recarregando as baterias da cidade edição 4 ano 1 2011
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á de saltar aos olhos atentos de quem acompanha esta publicação algumas mudanças a partir daqui. Deixamos de lado o texto corrido e pouco espaçado de nosso editorial. As modificações na área gráfica, esperamos, devem aliviar a leitura. Os notáveis e involuntários equívocos que até aqui cometemos nos parecem naturais. Ninguém tem a obrigação de ser Shakespeare, mas todo mundo tem que ter direito à poesia. Festejamos a efervescência, a criação, a livre iniciativa intelectual. Quem precisa de ordem pra escrever? Quem precisa de ordem pra pintar? Quem precisa de ordem pra rimar? Não se pode esperar nada do centro se a periferia está morta. O Bastião muda um pouco para tentar seguir mudando. Como um pássaro, o tempo voa, à procura do exato momento onde o que você pode fazer fosse agora. Somos um exército de caranguejos, de andada. Porto Alegre é, cada dia mais, um estuário: a água salobra desova criação. Pouco a pouco, injeta-se energia na lama e estimula-se a fertilidade das veias porto-alegrenses. As artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular. Avistando o cenário em torno de nosso próprio eixo, muita coisa se sobressai. Não sabemos o que vai pular desse caldeirão. Um satélite na cabeça, torre à vista!
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Eduardo Simch é pintor, ilustrador, cartunista e gravurista. Se a prensa de Gutenberg deu o pontapé inicial da imprensa moderna, a do Bastião aí em cima continua procurando por novas possibilidades no jornalismo contemporâneo. www.esimch.blogspot.com
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torre à vista! Redação Arthur Viana, Carlos Machado, Cíntia Warmling, Douglas Freitas, Gabriel Hoewell, Gilberto Sena, Luciano Viegas e Luiza Müller Projeto gráfico e editoração Ana Elizabeth Soares e Ramiro Simch Capa André Lacasi e Ramiro Simch Arte André Lacasi, João Filipe Padilha, Lucas Monteiro e Ramiro Simch Relacionamento Ana Paula Neri, Maurício Pflug e Samantha Diefenthaeler Colaboradores Ovos e Llamas e Rodrigo Steiner Web www.bastiao.net | www.twitter.com/revista_bastiao | www.facebook.com/revistabastiao Tiragem Mil e quinhentos exemplares
veja bem
DESAFIANDO ROMA entrevista João Pedro Teixeira e Luciano Viegas
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Ovos e Llamas
o mangue, tudo é, foi, ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama": dessa forma o antropólogo recifense Josué de Castro radiogeografou o ciclo da fome à beira dos manguezais, dito o ecossistema mais produtivo do mundo. Tirando daí sua inspiração, Fred Zero Quatro escreveu, em 92, o manifesto Caranguejos com cérebro, incitando um choque urgente texto e reportagem na apática cena cultural de Recife. Sua e Luiza Müller Carlos Machado banda, o Mundo Livre S/A, ao lado de Chico Science & Nação Zumbi, tornou-se grande expoente da nova música, o Manguebeat, que misturava hip-hop, rock, maracatu e o que mais estivesse ao alcance dos ouvidos: como metáfora, uma antena parabólica encravada na lama, sintonizando-os com o resto do mundo. O Manguebeat penou com a morte precoce de Chico, em 97. Fred segue a pleno vapor, urubuservando a situação. Ele abre o novo disco, As novas lendas da etnia Toshi Babaa, dizendo que o aquecimento global é pura sacanagem do astro rei, que anda tarado pelas moças cariocas.
Bastião - Como foi a sua infância? Já usava esse óculos, essa barba? Fred Zero Quatro - Então, meu parto foi em Recife, porque Jaboatão [dos Guararapes] não tinha serviço de maternidade muito confiável...
Até quando você ficou em Jaboatão? Cresci em Jaboatão até os 10 anos. Uma cidade muito conservadora, provinciana pra caralho.
Então os óculos foram muito importantes... Com certeza. Eu cito o Mario Quintana no início do clipe de Samba Esquema Noise: “alguém já disse que o destino é o acaso com mania de grandeza”. Só que na minha família ninguém teve uma formação em nível superior, então me davam livros, mas eram enciclopédias, contos de fadas, aí tinha os heróis... Era aquele conhecimento bem genérico. Mas foi massa porque por aí comecei a me interessar mesmo por leitu-
ra. Dos seis filhos sou o único que tem diploma universitário. E como você foi parar na faculdade de jornalismo? Com nove anos eu fui praticamente obrigado a cumprir um vestibular, que até hoje muita gente ainda cumpre, que é o vestibular pro Colégio Militar. E, realmente, é um nível muito acima da média, em termos de exigência, disciplina... Fiquei lá no período mais duro da ditadura, um pedaço do Médici e um pedaço do Geisel. Era uma fábrica de doido: ou o cara saía um reaça ferrenho ou comunista (risos). Uma fábrica de extremistas... Em 77 eu conheci O Pasquim. Aí comecei a me interessar por esse lance da clandestinidade, a mensagem cifrada. Eles usavam uma linguagem que eu demorei pra entender. No período da ditadura, era quase um dialeto... Me decidi pela comunicação por conta d’O Pasquim.
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Cesariana ou parto normal? Boa pergunta (risos). Eu era muito novo pra lembrar, mas acho que foi cesária. Tem um conterrâneo meu lá de Jaboatão, o fotógrafo Gilvan Barreto, fazendo um livro sobre Moscouzinho, como a cidade era conhecida, porque foi o primeiro município do nordeste governado pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro). Esse prefeito era um médico e ele descobriu agora que foi o mesmo cara que fez a minha cesária!
