by nature, their substance would seem to be this nature, which is not an element but a principle. An element is that into which a thing is divided and which is present in it as matter, e.g. a and b are the elements of the syllable” (Metafísica, 1041b23-30).

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O problema da individualidade da forma nos livros Z e H da Metafísica de Aristóteles, pp. 271-283 ROSS, W.D. (Ed.). Aristotle´s Metaphysics: a revised text with introduction and commentary by W. D. Ross. Oxford: Clarendon, 1924. SMITH, J.A. TODE TI em Aristóteles. In: ZINGANO, M. Sobre a Metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2009 (1921). ZINGANO, M. Forma, Matéria e Definição na Metafísica de Aristóteles. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 13, n. 2, p. 277-299, jul.-dez. 2003.

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ENSAIO


(Neo)Liberalismo, direito e resistência no fim da modernidade, pp. 285-291

(NEO)LIBERALISMO, DIREITO E RESISTÊNCIA NO FIM DA MODERNIDADE Thiago Mota

1. Histórico A defesa da Constituição e do Estado de Direito, democrático ou não, por parte da esquerda não faz agora, nem nunca fez, o menor sentido. A Constituição e o Estado de Direito não são, nem nunca foram, conquistas da esquerda. São invenções genuinamente liberais, introduzidas pelas revoluções burguesas, ocorridas pelo menos desde o século XVII, primeiro na Inglaterra, depois nos EUA e na França. Na versão original, a função básica do Estado de Direito não é garantir a liberdade, a igualdade e a fraternidade, mas limitar o poder absoluto conferido ao soberano no ancien Régime. O “governo da lei” (rule of Law), não é, nem nunca foi, o governo da liberdade, da igualdade e da fraternidade; é o governo liberal, ou seja, a estratégia governamental que busca restringir e minimizar o Estado, a fim de fazer da racionalidade pretensamente natural inerente ao mercado o único princípio que governa de fato. Historicamente, as conquistas da esquerda foram outras, direitos civis, trabalhistas, sociais, políticos, humanos etc., não o Estado de Direito. Todavia, essas conquistas estão atreladas diretamente à estrutura burocrática do aparelho estatal, o qual, como já se disse, não foi criado para sustentá-las. Por isso, a positivação dessas conquistas, que brotam como mato no terreiro do Estado

 Doutor

em Filosofia. Professor do Curso de Filosofia/UECE. Contato: thiago.mota@uece.br.

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(Neo)Liberalismo, direito e resistência no fim da modernidade, pp. 285-291 liberal, nunca poderá significar mais do que a instalação de artifícios de despressurização, de apaziguamento, de dispersão e neutralização dos conflitos, concessões mínimas, barganhas, para gerar a impressão de que algo muda, quando o compasso segue inalterado, sem deriva. Aqui, cabe lembrar uma das lições fundamentais de um “coxinha” de marca maior e, não obstante, inteiramente genial que é Carl Schmitt. O governo da lei (Estado de Direito) não é, nem nunca foi, o governo do Direito, da Justiça e da Democracia – que não passam de abstrações vazias, como se destaca com o uso da inicial maiúscula. O governo da lei é, em primeiro lugar, como elucida o jurista do Terceiro Reich, o governo contra o rei e a favor da burguesia. Mas não é só isso. É evidente que o momento em que fazia sentido ser contra o rei já passou, há longa data aliás, e sabemos a que preço passou: terror (terreur), no sentido mais literal do termo. Independentemente de qualquer apetite ou aversão pelo grotesco, o interessante é notar que é desse terror original que nasce a nossa contemporaneidade. Retrocedendo aos começos da genealogia do poder presente, podemos dizer que toda a série que vai da primeira cabeça cortada por Robespierre até o corte de sua própria cabeça não é de forma alguma a expiação da maldade ingênita do ser pecador obcecado pelo desejo e pela “vontade de poder”, mas a limpeza do terreno necessária à instalação de uma economia de livre mercado. Essa limpeza política continua a ser o fulcro da agenda liberal até hoje. No início do nosso tempo, enquanto cabeças rolavam, liberais rolavam de rir. Limpeza feita, eles assumiram a coisa pública, colocando-se, em inúmeras oportunidades – só na França já se somam cinco Repúblicas, nenhuma das quais menos liberal que as outras –, como criadores de um mundo moderno, o “novo tempo” (Neuzeit). No centro pulsante do mundo novo que os liberais tinham inventado para si mesmos com uma maré de sangue, isto é, na Paris do início do século XIX, Napoleão foi agenciado, a fim de universalizar o modelo na marra. Disso decorre, aliás, toda a onda de independências nacionais que atravessa as Américas a partir de então, derrotando o panamericanismo, e só fecha seu ciclo na África, nos anos 1970. Para Napoleão, já se tratava muito claramente de globalizar um modelo, por meio de técnicas que, no essencial, não diferem dos drones recheados de direitos humanos com que se leva hoje a liberdade à Síria, ao Afeganistão ou ao Iraque, mesmo que eles não queiram. A ideia geral é que ninguém se evada ao Império da democracia global, ninguém se livre da liberalização neoliberal. No seu tempo, ao tomar a coroa das mãos da Igreja para pô-la em sua própria cabeça, Napoleão efetuou o gesto simbólico que lhe permitiu ir além do Rei Sol e que, portanto, obviamente não foi um gesto de auto-fundação. Coroando-se, Napoleão não coroava apenas a si mesmo, mas à razão Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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(Neo)Liberalismo, direito e resistência no fim da modernidade, pp. 285-291 governamental, que já havia derrotado a razão de Estado dentro da sua cabeça, pouco importa se ele tinha consciência disso ou não. Napoleão é o coroamento da razão liberal. E é nesse sentido que ele opera a acoplagem do poder disciplinar ao poder soberano que dá origem ao mundo como hoje podemos conhecer. Foi sob Napoleão que avançamos da Constituição ao Código, promulgado em 1806, que supostamente seria a expressão plena e incorrigível dessa razão de governo liberal e que, doravante, seria o padrão a ser seguido em todo o mundo que se quisesse considerar “civilizado”. Grosso modo, a civilização começa com um Código Civil. Assim, o impacto do Código Napoleônico, na verdade, excedeu em muito aquele que o próprio Napoleão foi capaz de produzir, a despeito de toda a sua megalomania. Esse impacto excede inclusive a França, como prova o fato de que o diploma permaneça em vigor, com pouquíssimas emendas, em países como Bélgica e Luxemburgo até hoje, enquanto que a própria França já deixou de adotá-lo faz tempo. Seja como for, muito antes de se desfazer do Código Civil de 1806, o liberalismo se desfez de Napoleão quando bem lhe conveio, e seguiu em frente, quase que sem encontrar rival à altura. De fato, ao longo dos dois últimos séculos, o grande desafiante do governo liberal foi o totalitarismo. Mas esse, tanto em sua vertente de direita (nazismo), quanto de esquerda (stalinismo), foi derrotado de maneira acachapante com duas guerras quentes – aliás, as mais quentes da história – e uma fria. No que diz respeito à esquerda de modo geral e, especificamente, ao socialismo não totalitário, é importante ter em consideração que, a cada vez que cabeças foram decepadas, o mecanismo de governo engenhoso e sempre mais eficiente que se criava e recriava encontrava-se liberado para ser empregado para outros objetivos. Foi assim que o aparelho de Estado, seus Poderes e suas Constituições, a Ordem Jurídica, a Jurisdição etc., mostraram-se realmente muito úteis, do ponto de vista liberal. Isto é, foram instrumento não para promover a Justiça, a Democracia, o Direito – conceitos tão abstratos que ninguém sabe mesmo o que são –, mas para conduzir as populações e os indivíduos de forma liberal. No entanto, a vida útil desse instrumento da razão governamental liberal parece já ter chegado ao fim. Por conseguinte, esse não é o “fim da história”.

2. Poder

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(Neo)Liberalismo, direito e resistência no fim da modernidade, pp. 285-291 O tempo do liberalismo napoleônico é passado. O que estamos assistindo agora – na verdade, já faz décadas – é a total obsolescência do Estado, do ponto de vista da estratégia de governo liberal. Ou seja, o Estado não interessa mais à razão de mercado. Do ponto de vista da racionalidade economista, a vida atual do Estado é já é uma sobrevida, pelo menos, desde os anos 1970. O Estado morreu. Resta manter ligados os aparelhos ou adotar as famosas “medidas paliativas”. Portanto, do ponto de vista metodológico, convém observar que, ao contrário do que supõe a Teoria Geral do Estado – a hoje defunta “TGE” –, o conceito de governo não pode estar subordinado àquele de Estado. Faz mais sentido dizer o contrário, isto é, que a história do Estado não passa de um episódio circunscrito na série mais vasta da história das estratégias de governo (ou “governamentalidades”). Porém, como a morte de um mecanismo de poder dantesco como o Estado – ainda que seja por eutanásia – pode ser antecipada, mas não executada teoricamente, cabeças terão que rolar novamente. O terror que agora se instala é o recrudescimento, talvez definitivo, de um processo de minimização do Estado, cujo programa foi anunciado por Mises e Hayek, ainda às vésperas da II Guerra. Em sua fase talvez terminal, essa minimização se torna pura destruição, realizada na forma do auto-aniquilamento (selbst Abbau). O Estado morreu, mas não foi nenhuma força externa que o matou: o Estado matou, ou ainda, está matando a si mesmo. Por isso, os poderes estatais se devoram mutuamente nos dias atuais. Por isso, o Judiciário faz justiça contra legem (contra o Estado). A racionalidade que fundamenta materialmente a jurisdição, iluminando o entendimento de nossa intrépida magistratura fora da lei (outlaw judicature) não é outra coisa, é a racionalidade liberal, ou ainda, neoliberal. Por isso, o nosso neoconstitucionalismo aponta incansavelmente para “conceitos jurídicos indeterminados” [sic], ou seja, aponta para fora da Constituição. Por isso, a nossa nova hermenêutica já envelheceu de tanto apontar para “razoabilidade” de princípios – “fins sociais”, “bem comum”, “dignidade”, “equidade”, “boa-fé” – cujas definições encontram-se necessariamente fora do ordenamento jurídico. Por isso, o nosso neoprocessualismo aponta constantemente para fora do Judiciário, transforma o juiz em coadjuvante e horizontaliza o processo. Por sua vez, este hibridiza sua natureza, deixando de ser propriamente público, para se transformar numa espécie de pacto entre servos, cujos conflitos hão de ser deslindados por uma arbitragem negocial, ou por um negócio arbitral, não faz diferença, dá no mesmo. Por isso, o nosso neotributarismo, embalado no espírito de Law & Economics, propõe que se interprete e que se aplique um direito financial e de investimentos que apontam necessariamente para fora do direito. Este tem por fim solucionar conflitos, inclusive nos quais o

