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ENTREVISTA

O criador do móvel

moderno brasileiro Por Letícia Wilson

Talento, criatividade, ousadia e genialidade são os ingredientes que mistura numa receita inigualável. A irreverência e o empreendedorismo que chocaram e encantaram muitas pessoas nos anos 50 transformaram seu nome numa marca de sucesso. A Enciclopédia Delta Larousse classificou Sérgio Rodrigues: “o criador do móvel moderno no Brasil”. “Eles não têm ideia do que seja um criador e do que é móvel brasileiro”, brinca o arquiteto. Entretanto, confessa: “fiquei lisonjeado”. Ele sempre faz questão de dividir os louros com Joaquim Tenreiro (1906-1992), Lina Bo Bardi (1914-1992) e Zanine Caldas (19182001), mas reconhece sua importância. “Se eu não fosse modesto, diria que eu transmitia alguma coisa”, diz. Citando os colegas, todos falecidos, lembra de uma história: “os americanos que nos representam nos Estados Unidos foram até o meu ateliê e eu ouvi quando disseram baixinho: ‘ele está vivo’”, diverte-se. E como! Aos 82 anos, Sérgio Rodrigues continua produzindo. “Se eu parasse hoje, acabaria embaixo da terra fazendo móvel para bicho”, dispara. Foto Divulgação

Há quase dez anos, o amigo, arquiteto e urbanista, Lucio Costa já dissera: “Generoso, em vez de refestelar-se em sua poltrona fabulosa, continua ativo, não para.” – certamente referindo-se à consagrada e premiada poltrona Mole

Sérgio Rodrigues é sinônimo de design de mobiliário. Seu legado faz parte da história do móvel moderno brasileiro e suas criações são premiadas e valorizadas também no exterior. Ao delinear os traços de uma peça e definir o material que lhe dará vida, invariavelmente ele imprime a brasilidade no produto, revelando uma identidade expressiva e marcante. “Mas o que é brasileiro num móvel? É a alma; não são os elementos”, rebate o arquiteto. Sérgio Rodrigues é assim, modesto, provocante, bem-humorado, cativante.

(1957), parte do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Dos 1,6 mil móveis criados por Sérgio, apenas 100 continuam sendo fabricados. “São os clássicos, que vêm enfrentando tempos e não dependem de modismos”, classifica. Estas peças são produzidas numa indústria em Princesa (SC) e enviadas para todo o Brasil, para os Estados Unidos e para a Alemanha, onde está a empresa que representa a marca na Europa. Atualmente, Sérgio está envolvido no projeto de resgate dos móveis que projetou para os principais palácios de Brasília. “Tudo foi deixado de lado. Estamos fazendo tudo outra vez”, lamenta. Para a capital do País, Sérgio também fez arquitetura – projetou dois pavilhões de hospedagem e restaurante da Universidade de Brasília, em 1962, erguido a partir de outra de suas criações - o SR2 - Sistema de Industrialização de Elementos Modulados Pré-Fabricados para Construção de Arquitetura Habitacional em Madeira. O sistema foi utilizado, ainda, na construção do Iate Clube de Brasília, projetado pelo arquiteto. É arquitetura que o pai do design moderno brasileiro prefere produzir. E

“O arquiteto é um gandula. É aquele que põe a bola para dentro do campo quando os clientes a jogam para fora”.

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este se tornou um dos principais assuntos da entrevista concedida à Revista ÁREA em março na loja Bellacatarina, corner da marca Sérgio Rodrigues em Santa Catarina. Ele veio ao Estado para visitar a Casa Cor SC, especificamente o ambiente que prestou uma homenagem a ele, o Living do Apartamento do Casal, projetado pelas arquitetas Claudia Wendhausen, Lisiane Wirtti e Helena Rocha.


