Alpendre #6

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ISSN 2236 4382 #6

Gaia, por Cíntia Eto

Reencantamento do Mundo


EDITORIAL Uma Estética da Imanência

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por Laura Fernanda Cimino

O “Reencantamento do Mundo” é o tema deste número da Revista Alpendre. Essa escolha não é aleatória já que no alvorecer da primeira década do século XXI, aquele “desencantamento do mundo” postulado por Max Weber parece resistir e insistir. Entretanto, o novo espírito do tempo nos incita a outras reconfigurações daquele conceito que, na sua gênese, indicava uma desmagificação da religiosidade que seria ultrapassada pela racionalidade moderna. Do mundo comandado pela razão instrumental chegamos à administração dos afetos. Na atualidade, os afetos são transmutados em bens de consumo. Afetos-consumo, consumo esvaziado de corpo, de experiência, de corporeidade. Da sociologia à filosofia. De Weber à Nietsche. Linhas de Fuga...

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Quando Nietzsche propôs fazer da vida uma obra de arte, ele não se referia à ela como um mero objeto estético. O filósofo, diria ele, é um experimentador! Seu oficio é o de inventar universos possíveis ante a consciência da finitude do Homem. Só aquele que conhece o desamparo pode traçar suas linhas de força sobre a corda estendida no abismo da existência. Afinal, o humano desvenda sua mensurabilidade perante a Vida ao experimentar o si mesmo, proclamou o super-homem.

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O reencantamento é a tarefa do além do homem, aquele que desce para fitar os olhos do Outro. O super-homem é o que aprendeu o verdadeiro sentido do eterno retorno: o retorno da diferença. Aquele que aprendeu a jogar não pelo resultado do lance de dados, mas pelo prazer que o jogo proporciona. Ele não almeja os deuses, ele não quer a transcendência. A vida não é mais um para além, a vida é pura imanência. Potência que se revela na dor e na precariedade da própria existência e que, consequentemente, se faz plena no seu aqui e agora. Explorar a potência da vida que faz do homem, demasiadamente, humano é a proposta deste número da Revista Alpendre. Uma vida que transborda nas bordas das seções que compõem uma espécie de plano de vôo sobre lugares, corpos solitários, cidades imaginadas e imaginárias, colagens de folhas, relicário de lembranças.

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Boa Leitura!


SUMÁRIO 22

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06 Modos de morar, modos de habitar: experiências modernas em Berlim e São Paulo, por Adriana Gurgel

O Homem de Mala e Núvem, por Maria Júlia B. Eichemberg

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Aquarelas, por Roberto Cimino

Entrevista com Paulo Masella

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Entrevista com Paulo Masella

Entrevista com Paulo Masella

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36 Hélio Leites: o anarquiteto de um sonho

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Geografia dos afetos: um desenho sobre avós, por Isabella Valino

colagem por Grace Breyley A Revista Alpendre é um periódico online de caráter acadêmico que tem por objetivo operar na interface entre várias áreas do conhecimento, em especial nas que dizem respeito à produção estética que transita entre a arquitetura, o cinema, a arte, a fotografia e a literatura. A publicação se estrutura a partir de temáticas e visa o enriquecimento cultural da comunidade acadêmica.

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Entrevista com Paulo Masella

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Entrevista com Paulo Masella

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53 Ensaios entre o corpo e o espaço, por Yasmin de Angelis

50 Rochelle Zandavalli e a busca pelo passado dos desconhecidos


Modos de morar, modos de habitar: experiências modernas em Berlim e São Paulo Adriana Gurgel¹ Morar programado e habitar vivido ou como o fluxo transtorna o (pretensamente) fixo

Neste contexto, o programa aparece como um instrumento de “ensino” ao explicitar o modo como devem ocorrer estas relações, e inúmeras experimentações foram realizadas a fim de gerar novos hábitos e novas significações acerca do morar.

A cidade, tessitura de múltiplos e moventes entrelaçamentos, pode ser abordada a partir de instâncias de análise que se apóiam, de um lado, na característica funcional explicitada pelos planos técnicos e, de outro, em dinâmicas cotidianas que a transformam em meio de vida para onde convergem subjetividades, sociabilidades e sensibilidades associadas pelo imaginário daqueles que a vivenciam. Encontramo-nos, aqui, entre o morar programado e o habitar vivido, que se manifestam entre espaços e espacialidades da cidade e podem ser apreendidos entre suas intercambiantes visualidades e visibilidades. A produção de espacialidades é efetivada pelos usuários que, entre outras ações, habitam, ou seja, atuam nos espaços do morar e continuamente transformam, de modo imprevisto (em maior ou menor grau), seu programa. O uso programado, estruturado e definido a priori, é assim (re)torcido pelo cotidiano, produzindo novas significações que são comunicadas de distintos modos, em diferentes meios. Ao ser fruído e apropriado, o morar programado e seu uso previsto transtornam-se em habitar vivido, onde emergem lugares e se inventam cidades.

A necessidade de racionalização e ordenamento da arquitetura moderna articula-se, entre outros aspectos, como uma resposta a modos de morar verificados anteriormente nas cidades em rápido, agressivo e contínuo processo de transformação decorrente da Revolução Industrial. O desenvolvimento acelerado e crescimento desordenado contribuíram para o agravamento de sérios problemas urbanos, como as péssimas condições de higiene e saneamento, moradias insalubres, grandes distâncias entre as áreas de habitação e trabalho, e a escassez de áreas verdes e de lazer. Na Alemanha, o processo de industrialização foi iniciado por volta de 1840 (Gründerzeit), marcando a transição da sociedade rural para uma sociedade industrializada. Berlim havia se tornado, em 1871, a capital do Império Germânico e, nos anos seguintes, sofreu aceleradas e dramáticas transformações, que alteraram definitivamente sua paisagem e infraestrutura. Com o aumento da produção industrial, a cidade recebia cada vez mais imigrantes e trabalhadores vindos do campo (particularmente após a depressão na agricultura nos anos 1880), em busca de uma ocupação e de moradia financeiramente acessível.

Programar para ordenar: Alemanha, Brasil e a resposta moderna ao morar amontoado Os programas do morar respondem a planos diversos, associados a valores distintos. A arquitetura moderna, por exemplo, buscou direcionar e disciplinar os modos de utilização do espaço do morar a partir de premissas de universalização, racionalidade e ordenamento – não apenas de processos construtivos, como de relações entre os espaços e seus usuários.

Com o acelerado aumento da população, a nova classe operária era, inicialmente, acomodada em casas familiares, adaptadas para funcionar como moradia de aluguel. A escassez da oferta e a crescente demanda por habitações com aluguel de baixo custo incentivaram a

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As condições sanitárias das Mietskasernen eram críticas, principalmente em relação a doenças como tifo. A constatação de que a saúde da população e os benefícios econômicos de uma mão de obra saudável estavam diretamente relacionados às condições de moradia começaram a influenciar os projetos habitacionais por volta dos anos 1890. Incentivado por distintas motivações (como a necessidade de mão de obra apta ao trabalho ou a minimização da ocorrência de epidemias), o poder público, aliado a arquitetos e engenheiros, passou a atuar para melhorar as condições de vida desta camada da população, intervindo em seus modos de habitar. Percebeu-se que as edificações deveriam proporcionar ar fresco, ventilação cruzada, instalações sanitárias adequadas e acesso ao verde; a Mietskaserne relaciona-se, assim, com as soluções adotadas posteriormente pelos arquitetos modernos, que transformaram os pátios internos em grandes jardins. Até o início da Primeira Guerra Mundial, portanto, o desenho das habitações sociais em Berlim havia se desenvolvido de modo a criar as condições que culminariam, nos anos 1920, na experimentação de novas concepções de morar empreendidas por aqueles arquitetos.

construção das Mietskasernen (casernas de aluguel), assentamentos que deveriam acomodar o maior número de pessoas no menor espaço possível, maximizando os rendimentos dos proprietários (senhorio). Constituídas por blocos de edificações alinhados com os limites das ruas, implantados sem recuo, de forma contínua e com pátios internos dispostos perpendicularmente à fachada voltada para a rua, as Mietskasernen eram ocupadas, em sua maioria, por inquilinos recém chegados de áreas rurais, e não contavam com condições adequadas de iluminação, ventilação ou espaços verdes. Seu principal objetivo era obter a maior densidade possível e, consequentemente, maior rendimento com o pagamento dos alugueis. Isto implicava na abolição da vontade e quaisquer outros traços de individualidade dos moradores, além de subjugar o morar aos propósitos da especulação.

Este contexto favoreceu o surgimento dos Siedlungen encontrados não apenas em Berlim, mas também em cidades como Stuttgart (Weißenhofsiedlung) e Frankfurt (Das Neue Frankfurt). Nestes assentamentos habitacionais, construídos geralmente nos arredores da cidade, as edificações eram implantadas de modo solto no terreno, descolado do desenho das ruas, o que possibilitava a criação de áreas verdes entre os edifícios e alterava significativamente a organização dos espaços urbanos. Internamente, buscava-se encontrar a forma exata do Existenzminimum, a célula habitacional mínima definida a partir da conjunção adequada de aspectos espaciais, funcionais, econômicos e sociais. Em oposição às construções perimetrais, com pequenos e escuros pátios internos, a vanguarda socialista e liberal da década de 1920 propôs habitações sociais compostas por lâminas paralelas autoportantes. Para Colqhoun (2004), este tipo de solução seria uma resposta direta às Mietskasernen.

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[TESE_IMG 1_3-Mietskaserne 1.jpeg] LEGENDA: Mietskasernen em Berlim, vista aérea e planta (Fonte: Entdecken und Verstehe. Berlin: Cornelsen Verlag, 1995, p. 156)

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Construídas inicialmente na periferia de grandes cidades em meio ao verde, os conjuntos eram dotados de conexões com o transporte público, levando os moradores para o centro da cidade e aproximando-o das oportunidades de trabalho. Esta estratégia era baseada na crescente visão democrática de sociedade presente na República de Weimar.

