Bastião - Edição 17

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EDIÇÃO 17 // ANO 3 // 2013

FRANKLIN MARTINS ZONA RURURBANA OPERÁRIOS DA ARENA

bastiao.net


A CIDADE SE CONSOME. NOVAS ARENAS, NOVOS PRÉDIOS, NOVAS RUAS. SOBRE O ASFALTO QUE BROTA, PROTESTAMOS. O BRASIL SE RECONSTRÓI. NA CAPA DO NOVO BASTIÃO, RODRIGO STEINER PARTE PARA O RESGATE ÀS ÁRVORES. QUE VENÇA O VERDE, QUE VENÇA O NOVO. FACEBOOK.COM/ RODRIGOSTEINER

AOS QUE NOS AJUDARAM NA CAMPANHA DE FINANCIAMENTO COLETIVO NO CATARSE, NOSSA HOMENAGEM. COM VOCÊS, VOAMOS MAIS ALTO. RETRIBUIREMOS À ALTURA! A AUTORA DO DESENHO É A NOSSA NÁDIA ALIBIO. FLICKR.COM/ MIRABOLANTE_NADIA


// EDITORIAL

A mídia alternativa se fortalece sempre que um novo bastião aparece. Sul21, Tabaré, Jornalismo B, Nonada, Impedimento, Mídia NINJA, Coletivo Catarse. Nós e todos mais. O exército cresce. Defesa Pública do Que Não Se Defende Sozinho. Não se mata uma flor só por causa do espinho. Novos pontos de vista borbulham, o caldo engrossa. Tudo tem dois lados, quando não três ou quatro. E quanto mais lados se olha, mais completo fica o quadro. A indústria se amedronta e se defende como pode. A hora é do ataque. Real ou virtual, a informação se espalha. Se aproxima a batalha. Ser independente não é ser sucata; profissionalismo não mata. Muito pelo contrário: é independência ou morte. Não por acaso é com os vencedores que descansa a sorte. Que ironia, invadir a própria casa! A rua é do povo, a Casa também. E se é de todo mundo, então não é de ninguém. Que fique bem à vontade, quem não tem nada a esconder. No Parlamento ocupado, mesmo que embaixo de ternos, estavam todos pelados. Ao protesto e à luta respondem com bomba e censura. O vinagre cheira mal, pior ainda a ditadura. Derramou-se muito suor. Respirou-se muito gás (vencido). As mudanças hão de vir, e para melhor. Ainda assim, não serão suficientes: amanhã sempre vai ser maior. A prefeitura pede desculpas pelos transtornos: “Estamos construindo a Porto Alegre do futuro”. Mas que futuro queremos? Ruas vazias, assalto, asfalto? Não. “Avenida é fechada e dá lugar à ciclovia”, quem sabe um dia. Provando que o sonho não é mera ilusão, eis o novo Bastião. Também estivemos em obras, e pedimos desculpas pelos transtornos. Assim como a prefeitura, queremos construir a Porto Alegre do futuro. Mas, em vez de duplicar a rua, plantamos a semente. Vá em frente, vire a página, é seguro.

Pluralidade pra mudar a cidade.

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Veja Bem

Franklin Martins Redação Ana Elizabeth Soares André Lacasi Arthur Viana Carlos Machado Cíntia Warmling Douglas Freitas Gabriel Rizzo Hoewell Ingrid Haas Pilar Luiza Müller Nádia Alibio Sergio Trentini

Projeto gráfico e editoração KBUMM Design

Produção gráfica Gilberto Sena

Revisão Lisiane Danieli

Capa Rodrigo Steiner

Mini Especial Rrepor- No Fim tagens do mundo,

29 o começo arrependidos

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Livrarte

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de Porto Alegre

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6 FOTO

12 LiteRaTura

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Reportagem

em meio às obras, o brasil se encontra

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Arte Ana Elizabeth Soares André Lacasi Nádia Alibio Ramiro Simch

Relacionamento Ana Paula Neri Luiza Müller

Fotografia André Lacasi Ingrid Haas Pilar

Colaboradores Cristiano Sant’Anna Yamini Benites Laís Webber Tiago P. Klein Paulo Daniel

Comercial 51 8480.1360 | 51 3311.1025 Praça Júlio de Castilhos, 74/152 Porto Alegre – RS – Brasil

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por Nรกdia Alibio flickr.com/mirabolante_nadia



// VEJA BEM – FRANKLIN MARTINS

Ex-secretário de Comunicação Social do País, Franklin Martins, defende a democratização da comunicação. O processo, no entanto, é lento. O Brasil é um elefante e deve dar um passo de cada vez, acredita.

Democratizando um elefante F

ranklin Martins nos concedeu esta entrevista no dia 25 de maio deste ano, durante sua passagem em Porto Alegre para debater a comunicação na era da internet. Nem duas semanas depois, a onda de protestos que tomaria conta do país começava a crescer. Depois de passar por Porto Alegre, Natal, Salvador e Goiânia, ela chegava com tremenda intensidade a São Paulo e Rio de Janeiro. As manifestações do dia 13 de junho, reprimidas com brutalidade pela polícia, em especial na capital paulista, ampliariam a dimensão dos acontecimentos. A revolta popular entraria para a história e colocaria em pauta a revolução causada pela internet, a força da rede e a democratização da mídia. Franklin Martins já parecia pressentir o poder do povo e o alcance da internet quando conversou com o Bastião a caminho do aeroporto. Ele ressaltou o papel da web como crítica da grande imprensa e a crescente participação popular na política brasileira. Aos 64 anos, Franklin já militou no MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro), quando foi um dos mentores do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Teve também atuação importante como jornalista, sendo comentarista político na Rede Globo e na Rede Bandeirantes, entre outros veículos. Em 2007, assumiu o cargo de secretário de Comunicação Social do segundo governo Lula. Destacou-se por ser um dos maiores defensores da regulação da telecomunicação no país. “Tudo pode ser discutido pra imprensa, menos a imprensa”, afirma. Pois discutamos:

// Entrevista Gabriel Rizzo Hoewell // Fotos Cristiano Sant´Anna

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“Numa sociedade da informação e do conhecimento é necessário que se resolva o problema da ampla e plural oferta de conteúdos” A dificuldade de implementação de uma regulamentação da mídia passa por uma falta de vontade política? Primeiro: eu não defendo uma regulação da mídia de um modo geral. A mídia em papel precisa ter direito de resposta e de um judiciário que puna com rigor invasões à privacidade, calúnia, difamação, etc. Já no caso das comunicações eletrônicas, ou seja, da radiodifusão e, eventualmente das telecomunicações, aí não! É um uso do espectro eletromagnético, que é um bem público, escasso, que precisa ser regulado. É um absurdo que isso não seja regulado. Então, acho que nós estamos avançando, talvez mais lentamente do que eu gostaria, mas é um ponto que está na agenda do país hoje e há 5 anos não estava. Ele entrou na agenda e não sai por uma imposição da mudança tecnológica que o mundo tá vivendo. É uma mudança também em função da democratização do Brasil, que começa a exigir isso. É uma mudança política e econômica. Para que se entre numa sociedade da informação e do conhecimento é necessário que se resolva o problema da ampla e plural oferta de conteúdos. Isso não pode ficar concentrado na mão de meia dúzia. Essa questão é inevitável a meu ver. Agora, evidentemente eu acho que é algo que precisa da liderança do Governo

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porque se trata de uma concessão pública e o Governo deve liderar esse processo. E eu espero que ele lidere. Seria muito ruim se não fizesse isso.

Como o senhor vê o papel das redes sociais no sentido de analisar criticamente a mídia? Acho que isso é algo que já vem ocorrendo. A internet vem fazendo o tempo todo uma crítica da mídia. Isso é natural e positivo. Se a mídia souber responder a isso positivamente, entender que crítica faz parte da vida – e quando a gente tem uma atitude madura diante da crítica a gente cresce –, ela melhorará. Só que a imprensa até hoje vem reagindo mal, tá mal habituada. Ela estava habituada a ficar distante de qualquer crítica. Tudo pode ser discutido pra imprensa, menos a imprensa. Então, na hora que ela começa a ser discutida, ela reage muito mal, como se estivesse sendo atacada, vilipendiada. É verdade que, às vezes, os comentários na internet, nas redes sociais, são duros e agressivos. Como a mídia, às vezes, também é agressiva. Então tudo faz parte de um processo saudável em que a mídia é exposta à visitação pública e à crítica pública. Acho que isso é muito positivo; e quem na mídia souber lidar com isso vai crescer, quem não souber vai ficar pra trás.

Pra que haja uma visão crítica da rede também é necessário uma ampliação do acesso a ela. Esse processo ainda deve demorar? Eu acho que o processo não é tão lento assim. Nos últimos anos – acho que em 3 ou 4 anos, não tenho o número exato – dobrou a percentagem da população com acesso à banda larga. Não tô dizendo que tá ótimo. Não! Tem que fazer muito mais, mas não é que esteja estagnado. Eu acho o seguinte: banda larga não é um serviço de luxo. Banda larga tem que ser igual à educação pública. A bandeira da educação pública foi fundamental para você colocar na agenda do país que tinha que dar igualdade de oportunidade pra todos. Da mesma forma que a educação pública, na década de 1960, 1970, foi uma coisa crucial, a banda larga barata, rápida e com capacidade de tráfego, pra todo mundo no Brasil, é fundamental. Isso não é um luxo, não é uma coisa que pode ou não pode ter. Isso é fundamental pra garantir igualdade de oportunidade, e o Governo deve jogar num papel central nisso. Qual vai ser o modelo, como se vai fazer? Sempre será uma combinação de recursos públicos e privados, mas eu acho que é algo que deve ser subsidiado, inclusive. Da mesma forma que mobilidade urbana, metrô, sem subsídio não existe. Da mesma forma que


// VEJA BEM – FRANKLIN MARTINS

moradia popular pro setor de baixa renda, sem subsídio não existe. E a sociedade tem que subsidiar porque ela se beneficia quando incorpora num patamar mais alto esses amplos setores da população. Seja no aspecto da mobilidade, da moradia ou da internet/educação – porque internet é sinônimo de educação.

O senhor acha que o processo que está sendo discutido na Argentina [sobre a Lei de Meios] pode ser implantado de maneira semelhante no Brasil? Eu acho que os objetivos são os mesmos. Ou seja, democratizar a comunicação, colocar mais vozes, mais produtores de conteúdo, de entretenimento, de serviços nas comunicações eletrônicas de um modo geral. Eu acho que todo País terá que adaptar à sua circunstância, à sua situação. Vou dar só um exemplo: na Argentina tem um enorme peso a TV por assinatura, o que não tem no Brasil. São diferentes os sistemas. Além disso, nós temos diferenças de cultura política. Eu acho que se a Argentina quiser copiar o Brasil ela se dá mal e vice-versa. As disputas políticas na Argentina se resolvem com uma formação relativamente rápida de maiorias que não são tão estáveis depois. Já no Brasil, nós levamos muito tempo para formar maiorias. É muito len-

“As disputas políticas na Argentina se resolvem com uma formação relativamente rápida de maiorias que não são tão estáveis depois. Já no Brasil é muito lento. Em compensação é mais consistente a decisão.” to. Em compensação, depois que ela se forma, dificilmente volta atrás, é mais consistente, mais permanente a decisão. A Argentina é como um potro fogoso: corre, galopa, tira as quatro patas do chão, é lindo de ver, relincha, escoiceia, é uma exibição de energia monumental. O Brasil não; o Brasil é um elefante. Nós nunca tiramos as quatro patas do chão ao mesmo tempo. Tiramos só uma de cada vez, porque nós somos muito grande, e se tirar mais de uma a cada vez, capotamos. Então, nós precisamos entender isso: todos os processos políticos no Brasil, de um modo geral, foram mais lentos que os da Argentina. Isso não quer dizer que eles não tenham sido, às vezes, mais duradouros e mais consistentes. Eu não tô querendo afirmar: “Vamos nos conformar, que tudo vai andar devagar”. Mas nós precisamos entender, porque senão a gente fica com um modelo que não corresponde ao nosso jeito de ser enquanto País, ao nosso processo de construção de maiorias políticas, que é mais lento.