Uso óculos desde os quatro anos, já que você perguntou, porque tive um sarampo muito forte. Eu queria estar na rua, brincando, jogando bola, mas, de tanto quebrar óculos, machucar o nariz, minha mãe proibiu. Engraçado que éramos seis irmãos, todo mundo ganhava de presente carrinhos, bola, pião, só que eu ganhava livros... Fui condicionado a ser o intelectual da família desde cedo.
veja bem Você se inspira na verve irônica d’O Pasquim para compor? Eu acho que o humor é uma das armas mais eficientes. Na música, tive também o legado positivo do meu pai. Acho que ele era um cantor frustrado, tinha uma ótima voz. Tomava um uísque e começava a cantar. E ele ouvia coisa bacana: Elza Soares, Jair Rodrigues, Milton Nascimento, Simonal, Zimbo Trio, Bossa Nova. Depois de um tempo ele passou pra um lado mais brega, tipo Altemar Dutra, Nelson Gonçalves. Na década de 60 eu ouvia bastante essas coisas. A banda surgiu enquanto você ainda estava na faculdade? Em 82, mais ou menos, eu tinha uma banda chamada Trapaça e já tava na faculdade, morando em Recife. Quando saí do Colégio Militar, eu conheci o Renato L [jornalista, participou da criação da cena Mangue]. A gente se conheceu na praia e começou a comprar disco do The Clash. Ele era muito fã dos Beatles e eu, dos Rolling Stones. Eu era quase um militante punk. Logo no primeiro semestre, me envolvi numa greve e virei centro de disputa de várias organizações clandestinas. Aí nego do MR-8 vinha falar comigo. É engraçado que eles tinham a minha ficha toda pronta. Você chegou a participar do MR-8? Não, eu dizia que já tava participando de outra organização, e os caras, sem saber qual era, ficavam confabulando entre eles. Só que era o Contingente Zero, a minha brigada punk (risos). O que me salvou de entrar nesse lance clandestino foi o The Clash. Quando eu entrei na Federal, principalmente essa área de humanas, era uma comédia... as notas eram todas de trabalho. Ariano Suassuna só fazia contar piada. Foi meu professor em duas cadeiras.
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Depois você fez uma música para tirar com a cara dele... É, eu fiz O Ariano e o africano. Quando ele foi secretário do governo, inventou uma tal de aulaespetáculo, que é praticamente o tipo de aula que ele dava na Federal. Era um stand-up Armorial de nacionalismo, regionalismo, metendo pau em roqueiro, em guitarra, Chico Science. E olha que era Ariano Suassuna... A faculdade valeu pelos contatos que eu fiz. Você trabalhou na área de jornalismo depois? Quando eu tava saindo, tinha uma entrevista pra uma vaga de programador na Rádio Transamérica, que foi meu primeiro emprego. Ainda tinha
uma programação alternativa e tal... a gente tinha um programa diário às 18h, chamado New Rock. Passei dois anos e pouco lá, aí a Transamérica colocou um outro coordenador, virou brega total. Pedi demissão, fui pra São Paulo, fiquei um ano vivendo de bicos. Depois pedi arrego pra família e voltei pra Recife. Era um período do Mundo Livre em que a gente era vaiado em todos os shows. Porque ia tocar em clube de rock’n’roll, chegava lá com tamborim e cavaquinho, a galera não curtia. A base do primeiro disco foi o material que a gente produziu durante dez anos de garagem...
“Pra uma cidade como Recife, que é longe da mídia, a indústria foi fundamental” Feito esse translado da garagem ao contrato assinado, até hoje você costuma destacar a importância da indústria fonográfica, para que a música possa de fato existir... Então, eu já sou o tiozinho da galera, já tenho os compromissos da banda, dois filhos. Não tenho mais energia nem tempo de ficar acompanhando tudo. Até perguntei pro Tom Rocha [percussionista do Mundo Livre], que tem outra banda e vive indo pra show, quais são as revelações de Recife hoje? Não tem. Tem duzentos, mas nenhum que você diga: “Essa galera tá com a carreira encaminhada”. Nem que faça algo diferente ou que mostre algum sinal de que é uma aposta. O legado do Manguebeat se perdeu? Não é nem isso, mas tem a ver com o que você falou, da indústria. O cara não pode perder de vista que, pra uma cidade como Recife, que é longe da mídia, a indústria foi fundamental. Aí a indústria acabou. O Abril Pro Rock era o quê? Um elo entre a cena local e a indústria. Quando ninguém conhecia o Los Hermanos, eles levaram a banda lá. Uma coisa é você questionar que indústria faz jabá, que tem suas práticas predatórias, perversas e tal. Wander Wildner mandou bem pra caralho esses dias. Ele diz que pra ganhar dinheiro com música hoje é fácil: “basta fazer uma música muito ruim, ter um produtor que paga jabá em tudo que é lugar, ter uma assessoria de imprensa bem cara pra mentir a seu respeito, encher o saco de todo mundo na internet...” Quer dizer, é muito fácil.
