Revista do Portal Literal
Oficina de Contos com José Castello
www.portalliteral.com.br
Edição 01 | Outubro 2012 www.portalliteral.com.br
Entrevista com Castello
Revista Literal 1
EXPEDIENTE
Realização Conspiração Filmes Produtor Executivo Luiz Noronha Curadoria Heloisa Buarque de Hollanda Coordenação Elisa Ventura Editor (site) Ramon Mello Co-editora (site) Manoela Sawitzki Revista Portal Literal n. 1 Editor (revista eletrônica) Bruno Dorigatti Colaboração Cássio Loredano (caricaturas) Felipe Pontes Jorge Duarte Julio Sekiguchi Raimundo Rodriguez Oficina Literária José Castello (Oficina de Contos) Direção de Arte e Design Retina78 Agradecimentos Cássio Loredano, pela cessão das caricaturas que ilustram esta edição. Jorge Duarte, pela cessão da obra que ilustra esta edição. Julio Sekiguchi, pela cessão da obra que ilustra esta página. Raimundo Rodriguez, pela cessão da obra Linha de Chegada, que ilustra a capa desta edição. www.literal.com.br
Patrocínio
Revista do Portal Literal
Apresentação por HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA 1. ENTREVISTA
com José Castello pg 08 pg 15
2. OFICINA DE CONTOS com José Castello pg 16 pg 87
A Revista Literal foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição Não Comercial - Compartilha Igual 3.0 Não Adaptada. © 2012 http://creativecommons.org.br
Origem do Vento (33,5 x 34 x 9 cm), de Julio Sekiguchi.
BEM LITERAL 4 Revista Literal
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA Oficina da Palavra
O Portal Literal nasceu no início deste século, mais precisamente em dezembro de 2002. Estávamos num momento de especial encantamento com as perspectivas da literatura na internet, sua prática descentralizada, um horizonte ainda por ser explorado em mil possibilidades expressivas. Portanto, um locus perfeito para o acesso ampliado da obra de autores já reconhecidos e da hospedagem da palavra dos novíssimos dividindo entre si o mesmo espaço e tempo. Nessa época, juntaram-se Luiz Noronha, da Conspiração Filmes, Ferreira Gullar, Lygia Fagundes Telles, José Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura para uma incursão literária nos labirintos www, com o patrocínio da Petrobras, parceira desde o início do projeto. Fui convidada para ser curadora do Portal, convite que aceitei imediatamente, sem nenhuma hesitação. Daí para frente, desenrolou-se uma história linda de namoro, confronto e negociação entre a palavra literária e o potencial daquele novo espaço, ainda nebuloso. Cada autor mereceu um site personalizado, feito a muitas mãos, num trabalho experimental de plataformas e modelos que pudessem expressar os muitos sentidos da obra de cada um. O Portal foi lançado numa grande festa pré-réveillon
no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Estava fincada a bandeira da literatura brasileira em terras ainda não colonizadas. Além dos autores titulares do Portal Literal, foi criada, por sugestão de Luiz Noronha, jornalista tarimbado, uma revista literária totalmente on-line e atualizada diariamente. O nome escolhido para a Revista foi Idiossincrasia, consensualmente considerada a perfeita tradução da atmosfera do campo literário. Brincadeira ou não, o nome pegou e transformou-se numa marca forte da presença da literatura brasileira na internet. Vários editores passaram pela nossa Idiossincrasia. Luiz Fernando Vianna, o primeiro, que deu o tom editorial que a revista manteve durante todos esses anos. Em seguida, vieram Cristiane Costa, com sua paixão pelo livro, Cecilia Gianetti que ajustou com olho certeiro o ethos literário ao universo nerd, Bruno Dorigatti, ligado em pautas inovadoras, Bolívar Torres, e, finalmente, Ramon Mello e Manoela Sawitzki, poeta e escritora, que chegam agora com força total. Nesses 10 anos, o Literal teve muitas idas e vindas. O compromisso de acompanhar a evolução acelerada do ambiente virtual fez com que mudássemos o perfil do Portal mais vezes do que previmos. O Portal Literal focou progressivamente na agilidade da internet trazendo a informação antes que ela se consolidasse em notícia, agregou várias plataformas como a Rádio Literal, a TV Literal, as plataformas transmídia, ofereceu oficinas literárias e finalmente reformulou sua navegação para formatos 2.0, mais participativos e capazes de abrigar a palavra e a criação de seus leitores. Foi uma longa jornada. Agora, oferecemos mais uma surpresa no território da palavra. Lançamos, como consolidação destes 10 anos de trabalho, quatro números especiais da Revista Literal, com a curadoria de Bruno Dorigatti e o design da Retina78, que oferece em formato de aplicativo uma primeira seleção do nosso acervo. Revista Literal 5
EspĂrito de Porco-Espinho (40 x 12 x 6 cm). 6 Revista Literal Jorge Duarte
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CORPO A CORPO 8 Revista Literal
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JOSÉ Corpo a corpo com o crítico CASTELLO Uma das poucas vozes a ainda praticar a crítica literária com periodicidade na grande imprensa brasileira, o escritor e jornalista carioca José Castello não tem receio de dizer, com franqueza: o que define a crítica literária é o corpo a corpo com o livro. “Acho muito legal, de repente, pegar um livro de um autor consagrado, botar na mão de garoto de 18 anos, para ele ler e escrever como leu aquilo”, afirma. Por Felipe Pontes Publicado originalmente em abril de 2010
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Também um concorrido oficineiro, Castello é o autor da Oficina de Contos ministrada no Portal Literal. “Eu vou arriscar a dizer que acho mais fácil dar oficinas on-line do que presenciais”, confessa o crítico, que mantém o blog A literatura na poltrona, como uma extensão de sua coluna no caderno Prosa & Verso do jornal O Globo.
Biógrafo de Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, Castelo também é autor de livros como Inventário das sombras (Record, 1999) e A literatura na poltrona (Record, 2007), ambos envolvidos com o ofício do jornalismo literário. Escreveu ainda o elogiado romance Ribamar (Bertrand Brasil, 2010), Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2011. Na entrevista a seguir, Castello comenta sobre a “experiência interminável da escrita”, explorada por ele em suas oficinas, fala sobre Ribamar e dá sua opinião sobre critica literária no Brasil. Castello, fale um pouco sobre as oficinas de contos que você ministra. José Castello. Eu vejo menos como uma oficina e mais como um trabalho de orientação de produção de textos. A minha idéia é que, ao longo do ano, cada aluno trabalhe um só conto. Alguns preferem trabalhar mais, mas eu queria convencê-los a cada um trabalhar um conto para podermos esgotá-lo, fazer realmente contos muito bem trabalhados e pen-
sados. Vamos nos dedicar à leitura em voz alta dos contos em andamento dos alunos, discutindo ponto a ponto, criar um espaço de discussão da escrita viva.
Como é lidar com o processo criativo de diversas pessoas diferentes? Olha, em conto é a primeira vez. Mas estou realizando pela segunda vez um laboratório de jornalismo cultural, no Rumos Itaú Cultural. Também é assim, um ano inteiro, só que muito mais intenso. Bom, é on-line, dois chats semanais de duas horas e meia. Esse ano tem gente de São Luís (MA) a Porto Alegre (RS), isto é, estudantes de comunicação selecionados no Brasil inteiro. Ao longo desse ano, vamos orientar a produção de uma reportagem de jornalismo cultural desenvolvida por cada aluno. De início parece uma coisa meio louca, longa demais, mas não, é pouco tempo. Com a experiência você começa a ver que realmente a escrita é um saco sem fundo. Se você começa a mexer, mexer e mexer, realmente não termina. Revista Literal 11
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Quando chegou o momento, por exemplo, no primeiro laboratório, que todo mundo tinha que entregar o texto pronto, que tinha que entrar em gráfica por que é feita uma publicação chamada Singular, a sensação de todos era que a reportagem não estava concluída. É possível sempre aprimorar, modificar, rediscutir pontos de vista. O objetivo é justamente colocar as pessoas em contato com essa experiência interminável da escrita. Muita gente tem a idéia de que faz um conto e que quando o conto esta pronto, está bom e acabou. Não é assim, a maioria dos escritores quando entrega um livro, o faz por não aguentar mais aquele livro, não porque ele esteja pronto.
Você costuma engavetar um texto por muito tempo? Às vezes, deixo mais tempo, às vezes, menos tempo. Por exemplo, vou lançar um romance em agosto [de 2010] pela Bertrand Brasil [o premiado Ribamar; a entrevista é de abril de 2010]. Trabalhei nele durante quatro anos, fiz vários intervalos ao longo desse tempo. Quando voltava, começava tudo outro vez, aquela história… Quando decretei que ele estava pronto, deixei dormir cinco meses, até fazer uma releitura. Mas já teve casos de eu deixar um livro só um mês engavetado. O ideal é deixar mais tempo. Só que além das pressões editoriais, o editor que fica te cobrando o texto, tem também uma questão pessoal: você não aguenta, chega uma hora que você não quer saber daquilo, quer qualquer coisa menos aquilo. E não é porque você acha que o texto esteja concluído, bom, impecável, perfeito, nada disso. A sensação é sempre oposta,
que está imperfeito, falta um monte de coisa, que está ruim. Com esse novo romance também rolou muito isso.
Sobre o que é esse romance? É meio complicado de explicar. Nem sei se é um romance, já discuti com a editora, mas vai sair como romance porque afinal ele é cheio de mentiras, todo mentiroso. O livro é em torno do meu pai, José Ribamar, morto em 1982. Eu fiz de fato uma viagem a Parnaíba, no Piauí, que foi uma cidade onde ele passou a infância e a juventude até ir para o sul. Então o livro é um pouco o relato dessa viagem, mas totalmente mentirosa, porque a maior parte do que eu conto realmente não aconteceu, são coisas que imaginei que aconteceram enquanto estava lá, porque os acontecimentos reais foram mesmo pouco interessantes. Ao mesmo tempo, o livro é escrito como se fosse uma carta ao meu pai. Ele é também um ensaio sobre o Kafka, a partir da leitura do Carta ao pai. Eu tento usar a relação do Kafka com o pai dele, para discutir a minha relação com o meu pai. Como você compara a oficina virtual com a presencial? Eu não tenho tanta certeza do que eu vou dizer, mas confesso que acho mais legal dar on-line do que presencial. Digo para mim, não sei para os alunos. A presencial desgasta muito. As pessoas ficam muito cara a cara e acabam trazendo muito problema pessoal para a sala. Fulano implica com Beltrano, surgem conversas paralelas. On-line é mais focado, apesar de também rolar conversas paralelas, você consegue dar uma moldura melhor. Revista Literal 13
Você é um dos poucos com espaço periódico para a prática da crítica literária na grande imprensa. Como avalia a crítica literária no Brasil hoje? Se é que eu faço crítica literária. É a dúvida que eu sempre tenho. Outro dia, participei de uma mesa com vários críticos literários da USP e pus essa dúvida. Todos falaram “não, claro que você faz crítica literária”. Eu falei ótimo, se quiserem me dar um diploma eu agradeço, mas eu ainda não estou convencido. Enfim, primeira coisa, tem muito pouco espaço na imprensa. Eu colaboro n’ O Globo, na Época, mas é um problema, porque o espaço é muito pequeno, três mil caracteres em média. Às vezes, é menor do que uma orelha. Então não dá nem para começar. Você começou já está acabando. Tem a Bravo!, que dá mais espaço. Tem o trabalho heróico do Rogério Pereira lá em Curitiba com o Rascunho, com imensas dificuldades, mas que consegue abrir duas, três páginas para um livro. Agora, como tem pouco espaço, a formação dos críticos, a prática, é toda muito irregular. A pessoa colabora uma vez, daqui a dois meses sai uma resenha não sei onde. Fica tudo muito disperso e não dá tempo de você se acostumar a um certo crítico, a um certo olhar. Eu tenho sorte de ter ali o meu espaço semanal no Prosa e Verso. Você acha que falta uma publicação dedicada aos livros no Brasil? Eu preferia, acho mais eficaz, se os jornais e as revistas realmente ampliassem seus cadernos 14 Revista Literal
de livros. Porque se você faz uma publicação específica, só vai comprar quem realmente é interessado. Um caderno literário dentro de um jornal ou revista geral acaba atingindo um público maior. A formação das pessoas é que eu não sei. A maioria vem da faculdade de Letras e trazem vícios de linguagem supostamente mais científica, mais seca. Eu acho muito legal o Rascunho nesse ponto. Muita gente critica que o Rascunho abre espaço para qualquer um, um bando de moleques que não leram nem meia dúzia de livros. Acho muito legal, de repente, pegar um livro de um autor consagrado, botar na mão de garoto de 18 anos, para ele ler e escrever como ele leu aquilo. É claro que ele está muito menos equipado do que alguém experiente, que tenha feito Letras, mestrado, doutorado, mas ele tem um olhar dele, contemporâneo sobre a obra.
Mas muitos evitam chamar isso de crítica literária. Pois é, mas aí é aquela discussão: o que é crítica literária? Existe Teoria Literária. Isso eu sei o que é. Quer dizer, são os caras, dentro da universidade, que estudam os grandes teóricos da Literatura. Agora, a crítica em geral, a coisa mais rasa que se pode dizer em relação a ela, é um corpo a corpo direto com o livro. Você pode ter mais ou menos bagagem, mas o que define é esse corpo a corpo.
JOSÉ CASTELLO 16 Revista Literal
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JOSÉ Oficina de Contos com CASTELLO Nascido no Rio de Janeiro, em 1951, o jornalista e escritor José Castello vive em Curitiba desde 1994, onde mantém uma disputada oficina literária. É mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi repórter de Veja, redator do semanário Opinião, chefe da sucursal carioca de IstoÉ e editor dos suplementos Idéias/Livros e Idéias/ Ensaios, do Jornal do Brasil. Colunista de O Globo, foi articulista do jornal literário Rascunho, é autor do perfil de Vinicius de Moraes: O poeta da paixão (Relume-Dumará, 2005) e João Cabral de Mello Neto: O homem sem alma/Diário de tudo (reeditado pela Bertrand Brasil em 2006), dos romances Fantasma (Record, 2001) e Ribamar (Bertrand Brasil, 2010) e de A literatura na poltrona (Record, 2007), entre outros. Oficina publicada originalmente entre julho e setembro de 2007. Caricaturas de Cássio Loredano
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Julio Cortรกzar (1914-1984)
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AULA 1
Em sua primeira aula, José Castello destaca que cada conto oferece, secretamente, sua própria definição do que é um conto. E propõe um exercício surpreendente.
Diz o dicionário que o conto é uma narrativa breve e concisa, que apresenta unidade dramática e tem a ação concentrada em um único ponto de interesse. A definição sintetiza as idéias mais comuns que cercam, como velhas superstições, o conceito de conto. Não traz uma regra, uma norma, não é um dogma: mas é, ainda assim, um bom ponto de partida. E, como todo ponto de partida, existe não para que nele estacionemos, mas para que o superemos. A palavra conto vem de “conputus”, do latim, que, entre outros significados, guarda o sentido de “cálculo”. De fato, na arte de escrever contos existe muito de perícia, de busca de rigor e precisão, de luta contra o excesso e o supérfluo. É claro, cada autor estabelece seus próprios objetivos, fixa suas próprias fronteiras e lida com suas próprias idéias a respeito do que escreve. Os contos de Machado de Assis, como “A cartomante”, ou “A mulher de preto”, não se parecem com um conto célebre do argentino Júlio Cortázar, como “O perseguidor”. Ambos se distanciam muito de uma fábula de Esopo, como “A raposa e as uvas”, dos re-
latos de Charles Perrault, como “O barba azul”, e também de qualquer uma das cem narrativas guardadas no Decamerão, de Boccaccio. Ainda assim, todos costumam ser chamados, genericamente, de contos. Em resumo: cada escritor deve criar e fixar sua própria definição de conto. Pouco servem as explicações ligeiras, como a idéia de que o conto é, por regra, uma narrativa curta. O mais importante conto de Cortázar, “O perseguidor”, tem cerca de 70 páginas. Tem quase o mesmo tamanho, por exemplo, que O quieto animal da esquina, um dos romances (ou novelas) do gaúcho João Gilberto Noll. A via das medições e muito perigosa. Há sempre muito de arbitrário quando se diz que “O perseguidor” é um conto e O quieto animal da esquina, ao contrário, é um romance. Em um livro famoso, Assim se escreve um conto, o escritor argentino Mempo Giardinelli, depois de admitir que o conto é “indefinível”, ainda assim arrisca algumas definições. Conto seria o relato de uma breve série de incidentes – assim como, no interior brasileiro, se contam Revista Literal 19
Gustave Flaubert (1821-1880)
“causos”, um sinônimo de conto. O conto seria uma história acabada e perfeita, como num círculo, do qual o supérfluo está excluído. Ou ainda: conto seria um relato em que o argumento, o assunto e os incidentes são fundamentais – e, nesse caso, os contos se interessariam apenas “pelo que está acontecendo”, e nada mais. São definições precárias, que podem ser desmentidas com facilidade. Muitos contos famosos, como o “William Wilson”, de Edgar Alan Poe, e “O Horla”, de Guy de Maupassant, atribuem tanto valor às atmosferas quanto aos eventos, o que desmente a primeira definição. Os contos do argentino Jorge Luis Borges, como os célebres “As Kenningar” e “Tlön, Uqbar, Orbis Ter20 Revista Literal
tius”, são muito mais exercícios intelectuais do que relatos factuais, e desmentem a segunda. Um conto filosófico como “O ovo e a galinha”, que Clarice Lispector apresentou no I Congresso Mundial de Bruxaria, desmente a terceira. Talvez se possa pensar, a favor das definições, que elas são criadas justamente para serem desmentidas e mesmo traídas. Para servirem de baliza, de referência – como as faixas luminosas nas estradas escuras. Isso, contudo, não facilita as coisas para quem escreve. O conto continua a ser um problema que cada escritor precisa resolver a seu modo. Na verdade, cada conto oferece, secretamente, a sua própria definição de conto.