Vivenciar para transformar: aquilo que não se contém [TESE_IMG1_ciam 2.jpg]

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No programa moderno, o modelo de casa passa a estabelecer outra relação com o espaço urbano, distanciando-se do modo de morar decorrente das transformações urbanas relacionadas à Revolução Industrial. Pressupunha-se a construção de habitações em áreas dotadas de infraestrutura (conexão com o sistema viário, disponibilidade de serviços básicos como abastecimento de água e energia, gás e esgotamento sanitário) e de equipamentos de uso coletivo (voltados para o ensino, o lazer e esportes), além de acesso facilitado aos locais de trabalho e proximidade de áreas verdes e públicas. O desenho da casa deveria priorizar adequadas condições de higiene (ventilação e iluminação naturais, preocupação com a umidade), confortável dimensionamento dos espaços internos, privacidade para todos os membros da família, adequadas condições de repouso em casa (favorecendo o dispêndio de energia no trabalho) e economia de tempo e esforço na realização das tarefas domésticas. Esta redução do tempo dedicado às atividades do lar, baseada em pesquisas funcionais e ergonômicas que fundamentaram a concepção das cozinhas racionalizadas, relacionava-se ainda à transferência de alguns serviços domésticos para equipamentos coletivos (lavanderias, cozinhas, escolas, creches), localizados nos próprios conjuntos habitacionais ou em áreas próximas.

LEGENDA: As habitações mínimas (Existenzminimum) discutidas no CIAM II (Fonte: Benevolo: 1994, p. 497)

Os Siedlungen berlinenses são, portanto, uma crítica ao modo de morar predominante nas últimas trinta décadas do século XIX. Sua realização foi possível, na Alemanha, devido à consolidação econômica, por volta da metade dos anos 1920, pela emergência de uma nova geração de arquitetos (coordenados por Martin Wagner e por Bruno Taut), e pelo programa estatal que, durante a República de Weimar, construiu mais de 140.000 unidades de moradia. A fabricação padronizada e em série permitiu construções rápidas e econômicas, e esta arquitetura foi marcada por formas simples, adoção de cores vivas nas fachadas e concepção de espaços convidativos e funcionais. Os arquitetos, influenciados não apenas pela concepção de cidade-jardim, mas pela racionalização e organização construtiva modernas, bem como pelas inovadoras maneiras de financiamento da construção de habitações sociais possibilitadas pelo estado alemão, projetaram unidades habitacionais significativas não apenas por sua qualidade arquitetônica, mas também por seu valor como ação social e econômica. Licht, Luft und Sonne (luz, ar e sol) eram a meta para as novas moradias. Distanciando-se da casa característica do final do século XIX e início do século XX, com suas insatisfatórias condições de habitabilidade (falta de higiene, escassez de área, ausência de iluminação, ventilação e verde), as novas construções buscavam aproximar o morador da natureza.

Outro aspecto priorizado na concepção da casa moderna foi a redução dos custos construtivos, possibilitada pela racionalização da obra e pela produção em série dos elementos de construção. A taylorização fabril foi transposta para o ambiente doméstico tanto na execução das obras, como na utilização dos espaços (especialmente nas cozinhas).

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A fim de atender o programa, ou seja, de realizar o plano e efetivar as mudanças de uso previstas, as ações envolviam os projetos arquitetônicos e urbanísticos, sua comunicabilidade e a construção de novos hábitos, valores e comportamentos. A arquitetura, ao comunicar o modo de morar planejado aos usuários, constitui-se como um instrumento de ensino, controle e disciplinamento dos moradores.

As soluções de visualidade adotadas (como as formas simples e a limpeza de ornamentos), bem como os estudos em busca da unidade mínima habitacional (Existenzminimum), também contribuíram para o barateamento das construções. A padronização atinge ainda os espaços internos e o mobiliário que, assim como as fachadas, deveria ser desprovido de elementos supérfluos e não funcionais. Esta economia, racionalidade e ausência de ornamentos dos objetos relacionavase com a redução na área dos ambientes, que respondia aos questionamentos do Existenzminimum e à facilidade de manutenção e conservação dos espaços domésticos. Ao mesmo tempo, significava uma tentativa de padronizar o gosto e minimizar as interferências do morador nos ambientes da casa, substituindo objetos pessoais por utensílios e peças de mobiliário funcionais e práticas. Deste modo, ações externas pretendiam influenciar não apenas aspectos entendidos como essenciais (a higiene e a moral), mas também a autonomia do morador na composição do cenário de seus espaços privados.

O morar se constitui, portanto, como valor cultural fortemente apoiado em um repertório comunicado de inúmeras maneiras, sendo a arquitetura apenas uma delas. Outras ações foram desenvolvidas, no âmbito do projeto moderno, para consolidar mudanças no modo de pensar e viver a casa. Outros suportes (além da própria arquitetura) foram transformados em meios comunicativos, a fim de influenciar a apropriação dos espaços, direcionando-a rumo ao programa. A cidade, no entanto, é o lugar da contaminação de mão dupla – ou de múltiplas direções. Seja qual for o programa investigado e seus valores associados, o cotidiano surpreende, improvisa. O habitar sempre em curso retorce o morar e se estende em tempos e espaços vividos, sai de casa e ganha as ruas, marcado pela provisoriedade de suas significações. O elemento definidor de um programa, ou seja, sua necessidade de planejar, ordenar, organizar, classificar, ensinar, domesticar etc., não resiste sem fraturas à apropriação diária e envolvente daquele que se utiliza de um espaço e o transforma em espacialidade. Ao habitar o morar, perturba-se o programa, inventa-se contínua e cotidianamente novas cidades e, seja na Alemanha ou no Brasil, cala-se e se faz falar (d)aquilo que, naquele momento, efetivamente importa.

[TESE_IMG 1_esquema.jpg] LEGENDA: Planta do andar tipo, área comum e bloco comercial do conjunto Japurá (São Paulo), com esquema de utilização dos espaços (Fonte: Bonduki: 2011, p. 199)

Verifica-se, assim, que o espaço programado do morar concebido pelos modernos e viabilizado por novos materiais e técnicas construtivas configurar-se-ia como:

“o lugar ideal para um lar regrado, higienizado, cômodo e aprazível de uma família saudável, pacificada, moralizada e obreira”

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programa.

Caminhos definidos pelo programa arquitetônico do Niemeyer Haus, em Berlim (acervo autora)

(CORREIA: 2004, p. 57)

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DRO P

“THE WORLD THROUGH MY EYES”

[Niemeyer-caminhos vividos.jpg] Dissolução temporária do programa e invenção de novos caminhos pela vivência do lugar no Niemeyer Haus, Berlim (acervo autora)

Referências bibliográficas o BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1994; o BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. 6. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. o COLQUHOUN, Alan. Modern Architecture. Oxford: Oxford University Press, 2002. o FERRARA, Lucrécia D´Alessio. Os significados urbanos. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2000. o _________. Design em espaços. São Paulo: Edições Rosari, 2002. o HOFFMANN-AXTHELM, Dieter. Das Berliner Stadthaus: Geschichte und Typologie, 1200 bis 2010. Berlin: DOM Publishers, 2011. o PICCINI, Andrea. Cortiços na cidade: conceito e preconceito na reestruturação do centro urbano de São Paulo. São Paulo: Annablume, 1999. --------------

George Redhawk transforma fotografias e arte digital em danças hipnotizantes. O mais incrível é que Redhawk é cego e por isso sua coleção de obras é intitulada como "O Mundo Através dos Meus Olhos”. Com a ajuda de programas de computador e auxiliares visuais, ele começou a explorar o reino da manipulação de fotos, criando animações misteriosas que apresentam uma ampla gama de temas, com o desejo de mostrar ao mundo que ele realmente vê através de sua visão danificada.

1 Arquiteta e Urbanista (UFC, 2000), Bacharel em Filosofia (UECE, 2004), Mestre (2009) e Doutora em Comunicação e Semiótica (2014) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP. Pesquisadora do grupo de pesquisa Espaço-Visualidade/Comunicação-Cultura (ESPACC) desde 2008.

por Yasmin de Angelis

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ENTREVISTA COM

PAULO MASELLA

Professor de Filosofia do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Paraná - Campus Palmas. Pós-doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisador integrante do grupo ESPACC da PUC-SP (registrado no diretório de grupos de pesquisa do CNPq). Parecerista FAPESP. Bolsista CNPq (doutorado e mestrado). Doutor e mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Graduação (incompleta) em Arquitetura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisador integrante do ESPACC do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP (CNPq).

O que isso significa? Que a justiça que se exerce é cristã em seus princípios? (Antes o fosse). Que os cristãos gozam de foro privilegiado diante das leis? Não penso que isso seja apenas um hábito ingênuo e inofensivo, mas uma forma ostensiva de marcar território e exercer uma vigilância contínua sobre os corpos. Nessas condições, o crucifixo assume então as feições de uma espécie de panóptico transcendental. O surpreendente nestes gestos é que um banco, que não presta serviço que não vise o lucro, possa ostentar um símbolo que historicamente esteve associado à censura à usura, assim como o Estado, consubstancialização de um desejo mercantil e burguês, estruture-se – ainda que simbolicamente – em acordo com uma ideologia à qual teve que combater – ainda que realizando inúmeras concessões – para fazer-se reconhecido.

PROF DR. PAULO ROBERTO MASELLA LOPES

Nosso entrevistado é o filósofo, professor e pesquisador Paulo Masella que fala sobre a experiência do desencanto no mundo contemporâneo; da remagificação do conservadorismo religioso que contamina a política; da moral capitalista e dos espaços de resistência e do biopoder que constroem as novas relações de forças entre os indivíduos e a sociedade.