O que mudou da década de 90 pra cá? Antigamente, uma banda como Mundo Livre, Cascavelletes, Doiseu Mimdoisema, DeFalla... qualquer banda alternativa que tinha um trabalho consistente, anunciava que tava com material pra disco novo, iam ter vários selos com proposta de contrato. O Mundo Livre anunciava que tinha um material novo, não demorava três meses e a gente tava com o disco pronto. A gente podia escolher entre os selos. Teve uma época que rolou até disputa entre a Abril e a Trama pelo Por pouco. Agora é a banda quem tem que correr atrás? As gravadoras não têm como bancar mais. Como é que eles vão investir em disco se ninguém compra? Aí tem gente que diz que pra sobreviver “tem que ser criativo, eu tenho minha grife, não sei o quê”. Quer dizer, de música não dá pra viver mais? Há cem anos, antes do rádio, o compositor popular era marginal, porque não existia indústria. O cara era pego com o pandeiro lá na Lapa e era perseguido pela polícia por ser vagabundo, porque não era uma profissão formal. Antes da Globo, a menina que era atriz no Rio era tratada como puta. É toda uma dimensão antropológica que precisa ser notada. O compartilhamento livre está matando a música? Eu vejo a galera que levantou essa bandeira há alguns anos, e hoje a banda tá se esfacelando. Mombojó, por exemplo. O baixista saindo pra seguir outra carreira. Quer dizer, a internet é o canto da sereia. Só que virou um novo fundamentalismo. O cara questionar qualquer outro efeito colateral, digamos assim, da internet, é ser um herege. O download tem o lado da transgressão, mas, daqui a pouco, aquela banda que você curtia pra caralho acabou. A ideia não é criminalizar ninguém. Ninguém deve ser processado por baixar música. É só que se tenha a noção de consumo responsável. O sustento dos músicos não vem dos shows? Certo. Aí você vai fazer show e fica um, dois, três anos com o mesmo repertório. Vai chegar um momento em que a galera quer ver coisa nova. Você não vai conseguir se manter na estrada se não se renovar. Antigamente, a gente não tinha a aspiração de ganhar rios de dinheiro, mas não precisava tirar grana de show pra bancar disco, que é o que acontece hoje. Falam de sustentabilidade, é o termo chavão hoje em dia. Nego não tem noção de que, quando baixa um disco, tá
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ameaçando estúdios, profissionais de engenharia de som, toda essa cadeia produtiva. Mesma coisa é a televisão. Uma emissora comercial, uma RBS, a receita deles vem de quê? Vem dos anunciantes, e o que eles vendem é a sua atenção. Então, quando você passa dez minutos na frente de uma televisão, você está vendendo o seu tempo. Não existe almoço grátis.
Aproveitando o comentário sobre a RBS, como você vê o jornalismo feito hoje? A notícia também é uma mercadoria, como o entretenimento. Também é uma forma de manipulação. Esse embate entre o poder público e as emissoras comerciais, por exemplo. Eu acho patético que, para as concessões de TV, de rádio, não se cumpra a Constituição. A mídia não deixa, ficam dizendo que é censura, controle, mas não é. É aplicar a Constituição. Você não pode ter três canais numa mesma cidade. A concessão é renovada periodicamente, mas tem que ser avaliada. Tá ali a RBS explorando a concessão, mas ela é pública.
“A internet é o canto da sereia” O Mundo Livre sempre se posicionou como uma banda militante da contra-informação. O zapatismo foi um tema recorrente. Quais são hoje as grandes preocupações? Tem a questão da biopirataria, que eu falo nessas músicas do disco novo, isso que a gente tá falando até agora, desse barbarismo cibernético. Enfim, é o conceito de liberdade. Todos esses temas com que eu tenho lidado, que mudam o foco dependendo da época, a questão central sempre
é a liberdade. Mas liberdade não pode ser vista como algo absoluto. Ninguém vive na selva.
hipocrisia. É a liberdade do mercado. O lucro tá acima da vida das pessoas.
Você ainda acredita no tal passeio pelo mundo livre? O mundo livre sempre foi uma ironia. A expressão surgiu no contexto da Guerra Fria, que tinha de um lado os que defendiam o liberalismo, aquilo de não poder ter sindicato, o Estado mínimo, cobrar menos imposto. E, do outro lado, um mundo livre do bem estar social, de um Estado provedor. Por exemplo, Cuba, que tem precariedades, é claro, porque é uma economia que sofre um bloqueio internacional. Aí você vê nego que sai dos Estados Unidos pra tratar a saúde lá. A expressão “mundo livre”, tão usada pelos liberais, surge de uma forma irônica, por isso o S/A. Nesse mundo livre preconizado por aí pelos liberais, eu nunca apostei muito, sempre achei
Como foi o show aqui em Porto Alegre? Aqui eu esqueci, mas, no show que a gente fez em São Paulo, antes de cantar Livre iniciativa, eu citei um lance que o Renato L me mandou essa semana, dizendo que o show era dedicado a catorze indivíduos que se suicidaram entre janeiro e setembro, que tinham várias coisas em comum. Todos tinham entre 18 e 24 anos, trabalhavam na indústria de alta tecnologia, eram chineses, ganhavam um dólar por hora, semi-escravidão, e todos eram empregados de Steve Jobs, da Apple, o cara que dizia “faça diferente”. Numa mesma fábrica, catorze jovens se suicidam, e, de repente, Steve Jobs é um santo. Aparece na capa da Veja como se estivesse nas nuvens, só faltou uma auréola.
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Marginalidade fedendo a álcool Durante os anos 70, a poesia circulava de mão em mão através de livretos impressos por um antiquado maquinário: o mimeógrafo. texto e reportagem Cíntia Warmling e Douglas Freitas
A
prova chegava, e tu cheirava de cima a baixo. Aquele odor forte de álcool te viciava e era a principal característica dos impressos em mimeógrafo tão utilizados pela tua professora. Além de ser usado na escola, esse esquecido maquinário foi utilizado por um grande grupo de pessoas a fim de difundir a poesia marginal no Brasil. A chamada Geração Mimeógrafo revolucionou a maneira de editoração dos livros nos anos 70, introduziu vorazmente o cotidiano na temática dos versos da época e popularizou de fato a poesia durante o período da Ditadura Militar. Censura, hiperinflação, bloqueio editorial. Quem iria investir capital em um poeta obscuro para depois ver um censor recolher o livro? Qual editora iria publicar poesia marginal sabendo que ninguém leria esse gênero? Todo o sistema ia contra o fomento da arte. Eis que, na década de 70, encabeçado por Ana Cristina César, Francisco Alvim, Paulo Leminski, Ricardo Carvalho Duarte (Chacal) e Cacaso (Antônio Carlos de Brito), começa no Rio de Janeiro e em São Paulo o movimento que seria conhecido posteriormente como Geração Mimeógrafo. Esses poetas não só escreviam. Imersos no álcool, editoravam, imprimiam e distribuíam os seus livros. Como certa feita declarou o integrante do movimento, Torquato Neto, “um poeta não se faz com versos”.