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(Neo)Liberalismo, direito e resistência no fim da modernidade, pp. 285-291 Estado é parte, em virtude da promoção de um desenvolvimento econômico que se define como integração social de mercado. De seu lado, esse desenvolvimento econômico estaria baseado na abolição do poder estatal de tributar, da “derrama”, do “descalabro fiscal”, em suma, da impunidade em que se mantém o “crime de responsabilidade”, que seria o que ainda resta de ancien Régime entre nós. Por isso, não cessam de nos apontar, fora do direito, um outro conceito que também é completamente, e não apenas juridicamente, indeterminado, isto é, o conceito de “ajuste fiscal”. Ora, esse “fora do direito” para o qual aponta, de modo geral, o nosso neodireito contém uma verdade inquestionável: o neodireito é neoliberal. Ele opera de acordo com a racionalidade de governo que liberaliza o mercado e transforma em negócio atividades outrora reservadas ao Estado com exclusividade, como a jurisdição e a execução penal. Diga-se de passagem que essa é a refutação historicamente efetiva do positivismo formal (Kelsen), que portanto não se deve ao abandono dos princípios eternos do direito natural que passariam a imperar a partir de 1948. Na verdade, isso nunca aconteceu. A razão de fundo para o ocaso do positivismo foi a constatação, bastante intuitiva por sinal, de que o direito não funda a si mesmo. Pelo menos não em nossa sociedade, onde os fundamentos jurídicos encontram-se numa racionalidade extra-jurídica, econômico-política ou, simplesmente, neoliberal. É essa estratégia de governo que embasa a seletividade, que jamais deve ser confundida com irracionalidade nem com arbitrariedade, dos nossos juízes pós-estatais. É a Estado-fobia, isto é, a construção do fantasma do Estado como monstrengo corrupto e incompetente que atormenta o sono dos ativistas judiciais de nosso tempo. Em reação, eles produzem como contra-fantasma a utopia de um rule of Outlaw (Estado sem Direito), ou melhor ainda, de um Law of outrule (Direito sem estado [sic], sem regras, desregulamentador). O reino da “pura” jurisdição, o Estado de exceção do judicial, não é uma ditadura de toga, mas antes uma ditadura de neoliberais togados. E não são só dos togados. Dizer que vivemos numa época neoliberal não significa dizer que uma entidade malévola composta por elementos secretos reprime nossos governantes, alienando suas consciências bem intencionadas, ludibriando-os, coagindo-os a fazer o que não querem. Não! Eles têm a mais sã consciência do que fazem, e mesmo assim o fazem. E o fazem porque têm consciência, porque querem, porque não têm as provas, mas a convicção de que aquilo que fazem, pode não ser legal, mas é justo e certo. O neoliberalismo como algo que manipularia, de fora, governantes e governados simplesmente não existe. São nossos governados e, sobretudo, nossos governantes que são neoliberais. E é por causa deles que o Estado está morto,

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(Neo)Liberalismo, direito e resistência no fim da modernidade, pp. 285-291 ou que o estamos matando. Em todo caso, se isso servir de consolo, pode-se advertir que o mais provável é que, com algo que é típico da tortura da tradição chinesa, a chacina de si mesmo do Estado ainda vá levar um bom tempo.

3. Resistência E a esquerda, seria capaz de dar um cavalo de pau nessa história? Em que consistiria isso um pouco mais concretamente? Seria o caso de encampar uma estratégia de desfibrilação do Estado? Seria possível uma “reforma revolucionária” que enfim pudesse o Estado a serviço da resistência? Em que pese a onda de esquerda do socialismo latino-americano do século XXI, que foi protagonizada por um partido político brasileiro, ter sido uma espécie de descompasso, ou de contratempo, sua morte parece ainda mais sacramentada do que a do Estado. O problema é de base: o socialismo nunca constitui uma forma de razão governamental, ou em todo caso, nunca foi capaz de rivalizar de modo efetivo com a racionalidade neoliberal. Esta funciona num outro nível, num plano que é mais amplo. Por isso, as únicas hipóteses factíveis de socialismo hoje tentam se instalar no solo de um Estado que é liberal desde a sua gênese. Provavelmente, o resultado mais arrojado que a esquerda foi capaz de produzir nesse campo histórico foi o “neoliberalismo social” do PT que, como híbrido mórbido, oximoro aberrante que era, não poderia mesmo vingar, nem sobreviver por mais algum tempo. Todavia, esse talvez tenha sido o seu último lance. O grande sucesso da esquerda teria sido, ao mesmo tempo, o seu fracasso final. Daqui por diante, suas possibilidades estariam restritas a replicar, até mesmo com máximo de talento possível, esse exitoso erro. De modo geral, a lição geral a ser retida pela resistência é que não é possível ser pós-neoliberal sem antes ser pós-estatal. É preciso, antes de mais nada, reconhecer que o Estado morreu, deformou-se, suas repartições funcionais se romperam, seus órgãos internos foram perfurados, enfim, a figura da República está prestes a desmoronar, como um castelo de areia, na beira do mar. Portanto, precisamos resistir para além do Estado, precisamos resistir com a lei e contra a lei. Em particular, não precisamos de juízes que apliquem a Lei, mas podem ser úteis operadores do direito pós-neoliberais, isto é, capazes de interpretar e de aplicar a lei, ao mesmo tempo, contra legem (contra o Estado) e contra o mercado (contra a razão neoliberal). Esses poderiam ser, por exemplo, “advogados ativistas” e, por que não, “juízes revolucionários”, agentes de uma sabedoria prática

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(Neo)Liberalismo, direito e resistência no fim da modernidade, pp. 285-291 jurisprudencial de resistência, cujo antípoda sintético encontra-se na figura, a cada dia mais delineada, do juiz (super)homo œconomicus. Num certo sentido, nosso paradoxo continua a ser aquele que foi descrito por Marx. As condições formais da liberdade, da igualdade, da democracia e, quem sabe, até mesmo do direito estão dadas no quadro da racionalidade neoliberal. Todavia, o formalismo (eis o grande inimigo) que caracteriza o modo neoliberal pelo qual se dão essas mesmas condições elimina a possibilidade de sua concreção, ou seja, embarga um processo que, em princípio, tenderia a materializá-las. Para que isso aconteça, é evidente que fatores materiais, e não meramente formais, precisam se agenciar. Ora, no contexto em que nos encontramos, isso significa que a resistência precisa assumir com consciência o desafio de ir além tanto do Estado quanto do mercado. Resistência contra-neoliberal seria talvez um título para uma racionalidade outra, capaz de des-governar de modo amplo o processo. Só que essa racionalidade não é uma teoria, nem é uma ideologia, nem é uma representação social. Ela é uma prática discursiva, o agenciamento coletivo da enunciação de um anti-capitalismo radical, cujos agentes são gente, de carne e osso, e mente. Precisamos arrumar, de modo muito muito particular, mas que não é de forma alguma um detalhe, nem uma impossibilidade, uma jurisdição da resistência, isto é, uma dicção dos direitos da resistência.

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TRADUÇÕES


O tempo circular, pp. 293-299

O TEMPO CIRCULAR Jorge Luis Borges Tradução de Allan Alves1 Ensaio publicado de 1943. Incluido posteriormente nas edições seguintes de Historia de la eternidad. Sonho regressar eternamente ao eterno retorno. Nestas linhas procurarei (com o socorro de algumas ilustrações históricas) definir seus três modos fundamentais. O primeiro tem sido imputado a Platão. Este, no trigésimo nono parágrafo do Timeu, afirma que os sete planetas, equilibradas suas diversas velocidades, regressariam ao ponto inicial de partida: revolução que constituiria o ano perfeito. Cícero, no livro segundo de A natureza dos deuses, admite que não é fácil o cálculo deste vasto período celestial. No entanto, argumenta que certamente não se trataria de período ilimitado. Em uma de suas obras perdidas, Cicero define em doze mil novecentos e noventa e quatro “do que nós chamamos de anos” 2. Morto Platão, a astrologia judiciária se espalhou por Atenas. Esta ciência, como todos sabem, afirma que o destino dos homens é regido pela posição dos astros. Algum astrólogo que certamente não havia examinado em vão o Timeu, formulou um argumento irrepreensível: se os períodos planetários são cíclicos, então também a história universal o será. Assim, ao final de cada ano, renascerão os mesmos indivíduos que cumprirão os mesmos destinos. O tempo atribuiu a Platão este juízo. Em 1616, Lucio Vanini escreveu: “De novo Aquiles irá à Tróia, de novo renascerão cerimônias e religiões; a história humana se repete; não há nada agora que não tenha sido. O que foi, será; mas sim o todo em geral, e não (como determina Platão) apenas o particular”3. Em 1643, Thomas Browne declarou em uma das notas do primeiro livro Religio Medici: “O ano de Platão – Plato’s year – é um curso de séculos após o qual todas as coisas recuperarão seu estado anterior. Novamente Platão, em sua escola,

1 Graduação em Letras pela UFRRJ. Mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Email: all.alves@hotmail.com 2 TÁCITO. Diálogo dos oradores. Diálogo 16. 3 BROWE, Thomas. De Admirandis Naturae Reginae Deaeque Mortalium Arcanis. Diálogo 52.

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O tempo circular, pp. 293-299 explicará essa doutrina.” No primeiro modo de se conceber o eterno retorno, o argumento é astrológico. O segundo está ligado à glória de Nietzsche, seu inventor ou disseminador mais comovido. Um princípio algébrico o justificaria: a observação de que um número n de objetos – átomos na hipótese de Le Bon – potência no pensamento de Nietzsche – corpos simples na obra do comunista Blanqui – é incapaz de um número infinito de variações. Das três doutrinas listadas, a melhor e mais complexa é a de Blanqui. Este se poia na concepção de Demócrito, que sobrepõe mundos facsimilares e mundos distintos, não apenas no tempo, mas também no espaço infinito4. Seu livro é lindamente intitulado L'eternité par les astres, a edição é de 1872. Muito anterior é uma passagem lacônica, mas suficiente, de David Hume. Consiste nos Diálogos sobre a Religião Natural (1779) que Schopenhauer se propôs traduzir. E que, até onde sei, não tem se dado a devida atenção. Eu traduzo literalmente: "Não vamos imaginar matéria infinita, como Epicuro fez. Vamos imaginá-la finita. Um número finito de partículas não é suscetível a transposições infinitas. Em uma duração eterna, todas as ordens e colocações possíveis ocorrerão um número infinito de vezes. Este mundo, com todos os seus detalhes, mesmo os minúsculos, foi elaborado e aniquilado. E será elaborado e aniquilado: infinitamente”5. Desta série perpétua de histórias universais idênticas, Bertrand Russell observa: “Muitos escritores opinam que a história é cíclica, que o estado atual do mundo, com seus mínimos detalhes, retornará mais cedo ou mais tarde. Como formulam essas hipóteses? Diremos que o estado posterior é numericamente idêntico ao anterior. Não podemos dizer que esse estado ocorra duas vezes, pois isso postularia um sistema cronológico — since that would imply a systern of dating — que a hipótese nos proibe. O caso seria equivalente ao de um homem que percorre o mundo: ele não diz que o ponto de partida e o ponto de chegada são dois lugares diferentes, mas muito semelhantes; diz que são o mesmo lugar. A hipótese de que a história é cíclica pode ser afirmada desta maneira: vamos formar o conjunto de todas as circunstâncias contemporâneas de uma dada circunstância, em certos casos, todo o conjunto se precede”6. Chego, então, ao terceiro modo de se interpretar o eterno retorno: menos terrível e melodramático, mas também o único modo tangível. Proponho-me à concepção de ciclos similares, 4

CÍCERO. Acadêmicas. Livro Segundo. HUME, Diálogos sobre a Religião Natural. Parte VIII. 6 RUSSEL, Bertrand. An Inquary Into Meaning And Truth. London: George Allen and Unwin: 1940. p. 102. (Trecho traduzido por Jorge Luis Borges). 5