Se pensarmos que só é possível capturar o real pelo seu avesso. Qual seria o avesso do desencanto no mundo contemporâneo? Se a pergunta remete ao pensamento de Max Weber, eu diria que não houve desencanto algum, ao menos, no Brasil que, assim como os Estados Unidos, possui um forte viés de moral conservadora. E aqui estou contrapondo o conservadorismo ao suposto progresso e emancipação que a ciência traria com sua perspectiva emancipadora. Ou seja, não incluiria necessariamente outros países latino-americanos mais periféricos neste contexto por não vislumbrar essa tensão, pois penso que essa questão de desencanto do mundo apenas possa ser plenamente entendida dentro do contexto europeu em que a razão efetivamente foi gestada e que a experiência da razão técnica foi efetivamente levada ao paroxismo. Uma esmagadora massa de pessoas alinha-se, consciente ou inconscientemente, com pressupostos religiosos, com formas encantadas de conceber o mundo. O cacoete dos jogadores de futebol, que fazem o sinal da cruz ao entrarem em campo ou que levantam os indicadores para o céu quando marcam um gol, é um sinal significativo dessa crença irracional de que deus está ao seu lado na vitória, assim como os antigos faziam sacríficos e pediam aos deuses que os guiassem e protegessem nas guerras. Por outro lado, empresas privadas de interesse público, como certos bancos, ostentam um crucifixo em suas paredes, assim como paira o mesmo símbolo cristão em instituições públicas como hospitais, escolas, na assembleia legislativa e – pasme-se – no superior tribunal federal.

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Sejam quais forem os motivos pelos quais essas instituições políticas e empresariais aderem a essa simbologia idiossincrática, o fato é que a eleição desses – e não outros – símbolos revela uma disposição de aliança com uma moral que se pretende universal, quando a única realidade que hoje pode requerer universalidade é a do capital. Isso nos leva a pensar num possível complexo de inferioridade da razão – mesmo que uma razão de Estado nos termos hegelianos – diante da fé religiosa. O Estado aparece apenas como um gestor da economia, um aparelho meramente burocrático cuja eficiência é a única virtude que se lhe cobra. Dentro deste contexto, a tecnologia aparece como neutra, como instrumento que alancava a economia, permanecendo isento de implicações sociais. Portanto, parece-me inquietante constatarmos que, no Brasil, jamais tenhamos superado um estado de encantamento, mas, sobretudo, sequer alcançado uma secularização dos costumes e do Estado. Ao contrário, assistimos com obscena parcimônia a uma progressiva ascensão do fundamentalismo religioso em praticamente todos os “aparelhos ideológicos do Estado”, permitindo-me utilizar, ainda que com restrições, essa categoria de Althuser. Por outro lado, muitos costumes permanecem laicizados mesmo entre aqueles que se alinham, por exemplo, às igrejas evangélicas. Talvez se possa inclusive denunciar uma contradição interna ao protestantismo quando este assume as feições de uma aderência praticamente incondicional ao consumismo desenfreado. Mas encontrar contradições entre discurso e prática não exige grandes esforços em uma época de cinismo e colapso da crítica. Sem dúvida, não há nenhuma novidade nesse diagnóstico se pensarmos que a Teoria Crítica não buscou outra coisa senão denunciar as estratégias nada emancipadoras de uma razão instrumental. Some-se a isso o mal-estar na civilização que Freud foi capaz de detectar por entender que os instintos sexuais estão em conflito com o mundo do trabalho, e temos um quadro desolador em que os modos de sublimação parecem preferir antes o consolo da ilusão metafísica do que a crueza da realidade científica, ainda que cambaleante. De todo modo, é tentador enxergar na ideia de “reencantamento” uma forma de erotização do mundo, ou ainda, um resgate do adormecido lado dionisíaco que Nietzsche tanto enaltecia na nobreza da Grécia Arcaica. Suspeito, contudo, que a ambição deva ser mais modesta, e o “reencantamento” – se essa expressão for apropriada – realize-se como uma forma de resistência ao conservadorismo religioso que contamina a política. Há, ainda, que se considerar que a moral capitalista opera como uma forma de encantamento tão ou mais universal que o religioso. No momento, dar-me-ia por satisfeito em conceber o “reencantamento” como um recobrar-se da “velha e desgastada” consciência crítica. Ou seja, penso – e espero – que o “desencantamento” esteja ainda por vir em terras brasileiras.

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AQUARELAS Artista Plástico, Designer de Interiores, Engenheiro Civil e Cinéfilo. Sócio proprietário da empresa Roberto Cimino & Arquitetos

por Roberto Cimino POÉTICA DAS SUPERFÍCIES A contemporaneidade nos faz celebrar a atualidade por meio da experiência de múltiplos espaços e tempos que se justapõem entre si. Esta multiplicidade coloca-nos diante de uma nova crise de representação na qual os objetos e ações humanas parecem esvaziadas de sentido. Como sugere Paul Klee “a arte não reproduz o visível, mas torna visível”. Agora, o nosso desafio parece ser outro: “como é possível tornar algo visível num horizonte marcado pela opacidade dos sentidos superexcitados pela imagem e os signos? Esta talvez seja a mais importante contribuição deste trabalho. A proposta da exposição é a de misturar as séries objetos figurativos e outras linhas e formas que têm como suporte a aquarela. Essa técnica milenar é responsável por aliar à simplicidade de certos materiais o rigor formal do procedimento pictórico. A série formada pelas formas figurativas como folhas e o tinteiro, por sua vez, desdobra-se em inúmeras perspectivas sobre o mesmo objeto. A decomposição destas figuras mostra-se como duplos daquela objeto referencial: folhas, tinteiro não são apenas elementos constitutivos de uma temática pictórica, mas, revelam-se como formas que que nos convidam a novos modos de ver e de captar um Outro. Aqui, a representação não é ato de produzir uma forma visível; mas é o ato de dar um equivalente ao seu objeto referencial. Na série de desenhos abstratos e experimentais, por sua vez, convocam um olhar mais atento às marcas e diferenças construídas entre linhas e traços grafados pelo artista que ora se utiliza de gestos sutis e outras ostensivos sobre o papel. Estamos diante de uma nova estratégia do olhar, já que o que se propõe é mudar os referenciais daquilo que é visível ou enunciável. Mostrar de outro jeito, revelar-se novamente. Tal série muda as coordenadas do representável; muda a nossa percepção do acontecimento sensível que enreda a narrativa da arte contemporânea. Enfim, estamos diante de um exerecicio que nos convida à (re)ver pelos “olhos da mente” ou da imaginação, como quer o poeta. Por Laura Fernanda Cimino

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BRINCANDO COM A LUZ

GIGANTES ESQUECIDOS Mili foi um dos precursores do light painting (ou “pintura com luz”), junto com Frank Gilbreth e Man Ray, que já haviam explorado a técnica em 1914 e 1935, respectivamente. Tudo começou quando, em 1940, colocou pequenas luzes nas botas de patinadores e deixou o obturador aberto. O resultado foi um ensaio que inspiraria ninguém menos que Pablo Picasso. Ao ser enviado ao sul da França para fotografá-lo, em 1949, mostrou-lhe as fotos e criou sua mais famosa série utilizando o recurso, Picasso’s Light Drawings (algo como “Os desenhos de luz de Picasso”). Imediatamente inspirado, o pintor espanhol pegou uma lanterna e fez desenhos no ar enquanto Mili fotografava. A mais famosa dessas imagens é Picasso Draws a Centaur (“Picasso Desenha um centauro”).

Durante quatro anos o fotógrafo Laurent Kronental documentou o cotidiano de um grupo de idosos que vive na região das Grands Ensembles, gigantescos conjuntos habitacionais, localizados em Seine-Saint-Denis, a leste de Paris. Nesse projeto, batizado de “Souvenir d’un Futur” (“Lembrança de um Futuro”), Kronental registrou a vida nessas construções futuristas e de proporções faraônicas, construídas entre as décadas de 1950 e 1980 para acomodar populações de imigrantes e, assim, evitar uma crise habitacional na região metropolitana da capital francesa.

Gjon Mili utilizou a fotografia estroboscópica, uma técnica que combina uma unidade de flash eletrônico com tempos de exposição prolongados para capturar diversos movimentos.

por Isabella Valino

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por Lucas Bandos

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ENTREVISTA COM

PAULO MASELLA

Do ponto de vista do espaço arquitetônico, como a filosofia pode ajudar a pensar nos processos de criação? No livro “Uma nova agenda para a arquitetura”, Kate Nesbitt organizou uma antologia com os mais emblemáticos textos produzidos para periódicos da área entre 1965 e 1995 em que se procura estabelecer uma relação entre diversas concepções filosóficas e a arquitetura como a fenomenologia, o pós-estruturalismo e mesmo a semiótica. Também aborda tópicos como feminismo, gênero, corpo e mídia eletrônica, e agendas éticas e políticas, além de discussões mais técnicas como tipologias, escolas e teorias urbanísticas.. Trata-se de um livro indispensável para se pensar nessa correlação de forças entre os espaços físico, social, corporal, espiritual, virtual e quaisquer outras adjetivações possíveis que se queira estabelecer com o espaço. Afinal, não podemos nos furtar à constatação de que o espaço sempre foi negligenciado pela filosofia em seu potencial epistemológico diante da supremacia que a história passou a usufruir principalmente depois de Hegel. Mesmo Kant, que o antecedeu, é subestimado quando coloca o espaço – ao lado do tempo – como categoria apriorística da sensibilidade, ou seja, como condição sem a qual não é possível perceber os objetos do mundo que, em si, são desprovidos de conteúdo. Entendo que Kant garantiu ao espaço uma dimensão epistemológica que só é reconhecida ao tempo pelo método histórico dialético. No entanto, penso que a empreitada de Kant vá muito além, pois concebe o tempo e o espaço antes como categorias que não se submetem a uma dimensão mensurável, atribuindo-lhe uma distinção que apenas Bergson, futuramente, iria conferir ao tempo como duração. Talvez se possa conjecturar que apenas Lótman iria posteriormente configurar o espaço com uma distinção semelhante – embora em registro mais complexo e atraente – ao estruturá-lo como uma dimensão semiótica através de seu conceito de semiosfera ou espaço semiótico. Uma instância imaterial que não se reduz à perspectiva cartesiana que, ao contrário, consagrou ao espaço uma dimensão mensurável (res extensa) em justa oposição à cognição, à coisa pensante (res cogitans).