Muito se fala no Brasil de que temos que fazer como os argentinos, ir para a rua protestar, etc. Essa diferença de cultura é negativa ou simplesmente são duas realidades diferentes? Não, nem eles nem nós somos melhores. São realidades culturais diferentes. Eu acho ótimo que tenha gente querendo que a gente faça o mesmo que se fez na Argentina, porque isso também faz parte do debate. Mas vai ter gente que vai dizer: “Vamos com mais calma, vamos fazer de tal jeito.” O processo de formação de maiorias políticas é mais complexo aqui do que na Argentina porque nós não temos uma grande Buenos Aires com boa parte da população. Nós temos um país imenso, continental, onde mesmo quem é muito grande, como São Paulo, não tem um papel tão decisivo como Buenos Aires. É um processo de diversidade cultural e regional diferente, ritmos diferentes. Todas as grandes decisões do Brasil demoraram muito tempo para serem construídas – pro bem ou pro mal. O final da escravidão foi horrível, nós levamos 50 anos saindo da escravidão. O final da ditadura foi uma coisa horrível também, nós levamos 10, 15 anos fazendo uma transição. Mas, em compensação, acho que a questão democrática no Brasil é muito con-

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“A Globo resolveu acabar com o pluralismo e voltar ao seu DNA: ela quer comandar o país.” solidada. E a questão da justiça social hoje é muito consolidada também. Isso foi um processo lento de construção, mas construiu-se.

O senhor acredita que hoje o povo tem efetivamente um papel central na política? Eu não tenho dúvida nenhuma. Nós estamos assistindo, nos últimos 10 anos, a uma mudança do Brasil, com a criação de um amplo mercado interno de massa, com o desenvolvimento de políticas públicas visando à maioria da população. Não era assim antes. Os interesses da maioria da população passaram a prevalecer na política. Evidentemente isso é um objeto de disputa o tempo todo. Mas você vê: eles eram contra o Bolsa Família, era “Bolsa Esmola”. Hoje em dia eles não conseguem nem abrir a boca mais contra isso. E eu tô citando isso, mas poderia citar mais outras dezenas de exemplos. Ou seja, os interesses das grandes maiorias estão, hoje em dia, presentes no centro da agenda política nacional e da disputa política. Isso é formidável. Por isso os setores conservadores perderam três eleições pra Presidente, e acho que vão perder a próxima. Por quê? Porque eles falam pro passado.

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Isso significa que se construiu, e foi lento. O Lula, que foi candidato cinco vezes, só na quarta foi ganhar. Olha como é lento nosso processo de construção de uma maioria pra dizer: “Inclusão social é fundamental para nós sermos um país próspero, justo e democrático.” Olha como isso foi demorado. Mas construiu, botou lá dentro.

Falando um pouco da sua trajetória. Durante 8 anos o senhor trabalhou como jornalista na Rede Globo. Queria saber como foi sua atuação lá, já que muito da sua visão não condiz com o que a Globo acredita. Ou não? Eu acho que o meu período lá coincidiu com o melhor momento do jornalismo da Globo, que vai de noventa e tantos até 2005. Um período onde a Globo viu que tinha que mudar sua imagem e fez uma operação de mudança, que implicava em pluralidade, abertura para outros pontos de vista. Isso começou no jornal O Globo, onde eu trabalhei. E eu fui trabalhar na TV Globo porque foi um momento de pluralidade. Quando veio 2005, a Globo acabou com a pluralidade e o símbolo disso foi, de certa forma, a minha saída da Globo. Ela não conseguia mais conviver comigo.

O que aconteceu em 2005? Foi o mensalão. A cobertura da Globo do mensalão foi como se estivesse diante do maior caso de corrupção na História da República, compra de votos, que não houve... E todo dia uma denúncia nova que deixava de lado depois. E eu dizia: “Vamos atrás do dinheiro?”. Meus comentários eram: “De onde vem o dinheiro do Valerioduto?” E a Globo se recusava a investigar isso, porque se investigasse enfraquecia suas teorias. Mas a Globo resolveu acabar com o pluralismo e voltar a uma coisa que tá no seu DNA: ela quer comandar o país. Não comanda mais, mas continua querendo. E voltou em 2005 achando que iria retomar o controle do país. E foi derrotada, tanto nas eleições de 2006 quanto na de 2010, e espero que seja derrotada nas eleições de 2014. Então isso foi um momento. Eu vou dizer que trabalhei lá sem maiores problemas, porque foi um período muito bom da Globo. Chegou uma hora que não deu mais. Isso é normal, jornalista vive sendo demitido de jornal, televisão, rádio, quando os patrões chegam à conclusão de que precisam fazer algum movimento.


// VEJA BEM – FRANKLIM MARTINS

garanta já o seu

MUJIquiNHA MUJIQUINHA e tenha o melhor amigo do mundo sempre junto com você!

La gran tarea de nuestros pueblos es ver el todo

Aperte a barriga do MUJIQUINHA e ouça um conselho sábio! Maconha . Aborto . Paz mundial Amor . Chimarrão . Agricultura familiar Agora também com o discurso onu 2013 Dublagem original

em castelhano Jogue também

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// FOTO YAMINI BENITES


No fim do mundo, o começo de Porto Alegre // Texto e reportagem Cíntia Warmling & Laís Webber // Fotos Cíntia Warmling


// ESPECIAL

Longe do centro, nas margens do Guaíba, é possível encontrar Porto Alegre antes das construções que hoje já ocupam grandes áreas da antiga Zona Rural da cidade.