Os poetas da geração vendiam sua arte. Fizeram com que a poesia transitasse por ruas, praças e bares. No processo, tudo era considerado suporte para a expressão e impressão dos versos, fosse um folheto, uma camiseta, através de Xerox ou de apresentações em calçadas. Para o Doutor em Letras, Antônio Sanseverino, essa geração de escritores é central para pensar a poesia marginal: “A forma de mimeografar, essa produção caseira, permitia que os autores encontrassem novos púbicos e também ampliassem as formas de implementação formal e temática”.
O desleixo intencional O contato estabelecido através da distribuição direta não se restringia apenas à forma de produção e de venda. A poesia marginal dos anos 70 faz com que as pessoas não se sintam na obrigação de ser entendidas em literatura e poesia para compreender os textos. “A presença de uma linguagem informal, à primeira vista fácil, leve e engraçada, e que fala da experiência vivida contribui com o encurtamento da distância entre autor e leitor”, evidencia a escritora Heloísa Buarque de Hollanda, organizadora do livro 26 poetas hoje. As obras daquele período vêm para quebrar a forma rígida como as poesias eram escritas até então. Os movimentos prévios traziam uma lógi-
ca de cuidados, de elaboração formal que contraria essa poesia jovem. Como explica o professor Sanseverino: “Essa produção abre para uma captação do instante cotidiano e para um trabalho de informalidade com a linguagem, de ruptura realmente com a exigência que se colocava até o momento”. Um dos grandes representantes dessa captação da rua, da naturalidade linguística é Francisco Alvim. Chico absorvia a voz do dia a dia e demonstrava em seus versos toda uma carga de preconceito embutida em qualquer declaração corriqueira de uma dona de casa sobre uma empregada doméstica. De um lado, os marginais aprenderam, com a dicção de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond, a tirar poesia do cotidiano. De outro, viram com a poesia concreta que era possível dispor as palavras nas páginas de modo livre. No entanto, essa influência era muito natural. Não havia preocupação com o que deveria ser tratado na poesia e ainda menos com a forma que os versos deveriam ser dispostos no livro. Isso não era importante. O importante era criar. A Geração Mimeógrafo simboliza um grupo atuante na contracultura. “Os poetas estavam à margem da luta política e na luta com os costumes. Ocorria uma revolução iniciada em 60 com a pílula anticoncepcional, com a evolução do capitalismo, com a diminuição das famílias,
"...não tem que me mostrar não se permite nunca mais olhares a outra mesma face ao outro mundo tensões de cismas crises e outros tempos. está vetado qualquer movimento.” mudar de ideia. é proibido.
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torquato neto
Rodrigo Steiner
não se fala, não é permitido:
com a postergação do casamento por motivos econômicos. Eles estavam inseridos neste contexto”, elucida o poeta e Doutor em Letras, Paulo Seben. Para o professor Antônio Sanseverino, a poeta Ana Cristina César é um ícone desse momento: “Ela pensa a poesia como expressão dessa descontinuidade de gerações. São novas demandas, novos anseios que antes não eram pauta, e ela traz muito bem isso”. Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso: todos eram apoiadores da poesia marginal. Não é à toa: o poeta Torquato Neto compôs mais de 20 músicas para Caetano e Gil. Waly Salomão, autor do livro Me segura qu’eu vou dar um troço (1972), teve suas canções interpretadas por Gal Costa, Maria Bethânia e Caetano. “As parcerias de música - que vem da Tropicália, da geleia geral - com a poesia marginal acabaram com essa fronteira entre canção e poesia”, esclarece Sanseverino.
26 poetas hoje Em 1976, Heloísa Buarque de Holanda reuniu no livro 26 poetas hoje os principais escritores da poesia marginal. A obra - por ter sido publicada por uma editora tradicional - trouxe visibilidade para esse movimento. Entretanto, ela não foi muito bem recebida quando lançada, como conta Heloísa: “A imprensa ficou dividida, mas a crítica foi muito contra, dizendo que aquilo não era poesia, que tinha muito palavrão, que não podia ser considerada literatura. Do público mais acadêmico foi uma rejeição, mas do público jovem tinha uma adesão total. Os saraus eram cheiíssimos”. O principal desafio foi decidir quais seriam os autores publicados. Heloísa tentou seguir uma linha em que as poesias se assemelhavam através da temática cotidiana e da linguagem coloquial. Entre os escolhidos se destacam os cariocas Chacal (Ricardo de Carvalho Duarte) e Cacaso. O primeiro foi um dos pioneiros na utilização do mimeógrafo para divulgar a sua poesia, com o livro Muito prazer, de 1971. Seu segundo livro, Preço da passagem, foi lançado
no ano seguinte, também mimeografado. Já Cacaso, além de poeta e professor, estudou o cenário poético de 1970, incluindo a Geração Mimeógrafo. Ele também escreveu junto com Heloísa o artigo Nosso verso de pé quebrado, uma síntese da poética brasileira.
Marginalidade no Rio Grande do Sul Entre os gaúchos, a poesia marginal teve uma maneira ainda mais irreverente de apresentação na década de 70. Ao invés de ser impressa em mimeógrafos, como ocorreu com os contemporâneos cariocas, aqui no estado, alguns trabalhos foram produzidos com uma impressora Monolith. Circulando entre amigos e bares, de uma maneira realmente marginal, as publicações reuniam poetas, jornalistas, fotógrafos e ilustradores em uma diagramação caótica. “Não era uma revista, vinha em um saco ou em um envelope, que era chamado Pedra Mágica. A editora se chamava Lucidez Relativa”, lembra o jornalista e integrante do movimento Clóvis Malta. O que os jovens da época queriam era simplesmente que o que produzissem fosse para a rua. Difícil explicar como tudo começou: “A gente não sabia muito bem qual era a origem, era uma coisa meio anárquica, assim. A gente se reunia na Redenção, num bar, ia publicando e, quando via, estava pronto”, explica Clóvis. Entre os participantes da Pedra Mágica estava o ainda desconhecido Caio Fernando Abreu, que já era escritor e buscava ajudar os colegas a publicar seu material. Além das obras do grande contista gaúcho, trabalhos cooperativos de participantes do movimento foram lançados posteriormente, como as coletâneas Teia, Há Margem e Vício da Palavra.
