Revista Bicicleta Edição Digital 01

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Do Altiplano Andino ao Atacama em bicicleta

Uma travessia pela Suíça Europeia e pelas

Suíças Nordestinas!




 EDITORIAL Edição Digital 01 / Novembro

Q

uando nos dedicamos à publicação da Revista Bicicleta, há pouco mais de seis anos, almejávamos somar, junto com outras mídias do ramo, a fim de oferecer informação e inspiração para o uso da bicicleta. Desde a primeira edição física, em novembro de 2010, tínhamos como objetivo uma abordagem mais abrangente e plural da bicicleta; e esta foi a direção que procuramos seguir até aqui, nestas quase 70 edições. Tratamos a bicicleta em toda a sua diversidade. Contamos histórias de superação, mostramos a realidade da infraestrutura de algumas cidades, apresentamos dicas dos mais variados profissionais e, algumas páginas adiante, viajamos em circuitos nacionais e internacionais, conhecemos raridades de colecionadores e acompanhamos grandes eventos em que a bici fora protagonista. Do Cycle Chic à bicicleta elétrica; do BMX ao cicloturismo; do Bike Fit à mobilidade urbana; a diversidade sempre norteou nossas pautas. Desse modo, tendo o desígnio da pluralidade, propomo-nos agora ao lançamento desta edição digital da Revista Bicicleta. Pressupondo a bicicleta como veículo pertinente e adotado por perfis bastante ecléticos, alguns, digamos, mais digitais e outros mais físicos, tornamo-nos também diversificados. Na rede virtual ou à mesa com os amigos, é sobre ela – a bicicleta – que você dialoga; permita-nos fazer parte desta conversa. Boa leitura e Viva Bicicleta!

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REVISTA BICICLETA

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Revista Bicicleta, com periodicidade mensal, é publicada pela Ecco Editora Sede / Assinaturas / Correspondência Rua Tuiuti, 300 - Bairro Cruzeiro - Rio do Campo - SC -89198-000 assinatura@revistabicicleta.com.br - bicicleta@revistabicicleta.com.br Fone: (47) 3564-0001 - Fax: (47) 3564-1212

Diretor de Redação Anderson Ricardo Schörner Jornalistas / Repórteres / Redatores e Colaboradores Álvaro Perazzoli / Antônio Olinto / Carlos Menezes / Cláudia Franco / Eduardo Sens dos Santos / Lima Junior / Paulo de Tarso / Pedro Cury / Roberto Furtado / Ronaldo Huhm / Valter F. Bustos Correspondente na Europa Fábio Zander Editor Executivo Therbio Felipe M. Cezar Revisão R. O. Petris Depto. de Arte / Web Alex C. Serafini Depto. de Assinaturas Adriano dos Santos Editor E. B. Petris

Todos os ícones utilizados nesta edição foram fornecidos por flaticon.com




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ENTRE SALARES E DESERTOS, MONTANHAS E VULCÕES

Do Altiplano Andino ao Atacama em bicicleta

SUMÁRIO

DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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CICLOTURISMO COM ENERGIA LIMPA Conheça o projeto Bike Solar

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LÍQUIDO SELANTE

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DOURO BIKE RACE

70

O MENINO QUE DOMOU O VENTO

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VINHO

O guardião do ar dos pneus

Oh, maravilha!!!!

150 SUÍÇA

Tão longe, tão perto...

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EUGÈNE CHRISTOPHE

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BRASIL RIDE 2016 7ª edição

98

CICLOFAIXA NA CHAPADA DOS VEADEIROS

104

CICLOMISSÃO

O ciclista mais azarado de todos os tempos

Por uma mobilidade Kalunga

114

A CIDADE, AS PESSOAS E A BICICLETA

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GRUPO GURIAS NO PEDAL

128

PARALIMPÍADAS RIO 2016 A vitória da tolerância sobre a indiferença

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CECIZINHA

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REMINISCÊNCIAS



PELOTÃO EDIÇÃO DIGITAL 01 / NOVEMBRO 2016

Anderson Ricardo Schörner

Therbio Felipe M. Cezar

DIRETOR DE REDAÇÃO

EDITOR EXECUTIVO

Ciclista urbano e entusiasta da bicicleta.

Professor universitário, conferencista internacional e cicloturista.

anderson@revistabicicleta.com.br

Antonio Olinto Cicloturista renomado, formado em direito e conferencista. antonioolinto@gmail.com

therbio@revistabicicleta.com.br

Ruben Wanderley

Luli Cox

Arquiteto, cicloturista, praticante de Mountain Bike e apaixonado por fotografia.

Atleta de esportes de aventura, arquiteta, pink, blogueira e viajante. blogluli@gmail.com

bruno@yellowkite.com.br

Eduardo Sens dos Santos Ciclista amador, entusiasta da história do ciclismo e co-idealizador do Desafio Desbravadores. eduardo_sens@yahoo.com

Wesley Moura

Valter Bustos

União de Ciclistas do Brasil

Coordenador do CicloMissão, redator, fotógrafo, cicloturista e CicloSensibilizador.

Coordenador da EMem/MuBi, vicepresidente da ABAJO e bike jornalista especializado na história da bicicleta.

Organização da sociedade civil que congrega Associações de Ciclistas, ciclistas e outras entidades e pessoas interessadas em promover o uso da bicicleta como meio de transporte, lazer e esporte.

culturaciclistica@gmail.com

val.bustos@hotmail.com

 /uniaodeciclistasdobrasil



PLAYLIST Fotos Reprodução

CAÇADA À RAPOSA No Red Bull Fox, 400 pilotos fazem o papel de “cães de caça” atrás de Gee Atherton em um Downhill eletrizante. revistabicicleta.com.br/rb/cfj

WHISTLER As montanhas de Whistler, no Canadá, atraem ciclistas de todo o mundo e de todos os níveis técnicos. Neste vídeo, pegue carona com o francês Rémi Thirion para percorrer esta que é uma das mecas do MTB mundial. revistabicicleta.com.br/rb/ck2

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TREK FUEL EX A Trek publicou no final de outubro um vídeo de apresentação da sua Fuel EX, uma bicicleta de Trail, que segundo a empresa, é um novo padrão de versatilidade das mtbs full suspension. revistabicicleta.com.br/rb/cfm



PLAYLIST Fotos Reprodução

SPECIALIZED FUTURE SHOCK

A VOVÓ CICLISTA DE 90 ANOS QUE AGITOU A INTERNET O vídeo viralizou tanto, que até o ator Ashton Kutcher compartilhou. Elena Gálvez é uma chilena de 90 anos que vive em um subúrbio de Cerrilos. Com uma aposentadoria pequena de 65 mil pesos chilenos (cerca de R$ 315), ela cria quatro vacas leiteiras e algumas galinhas para complementar sua renda. Todo dia, pedala 30 km para vender seus produtos. Segundo Elena, a bicicleta é o segredo de sua longevidade e saúde. revistabicicleta.com.br/rb/cfp

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Há mais de 100 anos, o pneu tem sido o melhor meio de absorção de vibrações em uma bicicleta de estrada, embora não muito eficazes neste trabalho em particular. Como incluir suspensões nestes modelos de bicicleta? Chris Yu, engenheiro da Specialized, explica neste vídeo o funcionamento da Future Shock, uma dessas tentativas. revistabicicleta.com.br/rb/cfq



BICICLETA ELÉTRICA

CICLOTURISMO COM ENERGIA LIMPA CONHEÇA O PROJETO BIKE SOLAR Texto Anderson Ricardo Schörner / Fotos Carlos Cavalari

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nir a paixão pela bicicleta com o conceito de energia limpa foi o que motivou o empresário e engenheiro eletricista Carlos Cavalari a desenvolver este projeto: uma bicicleta para cicloturismo que conta com uma verdadeira usina elé-

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trica movida à energia solar. A ideia é que esta energia auxilie o ciclista no deslocamento, na iluminação e na alimentação dos equipamentos eletrônicos, cada vez mais indispensáveis para a autonomia e comunicação do cicloturista. 


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O projeto fornece ao ciclista opções de utilização em três formatos: Primeiro: o ciclista que deseja seguir um trajeto longo seguirá com a configuração da bike com motor elétrico, mais trailer com usina fotovoltaica acoplada. Segundo: o ciclista, chegando ao destino de uma pousada ou acampamento, desacopla o trailer e o deixa exposto ao sol, para recarregar as baterias do trailer. Terceiro: o ciclista tem a opção de desbravar o local por meio da bike motorizada, ou retirar o motor e bateria e seguir com uma bike normal.

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Segundo Carlos, “nota-se que a oferta de bikes elétricas são, na sua maioria, para uso urbano. Para cicloturismo a oferta é mínima. Provavelmente porque não se encontra energia elétrica com facilidade em trajetos longos ou em acampamentos afastados de centros urbanos”. O equipamento foi adaptado em um trailer que é rebocado pela bicicleta. Este trailer estende a bicicleta, oferecendo mais lugares para carregar alforjes, equipamentos e peças sobressalentes. “O trailer contém um painel solar, controlador de carga, inversor 12V para 110V e baterias estacionárias”, diz Carlos, “e a idealização do projeto é para que o praticante de cicloturismo possa se deslocar por longos trechos com a bike mais o trailer até o local de acampamento ou pousada. Ao chegar lá poderá desconectar o trailer e deixa-lo exposto ao sol carregando as baterias. Com a bike desconectada do trailer poderá fazer um passeio pelo parque somente com a bike elétrica ou retirar a roda que contém o motor e a bateria e desbravar a região com uma bicicleta normal. À noite, poderá carregar a bateria de lítio da bike, o celular, tablet, câmera e ainda ter iluminação para o pernoite: tudo isso usando energia limpa”. O trailer foi dimensionado com o painel fotovoltaico, inversor e baterias para atender o ciclista por até três dias nublados. O idealizador já fez alguns testes com a bike na região de Guiricema, em Minas Gerais, e pretende pôr à prova o conceito realizando uma cicloviagem de Guiricema até Araponga, na Serra do Brigadeiro, onde quer criar um acampamento sustentável e apreciar a Serra da Mantiqueira utilizando energia limpa. 