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m lugar onde o ritmo desacelera e é possível ouvir o silêncio, existe mais espaço e o chão volta a ser chão, terra e grama em vez de asfalto. O local onde a maioria das pessoas busca refúgio das grandes cidades. Acontece que esse lugar faz parte da capital. Uma parte muito importante, inclusive. Logo ali, próximo aos morros ainda verdes, Porto Alegre nos presenteia com a segunda maior Zona Rural do Brasil, perdendo apenas para Palmas, no Tocantins. Bom, não exatamente, já que desde 2000 não existe mais Zona Rural na cidade, graças a um projeto de lei que alterou o Plano Diretor e criou a chamada Zona Rururbana. É lá que pequenos produtores plantam e fornecem alimentos para os consumidores concentrados em outros locais da cidade. A produção familiar, no entanto, recebe poucos incentivos e as propostas de mais zeros na conta corrente em troca das terras são tentadoras, principalmente pelo discurso comum de que mais concreto é maior progresso. E parece que o concreto ocupa cada vez mais a Zona Rural, ops, Rururbana, desculpe. Alguns projetos estão sendo denunciados pela Promotoria do Meio Ambiente por não obedecerem ao Plano Diretor da cidade, mas construções maiores já invadem a paisagem da Zona Sul. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Porto Alegre foi a capital que menos cresceu demograficamente nos últimos dez anos. A quantidade de novas construções é maior do que o número de habitações necessárias. “Porto Alegre tem um déficit de 38 mil moradias, e tem 48 mil habitações desocupadas”, declara o ambientalista Felipe Viana. É comum que os porto-alegrenses não conheçam essa parte de Porto Alegre, assim como alguns moradores da Zona Sul não conhecem o centro da cidade. Para quem habita, estuda e trabalha em conglomerados da cidade, o asfalto e o cimento são a natureza urbana, esquecendo a terra que existe por baixo.

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Na Zona de Ocupação Rarefeita de Porto Alegre, o desenvolvimento deve ser equilibrado, deixando espaço para a vegetação e para o convívio entre a fauna, a flora e o homem.

Ocupação nem tão rarefeita: Zona Rural agora é Rururbana Em 2000, entrou em vigor o novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA) que transformava a então Zona Rural em Zona Rururbana. Segundo a Secretária Municipal de Meio Ambiente (SMAM), o conceito de Zona Rural compreende a delimitação de uma zona específica para a produção primária. Na época da implantação do Plano Diretor, constavam no cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), 1,3 mil imóveis rurais em Porto Alegre, sendo 30% da cidade considerado Zona Rural. Essa região se localizava na Zona Sul, próximo à orla do Guaíba. Com a Zona Rurubana, propriedades de produção primária são consideradas pela Equipe de Coordenação de Licenciamento Ambiental da SMAM como integrantes da área urbana. Assim, a divisão da cidade deixou de ser entre Rural e Urbana. Com a lei que estabeleceu a Zona Rururbana, o município ficou dividido em Zonas de Ocupação Intensiva e Zonas de Ocupação Rarefeita. O promotor Carlos Paganella explica que a Zona de Ocupação Intensiva compreende regiões onde já há infraestrutura, como rede de esgoto, postos de saúde, transporte coletivo, entre outros. A Zona de Ocupação Rarefeita é aquela onde o desenvolvimento deve ser mais equilibrado, deixando espaço para a vegetação e para o convívio entre a fauna, a flora e o homem. Não é permitida a construção de prédios, apenas de casas. A delimitação dessas áreas foi realizada pelo poder executivo.

Outra mudança ocasionada pelo PDDUA é o imposto cobrado dos moradores. Antes os proprietários de terras na Zona Rural pagavam o Imposto Território Rural (ITR); agora as propriedades são enquadradas no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), definido de acordo com a atividade produtiva da propriedade e que pode ser mais caro devido ao tamanho do terreno. Segundo a SMAM, com a alteração do imposto cobrado, os incentivos tributários do município passam a ser restritos aos proprietários que comprovem a atividade em produção primária. Hoje a Zona Rurubana compreende os núcleos intensivos de Belém Velho, Belém Novo e Lami, além das áreas a partir da linha dos morros da Companhia, da Polícia, Teresópolis, Tapera, das Abertas e Ponta Grossa. É formada por propriedades voltadas para produção de alimentos, áreas de rica biodiversidade, áreas de ocupação irregular e grandes condomínios em fase de construção. Teoricamente, a mudança de Zona Rural para Zona Rururbana permitiria a maior regulação das construções que ocupavam a área, mas, depois de mais de dez anos, percebem-se outros impactos.

o começo de

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// Texto e reportagem Cíntia Warmling & Laís Webber // Fotos Cíntia Warmling


// ESPECIAL

O progresso de concreto O morro São Pedro é uma das áreas da Zona Sul da cidade que ainda preserva mata nativa e serve como hábitat natural para o bugio-ruivo, espécie ameaçada pela destruição de matas e contato com o homem. De acordo com a prefeitura, o local é ideal para a construção de edifícios financiados pelo programa federal “Minha Casa Minha Vida”. A Lei Complementar número 636, aprovada na Câmara dos Vereadores em 2010, propõe a criação de Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) na Zona Sul de Porto Alegre. Algumas em locais completamente desabitados, quando, a princípio, as AEIS foram criadas para regularizar moradias irregulares, loteamentos clandestinos feitos sem infraestrutura básica e onde já ocorreram danos ao meio-ambiente. Não é o caso do Morro São Pedro ou de áreas remanescentes da Mata Atlântida. O Ministério Público Federal abriu um processo sobre a inconstitucionalidade dessa lei, que vai de encontro ao Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre. “É inconstitucional a criação dessa lei, é quebrar o Plano Diretor. É construir em local que seria de ocupação rarefeita tipos de habitação que só caberiam em Zonas de Ocupação Intensiva usando os instrumentos das AEIS, que são instrumentos para a regularização fundiária de habitações”, diz Paganella. Outra denúncia do Ministério Público em relação à criação das AEIS na Zona Sul é que a população civil não foi consultada para demarcação dessas áreas. “A Constituição

