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ENTENDENDO A NFT

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Por Fernando de Freitas

A REVOLUÇÃO DO NFT A ARTE NA ERA DA CRIPTOGRAFIA

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Neste início de ano, a moda dos NFTs tomou a internet por completo. Milhares de músicos, artistas visuais e afins começaram a correr contra o tempo para se tornarem pioneiros da tecnologia que promete revolucionar o mundo da arte. Mas você, agora, está provavelmente se perguntando: “que raios é um NFT?” Em resumo, é um token virtual que permite a um indivíduo atestar ser o dono de um arquivo digital. Sua tecnologia é baseada na blockchain, uma rede de dados que torna possível a existência de criptomoedas como o Bitcoin e garante que transações financeiras sejam feitas de forma segura sem a necessidade de um mediador. O NFT é, portanto, um criptoativo. O token também está diretamente ligado à moeda Ethereum - somente através dela pode ser comprado e vendido. A sigla é um diminutivo de non-fungible token (token não-fungível). Isso significa que o valor de uma unidade de NFT é único e não pode ser trocado por outros. Diferentemente, porém, do Bitcoin, que funciona como uma moeda corrente (duas notas de dez reais podem ser trocadas e continuarão tendo o mesmo valor), no NFT cada moeda é única. Isso possibilita que qualquer bem digital imaginável seja vendido ou se torne propriedade de alguém: fotos, arquivos de áudio, textos e até memes. Claro, qualquer um ainda pode possuir uma cópia do arquivo em questão, mas enquanto você for o detentor do token NFT atrelado a ele, somente você é capaz de provar ser proprietário do arquivo original.

PROBLEMAS QUE OS NFTS RESOLVEM

Desde a popularização dos computadores e da internet, da onda do mp3 até o streaming dos dias de hoje, houve uma desvalorização significativa do valor da arte nos meios digitais. Antigamente, artistas focavam seus esforços em vender discos exclusivos ou pinturas e quadros, por exemplo, e conseguir um lucro justo com isto. Hoje em dia tudo mudou e, até pouco tempo, a falta de capacidade de se atrelar um valor tangível a arquivos digitais em um mundo cada vez mais ligado a internet, era um dos maiores problemas modernos da arte. Com o NFT, recupera-se o tal valor perdido de uma forma condizente com os novos tempos. Artistas podem vender os arquivos originais de uma música, uma foto, um vídeo ou a letra de uma música e lucrar com isso ao mesmo tempo em que mantêm os direitos autorais sob o trabalho. É uma porta que se abre para mais formas de uma monetização justa sobre a arte, especialmente na música. Afinal, artistas vem sofrendo com os valores cada vez mais baixos dos pagamentos de royalties por parte das plataformas de streaming faz muito tempo. É inevitável falar também do interesse econômico que os NFTs representam. Por ter um alto potencial lucrativo, as transações, somente este ano, já ultrapassam a casa dos 2 bilhões de dólares.

SOLUÇÃO PARA OS ARTISTAS

INDEPENDENTES Engana-se quem pensa que NFT é só para os grandes. Na verdade, é comparável a uma espécie de investimento em sua carreira. Você pode, por exemplo, distribuir NFTs gratuitamente ou por um preço simbólico para seus fãs, sob a condição de que você ganhe uma porcentagem sobre o lucro caso o token atrelado ao arquivo seja revendido no futuro. Imagine o quanto artistas como Beyonce ou Drake teriam lucrado caso a tecnologia estivesse disponível no começo de carreiras. Porém, embora qualquer arquivo digital possa ser transformado em NFT, é importante que ele tenha um valor que justifique a criação de

um token, caso contrário, as pessoas não se interessarão em possuir o ativo em questão. É preciso ser criativo(a) e pensar no que um fã gostaria de ter, pode ser uma foto que recebeu muitos likes, os vocais de uma música ou até mesmo o arquivo da capa de um single ou álbum. Por último, é de extrema importância a pesquisa extensiva sobre o assunto para se certificar de que entendeu totalmente como os NFTs funcionam; certifique-se também de que você é o/a detentor(a) dos direitos autorais atrelados ao arquivo. Isto tudo vai lhe ajudar a evitar problemas virtuais e até legais no futuro.

O FUTURO DOS NFTS E OS DIREITOS AUTORAIS

A tecnologia dos NFTs ainda é muito nova, ainda não existe qualquer tipo de regras ou legislação que deva ser seguida. Quando isso se encontra com o tema dos direitos autorais, vira uma pauta extensiva com muitas perguntas e poucas respostas. Recentemente, muitos artistas relataram estarem vendo suas próprias comercializadas como NFTs, por exemplo. Celebridades viram fotos suas sendo vendidas por milhões de dólares. Apesar de a blockchain ter como principal ponto forte a descentralização e a não-necessidade de qualquer mediador para funcionar, soluções para problemas como esse ainda são uma incógnita. Para Mariana de Carvalho Mello, Diretora Jurídica da ABRAMUS, é importante tratar o assunto com cautela e observar o fenômeno diante da legislação já existente de Direitos Autorais, “não me parece ser o momento de se falar em qualquer mudança legislativa para abarcar o tema das NFTs, pois seria um exercício de adivinhação com um resultado provavelmente pouco abrangente” explica a advogada e esclarece “por enquanto, devemos buscar aplicar os conceitos e instrumentos jurídicos já existentes aos negócios que forem sendo performados. E, por enquanto, isso pode ser feito”. Mas o fato não precisa desanimar, se tivermos cautela. Como dito anteriormente, é essencial que quem queira se aventurar nesse universo de possibilidades virtuais, certifique-se de que detém todos os direitos autorais da obra que está sendo comercializada e pesquise a fundo sobre a tecnologia da blockchain. Esta, muitas vezes ignorada por leigos no mundo das criptomoedas e criptoativos, é importantíssimo para que você não perca seu tempo nem dinheiro. Alguns pontos essenciais para se ter conhecimento são: como fazer transações na blockchain, como funciona a tecnologia e como ter uma carteira cripto seguindo todos os protocolos de segurança.

CONVERSA COM ANDRÉ ABUJAMRA

André Abujamra é um dos pioneiros na tecnologia NFT no Brasil. O músico se juntou recentemente ao artista visual Uno de Oliveira para criar uma série de obras digitais. Tudo começou quando Uno convidou Abujamra para sonorizar sua obra “Coé Lhek”, uma criptoarte retratando um morador de comunidade. O arquivo já foi leiloado e vendido em um marketplace de NFTs. Para o seu próximo projeto, André criou um conceito chamado “neuro abus”, no qual irá apresentar 8 músicas instrumentais de 1 minuto e 75 segundos cada, que irão totalizar 8 minutos e 6 segundos de música - fazendo alusão aos 86 milhões de neurônios presentes no cérebro humano. Conversamos com Abujamra sobre a tecnologia dos NFTs, sobre como leigos podem adentrar nesse universo, alguns pontos importantes como direitos autorais e possíveis direções o NFT irá tomar a partir de agora. Confira abaixo.

Como é o processo de criação das suas obras digitais? Quais são os pontos levados em conta para que as obras gerem interesse de mercado?

Eu comecei no mundo dos NFTs através de um convite de um amigo e artista digital, o Uno de Oliveira. Nos conhecemos numa sala do ClubHouse e combinamos uma primeira colab. Fiz uma música para uma arte dele chamada Coé Lek. Depois de dois, três dias a peça entrou em leilão no Makersplace. Daí começou a doideira toda. Fizemos mais alguns trabalhos juntos (versão UNO/ABU) e ele me ajudou em outros (versão ABU/UNO). Não faço algo pensando se tal obra vai gerar interesse no mercado. Penso em fazer algo que goste e tenha a ver com minha maneira de criar música. Vendi mais 5 NFTs depois desses, então penso que algum interesse gerou.

Quais são os passos ao criar o token NFT? O quão fácil é a parte técnica do processo para um artista leigo no assunto?

Se a pessoa é leiga, recomendo uma pesquisa no Google. Você vai encontrar vários vídeos de tutoriais sobre como acessar os marketplaces, que são os lugares onde você vai poder ofertar sua arte, música, gif ou foto. Basicamente, você tem que ter acesso a um marketplace, uma carteira digital e alguma moeda cripto disponível na carteira. A parte técnica vai depender do seu marketplace. Você tem que verificar os tamanhos e formatos de arquivo que eles aceitam. Isso pode variar de site para site. Fazer o upload é muito simples, como subir um vídeo no YouTube, por exemplo. Você só tem que prestar atenção em cada passo, pois tudo envolve alguma taxa.

Há algum custo atrelado ao processo?

Sim, o processo de subir o NFT é chamado Mint. Para “mintar” uma obra, você tem a taxa de gás, que é o valor cobrado pelas plataformas para gerar o código no blockchain. Esse custo varia de 70 a 90 dólares, depende geralmente da cotação do Ethereum, que é a moeda cripto mais usada. Através do blockchain do Ethereum é que são gerados os smart contracts que regem as vendas e possíveis revendas das obras.