A herança do movimento A qualidade do que era produzido na época alimenta grandes discussões. A própria organizadora do 26 poetas hoje questiona a poesia que apresentava no seu livro: “Parte significativa da chamada produção marginal já mostrava aspectos de diluição e de ‘modismo’, em que a pro-
blematização séria do cotidiano ou a mescla de estilos perde sua força de elemento transformador e formativo, e acaba por perder o valor simbólico e, portanto, poético”. Segundo Paulo Seben, não se pode tirar muitos nomes do movimento apesar da multidão de poetas que possuía. “Daquela época sobrou Glauco Mattoso, Paulo Leminski. Na verdade, foi uma época de muita efervescência, o que é muito válido. É como digo, não precisamos ter bons escritores. Precisamos ter muitos escritores. Ninguém tem a obrigação de ser Shakespeare. Mas todo mundo tem que ter direito à poesia”. O sistema de distribuição colaborou com essa falta de glorificação dos membros: por não terem seus livros editados, hoje os escritores desse movimento literário não são mais tão lembrados. A Geração Mimeógrafo não foi um movimento com características padronizadas. No entanto, revolucionou a maneira de produção tanto temática quanto editorial. Para Seben, todos os integrantes têm uma importância grande: “eles buscaram novos caminhos de expressão, desenvolveram novas formas de chegar ao público. Eles de fato popularizaram a poesia”. Em 1976 Heloísa se perguntava se a poesia marginal feita naquela época seria mesmo um movimento literário ou apenas uma “moda” do período. Trinta e seis anos depois, ela não hesitou ao responder: “Eu acho que era sim um movimento literário, que influenciou inclusive o que veio depois. A geração deixou essa coisa da informalidade da poesia acessível, e do prazer da poesia. Isso até hoje repercute”. Aos poucos que ficaram, é preciso louvor. É como poetizou o marginal Carlos Saldanha em Pesquisa utilitária: “De cem favoritos reais / noventa e seis foram guilhotinados. / É preciso conversar atentamente / com os quatro que sobraram...” entra no nosso site e confere as poesias do período
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A HORA DE PARAR Famosa por seus pubs, por sua cerveja e por seus bêbados, a Irlanda enfrenta uma doença crônica: o alcoolismo. texto e reportagem Arthur Viana
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Bill W. ainda era William Griffith Wilson, um acionista da Wall Street que perdera tudo na Grande Depressão, inclusive a si mesmo. Pendurado na janela do seu escritório no alto de um prédio na rua que simbolizava o decadente capitalismo norte-americano, William deu uma boa olhada para baixo e para as pessoas que passavam. Apesar de ressentir os efeitos da crise, o mundo girava. Ele suspirou. Esticou o olhar até onde pôde e viu a esquina da Rua 56. Podia quase ouvir o barulho frenético do pub que lá costumava frequentar. Olhou outra vez para baixo. Olhou outra vez para a esquina. Na hora do passo final, a garganta secou. Bêbado inveterado, entre a morte e o álcool, escolheu a bebida, mesmo sabendo que, no fundo, não havia escolha. Era morrer ou morrer – agora ou ali adiante. Entregue ao seu vício, William precisou de diversas internações. Foi em uma delas, já em 1934, que algo estranho aconteceu: uma forte luz clareou o quarto e o caminho de William – o que ele mais tarde declarou ter sido uma “intervenção divina”, apesar de agnóstico convicto. A partir daquele momento iniciou uma cruzada contra o álcool. Em 1935, fundou os Alcoólicos Anônimos e se tornou Bill W., o anônimo mais influente do mundo. Partindo do pressuposto de que somente um alcoólatra é capaz de compreender e ajudar outro alcoólatra, a hoje famosa organização reúne aproximadamente dois milhões de pessoas na luta contra o abuso do álcool ao redor do mundo.