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O tempo circular, pp. 293-299 mas não idênticos. É impossível formar um catálogo infinito de autoridades: penso nos dias e noites de Brahma, nos períodos cujo relógio imóvel é uma pirâmide desgastada lentamente pela asa de um pássaro que as esfrega a cada milênio. Nos homens de Hesíodo, que se degeneram desde o ouro até o ferro. No mundo de Heráclito, que é gerado pelo fogo e ciclicamente devora o fogo. No mundo de Sêneca e Crisipo, em sua aniquilação pelo fogo e renovação pela água. Na quarta bucólica de Virgílio e no esplêndido eco de Shelley. No Eclesiastes. Nos Teósofos. Na história decimal de Condorcet. Em Francis Bacon e Unpenski. Em Gerald Heard. Em Spengler e em Vico. Em Schopenhauer. Em Emerson. Nos First Principles de Spencer e na Eureka de Poe... de tal profusão de teorias, basta-me copiar uma, de Marco Aurélio: “Embora os anos de sua vida tenham sido três mil ou dez vezes três mil, lembre-se de que ninguém perde outra vida além da que vive agora nem vive outra que não a que perde. O prazo mais longo e o mais curto são, portanto, iguais. O presente pertence a todos. Morrer é perder o presente, que é um tempo muito curto. Ninguém perde o passado ou o futuro, porque ninguém pode retirar o que não tem. Lembre-se de que todas as coisas mudam e voltam a girar pelas mesmas órbitas e para o espectador é o mesmo ver um século ou dois ou infinitamente” 7. Se lermos com seriedade as linhas anteriores (id est, se não resolvermos julgá-los como mera exortação ou moralidade), veremos que declaram, pressupõem, duas curiosas ideias. Primeiro: negar a realidade do passado e do futuro. Como afirma Schopenhauer “A forma de aparência da vontade é apenas o presente, não o passado ou o futuro: estes existem apenas para o conceito e pela encadeamento da consciência, sujeitos ao princípio da razão. Ninguém viveu no passado, ninguém viverá no futuro; o presente é o caminho de toda a vida” 8. Segundo: negar, como no Eclesiastes, qualquer possibilidade do novo. A conjectura de que todas as experiências do homem são (de alguma forma) análogas pode, à primeira vista, parecer um mero empobrecimento do mundo. Se os destinos de Edgar Allan Poe, dos vikings, de Judas Iscariotes e de meu caro leitor são, secretamente , o mesmo destino — o único destino possível —, então a história universal é a história de um único homem. A rigor, Marco Aurélio não nos impõe essa simplificação enigmática. (Há algum tempo, imaginei uma história fantástica, à maneira de Leon Bloy: um teólogo consagra toda a sua vida a refutar um herege. Ele o vence em intrincadas controvérsias: denuncia-o, e, com isso, faz com que seja queimado. No entanto, no céu, descobre que, para Deus, ele e o herege formam uma única pessoa). Marco Aurélio afirma a analogia, não a identidade, dos muitos destinos individuais. Ele

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AURÉLIO. Meditações. Livro segundo, reflexão 14. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Livro IV, §54.

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O tempo circular, pp. 293-299 afirma que qualquer período — um século, um ano, uma única noite, talvez o presente inacessível — contém integramente toda a história. Em sua forma extrema, esse juízo é de fácil refutação: um gosto difere de outro, dez minutos de dor física não são iguais a dez minutos de álgebra. Aplicada a grandes períodos, os setenta anos de idade que o Livro dos Salmos nos concede é possibilidade verossímil ou somente ou tolerável. Reduz-se a afirmar que o número de percepções, emoções, pensamentos, vicissitudes humanas é limitado, e que antes da morte o esgotaremos. Repete Marco Aurélio: "Quem olhou para o presente olhou para todas as coisas: aquelas que ocorreram no passado insondável, como aquelas que ocorrerão no futuro”9. Em tempos de maior espírito, a conjectura de que a existência do homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar. Nos tempos que declinam (como esses), é a promessa de que nenhuma censura, nenhuma calamidade ou ditador poderá nos empobrecer. *** EL TIEMPO CIRCULAR Yo suelo regresar eternamente al Eterno Regreso; en estas líneas procuraré (con el socorro de algunas ilustraciones históricas) definir sus tres modos fundamentales. El primero ha sido imputado a Platón. Éste, en el trigésimo noveno párrafo del Timeo, afirma que los siete planetas, equilibradas sus diversas velocidades, regresarán al punto inicial de partida: revolución que constituye el año perfecto. Cicerón (De la naturaleza de los dioses, libro segundo) admite que no es fácil el cómputo de ese vasto período celestial, pero que ciertamente no se trata de un plazo ilimitado; en una de sus obras perdidas, le fija doce mil novecientos cincuenta y cuatro "de los que nosotros llamamos años" (Tácito: Diálogo de los oradores, 16). Muerto Platón, la astrología judiciaria cundió en Atenas. Esta ciencia, como nadie lo ignora, afirma que el destino de los hombres está regido por la posición de los astros. Algún astrólogo que no había examinado en vano el Timeo formuló este irreprochable argumento: si los períodos planetarios son cíclicos, también la historia universal lo será; al cabo de cada año platónico renacerán los mismos individuos y cumplirán el mismo destino. El tiempo atribuyó a Platón esa conjetura. El 1616 escribió Lucilio Vanini: "De nuevo Aquiles irá a Troya; renacerán las ceremonias y religiones; la historia humana se repite; nada hay ahora que no fue; lo que ha sido, será; pero todo ello en general, no (como

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AURÉLIO. Meditações. Livro sexto, reflexão 37.

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O tempo circular, pp. 293-299 determina Platón) en particular" (De admirandis naturae arcanis, diálogo 52). En 1643 Thomas Browne declaró en una de las notas del primer libro de la Religio medici: "Año de Platón —Plato's year— es un curso de siglos después del cual todas las cosas recuperarán su estado anterior y Platón, en su escuela, de nuevo explicará esta doctrina." En este primer modo de concebir el eterno regreso, el argumento es astrológico. El segundo está vinculado a la gloria de Nietzsche, su más patético inventor o divulgador. Un principio algebraico lo justifica: la observación de que un número n de objetos —átomos en la hipótesis de Le Bon, fuerzas en la de Nietzsche, cuerpos simples en la del comunista Blanqui— es incapaz de un número infinito de variaciones. De las tres doctrinas que he enumerado, la mejor razonada y la más compleja, es la de Blanqui. Éste, como Demócrito (Cicerón: Cuestiones académicas, libro segundo, 40), abarrota de mundos facsimilares y de mundos disímiles no sólo el tiempo sino el interminable espacio también. Su libro hermosamente se titula L'eternité par les astres; es de 1872. Muy anterior es un lacónico pero suficiente pasaje de David Hume; consta en los Dialogues concerning natural religión (1779) que se propuso traducir Schopenhauer; que yo sepa, nadie lo ha destacado hasta ahora. Lo traduzco literalmente: "No imaginemos la materia infinita, como lo hizo Epicuro; imaginémosla finita. Un número finito de partículas no es susceptible de infinitas trasposiciones; en una duración eterna, todos los órdenes y colocaciones posibles ocurrirán un número infinito de veces. Este mundo, con todos sus detalles, hasta los más minúsculos, ha sido elaborado y aniquilado, y será elaborado y aniquilado: infinitamente" (Dialogues, VIII). De esta serie perpetua de historias universales idénticas observa Bertrand Russell: "Muchos escritores opinan que la historia es cíclica, que el presente estado del mundo, con sus pormenores más ínfimos, tarde o temprano volverá. ¿Cómo se formula esa hipótesis? Diremos que el estado posterior es numéricamente idéntico al anterior; no podemos, decir que ese estado ocurre dos veces, pues ello postularía un sistema cronológico —since that would imply a system of dating— que la hipótesis nos prohíbe. El caso equivaldría al de un hombre que da la vuelta al mundo: no dice que el punto de partida y el punto de llegada son dos lugares diferentes pero muy parecidos; dice que son el mismo lugar. La hipótesis de que la historia es cíclica puede enunciarse de esta manera: formemos el conjunto de todas las circunstancias contemporáneas de una circunstancia determinada; en ciertos casos todo el conjunto se precede a sí mismo" (An inquiry into meaning and truth, 1940, pág. 102). Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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O tempo circular, pp. 293-299 Arribo al tercer modo de interpretar las eternas repeticiones: el menos pavoroso y melodramático, pero también el único imaginable. Quiero decir la concepción de ciclos similares, no idénticos. Imposible formar el catálogo infinito de autoridades: pienso en los días y las noches de Brahma; en los períodos cuyo inmóvil reloj es una pirámide, muy lentamente desgastada por el ala de un pájaro, que cada mil y un años la roza; en los hombres de Hesíodo, que degeneran desde el oro hasta el hierro; en el mundo de Heráclito, que es engendrado por el fuego y que cíclicamente devora el fuego; en el mundo de Séneca y de Crisipo, en su aniquilación por el fuego, en su renovación por el agua; en la cuarta bucólica de Virgilio y en el espléndido eco de Shelley; en el Eclesiastés; en los teósofos; en la historia decimal que ideó Condorcet, en Francis Bacon y en Uspenski; en Gerald Heard, en Spengler y en Vico; en Schopenhauer, en Emerson; en los First principles de Spencer y en Eureka de Poe... De tal profusión de testimonios bástame copiar uno, de Marco Aurelio: "Aunque los años de tu vida fueren tres mil o diez veces tres mil, recuerda que ninguno pierde otra vida que la que vive ahora ni vive otra que la que pierde. El término más largo y el más breve son, pues, iguales. El presente es de todos; morir es perder el presente, que es un lapso brevísimo. Nadie pierde el pasado ni el porvenir, pues a nadie pueden quitarle lo que no tiene. Recuerda que todas las cosas giran y vuelven a girar por las mismas órbitas y que para el espectador es igual verla un siglo o dos o infinitamente" (Reflexiones, 14). Si leemos con alguna seriedad las líneas anteriores (id est, si nos resolvemos a no juzgarlas una mera exhortación o moralidad), veremos que declaran, o presuponen, dos curiosas ideas. La primera: negar la realidad del pasado y del porvenir. La enuncia este pasaje de Schopenhauer: "La forma de aparición de la voluntad es sólo el presente, no el pasado ni el porvenir: éstos no existen más que para el concepto y por el encadenamiento de la conciencia, sometida al principio de razón. Nadie ha vivido en el pasado, nadie vivirá en el futuro; el presente es la forma de toda vida" (El mundo como voluntad y representación, primer tomo, 54). La segunda: negar, como el Eclesiastés, cualquier novedad. La conjetura de que todas las experiencias del hombre son (de algún modo) análogas, puede a primera vista parecer un mero empobrecimiento del mundo.

Si los destinos de Edgar Allan Poe, de los vikings, de Judas Iscariote y de mi lector secretamente son el mismo destino —el único destino posible—, la historia universal es la de un solo hombre. En rigor, Marco Aurelio no nos impone esta simplificación enigmática. (Yo imaginé hace tiempo un cuento fantástico, a la manera de León Bloy: un teólogo consagra toda su vida a confutar Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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O tempo circular, pp. 293-299 a un heresiarca; lo vence en intrincadas polémicas, lo denuncia, lo hace quemar; en el Cielo descubre que para Dios el heresiarca y él forman una sola persona.) Marco Aurelio afirma la analogía, no la identidad, de los muchos destinos individuales. Afirma que cualquier lapso —un siglo, un año, una sola noche, tal vez el inasible presente— contiene íntegramente la historia. En su forma extrema esa conjetura es de fácil refutación: un sabor difiere de otro sabor, diez minutos de dolor físico no equivalen a diez minutos de álgebra. Aplicada a grandes períodos, a los setenta años de edad que el Libro de los Salmos nos adjudica, la conjetura es verosímil o tolerable. Se reduce a afirmar que el número de percepciones, de emociones, de pensamientos, de vicisitudes humanas, es limitado, y que antes de la muerte lo agotaremos. Repite Marco Aurelio: "Quien ha mirado lo presente ha mirado todas las cosas: las que ocurrieron en el insondable pasado, las que ocurrirán en el porvenir" (Reflexiones, libro sexto, 37). En tiempos de auge la conjetura de que la existencia del hombre es una cantidad constante, invariable, puede entristecer o irritar; en tiempos que declinan (como éstos), es la promesa de que ningún oprobio, ninguna calamidad, ningún dictador podrá empobrecernos.