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Estadual manda que seja consultada a população, que sejam feitas audiências públicas e que tenha participação popular quando é pra mexer no Plano Diretor. A prefeitura Municipal não respeitou isso e a Câmara também não”, comenta Paganella. As construções de edifícios p ara famílias de baixa renda deveriam ser feitas em áreas da Zona de Ocupação Intensiva em Porto Alegre, onde a infraestrutura, com saneamento, postos de saúde, escolas e transporte público, já está montada e pronta para receber a população. Além do caso das AEIS, onde não ocorreram construções, ainda existem grandes empreendimentos imobiliários, como o Condomínio Alphaville. Há alguns anos o cenário verde da Zona Rural vem sendo interrompido pelo barulho de britadeiras dessa construção. Em uma área de 1.334.344 m², ou quase quatro Parques da Redenção, cerca de 200 casas estão sendo construídas, já em fase de conclusão. A estrada em frente às casas foi pavimentada e reformada pela construtora. Pontos de ônibus foram construídos por uma rota onde não passam linhas de transporte coletivo, e alguns metros adiante a infraestrutura volta ao que era antes, e o paisagismo com palmeiras desaparece. Essas construções, no entanto, não são consideradas irregulares. Constrói-se em locais apropriados e depois há a compensação das árvores cortadas. “No caso desses condomínios, que são moradias unifamiliares, casas, e não plurifamiliares, como prédios, eles têm sido permitidos e autorizados pela SMAM e pelo Município”, explica Paganella.

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Produzir para preservar A associação entre agricultura e preservação pode parecer difícil. Crescemos ouvindo que produtores são sinônimos de devastação. Mas, em Porto Alegre, acontece o contrário. A agricultura familiar e ecológica une-se a Organizações Não Governamentais (ONGs) e instituições em defesa da proteção do ambiente em que estão inseridas. Na visão da produtora agroecológica Mary Angela Fernandes Ferreira, isso acontece porque o produtor agroecológico planta por opção, gosta do que faz e tem vontade de manter a região preservada. Tal desejo, inclusive, levou produtores a acreditar que a transformação para Zona Rururbana evitaria ocupações irregulares, tornando possível preservar as áreas com mata nativa e modo de vida local; entretanto, a crescente especulação imobiliária trouxe outros impactos, provando o contrário. A produtora conta que aumentaram os ataques de animais à sua plantação. Um exemplo é a presença das lebres, antes esporádica e hoje constante. Como havia diversos espaços onde podia se alimentar, o animal ia à plantação de Ferreira de vez em quando, agora, com a construção de condomínios e o cercamento de muitas áreas, os produtos plantados pela agricultura passaram a ser a principal fonte de alimento das lebres.


// ESPECIAL

Para manter as características da região rural, é preciso que os porto-alegrenses a enxerguem e valorizem, pois não há conhecimento sobre sua existência ou que faça parte da capital.

Ainda há outros impactos relacionados à qualidade de vida dos antigos moradores, como o barulho, o trânsito e as mudanças no dia a dia das crianças, que não podem mais brincar na rua de forma segura. Com todas as mudanças e a falta de incentivos governamentais, algumas famílias aceitam propostas de construtoras e vendem suas terras. Viana lembra que o agricultor é pouco valorizado. “A mídia também vende o quê? Que é vergonhoso trabalhar com a enxada; é vergonhoso trabalhar com produção manual. A não ser que o cara plante um monte de soja com tratorzinho e GPS”, afirma. Devido a isso, a mão de obra é cada vez mais escassa. Viana conta que muitos jovens preferem ir até o centro da cidade trabalhar como servente em obras do que trabalhar na plantação ao lado de casa, sendo que a remuneração, segundo ele, é semelhante. Tanto para Viana quanto para Ferreira, a produção de alimentos de Porto Alegre carece de incentivos que vão além da isenção de IPTU. De acordo com a agricultura, o produtor de Porto Alegre enfrenta dificuldades desde o escoamento dos alimentos, até a obtenção de crédito no banco, passando pelos obstáculos impostos para vender os produtos tanto nas Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul (CEASA) quanto nas feiras. Muitas vezes, a solução encontrada pelos pequenos produtores é se reunir em associações. Os grupos

funcionam, mas o pequeno produtor continua sem autonomia. Voltar a delimitar a área como uma Zona Rural, para Viana e para Ferreira, seria inviável sem políticas públicas para manter o homem produzindo. Uma alternativa que surge é a criação de uma Área de Proteção Ambiental (APA). APAs são áreas em que há zoneamento de usos, ou seja, existem diferentes regras sobre o que é permitido fazer, há lugares destinados à plantação, outros à moradia e assim por diante. A vantagem apontada por Viana é a gestão dessas regras, feita pela comunidade por meio de associações. Ele explica que a proposta de uma APA de 5,5 mil hectares na divisa de Porto Alegre e Viamão é feita pela SMAM. Para Viana, deveriam ser 12 mil hectares. “A gente fez uma reunião com a galera da nossa ONG e a gente tem como comprovar que essa área tem que ter 12 mil hectares, essa área tem que pegar toda a orla”, afirma. A proposta ainda está em estágio inicial. Para manter as características da região, assim como a produção de alimentos, de acordo com Viana, é preciso que o porto-alegrense a enxergue e a valorize, pois não há conhecimento sobre sua existência, e muito menos de que ela é parte da capital. Ele cita que muitas pessoas dizem não querer ir para o fim do mundo e para essas ele responde: “O fim do mundo, magrão, não é o fim do mundo. É onde produzem alimentos para tu comer.”