O que define o conto, se é que depois do Modernismo ele ainda suporta definições, é, acreditam alguns, a tendência à concentração. Podemos pensar nos relatos contidos nas Mil e uma noites, o grande clássico da literatura árabe, reunião, na verdade, de 1001 contos. Cada uma das histórias se basta. Nelas se concentram um número limitado de personagens, se desenrolam um pequeno número de eventos, em geral reunidos no mesmo lugar e no mesmo tempo. Há, no conto, uma tendência à forte economia de recursos. A convergência dos vários elementos em jogo para um mesmo foco, de alguma forma muito precária, ajuda a definir o conto. Os magníficos contos do escocês Robert Louis Stevenson, como “O ladrão de cadáveres”, viriam confirmar isso.
dores. O argentino Adolfo Bioy Casares, ainda que sempre fascinado pela força das histórias, ajudou a explodir a idéia do conto, emprestando a seus relatos breves uma complexidade que, em geral, só se espera dos romances. Contos como “A serva alheia” serão mesmo contos? Se acreditarmos piamente no que dizem os manuais de literatura, talvez não seja possível afirmar isso. Contudo, é claro que são contos, e não só isso, mas alguns dos mais magníficos contos já escritos. Há ainda a idéia corrente de que o conto ou guarda um mistério – como nos “contos de mistério” e nos “contos de terror” – ou bem guarda um enigma. No primeiro caso, do mistério, há sempre uma expectativa de solução, de desvendamento, de fecho esclarecedor. Nes-
Mas, como sustentar essa idéia a respeito do conto diante dos densos e delicados relatos de Gustave Flaubert, como o célebre “Uma alma simples”? Narrativas como “O capote” e “O nariz”, do russo Nicolai Gógol, devem receber a definição de contos? E, se não são contos, o que são? Pense-se em Clarice Lispector. Relatos breves como “Feliz aniversário”, ou “O crime do professor de matemática” suportam, sem grandes dificuldades, a definição de conto. Mas, nos livros de contos de Clarice, encontramos narrativas complexas e misteriosas, como “O ovo e a galinha” e “O relatório da coisa”. Serão mesmo contos, só porque estão guardadas em livros de contos? Há quem afirme que alguns dos relatos breves de Clarice, como “O relatório da coisa”, sequer fazem parte da literatura – pertenceriam, mais, à filosofia. Clarice se irritava com essas tentativas de classificação. Sabia que classificações costumam servir, quase sempre, como mordaças – ou como muletas para esconder a preguiça dos classifica-
se sentido, e apesar da extensão, os romances policiais da inglesa Agatha Christie seriam, na verdade, contos. No segundo caso, do enigma, privilegiam-se em geral as atmosferas, as reflexões psicológicas, as meditações. Escritores fabulosos como Antón Tchekhov, o autor de “A dama e o cachorrinho”, radicalizaram essa opção pelo realismo intimista. “Onde está marcada a cruz”, a peça do norte-americano Eugene O’Neill, por exemplo, cumpre com muito mais rigor os preceitos clássicos dos contos do que grande parte das narrativas que ostentam esse nome. São clichês, forças do hábito, comodidades que, no fim, examinam o conto só na superfície, mais em busca das semelhanças, do que em busca daquilo que realmente importa: sua marca original. Não custa lembrar que a literatura é, antes de tudo, o terreno do particular – e os contos, é claro, não ficam de fora disso. Hoje muitos escritores praticam o conto mais realista, que se aproxima da fotografia, do cinema e da reportagem. Contos de João
O que define o conto, se é que depois do Modernismo ele ainda suporta definições, é, acreditam alguns, a tendência à concentração.
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Ernest Hemingway (1899-1961)
Antonio, como os reunidos em O guardador, ou Ô, Copacabana, são contos ou reportagens? Ao escrevê-los, ele praticava literatura, ou jornalismo? O que dizer das magníficas crônicas de Rubem Braga, ou daquelas assinadas por Paulo Mendes Campos e Carlinhos Oliveira? Como fixar, com segurança, a fronteira entre a crônica e o conto? A mesma dúvida surge com a leitura das narrativas curtas de Ernest Hemingway. O velho e o mar, seu romance mais famoso, não é um conto – mas guarda mais rigor e tensão que a maioria de seus contos. O norte-americano Truman Capote chegava a dizer que escrevia “romances de não-ficção”. Ironizava, assim, com a mania de classificar. Capote sempre surpreendeu, e até chocou, com a liberdade interior que se concedia. Em vez de ajudar, clichês sempre atrapalham. Dão a impressão ligeira de que estabelecem uma ordem, uma classificação, um cânone. Mas, quase sempre, descartam aquilo que os contos (e a literatura) têm de melhor: a capacidade de perturbar e de surpreender. Então, quando você se sentar para escrever um conto, esqueça desses padrões, dessas classificações, e tente estabelecer, com firmeza e convicção, seu próprio rumo. Cada escritor cria sua tradição, cria seu passado, cria suas influências e cria, também, suas defini22 Revista Literal
ções. Escrever é, antes de tudo, buscar a voz interior, isto é, perseguir aquela marca que distingue um escritor de todos os outros. E isso não se aprende, não se ensina, isso se encontra. Mais importante que saber o que fazer é saber o que não fazer. Daí a importância de afastar-se, antes de tudo, daquelas facilidades – repetições, fórmulas prontas, definições – que amordaçam e bloqueiam o caminho do escritor. É o trabalho mais difícil e de aparência menos nobre: saber o que um escritor não é, saber o que um escritor não quer. Porque cada escritor é, sempre, um escritor diferente. O que o define e legitima é a voz inconfundível. Uma página de Clarice Lispector, ou de José Saramago, lançada ao vento, será sempre inconfundível. Ou o escritor busca essa marca, ou não merece ser chamado de escritor. ________________ A partir da próxima aula, começamos a trabalhar casos específicos. Para facilitar a vida dos alunos, tomarei por base os contos reunidos em Os cem melhores contos brasileiros, antologia organizada pelo crítico e poeta Ítalo Moriconi, para a editora Objetiva. Mas os contos citados ao longo desta primeira aula podem ser tomados, também, como pontos de partida para a leitura e a reflexão.
Aula 1 | Exercício de Proibições Escreva um conto, que tenha no máximo 5 mil caracteres com espaços, ambientado na praia de Copacabana. As 100 palavras que constam da lista abaixo não podem ser usadas, estão proibidas. A idéia desse exercício é levar o aluno a refletir sobre as facilidades oferecidas por clichês, lugares comuns, e tudo o mais que escrevemos “sem pensar”. Eles podem ser úteis para a publicidade, para o marketing, para a propaganda, até para o jornalismo – não para a literatura.
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água de coco amendoim areia asa delta avião barco barraca barriga bermudas bíceps biquíni bicicleta biscoito bola boné bronzeador bunda cachorro calçadão calor camarão caminhada campeonato canga cedê cerveja céu chapéu chinelo chuva cochas cooper COPACABANA
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conversa fiada domingo ducha esporte esteira estrela flacidez futebol futevôlei galera garota garotão ginástica horizonte ilha jornal livro lua mar mate mulher músculos namoro navio oceano óculos óleo ondas panfleto paquera patins peitos pelada
67- peteca 68- picolé 69- praia 70- prancha 71- propaganda 72- protesto 73- protetor solar 74- publicidade 75- quiosque 76- rádio 77- rede 78- refrigerante 79- revéillon 80- revista 81- sábado 82- sandália 83- sexo 84- show 85- sol 86- som 87- soneca 88- sorvete 89- suco 90- sunga 91- suor 92- surfe 93- tanga 94- tênis 95- tira-gosto 96- toalha 97- trânsito 98- turma 99- vôlei 100- vôo-livre
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Machado de Assis (1839-1908)
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AULA 2
José Castello analisa três contos de Machado de Assis e uma conversa com Bernardo Carvalho, além de oferecer preciosas dicas baseadas na experiência de Julio Cortázar, Nikolai Gógol e Clarice Lispector. O mestre também propõe um ‘exercício de duplicação’.
O escritor argentino Ricardo Piglia costuma dizer que um conto relata sempre uma história, enquanto na verdade conta outra. A idéia é incorporada por Bernardo Carvalho em seu romance mais recente, O sol se põe em São Paulo quando, logo no início do capítulo 3, seu narrador reflete: “A literatura é o que não se vê. A literatura se engana. Enquanto os escritores escrevem, as histórias acontecem em outro lugar”. As idéias de Piglia e de Bernardo ajudam a pensar o caráter duplicado e secreto do conto. Narrativas curtas, compactas, com grande economia de personagens e de acontecimentos, os contos costumam ser tomados, erradamente, como “ficções simples”. Como se fossem, apenas, esboços, ou reduções de romances potenciais. Este engano leva muitos leitores, e também – o que é mais grave – escritores, a desprezar o conto, ou a tratá-lo como uma aventura literária menor.
É através da aparente simplicidade que o conto, em geral, ilude, arrasta e prende o leitor. O conto é, podemos pensar grosseiramente, a arte do mínimo. Com um mínimo de recursos, de elementos, de personagens e de linhas, ele narra uma falsa pequena história para, através dela, abrir um abismo aos pés do leitor. Para testar essa hipótese (que, é claro, muitos contos extraordinários desmentem, pois escrever é desviar-se e desmentir), parto, hoje, de três contos, estupendos contos, de Machado de Assis: “A cartomante”, “O espelho” e “Pai contra mãe”. Um leitor apressado dirá que “A cartomante” é a história clássica de um triângulo amoroso, no caso entre Rita, Vilela e Camilo. Não deixa de ser verdade – mas reduzir o conto de Machado a isso é menosprezar o que ele tem de mais importante. Machado explora em seu conto, sim, clássicos aspectos psicológicos: a ansiedade de Camilo, as dúvidas e temores Revista Literal 27
de Vilela (que o escritor levou ao extremo, no romance, em Dom Casmurro, com o triângulo Bentinho, Escobar e Capitu), o amor escorregadio de Rita. Mais que esses eventos psicológicos, contudo, o que está em jogo em “A cartomante” é a relação do homem com o desconhecido, que se sintetiza na figura da adivinha. A possibilidade (ou sonho) de antevisão do futuro, as superstições a respeito das intenções ocultas que regem as coisas, o poder (ou a impotência) humana para manipular o destino, a presença secreta do mistério nas miudezas da vida cotidiana são temas que, numa corrente paralela, sustentam secretamente o relato. Deparamos, nesse conto, com a grandeza de Machado: como quem não quer nada, narrando histórias comuns e até banais, com personagens que se deixam envolver pelo previsível e que se doam ingenuamente aos apelos e seduções mais vulgares, ele põe seu leitor frente a frente com algumas das mais difíceis questões da existência humana. É no particular, e é ao encontrar uma maneira inconfundível de tratar esse particular, que Machado de Assis se aproxima das forças secretas que animam nossa vida. Forças que ele esconde no cenário banal do consultório de uma cartomante, um lugar em que se decide, na verdade, não o destino humano, mas nossa impotência diante desse destino. Machado faz algo muito parecido, e talvez ainda mais atordoante, em “O espelho”. O escritor deu a seu conto um subtítulo: “Esboço de uma nova teoria da alma humana”. Trata-se do relato de uma história vivida por João, um homem de 45 anos, um “capitalista inteligente” que descobriu que não temos só uma alma, a interior, mas, na verdade, temos duas: temos também uma alma exterior. “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora 28 Revista Literal
para dentro”, ele relata a quatro companheiros que o ouvem, à luz de velas, em uma casa de Santa Teresa, no Rio. O conto é o relato do modo doloroso como fez essa descoberta, duas décadas antes, quando era um rapaz de 25 anos. Para orgulho da família, mas também para desconfiança dos amigos, acabara de ser nomeado alferes da guarda nacional. Emocionada, uma tia viúva, moradora em um sítio solitário, o convida para passar alguns dias com ela. Mas não é o sobrinho que recebe, e sim o alferes. Em vez de chamá-lo de Joãozinho, como sempre fez, só o chama de “o senhor alferes”. Enche-o de gentilezas. Entrega-lhe, ainda, um presente, um antigo espelho, trazido ao Brasil pela corte de D. João VI, que dependura na parede de seu quarto de hóspede. O rapaz se envaidece com tantas atenções. A tia exige, em contrapartida, que ele ande sempre com sua roupa de alferes. Atende ao pedido, mas logo depois compreende que, com tudo isso, “o alferes eliminou o homem”. Ele relata: “No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes”. O alferes era sua alma exterior – que podia se encarnar, também, em par de botas, uma ópera, ou um chocalho de criança, pois a alma exterior, diz, pode exibir qualquer aparência, pode ser ligar a qualquer coisa. Essa alma exterior havia aniquilado sua alma interior e era agora tudo o que lhe restava. Súbito, a tia é obrigada a partir para amparar uma filha enferma. Os escravos, logo em seguida, abandonam a casa. O alferes fica sozinho no sítio. É tomado, então, por um insuportável vazio. Um dia, em plena crise, resolve se observar no espelho: tudo o que vê é uma imagem turva, difusa, em franca decomposição, do homem que já foi, ou que julgava ainda ser. Essa imagem só recobra a nitidez quando lhe ocorre vestir a farda de alferes. Entende,
então, que tudo o que lhe sobrou é a alma exterior, incorporada naquela vestimenta militar. A alma interior, que se refere a seus aspectos humanos, foi por ela devorada. “O espelho” é um conto filosófico. A idéia das duas almas, que a princípio parece absurda, mostra-se hoje, um século depois, incrivelmente atual. Vivemos em um mundo de duplicações, de clones e de virtualidade. Um mundo em que as pessoas costumam ser reduzidas a títulos, a contas correntes, a imagens na mídia, a currículos, a crachás. A “alma exterior” dá as cartas num mundo que se define pela
temente o ouvi afirmar que a literatura é, para ele, a coisa mais importante, “mais importante que tudo”. Escritores radicais – penso em João Gilberto Noll, para ficar em outro brilhante escritor contemporâneo – adotam a literatura como uma espécie de sacerdócio. Uma coisa que está acima de todas as outras. Na mesma conversa, ouvi Bernardo dizer ainda: “A literatura é a minha religião”. Apontava assim a “segunda alma” de que Machado fala em seu conto, alma que existe mesmo para aqueles que, como Bernardo, se declaram ateus – ou seja, não acreditam na existência da primeira.
superfície e pela velocidade e que tem horror à profundidade e à lentidão. Pensando assim, um século depois, espanta a sensibilidade de Machado. Sensibilidade que, se nos deixarmos levar pela figura sedutora da cartomante, se aproxima da premonição. Mas essa duplicação narrativa guarda um segundo aspecto que, de modo sutil, mas insistente, está presente em toda a literatura de Machado. A segunda alma – como a da mulher que só pensava nas estações de ópera lírica e, depois, passa a só pensar nos bailes da rua do Ouvidor – fala das obsessões. Obsessões, idéias fixas, manias, paixões. Fala, portanto, de modo muito sutil e secreto, da própria literatura, que é, sempre, ao menos quando se escreve para valer, efeito de paixão. Eis aí a matéria prima dos escritores: a obsessão em escrever. Contra tudo, contra todos e apesar de tudo, continuar a escrever. Falei de Bernardo Carvalho: recen-
Escritores costumam se deter longamente na reflexão sobre esse “massacre”. Algo que aparentemente vem de fora, a literatura (mas vem mesmo?), o invade e ocupa um lugar privilegiado em seu interior. No entanto – e eis a lição que Machado nos dá em “O espelho” – a literatura não é filosofia, nem é teoria literária, ou ensaio sociológico. Literatura é literatura e apenas isso – e tudo isso. Machado trabalha idéias, idéias difíceis, densas, imprecisas, perigosas, usando exclusivamente o instrumento delicado da narração. Com isso, não fecha, não “soluciona”, não bloqueia o pensamento, não conclui; ao contrário, abre novos caminhos, descerra novas perspectivas e nos oferece novas maneiras de pensar e de ver. Dizia João Cabral: a literatura “dá a ver”. O argentino Julio Cortázar, mestre do conto – de quem já falei na oficina anterior – rememorou, um dia, em entrevista a Ernesto Ber-
Narrando histórias comuns e até banais, Machado põe seu leitor frente a frente com algumas das mais difíceis questões da existência humana.