A arquitetura nos envolve como a música, é visível como a pintura, é táctil como a escultura, é cinética como o cinema, mas acima de tudo é habitável. Embora Descartes utilize a cidade como metáfora fundamental na construção de seu método; Merleau-Ponty tenha se debruçado sobre uma fenomenologia das artes visuais; Deleuze sobre o cinema; foi Heidegger que soube como poucos captar o habitar como uma categoria filosófica de análise do ser. Sobre este aspecto, é interessante mencionar como contraponto o texto “Aprendendo com Las Vegas” que Venturi e Brown escreveram na década de 1970 sobre Las Vegas Strip como paradigma dos corredores comerciais que proliferam às margens das rodovias na paisagem estadounidense. Em Las Vegas, a arquitetura adquire um caráter bidimensional, servindo como suporte para outdoors luminosos, reconfigurando a percepção da cidade. Evidentemente, as chamadas “medianeras” (título inclusive de um filme argentino que discorre sobre o vazio da cidade na era digital), ou seja, as faces cegas dos edifícios, também desempenham essa função comunicativa e comercial em outras cidades como São Paulo. No entanto, a peculiaridade da observação de Venturi e Brown é que, a strip, por se configurar em um corredor percorrido pelos veículos em movimento, cria uma sucessão de imagens que remete à ilusão mecanicista do cinema, com a diferença que o que se move é o observador e não a câmera. A arquitetura de Las Vegas Strip torna-se então mais um exercício de semiótica visual do que uma metáfora da cabana que nos protege. Hoje, eu diria que minhas preocupações movem-se na direção da “lógica do condomínio” (Dunker) como um modelo de forma de habitar exclusivo, que reflete uma sociedade que nega a dimensão grega da polis como lugar da agonística, da interação, e suspende, com seus muros, as relações espaciais de proximidade. Nessa lógica, a alteridade é regulada por um conjunto de normas disciplinares que visam unicamente gerir os conflitos e as diferenças. Nestes termos, a arquitetura assume as feições de uma materialização espacial da norma jurídica, ou melhor, de um positivismo jurídico. Aqui temos um modelo de configuração espacial, arquitetônica e urbana, que se traduz também num modelo epistemológico para se pensar a realidade. Na medida em que optamos por uma vida em condomínio, de certa forma assumimos que o estrangeiro, o outro, é nosso inimigo. E a arquitetura adquire as formas de normatização desse outro e de si própria.

Neste sentido, é instigante pensar a arquitetura para além do paradigma de um espaço mensurável e tridimensional, atribuindo-lhe uma dimensão semiótica. A quais afecções estamos sujeitos diante das formas de habitar? Esta me parece ser uma pergunta indispensável que deva ser dirigida à arquitetura, no entanto, obliteramos com frequência a dimensão estética para antes classificá-la e julgá-la. É verdade que tal raciocínio é aplicável a qualquer forma de arte ou mesmo objeto, porém a arquitetura é possivelmente a forma mais arcaica, mas também mais presente de arte em nosso cotidiano, não se confinando a museus ou mesmo a determinados suportes que a constituem.

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O HOMEM DE MALA E NUVEM por Maria Júlia B. Eichemberg

Sua casa pegou fogo. Só chegou a tempo de ver as cinzas amontoadas, não sobrou nada, apenas o que carregava em sua mochila e sua bicicleta amarela. Ficou ali por alguns dias observando o vento levar as sobras de sua vida que já não eram muitas. Voaram seus sapatos, suas memórias, sua vitrola, um vaso de renda portuguesa, dois livros velhos, suas fotografias e uma caixa onde guardava as lembranças mais perfeitas de sua infância: uma coleção de figurinhas, algumas conchas que pegou na primeira vez que viu o mar, um relógio que ganhou de seu avô e alguns bilhetes onde anotava seus desejos de aniversário. Nesse período, ele sentia seu coração esvaziar, devagar foi perdendo seus sentimentos: um pouco de mágoa, outro tanto de amor, alguns litros de tristeza, outros de saudade, algumas gotas de felicidade e um caminhão de solidão. Depois que esvaziou por completo, subiu em sua bicicleta, acoplou a mochila nas costas e saiu sem olhar para trás. Andarilhava sem destino certo, e quando se cansava, parava para contemplar. A primeira parada foi a mais difícil, pois o vazio que habitava dentro dele era grande demais e oco demais, e por isso também fácil de ser preenchido. Nessa primeira vez, a paisagem toda invadiu seu corpo: um céu alaranjado, algumas árvores centenárias, um casebre de madeira, um cão velho e uma placa de rua sem saída. Tudo isso começava a se organizar dentro dele. Cada vez que ele contemplava uma paisagem, as coisas penetravam pelos seus olhos. Raras vezes encontrava pessoas em suas paradas. Todos esses encontros eram mudos. O primeiro foi com um homem que, cego de um olho, enxergava o mundo sem profundidade. O homem-pirata foi o primeiro a compreender o seu vazio, deu-lhe de presente um olho de vidro em troca de seu Ray-ban estilo Bob Dylan. Uma esfera perfeita e translúcida que refletia o inverso do mundo. Ele não havia percebido ainda, mas o pirata lhe presenteara com a profundidade dos afetos. Na primeira parada depois do encontro, ele percebeu que não era mais a paisagem, imagem de superfície, que o penetrava mas sim os afetos. O vazio se enchia agora de afetos invisíveis e a cada vez que parava para encher-se do mundo, era inundado por aquilo que move as coisas - da pedra, a imobilidade; da água, a liquidez; do vento, o sopro; da chuva, a vertigem; do muro, o limite; da rua, o trânsito; do pássaro, o vôo. Dentro dele nascia então um mundo feito de coisas conectadas por afetos. Um segundo encontro aconteceu. Numa manhã de inverno, sua sombra sobre a bicicleta topou na esquina com uma sombra que carregava uma mala. Não conseguiu conter sua curiosidade e propôs um acordo, trocou sua mochila pela mala. Sentou-se no meio-fio, e abriu os fechos enferrujados: um guarda-chuva, um chapéu, algumas paçoquinhas, três cartas de amor bem caligrafadas e uma lupa. Vestiu o chapéu, pendurou a lupa no pescoço como um talismã e amarrou a mala na garupa. Ele não sabia, mas a

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sombra havia lhe dado de presente a intimidade. A partir desse dia, cada vez que parava para contemplar, saltava da bicicleta e andava durante horas, como se procurasse tesouros enterrados. Sempre que sua sombra tocava em alguma superfície, ele se aproximava, vestia um olho com a lupa e percorria milimetricamente cada centímetro das coisas. Via a matéria vibrar. Era estranho, pois quando a matéria das coisas inundava seus olhos, seu corpo tornava-se o mundo. Imobilizou-se-pedra, escorreu-se-rio, evaporou-se-água, resvalou-se-chuva, adormeceu-se-montanha, soprou-se-vento. E o vazio ia se preenchendo de paisagem, afeto e matéria. Foi então, que, sob o céu baunilha do entardecer, encontrou aquela senhora que varria as folhas da calçada, ela o convidou para entrar. Tomou um chá, comeu um quindim e vasculhou sua casa com a lupa. Foi lá que viu-sentiu-tornou-se a poeira dos anos, que se acumula entre as coisas preenchidas de memória. Adormeceu no sofá por dias e noites a fio. Seu corpo estava cansado de ser mundo. Quando acordou para partir, foi até o quintal onde se encontrava a velha senhora que cuidava do seu jardim de nuvens. Haviam muitas, de todas as espécies e tamanhos, vindas de várias partes do mundo e precisamente catalogadas com etiquetas coloridas. Propôs uma troca, deixou com ela, sua bicicleta, as cartas de amor, o guarda-chuva - já que agora não precisaria mais dele - e as paçoquinhas que haviam restado. Levou uma nuvem, a única de origem desconhecida e sem etiqueta. Era branca e densa. Saiu de lá a pé, carregando numa mão, sua mala com o olho de vidro e a lupa, e na outra, a nuvem não identificada. Cansado do peso de tornar-se mundo, tornou-se nuvem. A partir desse dia, sua sombra nunca mais tocou o chão, ele flutuava sobre as coisas, arrastado pela nuvenzinha. Quando queria estacionar em algum lugar pedia para a nuvenzinha chover, mas ela sempre chovia sobre seus olhos, então toda vez que parava para contemplar, chorava a paisagem-afeto-matéria em gotas cintilantes que evaporavam logo que iniciavam sua queda. Foi assim que o conheci. Estava sentada na calçada escrevendo um livro e ele resolveu estacionar do meu lado. Foi um encontro mudo. Mas quando fitei os seus olhos que choravam nuvem, vi-senti-tornei-me mundo por um segundo e troquei meu livro pela sua estória.

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ENTREVISTA COM

PAULO MASELLA

Em que medida você acredita que o espaço urbano pode agenciar micropolíticas de resistência e de afirmação das diferenças no cotidiano dos cidadãos? Não penso que o espaço virtual das redes sociais possa suprir o espaço urbano, nem ser desconsiderado como complementar nesse processo de resistência. Por outro lado, a recíproca também é verdadeira, pois ambos os espaços constituem-se em espaços de repressão e intolerância. De certa forma, o espaço virtual é estruturalmente muito semelhante ao urbano com seus pontos de condensação, seus becos, seus antros, suas rotas de fuga, suas redundâncias, suas possibilidades de encontro e de desencontro. Às vezes, a resposta pode ser simples. Arrisco-me a dizer que a diferença entre o espaço virtual e o urbano é a constatação da ausência ou da presença da materialidade dos corpos. E quando me refiro à materialidade dos corpos não suponho que o espírito possa ser desvinculado do corpo. Como Spinoza, prefiro supor uma inseparabilidade entre mente e corpo, ou melhor, o corpo como essa unidade, de modo que não possa deixar de conceber que o corpo esteja presente nas redes sociais, sendo afetado constantemente pelas palavras e imagens que por lá circulam. No entanto, a espaciotemporalidade de ambos opera em registros totalmente distintos de modo que não se possa propor qualquer equivalência possível neste sentido. O corpo presente nas redes sociais é igualmente sensível, no entanto, é desprovido dos mesmos regimes de espaciotemporalidade que o espaço urbano proporciona, além de se encontrar – por enquanto – improdutivo em seu aspecto táctil, olfativo e gustativo. A materialidade do corpo no espaço urbano certamente produz ações e vulnerabilidades muito próprias. É um corpo que pode ser encarcerado, mutilado. É carne. Neste sentido, é um corpo com uma especificidade inalienável. Isso significa que expor esse corpo implica sujeitá-lo aos afetos de um modo radical, integral. Na medida em que esse corpo está presente em toda sua potencialidade, sua resistência é recíproca ao conjunto de forças sobre as quais age ou simplesmente reage. Então, os negros são capturados na medida da saturação da cor de sua pele, enquanto os gays no grau de indiscrição de seus gestos e condutas, e assim a cada ordem infringida corresponde uma força repressora. Nessa medida é que o espaço público ainda é o espaço privilegiado da agonística e do embate político, porque se encontra ainda integral, como carne.