ÁREA – O senhor ainda projeta casas de madeira pré-fabricadas? Sérgio Rodrigues – Sim. Eu preciso explicar o seguinte. Eu criei um sistema para produção de elementos de construção modulados para construção de casas pré-fabricadas. Quando falamos em pré-fabricadas as pessoas imaginam sempre casinhas de cachorro, de boneca, tudo igualzinho. Mas das 250 casas que fiz, nenhuma é igual. E, também, a pré-fabricação não quer dizer que seja popular. Com concreto, vemos edifícios sendo feitos com paredes inteiras pré-fabricadas colocadas no lugar. Isso é pré-fabricação também. ÁREA – E essas que o senhor projetou eram para que tipo de clientes? Sérgio Rodrigues – As primeiras foram todas feitas para um determinado tipo de cliente. Uma clientela com cultura; não rica, mas rica culturalmente. Isso é muito importante. Continuo fazendo esses projetos porque tem muita gente que quer esse tipo de casa, quer casa de madeira e quer que seja feita com certa rapidez. E eu sempre aviso que vai sair o preço de uma casa de alvenaria normal. ÁREA - O senhor acha que o brasileiro tem resistência à casa de madeira? Sérgio Rodrigues – Não é só brasileiro, é qualquer um; principalmente os latinos. Inclusive tem um ditado português que se aplica a qualquer latino: “construção de pedra e cal é eterna”, porque a casa era feita para durar eternamente, como os palácios, os castelos. A madeira era usada para fazer a subestrutura - as janelas, as portas - e não para fazer a casa em si. ÁREA – E essas casas o senhor projeta em parceria com sua filha, Verônica? Sérgio Rodrigues – Sim, ela é maravilhosa, fora de série. Ela me interpreta e o que ela sugere – e que eu incentivo muito – me apresenta coisas novas, criações novas e temos feitos diversas coisas em conjunto. Fizemos algumas casas e ela adotou o seguinte: nas casas mistas, que misturam alvenaria com madeira, quando o cliente tem um determinado sentimento, feeling, sensibilidade, criamos uma história. Por exemplo, fizemos uma casa ainda há pouco, há dois anos, para um casal. A família toda lembraria

um personagem de Dom Quixote. Então fizemos uma casa, não para Dom Quixote, mas que, certamente, se tivesse sido criada naquela época, Dom Quixote poderia andar para lá e para cá perfeitamente bem. Inclusive, ela está fazendo doutorado em Literatura. Muita gente pergunta o que tem a ver com Arquitetura. Tem a ver muita coisa e ela cita milhares de autores, principalmente portugueses e brasileiros, que descrevem o ambiente de uma maneira incrível e você localiza aquele ambiente; você percebe a alma dos personagens do livro pela descrição do autor. ÁREA – E o senhor também faz arquitetura de interiores. Sérgio Rodrigues – Eu comecei fazendo isso e faço hoje muito pouco, pois passei muito para ela (a filha). Ela tem uma expressão assim... ela tem saco (risos...) ÁREA – Por que a relação vai além do programa de necessidades? Sérgio Rodrigues – Vai, vai... Não tem dúvida (risos). ÁREA – Entre arquitetura e design, o que o senhor prefere? Sérgio Rodrigues – Eu gosto de fazer arquitetura. Tive oportunidade de fazer arquitetura com prazer. E gosto de executar com madeira porque eu estudei muito o esquema de fazer pré-fabricação. Inclusive, os proprietários se acham arquitetos também. Eles levam o projeto para casa, fazem ajustes. E cabe ao arquiteto orientar. O arquiteto, eu diria, é um gandula. É aquele que põe a bola para dentro do campo quando ela vai para fora. Quando está havendo um jogo, os proprietários estão criando e põem a bola para fora, o arquiteto põe a bola para dentro outra vez. ÁREA – O senhor costuma visitar a Casa Cor? Sérgio Rodrigues – Eu vou, mas não faço comentários (risos). Eles esperam que eu analise um determinado ambiente, mas eu não sirvo para isso. Se eu estivesse indo na Casa Cor no Tibete e tivesse que fazer uma análise, eu faria. Agora, aqui no Brasil, onde cada criador, cada profissional, já tem experiência... se forem criticados vão ficar muito chateados.