© DIVULGAÇÃO

ROLE

O QUE ACONTECE QUANDO UMA MARCA DE BICICLETAS TROCA A EMBALAGEM TRADICIONAL POR EMBALAGENS DE TELEVISORES? A fabricante holandesa de bicicletas VanMoof tinha grandes problemas de danos às bicicletas durante a entrega, gerando custos extras de reenvio e incômodo para os clientes. A solução da empresa foi muito mais simples do que inventar sistemas avançados de embalagens. Como o formato da caixa utilizada para enviar a bicicleta é muito parecida com a caixa de um televisor grande, a empresa imprimiu uma imagem de um televisor na caixa. Os entregadores, em geral, tomam mais cuidado com televisores do que com bicicletas. E deu certo: os danos causados pelo transporte caíram entre 70% e 80% nos envios para os EUA. Assista ao vídeo e conheça mais da bicicleta VanMoof. www.revistabicicleta.com.br/rb/cd3

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XÔ,

TÉDIO! Pedalar no rolo, trancado dentro de casa, parece tedioso para você? Então, conheça o Bkoll, um simulador de ciclismo 3D em que você pode pedalar junto com seus amigos, reproduzindo milhares de ciclovias e rotas pelo mundo. Assista a uma demonstração. revistabicicleta.com.br/rb/cfr

© DIVULGAÇÃO



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TRANSFORME SEU TREINO EM UMA ANIMAÇÃO NO STRAVA

© CLÁUDIO SANTOS/ AG. PARÁ / FOTOSPUBLICAS.COM (04-11-2016)

USO DE BICICLETAS NO BRASIL DOBROU NA ÚLTIMA DÉCADA De acordo com um relatório do Sistema de Informações da Mobilidade Urbana (SIMU), divulgado pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), comparando dados entre 2003 e 2014, o uso de bicicletas no Brasil dobrou em 10 anos. Em 2004, 1,3 bilhão de viagens foram feitas de bicicleta. Em 2014, foram 2,6 bilhões. A distância percorrida pelos ciclistas também dobrou de 6 bilhões para 12 bilhões de quilômetros, e o tempo pedalando cresceu de 0,5 bilhão para 1 bilhão de horas por ano.

Quando se registra um treino no Strava, é possível gerar a partir desse registro uma animação parecida com a apresentação do Tour de France. Para isso, basta acessar o site www.relive.cc e seguir os passos: 1 Conecte com a sua conta do Strava no Relive. Isso permitirá que o Relive obtenha todas as informações necessárias sobre sua última atividade física para criar o filme. 2 Saia para pedalar com o Strava ou algum dispositivo que sincroniza com o Strava, como por exemplo o Garmin, ligado. 3 Depois de algumas horas após finalizar a pedalada, você receberá em sua conta de e-mail vinculada ao Strava o link para assistir o filme referente a sua última atividade física. Durante a animação, o Relive ainda destaca e marca ao longo do percurso a maior altimetria do percurso, a maior potência aplicada, a maior velocidade desenvolvida, a maior frequência cardíaca e o ponto exato em que as fotos associadas ao pedal no Strava foram tiradas, exibindo-a na animação. Assista um exemplo, e comece a criar as suas animações. revistabicicleta.com.br/rb/c9w

Assista ao vídeo e conheça mais da bicicleta VanMoof.

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© REPRODUÇÃO

revistabicicleta.com.br/rb/cfw



ROLE

ACESSÓRIO PERMITE ACIONAR ELETRONICAMENTE TRANSMISSÕES MECÂNICAS

© REPRODUÇÃO

Com o mercado de transmissões eletrônicas aquecido, Paul Gallagher, engenheiro norteamericano, criou o sistema XShifter, que através de Bluetooth aciona remotamente pequenos motores que realizam a troca de marchas em câmbios mecânicos comuns. O XShifter é composto de módulos acoplados aos câmbios dianteiro e traseiro, compatível com qualquer tipo de transmissão, seja de MTB ou Estrada. Um pequeno motor em seu interior sobe ou desce o câmbio, de acordo com o comando dado através de um trocador remoto instalado no guidão. A bateria que alimenta estes motores tem autonomia de 5 a 15 mil trocas, recarregável via Bluetooth. Para instalar o acessório, remove-se os passadores, cabos e conduítes, mantendo os câmbios intactos em suas posições. Então, prende-se os módulos no tubo do selim e no seatstay direito. Um cabo de aço conecta o câmbio ao motor. Cada módulo pesa 60 gramas, e como se remove cabos e conduítes, ele fica cerca de 300 gramas mais leve que os sistemas de acionamento mecânico. Um aplicativo de smartphone permite fazer o ajuste fino da troca. Além disso, é possível configura o XShifter para trocas individuais ou sequenciais. Paul Gallagher colocou seu produto à venda no site de financiamento coletivo Kickstarter, por 199 dólares. Assista ao vídeo demonstrativo revistabicicleta.com.br/rb/cfx

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CICLOTURISMO Texto Antonio Olinto / Fotos Rafaela Asprino

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ENTRE SALARES E DESERTOS, MONTANHAS E VULCÕES

DO ALTIPLANO ANDINO AO ATACAMA EM BICICLETA

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raçar os planos de uma nova viagem de bicicleta, no fundo, significa fazer a grande renúncia de não visitar tantos outros lugares. Por melhor que seja o mapa, ele não diz o que devemos fazer. Nossos sonhos de viagem apontam o destino que devemos seguir. Ao visitar o Salar Grande (Argentina,

2000), fiquei encantado com a experiência e cultivei o sonho de pedalar pelo maior salar do mundo, o Uyuni (Bolívia). Como gostamos de montanhas, nosso circuito “perfeito” incluiria pedalar pelo Altiplano, conhecer a Cordilheira Real, a rota das Lagunas no sul de Lipez (Bolívia), o Atacama (Chile) e ao final visitar um amigo em Jujuy (Argentina). Nunca sentimos tão  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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drasticamente as consequências de nossas decisões como nessa viagem. A praticidade de pousar em La Paz e logo começar a descer nos persuadiu. Ao invés de pedalar em direção a grandes altitudes, o que ajuda o corpo a se acostumar com o ar rarefeito, começávamos num aeroporto a quatro mil metros sobre o nível do mar. Sentimo-nos como velhos asmáticos, mas vimos turistas recémchegados indo à enfermaria inalar oxigênio. Do alto, La Paz parece uma grande favela que começa num buraco e se espalha pelos morros, depois percebemos que não é tão ruim assim.

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Caminhamos até o centro turístico sem temor, mesmo com os gritantes contrastes entre os modernos arranhacéus da aristocracia e as barraquinhas das “cholas”, que após a lei antirracismo podem finalmente caminhar livremente pela cidade. Mais impressionante que a parte histórica da cidade são as montanhas ao seu redor. Com relevo extremamente acidentado um metrô seria inviável, sendo assim, uma rede de teleféricos foi construída para desafogar o trânsito. Lenta e silenciosamente, subimos e descemos com o teleférico contemplando os picos nevados da Cordilheira Real, o Huayna Potosi ao 


ANTES DO GOVERNO DE EVO MORALES, AS MULHERES VESTIDAS COM TRAJES TÍPICOS, CHAMADAS CARINHOSAMENTE DE “CHOLAS”, ERAM PROIBIDAS DE ANDAR PELO CENTRO E ÁREAS NOBRES DE SUA PRÓPRIA CAPITAL. A TRADIÇÃO DAS VESTIMENTAS JÁ É UMA IMPOSIÇÃO ESPANHOLA, MAS O CHAPÉU COCO COMEÇOU NO INÍCIO DO SÉCULO PASSADO COM A VINDA DA FERROVIA.

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norte, o Ilimani a leste e apreciando as melhores vistas da cidade. Após o terceiro dia na capital, cansados de ver o tempo passar enquanto nos aclimatávamos, decidimos seguir e “descer” a Cordilheira Real. Nunca acredite se alguém disser que a estrada só desce. O centro de La Paz está a cerca de 3.800 m de altitude e o passo para descer fica a 4.526 m. Até lá tivemos que descer e subir duas vezes. Sob o efeito da altitude as pedaladas rendiam pouco. No primeiro dia atravessamos o passo de Las Animas (Almas) (4.200 m) e começamos a contornar o Ilimani em uma tranquila paisagem rural.

sem ter tido acesso a educação formal. Ele pedia um remendo de câmara por que a bicicleta não é um veículo muito utilizado na Bolívia; num país sem indústrias tudo deve vir de fora, para piorar, sem acesso ao mar, às vezes pequenos bens específicos são raros. Até aqui tudo que aprendi com ele poderia ser lido no google - procure por Guerra do Pacífico entre Chile, Peru e Bolívia ou leia o clássico livro “As veias abertas da América Latina” e encontrará estes dados. Mas existem coisas que só aprendemos visitando o país com um veículo que facilita o relacionamento com as pessoas. Por último ele me pergunta:

Ainda nos arrabaldes da capital, numa parada de descanso, um senhor veio conversar com a gente. Até aquele momento, nossas experiências eram as de um turista convencional: aeroporto, táxi, pousada, passeios pelo centro... Mas a bicicleta já iria começar a nos ajudar a conhecer outras realidades.

- Quanto lhe devo?

A primeira coisa que percebi, além da roupa surrada, foi sua dificuldade em falar espanhol. Ele explica que está mais acostumado a falar Aimará (que eles pronunciam Aimára). Com educação e humildade me pergunta se tenho algum remendo para câmara de ar. No começo da viagem foi fácil entregar alguns para ele. Por último, ele me pergunta quanto eu cobraria.

Depois do passo Pacuani (4.526 m) começamos a incrível descida de mais de três mil metros. A discrepância entre as paisagens aumenta por estarmos perto da linha do Equador (quase a mesma latitude de Porto Seguro - BA), e rapidamente passamos da aridez altiplânica para a exuberância da floresta amazônica.

Aquele homem foi como um símbolo do que estaria por vir. Espanhol é sua segunda ou terceira língua, mesmo

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Apesar de minhas roupas e estilo indicarem que sou um “gringo”, supostamente de um país mais rico, ele não estava me pedindo esmolas... O povo daqui se mostraria sofrido e pobre, mas muito honesto.