Como pensar a educação como forma de reencantamento do mundo?

Não sei exatamente que valor atribuir ao encantamento. Não posso entender esse “reencantamento” senão como metáfora da metáfora, pois nem a magia, nem a religião, parecem ser um caminho para aqueles que não almejam praticar cultos divinatórios e queiram julgar e culpar a vida, ansiando por algum tipo de ideal ascético. Talvez nem mesmo como metáfora caiba propor um reencantamento do mundo, pois o desencantamento não é resultado das ciências e das tecnologias que sequer conseguiram atingir tal objetivo. Ao contrário, o máximo que ciência e tecnologia conseguiram foi perpetuar esse encantamento, substituindo o mundo transcende pelo materialismo positivista. Magos, sacerdotes e doutores se equivalem quando se trata de curar feridas narcísicas. Assim, eu inverteria a proposição inicial: o problema é que nem Freud conseguiu desencantar o mundo. É sobre isso que deveríamos depositar nossa atenção e perplexidade. Ainda nos ancoramos em deuses e falsos ídolos para justificar a miséria existencial, esquivando-nos de assumir nosso estado de desamparo, oscilando entre o medo e a vã esperança de que algo exterior possa nos resgatar e aliviar a dor.

Nem a tradição filosófica, calcada na busca da verdade e de sistemas explicativos racionais, nem os estruturalismos, nem as teorias críticas, nem as filosofias da linguagem, nem as semióticas, conseguiram alcançar qualquer resultado prático de afastar o preconceito, emancipar, ou libertar os sujeitos dos dispositivos disciplinares e das estratégias de controle. Diante de qualquer sinal de câncer, de qualquer fatalidade, de qualquer suposta tragédia, de qualquer crise econômica, apelamos ainda a deus ou ao fascismo, ou aos dois. Neste sentido, entendo que a educação tem sistematicamente falhado. Seja porque é indecisa quanto assumir sua forma cínica de adestramento ou emancipação, seja porque se encontra submissa aos interesses de um Estado que, por sua vez, é submisso aos interesses do mercado e refém de instituições religiosas.

Penso, contudo, que o maior problema seja a visão extremamente instrumental e funcionalista que se tem da educação. É apenas um modo de acesso ao mercado. Não por outro motivo assistimos ao crescimento da chamada indústria do diploma. Temos cada vez mais doutores com pouca qualificação e sem nenhuma oportunidade de inserção no mercado acadêmico. Em minha experiência docente, percebo, por exemplo, que o interesse dos alunos está diretamente ligado à perspectiva de ingresso na faculdade e/ou no mercado de trabalho. E, por parte dos professores, a busca por maior qualificação quase sempre não visa outra coisa senão a perspectiva de melhor remuneração.

A meu ver, a criação dos institutos federais, apesar de manter parte dos mesmos problemas estruturais acima mencionados, possui o mérito de buscar corrigir a distorção de um ensino que apenas reproduz a divisão aristotélica entre ciências produtivas, práticas e teoréticas que implica hierarquização social do trabalho. O objetivo seria então formar cidadãos com uma formação humanística em todos os estratos sociais. O reencantamento do mundo pela educação passaria, portanto, por uma visão holística e não apenas instrumental do conhecimento.

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DRO P

CASA PROJETADA POR RINO LEVI É ABERTA AO PÚBLICO

Construída no final da década de 1950, no bairro paulistano dos Jardins, a Residência Castor foi projetada por Rino Levi e é adornada pelo paisagismo de Roberto Burle Marx. Desde o último mês de abril, a casa passou a sediar o novo espaço expositivo da Luciana Brito Galeria.

Cíntia Yuri Eto É graduada em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP, 2005. Atualmente cursa bacharelado em Letras e Português e Inglês pela FFCHL/ USP. É artista plástica e designer atuando nas áreas de design gráfico, produção gráfica, fotografia, performance, ilustração, desenho, pintura e gravura. Foi bolsista do Programa Aprender com Cultura e Extensão (2013) onde realizou a pesquisa sobre a companhia de teatro norte-americana “Bread & Puppet”, grupo alternativo e político, fundado na década de 1930, na costa leste dos Estados Unidos.

O imóvel foi aberto ao público com a inauguração da mostra coletiva “Residência Moderna”, que exibe trabalhos de artistas convidados para acompanhar a revitalização da casa e, a partir dessa experiência, desenvolver obras e intervenções que dialogassem não só com aquele espaço, mas também com o próprio imaginário do arquiteto que o concebeu. Um olhar à espreita parece ser o convite feito pela artista plástica e designer, Cíntia Eto, ao capturar nossa visão para um mergulho no universo das suas ilustrações. Por meio de um traço que percorre diferentes velocidades do espaço gráfico, as ilustrações abrem-se ao espectador por meio de múltiplas sensações e devires: um devir-mulher fonte da Vida, outro devir-menina que vai inscrevendo seu corpo numa espécie de poema-mundo. Ao contrário daquelas narrativas que põem em cena personagens emblemáticos, as ilustrações da artista, convocam outros sentidos em meio a problematização dos nossos desejos.

por Lucas Bandos

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por Laura Fernanda Cimino

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DJ Me, por Cíntia Eto

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Ciclope, por Cíntia Eto

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Reia, por CĂ­ntia Eto

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Nascida da Escuma, por Cíntia Eto

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San Pedro, por Cíntia Eto

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Astros do Abismo, por CĂ­ntia Eto

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Psilocybe, por CĂ­ntia Eto

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HÉLIO LEITES: o anarquiteto de um sonho por Isabella Vallino T. de Bessa

Os objetos criam uma metalinguagem, ou seja, eles dizem por si só e transmitem a ideia do artista sem que o mesmo faça esforço para expressar sua delicadeza. Esse universo tão particular criado pelo artista paranaense Hélio Leites é uma das poucas coisas que já vimos de tão criativo, ele utiliza materiais que até então para nós seria insignificante e que para ele são pequenas grandezas. Suas proporções agregam novas significâncias, as miudezas com as quais ele trabalha dão um gole de vida e criam lugares, pessoas e encantos. Palco de histórias ele faz dos objetos sua vida. Feirante, ele faz da bancada um laboratório de experiências intersubjetivas. Com botões, bonés, sapatos, conta-gotas ele dá potencia ao inexistente. Foi descrito e escrito por Leminsky como “um significador de insignificâncias”. Ele nos ensina a aprender a aprender. Hélio tem amor no que faz e quando passa o chapéu volta para casa cheio de amizades. Tudo que dá obra a seu trabalho é provido de alguma história tanto estética, quanto memorial. Esses objetos já exerceram suas utilidades e agora passam a serem poemas existentes.

Oferenda Pra Iemanjá homenagear Flores e velas Iluminam a beira-mar

Documentar o cotidiano para o artista é transpor possibilidades em arte. Caixa de fósforos num carrossel, sapatinho em bailarina que dança no céu, palito de sorvete em arara, um museu para o botão. Vê-se o grande no pequeno, as dimensões inexistem, o limiar do absurdo é um novo mundo. Um pequeno-grande-mundo.

Margot - Cansada de dançar seu papel, ela foi quebrar nozes no céu

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Feliz Aniversário É no bolo que se ascende Só pra comemorar O primeiro fogo na vida Pra criança apagar

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DRO P

KENGO KUMA APRESENTA A JAPAN HOUSE BRASIL

GEOGRAFIA DOS AFETOS: UM DESENHO SOBRE AVÓS O premiado arquiteto japonês Kengo Kuma esteve em São Paulo no último mês de fevereiro para apresentar seu primeiro projeto desenvolvido no Brasil, a Japan House, já em construção na altura do número 52 da Avenida Paulista. Com conclusão prevista para março de 2017, a obra faz parte de uma iniciativa do governo do Japão, que elegeu três metrópoles ao redor do globo para sediar centros multiuso, voltados para a divulgação da cultura nipônica. Além de São Paulo, foram escolhidas as cidades de Londres e Los Angeles.

por Isabella Valino T. de Bessa

Este estudo tem por objetivo investigar e propor relações de como o espaço urbano comunica a cultura de um lugar, e se o mesmo, quando habitado por um corpo, torna-se laboratório de experiências intersubjetivas. Para tanto propõe-se uma análise das casas interioranas, ou “Casas de Vó”, que ao contrário do espetáculo que é fruto do mundo movido pelas aparências e consumo, é sobretudo meio comunicativo pois produz uma relação de pertencimento ao lugar baseado nas vivências e nos afetos que foram e estão presentes, e de como elas são paradoxais em relação a sua composição, pois ao mesmo tempo que são carregadas de memória, o passado e o presente conversam o tempo todo gerando um espaço de fluxo continuo de percepções e informações. As questões situadas no presente estudo são: Como o espaço urbano comunica a cultura de um lugar? É possível propor uma cartografia sentimental para entender o corpo vibrátil existente nas casas de vó? A base do estudo é desenvolvida por meio de uma pesquisa experimental, para isso, é discutido o tema em dois livros, sendo eles; o primeiro, intitulado de “Livro das Coisas” e o segundo “Livro das Pessoas”. Neste primeiro livro são encontrados os processos, conceitos e vivências experienciadas por Avós - como método foi usado a coleta de dados através de fotos engavetadas, a busca por objetos que remetem a lembrança dessas casinhas e o início da cartografia sentimental como possível capacidade de interpretação e produção de métodos de linguagem. No segundo livro estão presentes as 24 estórias que foram desenvolvidas para entender o decorrer da vida de cada senhora e seus possíveis territórios, buscando caminhos, formas, e procedimentos para atingir um determinado desenho.