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Nikolai Gógol (1809-1852)
mejo, sua tendência para criar personagens super-intelectuais, sujeitos “que especulassem com muita inteligência sobre certos problemas metafísicos”. Só conseguiu vencer esse vício, que bloqueava sua escrita, quando decidiu “seguir o caminho inverso, construir um personagem assimilável ao homem da rua”. É a arte de Nikolai Gógol em seu O capote. É o que faz Robert Musil mesmo em um romance monumental como O homem sem qualidades. É o que faz Graciliano Ramos ao criar Luis da Silva, o atordoado e frágil protagonista de Angústia. É o que Cortázar faz em seus magníficos contos. Penso no terceiro conto de Machado que propus a vocês: “Pai contra mãe”. Ele começa 30 Revista Literal
em tom circunspeto, distanciado, quase professoral, de ensaio, ou estudo histórico. Os cinco primeiros parágrafos mais parecem uma lição de história social, que rememora os ofícios e aparelhos ligados à antiga escravidão, entre eles o ofício de perseguidor de escravos fujões. Só no sexto parágrafo Machado, enfim, nos introduz na história de Cândido Neves, de seu amor por Clara e de suas imensas dificuldades com o trabalho e a sobrevivência. Impasses que tenta resolver adotando o ofício de perseguidor de escravos em fuga. Clara tem uma tia, Mônica, mulher austera que, depois de criá-la, vigia de perto seu amor por Cândido. A vida do casal é dura, o ofício de
caçador de escravos é instável e Clara tem que se desdobrar cosendo para fora. Engravida, tem o bebê, mas o casal é despejado dias depois. A situação se agrava e a tia, pensando no recém nascido, convence-os a entregar o bebê à Roda dos enjeitados – instituição que abriga crianças desamparadas. Cândido se recusa, mas, enfim, pressionado pela miséria, aceita os argumentos da tia. Pega o bebê, mas, no caminho, cruza na rua com uma escrava fujona em troca de quem se promete um excelente dinheiro. Deixa a criança numa farmácia, sai atrás da mulher e consegue pegá-la; ela se desdobra em lamúrias e pede piedade não por ela, mas pela criança que carrega na barriga. Cheio de fúria, e mesmo assim, Cândido ignora seus apelos e a entrega aos seus donos. Na luta para fugir, ela aborta – e o filho morto salva o filho de Cândido. Na aparência, Machado escreveu um relato social, que aborda a miséria e o desespero, relato que vem adornado por algumas pinceladas de análise dos costumes. Mas será só isso? “Pai contra mãe” trata, mais que isso, da divisão em que todo ser humano se funda, abismo sobre o qual todos existimos. Contudo, em vez de teorizar, ou mesmo de construir teorias fantasiosas como em “O espelho”, Machado aferra-se unicamente aos fatos, e apenas a eles, para escrever uma história ela também, afinal, comum. Que, no entanto, carrega em seu interior (como a escrava grávida) questões e impasses que vão muito além dela. A cisão interior do homem, sua animalidade, o modo como o desespero pode massacrar alguém, a aflição extrema que nos leva aos atos mais repulsivos são questões que latejam no interior de “Pai contra mãe”. E que, de certa forma, ultrapassam a história que lemos ou que, pelo menos, a duplicam.
Para falar de uma coisa, Machado fala de outra. Para pensar sobre uma coisa, nos leva a pensar – e a “ver” – outra. É nas entrelinhas, como dizia Clarice Lispector, que a literatura se escreve. Jogamos a isca – a narrativa literal. Mas, quando essa isca fisga o que realmente interessa, dela já não podemos nos livrar, porque isca e coisa se misturaram. Essa mistura entre o que se diz e o que não se diz, o que se pensa e o que não se pensa, o que se escreve e o que não se escreve é, enfim, a literatura.
Aula 2 | Exercício de Duplicação
Escreva um conto, de no máximo 5 mil caracteres com espaços, que relate uma história enquanto outra, de modo submerso mas ainda assim visível, se desenrola simultaneamente. Por exemplo: o conto relata os acontecimentos em um jantar formal enquanto, na cozinha, a história mais importante acontece. Mas tudo o que o leitor tem é o relato do jantar, e a segunda história, a secreta, a ele se revela só através de pequenos sinais, que dele exigem um esforço de decifração. Outro exemplo: o conto relata uma aula de inglês. Ocorre que o narrador não está dentro da sala de aula, mas fora dela. Escondido, por exemplo, atrás da porta de entrada, ou de uma janela. Contudo, mais importante que a aula é o que acontece a esse narrador. Acontecimentos de que o leitor, no entanto, já que tem sua “visão” restrita à sala de aula, recebe apenas pequenos sinais, muitas vezes desconexos, ou mesmo contraditórios. Revista Literal 31
Franz Kafka (1883-1924)
32 Revista Literal
AULA 3
A duplicidade que se passa “para além da ficção”, como se um mistério acenasse para o leitor de fora do conto, e a perigosa fronteira entre a ficção e a vida são alguns dos temas explorados na terceira aula de José Castello.
O escritor pernambucano Raimundo Carrero gosta de lembrar a conhecida (e aparentemente inútil) fórmula de Mário de Andrade: “Conto é tudo aquilo que a gente chama de conto”. A idéia vale também, é claro, para o romance – romance é tudo o que se chama de romance. Volto a Carrero, que é não só um grande romancista, mas também contista. Um romance como A história de Bernarda Soledade, que ele escreveu nos anos 70 e tem pouco mais de cem páginas, pode ser tomado como um conto longo. Ele mesmo admite que, num movimento inverso, seu estupendo romance Sombra severa foi, durante um bom tempo, um conto curto e depois um conto um pouco mais longo. É Carrero, ainda, quem recorda que Gilberto Freyre, cheio de dúvidas para definir seu Bernarda Soledade, safou-se inventando uma nova definição, um novo gênero: “quase novela”, ou “meia novela”. A amplitude da fórmula criada por Mário de Andrade, se por um lado confere extrema
liberdade aos contistas, de outro lhes tira a segurança e o chão. Se conto é mesmo tudo aquilo que chamamos de conto, de onde um contista deve partir? E mais: o que se espera, exatamente, que um contista escreva? É Carrero quem recorda, ainda, um dos exemplos mais dramáticos dessa fronteira quebradiça (e traiçoeira) entre os gêneros: A metamorfose, o célebre conto longo, ou novela (quase novela), ou mesmo romance breve de Franz Kafka. Pergunto: estaria Kafka interessado nesse problema quando escreveu A metamorfose? Já disse em aula anterior que o conto, em geral (mas sei o quanto me arrisco com esse “em geral”...), se define pela concentração. Num de seus cadernos de notas, o escritor russo Antón Tchekhov (1860-1904), extraordinário contista, mas também um grande dramaturgo, registra – em palavras secas e brevíssimas, como era de seu estilo – um brevíssimo episódio que lhe inspirou um conto que nunca escreveu. Ele anotou: “Um homem, Revista Literal 33
Mesmo o mais experimental dos romances, o mais fantástico, o mais inverossímil deles – e não apenas aqueles que evocam a biografia ou a autobiografia – tem sempre um pé fincado no real.
Antón Tchekhov (1860-1904)
em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida”. Leitor apaixonado de Tchekhov, o argentino Ricardo Piglia viu nesse episódio resumido entre cinco vírgulas a síntese – o esqueleto – de um conto clássico. “A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita”, ele afirma em seu O laboratório do escritor. Um personagem (um homem), um lugar (Monte Carlo), um destino (vai ao cassino), um evento extraordinário (ganha um milhão), uma solução (volta para casa), um desfecho inesperado (se suicida). E eis um conto. Mas romances – mesmo os menos ortodoxos dos romances – também não poderiam se encaixar no esquema proposto por Piglia? Fracasso dos esquemas, das fórmulas prontas, das formas... Mas vamos lá. Penso em um de meus romances prediletos (na verdade, um dos livros fundamentais em minha vida de leitor): A paixão segundo G.H., o estranho romance que 34 Revista Literal
Clarice Lispector publicou em 1964. Arrisco-me a nele experimentar a fórmula de Tchekhov condensada por Piglia. Um personagem (G.H.), um lugar (sozinha em seu apartamento, depois de demitir a empregada), um destino (vai ao quarto de serviço), um evento extraordinário (mata uma barata e decide comê-la), uma solução (interroga-se sobre aquilo que escapa, aquilo que fica “depois de depois do pensamento”), um desfecho inesperado (experimenta uma espécie mundana de epifania, isto é, de aparição súbita do sagrado). Piglia observa que, no episódio-síntese rascunhado por Tchekhov, aparece (como já disse em minha Aula 2) o caráter duplo dos contos. Na aparência, a história de alguém que se torna milionário não tem qualquer relação com a história de alguém que se suicida. No entanto, é o mesmo personagem quem faz as duas coisas – enriquece e, ato contínuo e imprevisto, se mata. Aqui fica claro que, sob a história que o leitor lê, em seu interior, uma trama secreta e
imperceptível se desenrola – alguma coisa que confere (ou pelo menos promete conferir) um sentido ao episódio. Não penso, contudo, só no caráter duplo que se desenrola no plano ficcional. Como na aula passada, interessa-me mais ainda a duplicidade que se passa “para além da ficção” – como se uma coisa dessas, na verdade, fosse possível! Como se, para uma ficção, houvesse “algo além”. Semana passada, falei do sentido oculto que lateja, sempre, no interior de qualquer narrativa. Alguém já reclamou que o exercício que acompanhou aquela aula, a Aula 2, que eu chamei de Exercício de Duplicação, não corresponde exatamente ao tema exposto. Talvez isso seja verdade. Em minha defesa posso dizer que essas duplicações se passam, em geral, em três planos. Primeiro, como no Exercício de Duplicação, no interior da própria narrativa. Segundo, como na exposição da Aula 2, na esfera do sentido, ou malha de sentidos ocultos que sustentam, mas também desvirtuam, uma narrativa. Hoje venho falar de um terceiro plano: o da perigosa fronteira entre a ficção e a vida. Dito de outra maneira: a fronteira que separa (mas separa mesmo? ou mistura de modo definitivo?) a imaginação do real. É do que venho tratar hoje – e o Exercício das Metamorfoses, que passo ao fim desta aula, se refere, em particular, a esse plano. Parto não de um conto, mas de um romance, um comovente romance que acabo de ler: O filho eterno, de Cristovão Tezza. Romance? Tezza, que é pai de um rapaz com Síndrome de Down, o gentil Felipe, relata a dura história dessa paternidade – que se mistura à sua dura luta para se tornar o grande escritor que é. É uma história de forte fundo autobiográfico, mas que, apesar disso, guarda a estrutura clássica de um romance. E Tezza, ciente do fio de navalha sobre o qual o escreveu, sustenta corajosamente essa definição: romance. Outros escritores brasileiros já fizeram experiências aparentemente parecidas. Escreveram relatos de forte estofo autobiográfico, e depois os definiram como romances. Mas não basta definir, não basta aplicar um rótulo a um
livro. É preciso que o livro, ainda que tramado sobre laços biográficos, se imponha (sobretudo para o leitor que desconhece esses laços) como uma obra de ficção. Este é o caso de O filho eterno: um leitor distante, ou desatento, poderá lê-lo como pura invenção, e se convencerá de que é pura invenção mesmo. E não perderá nada do que se guarda no livro de Tezza. Ao ler O filho eterno, pensei logo na definição que o norte-americano Truman Capote deu a seu A sangue frio: “romance de não-ficção”. Tezza, contudo, prefere chamar seu livro de “romance brutalmente autobiográfico” e, sem dúvida, com isso cunhou uma expressão talvez menos precisa, mas muito mais forte. O que nos interessa nesta aula, porém, está muito além dessas tentativas de definição de gênero que, na verdade, são sempre um tanto fracassadas. O que nos interessa é pensar que mesmo o mais experimental dos romances, o mais fantástico, o mais inverossímil deles – e não apenas aqueles que evocam a biografia ou a autobiografia – tem sempre um pé fincado no real. Escrever é sempre distorcer, é provocar uma metamorfose – e aqui começo a explicar o exercício que proponho a vocês hoje, o Exercício das Metamorfoses. Mas é muito importante distinguir logo: distorção não é colocar máscaras, não é “tradução” de uma coisa por outra, não é disfarce. Não é tomar uma coisa por outra, fazer uma metáfora (transferência de campo semântico – raposa por uma pessoa astuta, por exemplo), ou uma metonímia (designar um objeto por outro – copo por bebida, por exemplo). Não é trabalhar com figuras de linguagem, nem é uma questão de estilo. É distorcer mesmo, e a um ponto em que já quase nada mais se reconheça. É tirar, do conhecido, o desconhecido. Arrancar algo que, a princípio, supomos não só que não está lá, como que não poderia estar lá. Arrancar o inesperado, que nem sempre é agradável, e nunca é o que se imagina. O francês Gustave Flaubert (1821-1880, outro romancista) dizia que escrever é desvelar o “monstro” que se guarda dentro de cada um de nós. O “monstro” é um animal espantoso, Revista Literal 35
assombroso; escrever ficção é, nesse sentido, lidar com o espanto e o assombro. Todo grande relato é enigmático e nos coloca diante de algo que não podemos resolver. Não porque sejamos leitores incapazes ou relapsos, mas porque não suportam mesmo uma solução. Diante do enigma nos interrogamos, e ficamos apenas com a perplexidade das perguntas. No máximo – para seguir uma idéia de Luiz Alfredo García Roza, mais um romancista – arriscamos uma decifração (como os adivinhos, os quiromantes e os leitores de bola de cristal). Quer dizer: chegamos a respostas muito precárias, provisórias e totalmente desprovidas de provas. Entramos na esfera de algo que se aproxima da crença, daí muita gente, num engano brutal, associar a invenção literária à religião. É o checo Milan Kundera (mais um romancista...) quem nos fala do “despotismo da história”. Refere-se à crença (aqui eu prefiro pensar em superstição) segundo a qual toda ficção conta uma história, e que toda história guarda uma transposição de algum modo direta, literal, para o real. Mas a literatura se passa “além” da história. O mais importante em O filho eterno, para voltar ao livro de Cristovão Tezza, está além dos acontecimentos, e isso apesar de todo o livro girar a partir e em torno de um acontecimento atordoante, o nascimento de um filho com Down. Não fosse a maneira inteligente como Tezza relata sua história, isto é, a maneira como circunda e bordeja o real, e o livro não teria a mesma força, isso apesar da força da história que ele se empenha em contar. Essa transposição que tende ao literal (porque, de fato, nunca chega a ele) resume, de uma forma muito precária, o trabalho de Truman Capote em A sangue frio. Um livro que tem a estrutura de um romance, mas que põe essa estrutura a serviço de uma história real, ou uma história de “não-ficção”. A serviço de uma estratégia (diríamos “jornalística”) de aproximação do mundo. Já Cristovão Tezza faz coisa bem diferente. Embora parta de um fundo autobiográfico, e não faça nenhum es36 Revista Literal
forço para esconder ou disfarçar isso, Tezza trabalha sobre sua história com um conjunto de ilações, de pensamentos, de meditações que a transportam para uma esfera que vai além da autobiografia. E que, de uma forma direta, mas convincente, a distorcem – isto é, dela fazem uma ficção. A idéia de “não-ficção” só com muito esforço (talvez excessivo) cabe no livro de Tezza. Falar de um “romance brutalmente autobiográfico”, como ele mesmo sugere, é uma maneira muito mais eficiente de falar de O filho eterno. Vocês dirão: esta é uma oficina de contos, mas você só fala de romances. Na verdade, conto e romance compartilham o grande universo da ficção. Embora tenham cânones e tradições distintos, são criações que privilegiam o imaginário e a invenção, e que só de modo muito indireto guardam alguma relação com a verdade. Mesmo num romance como O filho eterno, livro em que o impulso para a autobiografia parece submeter e guiar o autor, essa relação é complexa, não é simples, não é uma relação de equivalências, ou de traduções. Se lemos um texto não-ficcional como a Carta ao pai, de Franz Kafka, longa carta que o autor checo escreveu para seu pai no ano de 1919, cinco anos antes de morrer e quando já era um homem adulto de 36 anos de idade, carta que nunca chegou a entregar (na verdade, ele a entregou à mãe, que o protegia do pai, e não ao pai!), entendemos melhor ainda o abismo obscuro de que os ficcionistas tiram suas narrativas. A literatura de Kafka, enigmática e fechada, nada tem de autobiográfica. Ao contrário: ela é uma espécie de cortina, espessa e enigmática, com que Kafka recobre e veda o acesso a si. Mas, como as cortinas, se nos escondemos atrás delas, alguma pista sempre fica: uma sombra, uma forma que se realça discretamente sob o pano, um enrugamento que denuncia uma presença. Assim também nas ficções, em todas as ficções. Depois da leitura de “Carta ao pai”, a obra de Franz Kafka, toda ela, incluindo seus três grandes romances (Amérika, O castelo e O pro-
cesso), pode ser lida de outra maneira – de uma perspectiva radicalmente diferente. Não, não é tão simples: a carta não “explica” a obra. Na verdade, ela nada soluciona. Em vez disso, complica e torna ainda mais intrincada a leitura da mesma obra. Numa palavra simples: enriquece-a. Ela também não é, como alguns querem crer, um conto que se disfarça em correspondência. E no entanto é uma carta que, em vez de constar dos Diários e dos textos confessionais do escritor checo, é sempre editada (e no Brasil também) lado a lado a suas grandes ficções. Creio que raros livros representam, como “Carta ao pai” para Franz Kafka, esse papel chave, essa função devastadora. A rigor, toda a obra de Kafka gira em torno da mesma questão. De onde vêm as ficções? Não temos o rastro biológico para seguir, como quando perguntamos de onde vêm as crianças. Na literatura, é tudo muito mais difícil. Não existem respostas, mas só simulações de respostas. Carta ao pai é uma simulação (ou tentativa fracassada) de resposta. Contudo, guarda uma força e uma radicalidade que nos obrigam a reler toda a obra de Kafka de outra maneira. Porque falei de Franz Kafka, é a partir dele que ofereço meu exercício de hoje.
Aula 3 | Exercício das Metamorfoses
Leia o sonho que se segue. Ele foi anotado por Franz Kafka numa carta que escreveu a Milena Jesenská, sua namorada, em setembro de 1920. Costuma chamá-lo de “Sonho do Fogo”. A partir dele, escrevam um relato de no máximo 3 mil caracteres. Entendam bem: não peço que façam uma “adaptação” do sonho à literatura, que o romantizem, ou adornem. Peço, a vocês, em vez disso, que, a partir do sonho, por alguma via paralela ou desviante, cheguem a uma narrativa independente. A uma narrativa que – ainda que partindo do “Sonho do Fogo” – não precise do sonho
para existir. Observem, ainda, que o próprio sonho de Kafka trata dos mecanismos de distorção, trata de metamorfoses.