O mercado dos NFTs ainda não possui nenhum tipo de regularização relacionada a direitos autorais e afins. Quais cuidados você toma e recomenda aos iniciantes?

Direito Autoral sempre será um direito pessoal e instranferível. Isso não entra numa venda de NFT. O que você pode vender são seus direitos conexos. Um fonograma de uma música pode ser vendido inteiro ou fatiado, por exemplo. Já temos, aqui no Brasil, uma plataforma que vai ser dedicada a música chamada Phonogram.me. Eles vão tornar todo esse processo mais simples e transparente.

Por último, como você vê o futuro dos NFTs? É, em sua visão, uma inovação que veio para ficar?

Eu vou repetir o que já comentei numa live outro dia. Estamos chegando num novo território. Me sinto um viking chegando na Groenlândia trocentos anos atrás. Você não deve ir para uma viagem desse tipo carregando uma mochila pesada com coisas do passado. Elas não vão ser úteis. Então, carregue a sua mochila de coisas novas, aceite que o futuro é inevitável e tente aproveitar da melhor forma possível. E, pra acabar, tenha em mente que NFT não é o fim, é uma ferramenta que tem infinitas possibilidades, inclusive vender gifs animados de gatinhos.

Por Fernando de Freitas

Avanguarda tem um verdadeiro amor à tradição. É um amor pouco idealizado, um relacionamento sem grandes liturgias. A tradição, para a vanguarda, é a memória viva de um povo, não um bibelô na estante, exibido intocado, que vai deixando de reluzir sob o véu opaco do tempo, que não perdoa o mais brilhante tesouro. José Carlos Capinan, aos 80 anos, permanece sendo a vanguarda de nossa música, ainda que sua carreira esteja completando quase 60 anos.

A primeira vez que me dei conta da existência de Capinan foi no banco de trás do carro de meus pais, em uma viagem até Brasília, que, em recesso político, vivia a sombra do afastamento de Collor. Em uma fita copiada, Gilberto Gil anuncia a canção “Soy loco por ti América”, de José Carlos Capinan. Quando surge uma contestação inaudível na plateia, Gil afirma “É do Capinan, sim! Eu apenas adaptei”. Ao longo dos anos, voltei a encontrar seu nome em créditos nas capas. Parceiro de Edu Lobo na premiada “Ponteio” (e outras mais), de Jards Macalé e de João Bosco em Papel Maché (que ciúmes deve ter sentido Aldir Blanc!), entre tantos outros.

São 99 canções listadas no Dicionário Cravo Albin, conforme consulta realizada na internet, porém, Capinan contabiliza cerca de 200. Obra que o letrista não considera fechada: “espero continuar mais alguns anos, como continuo namorando as moças, os dias e as frutas”.

SOY LOCO POR TI, VIDA!A VIDA E A OBRA DO POETA TROPICALISTA

NA COXIA DOS FESTIVAIS

A primeira parceria veio com Tom Zé, em 1963, musicando a peça “Bumba-meu-boi”, no Centro Popular de Cultura de Salvador, quando era estudante de Direito. Um ano depois, com o Golpe Militar, a peça foi considerada subversiva. Colega de figuras como Gilberto Gil e Caetano Veloso, Capinan sentiu que o clima mudava e que ele corria risco na capital, voltando para o interior da Bahia, para a casa de seu pai, antes de ir “para São Paulo, depois pro Rio, depois para São Paulo de novo para voltar pro Rio”. Hoje Capinan vive em Salvador, onde é diretor do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira.

Nessas andanças, Capinan reencontrou Gilberto Gil, com quem teve uma parceria significativa. Em 1966 compuseram a canção “Ladainha”, a primeira a ser colocada em acetato e que figurou o Lado B do compacto “A Banda”, composição de Chico Buarque vencedora do “Festival de Música Popular Brasileira”, da TV Record, naquele ano.

No mítico Festival de 1967, Capinan veio, em uma parceria Edu Lobo, apresentar para o mundo “Ponteio”. Venceu o festival. A parceria também rendeu a premiada “Cirandeiro”, gravada no álbum “Edu e Bethania.

No mesmo ano foram gravadas por Edu as parcerias “Corrida de jangada” e “Rosinha”, e por Gilberto Gil, no álbum “Louvação”, mais duas parcerias, “Água de meninos” e “Viramundo”.

“Soy loco por ti America”, composta com Gil e Torquato Neto sobre a morte de Che Guevara, viria a ser interpretada no primeiro álbum solo de Caetano Veloso em 1968, junto com “Clarice”, uma das poucas canções que fez com Caetano.

No ano seguinte, estabeleceria uma parceria de peso, com Jards Macalé, com a canção “Gothan City”, para mais um festival. Outras muitas parcerias seriam gravadas por Jards nos próximos anos.

É interessante que, diante de dezenas de parcerias, uma acaba não sendo listada, por inusual. Maria Bethania, segundo o próprio Capinan é uma intérprete parceira. Com suas interpretações poderosas, a cantora deu vida e cor às letras do poeta como mais ninguém. Ela cantou diversas músicas dele e a proximidade ficou marcada.

Ainda que estes anos tenham sido de significativa produção na carreira do letrista, difícil encaixotar sua produção a eles. Mesmo voltando à Bahia e se formando médico anos depois, suas contribuições jamais cessaram.

MARCAS

A Tropicália foi um movimento de vanguarda estética gestado dentro de um universo artístico jovem, de meados da década de 1960. Reconhecida pelo álbum, e marco, “Tropicália ou Panis et Circensis”, contou com o protagonismo de Gil, Caetano, Betânia e Gal, e também legitimou o rock experimental dos Mutantes enquanto música brasileira. Nara Leão era velha conhecida da Bossa nova, mas abraçou o movimento. Tom Zé, que seguiu sempre o caminho de experimentalismo e vanguarda, mais uma vez se equilibrou na sua eterna corda bamba entre o mainstream e

o alternativo. Junto deles estavam o maestro Rogério Duprat, o poeta Torquato Neto e, claro, Capinan.

Porém, a tropicália não se resume a este álbum ou a estes artistas, tampouco está isolada enquanto vanguarda artística do seu tempo. Nomes como o de Jorge Mautner e do artista plástico Hélio Oiticica estão intimamente ligados ao movimento, Jorge Ben navegou por essas águas e Jards Macalé sempre esteve por perto.

É interessante que, embora exista o confronto de determinados críticos a uma suposta falta de posicionamento político por parte deste movimento, Capinan e Gil compuseram “Sou Loco por Ti América”, inspirado na morte de Che Guevara e presente no primeiro álbum de Caetano Veloso. Ou ainda que, em “Misereres Nobis”, que abre o álbum “Tropicália ou Panis et Circencis”, existam versos como “Já não somos como na chegada / O sol já é claro nas águas quietas do mangue / Derramemos vinho no linho da mesa / Molhada de vinho e manchada de sangue”.

Sendo os tropicalistas invasores da cena paulistana, talvez reste um travo por parte da intelectualidade local. A vanguarda trazida de fora do eixo Rio-SP, desrespeitava as formas estabelecidas na ponte aérea cultural e as regras estéticas, que estavam marcadas por um certo elitismo. Da música americana era possível beber do jazz, mas jamais do rock’n’roll. A bossa era nosso jazz, mas não conversava com as massas, a proposta tropicalista estava em trabalhar a arte deixando permeáveis as fronteiras entre a sabedoria popular e os ensinamentos intelectuais, na forma, na mensagem e, claro, comercialmente.

As contradições são possíveis e esperadas. Não existe como conciliar versos em que em uma linha fala de mangue para na seguinte falar de vinho e toalhas de linho. É exatamente por isso que a conclusão dos versos é a toalha suja de vinho e sangue. A violência desses versos está na contradição, enquanto é cantado (cinicamente) com o sorriso cordial sob o qual a violência brasileira se disfarça. A alegria tropicalista é simulacro que acoberta a dor e a humilhação como mecanismo de sobrevivência vertidos em arte. A análise diante das lentes do tempo ajuda a ressaltar aquilo que não é visto no calor da hora.

A injustiça que o tempo reforçou é a ausência de créditos. As plataformas de streaming apontam apenas os intérpretes da música. O compositor, escamoteado, permanece na surdina. Como Capinan não tinha a verve de subir aos palcos da música (senão por sua presença etérea de letrista), seu nome se perde. Por outro lado, ele se sente satisfeito pelo reconhecimento que têm, respeitado pelos pares e conhecido nas rodas dos amantes da música.

Por Fernando de Freitas

Sentado em uma cadeira de praia, à beira do mar de Algarve, Yamandu Costa aproveita um breve relaxamento das restrições de contato social impostas em Portugal, onde atualmente vive. Seus filhos brincam ao ar livre, o que estava difícil de acontecer em Lisboa. Yamandu toma seu chimarrão e, durante três horas seguidas, toca, tendo como plateia apenas o mar. O violonista gaúcho é reconhecido internacionalmente como um dos maiores em seu instrumento. Com sua incrível precisão e rapidez no sete cordas, sua técnica une cada elemento do violão com um timbre distinto. Mas o músico transcende a virtuosidade técnica, sua inventividade harmônica em constante improvisação faz dele um dos músicos mais interessantes de nosso tempo. Ainda que a comparação direta sempre leve nossa memória a Baden Powell e Rafael Rabelo (ou até mesmo a Paco de Lucia), ao fechar os olhos, ouço a naturalidade em romper com os limites do instrumento própria de Charlie Parker.