por Lucas Bandos

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Casa Disco Girassóis dançam uma música que nunca acaba

Jurema

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Isabella Valino Teixeira de Bessa 2016 Profa. Ma. Mária Júlia Barbieri Eichemberg


ENTREVISTA COM

PAULO MASELLA

Na modernidade líquida, onde os contatos e os vínculos são de natureza efêmera e transitória, qual é o papel da ética, da estética e da política? Penso que essa pergunta – como quaisquer outras – implique diversas possibilidades de abordagem, de aproximações. Como sempre, embora seja muito simpático à noção de episteme de Foucault, tenho receio dos universais. Um modo que agora me ocorre de abordar essa questão é na forma de novas problematizações. Será que é possível afirmar que a transitoriedade dos contatos ou mesmo vínculos está mesmo atrelada a uma modernidade líquida? Até porque, eu vejo “por trás” dessa pergunta um valor moral, um julgamento, um traço condenatório, implícito. Não seria mais oportuno, na tentativa de responder a essa pergunta, indagarmo-nos sobre a “natureza sólida” das relações da modernidade não líquida? Em que bases epistêmicas essa solidez se constituiu? Qual a ontologia, a genealogia moral dessa solidez? As bases desses relacionamentos sólidos de outrora não estariam legitimadas unicamente na forma do contrato? Não só das normas, mas também das leis que interditaram a liquidez constituinte de uma suposta natureza dos relacionamentos? Digo “suposta”, porque é sempre temeroso afirmar categoricamente uma “natureza” dos relacionamentos. Afinal, dizer “natureza” implica admitir universais e, portanto, desconsiderar a própria transitoriedade das epistemes. Pensemos nos relacionamentos afetivos. Pensemos no amor. Seria a durabilidade, a permanência, uma prova válida, uma evidência, de sua verdade? Não seriam os grandes amores, aqueles que, aliás, o romantismo configurou como o paradigma do amor, justamente fadados ao fracasso? Penso que o caráter resistente do amor seja sua permanente impossibilidade de consumação absoluta. Trata-se do aspecto trágico da impossibilidade de atingir o outro, de abandonar a condição de si para se colocar na do outro. Uma dissolução do ego. Fora disso, o amor talvez se resuma a um contrato, a uma função que atende expectativas basicamente sociais, ou mais exatamente, jurídicas. Funções reprodutivas, funções domésticas, econômicas. Funções do Estado. O amor, nessas condições, torna-se burocrático. Não é senão nesta perspectiva que a monogamia e a heterossexualidade sejam moralmente desejáveis e que o amor homossexual constitua-se no maior tabu histórico, inclusive maior que o incesto.

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Por outro lado, não se pode confundir a liquidez com a transitoriedade das relações. O índice de impossibilidade do amor não se confunde e não coincide com sua margem de improbabilidade. A impossibilidade atribui ao amor um estatuto ontológico, um encantamento, um mistério, uma eterna busca por um terceiro, síntese inacabada da fusão de si na imagem do outro, um jogo de espelhos, um buraco negro, enquanto a improbabilidade é uma variável estatística que atende normas sociais, regras de linguagem. As normas e as leis servem para dirigir e adestrar os corpos para que a improbabilidade seja reduzida, para que o relacionamento seja viável, estável. Já a impossibilidade traz em si a marca de um fracasso anunciado, mas justamente por isso é transgressor, é revolucionário, é trágico, porque não se satisfaz com as regras que lhe são impostas. Busca burlar o destino, jogar xadrez com a morte.

Inegavelmente, qualquer forma de amor é uma construção, mas o amor que não acaba, o amor que dura – mas não enquanto chama – é aquele que não segue regras, é aquele que justamente a sociedade invariavelmente o confina como patológico.

Novamente aqui, é preciso reiterar que esse amor – patológico? – não se confunde com o signo do transitório como manifestação de um fenômeno mercadológico. O que me parece haver é um erro de diagnóstico. A transitoriedade indica uma ausência, ou melhor, um deslocamento que implica quebra das normas, de paradigmas. E, sobre esse aspecto, parece-me que seja positivo, pois liberta o corpo do hábito. Por outro lado, a transitoriedade permite a cooptação pelas forças voláteis do capital, transformando o outro em mercadoria, em produto de prateleira. “A fila tem que andar”; “estragou, é melhor procurar outro, porque não há como consertar”, são máximas que apenas reproduzem a lógica de mercado como a da obsolescência programada. Ou seja, uma coisa é a liquidez como signo capitalista, outra é como uma característica da physis grega, nos moldes que Heráclito propôs.

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ROCHELLE ZANDAVALLI e a busca pelo passado dos desconhecidos por Isabella Valino T. de Bessa

Rochele Zandavalli é uma artista visual que borda fotografias de pessoas das quais ela não conhece para propor uma criação afetiva perdida no tempo. A condição é que as pessoas retratadas não sejam identificadas, para ela interessa apenas receber a imagem através de doações despidas de memórias, ou com antigas anotações, manchas, rasgos no verso do papel de foto. A marca do tempo é peça fundamental para a artista. Retratos ressignificados é nome que dá luz ao trabalho com bordado em fotografias, quando as intitula dessa forma, compreendemos que ela busca uma significação, aquilo que hoje já não faz mais sentido. Ocorre uma Apropriação de um passado até então inexistente para a artista. A materialidade do artefato fotográfico enfraqueceu-se com o tempo abrindo portas ao digital, entretanto Rochele vai contra o tempo e procura encontrar afetos nas partículas fotográficas, modificando-as e tornando-as mais singulares do que são através de costuras e desenhos.

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CASA NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO VENCE PRÊMIO INTERNACIONAL DE ARQUITETURA

ENSAIOS ENTRE O CORPO E O ESPAÇO por Yasmin B. de Angelis

O objetivo deste projeto é o de analisar como o tempo influencia o espaço e a relação que é criada intrinsicamente com corpo quando o mesmo o habita. Para tanto, essa relação só é possível quando entendemos do que o corpo é capaz.

Erguida em seis meses e com um investimento de apenas R$ 150 mil, a residência da diarista Dalvina Borges Ramos ganhou recentemente o Building of the Year Awards 2016, na categoria "Casas". A

premiação, organizada pelo site ArchDaily, elege anualmente, entre milhares de projetos, as 14 melhores construções do mundo. Localizada no bairro de Vila Matilde, na zona leste da cidade de São Paulo, a casa de Dona Dalva foi projetada em 2014 pelo escritório Terra e Tuma Arquitetos Associados.

Este trabalho investiga a possibilidade de ver uma arquitetura nascer dos afetos através das experiências do usuário, sendo assim capaz de apurar as múltiplas dimensões e possibilidades de como o corpo pode habitar um espaço. Para tanto, houve uma busca empírica relatada por meio de folhas de papel soltas no espaço, a fim de compreender como o tempo foi capaz de afetá-las através do corpo. Nesse sentido, partimos da hipótese de que é plausível propor ao corpo experimentações através do espaço não habitado, ou seja, através do espaço ainda não lugarizado por algo ou alguém e como isso é capaz de modificá-lo e ser modificado ao mesmo tempo.

por Lucas Bandos

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É preciso então entender como acontece essa relação de corpo e espaço; o que é um corpo habitando um espaço e o que isso implica. Essa dialogicidade entre corpo-espaço acontece de uma maneira empírica, ou seja, são passagens que se sustentam em experiências vividas, na observação das coisas, na visibilidade; quando há percepção do espaço vivenciado espontaneamente, constrói-se um sentido, ou seja, percebe-se pela potência das coisas e não pela coisa. Para que exista essa herança afetiva, o geógrafo Milton Santos cita que é preciso lugarizar o espaço, entende-se que é preciso apropriar-se dele, dar sentido. Existe uma contradição de forças entre espaço e lugar; o espaço conta uma história quando se lugariza, é uma ideia que só produz sentido quando o corpo o habita e conecta-se com afetos e percepções (experiência); espaço é um lugar praticado.