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O sobre o homem, pp. 300-303

O SOBRE O HOMEM1 José Ortega y Gasset2 Tradução de Gustavo Augusto da Silva Ferreira*

Todos aqueles que, não sendo atualmente demasiado velhos, nos temos deixado levar, desde a infância, através de uma relação supérflua e tenaz com as coisas do espírito, viemos a encontramos nas recordações de nossos anos, uma atmosfera obscura e como um sol africano que nos tostou as paredes da morada interior. Foi aquela nossa época de “nietzscheanos”; atravessávamos o tempero, jocosamente carregados com os incômodos de nossa juventude, a zona tórrida de Nietzsche. Logo chegamos às regiões de mais suave e fecundo clima, onde refrigeramos o árido espírito com águas de alguma fonte clássica perene, e só nos restou aquela região ideal recorrida, toda areia ardente e vento de fogo, a lembrança de um calor insuportável e injustificado. E, não obstante, não devemos nos mostrar desagradecidos. Nietzsche nos foi necessário; se é que algo de necessário há em nós, pobres criaturas contingentes e dentro dos meandros da história universal provavelmente na condição de trolls. Nietzsche nos fez orgulhosos. Houve um instante na Espanha – vergonha de dizer! – que não houve outra forma de salvar-se do naufrágio cultural, da torrente de mal-acabamento que regava a nação um dia e outro, que o orgulho. Graças a ele alguns moços puderam imunizar-se frente à epidemia que tudo abarcava, que saturava o ar nacional. “Vous êtes appelés à recommencer l’histoire!”3, clamava Barrère aos homens da Assembleia Legislativa, e isso, que é por si mesmo algo ridículo, em certas ocasiões parece necessário, se há de salvar algo da ofensiva bagagem da cultura. Foi forçoso àqueles jovens

1 No

original: EL SOBREHOMBRE. Em português, a ausência do artigo definido “o”, soaria como O Sobrehomem ou O Sobre-Homem, o que soaria, com ou sem hífen, com o sentido de algo que estivesse acima ou em cima do homem, posto por sobre, e não “para além de”, que fora o sentido atribuído por Nietzsche e, evidentemente, alocado no presente texto, portanto, por questões de adaptação e sentido, na presente tradução, optamos por traduzir o título original supracitado por Sobre o Homem. 2 Presente em: GASSET, José Ortega. Obras completas. Tomo I. Ed 7ª. Revista de Madrid. Madrid, 1966. Pp. 91-95.* Pesquisador no programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará Pelo Programa Nacional de Pós Doutorado – PNPD/CAPES-UFC. Doutor e mestre em filosofia por essa mesma Universidade (UFC), Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e graduado em Teologia oela Faculdade Kurius (FAK). 3 “Vocês são chamados a recomeçar a história!”

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O sobre o homem, pp. 300-303 espanhóis crer que a Espanha nascia com eles, que haviam vindo à terra por geração espontânea, sem colaboração dos antepassados, e, em consequência, sem a mórbida herança do antes passado. Moveu-os o orgulho a buscar uma norma própria para suas próprias energias, a cavar no árido solo da terra natal um estuaria para o que fluir livremente e sem contagio, repudiando as normas tradicionais e os canais viciados. Mas as coisas foram se aprumando com maior felicidade e o ambiente espiritual da Espanha melhorou um pouco – certamente não por virtude da sabedoria catalã, mas sim pela mescla feliz do basco e asturiano com o da região que foi rica em “castelos”. É, pois, uma boa hora para corrigir nossa formação antiga e retificar as capas juvenis de nosso animo. Convenhamos que a história começou com uma rajada de séculos, antes da nossa vinda. Foi nosso orgulho uma destas mentirinhas benéficas e necessárias de misericórdia as quais vai o mundo pouco a pouco, fazia uma organização superior e que forma parte daquilo que Renan – sempre Renan! – chamava de plano jesuítico da natureza. Acabo de ler um livro de Jorge Simmel, onde o celebríssimo professor fala de Nietzsche com a agudeza que lhe é peculiar, mais sutil que profunda, mais engenhosa que genial. As opções centrais de Nietzsche me parecem, não obstante, admiravelmente fitadas neste livro. Desde sua primeira obra – O nascimento da tragédia do espírito musical – até sua última carta (1888) escrita, em plena demência, a Jorge Brandes e firmada “A Crucificação”, Nietzsche havia promovido uma guerra veemente e sem trégua ao problema mais profundamente filosófico: a definição de homem. O problema é, assim mesmo, o único que de científico tem em seu trabalho. As revoluções políticas, a de 89 patentemente, são também lutas pela definição do homem, e, no entanto, normalmente encontramos nas barricadas, mui pouca filosofia. Se houvesse de determinarmos com pontualidade cronológica a hora em que esta aparece sobre o feixe da Europa, haveríamos de escolher aquela hora em que Sócrates perguntou: Que coisa é o homem? Os clássicos da filosofia foram passando de mão em mão, século por século, esta questão e, quando a pergunta se escorria por descuido ou propositalmente, entre duas mãos, caindo sobre o povo, gerava uma revolução. A definição de homem, verdadeiro e único problema da Ética, é o motor das variações históricas. Por isso os governantes perseguiram em todo tempo a “moralidade”, explosivo espiritual, e fizeram o impossível para precaver-se do terrorismo da ética.

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O sobre o homem, pp. 300-303 Se Nietzsche, portanto, busca uma nova definição de homem, cai fora de toda dúvida que se esconde atrás de uma nova moral. Zarathustra é um moralizador, e é um dos mais fervorosos. A palavra “moralismo”, usada por alguns escritores nos últimos anos, não é só um vocábulo barbaramente composto, mas que carece de sentido. Nietzsche busca também uma norma de validade universal que determine o que é bom e o que é mal. Quando fala “além do bem e do mal”, entende o bem e o mal estatuído pela moral grego-cristã, com quem é insensato e grosseiramente injusto. “A moral”, ruge o ardente pensador, “é hoje na Europa moral de rebanho; por conseguinte, somente uma espécie de moral humana, junto a qual, antes da qual e depois da qual são ou devem ser possíveis muitas outras, e, desde logo, morais superiores”. No século XIX – disse Simmel – se criou uma noção quantitativa, extensiva da “humanidade”: segundo ela, o social, o comunal, é o humano. O indivíduo não existe realmente: é o ponto imaginário de onde se cruzam os elos sociais. Os corpos se compõem de átomos, mas os átomos são elementos hipotéticos, fictícios: na realidade, só há corpos, quer dizer, compostos; o simples é só um pensamento. Só é real a sociedade; o indivíduo é um fantasma como o átomo. Consequentemente, o individual não tem um valor absoluto, capaz de servir de norma, mas o geral, o comum a todos os homens. O produto político dessa noção de humanidade é o socialismo; como o humano é o comum, mais vale os muitos que os poucos, mais importante é melhorar no possível a sorte de uma grande massa que cultivar, à força da escravidão, uns poucos exemplares esquisitos. A essa noção extensiva de humanidade, Nietzsche opõe o seguinte: certo que o indivíduo não é algo isolado, mas daqui não se segue que haja de pertencer à multidão a norma dos valores. Através da história se foi criando um capital de perfeições espirituais, e assim como o socialismo – Nietzsche normalmente diz “niilismo” – ao socializar o capital impossibilitará a existência de riqueza intensiva, assim também impedirá o enchimento progressivo da cultura, que foi e sempre será obra de poucos, dos melhores. A cultura é a verdadeira humanidade, é o humano: com a expansão das virtudes nobres não se fazem maiores, mais intensas essas virtudes. Em algumas épocas, alguns homens privilegiados, como cimeiras de montes, lograram dar ao homem um grau a mais de intensidade: o que sucede é que à multidão carece de interesse. O importante é que a humanidade, a cultura, aumente seu capital em uns poucos: que hoje se deem alguns indivíduos mais fortes, mais belos, mais sábios que os mais sábios e mais belos que os de ontem. Note-se bem uma coisa: para Nietzsche não tem valor esses indivíduos por serem indivíduos: Nietzsche não é individualista ou egoísta. Não todo indivíduo por ser um “eu”, um Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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O sobre o homem, pp. 300-303 “sujeito”, deve ser considerado como norma, mas sim aqueles indivíduos cujo ânimo, cuja “subjetividade” possa ter um valor objetivo para elevar a um grau a mais, sobre o que já foi alcançado, para o tipo Homem. O conjunto, pois, de virtudes culturais, – não digamos agora quais são estas – cada vez mais perfeitas e potentes, é o que Nietzsche chama humanidade, opondo ao conceito extensivo e quantitativo que dão a esta palavra os altruístas, uma noção qualitativa e intensa. Para Nietzsche, viver é mais viver, ou, de outro modo, vida é o nome que damos a uma série de qualidades progressivas, ao instinto de crescimento, de perduração, de capitalização de forças, de poder. O princípio da vida, a vontade de vida é “Vontade de poder”. Tanto mais vida haverá em cada época quanto mais livre for a expansão dessas forças afirmativas. É daqui que a moral de Zarathustra impõe como um dever fomentar a libertação dessas energias. Em cada século brota ante o olhar dos fortes o ideal de uma organização humana mais livre e expansiva, de onde alguns poucos homens poderão viver mais intensamente. Este ideal é o Sobre o Homem. Como se vê, Nietzsche não predica o rompimento de toda lei moral. “O feito”, nota Simmel, “de que se tenha tomado esta doutrina como um egoísmo frívolo, como a santificação de uma epicuréia indisciplina, é um dos erros óticos mais estranhos na história da moral”. Zarathustra esculpe mil desdéns e impropérios contra os snobs da libertinagem, a quem falta o instinto para o alto acabamento da humanidade. “Eu”, grita, “sou uma lei para os meus, não para todos”. E noutra parte: “Não se deve querer gozar”. “A alma distinguida tem respeito a si mesma”. E, por fim: “O homem distinguido honra a si mesmo para a potência, para que tenha poder sobre si mesmo, para que saiba falar e calar, que exercita agradável rigidez e dureza consigo mesmo e sente veneração em direção a todo rígido e duro”. El Imparcial, 13 de julho de 1908

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Nietzsche e o ideal aristocrático, pp. 304-311

NIETZSCHE E O IDEAL ARISTOCRÁTICO1 A. K. Rogers, Yale University. Tradução de Thiago de Souza Salvio2

Que a qualidade da vida humana, e não seu mero ser, ou sua quantidade, é eticamente fundamental, é a indubitável verdade deixada atrás a parte da qual o ideal de aristocracia jogou no desenvolvimento humano. É dessa demanda que a vida tem vivido em termos de seus valores aristocráticos que Nietzsche começa; e a essência de tal super-qualidade da vida é o que ele busca para incorporar na sua frase "vontade de poder". Antes, de qualquer modo, observado o glamour da fórmula, carece-se determinar muito cuidadosamente no que precisamente, em termos de valor concreto o que destina-se emitir. Agora a vontade de poder pode naturalmente, todavia, sugerir um ideal no qual a completude positiva da vida e a abundância de valor contido é deve ser a nota dominante. Mas o traço mais característico no entanto, quando Nietzsche vem atualmente preencher os esboços, cai a tona a facilidade de colocar mais em termos negativos do que positivos. Como o que concretamente constitui a forma positiva da boa vida, Nietzsche é, de fato, tolerávelmente vago. Mesmo as boas intenções dele na matéria, a vontade de poder se torna primariamente não o fato da realização valorativa, mas uma extremidade do protesto autoconsciente contra certa atitude abstrata humana - a disposição para deixar suspensa na nossa extenuação, nos aliviar, ser contido com os alvos da medíocre humanidade. Isto explica o forte ímpeto de ascetismo em seu ideal, a despeito da tentativa duma ênfase na vida; isto auxilia o senso de poder do homem que pode praticar a "crueldade" em si mesmo, e

1 Este artigo

for publicado pela primeira vez na International Journal of Ethics (Jornal Internacional de Ética, Vol. 30, No. 4 (Jul., 1920), pp. 450-458. 2 Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da FFC – Unesp/ Marília. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.Email:thiagosouzasalvio@gmail.com.