TALENTO

É difícil escrever sobre Yamandu sem ser superlativo. É quase impossível não compará-lo, sem medo de fazer injustiças, com verdadeiras lendas. Como Baden (entre tantos outros), o violonista gaúcho despontou como talento precoce, iniciando sua carreira solo aos 17 anos. Porém, a carreira começou cerca de 10 anos antes, quando assumiu a guitarra elétrica da banda de música regional de seu pai. Yamandu conta que “nunca fiz a escolha de ser músico, isso sempre foi a minha realidade”, nunca enfrentando a ambivalência da escolha de uma profissão artística. Em um caso que se torna cada vez mais raro, Yamandu tem o talento lapidado pelos palcos de uma banda de baile (quem se lembra da conversa que tivemos com Airto Moreira?). No seu caso, no contexto da música regional gaúcha, conversando com as fronteiras uruguaias e portenhas. Foi nesse contexto que, aos 20 anos, Yamandu lançou seu primeiro álbum com Lúcio Yanel, violonista argentino radicado no Brasil de quem se aproximou na adolescência. Foi também na adolescência que o universo musical de Yamandu se expandiu. Nesse período, conheceu outros violonistas da música brasi-

O IMPROVISO E A TRADIÇÃO

leira que estavam distantes de sua realidade. Mas também foi quando tomou contato com o jazz e o blues, conhecendo guitarristas como George Benson e Steve Ray Vaughn. Claro que ouviu um pouco de rock, mas o estilo nunca lhe conquistou completamente. Nessa expansão, também começou sua história com o violão Sete Cordas, instrumento que se tornou uma de suas marcas. Yamandu admite: “não sou propriamente um Sete Cordas, eu uso o violão sete cordas como um recurso adicional”, respeitando, assim, a tradição do choro e do samba. Para quem gosta de música, ver Yamandu tocar não é como ver Messi ou Cristiano Ronaldo jogarem. É diferente. É como ver Cruiff comandando a laranja mecânica ou a seleção brasileira de 1982, há uma magia que transcende as regras do jogo. É como se cada música que toca fosse composta para que ele trabalhasse sobre ela. Assim como nos exemplos futebolísticos (tão raros nessa revista) - aqueles times não jogaram futebol, eles eram o futebol (e, portanto, o futebol é injusto) -, Yamandu é o violão. Isso transparece, inclusive, na sua linguagem corporal: próximo a um transe, ele traduz a essência da música e nos convida a conhecer a beleza em sua forma mais profunda.

AMIGOS E MODAS

A relação de Yamandu com o violão é de amor. Assumidamente um colecionador, ele tem em casa, em Lisboa, um enorme armário para acomodar os preciosos instrumentos. “Cada violão novo tem um som e uma cor diferentes, cada vez que compro um instrumento novo, ele me estimula a tocar e compor algo diferente” conta o músico. É possível ver o armário aberto em alguns vídeos no seu canal do Youtube. Nesse canal, Yamandu apresenta a websérie “Histórias do Violão”, na qual visita diversos lugares, músicos e até o luthier espanhol Vicente Carrillo, com quem tem uma série signature de violões. Também é possível vê-lo tocando com outros músicos e amigos, na série Visita Boa, como Elodie Bouny, violonista clássica mundialmente reconhecida, com quem se casou e tem dois filhos. Perguntamos, inclusive, se além dos vídeos existe o plano de perpetuar a parceria musical em um álbum, o que confirmou Yamandu, ressaltando já existir material sendo trabalhado para esse projeto. Entre tantos vídeos, é possível pescar também, por exemplo, parcerias com Sérgio Assad. Conforme você explora a obra e as histórias de Yamandu, fica claro o poder das parcerias. A música, em especial o seu

violão, é instrumento de união entre as pessoas. Cada parceria é uma conversa maravilhosa que trava com um parceiro. Entre as parcerias especiais, uma se destaca, agora como lembrança, mas outrora como dois álbuns: aquela estabelecida com o mestre Dominguinhos. É um encontro de gerações e culturas que dissolve qualquer diferença na fluidez melódica que os dois dividem entre si. Um encontro de sonhos que representa Yamandu, a troca que o move no aprendizado eterno que é a jornada musical.

CAMINANTES

Conversamos com Yamandu durante as fases finais de masterização do álbum “Caminantes”, gravado em trio com o guitarrista português Luís Guerreiro e o bandoneonista argentino Martín Sued. O trabalho, com sua direção musical, entrecruza a musicalidade do Brasil, Argentina e Portugal. É um trabalho que tem por objetivo representar a diversidade de povos que, apesar de distintos, se conectam em suas raízes históricas. Essa diversidade também se faz presente em instrumentos característicos de cada cultura – bandolim do tango e guitarra do fado, por exemplo. A audição do material destaca toda generosidade do músico. Diante de dois instrumentos com a sonoridade mais realçada, seja pela força do fole de um ou pela ardência característica do outro, o som do violão convida o retorno à função de acompanhamento, o que Yamandu faz com firme delicadeza. Mas Yamandu é Yamandu e não cabe em papel secundário, então ele se destaca nos temas naturalmente. A verdade é que o que o gaúcho tem de mais generoso é a capacidade de dividir o protagonismo. Sabe que pode reforçar o brilho próprio com as estrelas que de si aproxima. Estes diálogos musicais que trava ao longo de um álbum são uma reflexão sobre a formação cultural à qual pertence. O trio estabelece conexões que se desdobram em ritmos e melodias que se diferenciam e se assemelham em dinâmicas de aproximação e afastamento. Assim como a origem, marcam-se a personalidade dos músicos entre frases e silêncios que só se complementam pela necessidade de encontrar a harmonia que os une. Se, ao ouvir esse álbum, sentir que viaja por estes locais, é porque Yamandu o faz cada vez que começa a tocar. Porém, para tocar, Yamandu viajou para todos estes lugares, ora metafórica, ora literalmente. Nas viagens literais, muitas vezes Yamandu foi filmado em aeroportos, sozinho e tocando seu violão. Ele explica, entre um gole e outro de vinho: “O tempo de aeroporto é um tempo perdido, então aproveito para tocar, desde que não incomode ninguém” - em tempos brutos, há quem peça que um gigante do violão se cale. Mas acredito que existam mais pessoas que queiram ouvir.

Por Lucas Vieira

O OLHAR DE JULIANA LINHARES PARA A PLURALIDADE DA CULTURA NORDESTINA

A INVENTORA DE NORDESTES

A INVENTORA DE NORDESTES

Juliana Linhares é conhecida na música brasileira por sua voz nos projetos “Pietá” e “Iara Ira”. No teatro, além da formação acadêmica como diretora, tem seu trabalho reconhecido nos palcos, com destaque na atuação em “A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa”, baseado na obra de Clarice Lispector. Agora, em “Nordeste Ficção”, seu primeiro disco solo, faz viagem musical em que apresenta as imensidões de sua região de origem.

UM DISCO NECESSÁRIO

Juliana precisou de dez dias sem ouvir as faixas de Nordeste Ficção para escutar o disco finalizado pela primeira vez. Se sentindo exausta por conta das repetições em busca de possíveis mudanças na mixagem, decidiu reunir os amigos para encarar a obra completa. O momento foi de felicidade e alívio. Houve muita emoção, lágrimas e festa - “o Chico César dançou ‘Lambada da Lambida’ do início ao fim”, revela. Toda essa energia que diz muito sobre o álbum foi sentida remotamente, com a reunião feita online via Zoom. Ao invés dos abraços, as felicitações pelo resultado de “Nordeste Ficção” vieram pelo telefone. O retorno dos amigos fez Juliana ter certeza de que os caminhos escolhidos tinham sido certeiros - “deu para sentir que a música já estava no mundo”. A importância da obra havia transcendido seu universo particular. Há três anos Juliana desenha a ideia de um disco solo. Imaginava um álbum feito com uma banda definida, que a acompanhasse no estúdio e nos palcos, o que tornaria viável a ideia, tanto pela praticidade quanto para manter a fidelidade da proposta dos arranjos. A intenção era que fosse um trabalho feito no estúdio com o calor do ao vivo. Mas, por causa da pandemia, Nordeste Ficção foi feito de forma completamente remota. Os músicos gravaram de suas casas e a primeira reunião de uma banda ocorreu em live realizada no YouTube no dia 29 de abril. Por questões de segurança, a apresentação contou com arranjos adaptados a um número pequeno de instrumentos, tocados por Elísio Freitas e Bóka Reis. Segundo Juliana, gravar “Nordeste Ficção” sabendo da impossibilidade de levá-lo aos palcos após seu lançamento foi difícil. Porém, fazê-lo durante a pandemia era necessário e urgente. Trouxe ânimo e salvou a cantora da tristeza e do desespero, em momentos em que precisou colocar em prática sua produção diária como artista. Por enquanto, a esperança de realizar apresentações ao vivo serve de alimento para o futuro. “Eu pensei o show com dramaturgia, nuances de momento, luzes definidas. Mas o álbum também foi pensado para ter uma energia além do palco, por conta do momento que estamos passando”, revela. “Nordeste Ficção” tem produção de Elísio Freitas (e de Vovô Bebê na faixa “Frivião”) e direção artística de Marcus Preto. Além de discutir o que é ser nordestino hoje, foi imaginado como um roteiro de teatro, em que as faixas foram concebidas como universos independentes. O álbum apresenta a herança de artistas como Amelinha, Ednardo, Elba Ramalho e Belchior, além de reimaginar a obra de Tom Zé, Petrúcio Amorim e Jessier Quirino. De Nordestes mais recentes, se encontra