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"Toda vez que me deparo com um problema, eu penso em pratos. Pratos bem sujos, engordurados, lambuzados com os mais variados restos de comida. E não só um, mas uma pia cheia deles. Penso em panelas também. Com o fundo queimado, aquele arroz grudado que teima em não sair. As panelas vão sobre os pratos, e a torre de louça suja amedronta novatos. Sempre que um problema parece ser insolúvel, lembrome de uma cozinha. Não a cozinha lá de casa, mas uma cozinha, digamos, “industrial”. E essa lembrança me acalma. É incrível como fico tranquilo recordando o som do detergente espirrando na esponja, da máquina de lavar funcionando a pleno vapor por horas a fio, do ralo entupindo com grãos de arroz, do tilintar de pratos e talheres sujos que parecem brotar à minha frente. Tudo isso me acalma porque tais lembranças me levam de volta à Irlanda, onde aprendi que não há situação que não possa ser enfrentada nem medo que não possa ser superado. Se venci aquela montanha de louça suja diariamente por um ano, não há nada que me amedronte aqui. E a cada nova vitória, uma pint de Guinness pra celebrar e brindar à Dublin, saudosa terra de pubs e povo gentil, que tão bem me acolheu. Viajar é preciso, e voltar pra lá mais ainda! Cheers!" Arthur Viana - kitchen porter


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// LIVRARTE

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em meio Ă s obras, o brasil se encontra // Texto e reportagem Arthur Viana & Gabriel Hoewell // Fotos AndrĂŠ Lacasi


// REPORTAGEM

gem do o prote r i e r r a B meses e Velho lidão. Após 10 a do d s a f a ren a so ga r r s duas a de amigos, d nas obras da A 8 anos, d 4 o o , r ã frio; a mo pe ércio da Silva voso de u ando co trabalh rro Humaitá, T m domingo ch estádio i u a b É Com o gre. , no Grêmio e de Porto A le le na cidade. hia, e muitos de ed Ba se desp aio, o último io, natural da e de cimento c r m é a e são gig nt o, T fim d te pront ar a erg uer o famílias. Não e, n e m a ajud pratic erdad su a s vieram ados e Vila Lib dos que para seus est , no meio da as, somaram ir m so retorna ara fazer surg ra 65 mil pes Paulo, Piauí, a p p : ã s l S o o teb o –, il – o pouc io de fu se todo o Bras íba, Maranhã ad á t s e ua um mbi Para ãos de q os, colo Norte, forças m io Grande do Sul – bolivian es. es R o Bahia, da A mérica d esmo portug u Talvez por s m o s é a h t a it n u . ), e v i zi uaios – lturais são m sto Milani (20 g a r a p , u u c g lí u nos s a A a n e Ja renç mos As dife ndo encontra s Ferreira (29) à A rea le e u t r q a n isso que oberto (18), Ch nsando em fre eita uma a R f c Marcos antos (32) des , eles tenham comem S ia ês s d o d io e n so que voc iros são om e a d a o d r m i e e x na, pró perg unta: “É v Os dois prim aílson, n . a ” a estranh cavalo aqui? ranhense e J ainda a e u d m q e carne , o frio giam os arles é o h d C e , m s a paulist lã prote am, com Já senti do. Toucas de zia. . o n a i a b fa ga gre, os via che aus que nem ha ores dos 19 gr o em Porto A le choa p ad trabalh r do pouco tem jamento em C lonlo a a a s e ós s um Ap dos em ma rotina. Ap oate 46, a c lo , o quatr aram u quentam a B lson, , já traç e í eirinha de ser viço, fr rmitório. Jana os s o a d v r r o o a se iç ga s h vizinho ão paga pelos adapo h n i n infer , já n rápida assíduo esmo com a rmanecer m cliente , pe nsa em mo passo, l. Porém do loca hum deles pe i O próx ar en tação, n rande do Sul. aulo e trabalh P e G d o ã o io t S ra por no R ena, é i ação do aero to até r A a s apó c er mpli abalho as de a o nas obr s. “Lá tem tr arcos Robert o M . h l s o u p le r r a o r a Gu enta Ch esmo que nã foi m o c , ” m 8 201 sso, ulher esse pa : “A minha m ias de u e d já d própria i cinco vontade eném e eu ped e mandaram n m ”, nos ganhar ão deram e demais N . e a t ç s i n r e t lic . ei .... Fiqu g undo contato embora e s m em u contou

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Rotina pesada As obras na Arena se estendem desde meados de 2010. Em abril, mais de 30 meses depois de iniciados oficialmente os trabalhos, mil operários (mecânicos e eletricistas, principalmente) ainda cuidavam dos acabamentos. A rotina de trabalho é pesada e o preparo físico dos obreiros, invejável: somando-se as horas extras, a carga horária pode chegar a 101 horas semanais – o batente inicia às 7h30min e termina somente às 22h. Finais de semana se transformam em dias úteis e as folgas são raras. Mesmo com a imensa demanda de trabalho, a compensação financeira fica longe do ideal: todos os entrevistados contaram que os salários dos auxiliares de obra no Rio Grande do Sul são os mais baixos do Brasil, girando em torno de R$ 1.200, no caso dos funcionários da Construtora OAS, multinacional baiana responsável pela obra da Arena. A situação é ainda pior para os obreiros do Beira-Rio, que trabalham para a empreiteira Andrade Gutierrez (AG): apesar de ali o salário ser mais alto, quando se subtrai os descontos o rendimento cai para aproximadamente R$ 700. Quem revela esse número é João Paulo Santana, 22 anos. Com o término das suas obrigações na Arena, ele migrou para as obras do estádio do Internacional. Além de ver o salário reduzido quase à metade, ele perdeu direito a uma vaga em alojamento: “A AG libera o alojamento só pra quem vem de fora. Como eu já tava em Porto Alegre, não recebi vaga”, conta. Hoje ele aluga uma casa junto com o colega Adenildo Santos, também peão do Beira-Rio. João Paulo é natural da Paraíba, mas vivia há alguns anos em Salvador, cidade natal de Adenildo. Antes de dividirem um imóvel em Porto Alegre, eram vizinhos na Bahia. Com as condições de trabalho que enfrentam hoje, ambos pretendem deixar a capital gaúcha até setembro – se o frio não os afugentar antes disso. “Quando viemos para cá, a empresa prometeu uma coisa. A realidade é bem diferente”, revela João Paulo.