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Nietzsche e o ideal aristocrático, pp. 304-311 assim sentir sua tensão de vontade e força. Por conseguinte, também, a onipresente demanda que a vida deveria ser um contínuo estado de guerra - de combate. Nietzsche é preenchido com um quase patológico senso dos fatos do mal, crueldade, dor e sofrimento, os quais envolvem a humana existência. O mestre dele, Schopenhauer, teve a mesma fundação erigida o sistema do pessimismo, e assegurou que para escapar do pervasivo mal da existência o homem deve renunciar a vontade de viver. Nietzsche vem para pensar que o mal oferece, antes, um conteúdo positivo para a vida. Ao invés de tentar escapar do mal e ganhar felicidade, a plena significação da vida jaz no sentido do poder do qual a necessidade de lutar contra forças hostis chama ao ser. Mal não é assim realmente mal; é necessário para o fim real do homem, e tão quanto o bem. O homem verdadeiro deseja por conflito, por perigo, até por dor, para garantir a exaltação de seu humor. É neste sentido bastante estreito, primeiro do qual, então, que levamos a demanda de Nietzsche pela "qualidade" de vida; qualidade é definível como aquela consciência da pura virilidade e extenuação, aquela indiferença aristocrática para motivos comuns do amor ao sossego ou medo do perigo, aquele profundo respeito pela própria excelência superior de alguém nunca levando-o a intermitir seus esforços, o qual, nas suas páginas, sempre aspira muito mais longe que os atuais fomentos que o bem objetivo pode efetivar. Do bom, a única coisa a ser realmente admirada, é, de fato, poder em si mesmo, a forma particular que isso assume é questão de indiferença, e a necessidade pela descrição objetiva da boa vida logicamente, portanto, tende cair abaixo. Sob a luz dessa larga ênfase, a doutrina de Nietzsche em detalhe há de ser compreendida. Assim seu repúdio ao cristianismo e às virtudes "sociais", - uma moralidade "do covarde, do esgueirado, tímido e modesto, aconselhando paz de espírito e fim do ódio, amor com respeito ao amigo e inimigo". Isto é nada senão uma moral de rebanho, um sacrifício da qualidade pelo número, o que é a negação dos grandes valores. "Então se levanta necessariamente a areia da humanidade, todos muito parecidos uns com os outros, muito pequeno, muito redondo, muito pacífico, muito cansativo". É evidente que disto não pode haver nada mas o desprezo pela multidão da humanidade, deficiente como são naquele elemento o qual chamam a fora no tocante a nossa admiração; com isto, também, o destino da excelência vem-a-ser identificado estreita e necessariamente com a existência da classe aristocrática, e a consciência do bem com a persuasão da força superior e parimento. A dúvida que tenho de levantar sobre tal ideal é, em geral, seu caráter auto-destrutivo. Para identificar, para começar com, o fado da distinção humana e dignidade com as pretensões de indivíduos ou uma classe é por sua vez baratear todo o empreendimento. Imediatamente é começar

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Nietzsche e o ideal aristocrático, pp. 304-311 a chamar adiante as infinitas capacidades da auto-desilusão e a vaidade na natureza humana, e desviar os olhos do homem do verdadeiro e objetivos padrões do bem humano. Nenhuma aristocracia nunca fez ou jamais pôde viver acima do retrato lisonjeiro que desenha a si mesmo. É abaixo da ilusão romântica; e para ver as coisas como elas são gerando uma humildade fatal para as reivindicações aristocráticas. Do ponto de vista do realismo intelectual, portanto, a típica têmpera aristocrática implica um defeito. Um senso de superioridade assegura ser o sinal de certa cegueira, uma falta de imaginação e intuição que é esteticamente desagradável. Quanto mais completo um homem vem a contato simpaticamente com seus camaradas, e mais completamente ele os conhece, mais alto ele se encontrará em comum para estimar o valor do estofo que há neles. Quando isto é questionado, eu acredito que a negação quase sempre será àqueles lidando com o homem, apesar de ampla extensão porventura, terá sido de uma ordem restrita e oficial - a quem está interessado neles somente como máquinas laboriosas, ou aprendizes de lições, ou animais lutadores disciplinados, ou em alguma capacidade especializada. Vista a grande massa de testemunho, o agnosticismo do aristocrata com referência para possibilidades existindo no curso comum do homem deve ser posta abaixo não pelo domínio intelectual superior, pelo menos para uma reivindicação arrogante cuja finalidade é intelectualmente inconveniente. Toda essa tendência para lidar com largas asserções com as quais indivíduos amontoados por tipos e generalizações é uma marca de falta de precisão intelectual. Qualquer um com senso de realidade vai sentir essa limitação pelo menos do lado imaginativo, quando trouxer a tona este sentimento de casta. A cegueira de mestres para a qualidade de uma classe servil, exceto como isso fixa a deveres convencionais de serviço, - a cegueira vingativa no viés de um criticismo agudo do outro lado-, do homem de raças superior que supõe dilacerar generalizações adequadas a complexidade infinita dos povos que despreza, a autosuficiência e a calma clareza com o qual o aristocrata tende a deixar a fora do mundo para ser contado com o comerciante e artífice, para ser reconhecido pelo que é - mera obtusidade e dogmatismo de espírito, que merece a condenação que pertence a qualquer involuntariedade para ser contida em fórmulas especiosas. E a mesma limitação vem a luz na outra direção - a superestima aristocrática de seu próprio valor. O ódio universal que o esnobismo chama a frente descansa numa verdadeira percepção que nenhum homem é grande o suficiente, ou melhor, que seus camaradas para justificá-lo apontando com orgulho a suas próprias excelências. Quando tal presunção enche a mente dele, é restringido a

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Nietzsche e o ideal aristocrático, pp. 304-311 ter um falso modelo de comparação que vicia seus julgamentos e dificulta sua performance. Alguém há apenas que notar a facilidade com a qual a casta militar de pretensões aristocráticas de um oficial passa a esnobar, e do esnobar a uma ineficiência e podridão seca. A reivindicação do "homem superior" é em qualquer caso muito fácil para exagerar. Nós habitualmente superestimamos a sabedoria do sábio, como usualmente descobrimos quando vamos mais de imediato em contato com eles. A fonte da força nas aristocracias tem comummente residido menos na superioridade individual do que na grande coesão do poder - em si uma conseqüência não de uma previsão inteligente mas do próprio interesse; de qualquer modo a coesão é protegida, a mesma superioridade política mostra, como na moderna máquina política moderna. Como um ideal adotado espontaneamente por uma classe inferior através

do

reconhecimento de qualidades na qual é em si mesma deficiente, aristocracia tem seus pontos positivos; apesar da falta de respeito pelo fato sem adornos, e a predileção pelo mais exibido e especiosos aspectos do bem, se rende sempre ao ideal romântico, com as imperfeições do romantismo. Então as verdadeiras virtudes aristocráticas, moldadas pelo contato com a realidade, e antes delas serem auto-consciente através da necessidade de ser forçado a defender a si mesmas contra "inferiores", são indubitáveis contribuições para a vida do homem, cujas aberrações devem clamar um grau de indulgência; como o gênio deve possivelmente ser perdoar atos tais como os que poderiam condenar um homem menor. Mas quando ele começa argumentar pela sua própria imunidade no fundo que ele é um gênio, é hora de sua imunidade cessar. Não é bom para o homem indulgir seu senso de ser uma exceção para a raça humana, com direitos especiais e um destino específico. Aristocracia como em si mesmo o ideal aristocrático já perdeu sua pungência e verdade, e se tornou menor que a vaidade da realização passada. Um aristocrata orgulhosamente consciente de sua superioridade, é aquele do menos edificante espetáculo humano. Agora enquanto Nietzsche com certeza mira escapar dos defeitos de aristocracias históricas, permanece verdadeiro que sua ênfase intelectual é apontada estreita em direção a eles. Por sua vez se inicia a substituir o sentimento de superioridade das próprias qualidades de alguém pelo desinteresse concernente ao bem objetivo, e o conteúdo inteiro do bom evaporam. A verdadeira distinção consiste na aptidão de ver mérito nos valores objetivos, e identificá-los às fortunas pessoais de alguém junto a sua realização. Mas Nietzsche efetivamente nega todos os valores salvando algum isoladamente. Há nada em si mesmo bom ou mau; um fim se torna bom somente Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Nietzsche e o ideal aristocrático, pp. 304-311 se chama adiante o sentido de força e poder no homem. Mas isto se deixa como a única coisa valendo depois do exercício do poder em si mesmo, independente do valor de resultados através dos quais nossa valoração normal justifica o poder no fim. Firmeza de vontade, agressividade, autocontrole, "dureza", no último refúgio toma seu caráter estabelecido como virtude do serviço que executam, e não podem seguramente se posicionar no negócio de sua própria conta. O propósito da banheira inglesa é a higiene, não a cultivação do senso de quão admirável é o hábito; e quando alguém começa a se orgulhar em nunca omitir seu banho, ele está a caminho da destruição espiritual. Isto aparece surpreendentemente, mais uma vez, na doutrina sobre o mal em Nietzsche. Aquele mal, dor, sofrimento, deve licitar o poder de combate do homem e a resistência, e então provar-se capaz de se transmutar no bem, e que sem eles, de fato, ele poderia falhar para alcançar sua verdadeira estatura, é uma intuição valiosa, apesar de escassamente nova. Mas quando Nietzsche deduz disto, que estamos deste modo, não na tentativa de abolir o mal, mas mantendo-o existente ao invés, e até aumentando isso, que teremos muito mais material para tentar o fortalecimento da alma, ele está indo ao contrário de todo instinto moral. O mal momentâneo cessa para nós de ser realmente ruim, e

somente

um

meio

para

o

bem

cuidadosamente a ser conservado, o único motivo que permanece para lutar é aquela autoglorificação romântica; o valor significante da cruzada contra os lapsos do mal. Para o homem moral, o mal não é algo intrinsecamente indiferente, que toma um valor através do exercício condicionado do poder; poder em si mesmo se torna um bem genuinamente defensável só porque é alistado na tarefa de assegurar os fins bons e admiráveis em si mesmos, e por abolir coisas más e odiáveis. Nietzsche não nega que o bem é também bom. Mas é, de novo, bom só do mesmo jeito que é o mal - tal como suplicar um osso pela força agressiva para roê-lo. "O amor dá o mais alto sentimento de poder" - tal justificativa é precisamente a teoria "egoísta" de Hobbes, disfarçada em linguagem literária. A mesma tendência de sobreolhar o verdadeiro locus do bem aparece de outra forma quando Nietzsche faz do homem que mais plenamente incorpora o poder a fim com referência à todos aqueles que são usados como meio. Bastante lógico, o além-do-homem, ele mesmo, deve reconhecer sua superioridade, e sacrificar calmamente o fraco para o seu engrandecimento. Agora isto certamente recolta nosso desinteressado sentimento de moral. Se o além-do-homem em um naufrágio fosse salvar a própria vida importante as custas de uma mulher desamparada, deveríamos, por vez, sentir que a estima pelo valor dele precisava de uma drástica revisão. Um

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Nietzsche e o ideal aristocrático, pp. 304-311 espectador deve sempre se permitir um sentimento de lástima quando a vida mais valorosa é sacrificada pela menor. Mas para um homem deliberadamente adotar essa estima dele mesmo, e agir sobre isso, à parte das reivindicações de algum dever especial do qual ele pode ser acometido, nos repugna. Se, de fato, o bem era nada senão a vontade de poder em si mesma, talvez uma boa e vital espécime da raça deveria ser mantida a qualquer preço. Mas se pensarmos outros valores também necessários para um ideal que retenha nossa fidelidade, tão elevado seja o senso da necessidade de alguém no mundo que possa prejudicar em demasia esse bem maior. E por toda parte em Nietzsche a megalomania natural do aristocrata se intromete, para nossa apreciação dos méritos dele. Nós tomamos nota continuamente de um desdém orgulhoso e auto-suficiente que marca uma falha no realismo intelectual. Estes novos senhores da terra substituem Deus, levando todos os negócios do homem para suas capazes mãos fortes, ganhando a profunda e incondicional confiança dos dominados; renunciando a felicidade para eles mesmos, possuem um olho para o alcance inteiro das carências sociais, redimindo os miseráveis pela doutrina da "morte rápida", e favorecendo religiões e sistemas de ideias de acordo com a aptidão para este ou aquele grau de inteligência. Devemos porventura, apesar de algum risco considerável, segurar essa visão de uma vontade onipotente e uma sabedoria infalível diante nós para contemplar; porém nós não esperamos ver isso realizado na forma humana. Não há tal animal; e o homem que pensa a si mesmo ajustado para condescender ao universo, e jogar uma providência terrena, está simplesmente revelando suas próprias limitações. Nietzsche em pessoa não é livre de defeito; e quando o encontramos falando de si mesmo com suficientemente poderoso para "quebrar a história da humanidade em duas partes", antecipando como efeito de seu livro que "em dois anos deveremos ter a terra toda em convulsões", o choque do nosso senso de proporção é em si mesmo uma crítica válida do ideal dele. Assumi até aqui que para Nietzsche o além-do-homem, como uma incorporação concreta do poder, é um fim último, justificado em explorar a humanidade inferior no interesse de suas próprias qualidades admiráveis. Mas agora há outro ponto de vista combinado com isso em Nietzsche que sugere um modo de aproximação diferente. Amiúde, talvez mais frequente Nietzsche esteja preocupado a recomendar ao ideal aristocrático como um ideal, de preferência, da presente humanidade imperfeita, lidando o alvo para a criação de um tipo-homem até então irrealizado. Isso vem a ser um ideal do futuro, para o qual somos chamados para sacrificar a nós mesmos, e na consecução da qual o mundo existente e todas gerações predecessoras estão bem perdidas.