com Chico César e Zeca Baleiro, e com os contemporâneos Rafael Barbosa (seu irmão), Posada, Caio Riscado, Sami Tarik, Khrystal, Mestrinho, além da ponte com o Sudeste através de Letrux e Moyseis Marques. A capa do álbum (com retrato feito por Clarice Lissovsky e projeto gráfico de Ara Teles) traz trecho do livro “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, publicação que discute como a ideia da região brasileira é carregada de estereótipos e mitos, e é vista a partir de um universo imaginário, apesar de ser um espaço físico real. Encenada pelo grupo Carmin, a peça também teve profunda influência em Juliana na concepção do disco, que, ao longo de 11 faixas, dialoga com propostas da obra: “Se a vida é amiga da arte, é possível com arte inventarmos outros Nordestes, que signifiquem a supressão das clausuras desta grande prisão que são as fronteiras.”

Nordeste Ficção soa atemporal, sem parecer preso a uma década específica, característica comum na música nordestina. A que elementos você atribui esse aspecto?

Tem uma frase que acho bonita, que diz que quando nos apoiamos no ombro de quem veio antes, conseguimos enxergar melhor o que vem adiante. Eu bebi na fonte de Alceu Valença, Cátia de França, Elomar. Quis resgatar essa potência ruidosa, rock’n’roll, que há no Nordeste e que teve dificuldade de ganhar o Brasil. Ao mesmo tempo, é preciso olhar para as questões de hoje, as novas linguagens. O Elísio me trouxe muitas referências, a gente queria brincar com as células do forró, fazer um dub com xote, conversar com a sonoridade atual sem esquecer o passado. A história não é linear. Belchior também poderia ser lançado daqui a uma década. Quando achamos que algo vai ser resolvido com o passar dos anos e vemos onde estamos politicamente, dá pra entender que a história não é progressiva, mas feita de acontecimentos e resoluções. Se não solucionamos um problema com atitudes, ele não é resolvido pelo tempo. Para mim, o tempo também é ficção. Discos que falam sobre o presente também falam de momentos que são eternos. Como disse Clarice Lispector: “Sempre eternamente é o dia de hoje”.

Como foi escolher a ordem das músicas do disco, uma vez que ele foi pensado como uma peça de teatro?

Foi difícil, porque dá vontade de experimentar muito. Além disso, com o streaming, as pessoas não costumam ouvir muito as últimas faixas do álbum e, como eu penso na obra completa, isso é chato. E, acompanhando os números, já consegui perceber que as músicas finais estão sendo realmente menos ouvidas. Dentro disso, eu fiz escolhas como, por exemplo, insistir que “Nordeste Ficção” não fosse a última faixa, porque queria muito que ela fosse ouvida. O Durval [autor de “A Invenção do Nordeste”] conversou comigo sobre sedução e entramos em acordo de que deveríamos abrir o disco com uma música sedutora e, então, seguir conquistando o ouvinte. Acabou que a mais ouvida é “Meu Amor Afinal De Contas”, que saiu antes, em single, e “Nordeste Ficção” é a segunda. Pensamos muito no lugar onde ela entraria e é bom saber que não é a faixa dois da tracklist, porque mostra que os ouvintes fazem escolhas, e esse é o poder que a música deve ter.

Como a sua mudança para o Rio de Janeiro mudou a sua percepção sobre o Nordeste?

Quando vim para o Sudeste, eu me tornei nordestina. Enquanto você está em um lugar em que todos são iguais, você apenas “é” e não fica questionando. Quando vai para um lugar em que te veem de uma maneira diferente, com todos os estereótipos, se torna uma coisa por preconceito e, ao mesmo tempo, porque você é aquilo, já faz parte de como a nossa história foi construída e é preciso lidar com essa definição. Por muito tempo eu pensei que era bobagem me enxergarem daquele jeito e isso me incomodava, sempre lutei para quebrar esses estereótipos na música e no teatro. Eu nunca fui para o lugar que era esperado porque isso me incomodava. Quando fui fazer o “Nordeste Ficção” eu disse: “Peraí, não é assim que me rotulam? Minha voz não fala sobre isso? Então eu vou usar essa imagem e mostrar que somos isso, mas que vamos muito além”. Então, foi assim o meu processo no Rio de entender, questionar, me incomodar, e também dizer que há um poder enorme nessa história e, por isso, vou falar dessa questão. Talvez se eu estivesse em Natal, iria discutir outro assunto, mas vir para cá me faz também me ver como nordestina, olhando do Sudeste. Levantar essa pauta sobre o Nordeste era importante para mim.

Qual preconceito o Sudeste precisa desaprender sobre o Nordeste e o que precisa aprender sobre a região?

O grande preconceito são os estereótipos fixados que não se destroem,

mas foram construídos. Mas não há vitimização, foi disseminado pelos nordestinos também. Mas acho que é parar de olhar para o nordestino como submisso, incapaz e como uma coisa só. Isso de “o Nordeste”. Que Nordeste? Nem existe! É tão diverso e colocam todo mundo em um saco só e o resultado é uma balança em que o Nordeste sempre sai perdendo um pouco em tudo. As pessoas precisam aprender a olhar com menos resistência, com A minha grande referência recente é a encenação do Grupo Carmin para o livro “A Invenção do Nordeste”, que acho que fiz esse trabalho de transformá-la em disco. Mas adoraria ver “Vau da Sarapalha”, do Grupo Piolim, da Paraíba. É uma peça que trouxe um apontamento de um Nordeste menos óbvio para o Sudeste. O disco eu escolheria seria o “20 Palavras Ao Redor do Sol”, da Cátia de França. Ela tem uma poética de imagens e palavras que, acho, daria

vontade de descobrir e entender que existe muita riqueza no Nordeste, não só pobreza, estética da fome, escassez. Riqueza de conteúdo científico, profissionais, alimento, água. A palavra é pluralidade.

Considerando sua relação com música e teatro, escolha uma peça que você gostaria de ver transformada em um disco e um disco que você gostaria de ver transformado em uma peça.

muito pano pra manga, uma coisa meio Manoel de Barros paraibana que acho que iria arrasar.

Nas letras do álbum você diz que não pode mudar o mundo e que o sucesso não precisa ser meteórico, que o que você quer é “cantar para os seus”. Como você quer que Nordeste Ficção seja lembrado pelo “seus”?

Eu queria que esse disco trouxesse carga energética para o momento, fosse como uma pilha, para que as pessoas ultrapassem o momento em que vivemos, que trouxesse poder para o Nordeste. A gente vive uma vida de busca pelo sucesso, sair do Nordeste para ganhar a vida, é uma loucura. Isso é uma construção de uma estrutura capitalista muito bem firmada na sociedade. Eu queria dizer que isso não é tudo, que o sucesso vai por outros caminhos. Tem pessoas que fazem muito sucesso sem sair do Nordeste, que circulam o mundo sem precisar vir para o Sudeste. Além disso, queria incentivar o desejo de investir nas pessoas do Brasil, sem essa valorização do que vem de fora, apesar de essa questão já ter melhorado muito. “Nordeste Ficção” é sobre abrir uma fronteira para o mundo todo e valorizar que o Nordeste tem muita riqueza, muito potencial.

FAIXA A FAIXA

Juliana Linhares comenta as músicas de Nordeste Ficção.

Bombinha

Foi a primeira canção que eu escolhi. É uma composição do Posada, um artista que busca na música nordestina essa coisa ruidosa, rock’n’roll, que tem muito a ver com o que eu queria fazer. Eu estava doente, fiquei sem voz, preocupada e liguei para ele, que me mandou três músicas e, quando ouvi “Bombinha”, pedi a ele para segurar porque eu iria gravar e ela norteou muito o que eu faria no disco.

Balanceiro

Ela foi composta depois que eu, Khrystal e Sami Tarik fomos para o Samba do Trabalhador aqui no Rio. A gente saiu de lá muito bêbado para a casa do Moyseis Marques e começou a fazer a música. Eu tinha anotado as ideias em um papel e nunca mais vi. No ano passado, em maio, eu achei essa letra e, milagrosamente, lembrava da melodia. Aí liguei para a Khrystal e ela fechou as partes que faltavam. Eu acabei colocando no disco porque ela tem essa mensagem sedutora que atinge todo mundo, a gente se sente contemplado pela letra.