“Sonho do fogo” Franz Kafka Ontem sonhei com você. Já quase não me lembro dos pormenores, só sei que nos transformávamos continuamente um no outro, eu era você, você era eu. Finalmente, não sei como, você pegou fogo, lembrei-me que é possível apagar o fogo com panos e assim bati em você com um velho paletó. Mas as metamorfoses recomeçaram e de repente você desaparecia, era eu que ardia e também eu que me batia com o paletó. Mas de nada adiantava, só confirmava meu velho temor de que esses métodos nada podem contra o fogo. No entretempo chegaram os bombeiros e de algum modo você foi salva. Mas agora você era diferente, fantasmagórica, como se desenhada a giz no escuro, e caiu-me nos braços sem vida, ou talvez tenha apenas desmaiado de alegria por ter sido salva. Mas ainda aqui atuava a incerteza da transformação, talvez eu mesmo tenha caído nos braços de alguém. (Sonhos, de Franz Kafka, editora Iluminuras, página 128).
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Jo達o Cabral de Melo Neto (1920-1999)
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AULA 4
A quarta aula de José Castello traz o rigor e a secura da “poesia de pedra” de João Cabral de Melo Neto para ajudar o contista a livrar-se dos clichês. Marianne Moore e Milan Kundera também vêm ao auxílio dos alunos.
Venho tratar hoje não de um contista, mas de um poeta. Eu sei: parece estranho falar de um poeta em uma oficina de contos. Mas, tenho certeza, isso nos será muito útil. Ocorre-me aqui uma sentença célebre de Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, um romance-chave na literatura no século 19. Frase que, no meu entender, serve não só ao romancista, mas também ao contista e ao poeta: “Sempre me esforcei para adentrar a alma das coisas”. É claro: romances, contos, poemas, cada gênero tem sua história. Histórias que fundam tradições, hábitos, certezas – ainda que precárias certezas. Mas existe alguma coisa que, para além dos gêneros e da história, funda aquilo que chamamos de literatura. Talvez se possa pensar nesse “adentrar a alma” de que Flaubert nos fala. Lembro de outro grande romancista, o checo Milan Kundera, para quem o romance não é “só mais um gênero literário, um galho entre os galhos de uma só árvore”. Com essa afirmação,
Kundera luta para afirmar a particularidade do romance – gênero que, a seu ver, não se confunde com qualquer outro. As particularidades do conto e da poesia também podem (e devem) ser afirmadas por contistas e poetas. Nada disso, porém, apaga o lastro comum em que os escritores, de qualquer gênero, trafegam. Escrever, dizia Flaubert, é lutar para penetrar na alma (nos segredos) do mundo. E, para se arriscar a isso, cada escritor deve traçar seu próprio método, escavar seu próprio caminho. Feitas essas ressalvas, volto a João Cabral de Melo Neto, um poeta numa oficina de contistas. Embora nunca tenha escrito contos, o poeta João Cabral de Melo Neto, com sua estética da secura, do corte e do rigor, pode nos ajudar muito a pensá-los. Poetas, como contistas, são artesãos da palavra, o que já os deixa muito próximos. Além disso, Cabral não foi um poeta qualquer. Foi, antes de tudo, um poeta que lutava para não “fazer poesia”, como se diz dos românticos e dos líricos. Queria, em vez Revista Literal 41
Vinicius de Moraes (1913-1980)
disso, e em suas próprias palavras, “despoetizar a poesia”. Fazer uma poesia sem poesia – projeto que até hoje, em alguns poetas, provoca grande mal-estar. Uma “poesia sem poesia”: isto é, uma poesia livre de todos os clichês que, por hábito e preguiça, atribuímos à poesia e ao poético. Uma poesia sem adornos, sem exageros, livre dos enfeites e de metáforas, distante o mais possível da retórica. Poesia de pedra, poesia de osso – “poesia de cabra”, dela dizia o lírico Vinicius de Moraes –, poesia concreta. Uma poesia dos substantivos e não dos adjetivos. Um duro projeto, que torna a arte do poeta ainda mais difícil mas, também, ainda mais potente. Por que não pensar, roubando a idéia de Cabral, de um “conto sem conto”? Isto é: um conto liberto de todos os clichês, todos os hábitos, todos os vícios normalmente a eles atribuídos. João Cabral reclamou, muitas vezes, da preguiça e do convencionalismo que a seu ver, em seu tempo (e não hoje?), vigoravam entre os poetas. Todo mundo, de fato, acha que pode escrever poesia, nem que seja um “poema de amor”, ou um “poema de homenagem”, ou “de despe42 Revista Literal
dida”. Até nos cartões postais, nos telegramas de aniversário, nas lápides de cemitério, nos apelos da publicidade, nos bolos de casamento identificamos muitas vezes algo que, apressadamente, chamamos de “poesia”. Pensa-se, em geral, que basta uma lágrima, ou uma dor de cotovelo, ou a expressão mais forte de um sentimento, para que a poesia, como num passe de mágica, apareça. “O brasileiro em geral não é muito de trabalho”, Cabral se lamentava. O que o poeta desejava afirmar? Que a poesia, ao contrário dos que crêem em Musas, em anjos, ou no poder da inspiração, ou ainda em manifestos estéticos e palavras de ordem que devem ser cumpridos ao pé da letra, é, sempre, o resultado de um imenso esforço e de muita disciplina intelectual. E, sobretudo, de uma arriscada e solitária viagem pessoal. O poeta não “incorpora” a poesia, como um médium. Ela, ao contrário, se faz passo a passo, peça a peça, como um edifício (Cabral sempre se interessou pela arquitetura e pelos arquitetos), ou como uma cadeira. Muito mais que ao médium, ou ao mágico, pensava Cabral, a poesia é obra do artesão.
Mas disciplinar-se não significa, ele dizia, submeter-se a regras alheias. Ao contrário: “Cada pessoa deve encontrar a sua forma rígida para a sua maneira de ser e depois segui-la”, disse numa longa conversa com André Pestana. Cada poeta (cada contista, podemos experimentar a troca) deve criar seus próprios limites, sua própria armadura, sua própria estrada, e a eles se aferrar com toda a força. A partir daí, não deve mais abrir mão do caminho que escolheu, por mais difícil que ele venha a ser. Criar suas próprias proibições, seus próprios tabus, seus próprios riscos e depois a eles se submeter com o máximo de rigidez e sem recuar: eis a estratégia do poeta. Mas não basta ser radical, não basta “desejar romper”. Cabral – que sempre foi considerado um gran-
eis o objetivo, no fim, de todo escritor, poeta, contista, ou romancista. Lições sábias, penso, também para um contista: decidir aonde quer chegar e depois seguir, com firmeza, por esse caminho, sem arredar o pé, sem ceder ao cansaço ou desânimo, por mais difíceis que sejam os desafios que escolheu para si. Volto aqui à definição de Mário de Andrade que citei em outra aula: “Conto é tudo o que chamamos de conto”. O importante não é saber o que é um conto, mas se, uma vez resolvido o que ele é, e cada contista resolve isso a seu modo, cumprir o que se prometeu. Numa antiga entrevista que deu ainda nos anos 60 em Lisboa, Cabral falava de seu descontentamento com o Pégaso, o cavalo que voa, que é considerado o símbolo da poesia. Ao
de inovador, e a quem as vanguardas literárias, até hoje, estão sempre a citar como um grande mestre – deixou claro, numa entrevista a O Globo, a distância que o separava dos vanguardistas. Resumiu assim: “Aceito a inovação caso ela venha a ser funcional e não como um meio de ser diferente”. Inovar, para Cabral, não era “fazer o novo”, mas encontrar um caminho próprio, o mais adequado e mais eficaz, para chegar a um objetivo pessoal. O caráter funcional da inovação – que precisa “funcionar” para de fato ser nova – lhe tira, assim, o verniz glamouroso e escandaloso que tantos atribuem. E lhe confere um caráter mais problemático, que inclui a idéia de eficiência e que tem em vista, sempre, um destino. Claro, a poesia (e a literatura) não serve para nada, então não estamos falando aqui de um caráter utilitário, ou de uma função social. O funcional se refere mais às idéias, aos projetos, e, sobretudo, aos objetivos que cada artista fixa para si. Chegar a si:
crítico José Carlos de Vasconcelos, do Diário de Lisboa, ele sugeriu: “Nós deveríamos ter como símbolo da poesia não o Pégaso, mas a galinha, ou o peru, que são aves que não voam. Para o poeta, o difícil é não voar e o esforço que ele deve fazer é esse”. A galinha: uma ave que cisca e que, em vez de cobiçar grandes vôos, trabalha com a atenção voltada para o chão, para o imediato, para as miudezas, em busca de seu alimento. Contem-se e contenta-se com o menor. Ela é uma boa imagem também para o contista. Vôos exagerados podem levá-lo a perder o rumo e a se dispersar. Mais seguro é se deter no caminho que traçou para si e ali, como uma galinha concentrada na busca de seus farelos, permanecer firme. Mais uma vez Cabral repete: conter-se, conservar-se firmemente agarrado ao chão, endurecer, restringir-se. Nada de vôos inúteis, de divagações tortuosas, de experiências “sublimes”, de exageros, de excessos. Nada de grandes elevações, nenhuma
“Nós deveríamos ter como símbolo da poesia a galinha, ou o peru, que são aves que não voam. Para o poeta, o difícil é não voar e o esforço que ele deve fazer é esse”, afirmou João Cabral.
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nobreza, nenhuma grandiosidade. A poesia (o conto) é um trabalho duro, em que o escritor precisa sujar as mãos. Cabral propunha uma poesia terra a terra, apegada aos problemas concretos e submissa a estratégias inteligentes – desafios brutos e – sem facilidades, que cada poeta deve traçar para si mesmo. Isso quer dizer: antes de escrever, escolher e fixar os limites da escrita. Erguer normas pessoais – inventar essas normas e depois a elas se submeter. Desenhar os limites de seu destino. Desse modo, a liberdade deixa de ser algo de que nos embebedamos, para se tornar a camisa de força que escolhemos, livremente, vestir. Não leva à embriaguez, mas à atenção. Não leva a “qualquer coisa”, mas só à precisão. Tudo isso vale, e muito, para o contista. Escrever contos não é derramar-se, sem qualquer pudor, no caminho pantanoso das palavras. Não é soltar a imaginação e deixar que ela ferva, que entre em ebulição. Ao contrário: é criar obstáculos e objetivos, rígidos, duros, e fixar com nitidez um destino – ainda que não se chegue a realizá-lo, ainda que nunca se chegue, de fato, até ele. É conter-se. O contista, como o poeta cabralino, precisa saber onde pisa e em que direção caminha. Ainda que essas escolhas se dêem, como em geral acontece, no escuro, e sejam motivadas por razões secretas que lhe escapam, é a elas que o contista deve ser fiel. Apesar de si e apesar da própria ignorância e dos próprios limites, não recuar, não voltar atrás. Em uma entrevista concedida nos anos 70 à Folha de S. Paulo, João Cabral argumenta: “Se a literatura é problemática é porque ela existe. No dia em que a tivermos burocratizada, com o poeta sentado em uma mesa na função de fazer versos, aí sim a literatura estará morta”. O poeta (o contista) não escreve por encomenda, ou para corresponder a padrões, ou para 44 Revista Literal
se adaptar a cânones. Não segue as tendências da moda como, por exemplo, a indústria do automóvel, ou os ateliês de costura. Clarice Lispector dizia: “Eu não coso para fora, eu coso para dentro”. Logo, não existem modismos, não existem manequins, não existem fitas métricas; a medição é interior. Serão essas, de fato, escolhas que o poeta (o contista) chega a fazer? Ou, em vez disso, são apenas coisas que se impõem e que, uma vez reconhecidas como partes de sua voz, o levam a se submeter? Nesse caso, e para seguir a pista deixada por João Cabral, o contista não se submete a algo de fora, a um cânone, ou uma palavra de ordem, ou a um guru. Submete-se, antes, a si. Em outras palavras: contém-se. E só ali, naquela prisão pessoal (Cabral poderia pensar nos engradados em que se espremem as galinhas...), que ele arrisca alguns vôos. Vôos pequenos, precisos, em direções claras e com o retorno incluído. Os vôos decisivos. Uma estratégia, sem dúvida, trabalhosa, até porque ela empurra o escritor, qualquer escritor, poeta, contista, romancista, para uma grande solidão intelectual. Em uma entrevista que concedeu nos anos 80, Cabral diz: “Sou um poeta meio marginal, que de certa forma fugiu do lirismo e do romantismo comuns na poesia brasileira”. À margem dos grandes movimentos e das grandes ondas, Cabral se isolou em seu caminho, apegou-se ferozmente a sua voz, suportou todas as conseqüências disso, e só por isso se tornou um grande poeta. A estratégia, insisto, serve também para o contista: é no aferrar-se a sua solidão, quando é fiel a si e a mais ninguém, que um contista se afirma. Faz parte desse retorno ao essencial o apego de João Cabral não só à Espanha, mas à literatura espanhola. Cabral disse certa vez ao crítico e poeta Antonio Carlos Secchin: “A literatura espanhola usa preponderantemente o concreto e por isso me interessou. As litera-
turas primitivas me interessam. Parece que a linguagem começou pelas palavras concretas”. Este retorno às “coisas que são”, que Cabral cultivou na árida paisagem espanhola, é uma lição estupenda também para o contista. Também o contista pratica um gênero que tende ao compacto, e que em geral se centra em um só tempo e em uma só ação, que se prende a poucos personagens, que se aferra a uma história com a obstinação de contá-la até o fim – e mais nada. O contista, em geral (mas como é perigoso o geral!), não se interessa pelo adorno, pela divagação, pela meditação. Ele tem uma história a relatar, um relato a resolver, e escreve para resolvê-lo. Cabral recorda as literaturas primitivas – os contos de fadas, as lendas, as gestas, o cancioneiro medieval – em que o objetivo era apenas um: contar uma história. Exemplos que remetem a uma idéia decisiva: a de contenção. Conter-se: este deve ser o principal exercício de um contista. Agarrar seu projeto, ater-se a ele, restringir-se, exigindo de si mesmo nitidez e rigor. O Exercício de Contenção que hoje proponho a você se inspira não só, nas lições de João Cabral de Melo Neto, mas também nos versos de outra grande poeta, que admiro muito, a norte-americana Marianne Moore. Uma poeta que, Cabral declarou mais de uma vez, foi decisiva em sua formação literária. São estes os versos de Marianne, que estão no fecho do poema “Silêncio”, aqui em tradução de José Antonio Arantes: “O sentimento mais profundo sempre se mostra em silêncio; não em silêncio, mas contenção”. A palavra inglesa aqui traduzida como “contenção”, “restraint”, pode ser traduzida também por restrição, limitação, ou controle – três outras idéias que servem bastante a nosso propósito. Pois são restrição, limitação e controle que ajudam a formar não só um poeta, mas um contista.
Aula 4 | Exercício de Contenção Antes de tudo, é bom distinguir “contenção”, ato de contender e de lutar, mas também de conter-se (reprimirse, refrear-se), de “contensão” (= “com tensão”), isto é, grande esforço, ou grande aplicação intelectual. As duas palavras na verdade se assemelham e não só na grafia. Cabral fala na contenção, com “ç”, que vem do latim “contentione”. Ele pensa no ato de refrear-se, que se associa às idéias de moderação e de privação. Mas contensão, com “s”, é também uma palavra que nos ajuda a pensar, sobretudo pelo aspecto da aplicação intelectual que envolve. É de esforço e de aplicação que tratamos aqui. De luta também, só que, em nosso caso, de luta consigo mesmo, luta interior, e não luta com um adversário exterior. O exercício que proponho é simples. Com ele repito, com um pouco mais de espaço, o exercício literário proposto pelo poeta Marcelino Freire em seu Os cem menores contos brasileiros do século, lançado em 2004 pela Ateliê Editorial. Marcelino encomendou a 100 escritores um conto que tivesse no máximo 50 letras – letras, e não palavras! O resultado é espantoso. O exercício se inspira naquele que é considerado o menor conto do mundo, do guatemalteco Augusto Monterroso, relato que tem não 50, mas 37 letras: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Proponho aqui um exercício um pouco mais generoso: a tarefa é escrever um conto não de 50 letras, mas de no máximo 50 palavras. Um conto, portanto, que terá, no máximo, algo em torno de quatro ou cinco linhas. Enfatizo, para evitar dúvidas, que até mesmo artigos e preposições valem como palavras nesse caso. Revista Literal 45
E.M. Cioran (1911-1995)
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AULA 5
Luigi Pirandello, E.M. Cioran e Franz Kafka são trazidos por José Castello à quinta aula para ensinar sobre a dança de máscaras da literatura. O desafio proposto pelo mestre nesta semana trabalha paradoxos, mais uma vez, para fugir dos clichês.