No quinto dia de pedal encontramos um restaurante na hora do nosso almoço. Duas vans chegavam e decidimos experimentar a comida local junto com


o pessoal. Só tinham “PF”, podia ser frango ou porco. Pedimos um de porco e tivemos mais uma aula de cultura. Entregaram-nos o prato cheio, mas não deram garfo ou faca. O uso de talheres, que vem da cultura europeia, pelo jeito até agora não influenciou as pessoas daquele local. Começamos a perceber como é simples a culinária desse povo. No prato vinha uma porção de carne de porco tenra e saborosa, salada de alface,

tomate e cebola, uma banana assada e três tipos de tubérculos cozidos (batatas), servidos com casca e tudo, sem tempero ou elaboração especial. Enquanto comíamos na parte externa do restaurante, o motorista descarregava mercadorias do teto da van. Num dado momento, ele puxou de dentro de um engradado plástico dois frangos depenados e “prontos para consumo”, com a cor da pele amarela alaranjada, como se tivesse recebido um banho de coloral para suportar aquela longa  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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viagem desde La Paz com tanto sol e sem refrigeração. Fiquei pensando como foi bom não termos escolhido frango em nosso “PF”. Dos -5°C do alto passamos a enfrentar calor úmido e chuvas torrenciais diárias. Nos dois lados da estrada vimos surgir plantações de coca, que é legalmente produzida nessa região. Considerada uma das áreas mais ricas da Bolívia, os agricultores vão ao campo com seu próprio veículo importado do Japão. Plantar coca nos pareceu um bom negócio: um saco de suas folhas vale três vezes mais que uma lhama viva, com lã e tudo. Mascar coca é uma tradição milenar em todos os países tocados pelo Altiplano Andino. Nos morros existem terraços da época dos incas que seguem produzindo coca. As folhas podem ser colhidas a cada três ou quatro meses, a planta deve ser podada a cada quatro anos e mantem-se produtiva por vinte anos, quando deverá ser substituída. As folhas são secadas ao sol antes do consumo e vendidas a granel ou em pequenas bolsas plásticas. É comum tomar chá de coca, mas a maioria coloca um punhado de folhas na boca, masca um pouco, mantem as folhas no canto da boca por um tempo, e repete o processo até a

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folha perder o sabor e ser cuspida. Sim, sentimos uma certa euforia ao mascar coca, mas folha de coca não é cocaína, que agrega várias outras substâncias em sua composição e, de toda forma, são necessárias muitas folhas para fazer um único grama de cocaína. Permanecemos na faixa dos mil metros de altitude, a estrada subia e descia de forma íngreme sempre que tínhamos que atravessar um rio, até chegar a Coroíco.

Todos nós brasileiros já ouvimos falar sobre as enormes reservas de gás natural da Bolívia, dentro do país um botijão de gás custa a metade do valor que pagamos no Brasil, mas não quer dizer que as pessoas tenham acesso a essa facilidade. Nos “hotéis” dos povoados que passamos não há calefação a gás, quando tem chuveiro quente, é com aquecimento solar ou uma ducha elétrica importada do Brasil. Parece que o boliviano não se incomoda muito com o frio, e por enquanto poucas cidades contam com distribuição de gás encanado.

A estrada de Coroíco à La Paz já foi considerada líder mundial de acidentes fatais, ganhado a alcunha de “Estrada da Morte”. Atualmente uma moderna rodovia com pista dupla utiliza boa parte do seu leito original, entretanto as partes mais íngremes e perigosas foram preservadas e se transformaram num parque que é um dos destinos turísticos mais concorridos da Bolívia.

Iríamos começar a subir a Estrada da Morte logo cedo, mas optamos


por participar de uma festa especial. Na manhã do dia 21 de junho, solstício de inverno, antes de nascer o sol, nos juntamos a uma pequena multidão no alto do morro do Calvário para comemorar o ano novo amazônico. Como nossa cultura vem do hemisfério norte, costumamos contar os anos mais ou menos no final do inverno daquele hemisfério, quando tudo começa a se renovar preparando a primavera. Da mesma forma os Aimarás contam os anos no solstício de inverno do hemisfério sul, onde sempre viveram. Ficamos emocionados ao participar dos festejos junto com o povo, em volta de uma grande fogueira onde entoaram cânticos, dançaram e fizeram oferendas, numa tradição que não sucumbiu aos incas, aos espanhóis ou à sociedade de consumo e mantem-se viva há 5.523 anos. Durante os próximos três dias só pedalamos morro acima. Cruzamos o

passo La Cumbre (4.671 m) com forte nevoeiro e, muito desgastados, voltamos a sentir os efeitos da altitude. Dormimos em El Alto (região metropolitana de La Paz), seguimos para norte em direção à base do Huaina Potosi e acampamos a seus pés, sozinhos, na beira de um belo lago. À noite a temperatura baixou para -8°C e nos despedimos da Cordilheira Real, seguindo em direção oeste. O asfalto nos levou rapidamente até as  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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ruínas de Tiwanaku. Mais antigas que as ruínas incas, os enormes blocos de pedra pesando mais de 100 toneladas são considerados Patrimônio Mundial pela UNESCO e orgulho dos bolivianos. É fascinante ver esse legado de perto, analisar as formas e entalhes que se mantem perfeitos até hoje. Entretanto, foi na cidade de Tiwanaku, nos festejos de São Pedro, que tivemos as experiências mais marcantes, afinal, pessoas são mais que lugares. Continuando rumo oeste, chegamos às margens do Titicaca e viramos à esquerda, deixando o asfalto para entrar no rípio. A Rafa encasquetou de conhecer Tripartito, uma vila no encontro de três fronteiras: Chile, Peru e Bolívia. “Mas por que não foram para o Titicaca, a Ilha do Sol, Ilha da Lua, passeio de barco de junco e tal?” Temos percebido que com a atual exploração turística generalizada, às vezes o melhor circuito para uma aventura de bicicleta

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é seguir um caminho menos conhecido. Sem muita informação sobre esse trajeto, ao invés de nos sentir cumprindo um roteiro que persegue todas as famosas atrações turísticas existentes no país, tínhamos o sentimento de nos aventurar por um caminho onde tudo é novidade e nos impressionamos com o acervo arquitetônico das vilas por onde passamos. O caminho de terra era ruim, mas como o relevo é plano, os poucos ciclistas da região conseguem impor uma rota alternativa em meio aos arbustos, o que chamamos de “ciclosendero”, quase uma ciclovia. Assim, avançávamos rápido e nos maravilhávamos com vastidões imensas e paisagens inusitadas que, se fossem dentro do território dos Estados Unidos, já teriam sido declaradas “Parque Nacional Mundo Lunar” ou algo assim. Mas no interior da Bolívia, uma formação rochosa como essa não tem nome e


está lá esperando a visita de quem desejar conhecê-la. Além de um marco com o nome dos três países não há muito para ver em Tripartito. Acampamos em seus arredores numa depressão do terreno para nos proteger do vento, que começou a soprar forte. No meio da noite veio a neve e encobriu a barraca. Na manhã seguinte, sem muitas provisões, continuamos nossa viagem em um clima bem feio. A cada noite registrávamos um novo recorde de temperatura negativa. Durante o dia era agradável pedalar; atravessar os rios congelados que cortam a estrada era nosso grande problema. Ao lado do Parque Nacional Sajama registramos a temperatura de –20,6°C, o novo limite de conforto para nosso equipamento (para saber mais leia nosso artigo “Mil e uma maneiras de passar frio” na edição número 59 – jan/ fev. 2016).

Comprar comida também não era fácil. Muitas cidades estavam abandonadas e as pequenas vendas tinham pouco a oferecer. Em Charaña, cerca de 210 km de La Paz, mesmo o pão vinha por estrada de terra desde a capital no teto do ônibus, pois não existe eletricidade nem madeira para assar. Quando comprava um produto em um país árabe, sempre tinha que pechinchar e negociar, mesmo que fosse só um tomate. A soma era feita de cabeça em uma velocidade incrível e tinha que ficar esperto, pois era comum eles colocarem algo a mais na soma. Na Bolívia era o contrário, sentíamos no povo uma inocência própria de uma nação índia, por vezes erravam a conta para baixo e tínhamos que os corrigir. Nas pequenas vilas que passamos todos produzem os mesmos alimentos para subsistência, e a vendinha oferece somente artigos industrializados. Quando pedíamos para comprar  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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A partir do Parque Nacional Sajama (montanha mais alta da Bolívia - 6.542 m), entraríamos no Chile para percorrer uma das regiões mais desoladas do país. Saímos de Tambo Quemado (Bolívia) carregados com comida para cinco dias, pedalando morro acima e contra forte vento, que geralmente sopra do Chile para o interior do continente.

batatas, que todos produzem, a intuição era doar algumas para nós, se tivessem sobrando, e demoravam a compreender que queríamos comprar algo que a rigor todos da vila têm.

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As dificuldades do relevo de um circuito são reconhecidas em um bom mapa, entretanto, a variante “vento” pode mudar tudo e um caminho de cinco dias pode facilmente se transformar em um caminho de dez dias. O vento forte causa muitos inconvenientes, por si só ele aumenta a sensação térmica em vários graus, aumentando o frio que já sentíamos. Mesmo com uma barraca estável e forte, as rajadas abruptas nos assustavam. No entardecer começávamos a buscar algum abrigo para garantir um sono mais tranquilo: uma depressão de terreno, um arbusto, casas, currais, celeiros, chegamos a usar até as dependências de um quartel de carabineiros de fronteira. O vento forte não parou, mas a partir do meio do circuito começou a soprar mais ou menos pelas costas, o que também gera incômodo e dificuldades, mas é


muito melhor que vento de frente. Nestes poucos dias entramos e saímos de quatro parques nacionais: Lauca, Las Vicunhas, Salar de Surire e Vulcão Isluga. A área é tão remota que não há controle ou taxa de visita, só vulcões ativos e vicunhas passeando livremente. No meio da estrada vimos uma casinha com uma placa: “Termas de Churiguaya”. A porta meio destruída estava destrancada e dentro havia uma piscina de pedra com um cano saindo água quente. Imediatamente entupimos a saída da água e a piscina encheu até o ladrão (quase um metro de pura água aquecida pelo vulcão mais próximo). No último hotel que ficamos, na turística área do Parque Sajama, a temperatura no quarto chegou a 1°C e não havia água de manhã, pois o encanamento congelava durante a noite. Só depois de passar frio por tanto tempo é que podemos valorar um banho quente e explicar a euforia da Rafa, que parecia uma criança brincando na água. Em direção ao salar de Surire o caminho melhorou, mas tínhamos que compartilhar a estrada com caminhões transportando sal. Apesar de ser um parque, há uma grande mineradora no

salar e não é permitida a entrada. A partir daí o mapa dizia que entrávamos em região de campos minados, mas víamos caravanas com cinco ou mais carros bem cuidados, sem placas de licenciamento, passar a todo tempo. Descobrimos que eram veículos chilenos regulares que receberam baixa em seus registros e por isso não tinham placa. Eles seriam abandonados em um local específico da fronteira para serem resgatados por contrabandistas bolivianos, evitando os vultuosos impostos de importação cobrados no país. Não me pergunte como eles legalizam (se é que é preciso fazer isso), só conhecemos o milagre e não o santo. Despedimo-nos do Chile com um banho em mais uma terma (Enquelga), dessa vez a céu aberto. Tudo foi difícil e tenso, mas o forte tempero da aventura deu um sabor especial a esta rápida incursão ao Chile. Isso sem falar na beleza da região que atingiu seu ponto mais alto quando atravessamos o Cânion do Parque Nacional Vulcão Isluga. Numa garganta estreita (Quebrada), o Arroyo Sencata fica semicongelado antes de desaguar no rio Isluga e atrai várias espécies de animais domésticos e selvagens. 