Meu amor Afinal de Contas

Minha primeira parceria com Zeca Baleiro. Quando recebi dele a gravação com a minha letra foi muito incrível, porque ele tem uma assinatura muito própria e parecia que era uma música dele, o que me fez trazê-lo para o disco. Tudo isso levou a ideia para caminhos diferentes, de eu me sentir também intérprete da minha própria música e desconstruir o que já tinha imaginado de produção musical da faixa, criou uma identidade nova para a canção.

Embrulho

Foi a minha primeira parceria com Chico César. A gente já tinha trabalhado junto na peça “A Hora da Estrela” e eu acho ele muito forte, presente, político. Eu vi que ele estava postando músicas novas todo dia, saquei que ele estava ativo, produzindo. Entrei em contato e ele enviou a música em uma hora e meia, foi muito rápido e muito bom.

Nordeste Ficção

O livro “A Invenção do Nordeste” mexeu muito comigo. Eu estava com essa história sobre o que é ser nordestina na cabeça. As pessoas sempre me davam cactos e eu me questionava sobre os motivos. Eu fiquei me imaginando como uma das plantas e, dessa brincadeira, fiz uma estrutura. Em Natal, mostrei pro meu irmão, meio com vergonha, e ele adorou e foi fechando as ideias comigo. Misturamos essa história com os conceitos do livro. Minha referência para ela foi a gravação de Amelinha para “Frevo Mulher”.

Tareco e Mariola

É a música da minha vida. No Rio, ninguém a conhecia e era emocionante quando eu cantava a cappella nos shows do Pietá. Ela sempre esteve ao meu lado, me abriu portas e me deu segurança. Como intérprete, eu consigo dizer através dela muitas coisas que eu penso e sinto. Não tinha como eu não gravá-la.

Bolero de Isabel

Cantei ela na escola em uma peça em homenagem ao Jessier Quirino e me apaixonei. Uma vez, eu e Rodrigo Garcia (que toca a faixa no disco) gravamos ela ao vivo e mandamos pro meu pai, que foi compartilhando e o áudio chegou no Jessier. Ele me escreveu uma mensagem linda, que ainda guardo. Um dia o Pietá tinha uma entrevista na rádio às 6h da manhã. Eu fui a única que topou e, chegando lá, o outro convidado do programa era o Jessier! Achei que era uma música ideal, que também fala de uma beleza ficcional e poderosa de um Nordeste.

Lambada da Lambida

Foi a minha segunda música com Chico César, que diz que a alegria é revolucionária, que mesmo nessa situação que estamos dá para ser feliz. Fiz a nossa canção alegre e, mais uma vez, ele foi rápido. Era de noite e não deixei ninguém lá de casa ir dormir, falei “Guenta aí, o Chico manda em uma hora e meia!”. Às onze horas, ele enviou e foi muito legal. É uma canção em que eu queria falar de amor entre mulheres, passar de forma sutil uma mensagem muito importante.

Armadilha

Fiz em um dia que não conseguia dormir, estava com muitas frases na cabeça. Foi em uma fase da pandemia que eu chorava muito, perguntava “Cadê meu futuro?”. Teve muita influência de Ednardo e Elomar, do “Talismã”, de Geraldo Azevedo, daquele jeito mais mouro, árabe de Elba cantar. Eu queria uma música mais misteriosa e fiz a melodia inteira e parte da letra, que foi completada pelo Caio Riscado lindamente.

Aburguesar

Marcus Preto tinha feito o disco “Vira Lata na Via Láctea” com Tom Zé e, nesse processo, acharam essa música em um rolo de fita, de 1972. Na época, o Tom refez a letra. O Marcus disse que achava que a versão original tinha tudo a ver comigo. Chamei a Letrux porque queria que tivesse um contraponto entre o Nordeste e minha trajetória no Sudeste, queria ter no disco as fronteiras abertas para o Brasil. Letrux também é atriz, intérprete de si mesma, achei que ela teria coragem de gravar essa música e a convidei.

Frivião

Frivião eu fiz letra e música, com meu violão, fazendo arranjos de boca. Eu mostrei pro meu pai e meu irmão, que gostaram, tinha a coisa do frevo, Alceu Valença. Pedi ao Rafael para mudar a letra, eu estava achando boba e pedi a ele para mexer e deixar mais interessante, mas mantendo a estrutura. Foi ótimo, foi nossa forma de gritar fora Bolsonaro e lembrar do carnaval tão poderoso de Recife.

Por Fernando de Freitas

A DOR QUE QUE SE TEM E SE TRANSFORMA

Oálbum começa com um conselho de mãe: os que não aprenderam com a própria dor se tornam pessoas que querem causar dor aos outros. A sabedoria popular, nesse caso, se espalha para o aprofundamento místico que explora a dor e a maturação do indivíduo. É a própria Katze, olhando no espelho e encarando o seu desenvolvimento inevitável, no contexto da pós-modernidade. Porém, ao olhar a esse espelho, Katze vê também a paisagem que a cerca, tonando a obra um desenho surrealista que desnuda a realidade. Assim, temos o quadro completo do sofrimento do indivíduo (que não mais é a musicista) diante da violência e da barbárie. O grotesco e o sublime se encontram em um projeto sonoro que resgata a simplicidade da canção mântrica e a deforma diante de pesados efeitos aplicados aos instrumentos. Katze, enquanto projeto musical, é o sumo da pós-modernidade que flui sem lealdade a gêneros musicais. Katherine, a artista que se propõe Katze neste projeto, trafega a linha tênue que

separa a obra de arte do pastiche. Em mãos menos habilidosas, o kitsch (ou um neo-kitsch, para brincar com as palavras) atingiria as composições, transformando em pasteurização e lugares-comuns. Mas nas mãos dela o som se torna original, com várias camadas de ambiência usadas no limite do excesso (reverbs e delays bem marcados, alguns echoes e flangers aparecem medidos), que traçam essa atmosfera mística que se fortalece nas sobreposições de vozes e instrumentação auxiliada por beats construídos por sons orgânicos. As melodias vocais passeiam por um caráter confessional desleixado. É como se a necessidade de contar fosse arrebatada pelo cansaço. O resultado acaba sendo certa sinceridade íntima de quem ao fim do dia, à meia luz, de uma sedução que se transforma em relacionamento, ao dividir as frustrações diárias. Em um cenário amplo, é como se Katze estabelecesse com seu ouvinte um refúgio em que é permitida a falibilidade, a insegurança e o medo. Com isso, cria-se um ambiente de conforto e acolhedor, por meio de um processo em que passamos a nos identificar no espelho da compositora. Como obra, o álbum Fratura Exposta, com data de lançamento prevista para o dia 14 de maio, se pretende um doloroso atestado de nossa humanidade. É uma busca por uma resposta sonora à tradição de agressividade do rock’n’roll em clichês masculinos e aos valores patriarcais da música pop. Faz parte de um grupo de artistas verdadeiramente autênticas que têm, nos últimos anos, trazido ao mundo obras interessantíssimas, tais como Papisa, ANNÁ, Luiza Lian e Jasper, entre outras. Katherine Finn Zander apresenta em sua obra solo algo que vai além dos excelentes projetos com a banda Cora e o grupo Noid. Os projetos acabam sendo complementares, porém quando se coloca sozinha, Katze se multiplica na dor que todos sentimos na busca de romper com a insensibilidade que permeia as relações sociais que vivenciamos.

BULL BRIGADE

Muito do que conhecemos do rock italiano está intimamente ligado às canções de Roberto Carlos. Se pensarmos em Punk Rock, logo pensamos em países cujo desmonte do welfare state e a decadência da economia industrial urbana os atingiu em cheio. Punk é a música dos jovens periféricos de cidades como Londres, Manchester, Nova York, Detroit, Berlin, Frankfurt e São Paulo (sim, existem – muitas – exceções, mas estou olhando exatamente para o meu imaginário).

Eu nunca havia ouvido punk italiano, muito menos punk em italiano, até conhecer a Bull Brigade, que completou em março 15 anos de estrada. Com dois álbuns gravados (e alguns EPs) a banda de Street Punk está preparando o terceiro, que deve sair nos próximos meses.

O que surpreende no álbum “Vita Libertà” (2008) é como as letras em italiano casam bem com as baterias rápidas e riffs melódicos da banda de Torino. Conversei com Stephano, baixista da banda para conhecer um pouco mais da cena.

Se “Vita Libertá” marca a carreira da banda em assumir cantar principalmente em Italiano, isso não diminuiu seu público além das fronteiras. Na Europa o público parece entender a mensagem intependente da língua. Atravessando a fronteira com a alemanha, eles encontraram muitos admiradores, que entendem a por meio da energia musical que eles colocam no palco.