Ainda a pista preciosa que nos foi dada não por um contista, mas por um grande poeta, João Cabral de Melo Neto: escrever (poemas, contos, romances) é “dar a ver”. É aprender a ver, podemos modificar um pouco a idéia. É apurar o olhar, refiná-lo, de modo que se acostume a ver o que em geral não vê. A ver a instabilidade (a vida) e não a estabilidade (a morte). E não se limitar a ver “como todos vêem”. Não ver o que já esperamos encontrar, ver para confirmar, mas ver de novas maneiras, de novos ângulos, novas perspectivas, ver para levar um susto. Procura-se uma coisa, e encontra-se outra – e se suporte isso, e se faça algo não a partir do Mesmo perdido, mas a partir do Outro que se encontrou. Palavra da moda, Outro, que está no jargão de psicanalistas, de antropólogos, de sociólogos. Palavra – conceito – que existe para abrir portas, mas que, às vezes, as fecha. O perigo das palavras! Uma afilhada querida, Rita Lemgruber, sempre me diz que, incomodada com
a camisa de força (e não com a força!) dos jargões, prefere chamar o Outro de Fulaninho. Sua “tradução” não podia ser mais certeira! O dicionário define Fulano como a “designação vaga de pessoa incerta, ou de alguém que não se quer nomear”. Fulaninho, o diminutivo, carrega, ainda, uma dose de mau-humor, de desdém, de ironia. O Outro é isso: uma maneira insuficiente de nomear alguém, ou uma maneira de chamar algo a que, enfim, não conseguimos dar nome algum. Escrever, em conseqüência, é livrar-se das máscaras – sociais, culturais, protocolares, de etiqueta, de boas maneiras – que vestimos para existir. Para enfrentar a vida. Dos óculos habituais que usamos para ver e que nos levam aos mesmos enquadramentos e aos mesmos pontos de vista. Arrancar as máscaras, para encontrar não o que já conhecemos, mas o que desconhecemos. Encontrar o Outro – ou o Fulaninho, como Rita me sugere. Aquele que mal suporta o peso de um nome! E o que acontece Revista Literal 47
Luigi Pirandello (1867-1936)
quando despimos essas máscaras? A ilusão realista leva a crer que, sob a máscara nefasta, encontraremos – desenterraremos! – homens de carne e osso. Homens “verdadeiros”, a verdade nua e crua. E a máscara ficaria, então, do lado da mentira, da falsificação, do medo, da fuga, da chantagem. Um escritor genial – dramaturgo, mas também contista e ainda romancista – como o italiano Luigi Pirandello (1867-1936) já nos mostrou, contudo, que tal verdade secreta e perfeita, que se guardaria sob as máscaras, 48 Revista Literal
simplesmente não existe. A vida, ele pensava, é um desfile de máscaras e a questão não é se livrar delas, já que são as máscaras que nos elevam ao nível da linguagem e que, portanto, nos tornam humanos. A questão, bem diferente, e bem mais complexa, é saber lidar com elas. E não vacilar à espera do rosto “verdadeiro”, que não conseguiremos ver. Esse é o grande engano dos escritores realistas – erro brutal daqueles que pretendem fazer da literatura um veículo de acesso à verdade ou, pelo menos, de desmascaramento da verdade. Tiramos uma
máscara, e outra, e mais outra – e nesse arrancar sem fim, o que nos surge não se parece nem um pouco com a verdade. Se a verdade é alguma coisa, ela é apenas esse arrancar interminável de máscaras. Entre os aforismos de Luigi Pirandello, reunidos por Gino Ruozzi a partir da leitura de suas peças e narrativas, existe um que me interessa em particular. Aqui o traduzo precariamente, com meu italiano vacilante (apenas máscara do italiano!). Diz Pirandello: “O absurdo da vida não tem necessidade de parecer verossímil, porque é verdadeiro”. Oh frase! Volto ao dicionário: verossímil é aquilo que é “semelhante à verdade”, “que parece verdadeiro”. É a verdade provável, mas sob a qual resta sempre uma larga margem de dúvida, de inconsistência, de suspeita. O que nos diz Pirandello? Que
brasileiro em tradução de Jacob Penteado, pela Odisséia Editorial. Há outra bela reunião de contos do escritor italiano, Kaos e outros contos sicilianos, em tradução de Fulvia Moretto, publicada pela Nova Alexandria em 2001. Os dois livros oferecem exemplos notáveis da arte do conto. E da dança louca de máscaras que sustenta toda literatura. Mas vamos ficar em “Retorno”. A leitura do conto me faz lembrar o comentário de Maurice Blanchot a respeito de Franz Kafka: “Kafka queria destruir sua obra porque acreditava que ela estava destinada a reafirmar e engrandecer o mal-entendido universal”. Foi o sonho de escapar da perfeição – de escapar da verdade irretocável – que o levou a pedir ao amigo Max Brod, pouco antes de morrer, que queimasse tudo o que escreveu. Kafka temia ser
a verdade não precisa “parecer verdadeira”, porque verdade já é. Em outras palavras: que a verdade, em geral, não se parece com a verdade!! Ela não tem as características – estabilidade, certeza, clareza – que em geral atribuímos à verdade. Ela é estranha, e provoca suspeita. Logo: a verdade não se deixa pegar, não se deixa fotografar, não se deixa definir. Cada vez que arrancamos uma máscara, nós apenas nos aproximamos um pouco mais dela, o que é bem diferente de chegar até ela. Isso, é claro, é coisa que nem sempre suportamos. Queremos sempre, desde meninos, uma verdade serena, previsível, que combine com nossas expectativas e que nos deixe à vontade e seguros. Aquela verdade que, na primeira infância, numa falsificação indispensável, nos é dada pela figura poderosa da mãe. Pirandello trata disso em um belo conto, “Retorno”, que está em O marido de minha mulher, coletânea de doze narrativas breves que estão chegando ao mercado
santificado. Temia que seus escritos viessem a ser lidos como lições luminosas e verdadeiras. Felizmente, Brod não o atendeu. “Retorno”, o conto de Pirandello, se dá em torno de um mal-entendido. Eles ameaçam os escritores, como Kafka – mas, ao mesmo tempo, são a matéria prima de seus escritos. Vamos ao conto. Depois de muitos anos, Paulo Marra volta ao “triste povoado ao alto da montanha” em que nasceu. Vai direto até sua casa de infância, que encontra em ruínas. Ao reencontrar seu passado, em vez de sentir felicidade, Marra sente “mágoa e náusea”. Mágoa, desgosto, porque tem a sensação de que seu passado lhe foi roubado. Náusea, repugnância, porque não pode aceitar a casa desolada e semi-destruída que vê. Algumas mulheres conversam sentadas em pedras que rodeiam a casa. Sua vontade é expulsá-las (mas a casa não lhe pertence mais!) e precisa controlar esse sentimento. Marra sente
“O absurdo da vida não tem necessidade de parecer verossímil, porque é verdadeiro”, dizia Pirandello.
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Samuel Beckett (1906-1989)
que a presença daqueles estranhos lhe rouba o direito de experimentar o desencanto e a mágoa que dominam suas recordações. Mágoa de quê? De não ver o que esperava ver. Não só de que não corresponda ao que esperava, mas até mesmo desminta o que acreditava que ia ver – motivo, afinal, de seu retorno à aldeia. Passado carregado de duras recordações, como as violências que o pai praticava contra a mãe que, frágil, morreu depois de um espancamento. “Agora, voltando, depois de tantos anos, à terra natal, não tinha sido reconhecido por ninguém”, Marra constata. É todo um passado, cheio de feridas, que lhe é roubado. E por quê? Por causa da aparência – da máscara – que o tempo colocou sobre seu rosto. “Somente um tal se aproximara, um que ele nem podia imaginar quem pudesse ser”. O que significa dizer: 50 Revista Literal
também ele, Marra, roubava, daqueles moradores que persistiram na aldeia, não só seu passado, mas sua identidade. Fazia com eles o mesmo que faziam consigo. Só um homenzinho estranho o reconhece. Marra pensa que o sujeito se parece com o diabo. Isto é, com a pior ameaça. Logo percebe, no entanto, que se deixa vencer pela imaginação. Pergunta-se o que o leva a fraquejar, a ceder a impressões, a deixar que a imaginação se apodere de sua mente. Percebe, então, que é a culpa que o assola, porque deixou o pai – sim, o pai assassino – morrer na miséria, sem nada fazer por ele. A máscara do pai violento, nesse momento, cai. Algo também abala a memória pura que tinha da mãe. Máscaras por todos os lados, eis o que lhe resta. Eis tudo o que temos para amar, ou odiar. O belo conto de Pirandello põe em cena os aspectos vacilantes e ambíguos daquilo que chamamos de admiração. Também o que chamamos, ao contrário, de repúdio. Não se trata de escolher entre os dois, mas de livrá-los da ilusão de certeza. Nada é bom, ou mau. O bem e o mal se misturam, se confundem, se alternam, e nunca podemos nos decidir, com segurança, onde cada um deles está. Essa é a potência da literatura: lidar com esses paradoxos, sem precisar solucioná-los, sem precisar tomar partido. É o que os contos de Pirandello nos mostram. O Exercício de Admiração que se segue inspira-se no livro homônimo do filósofo romeno E.M. Cioran (1911-1995). Os Exercícios de admiração de Cioran, traduzidos no Brasil
Mircea Eliade (1907-1986)
por José Thomaz Brum, reúnem ensaios e prefácios do escritor, e tratam de admirações fortes por Samuel Beckett, por Scott Fitzgerald, por Mircea Eliade. Cioran, o amargo, trabalha suas admirações, porém, com distância e prudência. Primeiro porque admirar não significa idealizar, não significa exagerar. A admiração pode ser, como em Cioran, dura e até cruel. Depois porque, quando admiramos um escritor, nem sempre sabemos por que o fazemos; nem sempre conseguimos dar um nome ao que nos mantém “presos” a ele. Qual é o segredo, qual é o “impasse” (já que escritores não fornecem respostas) que nos puxa? Então, como faz Cioran, transformar escritores em personagens pode nos ajudar a levar, e a eles também, para o terreno pantanoso e fértil da literatura. Incluí-los, em vez de excluí-los, no campo das palavras e das máscaras. Escritores são também, enfim, personagens. São máscaras, que circulam no meio literário, na imprensa literária, na literatura, nas capas (máscaras!) dos livros. A descoberta, de aparência atordoante, é benéfica. Ela nos dá mais liberdade para escrever. Para, enfim, experimentar a máscara de escritor – sabendo que outras máscaras continuam, ainda, à nossa disposição. Para ser Ou-
tro – ou, como me sugere a inspirada Rita, para vestir a máscara de Fulaninho. Para aceitar, enfim, que não existem rostos limpos, corretos e definitivos, só o dos mortos, e mesmo assim a terra os come. Nesse caso, a crítica literária fica por conta dos vermes e dos insetos.
Aula 5 | Exercício de Admiração
Crie um personagem digno de admiração e escreva um conto (de, no máximo, 3 mil caracteres com espaços) que seja, de alguma forma, seu retrato. Há, porém, uma exigência: o conto deve revelar não só os aspectos positivos e dignos de admiração do personagem, mas deve obrigatoriamente revelar também aspectos nocivos e repulsivos, que tornem relativa, e até perturbadora, essa admiração. Admiração e repúdio devem andar juntos em seu relato, sem que o paradoxo de sua coexistência num mesmo personagem seja resolvido. Mais ainda: sem que os aspectos negativos ou repulsivos destruam os aspectos positivos, que sustentam essa mesma admiração. Revista Literal 51
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Revista Literal 53
Clarice Lispector (1920-1977)
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AULA 6
Analisando o radicalismo de Clarice Lispector, que explodiu os conceitos de conto e romance, José Castello lembra que escrever é mexer com algo que está além de nós. O exercício demanda esse algo “além”.
Hoje vou tratar de uma escritora radical. Uma mulher que explodiu não só nossas idéias a respeito do conto, mas também do romance. Que expandiu até fronteiras impensáveis a imagem que, em geral, mesmo nos casos extremos de James Joyce, Marcel Proust e Franz Kafka, temos a respeito da literatura. Sim, vou falar de Clarice Lispector que, para mim, é sempre uma referência inevitável. E, para falar de Clarice e de sua estratégia literária quase suicida, pois ao ampliar os limites da literatura é a própria literatura que ela coloca em risco, vou tratar de dois dos contos mais enigmáticos que escreveu: “O ovo e a galinha”, que está em Laços de família, livro de 1960, e “O relatório da coisa”, de Onde estiveste de noite, de 1974. A primeira impressão que se tem é a de que ambos não são contos. Talvez não sejam nem mesmo literatura. Clarice leu “O ovo e a galinha” em um congresso de bruxaria, em Bogotá. “O relatório da coisa” já mereceu o interesse de
filósofos e também de psicanalistas que pouco ou nada se interessam pela literatura. Será “O ovo e a galinha” um texto místico? Será mesmo “O relatório da coisa” uma peça de ficção? Mas, se não são contos, o que eles são? Lá estamos nós, de novo, no impasse interminável: o que vem primeiro, o ovo, ou a galinha? O que vem primeiro? Os contos realmente existentes, ou nossa idéia do que um conto deva ser? Clarice nos deixa, sempre, diante de perguntas incômodas. Quando escrevia, a última coisa que a preocupava era preencher uma forma, corresponder a expectativas, cumprir com esmero preceitos técnicos, reforçar ou confirmar tradições. Pouco se interessava, também, em se opor às tradições, em contestá-las, em destruí-las. Não escreveu para chocar, ou para agredir, ou para desmentir. A relação de Clarice com a literatura estava acima dessas circunstâncias e dessas estratégias que, por hábito, associamos ao literário. “Por que escrevo? E por que bebemos água?” – Revista Literal 55
ela comparava. Os modelos, as tradições, os cânones não passam de “desculpas”, Clarice pensava, que usamos para ousar escrever. São, no máximo, pontos de partidas, que não podem se transformar nem em obsessões positivas (coisa do “bom aluno”), nem em exemplos negativos (coisa do “aluno rebelde”). Em literatura não existe a nota 10, ou a nota zero. Nem aprovação, nem reprovação. Existe coragem, ou não existe. Ou bem o escritor encontra e se aferra a sua própria voz, ou fracassa. Se desistirmos das ilusões literárias, temos enfim a chance de ler os contos de Clarice, mesmo os mais difíceis e enigmáticos, com alguma liberdade. Sem esperar encontrar nada, sem desejar nada, sem exigir nada – simplesmente ler, e “sofrer” do que lemos. Quanto mais desarmado um leitor se aproxima de um livro, melhor poderá lê-lo. Não é só o escritor que deve ser livre, o leitor também. Eles são as duas pontas do que chamamos de literatura. Ela não existe sem nenhum dos dois. 56 Revista Literal
Já disseram, algumas vezes, que minha visão da literatura é “idealista”, pois não me preocupo com os cânones, com as leis de mercado, com as modas literárias, com os princípios teóricos, com as tendências e as escolas. Mas penso o contrário: idealistas são os outros, não eu. Idealistas partem do antigo modelo platônico: há um ideal impecável que paira sobre nós, e nosso destino é cumpri-lo, ou reproduzi-lo, e nada mais. Muitos acreditam que, agindo assim, submetendo-se a cânones e às modas e às últimas leis da teoria, agem de forma sensata e realista. Pois acredito, ao contrário: que agem da forma idealista mais escandalosa. Que perdem o chão. Quem não é idealista, nada idealiza, nada espera. E esse “nada esperar” é a melhor atitude para um leitor. Oferecer-se, livre, de peito aberto, para o “tiro” disparado pelo livro que abre. Entregar-se, sem desejos e sem ideais. Idealista é, ao contrário, quem pensa que a literatura deve ser isso ou aquilo, que deve pro-
vocar tal ou tal coisa, que deve lidar com tais princípios, ou tais estratégias. Estes, sim, vêem a literatura como a repetição monótona – e no máximo “brilhante”, no máximo “bem escrita” – de um modelo. Como “resultado” e não como aventura. E, para mim, literatura é antes de tudo aventura. Os escritores também precisam esquecer dos modelos, ou não terão liberdade para escrever. Clarice Lispector não tinha modelos. Não os cultivava. Não se interessava por eles. Seus li-
Pronto: de um ovo, do simples ovo de uma galinha, Clarice parte para uma reflexão sobre a percepção. Um ovo: olhamos para um ovo, qualquer ovo, e ele “é” todos os ovos. Ovos não têm nome, não têm identidade, não se distinguem, a não ser por coisas muito insignificantes como a cor, ou o tamanho. “O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe”, Clarice diz. O ovo é a “Coisa”. Ou, como preferia dizer às vezes, é o “Isto”. É o “It”, dizia também. Maneiras que tinha para
“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”. Essa frase, a rigor, “é” o conto. vros partem de anotações vagas, que ela tomava ao acaso, em tiras de papel, guardanapos, folhas de jornal, sempre na mais absoluta solidão. Escrevia por impulsos, por ondas, por jatos, sem uma direção pré-estabelecida, sem esboços, sem estratégias. Abdicava do controle sobre o que escrevia, entregava-se ao que viesse, fosse o que fosse. E sabia aceitar o que lhe vinha, por menos que compreendesse o que lhe vinha. Está tudo em seus contos. Basta ler “O ovo e a galinha”, um dos mais radicais que escreveu. “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”, ela começa. Frase terrível para começar um conto, frase que parece imprestável. Inútil e até perigosa. Como tirar uma história disso? Mas Clarice avança: “Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo”. E o conto começou. Dessa impossibilidade, e não de um ato, de uma ação, de um feito, ele começou. Surgiu de um nada. Surgiu da estupidez de um ovo.