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Atravessamos a fronteira em Psiga e já estávamos ao lado do Salar de Coipasa, o segundo maior salar da Bolívia, que só não está ligado ao grande Uyuni por causa da Serra Intersalar.

atravessar o Uyuni. Há quem atravesse o salar em um dia, pois são cerca de 120 km, mas nosso interesse era ficar a maior quantidade de tempo possível nesse local único.

No verão, o salar é coberto por uma pequena lâmina de água que vai secando até que, no inverno, se torna duro a ponto de suportar o peso de um caminhão. Os veículos trafegam o máximo possível pelas margens, em terra firme, justamente onde a umidade permanece por mais tempo. Existem rotas mais ou menos predeterminadas no salar, mas nós queríamos pedalar livremente seguindo rumo sul. Parecia um sonho de suavidade. Os cristais brilhantes davam a impressão de pedalar sobre o mármore. Nas margens, a concentração de sal diminuía e a cristalização em polígonos nos brindava com desenhos incríveis. Logo descobrimos por que há caminhos tradicionais no salar.

Apesar de menos conhecido, consideramos o Salar de Coipasa mais belo. Com uma capa de sal mais fina, poucos veículos se aventuram por lá. Quando um pouco de terra aflora, as cores e os desenhos se diversificam e o cenário se torna dinâmico e imprevisível.

Seguindo em linha reta, tivemos que enfrentar áreas alagadiças ou macias demais, onde o melhor era simplesmente empurrar a bicicleta. Foi muito mais difícil do que dar a volta pelo caminho tradicional, mas sentíamos que começávamos a viver nosso sonho. A cidade de Llica está à beira do Salar de Uyuni e representa um bom ponto para descansar e reabastecer. Saímos carregados, pois a Isla Incahuasi, que está no meio do salar, poderia não ter muito a oferecer. Com vento moderado e terreno plano, três dias seriam suficientes para

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Mas o Uyuni é imaculado, é gigante! Não tenho palavras para descrever tanta beleza e a satisfação de realizar esse sonho antigo. Nas vastidões onde acampamos não havia cercas ou muros de propriedades, nos sentíamos livres para pedalar em qualquer direção naquelas planuras brancas e percebemos que a natureza não tem um único dono. Todo aquele que toma o tempo de apreciá-la se torna o proprietário dos fugazes momentos de extrema beleza que ela nos oferece com tanta generosidade. Numa das poucas ilhas do caminho peguei uma pedra para bater as estacas da barraca. O sal é duro, mas à noite ele deixa passar o frio da umidade que está logo abaixo. Durante o dia, a superfície brilhante aquece ligeiramente o ar junto ao solo, causando o fenômeno da difração da luz que provoca “miragens”. Os longínquos morros às margens do lago de sal parecem estar flutuando no horizonte, mesmo sem ter mascado coca.


Depois do Uyuni, paramos em San Juan del Rosário e vimos seus famosos hotéis feitos com blocos de sal. Seguimos até a estação Avaroa (onde até a água tem que vir de trem), na linha que escoa o minério boliviano para o porto chileno, e um pequeno quiosque era nossa última chance de abastecimento antes de entrar na rota das Lagunas. Calculamos que deveríamos levar comida para pelo menos dez dias e compramos tudo que tinham para oferecer. Mesmo assim, não foi suficiente e atravessamos a fronteira para comprar no Chile. A cinco quilômetros, em Ollagüe (Chile), encontramos outro mundo onde pudemos comprar de tudo e com

qualidade, inclusive frutas e legumes. No meio daquele deserto, a moderna praça da cidade tem até Wi-Fi livre. As bicicletas nunca ficaram tão pesadas, pois além da comida carregávamos oito litros de água cada um. Nessa hora fiquei feliz por ter retirado os amortecedores da bicicleta. A região da Rota das Lagunas é um grande deserto onde somente ousados pastores se dignavam a levar seus animais para pastar durante o verão. Entretanto, suas belezas naturais a transformaram num roteiro “obrigatório” para todos que se deslocam entre o Uyuni e San Pedro de Atacama. O fluxo  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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turístico criou a rota de cerca de 260 km que passa por várias atrações incríveis do Sul de Lipez: Laguna Cañapa, Laguna Hedionda, Laguna Chiar Kota, Laguna Honda, Árvore de Pedra, Laguna Colorada, Gêiser sol de Mañana, Termas de Polques, Deserto de Dalí, Laguna Blanca e Laguna Verde. Enfrentamos estradas ruins por toda a Bolívia, mas ali era diferente... As estradas eram muuuuiiiito ruins! Às vezes parecia que estávamos pedalando por um campo recém-arado. Conforme a estrada vai ficando impraticável os veículos 4x4 que levam os turistas abrem novos caminhos ao lado do principal, por vezes tínhamos a nossa frente uma dezena de vias para

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escolher, uma pior que a outra... Na Laguna Hedionda registramos -22,4°C, a temperatura mais baixa da viagem. Acordamos tremendo de frio e só conseguimos nos aquecer quando surgiu o sol. Algumas vezes nessa viagem me descuidei e quando percebi estava com pre-hipotermia (comento mais sobre esse tema no artigo “Mil e uma maneiras de passar frio” na edição número 59 da Revista). Quando a temperatura corporal abaixa, as defesas de nosso organismo reagem de forma a preservar a vida, protegendo os órgãos vitais. Começamos a tremer forte e de forma compulsiva para gerar algum calor. Os vasos, principalmente os periféricos, se contraem a fim de


manter mais sangue e calor nos órgãos internos. O sentimento é muito estranho e ruim, pois quase não dá para articular a boca e mesmo que dure somente umas dezenas de minutos, parece que não vai terminar nunca. Cobria-me com todos os agasalhos e ficava deitado até conseguir me aquecer e relaxar. As mulheres geralmente sentem mais frio que os homens (pode chegar a 5°C de diferença). Para piorar, a Rafa ainda tem pouca circulação nos pés. Todas as noites sentia certa tensão, como se nunca fosse dormir, demorava até conseguir aquecer os pés gelados e relaxar. Muito parecido com o que senti nos minutos de pre-hipotermia. O desgaste do forte vento contra impunha um ritmo tão lento que nossas médias diárias pareciam como as de um caminhante. Exaustos, depois de apenas 18 km, chegamos ao Hotel del Desierto para pedir água e acabamos nos hospedando por lá. Alguns cicloturistas mais “casca grossa” que conhecemos elegem esse circuito como o mais duro que já realizaram... Nós concordamos com eles. É lindo e interessante, mas será que vale a pena? Ainda temos dúvidas, seguramente existem circuitos mais belos, desertos e interessantes sem serem tão duros como esse. Se o interesse do cicloturista é realizar algo muito difícil, sim, esse é o lugar. Todos nos tratavam muito bem, mesmo nos dois hotéis requintados em que passamos para pedir água, nos serviram

graciosamente comida e bebida, nos vendo como uma espécie de heróis. Percebemos que esse é o tratamento standard para os cicloturistas. Os outros pontos de apoio do caminho são aglomerados habitacionais que só existem em função do turismo. Quando ficamos em um destes pontos tivemos que esperar os turistas terminarem o jantar para comprar o que sobrou (geralmente macarrão à bolonhesa com carne de lhama). Nosso projeto inicial era fazer várias voltas pelo Sul de Lipez e sair da Bolívia descendo a Quebrada de Humahuaca (Argentina), mas percebemos que de tão cansados já não estávamos aproveitando nem desejando ficar mais tempo nessa região tão dura e fria. Não foi fácil alterar nosso roteiro, sentimos a dor da perda, pois as oportunidades nem sempre se renovam e de toda forma nem sempre têm o mesmo sabor, afinal, “cada vez que pulamos num rio nunca caímos na mesma água”. Confesso que fiquei aliviado quando entramos no asfalto chileno descendo lisinho até San Pedro de Atacama, onde pudemos, pela primeira vez, descansar, nos aquecer e respirar melhor em seus 2.400 metros de altitude. Turistas de todos os lugares caminham por suas ruelas charmosas. O clima ameno, a calefação, a comida variada e água abundante nos fez relaxar e recuperar as energias. Em três dias, estávamos prontos para voltar à estrada. Refizemos nossos planos de viagem e decidimos entrar na Argentina pelo passo de Sico, que está um pouco mais ao sul do  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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ASSISTA AO TRAILER DA VIAGEM

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passo de Jama. Outro grave problema quando mudamos o planejamento de um circuito é a sensação de que a aventura acabou e tudo ficou muito fácil, principalmente após as mordomias proporcionadas pelo polo turístico de San Pedro. Entretanto, o caminho logo mostraria o contrário. Conforme deixávamos o Salar de Atacama, ganhávamos altitude e entrávamos em regiões mais frias. O asfalto acaba pouco depois de Socaire, último ponto de abastecimento até Catua, a 150 km, já na Argentina. Carregados com água e comida para quatro dias, começamos uma travessia em que o passo fronteiriço chamado Sico não era o único ponto alto, nem o

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mais alto. Ficamos três dias sem cruzar com veículos ou pessoas, aí sim nos sentimos num deserto! A altitude não era muito diferente do altiplano, mas estávamos cerca de 800 km ao sul de La Paz, isso faz muita diferença no inverno. O vento a favor ajudava na subida, mas o ar estava um pouco úmido e se transformava em uma neve fraca que ia e vinha. No entardecer tivemos dificuldades para encontrar um abrigo e decidimos acampar em uma área aberta ao lado da Laguna de Tuyajto. Enquanto montávamos a barraca, uma picape cheia de carabineiros fortemente armados passou em ronda e parou para conversar. Apesar de gentis e educados, percebi que, como responsáveis pela