Fotos Divulgação

“Eu não sei ficar sem criar; minha maneira de me expressar é essa”.

Projeto desenvolvido no sistema SR2, executado em 1995.

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Foto Fabrícia Pinho/Divulgação

ENTREVISTA

“Não sou crítico de arte. Eu gosto ou não gosto; não tenho que dizer por quê.”

Retratos da trajetória

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Sérgio Rodrigues nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1927, no seio de

Londres. A poltrona está em exposição permanente no Museum of Modern Art

uma família de artistas e intelectuais. É neto do jornalista Mário Rodrigues,

(MoMA) de Nova Iorque (EUA). Sobre ela, o humorista Millôr Fernandes nunca

fundador dos jornais A Manhã e Crítica; sobrinho do jornalista e dramaturgo

falou tão sério: “o talento estético de Sérgio Rodrigues veio ao encontro do meu

Nelson Rodrigues; e filho do desenhista, pintor e ilustrador Roberto Rodrigues,

bom senso e exigência de conforto e, inesperadamente, empurrou embaixo de

que foi colega de Cândido Portinari na Escola Nacional das Belas Artes. Porti-

mim a já citada Poltrona Mole. Onde não me sentei. Deitei e rolei. Que artefato

nari produziu, inclusive, um retrato do amigo, que consta no acervo do Projeto

meus amigos. Pra mim, essencialmente couro, foi natural curtição. Anatômica,

Portinari. A família da mãe, os Mendes de Almeida, é formada por juristas e

convidativa, insinuante. Atração fatal”.

jornalistas. Por herança genética ou influência familiar, Sérgio Rodrigues de-

“Meus parentes achavam que eu estava maluco, que ninguém aceitaria

cidiu desenvolver seu potencial criativo e ingressou na Faculdade Nacional de

uma poltrona maluca, com jeito de ovo estrelado. E eu dizia: vai ter gente que

Arquitetura da Universidade do Brasil, na capital carioca, aos 20 anos.

vai entender o que eu estou falando”, conta Sérgio, praticamente um visio-

Em 1951, antes de se formar, participou da elaboração do projeto do bairro

nário. Mas reconhece que o início foi difícil. “Chamavam de cama de gato,

Centro Cívico de Curitiba a convite do seu professor David Xavier de Azambuja,

cama de cachorro. Foi um vexame. As pessoas tinham vergonha”, revela. E,

coordenador da equipe. Este foi o primeiro centro cívico projetado em arquite-

de repente, começaram a comprar. “Carlos Lacerda, Roberto Marinho, Darcy

tura moderna no Brasil. Na capital paranaense, Sérgio Rodrigues criou a Mó-

Ribeiro”, elenca. Darcy Ribeiro o levou para fazer as cadeiras do auditório da

veis Artesanal Paranaense, em sociedade com o arquiteto e designer italiano

universidade de Brasília. A convite de Niemeyer produziu diversas peças para

Carlo Hauner. A empresa durou seis meses, mas a parceria se estendeu. Em

os principais palácios da então futura capital do País. “Tudo foi deixado de

1955 Hauner fundou a Forma S.A em São Paulo, ao lado do arquiteto Martin

lado”, lamenta, referindo-se à má conservação do mobiliário nestas décadas.