Arthur Viana
UBLIN - Nova York, 1929. Naquele ano,
Dublin, 2011. Enquanto fogos de artifício iluminavam o céu irlandês na festiva noite de Halloween, o silêncio imperava no auditório do hospital psiquiátrico São Patrício. Contrastando com o resto da cidade que farreava no Dia das Bruxas, 25 pessoas se reuniam ali na luta contra o alcoolismo. Suas vozes ecoavam pelas paredes do auditório e se perdiam pelos corredores quase vazios do hospital. “Estou sóbrio há 15 anos”, diz F., como a encorajar seus colegas. “Venho às reu-niões uma vez por semana, mas costumava vir diariamente. Me faz muito bem – a vida é muito boa para mim após tanto tempo frequentando reuniões do AA.” F. não quer que sua identificação seja revelada. Como o próprio nome da organização deixa claro, os que frequentam as reuniões do AA prezam pelo anonimato. De acordo com o conselho que administra os assuntos referentes ao grupo, “o anonimato é um princípio básico na associação. Aqueles que relutam em procurar nossa ajuda talvez superem seu medo se eles confiarem que seu anonimato será respeitado”. Diferente de Bill W., F. nunca presenciou uma intervenção divina. Percebeu por si só que precisava de ajuda e aceitou quando amigos o mandaram para os Alcoólicos Anônimos. “O fundo do poço é quando alguém percebe que o álcool não está funcionando e decide fazer algo para ajudar a si próprio”, confessa. Morador dos subúrbios dublinenses, ele reconhece que a Irlanda enfrenta um problema histórico contra o álcool, mas não vê a situação do alcoolismo pior no país: “Problemas com bebida estão em toda parte; a Irlanda não é pior que qualquer outro país. Não é mais difícil se recuperar aqui – é difícil em qualquer lugar. E o AA é muito bom no mundo inteiro”, defende. O álcool é, na verdade, uma questão cultural na ilha irlandesa. Está nas músicas, nos filmes, nos livros. Incontáveis turistas entram e saem diariamente dos pubs da região do Temple Bar, no centro de Dublin. Um dos museus mais visitados no país é o da Guinness, stout produzida em
sete em cada dez irlandeses consomem álcool em níveis nocivos à saúde
um em cada dez irlandeses sofre de alcoolismo
fonte: www.alcoholireland.ie
Dublin reconhecida como a melhor do mundo e orgulho local. É o turismo bêbado. “Um bom desafio seria atravessar Dublin sem passar por um pub”, diz Leopold Bloom, personagem central em Ulisses, romance clássico do escritor irlandês James Joyce. Mesmo em meio à crise financeira que ameaça a economia do país desde 2008, os pubs continuam sempre lotados. Não é à toa: enquanto a média de preços subiu 2,6% entre setembro de 2010 e setembro de 2011, o preço do álcool caiu 1%. Além da queda de preços, a quantidade de lojas off-license (estabelecimentos com licença para vender bebidas alcoólicas) aumentou em níveis sem precedentes, facilitando ainda mais o acesso ao álcool. A luta contra o alcoolismo é a mesma em qualquer país do mundo, mas na Irlanda a situação é drástica: a doença é crônica. É estimado que um em cada dez irlandeses seja alcoólatra. Sete em cada dez homens consomem álcool em níveis nocivos à saúde. A cada sete horas, um irlandês morre em decorrência de uma
doença relacionada à bebida. Entre 60 e 100 mil crianças vivem em famílias com problemas de alcoolismo. Jovens irlandeses entre 16 e 17 anos gastam aproximadamente 145 milhões de euros em álcool por ano, enquanto no mesmo período o governo gasta quase quatro bilhões de euros em ajuda àqueles que abusam da substância. Ações governamentais para coibir o consumo de bebidas alcoólicas estão em discussão, como, por exemplo, o preço mínimo, uma taxa sobre a quantidade de álcool em cada bebida – quanto maior o teor alcoólico, mais caro o produto. Mas nenhuma ação governamental vai atingir os que enfrentam a bebida como os Alcoólicos Anônimos – nem em número nem na forma. Na Irlanda são mais de 750 grupos e 13 mil membros. “Não há eleições”, conta F. “Nossos líderes não são nada além de membros confiáveis. Ninguém trabalha para o AA. Ninguém é voluntário. Somos todos membros. Não há hierarquia. No fundo, e isso é o mais irônico, não há nem luta: nos rendemos ao álcool para vencê-lo. Um dia por vez. Na Irlanda ou em qualquer lugar do mundo”.
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TERRITÓRIOS DA AUTODETERMINAÇÃO POPULAR texto Gabriel Hoewell e Luiza Müller reportagem Gabriel Hoewell, Gilberto Sena e Luiza Müller que passam por fora do prédio e até mesmo antenas parabólicas e aparelhos de ar condicionado indicam que há gente morando lá. Eles possuem um Habite-se parcial, que permite a instalação de luz e água, por exemplo. O acesso – que aparentemente se dá por uma escada praticamente escondida – nos foi impedido por um homem que informou só haver depósitos nos pavimentos superiores. Nos cinco andares imediatamente acima não há nem janelas. Do nono em diante, as paredes estão inacabadas. O projeto de Gotuzzo, intitulado Autogéré, prevê uma modernização do prédio e a criação de um centro comunitário autônomo, que possibilite habitação, geração de renda, formação e
Gabriel Hoewell
para revelação de foto, tatame, serigrafia, sala de computação e uma cozinha industrial. Além disso, grandes quartos abrigam um bom número de pessoas. É um conceito semelhante a esse que o arquiteto planeja implantar na Praça XV, no Centro de Porto Alegre. O esqueleto de um prédio, com 19 pavimentos de concreto armado e mais de 6km² construídos, segue inacabado desde 1959, quando problemas financeiros inviabilizaram sua construção. Atualmente, pequenos comércios estão instalados no térreo, sendo a única parte do prédio com Habite-se (ato administrativo que autoriza o início da utilização efetiva de construções). Nos três primeiros andares de cima, canos
Gilberto Ribeiro e Marcelo Gotuzzo