Devir Vento

Devir Mofo

módulo

detalhamento

detalhamento

A

maquete eletrônica

maquete eletrônica

B

A

0,85 0,68 0,51 0,34 0,17 0,00

A planta

B

planta

B

B

módulo

0,85

0,85

A

0,00

corte bb 0,00

corte aa

corte aa corte bb

0

1

2

3

4

5

10

15 0

Escala gráfica | 1:200

yasmin brigato de angelis | maria júlia barbieri eichemberg | devir mofo

10

20

40

60

80

Escala gráfica | 1:750

yasmin brigato de angelis | maria júlia barbieri eichemberg | devir vento

100

120


Devir Gato

Devir Água

afetores acessos água

afetores passarelas

buracos

caminhos externos acessos

afetores passarela

maquete eletrônica

A

A

detalhamento

detalhamento

maquete eletrônica

B

7,12m 10.00

B

A

planta

1,30m

B

A

12,27m 15,62m

10.00

B

planta

22,93m

corte bb 31,69m 34,92m

41,34m

corte aa

48,53m

corte aa 0 10 20

40

60

80

100

120

corte bb 0 1 234 5

Escala gráfica | 1:2000

yasmin brigato de angelis | maria júlia barbieri eichemberg | devir água

10

15

20

Escala gráfica | 1:400

yasmin brigato de angelis | maria júlia barbieri eichemberg | devir gato


ENSAIOS ENTRE O CORPO E O ESPAÇO por Yasmin B. de Angelis

A metodologia que se desenvolveu no processo de criação, em acordo com os conceitos aqui apresentados, partiu de dois componentes: o papel e os corpos. A pesquisa passa por processos de experimentações entre diferentes corpos e espaços e as infinitas possibilidades de mudanças, afetos, encontros, impactos, limites. Tendo em vista a tentativa de estudar quais são essas possibilidades e o que as move. Os ensaios foram desenvolvidos através de desenhos, diagramas e experimentos utilizando papel. A partir dos desenhos e diagramas pudemos entender a pesquisa como ensaios entre o corpo e o espaço e como essa relação dar-se-á analogicamente com alguns aspectos encontrados, como; obstáculos, tempo, dimensão, inquietude, impaciência, corpo que vibra, se, erro, cansaço, incômodo. Juntamente com essas experiências, vale ressaltar a importância do tempo, a forma em que a temporalidade modificará as possibilidades. O resultado dessas experiências transforma-se em devires traduzidos em arquitetura capazes de produzir e expressar afetos. Devir é um conceito filosófico e significa “tornar-se”; tornar-se diferente de tudo que já foi ou que se é, vivenciar as transformações e as mudanças pelas quais passam as coisas.

devir água

devir gato

devir mofo

devir passo

devir vento

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ENSAIOS ENTRE O CORPO E O ESPAÇO

detalhamento

detalhamento

detalhamento

Devir Gato

passarelas

buracos afetores passarela

maquete eletrônica

A planta

B

planta

afetores caminhos externos acessos

maquete eletrônica

0,85 0,68 0,51 0,34 0,17 0,00

água

maquete eletrônica

A

acessos

B

A

A

detalhamento

módulo

maquete eletrônica

B

A

afetores

Devir Água

Devir Mofo

Devir Vento

por Yasmin B. de Angelis

B

B

7,12m 10.00

A

planta

1,30m

B

B

A

12,27m 15,62m

10.00

B

planta

módulo

0,85

22,93m

corte bb 0,85

A

0,00

corte bb

31,69m 34,92m

0,00

corte aa

corte aa

41,34m

corte aa

corte bb 0

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corte aa 0

Escala gráfica | 1:200

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Escala gráfica | 1:750

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Perceber a importância da intervenção do tempo através do espaço foi possível pelo Diário do Corpo; com pedaços de papeis espalhados experimentei texturas, tipos de seres vivos, plasticidades e fragilidades, anotando datas e informações relevantes, tais como; o que fiz com o papel; onde o deixei; por onde levei; se alguém interviu; se houve alguma modificação notória e em quanto tempo aconteceu a interação. Foi possível notar que se houvesse uma intervenção na estrutura do corpo, mudaria também a percepção da realidade no espaço.

corte bb 0 1 234 5

Escala gráfica | 1:2000

O DESERTO COMO POSSIBILIDADE PROJETUAL PARA A ARQUITETURA

Tal arquitetura proposta brotará em várias localidades da vasta extensão da Patagônia, mais precisamente em um corte de 400km de extensão, cuja região abrange grande parte dos territórios da Argentina e do Chile. Além de ser uma grande reserva natural e ser pouco explorada ela questiona e demonstra como o ser humano é irrisório e insignificante diante da imensidão de suas horizontalidades e verticalidades, caracterizadas por montanhas, vales, lagos, geleiras e um estepe infinito dentro de suas regiões de bosques e desertos. Criando assim a possibilidade do espaço inesperado, relacionando ele ao espaço-liso de Deleuze (1980), proporcionará as pessoas que o habitarem não prever suas funções, sem padrões e limites impostos, fará com que o sujeito percorra o espaço a fim de entender seu proposito, que é nada menos do que experienciar-se. Intenta-se atribuir o conceito do “se” e todas as suas possibilidades nos estudos e buscas pelo entendimento do comportamento do corpo em relação ao espaço e como essa dialógica pode ser interferida a partir de um instante qualquer. O instante entre o sim e o não; a dúvida. O desdobramento do instante; está sempre no meio das coisas, que inicia-se num suspiro e termina em um ponto final. Se o instante fosse um rizoma ele teria um processo de término mais longo, talvez, ficaria conjulgando alguns vários e’s até que

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Escala gráfica | 1:400

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pudesse deflagrar o verbo “ser”. O “se” é uma partícula funcional e cotidianamente utilizada como uma conjunção ou um pronome. Uma partícula imersa entre muitas outras partículas reflexivas, apassivadoras, indeterminadas, subordinadas e expletivas. A sua indeterminação, que é uma quase existência, está atribuída como uma ideia de potência. Ele pode ser desnecessário, como se não apresentasse nenhuma função; ele pode ser imprescindível, como se notássemos uma nova rachadura na parede ao acordar. Ele apenas existe, como se você esperasse a água cair em seu rosto e assim pudesse despertar. Ele pode demorar, como se fosse infinita a espera de um corpo exausto a descansar para sempre. A existência ou a quase existência do “se” traça caminhos em uma linha do tempo que possui várias intensidades de duração. Se os corpos enxergam-se parados em uma cápsula tempo que não é capaz de intervir no espaço, a condição “se” inicia o processo de modificação e interação com esses corpos. Se existisse um caminho de água em um pedaço de papel jogado na gaveta mofada, as partículas do mofo percorreriam na folha em um período menor de tempo. Se esse caminho de água não existisse a folha ficaria divagando na gaveta à espera do quando São através desses afetos que as partículas repentinas conseguem impulsionar mudanças e permitir que avistemos esses rastros. Questionar as intensidades de duração exige que esse período de espera, transformação e apropriação seja essencial para o entendimento da reinvenção desses espaços através de corpos e como ocorre essa vibração. A plenitude dessa conjunção nunca está completa, sempre está em permanente intensidade de duração; o SE é a quase existência, o quase entre. É através dele que conseguimos notar as mudanças e reparar a transição entre o corpografar e o deslocar dos afetos, entre conectar as multiplas dimensões.


ENTREVISTA COM

PAULO MASELLA

Parece que houve um esvaziamento do espaço público em prol do privado. Como você vê isso do ponto de vista daquilo que se entendia como conceito de comunidade (communis), espaço de compartilhamento e locus de uma ideia de pertencimento e de afirmação da alteridade? Ao se falar num esvaziamento do espaço público para o privado, certos pressupostos que estão implícitos precisam ser antes explicitados e dissolvidos. De certa forma, toda pergunta já traz algum pressuposto implícito que exige ser reparado, reformulado, porque nele reside uma orientação da resposta que a conduz a uma confirmação ou negação, mas não a compreensão da sua tensão dialética, ou, se preferir, da organização das camadas que sustentam essa estrutura do modo de organização da realidade. Exige-se, então, que o pensamento faça uma curva, opere um desvio, e reformule a questão acolhendo as ambiguidades e as possíveis ambivalências. Um primeiro estratagema que noto é a subjugação do privado ao exclusivo que, diversamente do próprio, constitui-se na manifestação de uma prática política que assegura a propriedade de um domínio não apenas material, mas também simbólico. Enquanto o próprio aparece como uma categoria epistemológica que dialoga com a alteridade, o exclusivo sugere uma posse, uma propriedade legitimada por forças que lhe são externas e que lhe atravessam para constitui-lo enquanto um domínio. Neste sentido, se desejamos inevitavelmente fazer juízos de valores, é ao privado enquanto exclusivo que se deve negativar enquanto categoria que emerge de uma concepção política moderna que tem suas origens mais precisas nos contratualistas – refiro-me aqui especificamente a John Locke – que forneceram as bases do pensamento burguês. Assim, se ainda hoje nos parece natural ao ponto de considerarmos inalienável a concepção de propriedade privada, é preciso recuperar seus fundamentos históricos e geográficos – e mesmo geopolíticos – para que se possa entrever não apenas seu arcaísmo, mas também sua pertinência nas atualizações que vem promovendo. Dentre essas atualizações, torna-se possível apontar seu crescente caráter excludente que o neoliberalismo tem acentuado, desconfigurando o propósito inicial da ideologia burguesa que era consolidar o poder do Estado em torno da liberdade de comércio e expressão em detrimento do poder absolutista do monarca e de sua concepção teológica do mundo. Daí a centralidade de John Locke em minha argumentação que, diversamente de Hobbes, propunha uma razão soberana e universal, ainda que calcada no direito à propriedade privada, combatendo o absolutismo do monarca e de qualquer Leviatã. Entretanto, mesmo em seu afã de fortalecer o potencial inesgotável de trabalho – hoje se dirá empreendedor – do indivíduo, Locke não deixou – ainda que antes por falta de perspectiva futura do que por princípios éticos – de considerar que a propriedade privada deveria cumprir funções sociais na medida em que deveria sim gerar riqueza, mas não pobreza como consequência. Ou seja, Locke não defendeu uma posição de exclusividade da propriedade privada, mas enxergou nela unicamente seu potencial econômico, condizente com uma então emergente ética protestante e com uma crença ingênua naquilo que hoje se pode atribuir à capacidade infinita de aumento de eficiência dos modos de produção capitalista como meio de se alcançar a felicidade.