chamar o que lhe escapava. “It” – pronome neutro que, no inglês, fala das coisas sem gênero. Fala das coisas. “Isto” nos faz lembrar o “Isso”, outro nome que os psicanalistas dão ao “Id”, a parte mais profunda do psiquismo, na qual se movimentam materiais sob os quais não temos controle algum. “Coisa”: “objeto inanimado, aquilo que existe”, diz o dicionário. Existe e só: isso lhe basta. A visão do ovo – da “Coisa” – sobre a mesa leva a narradora a refletir sobre o perigo da repetição. O ovo tem uma casca, e essa casca se repete. Só tem exterior – e, no entanto, “o ovo é a alma da galinha”, ela diz. Mas também podemos pensar o contrário: a galinha pode ser o disfarce do ovo, sua fantasia, sua máscara. Aquilo que o protege e lhe permite atravessar o tempo sem se quebrar. Aquilo que, apesar de tudo, persiste – como uma pedra, como um planeta. Revista Literal 57
Estamos na terceira página e o que aconteceu até agora? Nada. Tudo o que aconteceu está na primeira linha: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”. Essa frase, a rigor, “é” o conto. O resto, todo o resto, o conto inteiro, é uma reflexão sobre o próprio conto. Quero dizer com isso: é uma reflexão sobre a literatura. Sim, “O ovo e a galinha” é um texto crítico. É, de certo modo, mais crítica literária que ficção. Nela, como faz tantas vezes, Clarice reflete sobre o papel das palavras. Para que
galinha qualquer, isto é, ela é só a casca da galinha. “A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de galinha”, a narradora diz. Mas, embora só tenha vida interior, a vida pessoal da galinha não tem interesse algum. A vida interior da galinha é o ovo. E mais nada. A galinha existe para servir o ovo, “por isso uma galinha não pode ser feliz”. Da meditação sobre a galinha, Clarice salta (que abismo!) para uma meditação sobre o amor. O amor é o reconhecimento. É aquilo que a galinha é incapaz de
servem? Para apontar, ou para encobrir? Para revelar, ou para esconder? Se é que servem para alguma coisa. Narrar é fazer essas perguntas, é nelas persistir. E, no entanto, Clarice não se arrisca no ensaio, Clarice persegue sua personagem e persiste em seu projeto de ficção. Não abre mão da literatura, mesmo se atirando fora dela. Do ovo, a narradora de Clarice (Clarice?) parte para uma reflexão sobre a galinha, uma ave em geral desprezada, tratada como sonsa e insignificante, uma ave sem atributos. Seu único atributo é o ovo. A galinha, ela diz, vive em um grande sonho, vive em estado de devaneio – isto é, é uma ave incapaz de pensar, incapaz de se conectar com o real. “A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecida da galinha é o ovo”. Por sofrer (e apesar de todas as galinhas parecerem sempre a mesma galinha), a galinha tem uma alma, pois na verdade só tem vida interior. No exterior, ela é só uma
sentir – é o que uma galinha não é. Quanto ao mais, somos apenas veículos da própria vida, e nisso nos assemelhamos às galinhas. “O meu mistério é eu ser apenas um meio, e não um fim”, ela escreve. Somos tão transitórios e estúpidos quanto as galinhas. E é disso, enfim, que fazemos literatura, como tudo o mais. Por isso, a galinha precisa esquecer do ovo: para que possa ser. Nós homens, do mesmo modo, temos que esquecer da obra e da mitologia que a cerca, a da Grande Obra, para que a obra possa existir. Clarice faz aqui não só uma defesa do esquecimento, mas da ignorância. “O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa”, diz. Destino, obra. Literatura. Escrever é mexer com algo que está além de nós. Não é engrandecer-se, é ao contrário diminuir-se. Se nos damos conta de que somos apenas poeira dentro de uma enorme galáxia, diminuímos. Somos massacrados. Mas isso nos fornece
Escreve-se apesar do cotidiano. Apesar dos obstáculos. Apesar de nós mesmos.
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nosso lugar. O ponto de onde podemos partir, dele e de mais nenhum. A galáxia nos carrega, nos “é”. Somos, como a galinha, agentes de algo ou alguém que desconhecemos e que não dominamos. Falamos (escrevemos) para esquecer essa submissão de que não podemos escapar. Falamos muitas vezes no automático – cacarejamos. O ovo – a obra – é, então, o impossível, Clarice nos leva a ver. A galinha só consegue botar ovos porque é indiferente a eles. Essa indiferença é também força da criação humana, e, portanto, da criação literária. Isso não significa não trabalhar, não lutar, não se empenhar. Significa que, antes disso, há um momento em que o esquecimento e a meditação se sobrepõem ao suor e ao trabalho. Tornam-se mais fortes que o próprio autor. Autor? Mas como garantir que somos donos do que escrevemos? Inspiração? Nada disso, a palavra é velha e inútil. Se for para tomar uma imagem física, podemos falar (bem melhor) em expiração, o ato de expulsar o ar dos pulmões, de expulsar aquilo que temos dentro de nós e que nem sabemos o que é. A leitura do segundo conto, “O relatório da coisa”, provoca reflexões muito parecidas, e tão angustiantes. Conto (conto?) em que Clarice, exatamente como faz em romances geniais como A paixão segundo G.H. e Água viva, escreve não para fazer literatura, mas para arriscar-se além dela. “O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura. Este relatório é a antiliteratura da coisa”, adverte logo no terceiro parágrafo. Desistência da literatura ou, ao contrário, expansão da noção restrita e medrosa que temos normalmente da literatura? Creio que Clarice poderia repetir, aqui, as palavras de Franz Kafka em uma das cartas a Felice: “Todo o meu modo de viver está orientado exclusivamente para a criação literária. O
tempo é escasso; as forças são exíguas; o escritório é um pavor e o lar é ruidoso”. Escreve-se apesar do cotidiano. Apesar dos obstáculos. Apesar de nós mesmos. Kafka, de alguma forma, compartilhava da idéia de literatura que, em “O relatório da coisa”, Clarice expressa. Anti-literatura, ou anti alguma coisa que, em geral, consideramos “literária”, mas que literatura, a rigor, não é? Clarice – como Kafka – via-se como um campo humano (um campo espiritual) em que se defrontavam forças antagônicas. De um lado, o social (o “G. H. até nas valises”), máscara da mulher, da escritora, da autora. De outro, esse sujeito pequeno que sofre a pressão da “Coisa”, que não passa de um joguete em suas mãos. Que se expõe ao risco e que faz dessa exposição uma maneira de existir. Uma maneira de escrever. Neste segundo conto, em vez de um ovo, Clarice parte de um relógio, da marca “Sveglia” – “o que (em italiano) quer dizer acorda”, ela lembra. O relógio é uma coisa. Por ser uma coisa, ele leva a narradora a se perguntar se ela também é uma coisa. Ele a “acorda”. A coisa denuncia a inconstância do humano. Escreve: “Eu creio no Sveglia. Ele não crê em mim. Acho que minto muito. E minto mesmo. Na Terra se mente muito”. Existir é mentir – é portar máscaras, desempenhar papéis, adaptar-se a situações, defender-se do pior. Escrever é mentir também. Pessoa e seu verso fabuloso: é fingir que sente a dor que deveras sente. Mas onde está a história? Onde está o conto? E onde Clarice pretende chegar? Ela deixa claro, desde as primeiras linhas: não sabe. Deixa-se arrastar pela objetividade de um relógio, da “Coisa” – e é a “Coisa” então que toma o lugar de personagem, que se expõe ao relatório e se torna objeto da escrita. “Sveglia não admite conto ou romance, o que quer que seja. Permite apeRevista Literal 59
nas transmissão. Mal admite que eu chame isto de relatório. Chamo de relatório do mistério”. Transmissão de quê? Da perplexidade que é escrever. “O relatório da coisa” é uma transmissão da experiência da impossibilidade da escrita. Mas só porque é impossível, só porque ninguém consegue (como se marca um gol, ou se ganha na loteria, ou resolve um problema matemático), só por isso continuamos a fazer. Sveglia (a coisa) “apenas é”. E é esse “apenas é” que “O relatório da coisa”, e também toda a literatura magistral de Clarice, toma como objeto. Estranho projeto: o de tomar como destino um ponto em que jamais se chega. Então, com uma obscuridade que apenas finge clarear, a narradora de Clarice (Clarice?) passa a dizer o que é Sveglia, e o que não é. Passa a classificar o mundo – e a apontar a gratuidade, a inoperância, a futilidade das classificações. Começa seu relatório. “O galo é Sveglia. O ovo é puro Sveglia. Mas só o ovo inteiro, completo, branco, de casca seca, todo oval”. O ovo novamente, imagem que retorna sempre, até nas narrativas infantis de Clarice (penso em “A vida íntima de Laura, a galinha”). “Não ter nenhum segredo – e no entanto manter o enigma – é Sveglia”, prossegue. Sveglia é o silêncio. E, diante da “Coisa”, tudo o que lhe resta como escritora é o relatório, e não a literatura. “Já te odeio. Já queria poder escrever uma história: um conto ou romance ou uma transmissão. Qual vai ser o meu futuro passo na literatura? Desconfio que não escreverei mais nada”. Clarice escreve sobre o impasse – não só “a cerca” dele, mas “em cima” dele. Posso dizer mais: dentro dele. Contos? É difícil incluir “O relatório da coisa” e “O ovo e a galinha” nos modelos de conto de que dispomos. No entanto, os dois se incluem em livros de contos, importante e festejados livros de contos. São contos que explodem a literatura e explodem a própria idéia de conto. Mas cuidado: não são ensaios, não são divagações, não são confissões, não são “pen60 Revista Literal
samentos”, ou “anotações”, ou “desabafos”. Fossem só isso e não nos interessariam, não nos iluminariam. Quando os lemos, mesmo diante de personagens que apenas falam e que se escondem nas palavras, estamos diante da “Coisa”. A vida pulsa na escrita de Clarice. Alguma coisa autônoma, e muito bem construída, e que é bem mais que um punhado de palavras soltas, nos seduz. Clarice não tinha nenhuma dívida, nenhum “respeito” pela literatura, e por isso se deu tanta liberdade, se permitiu escrever como quis e, mais que isso, como era. É o exercício difícil que proponho a vocês nessa semana. Que partam de uma história simples, que lhes dou por itens, como num relatório, e a partir delas, numa explosão, cheguem a alguma coisa mais que não seja a história. Mas atenção: o que devem escrever é um conto. Por mais que avancem e se desviem das normas, devem se conservar (como faz Clarice sempre) no terreno da ficção.
Aula 6 | Exercício de Explosão
Escreva um relato de no máximo 3 mil caracteres a partir da seguinte seqüência de acontecimentos: 1. Um homem se levanta. 2. Vai ao banheiro e se observa no espelho. 3. Passa a espuma de barbear no rosto, pega sua navalha, mas não consegue se barbear. 4. A campainha toca, mas ele não se move. 5. A campainha insiste e tudo o que ele faz é fechar a porta do banheiro. É claro, a idéia, como Clarice em suas “explosões”, é ir além dessa história. É usá-la para chegar a alguma coisa além dela.
As quatro capas dos livros de Clarice Lispector publicados nos Estados Unidos pela New Directions, em 2012, com design de Paul Sahre
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Rubem Fonseca (1925)
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AULA 7
Na sétima aula de sua Oficina Literária, José Castello parte de dois dos mais importantes contos da literatura brasileira para tratar de qualidades essenciais ao escritor: estabelecer e dominar ambigüidades.
Parto hoje de dois dos contos mais importantes da literatura brasileira na segunda metade do século 20. Falo de “Feliz ano novo”, de José Rubem Fonseca, que está no livro homônimo de 1975. Relato atordoante que, para bem e para o mal, marcou um grande número dos contistas surgidos a partir dos anos 70. E de “Feliz aniversário”, conto de Clarice Lispector incluído em Laços de família, livro de 1960. Um dos mais brutais e perturbadores relatos escritos por Clarice. Dois contos geniais, duas visões divergentes a respeito da felicidade. E duas visões antagônicas, mas igualmente radicais, a respeito da arte do conto e da própria literatura. Duas provas indiscutíveis de que, em literatura, quanto mais se diverge da norma, quanto mais o escritor se desvia e “erra”, mais forte a escrita é. A contraposição entre eles, que venho experimentar nesta aula, abre uma fenda pela qual podemos vislumbrar uma infinidade de caminhos. Quebra nossas certezas a respeito do que
é o literário, lança-nos no terreno da dúvida e da suspeita – instaura, enfim, a literatura. Rubem Fonseca escreveu “Feliz ano novo” nos anos mais tortuosos da ditadura militar e do espectro, por ela criado, de um Brasil Grande. Seu conto tem uma estrutura fotográfica, senão cinematográfica, do submundo carioca. É duro, grosseiro, brutal, desagradável, mal escrito até – e é desses elementos difíceis, supostamente negativos, que a grandeza do relato surge. Noite de reveillon, as famílias se reúnem para a festa, vestem suas melhores roupas, empanturram-se de assados e doces, dançam uma alegria que se avizinha à hipocrisia e também à depressão. “Travestem-se” com roupas que estão, provavelmente, acima de suas posses e de sua realidade. Fantasiam-se. O Ano Novo, na verdade uma simples mudança no calendário, não passa de uma das mais fortes fantasias modernas a respeito da felicidade. No Brasil da ditadura, país dividido entre o Bem e o Mal, os que se deliciam com a riqueza Revista Literal 65
Clarice Lispector (1920-1977)
nada querem saber a respeito dos que resistem na miséria. Dois mundos, dois Brasis. Ignorando esse abismo, ultrapassando-o, Rubem Fonseca transporta para a literatura os marginais, assaltantes, desviantes, homens que nada têm a perder, porque nada ganharam do milagre brasileiro. “Feliz ano novo” é narrado de modo seco, realista, direto. Diálogos sem meias palavras, frases rápidas e mal estruturadas, clichês, palavrões, desespero – a linguagem chula e inculta dos derrotados. A ação é veloz, as decisões impulsivas, os atos impensados. Os parágrafos curtos indicam um tipo de respiração quase animal, da qual o pensamento parece excluído. As respostas e idéias surgem, sempre, sob a pressão do imediato. Não existem vôos, meditações, reflexões, mediações. Tudo é muito duro e objetivo. E a leitura nos atinge como um soco. Até que, em um carro roubado, os marginais chegam a São Conrado, um bairro de grandes 66 Revista Literal
mansões. Mascarados, com meias femininas enfiadas no rosto, eles invadem uma festa. A partir daí, Rubem Fonseca se detém no relato quase cirúrgico da violência. E nos transporta para o interior do mal. Não só violência física, mas psicológica, moral, sexual. O relato do assalto à mansão é feito em palavras secas. Ação, pura ação, sem nada de muito sensacional, a não ser a força atordoante das pequenas violências. Sim, há morte, brutal, mas tudo se iguala, de certo modo, aos rituais de um teatro pragmático – tão pragmático quanto o dos homens que jogam na Bolsa, ou negociam nas agências bancárias. Os assaltantes têm tudo o que querem. Felizes, retornam ao morro. Bebida e comida roubadas são dispostas sobre uma mesa. O conto termina no momento em que eles, imitando suas vítimas, brindam um “feliz ano novo”. Em que experimentam uma felicidade roubada. Sem divagações, sem o desejo de dar lições, Rubem Fonseca retrata uma felicidade que é
ambígua e confusa. Felicidade que carrega a morte e, também, a infelicidade. Já em “Feliz aniversário”, o conto genial de Clarice, a infelicidade é a matéria secreta que perturba e lateja na felicidade de uma festinha de 89 anos. A família, vinda do subúrbio, mas também de Ipanema, chega aos poucos a Copacabana para a festa de D. Anita, a quase nonagenária. Cadeiras dispostas ao longo das paredes, uma mesa típica de festa de família, guardanapos coloridos, balões, groselhas e alusões ao “Happy Birthday”. Logo depois do almoço, a aniversariante é encarcerada em seu vestido de festa, com presilha, broche e um odor forte de água de colônia. Em contraste com todas as manifestações de carinho, admiração, afeto que recebe, a velha se conserva em silêncio. Silêncio enig-
sim, falar. Depois, muito serene, pede um copo de vinho e reage dura aos que argumentam que o álcool pode não ser saudável para uma “vovozinha”. As reações violentas da velha – como a ação ríspida dos assaltantes no conto de Rubem Fonseca – interrompem antecipadamente a festa. O ritual ainda se estende um pouco mais, os atores insistem e se esforçam para se ater ao script dos aniversários e sustentar uma felicidade que já foi escandalosamente denunciada. Felicidade que – como um bolo mal batido – desandou. Os filhos, que quase nunca se vêem ou se falam, apressam-se nas despedidas. Um deles presenteia a velha com um doloroso e irônico “até o ano que vem”. Ao contrário do conto de Rubem Fonseca, a festa não foi invadida por marginais, não foi
mático e ameaçador. A barulheira de filhos e netos não a perturba. Vista de fora, é só uma velha feliz, que se aproxima dos noventa, ainda inteira, cercada dos descendentes queridos que celebram sua longevidade, protegida entre os seus. No fundo, a velha despreza os seres opacos, azedos, infelizes que gerou. Sujeitos treinados só para macaquear a felicidade, enquanto sofrem por dentro sem nem mesmo perceber que sofrem. Seres que não suportam o pensamento, que lidam mal com os sentimentos e para quem a vida nada mais é que a sustentação de um script. Até que, para expulsar todo o nojo que carrega dentro de si, num impulso, como um rapazola tolo, a velha cospe com força no chão. Cospe sua indignação, seu ódio, todos os sentimentos que, por cansaço, por tédio, já não transforma mais em palavras. Cospe para, as-
tomada de assalto, ou destruída por forças violentas despachadas desde o exterior. Ao contrário: é de dentro da velha, é de seu interior murcho, de seu universo psicológico rangente e cheio de rugas, que o mal surge. O mal não pode aqui ser atribuído a agentes estrangeiros, não pode ser “sociologizado”, não pode ser explicado por essa ou aquela teoria. Não, a velha, pobre e deprimida velha, ela mesma o carrega. Todos o carregamos, só que o conservamos sob certo controle, disfarçado em educação, em serenidade e, até, em alguma felicidade. Mas, em algum momento, sem que possamos perceber que ele se aproxima e nos ameaça, a máscara se racha e então explode. Explode quase numa reação animal, como a cusparada da velha. E aí não podemos culpar os outros, ou nos apegar a explicações externas, temos que nos ver com nós mesmos.
Em “Feliz ano novo”, o mal é uma agressão externa, que nos invade, paralisa, mata. Em “Feliz aniversário”, ele vem de onde menos se espera – do coração piedoso e venerável da velha aniversariante.