área, não me deixariam acampar ali se não demonstrasse que estava preparado para isso. Claro que não falei que utilizava um saco de dormir com capacidade para somente -2°C, mas que com o outro saco que tinha e mais todas as minhas roupas poderia resistir a até -20°C, isso pareceria amadorístico demais. Com voz firme e confiante, fui respondendo: Sim, claro, estamos muito bem preparados... Sem problemas, estamos acostumados... Sempre acampamos a -20°C (preferi omitir que esse era, na verdade, o limite de nosso equipamento). Entardecia e não queríamos empacotar todo o equipamento, mesmo que ganhássemos uma carona até os alojamentos de Mina Laco (a 17 km). Tanto fiz e falei que eles nos deixaram sozinhos naquela vastidão. Isso nos deu uma sensação de alívio, mas com tantas perguntas e comentários de situações extremas de frio, ficamos um pouco apreensivos também. Pela noite, o vento e a neve aumentaram e o ruído forte e abrupto impedia que tivéssemos um sono profundo. Estranhamente a neve não caia em flocos. Sob condições climáticas específicas a neve cai em uma forma conhecida como “neve pó”, que se comporta como grãos de poeira levados pelo vento. Sendo assim, naquela noite, não ficou acumulada sobre a barraca, mas foi se depositando entre seu teto e sobre-teto. O teto da barraca é feito

de tela mosquiteiro e deixava passar a neve, que caia sobre nós. Depois de um tempo a neve tampava os furos da tela e começava a se acumular. A tela não é preparada como o sobre-teto para receber peso e começava a vergar por cima de nós até o momento em que retirávamos o acúmulo, empurrando a tela com a mão, e o processo recomeçava... Mais que o ruído assustador das rajadas de vento, as palavras dos carabineiros preenchiam minha mente com preocupações... Eles disseram que naquela região costuma fazer até -35°C e já resgataram um cicloturista francês que ficou com a barraca soterrada pela neve. Geralmente, quando neva, é por que há umidade no ar e isso significa que a temperatura não baixa muito. A temperatura chegou a -5°C, não passamos frio, mas pensávamos no que poderíamos fazer se a temperatura continuasse baixando. Seguramente não teríamos uma boa noite de sono, mas poderíamos utilizar a manta aluminizada de emergência (que mostrou-se eficiente na viagem pelo Peru) e ainda tínhamos bastante combustível para manter-nos aquecidos até o outro dia... De manhã tudo à nossa volta estava coberto de neve. Assim que o sol tocou a barraca saímos para contemplar o amanhecer mais belo de toda viagem. Sentimo-nos felizes e recompensados por ter trocado o abrigo de um alojamento de trabalhadores da mina de ferro por uma noite tensa e fria dentro  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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de uma barraca... Provavelmente nossa empolgação, alegria e entusiasmo estavam ligados não somente à beleza das luzes difusas do amanhecer, mas também ao alívio de finalmente sentir o calor da luz do sol e ver o céu azul contrastando com as montanhas nevadas daquele imenso planalto onde se assenta a lagoa Tuyajto. Do lado argentino o clima melhorou e a Rafa quis visitar alguns dos pontos emblemáticos da viagem pelos 7 Passos Andinos: Catua, a placa de “Campo Minado” do passo Huaytiquina, a Ponte La Polvorilla, San Antonio de Los Cobres, Salar Grande, Cuesta de Lipan... Emocionada e feliz, disse que se sentia dentro do filme desta aventura... Após Purmamarca, seguimos para o norte pela Quebrada de Humahuaca, rota utilizada há cerca de 10 mil anos que foi o principal ponto de ligação entre o vice-reino do Peru (mais importante sede administrativa espanhola) e o vice-reino do Rio da Prata (atual território argentino). Por ela passou boa parte da prata de Potosí em direção à metrópole. Não é por outra razão que as últimas batalhas de independência argentina se deram ali. Os traços índios do povo argentino de Humahuaca surpreendem. Contudo, a região é internacionalmente conhecida pelo carnaval e pelas montanhas coloridas ao seu redor, sendo declarada patrimônio pela UNESCO. Um asfalto bem cuidado nos levou pela Quebrada e a cada curva nos

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maravilhávamos com as fantásticas formações: Palheta do Pintor, Cerro Negro, Quebrada das Senhoritas, Vulcão de Yacoraite, Hornocal, Espinhaço do Diabo. As várias tonalidades das rochas sempre marcadas com camadas de vermelho vivo inconfundível contrastavam com o céu azul, os férteis verdes vales já anunciavam a primavera. Um passeio realmente belo, circuito perfeito para qualquer cicloturista. Em Purmamarca está o famoso Cerro de los Siete Colores, mas queríamos conhecer o Cerro de los 14 Colores. De Humahuaca, começamos um dia que marcaria a maior ascendência acumulada da viagem: 1.394 m em 26 km. A inflação numérica para criar um nome com apelo turístico tem uma certa escala de valor. O Hornocal, verdadeiro nome do Cerro de los 14 Colores, é impressionante. Chegamos muito cansados no mirante, que está a 4.344 m de altitude. Sentamos num solitário banquinho de madeira de cactos e ficamos apreciando as luzes do entardecer alterando as cores das rochas conforme movimentava a sombra nas fendas daquela obra de arte esculpida pela natureza. Depois de visitar as inscrições rupestres de Inca Cueva acampamos ao lado do Espinhaço do Diabo, o ponto mais ao norte da Argentina que chegamos. Quando desmontamos nosso equipamento de camping pela última vez, ficamos melancólicos pelo


final de nossa viagem, mas também empolgados para visitar nosso amigo em Jujuy. Conhecemos Gustavo quando fizemos nossa primeira viagem de aventura juntos em plena Patagônia Argentina (2009) e desde então mantivemos contato somente por internet. Na época ele estava no começo de sua grande viagem de bicicleta pela Argentina. Exvelocista, tinha 26 anos, mas não sabia nem trocar os raios da bicicleta, tive que trocar alguns para ele. Hoje, com 32 anos, trabalha com bicicletas em sua casa e se transformou no mecânico mais caprichoso que já vi. Ele conta os detalhes dessa

transformação: “comecei com a ideia de conhecer a Argentina e suas paisagens. Embora tenha feito, creio que o melhor foi conhecer a mim mesmo, numa viagem não só através da Argentina, através de minha mente. Viajava sozinho e falava muito comigo mesmo. Isso me mudou muito, e me revelou a filosofia de que se necessita muito pouco para ser feliz. Antes eu trabalhava muito no escritório de uma importadora. Hoje vivo do ciclismo, esse jardim em meu quintal é meu escritório. Levo uma vida mais tranquila, valorizo mais o dia a dia. Percebi que viajar de bicicleta te dá isso, tranquilidade... muita paz... harmonia... É um equilíbrio com os demais e consigo mesmo.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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Percebi que a bicicleta, de uma ou de outra maneira, sempre me transforma em uma pessoa melhor.” Nos três meses de sua grande viagem atravessando a Argentina, Gustavo aprendeu tanto sobre si e sobre o mundo que conseguiu transformar sua vida. Mais que se fixar em grandes feitos, acreditamos que quando viajamos de bicicleta conseguimos facilmente ultrapassar a linha de nossa zona de conforto e chegar ao desconhecido, onde mora a verdadeira aventura. O fato de não mais existirem roteiros originais em nosso planeta não impede que a bicicleta nos traga grandes descobrimentos, pois a cadência das pedaladas funciona como um mantra que nos induz a introspecção e nos leva a lugares que realmente nunca foram

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visitados, as profundezas de nosso próprio ser... Mesmo estando fisicamente perto de nós, enfrentar lugares desconhecidos nos faz rever valores, que são chave para mudar o que somos e a forma de vermos o mundo. É natural que mesmo aqueles que clamam por algo novo temam operar mudanças, pois sentem que vão perder o que são, a base onde apoiam sua personalidade e seu ser. Como um inseto que troca seu exoesqueleto para poder crescer, é importante ter a coragem de deixar algo para trás a fim de receber o novo, mesmo que isso signifique tomar riscos, afinal não há como voar sem tirar os pés do chão. 



O QUE ACONTECE NO SEU CORPO ENQUANTO VOCÊ PEDALA? 10 minutos: benefícios na musculatura, irrigação sanguínea e articulações. 20 minutos: o corpo começa a desfazer-se do cortisol, hormônio ligado ao estresse. 30 minutos: há melhoras a nível cardiovascular, influenciando positivamente nas funções do coração. 40 minutos: aumenta a capacidade respiratória, melhorando o fluxo de oxigênio e sangue no cérebro. 50 minutos: o corpo libera serotonina e endorfina, as substâncias do bem-estar. 60 minutos: o metabolismo acelera e intensifica o controle de peso, com efeito antiestresse e bem-estar geral.

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ROLE

EXERCITE SEU CÉREBRO Não são apenas os músculos das pernas que o ciclismo tonifica. Pedalar pode lhe deixar com melhor velocidade de raciocínio, memória e sensação de felicidade! É isto que alguns estudos recentes sugerem. O cérebro é composto por massa cinzenta, que é o centro de comando do seu corpo, onde as sinapses acontecem, e massa branca, que é o centro de comunicação e que usa axônios para conectar as diferentes partes da massa cinzenta. Um estudo recente realizado na Holanda mostra que o ciclismo melhora a integridade da densidade da matéria branca, acelerando as conexões no cérebro. Outro estudo constatou que os participantes que pedalaram 12 semanas tiveram um aumento no fator neurotrófico derivado do cérebro, proteína que atua no controle do estresse, humor e memória, o que explica o fato de pessoas que pedalam terem baixos níveis de depressão e ansiedade. Há pesquisas que mostram, ainda, um aumento no hipocampo provocado pela prática de exercícios aeróbicos. Pesquisadores da Universidade de Illinois demostraram que o hipocampo dos participantes aumentou 2% depois de seis meses de pedaladas diárias, melhorando as habilidades de memorização em 15%, a resolução de problemas em 20%, maior capacidade de atenção e concentração. Motivos de sobra para começar/continuar a pedalar, bora?