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REVISTA BASTIÃO // OUTUBRO 2013

Paralisação e união O salário é baixo, o esforço, enorme. Ainda assim, os trabalhadores veem com bons olhos a experiência. Tércio não hesita em afirmar que valeu a pena o período vivido em Porto Alegre. “Não tanto pelo dinheiro, mas sim pela experiência e pelas amizades que construí”, relata. Morando em alojamentos em que dividem quartos com até dez pessoas, os operários criam amizade com os colegas, na maioria, nordestinos. Em abril, após uma confusão em frente ao alojamento da Rua Dr. Barros Cassal, que abriga quase 100 pessoas, a Brigada Militar foi chamada. Um dos operários, exaltado e embriagado, teria descontado sua revolta nos brigadianos, que, por sua vez, teriam reagido violentamente. O homem foi levado embora e nada mais se ouviu por três dias. Com a falta de mobilização para desvendar a questão, os funcionários organizaram uma paralisação, forçando a OAS a tomar medidas para resolver a situação. Em pouco tempo, o colega reapareceu. “Ele estava visivelmente dopado, internado em um hospital psiquiátrico e aparentando ter apanhado”, diz Tércio. Para ele, foi a força da união dos trabalhadores que o trouxe de volta: “Nós temos que cuidar uns dos outros. Aqui, os nordestinos são uma família”. Daniel de Jesus, 21 anos, trabalha pela primeira vez em obras, como servente. O piauiense chegou ao estado a convite de um primo que mora em Canoas. Deixou o Piauí não por falta de oportunidades de emprego, mas pelo desejo de conhecer outra cidade. Esse, aliás, é um dos motivos da vinda de muitos dos operários, que con-

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// REPORTAGEM

O acidente ocorrido na Arena, no final de janeiro, quando a queda do alambrado do setor da Geral deixou sete feridos, ainda é lembrado. Na percepção dos peões, houve erros pela pressa por parte dos engenheiros em entregar o estádio no prazo estabelecido: “O acidente naquela área foi por negligência e erro de engenharia”, acredita João Paulo. Daniel salienta a fragilidade da estrutura, despreparada para receber a torcida. O experiente Tércio ainda aponta que a altura da grade era inferior à necessária. Na semana seguinte às entrevistas com João Paulo, Daniel e Tércio, a polícia indiciou três engenheiros pelo acidente.

tam, inclusive, com a possibilidade de transferência para a África e América Central, onde as empreiteiras atuam. Daniel não mora em alojamentos. Vive com a nova namorada, moradora do bairro Navegantes. Existem alguns operários que vivem em alojamentos menos convencionais. Na Rua Max Juniman, há menos de um quilômetro da Arena, apartamentos foram alugados pela OAS em um condomínio. Uma casa amarela em frente ao estádio é outra república nordestina no bairro Humaitá. A condição dos alojamentos da Rua Barros Cassal, de Cachoeirinha e da Av. Sertório divide opiniões. Reclama-se da estrutura, mas a crítica não é dura: comparado aos demais alojamentos pelos quais já passaram, os operários garantem que o encontrado em Porto Alegre é bom o bastante. Ao que tudo indica, trabalhar em Guarulhos, que parecia uma boa saída, também não é o ideal: em setembro, o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 111 operários em situação análoga à escravidão nas obras do aeroporto. A OAS divulgou nota declarando que “a empresa, nas pessoas dos seus representantes, não teve qualquer participação nos incidentes relatados”. Nomeado “servente”, Daniel diz já ter feito de tudo um pouco na Arena. Nessa ocasião, controlava a saída de seus colegas em fim de expediente. Nove ônibus se acumulavam, prontos para distribuir os trabalhadores pelos alojamentos e pelos seis hotéis da Av. Farrapos que hospedam alguns operários. Após ser revistado na saída do estádio, um mutirão de capacetes se dirige aos veículos. São 22h e mais um dia se encerra. Em poucas horas, outro começa.