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São duas histórias que tratam do mal. Na primeira, “Feliz ano novo”, o mal vem de fora, é uma agressão externa, que nos invade, saqueia, paralisa, mata. Não é algo que temos, mas algo de que sofremos. Algo que nos contamina. Na segunda história, “Feliz aniversário”, ao contrário, ele vem de dentro, vem de onde menos se espera – do coração piedoso e venerável da velha aniversariante. Vem exatamente de onde não deveria estar. Contudo, nenhum dos dois contos nos oferece lições de moral. Nenhum dos dois conclui, ou nos leva a concluir isso ou aquilo. Rubem Fonseca mostra a violência e a fúria dos miseráveis que invadem a festa, mas mostra também a futilidade, a irrealidade, a soberba de suas “vítimas”. De modo que, ao final do relato, quase simpatizamos com os invasores que, em torno da mesa de Dona Candinha, se preparam para devorar sua ceia roubada. Mas também não chegamos a ter simpatia, não aderimos inteiramente a eles, porque o mal-estar causado pela leitura das páginas anteriores, repletas de violência, não permite isso. Em outras palavras: estamos diante de personagens que levam nosso bom senso a fracassar. O bom senso e as soluções prontas já não funcionam, é preciso arriscar-se a pensar e, ainda mais, arriscar-se a suportar os paradoxos. Também a velha de Clarice Lispector, se desperta nossa simpatia pela coragem e pelo olhar crítico que despeja sobre os sentimentos burocráticos de sua família, e ainda pelo modo como se contém até que, não cabendo mais em si, transforma todas as palavras que lhe entravam na mente numa grosseira cusparada, desperta, também por isso, e pelos sentimentos duros, e pela sua burocracia interior (ao fim do relato, tudo o que se pergunta é se haverá jantar...), nossa repulsa. Ou, pelo menos, provoca em nós, leitores, uma série de sentimentos ambíguos e incompatíveis entre si. 68 Revista Literal
A riqueza dos dois contos está justamente aí: eles não só não oferecerem, mas também não permitem qualquer tipo de solução. Em vez de fecharem o caminho do leitor – com uma moral, uma lição, uma teoria, uma tese – eles a rasgam, a ampliam, a libertam. Histórias breves e de aparência simples, elas nos conduzem a sentimentos paradoxais que, ao fim, só nos resta suportar. É inviável por isso mesmo qualquer tentativa de enquadrar os dois contos no velho estilo do bangue-bangue, hoje encenado em narrativas tão populares como as de Harry Porter, em que o Bem luta contra o Mal. E nas quais, no fim, um lado triunfa, enquanto o outro é esmagado. Não, o Bem não está aqui, e o Mal ali. A moral, as boas lições, as apologias e as condenações sumárias não cabem na literatura. Se nela aparecem, a estragam e a simplificam. Ou bem o escritor pode suportar a ambigüidade e o horizonte que se abre ao fim de um relato, ou é melhor que faça outra coisa.
Aula 7 | Exercício dos Paradoxos
Na Aula 5 propus a vocês o Exercício de Admiração, em que pedia que investissem nos aspectos supostamente “maus” do Bem. No exercício de hoje, não se trata de buscar o avesso, mas de suportar a convivência de aspectos antagônicos e, na aparência, inconciliáveis. Escrevam um relato de no máximo 3 mil caracteres em que os clichês do Bem e do Mal convivam sem se excluir. Em vez disso, que eles se confundam, se misturem, se interpenetrem e até troquem de lugar. O objetivo é chegar a um relato em que, no fim da leitura, o leitor se sinta incapaz de tomar partido, ou de tirar lição. Em que termine tão intrigado e cheio de dúvidas como no início de sua leitura.
As capas de Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, pela Arte Nova (1975), Companhia das Letras (1989) e Agir (2010)
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Osman Lins (1924-1978)
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AULA 8
Na oitava aula da Oficina de Contos vemos que a literatura é feita mais de perguntas do que de certezas. José Castello recorre a ensaios de Ernesto Sabato para mostrar as vantagens de um caminho “inseguro” para o escritor.
Volto aos argentinos – sempre a eles. Temos no Brasil, é claro, escritores estupendos. Mas, afora uma minoria, a maior parte deles, por uma tradição algo misteriosa, se esquiva de pensar abertamente a literatura que pratica. Existem, é evidente, as grandes exceções. Escritores como Raimundo Carrero, Autran Dourado, Silviano Santiago, João Gilberto Noll, Bernardo Carvalho, Sérgio Sant’Anna e Fernando Monteiro estão sempre a pensar, e a falar abertamente a respeito do que pensam. Tenho certeza de que esqueço de outros, e lhes devo desculpas por isso. Entre os mortos, Osman Lins, o grande romancista de Avalovara, enfrentou de frente, sempre, esse desafio. Um poeta como João Cabral nunca dele se esquivou. A maioria, no entanto, por certo faz suas reflexões na intimidade, protegidos pelo silêncio dos escritórios e da meia-luz, em sua luta diária com a página em branco. Sem pensar sobre o que escreve ninguém consegue escrever. Mas domina entre os escritores, em geral, a idéia –
incômoda – de que não devem falar a respeito do que fazem. Seria como quebrar a magia, como um mágico que revela seus truques. Essa tarefa caberia aos críticos, aos leitores especializados, aos jornalistas literários, jamais a eles. “Escritores escrevem. O que pensam, ou deixam de pensar, está em seus livros”, ouvimos com muita freqüência dizerem. Abdicam, assim, de seu direito de interferir no debate literário. Roubam do leitor, ainda, a possibilidade de compartilhar suas reflexões. Mesmo assim, quando são entrevistados, exibem, muitas vezes, idéias fortes e originais. Contudo, em livros, ou de forma mais sistematizada, arriscam-se menos, ou quase nunca. Em seus próprios escritos literários conservam essas reflexões latentes, ou submersas. Fingem que elas não existem, que não estão ali. Só acredita nisso quem quer. Todo romance, livro de contos, de poemas, traz em seu interior um conjunto de idéias a respeito da literatura. Todo livro é uma tomada Revista Literal 71
Ernesto Sabato (1911-2011)
de posição a respeito da literatura e também do mundo. Escrever é fazer escolhas e correr riscos. Daí a prática da literatura envolver perigo e, em conseqüência, despertar medo. E a verdade é que, desde o século 20, os argentinos se arriscam bem mais. Ou, pelo menos, têm menos pudor em expor e compartilhar os riscos que correm e as ameaças que enfrentam. Entre eles, destaco o nome de Ernesto Sabato. Suas idéias estão espalhadas em muitos livros – entre eles Homens e engrenagens, lançado entre nós pela Papirus em 1993; O escritor e seus fantasmas, traduzido pela Companhia das Letras em 2003; e Antes do fim, que a mesma editora lançou em 2000. E ainda em A resistência, livro que ela planeja lançar em 2008. Mas o que mais me impressiona entre eles é Heterodoxia, ensaio de 1953, que a Papirus traduziu no Brasil em 1993. É simples: o ensaio de Sabato é uma enfática defesa do pluralismo, da divergência, da surpresa, do anti-dogmatismo e todos esses 72 Revista Literal
fatores imprevistos que são decisivos no trabalho do ficcionista, seja ele romancista, ou contista. Nascido em 1911, em Buenos Aires, Ernesto Sabato fez um caminho incomum até a literatura: antes de se tornar escritor, cursou um doutorado em Física, na Universidade de La Plata. Em 1938, viajou para Paris, para trabalhar, como físico, no Laboratório Curie. Cinco anos depois, aos 34 anos de idade, tomou uma decisão súbita e grave: abandonou a ciência para se dedicar exclusivamente à literatura. Seu primeiro livro, Uno y el Universo, que marca sua estréia de escritor, é de 1945. Cinco anos antes de publicar Heterodoxia, Sabato lançou aquele que é, até hoje, seu romance mais importante, O túnel, também já traduzido no Brasil. Heterodoxia é um livro de fragmentos. Uma coleção de notas dispersas e comentários anotados ao sabor das circunstâncias, capítulos de não mais que meia dúzia de parágrafos cada uma, que tratam de temas tão distantes quanto a bissexualidade, o medo
do caos, as ansiedades, o pessimismo, a importância da simplicidade e a tradição dos romances policiais. Aprecio, antes de tudo, a disposição de Sabato para pensar com liberdade, desordenadamente, o modo como se permite flutuar sobre as idéias, a coragem com que convoca temas difíceis e perturbadores e os enfrenta com uma postura desarmada e criativa, o espírito errático e nebuloso com que escreve seus livros. Coragem que caracteriza, em geral, o trabalho dos escritores, sempre metidos em impasses que não escolheram, lidando com idéias que surgem sem que saibam de onde, seguindo caminhos que não conseguem ver, e nem mesmo nomear.
tamos sobre eles”, escreve Sabato no verbete “Terror ao caos”. E prossegue: “É uma forma de vivermos tranqüilos, protegidos dos perigos e ciladas do Caos, da obscuridade, do mistério, do mais além. São bastiões contra a angústia que se instaura, mal assomamos um pouco a cabeça nessa terra pavorosa”. Homens medrosos, ele nos leva a pensar, refugiam-se em sistemas, em igrejas, em grupos políticos ortodoxos, “como crianças nas saias da mãe”. A segurança é, em suma, uma manifestação de covardia. Daí a necessidade que os escritores têm de optar pela insegurança, o que os leva, muitas vezes, a pagar violento preço pessoal. Mas o que fazer se não for assim? Há, nessa escolha, um forte risco de perder-se, de sofrer, até de
Aprecio, portanto, a coragem que Sabato tem de interrogar, de suspeitar, de colocar em dúvida e de querer saber. Ele não está interessado em criar sistemas, em estabelecer normas ou esquemas, em ordenar ou modificar o mundo, em classificar e discriminar. Tudo isso deixou para os cientistas. Sabe que a literatura é outra coisa, que ela é uma “máquina” que se move segundo outra lógica (se é que podemos chamar de lógica...) e com outras prioridades e sentidos. Sabato luta, ao contrário, para ver o mundo de novas formas, não ortodoxas, formas inclassificáveis, que desloquem certezas, relativizem verdades, e criem mais suspeitas e perguntas que certezas e afirmações. Que tornem a vida mais maleável, mais fluida e mais livre. “Os sistemas, como dizia Péguy, são sistemas de tranqüilidade, que amamos porque nos sen-
enlouquecer. Mas Sabato é taxativo e não recua: “O homem livre, o herético, tem de estar possuído de um valor quase demencial”. Curioso o modo como Ernesto Sabato associa literatura e heresia. Doutrinas contrárias a que tipos de fé? Ele não pensa só nas crenças religiosas, ou místicas. Pensa em crenças mais “nobres”, que em geral associamos a um saber objetivo e até à ciência, como as idéias de desenvolvimento e de progresso. “A idéia do progresso, nascida do racionalismo do século 17, acostumou-nos à ilusão de que marchávamos rumo a um mundo cada vez melhor e maior: o famoso better and bigger”, escreve em “O progresso na arte”. Mas algumas perguntas, aterrorizantes, nos levam a suspeitar da idéia de progresso. O que é mais terrível, Bin Laden jogando aviões contra edifícios, ou Hitler ma-
Aprecio em Sabato a coragem com que convoca temas perturbadores e os enfrenta com postura desarmada e criativa, além do espírito errático e nebuloso com que escreve seus livros.
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tando judeus em fornos crematórios? Como medir as coisas abomináveis e como tirar dessas medições uma idéia de progresso? Perguntas incômodas, de que o escritor, no entanto, não pode fugir, sob pena de não conseguir escrever. Perguntas que são a própria matéria da literatura, sua razão de ser. “Se é fácil provar que uma locomotiva é superior a uma diligência, não é tão fácil provar que nossa pintura é superior à do Renascimento”. Como ordenar a arte? Como impor uma ordem ao que, por princípio, escapa de toda ordem, e só tem força porque quebra expectativas e instala a insegurança? Mas, adverte Sabato, não se deve confundir a mudança com o progresso. Todo cuidado com as palavras é sempre pouco. Também dos cânones devemos suspeitar. Na ciência, podemos demonstrar a superioridade das teorias de Einstein sobre as teorias de Newton. Mas como afirmar que Picasso é superior a Cézanne? É preciso, diz Sabato, lutar contra as ilusões “fixistas” – ilusões daqueles que perseguem e valorizam o fixo. Outra coisa é decisiva na literatura: a mobilidade. E a mobilidade, para o artista, é sempre feita de perguntas. Perguntar e perguntar: eis a melhor maneira de escrever. As interrogações são a matéria da ficção – do romance, do conto, do poema. Nos contos, é claro, elas são mais contidas e costumam ficar mais recalcadas, escondidas sob a “objetividade” da ação. Costumam... mas também isso não é uma regra, ou cânone. Ainda assim, estão sempre lá. Então, sempre que um escritor entra em crise com um escrito, não é porque lhe faltem palavras, mas porque lhe faltam perguntas. Perguntas que movimentem seu escrito, perguntas que o façam avançar, perguntas que expandam seus horizontes. Não existe melhor exercício para um escritor do que formular perguntas, ainda que elas nunca suportem respostas, ainda que permaneçam, como tempestades, a lhe ameaçar. Tempestades de perguntas – eis uma maneira, entre tantas outras, de falar da matéria da literatura.
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Aula 8 | Exercício de Interrogação Escreva um conto qualquer, que não passe de 3 mil caracteres. Em meio à ação, contudo, um personagem deve tomar a palavra, assumir o papel de entrevistador, “quebrar” o ambiente ficcional e interrogar os personagens a respeito do que estão vivendo. Pode ser um diretor de teatro que interrompe um ensaio, um pai que flagra os filhos em algo proibido, um policial que surge em meio a um assalto, etc. Enfim, um personagem que assume um papel heterodoxo, faz aquilo que não está previsto, aquilo que dele não se espera, e com isso instala a crise em todos os outros personagens e na própria história que é relatada.
Paul Auster (1947)
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AULA 9
Feita de fatos incompreensíveis, justaposições assustadoras e eventos enigmáticos, a boa literatura desvia da mera descrição da realidade externa e do narcisismo confessional. Com foco no enigmático Paul Auster e numa experiência pessoal, José Castello dá uma aula emocionante.
De onde vêm as ficções? Qual a origem das histórias que lemos com tanto prazer e tanto espanto? Minha referência, nesta Aula 9, é o escritor nova-iorquino Paul Auster. Apoio-me, em particular, em O caderno vermelho, pequeno livro de Auster não traduzido no Brasil, que leio na versão espanhola da Anagrama, com prólogo e tradução do escritor Justo Navarro. [A Companhia das Letras lançou uma edição traduzida por Rubens Figueiredo em 2009.] Livro de memórias precoces, em que Paul Auster reflete sobre um tema assombroso: o papel do acaso na criação literária. Não é simples pisar nesse terreno, já que o acaso – conjunto de pequenas causas que se prendem a leis ignoradas, ou pouco conhecidas, que determinam um acontecimento – é, por definição, inacessível a qualquer tipo de reflexão. É,
basicamente, aquilo sobre o que não conseguimos pensar. Eu mesmo tive uma experiência inquietante essa semana. Anteontem, no Rio de Janeiro, onde sempre me hospedo na casa de um grande amigo, Silvio, tinha um encontro importante agendado para as quatro horas da tarde. Pouco antes das três horas, antes de fazer a barba, tomar um banho e pegar um ônibus (pois não dirijo), fui ao escritório de meu amigo para responder alguns e-mails. Distraí-me e quando dei por mim, eram quase três horas da tarde. Estava inteiramente envolvido com os emails. Enquanto isso, desde uma semana antes, um amigo querido lutava, em um hospital de Curitiba, contra uma infecção misteriosa (o acaso, de alguma forma, envolve sempre o mistério, quando não é o Revista Literal 77
próprio mistério). Exatamente às três horas da tarde, na hora em que eu planejara interromper os emails para me barbear, me veio a idéia súbita (e sem sentido naquele momento) de telefonar para ele que, em seu leito de hospital, conservava consigo um telefone celular. Achei que era uma idéia descabida, porque eu iria me atrasar, e a abandonei. Com a toalha no ombro, me dirigi ao banheiro. Já estava com o rosto coberto de espuma quando me veio o pensamento de que, mesmo me atrasando um pouco, eu devia telefonar para meu amigo doente. Era um impulso sem explicação, e talvez tenha sido isso o que me levou a ceder à idéia. Telefonei – e o celular de meu amigo estava desligado. Com o temor de ter discado errado o número (o acaso envolve sempre o medo), liguei novamente, e novamente esbarrei na mensagem do celular desligado. Só então, ainda incomodado, desisti, me barbeei, tomei meu banho e desci para a rua. Já dentro do ônibus, poucos minutos depois, meu celular tocou – e tive a sensação estranha de que, de alguma forma, eu mesmo era o autor 78 Revista Literal
da chamada, de que eu ligara para mim mesmo. O acaso sempre inclui essas quebras de fronteira e também a falta de clareza. Recebi então a notícia de que, meia-hora antes – muito perto do momento em que tentei falar com ele sem nenhum motivo concreto e até contra minha ansiedade para não me atrasar –, meu amigo falecera. Parece literatura – mas de fato aconteceu. Pois é disso que também Paul Auster trata em O caderno vermelho. Situações distantes que, subitamente, se emparelham e se equivalem. Histórias desconhecidas que, de repente, embaralham e passam a formar uma única história. Coincidências, simultaneidades, a sobreposição em um mesmo espaço, ou em um mesmo momento, de coisas que se dirigiam a direções distintas, ou que transcorriam em tempos diferentes. O escritor, Paul Auster diz, é uma espécie de tradutor dos mistérios do mundo. A literatura é feita de fatos incompreensíveis, de justaposições assustadoras, de eventos enigmáticos. É disso – e não da esperança tola de descrever a realidade externa, ou do desejo
narcisista de desabafar e de se confessar – que um escritor deve partir, Auster mostra. O relato das forças erráticas que o levaram até a literatura é impressionante. Em 1960, ou 1961, relembra Justo Navarro em seu impecável prólogo, o jovem Paul, um rapaz de 13 ou 14 anos (ele nasceu em 03 de fevereiro de 1947, em Newark), participava de um acampamento de verão para garotos no norte do estado de Nova York. Caiu uma tempestade e o céu se encheu de raios, que desabavam como flechas. Assustado, o chefe do acampamento instruiu os meninos que se afastassem do bosque e das árvores, e que se refugiassem em um descampado, onde estariam mais seguros. Para isso, contudo, era preciso rastejar sob uma cerca de arame farpado. Os meninos iam em duplas, Paul corria pelo
O primeiro romance de Auster, Cidade de cristal, que abre sua célebre Trilogia de Nova York, surgiu de uma experiência real com o acaso. Uma noite, alguém ligou para o apartamento de Auster perguntando pela agência de detetives Pinkerton. Auster explicou que era um engano. Na noite seguinte, o telefonema se repetiu. A insistência levou Auster a se perguntar o que teria acontecido se tivesse que respondido que sim, que falava de uma agência de detetives, que era o detetive Paul Auster. Em Cidade de cristal, um homem chamado Quinn recebe um telefonema de alguém que deseja falar com o “detetive Paul Auster”. Ocorre que, pouco tempo antes, outro desconhecido telefonara, de fato, para a casa de Paul Auster pedindo para falar com o Sr. Quinn. De um engano – de uma situação irreal e sem ex-
descampado lado a lado a seu amigo Ralph. Quando chegaram à cerca, por algum motivo (o acaso novamente), Ralph passou à frente. No exato momento em que rastejava sob a cerca, um raio caiu sobre ela. O rapaz morreu eletrocutado. Foi preciso que o amigo o ultrapassasse, foi preciso que ele morresse para que Paul pudesse sobreviver e se tornar o escritor Paul Auster. Vá se entender a vida. Vá se entender a literatura! Auster viveu muitos anos em dificuldades financeiras. Num domingo de janeiro de 1979, às oito horas da manhã, ele recebeu pelo telefone a notícia de que seu pai havia morrido. Até ali era apenas um tradutor e poeta desconhecido. O pai, porém, lhe deixou uma pequena herança, que lhe permitiu dedicar-se, por dois ou três anos, apenas à ficção. Abandonou a poesia, para a qual não tinha vocação, e passou a escrever narrativas. Tornou-se o escritor Paul Auster.