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Nietzsche e o ideal aristocrático, pp. 304-311 A criação de uma raça humana e seu avanço como fim para o presente e seres humanos imperfeitos tem, de fato, uma objetividade pela qual o ideal do além-do-homem, olhando para ele mesmo como um fim, e subordinado o universo ao exercício de seus talentos, falha ao oferecer. Para sacrificar alguém pelo "bem-estar" da raça é uma daquelas frases que soa bem, e que tem verdade suficiente nela não sendo descartável completamente. Mas tão logo como isso realmente significa o que diz, combina-se as dificuldades da filosofia ordinária do auto-sacrifício com outras peculiaridades para si mesma. Que deveríamos refrear de fazer o que é planejado para colocar a próxima geração em desvantagem, e tentar construir muito solidamente que os benefícios por nós regozijados devem se assegurar sobre o futuro, podemos manter isso em mente de maneira mais firme do que fazemos. Mas que precisamos subordinar os interesses da geração presente para as eras posteriores, e obter seu bem-estar no coração, de preferência, do nosso, que deveríamos "pôr nós mesmos para trazer à existência quem deve permanecer elevado sobre todas as espécies, e sacrificar a nós mesmos e nossos vizinhos para este fim", significa surpreendentemente pouco quando submetemos aos planos factuais. Se não podemos deveras trazer o bom da vida aos outros, até nossos contemporâneos, porém tem que deixá-los largamente aos seus próprios artifícios, como podemos trabalhar, salvar incidentalmente e num jeito bem geral, as pessoas ainda não nascidas? E estamos certos que eles nos agradeceriam se estivéssemos lá para ouvir a opinião deles? Qualquer esforço para antecipar o futuro, a parte dos passos imediatos em frente, nos leva para o campo da adivinhação e utopias, remove as condições essenciais do experimento sucedido. Mas de outro lado sendo impraticável, o empresta a si para a cultivação da raça presente também de um estado mental de mérito questionável; e isso nos leva de volta aos defeitos da aristocracia novamente. É quase inevitável que, com tal objetivo ante nós, nossa condenação das qualidades indignas para tornar em desdém daqueles que, como pensamos, mostra esses atributos, e a preferência do nobre sobre o ignóbil a uma separação da humanidade em ovelhas e bodes; e depois nos deitamos abertos ao mesmo criticismo como antes. Não só são vaidade e esnobação claramente para serem engendrados em nós, mas isso significa que do ideal em si há de ser deixado afora o lado da simpatia democrática, que não obstante tem, igual com a virilidade, uma reivindicação para uma posição entre as qualidades "elevadas". E quanto mais conscienciosa nossas atitudes, o mais puxamos em frente o resultado do fim ao futuro distante e buscamos observar uma nova espécie tomar o lugar do homem presente, quanto mais estamos limitados na lógica de desprezar o homem como conhecemos, na vida presente; tanto mais, deste modo, nosso sentido de valor da vida, e possibilidades no homem, vira pessimismo e derrota prática. Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Referência ROGER,

A.

K.

Nietzsche

and

the

Aristocratic

Ideal.

<https://www.jstor.org/stable/2377133?seq=1#page_scan_tab_contents>

Disponível

em:

Acesso em: 03 de

Maio de 2018.

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320

CARTA DE HEIDEGGER A HUSSERL Martin Heidegger Tradução: Francisco Amsterdan Duarte da Silva1 APRESENTAÇÃO DO TEXTO A carta aqui traduzida – verdadeiro marco na correspondência e nas relações, além de pessoais, teóricas entre Martin Heidegger e Edmund Husserl – tem como pano de fundo a conturbada redação do artigo de Husserl Fenomenologia, publicado na Encyclopaedia Britannica no mesmo ano da carta, em 1927. Trata-se de um ano importante para Heidegger: em abril, Ser e tempo é publicado; em outubro, uma visita a Husserl, visando à colaboração no artigo, suscita as discussões aqui levantadas; antes do fim do mesmo mês, torna-se professor na universidade de Marburgo. Eventos importantes e de significativa repercussão em seu pensamento e sua obra. Uma verdadeira viragem, pelo menos no plano cronológico-biográfico, antes da Kehre propriamente dita, nos anos 30. Mas, além do contexto, o conteúdo da carta é rico em desdobramentos. É o próprio Heidegger que declara, aliás, que aproveitará a ocasião para “sublinhar as tendências fundamentais de Ser e Tempo no interior da problemática transcendental”. A ideia da psicologia pura aparece-lhe como um tópico decisivo no distanciamento que sua concepção de fenomenologia e seu projeto de ontologia fundamental tomam em relação à fenomenologia transcendental de Husserl. Assim, as objeções aqui direcionadas de forma ainda tímida lançam alguma luz sobre a mudança de atitude de Heidegger em relação a Husserl, concretizada, entre outras coisas, pela supressão da dedicatória ao mestre em edição posterior de Ser e tempo. À parte os motivos políticos dessa ruptura, os motivos filosóficos essenciais se encontram esboçados neste pequeno documento. …

1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. Mestre e Graduado em Filosofia pela mesma instituição. Endereço de e-mail: amster_duarte@hotmail.com

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320 O texto é traduzido a partir do original alemão2 e cotejado com as traduções francesa3 e inglesa4. Há referências, em algumas notas, à Husserliana, IX. Trata-se do texto das lições do semestre de verão de 1925, intitulado Psicologia fenomenológica5. As notas precedidas por NE pertencem à edição original alemã. As precedidas por NT são do presente tradutor.

CARTA DE HEIDEGGER A HUSSERL

Meßkirch, 22 de Outubro de 1927. Caro, paternal amigo! Agradeço-lhe de coração, e à adorada senhora sua esposa, pelos dias passados em Friburgo6. Tive de fato a sensação de ser tratado como um filho. Somente em meio ao trabalho efetivo os problemas se tornam manifestos. Assim sendo, o conforto da simples discussão ociosa [Feriengespräche] nada traz à tona. Ainda mais porque dessa vez tudo se encontrava sob o peso de uma imperativa e significativa tarefa. E apenas nos últimos dias comecei a me dar conta sobre até que ponto sua ênfase na psicologia pura lança as bases para a elucidação – ou ainda, para um desdobramento inaugural, em toda sua determinidade [Bestimmtheit] – da questão da subjetividade transcendental e de sua relação com o puramente psíquico. Claro, o inconveniente é que não estou a par das investigações concretas dos últimos anos. Isso posto, as objeções a seguir podem facilmente passar por meramente formalísticas. Nas folhas inclusas, procuro ainda uma vez fixar os pontos essenciais. O que aliás proporciona uma ocasião para sublinhar as tendências fundamentais de Ser e Tempo no interior da problemática transcendental. As páginas7 estão escritas de forma substantivamente mais concisas do que no rascunho original. A estrutura está nítida. Os encurtamentos e melhoramentos foram feitos após repetidos retornos ao texto. Os comentários marginais em vermelho dizem respeito a questões de ordem factual, as quais procuro sumarizar brevemente no Anexo I a esta carta. O Anexo II trata de questões relativas à disposição das referidas páginas. É importante por si só, para o artigo, que a problemática da fenomenologia seja tratada em uma exposição sucinta e bastante impessoal. Na medida em que a explicitação definitiva do assunto

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Heidegger an Husserl. In: HUSSERL, Edmund. Husserliana, Dokumente – Band III (Briefwechsel), Teil 4 (Die Freiburger Schüler). Dordrecht: Springer, 2013, pp. 144-148. 3 Lettre de Heidegger à Husserl. Trad. Jean-François Courtine. In: HUSSERL, Edmund. Notes sur Heidegger. Paris: Les éditions de minuit, 1993, pp. 115-118. 4 Martin Heidegger, Letter to Husserl. Trad. Thomas Sheehan. In: Husserl, Edmund. Psychological and transcendental phenomenology and the confrontation with Heidegger (1927-1931). New York: Springer, 2013, pp. 183-189. 5 HUSSERL, Edmund. Husserliana, IX: Phänomenologische psychologie. 2. ed. Dordrecht: Springer, 1968. 6 [NE:] Em 10 de Outubro de 1927, durante sua viagem de Marburgo a Meßkirch, Heidegger visitou Husserl e o ajudou na edição do rascunho do artigo Fenomenologia para a Encyclopaedia Britannica (ver Husserliana, IX, p. 237 et seq.). 7 [NE:] As páginas finais da segunda versão do artigo (Husserliana, IX, pp. 271-277).

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320 é no fundo uma exigência para a clareza da apresentação, seu foco no artigo deve permanecer restrito a uma apresentação clara do que é essencial. Na prática, o curso de nossa discussão mostrou que é preciso não adiar mais as publicações maiores. Sua observação de que ainda não há, propriamente, nenhuma psicologia pura tem se tornado recorrente nos últimos tempos. Pois bem – as partes essenciais dela constam nas três seções datilografadas por Landgrebe8. Essas investigações devem aparecer primeiro, e isso por dois motivos: (1) para que se tenha em mente as investigações concretas, ao invés de se ir buscá-las em vão como programas apenas prometidos; (2) a fim que lhe seja possível recuperar o fôlego para uma exposição fundamental da problemática transcendental. Gostaria de lhe pedir que tome a segunda versão do plano para os Estudos9 como guia. Pusme a lê-la novamente e sustento ainda a mesma avaliação de minha última carta. Ontem recebi de minha esposa a carta de Richter (da qual segue cópia no Anexo III). Escrevi a Mahnke10. Não retomo hoje o trabalho propriamente dito. Será uma enorme correria com o curso11, os dois exercícios [Übungen]12, as conferências em Colônia e Bonn, e ainda Kuki13. Mas a disposição [Aufgeregtheit] necessária ao problema já foi despertada, o restante precisa ser forçado. Na próxima semana parto para me encontrar com Jaspers, de quem espero obter alguns conselhos. Desejo-lhe uma feliz conclusão do artigo, o qual lhe instigará vários problemas a título de ponto de partida para futuras publicações. Ainda agradecendo-lhes de todo coração, a si e à adorada senhora sua esposa, pelos dias agradáveis, saúdo-os em sincera amizade e veneração. Seu, Martin Heidegger.