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m Nova York, Lou Reed, Dylan, Dalí, Capote, Allain Ginsberg e Andy Warhrol se reúnem. Encontros desse porte aconteciam na chamada Factory, de Warhol, que funcionou de 1962 a 1968. Esse e outros ateliês surgiram da ocupação e da compra, por preços módicos, de fábricas que saíram de Nova York em busca de terrenos mais baratos durante a crise da década de 1930. Os artistas nova-iorquinos viram nesses prédios a possibilidade de criar verdadeiros centros culturais, com ambientes capazes de comportar obras em grandes suportes e ser estúdio e dormitório. A região se tornou um efervescente centro artístico. Exemplo semelhante e ainda melhor sucedido aconteceu no bairro do SoHo. A movimentação revitalizou o lugar, que passou a atrair um mercado de galerias de arte, restaurantes e moda. Tudo isso a partir de iniciativas autônomas. O movimento de formação de comunidades desse tipo é, no entanto, anterior a isso. Essas ideias foram inspiradas em Berlim. Ao final da 2ª Guerra Mundial, a Alemanha enfrentava um grande problema de moradia. Apartamentos eram destruídos para a valorização dos terrenos da cidade. Quem não tinha condições de ter sua casa passou a ocupar esses imóveis semi-destruídos. O movimento cresceu e se espalhou pelo mundo. Comunidades autônomas como essas são comuns na Europa. Marcelo Gotuzzo, arquiteto e estudioso do tema, diz já ter vivido em quase 50 centros do tipo por lá. Em Zurique, ele morou um tempo no Kalkbreite, prédio público abandonado que foi tomado. A ocupação do local foi justificada com o retorno que seria trazido à comunidade, através de centros culturais. O Kalkbreite conta com um cinema, uma sala de jogos e um local de concertos que geram a renda necessária para a manutenção da casa. Ainda na área comum, há ilha de edição de vídeo, laboratório
À esquerda, o esqueleto da Praça XV. À direita, a simulação de Gotuzzo para o Autogéré
deres sociais em conjunto com o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, o velho prédio do INSS transformou-se, em 2009, em 42 apartamentos, padaria, serigrafia, lavanderia, uma sala de teatro e outra para costura. É a ocupação dos centros urbanos fora do papel, o projeto posto em prática. No QG da cooperativa, que gere os programas sociais do prédio, está Eduardo Solari. Ele é o principal articulador do movimento e um dos ativistas que abriram/arrombaram as portas do prédio na invasão. Solari esclarece que, durante os primeiros anos, a autogestão e a vivência coletiva funcionaram quase completamente. Além da produção de pães, roupas e a horta hidropônica no terraço, a portaria e a lavanderia funcionavam em um sistema de rodízio e cooperação entre todos os moradores. “Foi um golpe de sorte”, sentencia o uruguaio Solari. Articulada durante o Fórum Social Mundial, a tomada e a legalização da ocupação são resultado da soma de uma série de fatores favoráveis: nova legislação na área de habitação promovida pelo governo Lula; o programa de crédito solidário da Caixa Econômica Federal; líderes dentro do movimento que fizeram o intermédio com o então Ministro das Cidades, Olívio Dutra; e emergente reivindicação por parte da população sobre o abandono dos prédios públicos nos centros urbanos. Para ocupar o prédio, foram chamadas famílias com problemas de habitação, que viviam em áreas precárias ou que penavam para vencer o aluguel.
Contudo, a vivência coletiva e a autogestão não duraram muito tempo. “Nesse momento há uma verdadeira luta de classes aqui dentro. Entre o que nós queremos e para o quê esse prédio foi construído – para criar uma consciência de propriedade e território coletivo – e a propriedade privada.” Eduardo refere-se à recente separação da cooperativa e do condomínio. Aprovadas em assembleia, essa e outras mudanças, como o fim de limpezas coletivas e rodízios na portaria, desmantelaram o sonho da autogestão. “A contaminação capitalista está em todos nós, em maior ou menor grau”, considera ele. Daniel Damiani, que integra a atual administração do condomínio, declara que a organização financeira anterior era caótica: “Fizemos questão de separar as contas do condomínio e da cooperativa. Porque, no final, nós estávamos financiando esse movimento, composto pelo Eduardo e mais umas seis pessoas mais ativas no prédio. Não há geração de renda na cooperativa, ninguém sobrevive do que se produz ali. Não íamos assumir a responsabilidade de sustentar esse projeto, colocando esse peso nas costas de moradores que não têm condições de pagar por isso”. Para Solari, o sonho da autogestão caiu por terra e não há mais como voltar atrás. Contudo, ele considera haver uma vitória simbólica: “Foram três anos muito intensos: de centros de atividades, de juventude que aprendeu muito com a simbologia de tudo isso. São três anos de história que não vão poder apagar nunca.”
Gabriel Hoewell
incentivo à cultura. O projeto é dinâmico e tem usos flexíveis: “chega um grupo com uma ideia, levanta uma parede com gesso acartonado, chega outro dali a três meses e se refaz o espaço”. A revitalização da área deve ser uma consequência natural. Segundo Gotuzzo, o melhor lugar para iniciativas desse tipo é o Centro Histórico, acessível a todas as comunidades do grande perímetro urbano. “O Brasil tem uma capacidade muito maior que os países europeus. Aqui a gente tem locais pra desenvolver essas atividades, pois temos essas sobras urbanas. Eu acredito de maneira veemente que o Brasil tem um potencial tremendo para desenvolver iniciativas autônomas. E aí não falo só de comunidades, mas de qualquer iniciativa autônoma”, afirma o arquiteto. Gotuzzo conviveu durante um tempo com a comunidade da Vila Chocolatão, da região central de Porto Alegre. De acordo com ele, há uma rede invisível de pessoas que colaboram com a vila. Além de “pessoas de fora, que vêm - sem nenhuma bandeira - para ajudar”, entre o próprio grupo há uma cooperação muito grande. As comunidades já estariam acostumadas a trabalhar com cooperativismo. “Esse tipo de iniciativa pode funcionar muito melhor em classes baixas do que em classe média ou alta, em que há uma individualização maior.” Gotuzzo cita Redson, fundador da banda punk Cólera: “o Brasil está crescendo por causa dos ativistas, de pessoas à parte do sistema político e econômico”. Colocar o Autogéré em prática parece ser o maior desafio para o arquiteto a partir de agora. Para tornar realidade o projeto, ele pretende contar com o apoio de empresas especializadas em captação de recurso para projetos de inclusão social. Ou, como frisa, “viabilizar o projeto por nós mesmos, através de editais, por exemplo. Há muito interesse e respaldo de organizações privadas e públicas. É um desafio super grande. Deve haver uma mudança de paradigma nas pessoas, a opinião pública precisa acreditar nisso.”