plicação, e invertendo situações e juntando elementos imprevistos, Auster escreveu seu primeiro livro. O caderno vermelho é um livro (um delicado livro) que aparentemente nada ensina. Mas ensina sim, ainda que trate de algo que não suporta qualquer transmissão ou exemplo. Ensina que não é do conhecido e do cálculo que surgem as grandes narrativas; ao contrário, é do imprevisto e do inesperado, é daquilo que pega o escritor de surpresa e que ele, suportando o tranco, se arrisca a “traduzir” que a literatura vem. A literatura não explica. Traduzir não é explicar, é apenas transpor de uma língua para outra, e isso não soluciona, ou fecha, nada. Quando cria uma ficção, um escritor não decifra o acaso, não o captura, nem o resolve; tudo o que ele faz é perder o medo do acaso, enfrentá-lo para dele tirar, ainda que às cegas, alguma outra coisa – um conto, um romance, uma crônica, um poema.
Foi preciso que o amigo o ultrapassasse, foi preciso que ele morresse para que Paul pudesse sobreviver e se tornar o escritor Paul Auster. Vá se entender a vida. Vá se entender a literatura!
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O acaso e suas surpresas dominam não só a escrita de um autor, mas sua vida. Paul Auster nos mostra como esses dois aspectos, que a crítica literária de hoje costuma desligar (como se fossem duas coisas intraduzíveis, que habitam mundos diferentes, desprovidas de qualquer vínculo), mostra como eles se conectam, sim, e mais que isso: se alimentam. Auster recorda que, no ano de 1973, quando ainda era “só” um tradutor, lhe ofereceram o trabalho de vigia em uma granja no sul da França. Vivendo em Paris, ele e sua companheira andavam bem mal das finanças, e resolveram aceitar a oferta. Julgavam que, além de ganhar algum dinheiro, teriam tempo (e atmosfera) para se dedicar a traduções, e assim completar seu orçamento. Mudaram-se para um casarão de pedra do século 18, fronteiriço a uma região de vinhas e a um parque nacional. Mas as traduções não chegavam, e o dinheiro era cada vez mais escasso. Por acaso – de novo o acaso – receberam um dia a visita de um fotógrafo, James Sugar, da National Geographic, que viajava a trabalho pela região. Em troca de algum dinheiro, o casal o hospedou por alguns dias. Sugar logo continuou sua viagem mas, como voltava sempre àquela região, sempre se hospedava com Auster, e lhe salvava a vida com o pagamento de suas “diárias”. Houve um dia em que sequer tinham o que comer, além de um pastel que, por distração, por levar tempo demais no forno, se convertera em um punhado de cinzas. Foi o pior dia da temporada de Auster no sul. Sugar não aparecia há muito tempo, e tinham certeza de que voltara para os Estados Unidos. Do nada, o fotógrafo ressurgiu. Levou-os a um restaurante, comeram e tomaram muitos vinhos, e tudo parecia um milagre. Era o acaso, que mais uma vez salvava Paul Auster e que, assim, o empurrava para a literatura. Eventos da vida real, que não só o empurraram para ela, mas que se tornaram elementos 80 Revista Literal
cruciais da magnífica literatura de Paul Auster. Em seus livros, ele não fala de si, não se confessa, não desabafa. Ainda assim, é sempre de si que parte, de alguma forma é a si mesmo, e à sua vida, que reescreve (que traduz) quando escreve uma ficção. Não se tira nenhuma lição de seus relatos. O acaso para Auster é uma coisa, para cada outro escritor é outra coisa, bem diferente. O que ele nos mostra de mais importante é que um escritor precisa não só saber ouvir o mundo, saber ver o mundo, saber sentir o mundo, mas precisa também saber traduzi-lo. Não se trata de reproduzir a vida real, nem de resolvê-la. Trata-se, em vez disso, de sincronizar com ela, de aproveitar seus sustos, suas incoerências e suas “loucuras” como pontos de partida, e não como pontos de chegada. Auster não domestica o acaso. Ao contrário: faz do acaso inquietação. Quando se põe a traduzir o mundo, não é na esperança de decifrá-lo, mas a de aceitá-lo um pouco mais, que escreve. Busca sincronias, e não repetições. Ensina (se é que isso se ensina) que a literatura não tem fórmulas, que ela é apenas uma maneira de aceitar os mistérios do mundo.
Aula 9 | Exercício das Sincronias
Relate, em no máximo 2 mil caracteres, uma situação surpreendente que tenha vivido. Ou que alguém tenha vivido e depois lhe tenha relatado. Em seguida, escreva um conto, de no máximo 2 mil caracteres também, que tenha essa experiência como ponto de partida. Não se trata de reproduzi-la, de solucioná-la, de explicála. Mas, sim, de tomá-la como ponto de partida, como trampolim para a ficção que vai escrever, para que entre as duas reste, de modo quase secreto (e quanto mais secreto, melhor), alguma sincronia.
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Adolfo Bioy Casares (1914-1999)
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AULA 10
José Castello lembra, em sua última aula, a estratégia de Bioy Casares para tirar o melhor de sua escrita, produzida 365 dias por ano. E ensina: a complexidade do conto está no que é contado; não na maneira de contar.
O escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999) tinha um método muito pessoal e, sobretudo, muito simples – para avaliar a qualidade dos contos que começava a escrever. Bioy é um contista magnífico, o que basta para avalizar a eficácia de seu método. Os que nunca o leram podem começar, quem sabe, pelas Histórias fantásticas, reunião de contos traduzida no Brasil, em 2006, pela Cosac & Naify. Não se arrependerão. Bioy anotava a primeira versão de seus contos sempre à mão, em um caderno pautado, com espirais, do tipo escolar. Fazia isso pela manhã, logo após o café, não sem antes tomar um banho, barbear-se e vestir paletó e gravata, como se fosse a uma solenidade. Escrevia em seu próprio quarto, em uma mesinha antiga, apertada, que herdara da mãe. Conservava as cortinas fechadas, pois preferia a penumbra, que lhe parecia mais propícia aos devaneios e à aventura interior. Não passava mais que duas ou três horas trabalhando. Todo dia, toda manhã, começava um
conto diferente, uma história nova. Desse modo, produzia, a cada ano, o esboço de 365 histórias. O que, é claro, não é o mesmo que afirmar que escrevia 365 contos em um ano, já que a maior parte delas não sobrevivia, não passava por seu método pessoal de aferição, e tinha como destino, em conseqüência, a lata de lixo. A poucos metros do edifício em que Bioy Casaras morava, em Buenos Aires, bem do outro lado da rua, havia um pequeno restaurante de bairro, desses em que os garçons usam gravatas-borboleta, paletós antigos e gumex nos cabelos. Viúvo, adoentado, preso a uma rotina regida por governantas e enfermeiras, Bioy descia diariamente, sempre ao meio-dia e meia, para o almoço. Era seu momento de liberdade. Levava consigo, sempre, seu caderno. Nas mesas do salão, isso era obrigatório, uma visita o esperava. Bioy tinha muitos amigos – na verdade, amigas. Não apreciava a amizade masculina, e nesse aspecto sua lendária amizade com Jorge Luis Borges foi uma grande exceção. TerminaRevista Literal 83
Jorge Luis Borges (1899-1986)
do o relato da manhã, Bioy abria a agenda e escolhia, ao acaso, o telefone de uma amiga, que convidava para acompanhá-lo em seu almoço do dia. Era convite gentil, mas sustentado por segundas intenções. Não era só uma gentileza, Bioy tirava partido da companhia. Ao aceitar o convite, a amiga tinha uma obrigação: ouvir o conto que Bioy Casares leria em voz alta, logo depois da sobremesa. E, finda a leitura, dar sua avaliação sincera: se a história prestava, ou não prestava. Dependendo dessa avaliação, mas também das reações (positivas ou negativas, de entusiasmo ou, ao contrário, de tédio e até de repulsa) que Bioy percebia em suas companheiras de almoço, ele chegava, enfim, a seu próprio veredicto. Ali mesmo, durante o café, decidia se o conto iria para o lixo, ou se voltaria para a gaveta do quarto. 84 Revista Literal
A estratégia de Bioy Casares recupera os laços remotos que os contos guardam com as narrativas orais, as histórias da carochinha que contamos para as crianças e os “causos” narrados, a boca pequena, por nossos avós. Recupera o caráter vivo, direto, sedutor dos grandes contos. Um conto, Bioy pensava, ou agrada, ou desagrada. Não há meio termo, e por isso eles exigem uma avaliação objetiva e dura. E, sobretudo, definitiva. As amigas ocupavam, uma a uma, o lugar nobre do leitor, ainda que não lessem nada, ainda que se limitassem a ouvir. Muitas vezes o próprio Bioy não lia coisa alguma, contentava-se apenas em narrar, em resumir em voz alta a história que escrevera pela manhã – como se contasse um caso real, ou reproduzisse uma notícia que acabara de ler nos jornais, ou de ouvir no rádio. Esse procedimento, acreditava,
por ser mais íntimo e carregado de sentimentos, conferia força ao conto. O que interessava a Bioy Casares era, antes de tudo, o impacto que a história causava, ou deixava de causar, em suas amigas. Não as levava ao restaurante para ouvir opiniões literárias, digressões cultas, interpretações de brilho científico. Na verdade elas sequer tinham a obrigação de falar, sequer precisavam abrir a boca. Tudo (gostar ou não gostar) se estampava em seus olhos, nas contrações de seu sem-
da literatura. Retomar uma simplicidade radical que a longa e pomposa história da literatura, muitas vezes, intimidou, ou destruiu. Bioy Casares dizia que, enquanto buscava histórias cada vez mais complexas para contar, lutava também para contá-las da forma mais simples possível. A complexidade, a seu ver, não diz respeito à maneira de contar, mas ao que é contado. Lamentava que muitos escritores, sobretudo os escritores iniciantes, confundam as duas coisas, e com isso produzam obras es-
blante, nas perturbações da postura, ou nas contrações labiais – ou, ao contrário, no tédio, no desânimo, na indiferença, no sono. E era assim, pela leitura de reações físicas, pela leitura de espantos e de calafrios, ou de muxoxos e desatenções, pela análise somática, podemos dizer que Bioy Casares avaliava a qualidade de seus contos. Em conseqüência, era a partir da leitura que Bioy – ele sim, ocupando o lugar nobre do leitor – fazia da reação de suas amigas (a quem se dedicava a ler cheio de cuidados) que um conto sobrevivia, ou era abandonado. Inevitável lembrar de Sherazade, contando uma história a cada noite, mil e uma noites, como estratégia para adiar a própria morte. Inevitável lembrar das histórias que, já no quarto de dormir, contamos para as crianças, para espantar pavores, para tranqüilizar e embalar o sono. Lembrar dos mitos antigos, e mesmo dos mitos contemporâneos, das crendices, das superstições, que nada mais são do que fantasias que construímos para substituir o que não suportamos desconhecer. Escrever contos é, desse modo, retornar a alguns dos aspectos mais antigos e mais vitais
nobes, rebuscadas, cheias de afetação. Em geral, tendemos que acreditar que o romance é um gênero mais complexo, e até mais sofisticado e nobre, que o conto. Bioy Casares discordava disso também. Escrever contos, ele dizia, exige que o escritor seja mais inventivo porque, para escrever um livro de contos, ele deve manipular várias histórias ao mesmo tempo e, portanto, precisa ser inventivo muitas vezes. Em um romance, em geral, a história nos parece mais real: convivemos mais tempo com ela, privamos da intimidade dos personagens, que são quase sempre os mesmos, e nos sentimos em um mundo que é mais parecido com o nosso. No conto, não: os personagens são pouco mais que marionetes que tornam a história possível, Bioy distinguia. Eles se intercambiam, as paisagens e ambientes se alternam, os enredos se anulam, os sentimentos em jogo se dissolvem. Outra distinção importante entre o romance e o conto, dizia Bioy Casares, está na importância do desfecho. Um conto precisa terminar bem, precisa ser bem resolvido, ou toda a história narrada ao fim se esfarela. No romance,
Um conto, Bioy pensava, ou agrada, ou desagrada. Não há meio termo, e por isso eles exigem uma avaliação objetiva e dura. E, sobretudo, definitiva.
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ao contrário, o desfecho em geral é secundário, é mais uma interrupção que uma solução. Bioy Casares foi um leitor entusiasmado dos contos de Robert Louis Stevenson, mas lamentou sempre que muitos contos de Stevenson terminem tão mal. No conto, o leitor precisa acreditar na história, e essa crença não pode ser abalada. Se é abalada, o leitor logo se torna indiferente ao que lê. No entender de Bioy Casares, outra exigência feita ao conto é a de que ele seja um estímulo ao pensamento. O romance pode se alongar, pode se abrandar em digressões, se deter em descrições minuciosas, dar saltos no tempo, no espaço, dispersar-se. O conto, não: exige concisão, exige uma tensão contínua e exige, sobretudo, que o leitor seja desafiado – desafiado por idéias, por pensamentos. Um conto, ou nos leva a pensar – num desfecho, num culpado, num destino, numa causa – ou não nos interessa mais. Ainda assim, Bioy Casares sempre alertava que os contistas não devem fazer uso de temas assustadores, ou deprimentes, só para atrair o leitor. Acreditava, ao contrário, que os contos desprovidos de grande apelo, os contos desinteressados em seduzir a qualquer preço, costumam ser os melhores contos, os que lemos com mais prazer. Por isso, dizia não apreciar muito a leitura de Diário da guerra do porco, um dos romances mais inventivos que escreveu, sombria história sobre os horrores da velhice. E preferir, ao contrário, um romance mais simples, menos ambicioso, como Dormir ao sol, novela que mistura alguma reflexão filosófica com um humor sofisticado. Nada de armadilhas, nada de truques, nada de exageros, 86 Revista Literal
advertia. Os leitores buscam, antes de tudo, uma boa história e querem ter prazer, muito prazer, quando a lêem. Autor de histórias fantásticas, Bioy sempre fez questão de lembrar que o fantástico só nos interessa, só nos toca, quando se avizinha do real. “Sei o que é real e o que é imaginário, mas o imaginário existe de uma maneira tão consistente quanto o real”, disse certa vez. Por isso, escrever exige atenção, recato, comedimento, contenção. Bioy dizia que, se suas histórias pareciam verdadeiras, isso não acontecia por causa de seus conteúdos, mas sim por causa das precauções que ele tomava ao escrevê-las. O cuidado, a cautela, o equilíbrio são, a seu ver, qualidades fundamentais de um escritor, sem as quais ninguém consegue, de fato, escrever histórias convincentes.
Aula 10 | Exercício de Simplicidade
Escreva um conto de no máximo 3 mil caracteres que relate uma história complexa, misteriosa, confusa, de maneira direta e simples. Escrever de maneira simples não é o mesmo que “decifrar”, ou “solucionar” a história, não é o mesmo que “explicá-la”. É, ao contrário, uma maneira de tornar a história ainda mais intricada, enigmática e perturbadora. Uma exigência: a história deve ser contada a um interlocutor fictício que, por exemplo, acompanha o autor em uma mesa de bar. Deve ser “falada” – com todas as ênfases, improvisos e liberdades da linguagem oral –, mais do que “escrita”. E deve ainda apontar, todo o tempo, para seu desfecho.
Robert Louis Stevenson (1850-1894)
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