Eisler e do empresário Ernesto Wolf, e convidou Sérgio para comandar o setor

“Hoje estamos fazendo tudo outra vez”, afirma. A convite do Itamarati, naquela

de criação de arquitetura de interiores da empresa. A empresa foi a primeira

época, Sérgio também desenvolveu uma coleção especial de mobiliário para a

a introduzir no Brasil, sob licença de fabricação, peças de Mies van der Rohe,

embaixada do Brasil em Roma, o Palácio Doria Pamphili. Como levariam mui-

Marcel Breuer, Saarinen e Bertoia.

tos meses produzir as peças aqui e enviá-las para a Itália, Sérgio hospedou-

No ano seguinte, estimulado por Carlo Hauner, Sérgio Rodrigues voltou

se na casa do amigo Carlo Hauner, no Norte daquele país, e produziu tudo

para o Rio de Janeiro e inaugurou a Oca, um espaço de produção e comercia-

por lá mesmo. “Fiz tudo novo, porque não sei repetir um desenho”, recorda.

lização do design brasileiro que se tornou referência nacional. Iniciava-se um

A produção foi intensa e mobiliou, também, o consulado e a embaixada no

período de muita inspiração, criatividade e produtividade. Em 1956 criou a

Vaticano, em tempo recorde. “Tudo em jacarandá; ele tinha jacarandá do tipo

cadeira Lúcio Costa e a Poltrona Oscar Niemeyer. “Eu tenho foto dele sentado

exportação. Eu poderia colocar pedaços da árvore lá dentro”, brinca. Jacarandá

nela”, orgulha-se. Em 1957 rabiscou a famosa Poltrona Mole, lançada no ano

sempre foi sua matéria-prima predileta, numa período em que “jacarandá se

seguinte e premiada no Concurso Internacional do Móvel em 1961, em Cantú,

encontrava na esquina” e nem se falava em ecologia. “Sou assassino do ja-

na Itália. “Havia 400 concorrentes e eu não sabia por que tinham me escolhido.

carandá, infelizmente”, assume Sérgio Rodrigues. A nova ordem mundial pro-

Foi porque era o único móvel que caracterizava uma região”, avalia Sérgio.

vocou transformações no método de produção, mas a madeira continua sendo

A premiação conferiu projeção internacional ao arquiteto como designer de

seu material preferido. “Gosto muito de imbuia e lyptus (madeira plantada de

móveis. A Mole passou a ser produzida pela ISA, de Bérgamo, na Itália, e

eucalipto)”, destaca.

exportada para vários países com o nome de Sheriff. A indústria italiana pro-

Para Brasília, Sérgio também criou dois pavilhões de hospedagem e res-

moveu a peça no mundo todo e ela foi parar até no Palácio de Buckingham, em

taurante da UnB, em 1962, com o recém-criado SR2 - Sistema de Industriali-


Fotos Divulgação

No sentido horário, a poltrona Diz (2001), a cadeira Oscar (1956) e a Mole (1957).

“Brasil é uma coisa que transpira... difícil de explicar.”

zação de Elementos Modulados Pré-Fabricados para Construção de Arquitetura

lugar na categoria mobiliário na 20ª edição do prêmio Design do Museu da

Habitacional em Madeira. O sistema foi utilizado, ainda, na construção do Iate

Casa Brasileira, em São Paulo. A peça foi escolhida por unanimidade pelo júri

Clube de Brasília, projetado pelo arquiteto. Os protótipos do SR2 foram ex-

que apontou “como maior qualidade, sua estrutura de madeira bem resolvida

postos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a convite da diretoria.

e trabalhada com maestria. Além disso, é uma peça extremamente confortável

Em 1968, Sérgio Rodrigues deixa a Oca e monta ateliê no Rio de Janeiro, de-

e bonita, qualquer que seja o ângulo de visão.” A humildade do veterano desig-

senvolvendo arquitetura e design de mobiliário - hoje em parceria com filha

ner em concorrer ao prêmio também impressionou o júri. Talvez seja a prática

Verônica, também arquiteta e designer. A última de suas criações – a poltrona

da modéstia do gênio que faz escola por suas obras e atitudes.

Diz – foi produzida em 2001 e premiada, cinco anos depois, com o primeiro

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