A utopia na prática “Imagina um prédio no centro da capital, no qual todos trabalham somente internamente, conseguem fazer as suas roupas, sua alimentação, se educar e plantar.” Imaginou? Esse é o sonho da autogestão do Movimento Utopia e Luta. Quem explica é Marcelo Machado, primeiro a nos receber no prédio no alto das escadarias da Borges de Medeiros. Tomado em 2005 por lí-
Nos altos do viaduto da Borges de Medeiros fica o assentamento urbano Utopia e Luta
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texto Gilberto Sena reportagem Gilberto Sena e Carlos Machado
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se você tivesse a oportunidade de adentrar por alguns instantes em um espaço cultural, repleto de telas pintadas ao melhor estilo impressionista, sem precisar entrar em um centro de exposições artísticas? Quem costuma passar diariamente pela esquina das ruas Caldas Junior e Andradas, no centro de Porto Alegre, certamente já visitou, mesmo sem saber, o Espaço Cultural Professor Brilhante. No início dos anos 1990, os artistas plásticos, ou pintores de rua - como alguns se autodenominam - que pintavam e vendiam seus quadros na Rua dos Andradas se organizaram e conseguiram através da administração municipal o direito de usar a famosa Rua da Praia como abrigo das artes plásticas. Para dar nome ao espaço cultural a céu aberto, foi homenageado o precursor da arte de rua em Porto Alegre: o professor Francisco Brilhante. Formado em 1920 pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brilhante era figura conhecida no centro da capital dos anos 1960 até 1987, quando faleceu devido a problemas pulmonares. O professor costumava ficar com o seu aparato de pintura sob os arcos da Igreja do Rosário - onde retratava as pessoas que por ali passavam - e mantinha um ateliê nas dependências da casa paroquial, local que usava para ministrar suas aulas de pintura. A advogada e artista plástica Helena Matte Chaves foi uma das alunas do professor Brilhante no final dos anos 1970. Helena lembra das aulas que frequentava com mais sete colegas uma vez por semana: “Era um ambiente antigo, meio empoeirado, teto muito alto, típico de igrejas, onde desenhávamos. Ouvíamos os preceitos do professor, mexíamos com tintas e observávamos seu traço preciso, elegante e eloquente. A atmosfera do ambiente combinava com o que buscávamos, a arte, e com o nosso mestre, o artista.” A ex-aluna relata que o professor tinha predileção e especial talento para o retrato, mas também pintava paisagens, as quais ele preferia buscar in loco, pois acreditava que o quadro ficava mais “verdadeiro”. “Quando pretendia pintar alguma cena ou paisagem, ia - de maleta, cavalete e telas - diretamente ao local, para esboços, testes de cores e tonalidades”, recorda Helena.
As dificuldades da rua O artista J. Dimas Trindade, de 68 anos, há 18 expõe no espaço que homenageia o velho amigo. Depois de tantos anos trabalhando na rua, Dimas acredita que “galeria é pra quem tem nome estrangeiro e pra quem tem dinheiro, trabalhar na rua é uma necessidade para o artista pobre e um calvário para nós”. Há quatro meses no Espaço Brilhante, Sandro da Silva Gomez, 38 anos, admite que o fato de os quadros ficarem expostos no chão pode ser prejudicial para o artista: “Aqui na rua tu vê as telas todas no chão e isso desvaloriza muito. Se tu colocar estes mesmos quadros em uma galeria, já tem uma outra conotação.” Em comum aos dois artistas encontra-se a dificuldade em se manter trabalhando na rua. Dimas sobrevive somente dos quadros que vende no Espaço Brilhante, mas conta que as vendas estão cada vez mais raras: “Não sei
J. Dimas expõe suas telas no Espaço Professor Brilhante há 18 anos André Lacasi
ARTE QUE BRILHA NA RUA
se é a crise ou o desconhecimento da arte. Para vender quadro não é fácil, precisa de muita sorte. O que eu vendia por dia há algum tempo, hoje vendo por mês”. Sandro também faz esculturas em fibra por encomenda, o que ajuda na renda mensal: “Só da pintura é difícil de sobreviver, tem épocas que tu não vende, depende do trabalho. Se tiver um trabalho mais expressivo, que chama mais a atenção, vende mais. Mas a gente vai levando pelo amor à arte”. Para trabalhar na rua, Sandro diz ser preciso ter “jogo de cintura”, pois a maioria das pessoas que passam pelo local não têm afinidade com a arte. Para sobreviver, o artista de rua precisa saber o que as pessoas buscam e, por isso, muitas vezes é preciso apelar para uma arte comercial, pintando o que os clientes pedem. À frente das ações do Espaço Cultural, J. Dimas é o responsável pelo registro na Secretaria Municipal de Indústria e Comércio dos artistas que ali trabalham, mesmo sem haver um documento que oficialize a autorização por parte do órgão, como explica o Agente de Fiscalização de Atividades Ambulantes, Carlos Lemes: “A legislação municipal não permite o licenciamento de artistas para a venda de quadros, eles têm o espaço onde são tolerados pela fiscalização. São artistas que sempre procuraram a administração e por reconhecimento ao trabalho deles, é liberado o uso daquele espaço”. J. Dimas se queixa da falta de apoio da Secretaria da Cultura de Porto Alegre aos artistas de rua: “Só quero mais respeito pelas pessoas que são responsáveis pela arte. Porque a arte de rua um dia vai morrer. Já são poucos que trabalham aqui e ninguém dá importância”, desabafa. O Coordenador de Descentralização Cultural de Porto Alegre, Sílvio Leal, confirma que não há uma política pública que favoreça os artistas plásticos de rua da cidade: “Aos poucos estamos entrando nesse ramo, começamos com o pessoal dos malabares e agora estamos tentando cadastrar o pessoal que faz caricaturas, porque não é nem artes plásticas nem literatura e por isso temos dificuldades em trabalhar com eles. Não temos uma política ainda voltada para esse pessoal.” Mesmo com as adversidades, J. Dimas se diz satisfeito com a sua escolha profissional: “Felizmente, é o que escolhi. Espero continuar vivendo e ganhando meu dinheiro. Fazendo que nem jogador de futebol, matar no peito e rolar no gramado. Deixar a bola correr”.