ROLE

O SÉCULO DO CARRO FOI UM ERRO O jornal Washington Post publicou um artigo de J. H. Crawford, relatando que o século do carro foi um erro. O autor afirma que carros não eram necessários nas cidades e, em muitos aspectos, trabalharam contra o propósito fundamental das cidades, que é reunir pessoas em um espaço onde a sinergia social, cultural e econômica poderia se desenvolver. Acesse uma tradução resumida do conteúdo em revistabicicleta.com.br/rb/cfz.

30 MITOS SOBRE A BICICLETA, E COMO RESPONDÊ-LOS Não somos holandeses ou dinamarqueses. Andar de bicicleta não é seguro. As pessoas não irão, ou não conseguem ir, muito longe de bicicleta. Essas são três das 30 falácias sobre bicicleta listadas no site cyclingfallacies.com. Ao clicar em cada uma, você verá a resposta que pode dar ao referido mito. Acesse e aumente sua bagagem de argumentos em favor da bici!

APLICATIVO CACHOEIRAS DA ESTRADA REAL Com 180 cachoeiras mapeadas em 21 cidades da Estrada Real (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo), o aplicativo Cachoeiras da Estrada Real funciona como um guia virtual com fotos, vídeos, informações e rotas para que o usuário consulte previamente os atrativos a serem visitados. Ideal para cicloturistas que planejam visitar a região, através do aplicativo é possível saber, por exemplo, se a cachoeira está em terreno particular, localização de restaurantes, bancos e pousadas próximas, além de dicas de segurança.

Em breve disponível também para iOS.

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TECNOLOGIA Texto Pietro Battisti Petris Fotos Divulgação / Reprodução

No caso dos pneus com câmara, é necessário injetar o liquido através do bico da câmara.

LÍQUIDO SELANTE O GUARDIÃO DO AR DOS PNEUS 54

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xistem pneus que se tornaram famosos por terem aderência, resistência ou durabilidade. E também existem aqueles famosos por furarem com facilidade. Independente de pneu, todo ciclista está à mercê de um indesejável furo, e consequentemente, da chata tarefa de trocar o pneu. Isso exige ferramentas, peças, tempo e muita paciência.

pneu. Assim que algo perfura o pneu, a reação inicial é o vazamento do ar sob pressão. Mas como o líquido está entre o ar e o pneu, o ar acaba empurrando o líquido para dentro do furo. E como é denso e grudento, ele acaba ‘entupindo’ o furo e impedindo o vazamento de ar. É como se houvesse um remendo líquido correndo dentro do pneu, pronto para parar vazamentos.

Aparentemente, a melhor solução seria criar um pneu ‘infurável’. Houve várias tentativas, e até existem pneus absurdamente resistentes. Mas isso implica em pneus pesados ou muito duros – e a velha regra deixa bem claro: quanto mais mole o pneu, mais aderência. Quanto mais leve, melhor a rolagem.

Isso serve para pequenos furos e cortes leves. Se você passar por cima de uma espada medieval com a bike, obviamente o selante não vai conseguir cobrir toda a área cortada e a pressão do ar será perdida. Mas como boa parte dos furos são causados por pequenos objetos – cacos de vidro, espinhos e pregos na maioria das vezes – o selante dá conta do recado. Enquanto os furos forem pequenos, o selante protegerá o pneu mesmo que hajam centenas e centenas de furos.

A SOLUÇÃO VEM DE DENTRO Não encontramos informações precisas sobre quem inventou o líquido selante e quando fez isso. Mas um belo dia, alguém que provavelmente se incomodava muito com furos percebeu que o problema não eram os furos. O problema era deixar o ar vazar! Parece contraditório... mas é isso mesmo: furos, sim. Vazamentos não! O líquido selante é, como o nome diz, um líquido que sela o pneu por dentro contra pequenos vazamentos. O princípio é bem simples: um líquido espesso, denso, composto de fibras e adesivos, que com a rotação da roda, se espalha e forma uma fina camada por todo o interior do

Os ciclistas que gostam de um passeio ou treino longo, cicloturistas e outras pessoas se beneficiam muito de passar meses sem vazamentos de ar. É claro que tudo que é bom não dura para sempre. Os líquidos selantes possuem validade e precisam ser trocados ou reabastecidos depois de um tempo, pois perdem características essenciais, como viscosidade e aderência.

POSOLOGIA Cada modalidade do ciclismo possui seus próprios pneus. Grossos, finos,  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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com poucas ou muitas garras, com 30 ou 110 libras de pressão... Obviamente, cada um desses tipos de pneu recebe uma quantidade diferente de selante, ou, um tipo diferente de selante. Imagine, por exemplo, se a mesma quantidade e tipo de selante de um pneu fino de speed poderia cobrir e proteger o interior de um pneu 29” grosso de mountain bike? Para cada tamanho existe uma quantidade recomendada de líquido selante, mas isso varia conforme marca e modelo do selante. Pneus speed usam em média 30-50 ml por roda, já pneus de MTB usam de 80-150ml por roda. No MTB a quantidade varia muito pois os tamanhos de roda vão de 26” à 29”, além do tamanho do pneu, que pode variar de 1,5” até 2,8”. Nota: a maioria dos selantes são feitos para pneus tubeless. Existem selantes específicos para câmaras de ar. Isso não quer dizer que nenhum selante tubeless funcionará em uma câmara de ar, mas é importante lembrar disso na hora de comprar ou trocar seu selante, caso contrário ele pode ser dinheiro jogado fora. Para pneus tubeless o selante é indispensável. Senão, cada furinho resultaria na colocação de uma câmara ou a troca do pneu inteiro, e eles não costumam ser muito baratos. O prazo de validade dos selantes varia, começando em 2 meses e chegando a vários meses em outros modelos. Um

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teste rápido e prático é balançar o pneu (se tiver sido colocada a quantidade adequada de selante nele). Se você conseguir ouvir o barulho do selante, tudo bem. Se o barulho começar a diminuir ou desaparecer, está na hora da troca ou reabastecimento.

VACINANDO O PNEU De alguma maneira, o selante tem que entrar dentro do pneu ou da câmara. É possível usar uma seringa e injetar no pneu como se fosse uma vacina, afinal de contas, ele irá vedar o furo depois. Mas o líquido é muito espesso e possui partículas de borracha e outros materiais que entopem a seringa e a agulha, o que exige uma agulha grossa, que poderia causar um furo que o selante não conseguiria vedar. É necessário achar a agulha mais fina possível, desde que ela não entupa com o líquido. Como esse método possui um certo ‘risco’, vamos analisar outros métodos. No caso dos tubeless, o liquido é derramado dentro de pneu. Basta abrir uma fresta entre aro e pneu com espátulas e derramar o líquido. Simples assim! Já no caso dos pneus com câmara, é necessário injetar o liquido através do bico da câmara. Para isso o núcleo da válvula deve ser removida, seja Presta (fina) ou Schrader (grossa). No caso da Presta com válvula removível, basta rosquear a ponta e removê-la. Já a


Já no caso dos tubeless, o liquido é derramado dentro de pneu.

válvula Schrader necessita de uma ferramenta para remoção. O líquido é injetado com a ajuda de uma mangueira, bombeada por uma seringa ou frasco. Lembre-se que existem selantes específicos para uso com câmaras, mas os comuns também podem funcionar.

Um frasco com bico bem pensado também pode ser de ajuda. Alguns selantes já trazem uma pequena peça que remove o núcleo das válvulas Schrader e Presta. Se o bico for cônico, praticamente qualquer tipo de câmara e pneu pode receber a injeção.

Quando se trata de uma Presta com núcleo da válvula não-removível, podese injetar o líquido com um selante que tenha frasco com bico longo e cônico. Esse bico pode ser cortado e usado para ‘envolver’ a válvula Presta aberta, como o bico da bomba de encher pneu faz. Então, é só apertar. Existe também um método que consiste em remover a trava da válvula e empurrá-la para dentro da câmara, prende-la com um grampo, injetar o líquido e recolocá-la no lugar. Há, porém, o risco da válvula resolver dar uma voltinha dentro câmara, o que pode tornar incômodo para recolocá-la no lugar.

ESCOLHA BEM Como em praticamente todo tipo de produto, existem selantes que funcionam bem e outros que deixam a desejar. É comum que ciclistas se enganem na hora de comprar seus selantes, por isso a primeira dica é ficar bem atento ao tipo de selante que você precisa. Depois de definir qual o tipo de selante, é recomendável pesquisar marcas e modelos conforme a necessidade. A internet é uma das melhores ferramentas para isso. Em blogs e fóruns podem ser encontrados  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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TUTORIAIS DA SLUDGE DE COMO COLOCAR SELANTE EM CÂMARAS COM VÁVULA:

Presta não removível revistabicicleta.com.br/ rb/presta-nao-removivel

Presta removível revistabicicleta.com.br/ rb/presta-removivel

Válvula Schrader revistabicicleta.com.br/ rb/schraeder

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relatos de quais selantes funcionam, quais não... e com isso você terá uma base para definir a marca e modelo do selante que usará. Um dos selantes mais bem avaliados é Stan´s No Tubes! Já o Joe´s No Flats! Possui vários modelos, dos quais o mais bem avaliado é o Elite Racers. Há também o CafféLatex da empresa italiana Effeto Mariposa, um selante diferente que cria uma espuma dentro do pneu, causando uma área de cobertura igual em todas as partes, tendo, porém, a desvantagem de demorar mais para selar os furos. A alemã Continental também está presente no mercado com o Revo Sealant. Também estão no mercado Rubena, Oko-Extreme, Zéfal, Mavic, Michelin, Sludge, WTB e Kombat. E não poderia ficar de fora o Slime, selante verde que não se incomoda com gás CO2 (muitos selantes perdem eficiência ao entrar em contato com esse gás) e continua vedando muito bem por vários e vários meses.

Algumas marcas como Zéfal, Slime, Michelin e Hutchinson contam com selantes aerossóis, que são facilmente injetados por pressão, úteis para quem precisa de uma carga rápida, como competidores durante provas. Esses selantes não só reparam os pneus, mas também o inflam recuperando perdas de pressão.

FITA ANTI-FURO Existem outros meios de evitar problemas com o pneu. Muitas pessoas optam pela fita anti-furo, uma fita casca grossa que resiste muito bem a pequenos objetos, impedindo que o pneu fure. Por isso muitos se perguntam: fita anti-furo ou líquido selante? Essa pergunta não tem resposta definida, pois os dois produtos agem de formas diferentes, e obviamente, geram resultados diferentes. Por exemplo: Uma fita antifuro irá impedir boa parte dos furos, mas se algo como um prego comprido a traspassar, o ar vazará.