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É verdade que, na ânsia de assegurar a universalidade da categoria do trabalho como princípio fundador do social, Locke buscou ancorá-lo como direito natural, ainda que necessitando recuar sua justificativa ao Gênesis (“comerás o pão com o suor de teu rosto”) e não a uma razão a priori – até porque a possibilidade de libertar a razão do contágio metafísico e, mais especificamente teológico, foi um desafio que só Kant viria a encarar. No entanto, ao mover a defesa da propriedade privada com base na narrativa bíblica, Locke não compactuou com a ideia de excedente e desperdício, muito menos com o caráter simbólico do exclusivo. Ora, mas por que esse rodeio que faço sobre a questão colocada? Porque penso que seja necessário decompor o privado em dois conceitos vizinhos: o exclusivo e o próprio. Assim, proponho que o privado não deva ser reduzido ao exclusivo, mas ofereça também uma dimensão ontológica do próprio, daquilo que se coloca como em diálogo com a alteridade, e com o público. A partir desta perspectiva epistemológica, o privado não se esgota na arrogância do exclusivo, mas se constitui numa categoria epistemológica indispensável para se pensar o outro para além de um conjunto de valores depreciativos que se assume na perspectiva do exclusivo. Da mesma forma, o público não deve ser reduzido à categoria do indiferenciável, mas daquilo que, diferenciável, pode se tornar próprio. Isso me remete à segunda artimanha que a pergunta inicial sugere: que o público é bom e o privado ruim. E prosseguindo, que esse público, que é supostamente bom, tem sido subjugado pelo privado, que é supostamente ruim. O que, por sua vez, também supõe uma instância (histórica e geográfica) em que esse público já foi alguma vez melhor, ou seja, mais público do que agora. Mas, justamente esse raciocínio conduz a uma hipótese que deve ser considerada: a que a distinção entre o público e o privado é antes jurídica que ontológica ou mesmo epistemológica. Então, essa distinção aparece como uma normatização do espaço que não teria como outro objetivo regrar os corpos que se movem por esses espaços. E, se correta tal hipótese, o público não é melhor que o privado, mas igualmente resultado de uma concessão e hierarquização de domínios de poder e das redes de micropoder. Talvez, neste sentido, o privado possa aparecer como um espaço até mesmo mais privilegiado, não por se constituir ou confundir numa posse de bens inalienáveis, mas por estar mais liberto da normatização do público. Um exemplo disso é, quando no controle do espaço público, as regras de conduta sexual se encontram mais frouxas no espaço privado do que público, ou quando os vícios podem ser privados e as virtudes devam ser públicas. Portanto, falar de um esvaziamento do espaço público exigiria delimitar inúmeras variáveis no processo de análise para que haja um mínimo de consistência nas considerações que possam ser feitas: Em que momento e em que cidades? Em que áreas das cidades? Quais os usos possíveis do público e do privado nas áreas nobres e nas periferias de uma cidade? E também quais os usos do público nas áreas nobres das cidades pelas camadas sociais periféricas? Afinal, sabe-se que as áreas mais nobres das cidades dispõem de equipamentos urbanos mais sofisticados que, hoje, com uma maior facilidade de mobilidade, atraem um público periférico. Isso nos leva à seguinte hipótese: não podemos pensar esse esvaziamento do público – que a pergunta de partida propõe – como um ainda maior abandono e desdém das elites diante da invasão das áreas nobres pelos “despossuídos”? Se pensarmos no caso de São Paulo, muito distinto do Rio, as chamadas classes médias altas e a elite sempre procuraram refúgio no mar e nas montanhas aos finais de semana, esvaziando não apenas o espaço público como os restaurantes. Por outro lado, sabemos que esse movimento de fuga é menor no Rio porquanto a praia – pública – ainda exerça esse poder de atração mesmo entre as elites. É claro que, a partir do aumento do trânsito da zona norte para a sul – que se altera conforme as políticas públicas –, o embate sempre foi uma constante. As elites acusam os despossuídos de desconhecer – ou de não obedecer – os códigos de conduta da zona sul: fazem “croquete de areia” com seus corpos disformes, produzem “farofas” e, consequentemente, lixo, não tendo qualquer “consciência ecológica” (quando este discurso passou a ganhar relevância), etc.

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ENTREVISTA COM

PAULO MASELLA

Por outro lado, essa “invasão” da praia não é justificável apenas pela ausência de praia (quando não havia o piscinão) na zona norte, mas também implica certa revanche pelo enfrentamento com os códigos e as normas (e não leis) constitutivas do comportamento das elites. É como se quisessem mais do que apenas usufruir da mesma paisagem, é como se quisessem dizer: “eu não moro aqui, eu não posso pagar o preço dos restaurantes daqui, logo eu vou te incomodar ao menos um pouquinho”. Trata-se de observar como a instância econômica é determinante na produção de linguagens, de uma semiótica de gestos e de um circuito de afetos. Em quaisquer dos casos, estamos muito longe da ideia de compartilhamento, de troca, ou ainda mais de interação, entre o próprio e o estrangeiro, entre nós e os outros. Neste sentido, talvez se possa fazer uma crítica às semióticas que resistem a considerar as formas de produção política em suas epistemologias. A meu ver, ao contrário, há uma indissociabilidade entre epistemologia, estética, política e ética. Assim, retornando, mais uma vez, à questão inicialmente proposta, eu diria que, se generalizarmos, esse esvaziamento está antes ligado a um aumento da percepção da violência urbana do que por conta da espiral ascendente do uso das mídias digitais que estariam levando a todos a uma espécie de autismo. Até porque esse “autismo” é constatável nos espaços públicos, não se constituindo em uma prática confinada aos espaços privados. Assim, quando ouço as lamentações que culpabilizam os videogames e as redes sociais pelo fato das crianças não mais brincarem nas ruas, sempre me pergunto: em que bases é possível afirmar que a sociabilidade das ruas é mais “saudável” que aquela das redes sociais? Há sempre um sentimento não apenas nostálgico, mas um discurso do ressentimento pairando no ar, quando se pensa que o passado é sempre melhor que o presente, assim como a esperança utópica representa uma teleologia redentora. Parece haver uma insatisfação constante com o presente que é justamente o que temos de mais concreto. O aumento da percepção da violência é o índice mais confiável para se partir para uma investigação desse suposto esvaziamento do espaço público. Mas é apenas um índice que nos incita a pesquisar e refletir, jamais uma certeza, um ponto final com o qual possamos nos satisfazer. E por que seria um índice, um ponto de partida? Porque entendo que o medo ainda seja o afeto principal que nos move desde Hobbes. Medo de uma morte violenta que nos levaria a assinar um contrato social, depositando na ilusão do Estado o poder de proteger a propriedade de nossos corpos e dos bens materiais. Evidentemente, este raciocínio encontra amparo na perspectiva que o grupo de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Vladimir Safatle e Christian Dunker, entre outros) vem se situando que coloca, a exemplo de Dunker a partir de Freud, a lógica do condomínio como uma estratégia de vida para fugir ao desprazer. Cercando-nos, cada vez mais, atrás de sistemas de vigilância, muros, não há como reconhecer qualquer alteridade. Ao contrário, o inimigo passa a ser sempre o estrangeiro. O inferno é sempre o outro.

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De todo modo, esses muros evidentemente não são apenas físicos. Soube que a atual gestão da prefeitura de São Paulo desenvolveu um projeto que visava romper com o muro entre centro e periferia. A ideia era não apenas “levar cultura” para a periferia, proposta, por um lado, positiva por facilitar o acesso aos bens e equipamentos culturais, mas negativa por implicar a não circulação da periferia pelos espaços centrais, mantendo-a em seu “devido lugar”. Pois bem, essa proposta da prefeitura pretendia se utilizar de várias estratégias para fazer a cultura circular. Uma delas era levar a periferia ao Teatro Municipal. Teriam sido feitas pesquisas (algo, por si só, louvável por reconhecer que o outro precisa ser ouvido) para saber os melhores programas, dias e horários para que a periferia fosse ao centro, mas o próprio prefeito reconheceu o relativo fracasso inicial do projeto quando notou que a periferia não foi a centro a despeito da disponibilidade de transporte para os eventos programados. Foi feita então nova pesquisa para se entender os motivos desse “fracasso”. Teria então se constatado que a periferia teve receio do julgamento do outro, da elite. A periferia não sabia que roupas ela deveria usar, como se comportar, mas, acima de tudo, temia o olhar discriminatório da elite: “aquele deve ser de Itaquera, aquele – coitado? – deve ser de São Mateus”. O medo não é apenas da morte violenta, mas do olhar do outro. A violência simbólica é silenciosa, mas deixa suas marcas invisíveis, como os torturadores sofisticados bem o sabem. Ainda sobre a emblemática gestão Haddad em São Paulo, é bom lembrar a histeria midiática em torno do “fechamento” da Avenida Paulista aos carros, e a astuta manobra semântica que a prefeitura realizou ao chamar essa intervenção de “abertura” da Paulista. Aqui sim vemos uma política pública que busca revitalizar o espaço público e o alto preço político que ela tem pagado por ousar mudar um paradigma que não se restringe à manutenção de um privilégio exclusivo às elites, mas à “classe dos não pedestres”. Ou seja, o recorte do público e do privado tem facetas que não se restringem de modo algum à facilidade das categorias tradicionais de classe social, muito embora, não se queira negar com isso a pertinência das mesmas e de suas lutas. Por fim, não há como deixar de mencionar o tratamento diferenciado concedido pela polícia do Estado de São Paulo às manifestações públicas tingidas preferencialmente de vermelho e àquelas que vestem verde-amarelo. A receptividade cor-de-rosa concedida aos verde-amarelos que a retribuem com selfies sorridentes ao lado de policiais militares demonstra claramente que o espaço público de fato é uma concessão estatal que atende a interesses privados. No entanto, foi surpreendente ter ouvido de alguns amigos meus com formação acadêmica que as manifestações verde-amarelas eram “espontâneas” e que não se deveria estranhar seu desejo legítimo de “ocupar o espaço público”, como se subitamente muitas dessas pessoas passassem a ter interesse pelo espaço público além do inconveniente fato de ser um espaço de trânsito indesejável de um lugar privado a outro. Novamente aqui, essas considerações não podem ser generalizadas. Se nos permitirmos algumas generalizações, é possível, por exemplo, arriscarmo-nos a dizer que os paulistanos da elite jamais se interessaram pelo espaço público de sua cidade, exceto por aqueles que se encontram incrustrados em sua vizinhança como a Praça Buenos Aires e o Parque do Ibirapuera. Hipótese que se atenua no caso dos cariocas que, não obstante os guetos da zona sul e zona norte e, talvez, como resquício dos tempos de capital federal, sempre tiveram mais apreço pela sua cidade. Novamente aqui, os riscos de generalização são enormes, porque o maior sentimento de pertencimento dos cariocas pela sua cidade não pode ser descolado das curvas e retas de sua geografia e de sua arquitetura.

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Agradecimentos

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