Como muitas bandas que fazem sucesso em nichos, a música é uma profissão de meio período, seus integrantes tem outros ofícios. Eugy, o vocalista, por exemplo, trabalha em uma fábrica. É dessa relação que nasce a autenticidade do som da banda, sendo eles imersos na realidade da classe trabalhadora e periférica cujos temas entrelaçam os problemas sociais e, como são italianos, o calccio (uma música da banda toca nos jogos do Torino FC – onde um dia jogou Walter Casagrande).

Logo de início, a conversa se encaminhou para questões políticas. A Itália foi berço fértil para o fascismo e ainda hoje vive suas reminiscências. O street punk (também conhecido como Oi!), ao longo dos anos, foi identificado com movimentos ultranacionalistas da classe operária como grupos Skinheads e White Power (nota: a história do movimento Skinhead não deve ser reduzida aos ultranacionalistas, tendo início no Brixton londrino em comunidades negras). Ressaltados esses fatos, Stephano contou que a banda tem posição antifascista clara e que nunca teve problemas com o público fazer qualquer confusão neste sentido.

Sendo um dos protagonistas da cena Italiana de punk, a banda precisa expandir suas fronteiras em suas turnês, uma vez que o público e a cena local são pequenos. Eles já fizeram centenas de show pelo território Europeu, mas também encontraram uma oportunidade de se apresentar no Chile, experiência que, para Stephano, trouxe o desejo para a banda excursionar pela América do Sul.

Por Henrike Baliú SUSPECT DEVICE

“We learned more from a three-minute record, baby, than we ever learned at school”

“Aprendemos mais com um disco de três minutos, baby, do que já aprendemos na escola”, cantava Bruce Spingsteen na poderosa “No Surrender”. Obviamente, ele se referia ao single de sete polegadas, aquele disquinho de vinil que você precisa se levantar a cada três minutos para trocar de lado. Aquele pedaço de plástico que carrega a verdade sonora, castiga seus tímpanos e abre sua mente com o poder, a glória e a fúria dos três acordes. Discos que faziam você pensar, criticar, contestar, se divertir e, ao mesmo tempo, se libertar e se rebelar, pois essa era a essência do rock’n’roll. Mas se na era do Spotify até o antes majestoso, imponente e importante LP perdeu o impacto que tinha, imagina o single físico.

Entre 1976 e o começo dos anos 1980, muitas bandas punks lançaram singles espetaculares, com músicas escolhidas a dedo e capas incríveis. Na coluna desse mês, vou focar em alguns compactos da minha coleção dessa época áurea do punk rock. Tenho amigos colecionadores que não gostam de singles, o que deveria ser considerado heresia no mundo do vinil, um crime punível com a perda da sua coleção para o mofo e a umidade. Amo LPs, gosto de CDs, mas o single tem um lugar especial no meu coração. Bom, vamos lá, por ordem alfabética:

The Adverts “Gary Gilmore’s Eyes”. Inglaterra, 1977. Anchor Records.

Em 1976, Gary Gilmore assassinou duas pessoas nos EUA. Foi preso, julgado e exigiu ser sentenciado à morte. Foi executado por um pelotão de fuzilamento no ano seguinte, e as suas últimas palavras foram: “let’s do it!”. Na sequência, a banda punk inglesa, que contava com a linda e estilosa Gaye Advert no baixo, solta seu terceiro single, “Gary Gilmore’s Eyes”. A letra, na primeira pessoa, fala sobre receber um transplante de olhos, acordar após a cirurgia e perceber que os olhos vieram de ninguém

menos que: Gary Gilmore! Um fato curioso: a frase final de Gary, “let’s do it”, foi inspiração para o slogan da Nike, “Just do it”. Sério.

Asta Kask “För Kung & Fosterland” EP. Suécia, 1981. Rosa Honung Records

Lembro da primeira vez em que vi um disco da banda sueca Asta Kask. Foi em 1993, na cidade de Barueri, SP, onde minha ex-banda, o Blind Pigs, ainda em seus primórdios, ensaiava na cozinha dos punks da Hard Life. Eles tinham vários discos de bandas europeias de que eu nunca tinha ouvido falar. Entre elas, estava o Asta Kask, que me chamou a atenção pela foto na capa do disco: quatro moleques no maior visual punk, cabelos espetados, jaquetas de couro rebitadas, segurando seus instrumentos no meio da neve. Em 1981, os garotos do Asta Kask entraram em estúdio pela primeira vez e gravaram quatro músicas para o compacto “För Kung & Fosterland” (Pelo Rei e Pela Pátria), uma mistura perfeita de agressividade e melodia, que se tornaria a marca registrada da banda. A agulha quase pega fogo nos segundos iniciais da faixa de abertura, “Ringhals Brinner” (Ringhals Está Queimando), e quando termina de tocar “PS.474”, que fecha o lado B, já está incandescente. É necessário colocá-la na água fria por alguns minutos para resfriá-la antes de escutar o próximo disco. Aos desavisados, Ringhals é uma usina nuclear na península sueca de Värö.

Black Flag “Louie Louie”. Estados Unidos, 1981. Posh Boy Records.

Com a agulha já devidamente seca, colocamos o próximo compacto na vitrola, que nos leva para a ensolarada Califórnia, nos Estados Unidos de Ronald Reagan. Nesse sete polegadas, Dez Cadena é o responsável pela voz que arrasta pela lama suja do hardcore punk a música “Louie Louie” (originalmente gravada pelos The Kingsmen em 1963). A versão ganha uma letra nova, agressiva e violenta: “Você conhece a dor no meu coração, apenas mostra que não sou muito inteligente. Quem precisa de amor quando se tem um revólver? Quem precisa de amor para se divertir?”. A microfonia come solta, o caos impera e um clássico do rock é chacinado sem misericórdia e sem perdão em pouco mais de um minuto. Desde sua formação, em 1976, até esse single, o Black Flag já tinha trocado de vocalista umas três vezes. Em seguida, Dez Cadena passaria o microfone para Henry Rollins, que seria o gritante até o fim da banda e ganharia fama internacional com sua Rollins Band nos anos 90.

The Clash “White Riot”. Inglaterra, 1977. CBS Records.

18 de março de 1977. O The Clash lança seu single de estreia, o incendiário “White Riot”, um verdadeiro coquetel molotov sonoro. Começando com uma sirene policial, a música é uma gravação bem diferente da versão mais crua que acabou saindo no primeiro álbum. Joe Strummer

escreveu a letra após ele e o baixista Paul Simonon participarem dos tumultos contra a polícia durante o carnaval de rua de Notting Hill, um bairro de imigrantes jamaicanos, em agosto de 1976. “O homem negro tem muitos problemas, mas não se importa em jogar um tijolo, pessoas brancas vão para a escola onde te ensinam a ser estúpido”. Se tocando Asta Kask, a agulha ficou incandescente, aqui ela literalmente pega fogo e derrete um pouco do vinil ao final da audição.

The Clash “Train in Vain / London Calling”. Brasil, 1979. Epic.

Muita gente, até quem coleciona disco, não sabe, mas a Epic lançou no Brasil, em 1979, um single de “Train In Vain (Stand By Me)”, com “London Calling” no lado B. O mais louco é que a música “Train In Vain”, cantada por Mick Jones, era uma faixa escondida no álbum duplo “London Calling”. Ela originalmente não estava listada na contracapa nem no rótulo do vinil. Alguns outros países fizeram a mesma coisa: Bolívia, Canadá, Costa Rica e Estados Unidos. Porém, o Brasil foi o único que lançou o single com capa, fazendo do nosso lançamento nacional um item bastante cobiçado por colecionadores.

The Cortinas “Fascist Dictator”. Inglaterra, 1977. Step-Forward Records.

Vamos começar explicando o nome da banda: não é um tributo à cortina da casa da sua tia, não. O nome vem do carro popular mais vendido na Grã-Bretanha nos anos 1970, o Ford Cortina. “Fascist Dictator” foi a estreia em vinil da banda, que lançou mais dois singles e um álbum antes de acabar e cair no esquecimento. O refrão é simples e direto: “Sou um ditador fascista, yeah, é o que sou. Sou um ditador fascista, não sou como qualquer outro homem”. O guitarrista, Nick Shepard, foi parar naquela formação do The Clash que gravou o LP “Cut The Crap”. Recentemente, recebi uma mensagem em um dos meus grupos de WhatsApp, afirmando que Eduardo Bolsonaro queria comprar os direitos dessa música, dar de presente para seu papai e torná-la o novo hino oficial do Brasil, em inglês mesmo, pois eles manjam muito da língua. Bom, recebi no WhatsApp, então só pode ser verdade, né?

The Cramps “Garbage Man / Drug Train”. Estados Unidos, 1980. I.R.S Records.