Já o selante conseguiria vedar o furo do prego. Por outro lado, se o objeto for uma pequena lâmina, a fita anti-furo poderá resistir a ela e evitar o corte. Já o selante não conseguirá impedir o vazamento de ar, pois se trata de um corte maior. VÍDEOS E TUTORIAIS DE MONTAGEM:

Pneu Tubeless revistabicicleta.com.br/rb/1qq

Injeção com agulha revistabicicleta.com.br/rb/1qr

Entendeu a diferença? O selante, por assim dizer, funciona com furos. Já a fita impede os furos. Com cortes a história é outra... É importante analisar qual opção se encaixa melhor para você. Antes de tudo, priorize a compra de um bom pneu e calibre-o na pressão correta, indicada pelo fabricante na lateral do pneu. Depois decida se no seu caso será necessária mais proteção e qual tipo será mais apropriada.

COMPENSA? Sim, compensa! Como dito, para pequenos danos, mas eles são a maioria. Lembre-se que no caso do selante, seu pneu vai furar, mas você nem sequer perceberá. Para os aficionados por

peso talvez a proteção pareça dispensável. Mas pense bem: quem quer o mínimo possível de peso faz isso para conseguir o melhor tempo. Porém, você perderá muito mais tempo trocando e enchendo um pneu do que com algumas gramas a mais de peso para levar. Selantes costumam ter um pouco mais de 1g por ml. Outra questão que talvez venha na mente seja o preço. Mas selantes não são caros. Fitas anti-furo são um pouco mais baratas. Podese encontrar selante suficiente para os pneus da sua bike em torno de R$ 60,00, o que não é lá nenhuma bala de troco, mas que vai sair mais barato do que trocar a câmara frequentemente. E obviamente, com muito menos incômodo. Selantes e fitas anti-furo são investimentos no qual todo ciclista deve considerar, principalmente quem não pode parar no meio do caminho. Seja prego, vidro, espinho... proteção nos pneus e pedal pra frente! 

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EVENTO Texto Luli Cox Fotos Paula Freitas e Pedro Marinho

O R U E O C D RA E K BI

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A DOURO BIKE RACE (DBR) É UMA COMPETIÇÃO DE MOUNTAIN BIKE EM QUATRO ESTÁGIOS: UM PRÓLOGO E MAIS TRÊS DIAS DE PROVA. A BASE É AMARANTE, UMA PEQUENA CIDADE LOCALIZADA HÁ 60 KM DE PORTO, QUE ALÉM DA FAMOSA IGREJA SÃO GONZALO, É CONHECIDA PELAS LINDAS SERRAS QUE A CIRCUNDAM: MARÃO, ALVÃO E ABOBOREIRA. A CIDADE E SUAS TRÊS SERRAS DIFERENTES SÃO PALCO DOS QUATRO DIAS DE DESAFIO MARCADOS PELA SINGULARIDADE DE CADA UMA DAS MONTANHAS. 

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DBR

PASSADO E PRESENTE

Organizada pela Nexplore, a DBR nasceu em 2010 numa prova de um dia como teste para que, em 2011, pudesse ter estágios e se firmasse em 2012 como a maior prova em estágio de Portugal, com 700 atletas inscritos. Por caminhos do destino a competição mudou de mãos em 2013 e nos anos seguintes entrou em um processo de desaceleração e edições mal organizadas. Ao receber a concessão de volta, mesmo tendo uma prova com um passado recente não favorável, a Nexplore, após um ano de intervalo (2015), resolveu retomar o próprio desafio e lançar a Douro Bike Race 2016. “Decidimos ‘voltar à 2012’ a prova com

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mais êxito organizada pela Nexplore, como um misto de presente e futuro. Exigente, cheia de ambição, muita dureza, queremos fazer dessa prova o que ela foi: uma referência no mundo do mountain bike, e para isso temos que voltar sem medo à nossa essência e identidade. O compromisso é o mesmo que trabalhamos na ultramaratona Mountain Quest (outra competição com a mesma organização), mostrar o melhor destas serras desenhando um desafio épico, neste caso por etapas, à altura das melhores provas do mundo”, anunciou Fernando César, diretor de prova.

SARCOIN DOURO BIKE RACE 2016 A organização oferece diferentes opções para quem quer participar da DBR: EPIC {4 dias} Prólogo + três etapas na atmosfera das grandes provas.


A oportunidade de ter uma experiência única, desfrutar de quatro dias de trilhas épicas, subidas, descidas, pedras, sol, companheirismo e MTB ao mais alto nível. ADVENTURE {2 dias} Dois dias de partilha de experiências. Para aqueles atletas que não têm disponibilidade de competir os quatro dias, mas não perdem uma boa aventura por nada.

"Exigente, cheia de ambição, muita dureza."

RIDE {1 dia} Para os que querem viver um dia de aventura e degustar um pouco da dureza e atmosfera ímpar da Douro Bike Race. Uma amostra concentrada de experiência.

DIA 1 / PRÓLOGO / CIDADE DE AMARANTE / 6 KM São seis quilômetros percorridos por dentro da cidade. Apesar de curto, o trajeto é caracterizado pela diversidade de terreno: paralelepípedos, terra, pedras, subidas e descidas. Os atletas largam de 30 em 30 segundos, a vibração competitiva toma conta da praça São Gonzalo, onde estão alinhados e concentrados atletas e espectadores curiosos que se juntam à torcida. A classificação do prólogo já define os vencedores do primeiro dia e líderes da competição. Na cerimônia de premiação noturna, as camisetas de líder já são entregues e o briefing do percurso do dia seguinte é apresentado.

DIA 2 SERRA DO MARÃO 90 KM Marcada por subidas exigentes, o trajeto do dia não 

Clique aqui e assista ao vídeo do Prólogo // 1ª Etapa.

Clique aqui e assista ao vídeo da 2ª etapa

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é nada fácil. São mais de 90 km marcados pela dificuldade técnica de suas trilhas e altimetria impiedosa. O calor ainda foi um agravante na etapa, com picos de mais de 45 graus na montanha, os atletas sofreram ainda mais nas duras subidas. As três serras que circundam Amarante têm características individuais bem definidas. O Marão é marcado por sua grandeza, montanhas colossais que ao mesmo tempo que nos tornam pequenos, nos enchem a alma. As eólicas (grandes torres de vento) também são companhia nesta etapa. Lá no alto da serra somos acompanhados por grandes soldados brancos que sinalizam o tão apreciado vento.

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Nelson Sousa, o primeiro atleta, concluiu o percurso do dia com o tempo de 4 h 56 min e a última atleta cruzou a linha de chegada com 10 h 04 min, o dobro do tempo. Após muitas quedas de humor, Patrícia não desistiu porque teve apoio nos abastecimentos e fora acompanhada pelos vassouras da prova que certificaram-se de que podiam animar a atleta e garantir que chegasse bem ao final.

DIA 3 / SERRA DO ALVÃO / 94 KM Salientando as características de cada serra, o Alvão é marcado por terreno de pedras e pilotagem duríssima. As subidas continuam impiedosas e o descanso esperado das descidas não chega nunca,


porque são necessárias habilidades de Downhill e braços fortes. A etapa é abençoada pela Nossa Senhora da Graça, um monte famoso da região que abriga um santuário lindo em seu topo. É possível visualizá-lo desde os primeiros quilômetros do dia, pequenino à distância, e vai engrandecendo à medida que os quilômetros são percorridos e nos aproximamos. O visual do dia também é lindo. O ponto alto esperado da etapa do Alvão é o famoso Rock Garden situado ao meio do percurso, que exige maior habilidade de pilotagem. Os menos preparados descem com a bike à mão.

Clique aqui e assista ao vídeo do 3ª Etapa.

O terceiro dia também foi marcado por muito calor, mas já sabendo o que iram enfrentar, os atletas saíram mais bem preparados e acabaram por sofrer menos na segunda linha etapa. Após 4 h 51 min, Ricardo Senos cruzou o pórtico num sprint com o líder da prova Nelson Souza, enquanto os últimos cruzaram o pórtico com quase onze horas de prova.

DIA 4 / SERRA DA ABOBOREIRA / 52 KM Clique aqui e assista ao vídeo do 4ª Etapa.

O último dia é o menos exigente, caracterizado por uma etapa mais curta com 52 km e uma longa e interminável subida que atinge os 950 m de altitude.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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As paisagens são características de Portugal. Cruzamos vilarejos, cercados do verde vivo e paisagem bucólica das parreiras. Após a subida exigente, o Downhill que nos leva de volta à cidade é extremamente divertido e os atletas cruzam a meta cheios de sorrisos em ritmo de festa. Nelson Sousa fechou o quarto dia com 1 h 41 min de prova, consagrando-se líder Epic da Sarcoin Douro Bike Race 2016. A campeã Epic na categoria feminina foi Patrícia Rosa, com mais de 25 horas acumuladas nos quatro dias de competição. A atleta não se abalou com

o cansaço: “ainda estou sem palavras para descrever e assimilar todas as sensações que tive nos últimos quatro dias. Foi uma experiência fantástica e me senti privilegiada por todos os momentos que vivi”. Ao final dos quatro dias de competição, a Douro Bike Race sagrou-se um sucesso, com potencial enorme de voltar às origens e desfilar novamente nos calendários europeus como uma das mais duras prova em etapa. Organização e atletas satisfeitos comprometem-se a voltar para uma edição ainda melhor que já tem data marcada: setembro de 2017, are you ready? 





SUPERAÇÃO Texto por Anderson Ricardo Schörner Fotos William Kamkwamba


O MENINO QUE DOMOU O VENTO M A L AW I - A F R I C A Tinha apenas um par de chaves inglesas, para as quais um raio curvado de bicicleta servia como adaptador: não contava nem com recursos para a compra de porcas e parafusos. 