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EXÍLIO

REVISTA BASTIÃO // OUTUBRO 2013 // LITERATURA

e repente, entrei no útero. E por mais utópico que isso possa parecer, era exatamente como me sentia. Entrando de volta no lugar que nunca deveria ter saído. Meu nome é Johnny Gilighan e, apesar do nome, meu pai é brasileiro. Talvez o grande problema tenha começado no nome. Mas não quero entrar em tais méritos. Senão, algumas linhas mais e estarei culpando a nacionalidade de meu criador. O local do exílio é úmido e escuro. Como eu esperava. Sempre associei exílio a esses adjetivos. O lugar está transbordando de pessoas. Das mais diversas características. A energia é intensa e tênue. Apesar da escuridão, passando o olhar de um rosto para outro, vejo claramente mocinhos, bandidos, assassinos, fadas e vampiros, entre milhares de outros tipos. Fecho meus olhos com alguma força. Esfrego as têmporas com o nó dos dedos e no exato momento que entendo onde estou, uma voz arrastada // por Sergio Trentini atinge meus ouvidos. Quase como se atingisse o próprio cérebro. Como se fosse minha própria consciência. A porta magenta-purpurada é o local dos personagens inacabados dos escritores famosos. Em sua − Saia da porta, rapaz. Você é inacabado, maioria, estrangeiros. Criei grupos de apoios para permas não invisível. sonagens que renegam suas origens. Há diversos xinSomos a consciência coletiva. Somos partes inacaba- gamentos. Uns amaldiçoam a nacionalidade de seus das que buscam se completar, penso. E me afasto da porta. escritores. Para essas reclamações temos uma lista de grandes escritores do mundo inteiro. Para as outras reclamações, em geral, temos álcool. O exílio do exílio. – Logo mais vem outro. Com ou sem potencial, Há alguns personagens que não se satisfazem nem logo mais vem outro. com o álcool. São aqueles frutos de uma crônica ou conA voz sorumbática vem de um homem com chapéu de to. Mas uma crônica ou conto com potencial. Sentemcaubói. Um longo chapéu que tapa seus olhos. Meus olhos se margeados. Batem na porta, pedem para entrar. Dijá estão acostumados com a escuridão disforme e meu cé- zem que não aceitam ser fruto de meia página de uma rebro já está acostumado com a ideia do lugar que acabei. revista ou jornal. Querem mais, querem a eternidade. Quando a luz me chamou para a porta dourada, não À esquerda da grande sala, há uma porta dourada. Ao lado dessa, há outra, de cor que não consigo distin- entendi a principio. Lá dentro, o paraíso me esperava. guir. Algo entre púrpura e magenta, seja lá que cor, de O local dos personagens inacabados de autores famofato, tenha essas cores. Seja como for, acho nomes boni- sos postumamente. Autores que morreram e ganharam o Prêmio Nobel da Literatura ou qualquer outro tos, assim como a moldura das portas. A porta púrpura-magentada tem uma placa em cima. prêmio de algum festival do município. Aqueles que “Famosos” é o que diz em letras garrafais e prateadas. A ganharam repercussão através da morte. Aqueles que porta dourada não tem placa alguma, mas é possível ou- chegam ao ponto de ter leitores amantes até de seus vir risadas distintas vindas de dentro. Meus ouvidos — ou personagens inacabados. consciência — me diziam que, em breve, lá seria meu lugar. Alguns meses após ter entrado no útero, e estabe- – Nada mal... Para um brasileiro, pensei, antes de ser expulso do exílio. leci algumas regras. Eu realmente era um personagem principal. Um personagem principal inacabado. SobreO local de personagens-escritores é outro. É certa repus-me e, agora, todos novos personagens são recebigião do espaço onde a pressão é zero. O vácuo perfeito. dos com um sonoro: Rodeado de espelhos dentro de espelhos. Um ciclone eterno. Ou, se preferirem, uma página de revista. – Bem-vindo ao exílio dos personagens inacabados!

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// MInIRREPORTAgEns

MINIRREPORTAGENS

Icones do “The Noun Project” – thenounproject.com: “Traffic Cone” design de Jon Trillana, “Smart Car” design de Mark Wehrhahn, “Gun” design de Simon Child, “Prison” design de Luis Prado. from The Noun Project

Duplicações, viadutos, passagens subterrâneas: 68,75% das obras para a copa do mundo em porto alegre são pensadas para o carro.

5 MIL

68,75 %

Estatísticas das cidades dos carros: mais de 5 mil pedestres são mortos toda semana no mundo.

60%

25% mais de 60% das mortes por armas de fogo nos estados Unidos são suicídio

a gestão de Valter nagelstein na smic (secretaria da produção, indústria e comércio de porto alegre) deixou sua marca: 25% dos estabelecimentos da cidade Baixa foram interditados em novembro de 2011.

Uma em cada cinco grávidas brasileiras tem entre 10 e 19 anos.

no universo de 4.359 detentos do presídio central de porto alegre, apenas 9 têm curso superior.

para entender melhor esses números, acesse bit.ly/minirreportagens17 29


REvIsTA bAsTIãO // OuTubRO 2013 // ARREPEnDIDOs

7 de março de 2013 Querido diário, Fazer confisSões não é bem uma coisa a qual eu esteja acostumado. Além disSo, este depoimento intimista, escondido, não é muito minha cara. Gosto mesmo é de pegar no microfone, na frente da multidão, e colocar a boca naquele objeto. Entretanto, um perdão de pecados a la Vaticano, todo trabalhado na batina viria muito a calhar. Pequei, querido diário, pequei feio, pequei rude! Durante um ano vivi uma intensa paixão, mas meu sonho acabou. Bebê, meu grande amor, me deixou, e é tudo minha culpa! Ele não atende minhas ligações, não dá reply nos meus tweEts, não compartilha minhas postagens ungidas... NADA. Em declarações à imprensa tentei enviar mensagens ocultas, explicar minha situação. NosSa briga aconteceu por puro ciúme. Uma mensagem inocente dirigida a um amigo (MA-RA-VI-LHO-SO) que conheci online. Em entrevista, mandei o recado: “Não se deve julgar uma pesSoa que tem 40 anos por 140 caracteres escritos. Me deEm aqui uma chance.” De nada adiantou, Bebê continua a me ignorar. 1 de maio de 2013 Diarinho querido, Durante todo esSe tempo tentei me manter calmo, equilibrado... mas esSa paixão me consome. Em sonhos, sentia seus olhos sobre mim e arRepios me percorRiam a espinha como se fosSem os dedos dele a me tocar e, de vez em quando, imaginava-o a lançar-me aquele seu sorRiso sacana que me enlouquece. Muitas vezes, para me consolar, lia um bilhetinho, escrito com todo o carinho, que guardo em minha carteira: “Fefê, queima a rosca todo dia ”. Finalmente, retomei minha sanidade. Percebi que as coisas não poderiam permanecer asSim e que eu precisava de ajuda capacitada. Fui a muitos médicos, mas todos me diziam a mesma coisa: “Amor não é doença, Pastor.” Quem são os médicos para dizer a um pastor o que é ou não doença?? Não tenho outra escolha, tentarei obrigá-los por lei a me curar! A não ser que Bebê se arRependa e volte para mim. Hoje ele deu uma declaração linda na televisão: “Como capitão do Exército, sou um soldado do Fefê.” IsSo já é suficiente para ter meu peito aquecido pelo calor da sua voz, imaginando-o susSurRar palavras doces no meu ouvido. Tenho esperanças novamente! Mas preciso disfarçar... desviar a atenção. A minha reputação e a reputação de macho Bolsonaro estão em risco (haha). Apoiarei meu amicísSimo Dudu Cunha no seu projeto contra a discriminação de heterosSexuais. Mascarei! #BixaMá

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