8

[NT:] Ludwig Landgrebe (1902-1991), filósofo austríaco que foi assistente de Husserl a partir de 1923 e responsável pelos Arquivos Husserl a partir de 1954. Heidegger se refere ao não publicado Estudos sobre a estrutura da consciência [Studien zur Struktur des Bewußtseins], esboço elaborado por Landgrebe a partir dos manuscritos de Husserl. 9 [NT:] Cf. nota acima. 10 [NT:] Ver final do Anexo III. 11 [NT:] Lições sobre uma interpretação fenomenológica da Crítica da razão pura. 12 [NT:] Seminários universitários simultâneos: Schelling, Sobre a essência da liberdade humana e Conceito e conceitualização [Begriff und Begriffsbildung]. 13 [NT:] Shûzô Kuki (1888-1941) fora aluno de Husserl em Friburgo. Heidegger o encontra pela primeira vez no mesmo período de sua visita a Husserl à qual esta carta alude (cf. nota 1 acima). Kuki frequenta os cursos de Heidegger no final dos anos 20, estabelecendo com ele um diálogo extremamente fecundo e relevante para o desenvolvimento da Escola de Kyoto. Publica, nos anos seguintes, sob forte influência de Heidegger, A estrutura do Iki (1930), A filosofia de Heidegger (1933) e O humano e a existência (1939). Heidegger, por sua vez, escreve o texto sob forma de diálogo De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador, publicado em A caminho da linguagem.

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Anexo I: dificuldades factuais Estamos de acordo a respeito de que os entes no sentido daquilo que vem denominado “mundo” não poderiam ser elucidados em sua constituição transcendental mediante um retorno a um ente cujo modo de ser fosse o mesmo. Isso não quer dizer, contudo, que o que estabelece o lugar do transcendental não é um ente, mas sim que, isso posto, o seguinte problema emerge: qual é o modo de ser do ente no qual o “mundo” é constituído? Eis o problema central de Ser e tempo, i. e., uma ontologia fundamental do Dasein. Trata-se de mostrar que o modo de ser do Dasein humano [menschlichen Daseins] é completamente diferente daquele de todos os outros entes, e que tal modo de ser, sendo o que é, traz consigo a possibilidade da constituição transcendental. A constituição transcendental é uma possibilidade central da existência do Si fático. Este, o humano concreto enquanto tal, não é nunca um “fato real mundano”14, pois o humano não é nunca meramente dado [vorhanden]; o humano existe [existiert]. E o espantoso nisso é que a constituição existencial do Dasein possibilite a constituição transcendental de tudo que é positivo. As considerações “unilaterais” da somatologia e da psicologia pura apenas são possíveis a partir da totalidade concreta do humano, a qual determina em primeiro lugar o modo de ser deste. O “puramente psíquico” não foi desenvolvido, até então, com vistas a uma ontologia do humano como um todo, isto é, no intuito de uma psicologia – pelo contrário, ele emergiu desde o início, com Descartes, de reflexões de cunho epistemológico. O constituinte não é Nada; é algo, é algo que é – embora não no sentido do positivo. A questão do modo de ser do próprio constituinte não pode ser evitada. Dessa forma, a questão do ser concerne universalmente tanto ao constituinte quanto ao constituído.

Anexo II: a propósito da disposição das páginas O que vem primeiro na apresentação do problema transcendental é a clarificação do que significa a “incompreensibilidade” dos entes15. Em que sentido o ente é incompreensível? Isto é, qual é a exigência mais eminente de compreensibilidade que se faz possível e necessária. A que se deve retornar para que essa compreensibilidade seja atingida? O que significa o Ego absoluto em contraste com o puramente espiritual?

14

[NE:] Husserliana, IX, p. 273: “os fenômenos puramente psíquicos possuem, apesar de sua pureza, o sentido de ser [Seinssinn] de fatos reais mundanos”. 15 [NE:] Husserliana, IX, p. 271: “Ao passo que o interesse teórico se volta à vida da consciência [Bewußtseinsleben], [...] uma névoa de incompreensibilidade passa a pairar sobre todo o mundo”.

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320 Qual é o modo de ser desse Ego absoluto – em que sentido ele coincide com o Eu desde já fáctico? Em que sentido difere? Qual é o caráter do ato de posição pelo qual o Ego absoluto é um posicionado16 [Gesetztes]? Em que medida não há aqui positividade (posicionabilidade) [Gesetztheit]? A universalidade do problema transcendental.

Anexo III “Tenho a satisfação de poder comunicá-lo de que o Senhor Ministro resolveu atribuir-lhe a cátedra regular de Filosofia na Universidade local17. Considerando seus ganhos atuais, o salário base seria fixado em 6534 RM anuais, com aumento bienal, conforme a regra, até o salário final de 9630 RM. Ao solicitar-lhe uma posição a respeito desse arranjo, tenho ao mesmo tempo a honra de informá-lo de que o Privatdozent Dr. Mahnke18, de Greifswald, foi designado para ocupar sua cátedra atual. Com a mais elevada estima”.

TEXTO ORIGINAL

16 [NT:]

Cf. Husserliana, IX, p. 275. Marburgo. 18 [NT:] Dietrich Mahnke (1884-1939) fora aluno de Husserl em Göttingen. 17 [NT:]

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320 Heidegger an Husserl, 22. X. 1927

Meßkirch, 22. Okt<ober> 27.

Lieber väterlicher Freund! Ich danke Ihnen und Ihrer verehrten Frau Gemahlin herzlich für die verflossenen Freiburger Tage. Ich hatte wirklich das Gefühl wie ein Sohn aufgenommen zu sein. – Erst in der wirklichen Arbeit werden die Probleme offenbar. Daher bringt die Behaglichkeit bloßer Feriengespräche nichts hervor. Diesmal aber stand alles unter dem Druck einer dringenden und wichtigen Aufgabe. Und erst in den letzten Tagen begann ich zu übersehen, inwiefern Ihre Betonung der reinen Psychologie den Boden gibt, die Frage der transzendentalen Subjektivität u. ihres Verhältnisses zum rein Seelischen zu klären, bezw. allererst in voller Bestimmtheit aufzurollen. Der Nachteil ist freilich, daß ich die konkreten Untersuchungen der letzten Jahre nicht kenne. Die Einwände erscheinen daher leicht als formalistisch. Auf den beiliegenden Blättern versuche ich noch einmal, die wesentlichen Punkte zu fixieren. Das gibt auch Gelegenheit, die grundsätzliche Tendenz von "Sein und Zeit" innerhalb des transzendentalen Problems zu kennzeichnen. Die Blätter S. 21-28 sind wesentlich konziser geschrieben als der erste Entwurf. Der Aufbau ist durchsichtig. Die stilistischen Kürzungen u. Glättungen habe ich gleich nach wiederholter. Durchprüfung im Text angebracht. Die rot muränderten Randbemerkungen betreffen sachliche Fragen, die ich in Anlage I dieses Briefes kurz zusammenfasse. Anlage II. betrifft Dispositionsfragen für die genannten Seiten. Für den Artikel ist es allein wichtig, daß die Problematik der Phänomenologie in der Form des knappen, ganz unpersönlichen Referats zum Ausdruck kommt. So sehr für die Klarheit der Darstellung im Grunde letzte Klärung der Sachen Voraussetzung bleibt, so muß doch Ihr Augenmerk bez<üglich> des Artikels auf eine klare Darstellung des Wesentlichen beschränkt bleiben. Praktisch hat der Verlauf unserer Gespräche gezeigt, daß Sie mit den größeren Publikationen nicht mehr warten dürfen. Sie bemerkten in den letzten Tagen wiederholt: eigentlich gibt es noch keine reine Psychologie. Nun – die wesentlichen Stücke liegen in den drei Abschnitten des von Landgrebe getippten Ms. Diese Untersuchungen müssen zuerst erscheinen u. zwar aus zwei Gründen: 1. Daß man die konkreten Untersuchungen vor Augen hat u. nicht als versprochene Programme vergeblich sucht. 2. Daß Sie selbst Luft bekommen für eine grundsätzliche Exposition der transzendentalen Problematik. Ich möchte Sie bitten, den zweiten Entwurf für die "Studien" festzuhalten als Leitfaden. Ich habe ihn jetzt nocheinmal durchgelesen u. halte mein Urteil im vorigen Brief aufrecht. –

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320 Gestern bekam ich von meiner Frau den Brief Richters (in Anlage III. Die Abschrift davon). Mahnke habe ich geschrieben. Hier komme ich natürlich nicht zur eigenen Arbeit. Das wird ein schönes Gedränge werden mit der Vorlesung u. den zwei Übungen u. den Vorträgen in Köln u. Bonn u. dazu Kuki. Aber die nötige Aufgeregtheit für die Probleme ist geweckt u. das Übrige muß erzwungen werden. Ich fahre nächste Woche von hier zu Jaspers, bei dem ich mir noch einige taktische Ratschläge holen werde. Ich wünsche Ihnen einen glücklichen Abschluß des Artikels, der als Anlauf zu den weiteren Publikationen viele Probleme in Ihnen wach erhalten wird. Indem ich Ihnen und Ihrer verehrten Frau Gemahlin nochmals herzlich danke für die schönen Tage, grüße ich sie in treuer Freundschaft u. Verehrung Ihr Martin Heidegger.

* Anlage I. Sachliche Schwierigkeiten

Übereinstimmung besteht darüber, daß das Seiende i<m> Sinne dessen, was Sie "Welt" nennen, in seiner transzendentalen Konstitution nicht aufgeklärt werden kann, durch einen Rückgang auf Seiendes von ebensolcher Seinsart. Damit ist aber nicht gesagt, das was den Ort des Transzendentalen ausmacht, sei überhaupt nicht Seiendes – sondern es entspringt gerade das Problem: welches ist die Seinsart des Seienden, in dem sich "Welt" konstituierte? Das ist das zentrale Problem von Sein u. Zeit – d. h. eine Fundamentalontologie des Daseins. Es gilt zu zeigen, daß die Seinsart des menschlichen Daseins total verschieden ist von der alles anderen Seienden u. daß sie als diejenige, die sie ist, gerade in sich die Möglichkeit der transzendentalen Konstitution birgt. Die transzend<entale> Konstitution ist eine zentrale Möglichkeit der Existenz des faktischen Selbst. Dieses, der konkrete Mensch ist als solcher – als Seiendes nie eine "weltlich reale Tatsache", weil der Mensch nie nur vorhanden ist, sondern existiert. Und das "Wundersame" liegt darin, daß die Existenzverfassung des Daseins die transzendentale Konstitution alles Positiven ermöglicht. Die "einseitigen" Betrachtungen der Somatologie u. reinen Psychologie sind nur möglich auf dem Grunde der konkreten Ganzheit des Menschen, die als solche primär die Seinsart des Menschen bestimmt.

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320 Das "rein Seelische" ist eben schon gar nicht im Blick auf die Ontologie des ganzen Menschen erwachsen, d.h. nicht in Absicht auf eine Psychologie – sondern es entspringt von vomherein seit Desc<artes> erkenntnistheoretischen Überlegungen. Das Konstituierende ist nicht Nichts, also etwas u. seiend – obzwar nicht im Sinne des Positiven. Die Frage nach der Seinsart des Konstituierenden selbst ist nicht zu umgehen. Universal ist daher das Problem des Seins auf Konstituierendes u. Konstituiertes bezogen.

* Anlage II. betr. Disposition v<on> S. 21ff.

Das erste in der Darstellung des transzendentalen Problems ist die Klärung dessen, was "Unverständlichkeit" des Seienden besagt. In welcher Hinsicht ist Seiendes unverständlich? D.h. welcher höhere Anspruch von Verständlichkeit ist möglich u. notwendig. Im Rückgang worauf wird dieses Verständnis gewonnen? Was heißt absolutes Ego im Unterschied vom rein Seelischen? Welches ist die Seinsart dieses absoluten Ego – in welchem Sinne ist es dasselbe wie das je faktische Ich; in welchem Sinne nicht dasselbe? Welches ist der Charakter der Setzung, in der das absolute Ego Gesetztes ist? Inwiefern liegt hier keine Positivität (Gesetztheit) vor? Die Universalität des transzendentalen Problems.

* Anlage III.

"Ich habe die Freude, Ihnen mitteilen zu können, daß mein Herr Minister sich entschlossen hat, Ihnen die planmäßige ordentliche Professur f<ür> Philosophie an der dortigen Universität zu übertragen. Unter Berücksichtigung Ihrer gegenwärtigen Bezüge würde Ihr Grundgehalt auf 6534 RM. jährlich festgesetzt werden, wie üblich steigend von 2 zu 2 Jahren bis zum Endgehalt 9630 RM.