Saindo da política, vamos pegar o trem descarrilhado das drogas, rumo ao mundo excêntrico, divertido e pervertido de uma das melhores bandas surgidas no final da década de 70, o The Cramps. Formada pelo casal Lux Interior (vocal) e Poison Ivy (guitarra), a banda durou até a morte de Lux, em 2009. Psychobilly? Punk? Rockabilly? Garage Punk? Não, o The Cramps vai além dos rótulos. Após a audição desse single perfeito, demente e icônico, seu cérebro fica um pouco atordoado, pois convenhamos, um som sobre ser um lixeiro no lado A para depois embarcar no lado B e viajar a bordo do trem das drogas, não é para qualquer um. The Cramps definitivamente não é uma banda qualquer, eles fazem música ruim para pessoas ruins. Aconselho escutar esse single sob efeito de entorpecentes.

Elvis Costello and The Attractions “Radio Radio”. Inglaterra, 1978. Radar Records.

Olha, precisa ter muito culhão para adotar o nome do Rei como seu nome artístico, mas foi o que Declan Patrick Aloysius MacManus fez em 1977, quando mudou seu nome para Elvis Costello. Mesmo sem nunca ter se considerado punk, foi jogado na onda do movimento por jornalistas.

O cara era, e ainda é, muito talentoso, lançou singles incríveis entre 1977 e 1980, mas, para mim, nenhum chega aos pés do hino “Radio Radio”, música simplesmente deliciosa com uma crítica feroz às rádios corporativas. Os teclados dão um show à parte. A letra é sensacional e a melodia, linda. Costello é gênio e esse single é prova disso. “Tiny Steps” no lado B, também é sublime.

The Jam “Down in The Tube Station at Midnight”. Inglaterra, 1978. Polydor Records.

Nesse espetáculo em 45 rotações por minuto, os mods do The Jam gravaram a sua primeira obra prima. A letra é um ataque ao xenofobismo que dominava a ilha da Rainha Elizabeth. A introdução da música te coloca na plataforma do metrô de Londres com o trem passando, enquanto a banda deslancha em seu melhor momento até então. Você sente o drama do imigrante sendo abordado por racistas no escuro do metrô londrino, enquanto tudo que ele queria era voltar para casa, para sua esposa que o espera para o jantar. Ele apanha e sente o cheiro de seus agressores. Cheiro de “pubs e muitas reuniões de extrema direita”. A partir daí, musicalmente, a quarta marcha é engatada, o refrão alcança sua glória e o The Jam merecidamente ganha o título de maior banda da Grã Bretanha. Parabéns Paul Weller, merecido. Na contracapa, uma foto do Keith Moon, baterista do The Who, que tinha acabado de morrer de overdose.

Lightning Raiders “Psychedelic Music / Views”. Inglaterra, 1980. Arista Records.

A primeira vez que escutei “Views”, o lado B desse obscuro single, foi no CD “Criminal Zero” do Forgotten Rebels. Os canadenses gravaram esse clássico esquecido do The Lightning Raiders, que lançaram apenas três singles entre 1980 e 81 e nada mais. O mais legal desse, o primeiro, é que foi produzido pelo ex-Sex Pistols Steve Jones, que também toca guitarra nas duas músicas e ainda chamou seu companheiro de banda, o baterista Paul Cook, para dar uma palinha. Esse single é uma joia perdida. O lado A, “Psychedelic Music”, é um tributo power pop à música psicodélica, e é incrível. Mas é no lado B, com “Views”, que a mágica acontece. Em um mundo perfeito, essa banda teria estourado.

Nipple Erectors “King of the Bop”. Inglaterra, 1978. Soho Records.

Antes de montar a magnífica The Pogues, Shane MacGowan escrevia para fanzines punks e cantava na banda punk Nipple Erectors (Eretores de Mamilos). “King of the Bop” tem um toque de rockabilly, é bacana, divertido, mas é realmente no The Pogues que Shane MacGowan mostra ser um poeta, um dos grandes, se

não um dos maiores que surgiram das cinzas do punk rock inglês. Essa minha cópia tem uma estória curiosa. Sou aquele cara chato, que garimpa mesmo quando vê uma loja de discos usados ou quando está numa feira de vinil. Anos atrás, eu estava numa feira de antiguidades aqui em São Paulo e tinha um senhor vendendo vinil. Nas caixas dos LPs não tinha nada de interessante para mim, mas vi que ele tinha uma caixa grande, com vários compactos. Pedi para olhar. Só tinha Roberto Carlos, “Capitão Gay” do Jô Soares & Carlos Suely, uns singles nacionais todos detonados, mas continuei fuçando. Quando eu estava para desistir, porque só tinha bosta mesmo, me deparo com essa raridade, capa em perfeito estado. Respirei fundo, tirei o disco da capa para analisar. Estava novo! Segurei a ansiedade enquanto o coração palpitava cada vez mais forte. A emoção era grande, eu sabia que esse single era bem raro. Como nenhum disco tinha etiqueta de preço, perguntei quanto custava quase gaguejando. “Garoto, esse aí é trinta reais, mas para você faço por vinte”, ele respondeu. Sem falar nada, até porque eu não conseguia, tirei uma nota de 20 do bolso, paguei o cara e fui para casa sabendo que a sorte naquela manhã de sábado tinha sorrido para mim.

Pogue Mahone “Dark Streets of London”. Inglaterra, 1984.

Antes de virarem The Pogues, eles eram conhecidos por Pogue Mahone, que significa “kiss my ass” em gaélico irlandês. A expressão “kiss my ass” por sua vez, pode ser traduzida para “vá se fuder” em português. Punk. Esse single foi financiado e lançado pela própria banda, mas depois relançado pela Stiff Records, já como The Pogues. “Dark Streets of London”, escrita por Shane MacGowan, é poesia em forma de música. Alegre e contagiante. Eu posso estar em qualquer canto da Grande São Paulo, no calor tropical de quarenta graus, mas se coloco essa música no fone de ouvido e fecho meus olhos, sou transportado imediatamente para as ruas escuras de Londres cobertas de neve. Já o lado B, tem uma versão impressionantemente triste da música “The Band Played Waltzing Matilda”, que conta a estória de um jovem enviado para a Península de Galípoli, na Turquia, na Primeira Guerra Mundial. Ele perde as pernas na batalha, não pode mais dançar, envelhece, e de sua varanda vê o desfile militar, com heróis esquecidos de uma guerra esquecida. Uma linda estreia para uma banda que, como um bom uísque, só melhoraria com o tempo.

Ramones “Rock n’ Roll Radio”. Estados Unidos, 1980. Sire Records.

Infelizmente não tenho muitos singles do Ramones, mas tenho esse, com sua capa bizarra e duas músicas incríveis: “Do You Remember Rock n’ Roll Radio?”, produzida pelo maluco/ gênio/assassino/presidiário/falecido Phil Spector, e a balada “I Want You

Around” do filme “Rock n’ Roll High School”. Aliás, a cena em que Joey canta essa música é de outro mundo. A protagonista, uma colegial de lingerie vermelha, fuma um baseado na cama e, intoxicada pela erva do diabo, vê Joey Ramone cantando para ela numa poltrona, enquanto Johnny toca sua guitarra sentado numa cadeira. Ela olha pela janela e Marky está tocando bateria no quintal. Mas cadê o baixista Dee Dee? Não vou dar spoilers, assista no YouTube, vale a pena.

The Replacements “I’m in Trouble / If Only You Were Lonely”. Estados Unidos, 1981. Twin Tone Records.

Em 1982, minha família se mudou do Planalto Paulista para Ann Arbor, no estado de Michigan, na terra do Tio Sam. Ficamos lá uns quatro anos, enquanto meu pai, um oficial da Marinha do Brasil e engenheiro naval, estava em missão oficial estudando engenharia nuclear na University of Michigan. Meu pai já era colecionador de discos e lá teve contato com o punk hardcore americano. Nessa época, ele testemunhou o The Replacements ao vivo num barzinho em Ann Arbor e trocou ideia com a banda depois do show. Alguns anos depois, The Replacements se tornaria uma das maiores bandas indie norte americanas. Mas nesse single, eles ainda eram uns punks que cuspiam cerveja nos shows. “I’m In Trouble” é uma das melhores músicas do espetacular álbum de estreia, “Sorry Ma, Forgot To Take Out the Trash” (desculpa mãe, esqueci de levar o lixo para fora). O lado B, “If Only You Were Lonely”, surpreende por ser uma linda balada acústica sobre trabalhar, depois ir beber no bar, ver a garota que você gosta (mas ela não está sozinha), ficar deprimido porque a viu, beber mais, voltar para casa, vomitar na privada e deitar na cama com o mundo girando. Meu pai comprou esse compacto por apenas $1.99 na loja Schoolkid’s Records, a etiqueta com o preço ainda está na capa. Hoje, é uma raridade.

Sex Pistols “Holidays in The Sun”. Japão, 1978. Columbia.