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Carta de Heidegger a Husserl, pp. 312-320 Indem ich Sie bitte, zu dieser Regelung Stellung zu nehmen, beehre ich mich gleichzeitig mitzuteilen, daĂ&#x; auf die bisher von Ihnen besetzte Professur Privatdoz<ent> Dr Mahnke aus Greifswald berufen worden ist. In ausgezeichneter Hochachtung".

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RESENHA


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CUTUCANDO A INÉRCIA COM VARA CURTA Ivan Neves Marques Júnior1 Universidade de São Paulo

Ouriço: senso incomum, de Adriano de Paula Rabelo São Paulo: Aglaia, 2019, 152 páginas

Aforismo é uma sentença de cunho moral ou prático que, de certa forma, sintetiza um pensamento e eclode no raciocínio do leitor. Por óbvio, essa é apenas uma das formas de se definir

1 E-mail: jfaria58@yahoo.com.br

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um aforismo. Mas ela se encaixa na percepção resultante dos muitos que encontramos na mais recente obra de Adriano de Paula Rabelo, intitulada Ouriço: senso incomum. Segundo o autor, o título da obra tem a ver com o desejo de perturbar e estabelecer uma crítica de comportamento, mas de uma forma pacífica, tal qual o animal ouriço, dócil e ao mesmo tempo repleto de espinhos. Rabelo possui vários livros em seu currículo, mas quem leu seu último trabalho, Desabraçar (se você não leu, leia, pois é muito bom), e agora este, verá que sua última ocupação tem sido desvelar a crueza dos costumes humanos em suas idiotices, hipocrisias, vergonhas, bizarrices, fascismo, vulgaridades etc. E, se esse processo de censura aos costumes (sutil ou mesmo aberta, por vezes dissimulada) permanece, o estilo do autor começa agora a soltar as amarras da norma culta, caminhando com segurança numa plataforma de escrita que se compõe agora de neologismos e uma infinidade de recursos da linguagem, trazendo uma verve refrescante ao domínio de sua escrita. Para que o leitor tenha uma pequena ideia do que isso significa, não há outro caminho para se alcançar a potência de escrita e força narrativa de um Machado de Assis, um Guimarães Rosa ou um Graciliano Ramos. O livro de divide em quatro seções. Elas compartimentam aforismos que, via de regra (ou seja, não todos eles), singularizam um costume, uma crença, um pensamento marcado pelo senso comum, para tão somente, no mesmo instante, destruí-lo. Esse recurso de singularização e explosão também aparece (embora numa outra variante discursiva) na obra Desabraçar e parece se configurar uma inovadora característica do autor. Essas quatro seções também servem para apontar as maneiras encontradas por ele para desaforar a vida através de seus aforismos. Que os leitores me perdoem o trocadilho, mas ele cabe e é proposital. Na primeira seção, intitulada Sociocultural, prevalece um riso oblíquo, sarcástico ou até debochado sobre o famoso contrato social, que hoje mais parece um peso a se carregar pela vida, uma espécie de saco de pedras que hedonismo nenhum alivia. A arma mais pesada contra esse tipo de coisa é o riso. É a arma mais poderosa capaz de destruir uma instituição, aniquilando justamente todas suas crendices, insanidades e absurdos, que demais transitam em seu próprio meio, sempre numa corrente cínica, empacotada na mais pura normalidade. Quando, no aforismo Consultas, o autor diz que “O horóscopo é o meretrício da esperança”, não busca com isso desatar a risada, mas cortar o costume pelo sarcasmo, irritando o maneirismo da vida comum pelo quase deboche. E o que dizer de Estirpe: “A Justiça tem classe”? Talvez injusto, não? Afinal todos nós ganhamos 50 mil por mês, não é mesmo? Todos nós recebemos auxílio-moradia, não é verdade? O caminho desse Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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riso é a lembrança de que há entre nós uma constituição social, um tecido feito aparentemente de “contratos” entre seus componentes, em suma, todos os cidadãos. Caia o leitor das nuvens de algodão e saiba que os homens formam um contrato social não por anseios altruístas e colaborativos, mas por instintos de disputa e autopreservação. Isso pode lhe parecer pessimista, caro leitor, mas é o jeito como a coisa é. E seja qual for sua orientação política, Vossa Senhoria há de convir comigo que não vivemos exatamente dias de celebração de pactos sociais, daí o peso em nossas vidas sem que sequer percebamos. Diz o próprio autor: “Civilização é a barbárie enluvada”. Tapa com luva de pelica na nossa esperança de que tudo vai bem. Recheada de torções de frases feitas, a segunda seção traz aforismos sobre os Sentimentos. Que me perdoem os leitores, mas acabei de ler o livro e talvez ele tenha me contagiado de certo deboche raivoso, afeto resultante de uma desesperança ou vazio trazido pela vida à maneira como vimos nos aforismos dessa seção. Por óbvio, sempre haverá o mais empedernido defensor do Amor como forma de resgate e esperança para a humanidade... Mas, de verdade, será que não passou da hora de sentarmos e discutirmos nossa relação com o Amor? Quem sabe não possamos fazer isso à noite, com uma taça de vinho e... sozinhos! Em resumo, tudo parece uma Brisa em que “O amor é uma ventosidade de esperança”. Esses aforismos “sentimentais” de Ouriço nos ensinam que, no fim, todos estamos sós e que, como nos diz o aforismo Acolá, “O sofrimento vai sempre além de qualquer análise”. No entanto, é importante deixar claro que essa verve antipatética não está a serviço de negar nossos sentimentos ou mesmo o Amor. Tudo sempre é o ser humano. Nesse caso, trata-se de mais uma manifestação do pessimismo do autor para com a nossa espécie, que conflagra ilusões ao mesmo tempo em que parece querer destruir tudo o tempo todo. Na terceira seção, o livro elenca uma série de aforismos relacionados à linguagem. E é por ela que vazam as desesperanças com nossa existência, como se tudo fosse um fluxo inevitável em que a fluidez da fala revela os conflitos interiores. É verdade que usamos a linguagem para ironizar, debochar ou falar dos nossos sentimentos, como vimos até então. O caso é que agora o autor procura mostrar que a própria linguagem é um instrumento de perturbação. Vou tentar explicar melhor. É como se ele dissesse que a linguagem é uma obrigação algo que burocrática e que está na verdade a serviço de nossa incapacidade de sermos mais colaborativos ou mesmo mais altruístas ou, para usar um termo mais atual, empáticos. Assim tudo o que resta como opção é o silêncio. Quando lemos que “O silêncio é a única sabedoria ao alcance do imbecil”, somos, à primeira vista, levados a pensar nos imbecis, nas pessoas que consideramos imbecis. Mas logo percebemos que, Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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pensando assim, o conceito de imbecil não é algo congelado no tempo em que as pessoas nele se enquadram. Na verdade, ser imbecil é sempre um risco ao qual qualquer um está sujeito, se não perenemente, ao menos ocasionalmente. E o pior é que, se isso for verdade, não seria o silêncio então uma quase imposição a todos nós? Decerto não há como as coisas serem assim. Mas isso prova o quanto aforismos desse tipo podem nos fazer parar e pensar em nosso grande e quotidiano falatório. Se notarmos bem, quase todos os aforismos desta seção propõem uma coisa muito simples nestes tempos de vozerio desenfreado: é melhor que façamos silêncio. A quarta e última seção traz aforismos que flertam com a filosofia. Não por acaso ela se denomina Especulações. Algumas de suas frases referem-se a pensamentos filosóficos. Parecem querer brincar com a própria metafísica, ao cutucar temas como a verdade (Verdade: “A mentira tem pernas curtas porém asas longas”), a eternidade (Ensejo: “A eternidade tem seus momentos”) e a liberdade (Punilha: “O indivíduo, esse caruncho da liberdade”). Ai de ti, Adriano, quando encontrares Kant ou Aristóteles! A seção se estende em outros temas, tais como vida, homem, livre-arbítrio etc. Tudo para estender o tapete da inconfiabilidade também do pensamento. Mais um desenrolar do convite à desesperança produtiva. Em Ecce hinc: “Além do horizonte há outro horizonte”, por exemplo, além da referência a Nietzsche (Ecce homo), o autor brinca com a expressão esperançosa de se encontrar algo além de onde podemos ver. Para ele, a esperança não leva a lugar algum, pois sempre há algo mais a se esperar. É melhor que nos concentremos no nosso caminho, no agora. Uma seção destinada ao discurso habitual dos aforismos é uma forma de homenagear a filosofia, mas também de apontar a miserável condição humana frente aos desafios de seu próprio pensamento. O título do livro é autoinstrutivo. A intenção é claramente colocar um ouriço na sala e perguntar quem tem coragem de mexer com ele. O objetivo é garantir que se possa cutucar qualquer um a respeito de qualquer coisa, garantida a preservação do próprio animal. Trata-se de um pequeno manual de desconstrução minimalista, que faz fluir certo pessimismo e desesperança. Por outro lado, essa desconstrução é uma ferramenta que nos possibilita repensar nossos modos de escolha, de vida e de constituição social. Daí, talvez, a escolha por aforismos assemelhados àquilo que damos o nome “pílulas de sabedoria” para uma vida mais empática e equilibrada, quando, de fato, parecem “pílulas de sabedoria” para que repensemos nossa forma de atuar no mundo e transformá-lo. Tratase de uma excelente contribuição de Adriano Rabelo para uma época de gente parva no comando de uma nação que perdeu a capacidade de pensar. Revista Lampejo - vol. 8 nº 2 - issn 2238-5274

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Não existe droga mais viciante que estar na rua acompanhando os grandes passos que a cidade entrega através das pequenas ruas até o grande centro, com os trabalhadores, turistas e os ratos que engolem toda a sujeira alucinógena dos restos de comida que boiam no concreto cinzento – e minha dose diária é documentar todo esse belíssimo caos. Normalmente, quando me perguntam o que eu sinto quando estou registrando esse conjunto rizomático, respondo “A cada passo que dou, lembro-me das poesias de Roberto Piva e das notas agudas de qualquer álbum de free jazz de John Coltrane, sou fascinado pelo movimento constante. ” Dessa forma, meu processo fotográfico é estar presente, na deriva. De uns anos para cá, comecei a estudar as teorias dos Situacionistas franceses, principalmente sobre os processos psicogeográficos ensaiados por Guy Debord em 1958. Quando saio de casa, levo minha câmera na mão e vou caminhando e estudando o ambiente urbano sempre em caminhos diferentes, traçando rotas desconhecidas até chegar onde planejo ficar, normalmente em algum bar. Não me interessa fotografar figuras autoritárias, como a polícia ou algum agente da lei. Para esses aí, desejo outras coisas. Gosto mesmo é de prestar atenção no andar dos esquecidos. Também sempre me perguntam por que raios eu não uso câmera digital. Não gosto de usar nada digital. Não abomino a fotografia digital e seu processo, mas tenho tesão em ter apenas 36 poses para documentar as ruas – ou 12 se estou fotografando em médio formato. Não existe nada melhor que revelar o filme, ampliar ou mesmo digitalizar. É uma experiência ontológica. Na minha experiência com filme, posso dizer facilmente que meu olhar é totalmente diferente por conta desses pequenos detalhes. As pessoas falam de qualidade, falam que digital tem a possibilidade de fotografar 100 vezes o mesmo objeto, mas esquecem que depois do primeiro clique, o objeto já é outro. Ou seja, com digital você faz 100 fotos do objeto, mas com uma pequena mudança de tempo e espaço, coisa de segundos. E isso não me satisfaz, de jeito nenhum. Prefiro ter apenas um clique e continuar a caminhar, assim não crio laços com tal pessoa ou espaço. Sou apenas um voyeur com uma lente de 28mm. Abraços, João Pedro Lima

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