Você tira o disco da capa - uma colagem com imagens roubadas de um anúncio de uma agência de turismo belga. Coloca na vitrola. A música começa hipnotizante, com uma batida cadenciada, que lembra soldados nazistas da SS marchando - e creio que essa era a ideia mesmo. O bumbo da bateria logo acompanha a mar-

cha, enquanto Steve Jones solta uns acordes na guitarra. Paul Cook faz uma virada simples, porém eficiente, na bateria e a paranoia se instaura com Johnny Rotten, cuspindo a frase “férias baratas às custas da miséria alheia” para, logo em seguida, cantar o verso “eu não quero férias no sol, eu quero ir para a nova Belsen, eu quero ver um pouco da história, porque agora tenho uma economia razoável”. Para quem não sabe, Belsen foi um campo de concentração nazista no norte da Alemanha, na cidade de Bergen. O som não é rápido, o vocal não é gritado, mas é um soco no estômago, uma música pesada e densa, apesar de ser contagiante e melódica. Fico pensando como teria sido escutá-la, em 1977, pela primeira vez. Uma experiência e tanto, imagino. Minha cópia é a edição japonesa, lançada um ano depois da edição original.

Starjets “War Stories”. Inglaterra, 1979. Epic Records.

Quadrinhos de guerra + punk rock = diversão garantida para mim. Sempre gostei de HQs bélicas. Sempre gostei de punk rock também, então não tinha como errar com esse compacto aqui, perfeito para meu gosto peculiar. O Starjets é de Belfast, na Irlanda do Norte, e quem cresceu lá nos anos 60 e 70, sabe bem o que é guerra. A banda lançou apenas um LP e vários singles, pela gigante Epic, antes de acabar em 1980. “War Stories”, um punk pop perfeito, foi o ponto alto da curta carreira dos garotos irlandeses. “Do the Push”, o lado B, é uma pérola pop. Um dos meus compactos favoritos.

Stiff Little Fingers “Alternative Ulster”. Inglaterra, 1978. Rough Trade.

Me interessei pela luta por independência na Irlanda do Norte ainda moleque, por causa do Stiff Little Fingers. Devorei artigos sobre o IRA (Exército Republicano Irlandês), seu braço político, o Sinn Féin, e li a biografia de um dos seus principais líderes, Gerry Adams. Eu queria entender mais sobre as letras e a capa desse single: um garoto irlandês brincando em cima de um muro, enquanto um soldado britânico do exército de ocupação se protege com seu fuzil. Uma das capas mais simples e marcantes que já vi na vida. Nem aparece o nome da banda, apenas o da música, “Alternative Ulster”, em vermelho, como um aviso de que um dia Ulster (uma das quatro províncias irlandesas) seria livre do domínio britânico. A música é um clássico absoluto do punk rock. Os acordes iniciais já fazem os pelos do braço arrepiar, dando vontade de pegar um avião para Belfast só para arremessar um paralelepípedo em um tanque inglês.

Stiff Little Fingers “Straw Dogs”. Inglaterra, 1979. Chrysalis.

Seguindo a tradição de capas chocantes, o SLF solta o single “Straw Dogs” em 1979, com a foto de um açougue na capa. Ué, mas o que tem de chocante a foto de um açougue com carcaças de animais penduradas por ganchos em uma vitrine, se você não for vegetariano? Vamos lá, straw dog é uma expressão inglesa usada quando alguém está se referindo a estuprar e pilhar alguém ou várias pessoas. A associação da imagem do açougue com o tema da música, tor-

na a imagem da capa poderosa. A faixa, sobre soldados mercenários contratados para lutar e matar em guerras é, na minha opinião, a melhor na longa discografia da banda. E não entrou em nenhum álbum. Na época, para escutar esse som, você tinha que comprar esse single.

Tom Robinson Band “Up Against the Wall”. Inglaterra, 1978. EMI.

Falei sobre o Declan Patrick Aloysius MacManus ter culhão para mudar o nome para Elvis Costello, mas pensando bem, culhão mesmo teve o jovem Tom Robinson. Em uma cena em que Sid Vicious usava camiseta com suástica, ele gravou a música “(Sing If You’re) Glad To Be Gay” (cante se você é feliz em ser gay). “Up Against The Wall”, o terceiro single, foi lançado logo depois, um punk rock que não deve nada às melhores bandas da época. O lado B, “I’m Alright Jack”, é tão bom quanto. Infelizmente, a TRB é uma banda que não tem o reconhecimento que merece. No Brasil, os três primeiros compactos foram compilados em um único LP, “Rising Free”, lançado em 1978 e ainda fácil de encontrar. Fica a dica.

The Undertones “Jimmy Jimmy”. Inglaterra, 1979. Sire Records.

Minha agulha hoje viu o mundo pelos olhos de um assassino, ficou incandescente, pegou fogo, derreteu um compacto, arremessou tijolos em policiais, viajou no trem das drogas, denunciou fascistas, flertou com a psicodelia, passeou pelas ruas escuras de Londres, entrou em apuros, bebeu num bar e vomitou, tirou férias baratas em um campo de concentração nazista e foi para a guerra. Ufa! Ainda bem que ela aguenta o tranco. Mas agora é hora de pegar leve com a tadinha, então coloco na vitrola o single em vinil verde, edição limitada, da banda irlandesa The Undertones, os reis do punk pop. Aqui é só alegria. O lado A é sobre aquele primo que a família toda acha o máximo, o Jimmy, mas você acha ele um saco. O lado B, “Mars Bars” é sobre chocolate. Gênios. Com esse single, nossa viagem em 45 rotações por minuto pelo maravilhoso mundo do compacto termina. Até a próxima coluna!

Por Fernando de Freitas

SINTOMA IN VENUS

Osom é denso. O ar que propaga as músicas do álbum Sintoma, da banda In Venus, pode ser cortado com uma faca. A densidade é consequência do peso sonoro e temático. É música feita para externar inconformidade. A dissonância é o incidente que eleva a tensão e nos coloca em posição de escuta ativa. O sintoma deve ser percebido com atenção, a música produzida pela banda não tem a função de preencher o ambiente, pois ela toma e se torna o ambiente que é preciso encarar.

Junto com a banda composta por Cint Murphy (voz e sintetizadores), Duda Jiu (bateria), Patricia Saltara (baixo) e Rodrigo Lima (guitarra), a coletiva Formas, formada por Adriana Latorre, Brunella Martina, Camila Visentainer, Erikat, Filipa Aurélio, Thais Lopes e Thamu Candylust, participou da concepção do álbum. Decorrente da necessidade da banda de compartilhar processos criativos entre artistas, surgiu a coletiva, responsável pela concepção visual da obra. Para gravar o álbum, a banda se isolou, entre os dias 22 e 26 de fevereiro de 2020, em um processo de residência artística no interior de São Paulo.

Levando o do it yourself à experiência comunitária, a banda divide o processo criativo do álbum enquanto conceito, sem fragmentar o trabalho. Ao aproximar a cadeia criativa, toma para si a direção, sem alienar os colaboradores. O resultado é um álbum extremamente coerente como obra, no sentido amplo.

Ainda que a referência não tenha sido proposital, a proposta da combinação melódica das vozes e das guitarras remete ao álbum “Da Lama ao Caos”, de Chico Science e Nação Zumbi, de 1994. A banda atinge um resultado sonoro do qual poucos se aproximaram, pois daquele álbum (junto com Afrociberdelia) restou a sensação de shooting star, cujas mimetizações foram retratos pálidos. Talvez por não perseguir esse resultado, tendo por influência inicial o underground anglo-saxão, que veio a se desdobrar nos músicos da vanguarda paulistana (Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, entre outros) da década de 1980 - e encontrando as ramificações que perduram até hoje (Kiko Dinucci, Metá Metá) -, a proposta é lançar um projeto que estabelece parâmetros criativos a quem está ao seu redor. Talvez seja aí que se assume a continuidade sonora que ficou órfã desde a morte de Chico Science. (Cabe aqui um aparte: a Nação Zumbi levou adiante o projeto musical iniciado com Chico, sem se tornar uma repetição de si mesma, continuou criando e seguiu um caminho belíssimo, mas com nuances novas. O vácuo deixado por seu primeiro vocalista nunca mais foi preenchido e, acredito, esse foi o melhor caminho para a banda.)

Embora, à primeira, audição seja patente a conversa entre voz, sinth e guitarra, as tensões criativas da banda de transparecem conforme as audições se acumulam. O baixo de Patrícia é elemento central de tensão na música. Seu encontro com a bateria de Duda Jiu ressoa o embate como uma capoeira, que dança e luta. Na atuação de Cint, por sua vez, há uma aspereza entre o orgânico e o sintético que não se resolve na voz. A guitarra encontra seu espaço nesta tensão, costurando no limite das forças contrárias que parecem querer se dissociar.

Esse tecido musical é resultado de uma banda absolutamente consciente de sua unidade, de seu lugar enquanto artistas e das questões políticas que se propõe a retratar. Para chegar a este álbum a banda ensaiou durante um ano, várias vezes por semana, ao longo de horas. O ritual e a comunhão permitiram que os caminhos fossem explorados livremente, encontrando e desencontrando a música que produziam. Essa busca perfaz tornar consciente aquilo que se percebe no inconsciente, processo para o qual foi necessário gravar diversos ensaios, ouvi-los, buscar reproduzir, ouvir novamente... em uma dialética que se retroalimenta até que se encontre o ponto que reflete a intencionalidade inicial.

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