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illiam Kamkwamba nasceu e cresceu em Malawi, um dos países mais pobres do mundo, marcado pela mortalidade infantil e baixa expectativa de vida. Em sua vila não havia saneamento básico, água corrente e eletricidade. Em 2002, com 14 anos, William precisou deixar de frequentar a escola. Seus pais, assolados pela fome, não tinham os 80 dólares anuais para a taxa da matrícula. Mesmo assim, o garoto continuou estudando de forma autodidata, em uma pequena biblioteca, de um só cômodo, bancada por doações do governo norteamericano. Novos ventos começaram a soprar no pequeno mundo daquele garoto, quando ele encontrou o livro Using Energy, sobre moinhos de vento. Apesar do livro ser em inglês, idioma que William não dominava, ele persistiu em estudálo, e descobriu como os moinhos de vento podiam ser utilizados para gerar eletricidade. A energia, segundo William, representava o poder e a liberdade para seu povo. O moinho também poderia bombear a água, e melhorar a colheita e a própria distribuição nas casas. Por três meses ele buscou em latas de lixo, materiais que poderia usar

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para construir seu moinho. Coletou pedaços de canos de PVC, uma hélice de ventilador de trator e uma bicicleta quebrada. Tinha apenas um par de chaves inglesas, para as quais um raio curvado de bicicleta servia como adaptador: não contava nem com recursos para a compra de porcas e parafusos. Aprendeu mais sobre magnetismo, condutores, dínamos, e fez o inimaginável: construiu um moinho de vento. Um garoto de 14 anos, em um país de extrema pobreza da África, ousara criar um moinho de vento com peças de uma bicicleta velha, ao invés de se acomodar e reclamar! Kamkwamba conta que ouvia comentários do tipo: “você é doido, está fumando maconha demais!”, para os quais respondia: “vejam esta foto no livro! Este moinho não caiu do céu, alguém o construiu!” Terminado seu primeiro moinho de vento, William equipou sua casa com quatro lâmpadas elétricas, rádios, interruptores feitos de sandálias de borracha, e instalou um disjuntor para evitar que o telhado de palha de sua casa pegasse fogo. O projeto deu certo, e chamou a atenção de seus vizinhos. Logo o moinho foi divulgado na mídia e o garoto foi convidado para apresentar seu trabalho na Technology Entertainment Design, na Tanzânia. 


UM GAROTODE 14 ANOS, EM UM PAÍS DE EXTREMA POBREZA DA ÁFRICA, OUSARA CRIAR UM MOINHO DE VENTO COM PEÇAS DE UMA BICICLETA VELHA, AO INVÉS DE SE ACOMODAR E RECLAMAR!

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A notícia se espalhou e William Kamkwamba passou a viajar pela África, contando sua história e ensinando a construir moinhos. Quando Bryan Mealer, jornalista especializado na África, ouviu William, passou um tempo reunindo material até escrever o livro The Boy Who Harnessed the Wind ( O Menino que Domou o Vento). O livro já consta na lista de Best Sellers do New York Times. Hoje, aos 23 anos, o Menino que Domou o Vento estuda na renomada Universidade de Joanesburgo, na África do Sul, onde conseguiu uma bolsa de estudos. Já viajou pelos Estados Unidos, onde participou de diversos programas, como o Daily Show. A lição que fica é que precisamos parar de arranjar desculpas. Um garoto como William, que não tinha dinheiro, que teve que deixar a escola, e que por certo enfrentou dias em que não tinha sequer comida em casa, tinha todas as desculpas do mundo nas mãos; mas ao invés de se encolher, ele usou suas mãos e sua inteligência – que não é algo que se adquire apenas nas escolas – para mudar a realidade de seu povo, de sua vida, e escrever seu nome na história. Conhecer alguém que saiu de um pequeno país da África para apresentações em Oxford, na Inglaterra,

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Em 2009, William Kamkwaba participa do TED Talks, contando como construiu o seu moinho de vento, e sobre toda a repercussão de sua criação. Assista, com legenda em português: www.revistabicicleta.com.br/rb/cf7

emociona e reacende nossos próprios sonhos. E temos muito que aprender com os moinhos. De certa forma, um moinho de vento se assemelha muito aos pedivelas de nossas bicicletas: ele capta e converte uma energia em outra forma de energia, capaz de movimentar outros mecanismos. Cada um de nós é responsável por construir o seu próprio moinho. Uma história assim mostra que não é preciso acesso à internet, não é preciso revolta e ódio diante das dificuldades. Quem escolhe o caminho da raiva está predestinado ao esquecimento; William Kamkwamba é que será lembrado. Quem constrói moinhos de vento, e ousa sonhar e enfrentar a realidade é que merece ser lembrado. 





 NA GARUPA

VINHO OH, MARAVILHA!!!! Texto Therbio Felipe M. Cezar

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O brasileiro, nos últimos dez anos, vem aprendendo © BELCHONOCK / DEPOSITPHOTOS.COM

mais sobre a arte de degustar vinhos e passou, gradativamente, a inserir esta iguaria em seu cotidiano, independente do horário e do motivo da ocasião. Ainda que exista no país uma hegemonia comercial e temática sobre a cerveja, e não quero aqui polemizar, o vinho toma silenciosamente o seu lugar de destaque tanto em eventos quanto à boa mesa, porque não dizer, em momentos de diletantismo e desfrute. Diga-se, oportunamente, que a cerveja nacional, produzida em larga escala e não artesanal, não é, nem de longe, uma das melhores do mundo e isto é notório. 

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que não se pode dizer do vinho brasileiro, que galga posições a cada dia mais elevadas no gosto e no mercado mundial, tal o trabalho técnico que vem sendo desenvolvido em inúmeras regiões do país para chegar a uma elaboração digna de aplausos dos paladares afetos e adictos da bebida, mais bem treinados e exigentes. Exemplos disto, apenas para citar, são dois vinhos brasileiros que configuraram, em 2015, na lista dos 10 melhores vinhos do mundo, pela Associação Mundial de Jornalistas e Escritores de Vinhos e Licores (WAWWJ). São eles: em 8º lugar, o Marcus James Espumante Brut, da Vinícola Aurora e em 9º lugar, o Espumante Garibaldi Prosecco Brut, da Cooperativa Vinícola Garibaldi. Este ranking é baseado em quatro concursos mundiais de bebidas, como o Concours Mondial de Bruxelles e o International Wine Challenge. E sim, não paramos por aí. Em 2016, outra obra-prima alcançou por primeira vez uma medalha de ouro no Decanter World Wine Awards, uma das maiores e mais influentes competições de vinhos do mundo, e pasmem, não se trata de um vinho produzido nas tradicionais regiões vitivinícolas gaúchas e catarinenses, mas de uma iguaria elaborada no município paulista de Espírito Santo do Pinhal: chama-se Syrah Vista do Chá 2012, da promissora

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Vinícola Guaspari, localizada numa região conhecida pela excelência em produção de café, ora vejam só. Vinho exige música em um volume suficiente, assim como exige ambiente. Não há como saborear-se uma boa taça às calçadas maltratadas e conversar aos berros degustando a bebida. E não se trata, pensemos bem a respeito, de elitização do consumidor, senão, de agregar valores a uma experiência dos sentidos e que também carrega em si cultura, conhecimento e alma. Talvez não tenham notado, mas não há propagandas televisivas sobre vinhos. Tampouco há cartazes nos bares, postes e muros ou outdoors mostrando mulheres e a bebida, aliás, uma infeliz, imprópria e caduca associação, visto que cremos que a figura feminina, definitivamente, mereça não ser tratada como coisa ou mercadoria. O vinho ama as mulheres, não as vitimiza. Sabe-se há muito tempo que a cultura do vinho envolve uma produção coletiva, digamos comunitária. A mecanização entra apenas na parte final do processo produtivo. O senso comum, infelizmente, se move pela máxima de que “quanto mais velho, melhor”, o que é um ultraje. O vinho é um ser


vivo, tem sua curva de vida tal qual outro organismo que nasce, cresce, amadurece, alcança seu apogeu e começa, gradativamente, seu declínio e falência até sua morte. Há que debruçar-se sobre o conhecimento que envolve as cepas, o mosto, a vinificação, o armazenamento, a geografia da região produtiva, o método utilizado pela vinícola, a distribuição e o varejo, assim como a taça ideal, temperaturas, harmonizações, aromas etc. Reforço, o senso comum não é medida. Se diz por aí que vinho é uma bebida cara, mas caro é um padrão subjetivo, visto que se encontram com facilidade boas garrafas de renomadas regiões, de vinícolas nacionais ou estrangeiras, por valores bem abaixo da imaginação. Vale informar-se e buscar as melhores alternativas. E, quase ia me esquecendo, pelo país, facilmente se acessa vinícolas de bicicleta (Cicloenoturismo, já publicado em edições anteriores), seja na Campanha Gaúcha, na Serra Catarinense ou no Vale do Rio São Francisco. Para encerrar, aliás, como tenho formação na área de alimentos e bebidas, sempre me perguntam qual é o melhor vinho. Trato de indicar que o melhor vinho é aquele que a pessoa “entende”, aquele que lhe “diz” algo. Não mova sua escolha pela marca ou pelo valor mais caro, tente ler,

pelo menos um pouquinho, a respeito e experimentar. Assim, você compreenderá os motivos de um Carmenère ser mais atrativo para o seu paladar do que um Montepulciano. Da mesma forma, será mais fácil de entender os motivos que vinhos tintos, em sua maioria, são ótima companhia para pratos de carnes vermelhas com molhos/guarnições fortes, assim como os vinhos brancos secos jovens e os maravilhosos rosés secos, levemente refrescados, fazem par ideal a pratos de pescados e frutos do mar. Ah, e não esqueça. Mesmo que a temperatura ambiente esteja alta, normalidade encontrada em nosso país tropical, apenas refresque o vinho mas não o gele, pois o frio extremo não permitirá que os taninos do vinho tinto sejam degustados ou desprendidos, e o vinho branco, coitado, sem bouquet não terá graça nenhuma. Deixar a garrafa de vinho dentro de um balde com gelo por alguns minutos antes de servi-lo é uma boa alternativa. No mais, aproveite a vida, reúna as pessoas queridas, diminua a luz, coloque aquela música suave, inspire e saboreie.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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HISTÓRIAS DA BICICLETA Texto Eduardo Sens dos Santos Fotos Divulgação / Tour de France


EUGÈNE CHRISTOPHE O CICLISTA MAIS AZARADO DE TODOS OS TEMPOS Se você fura um pneu e se acha azarado, não conhece a história de Eugène Christophe, mais conhecido pela impressionante falta de sorte e pelos títulos que não ganhou do que pelas medalhas e troféus que guardava na sala de casa. 

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ugène foi profissional na Era de Ouro do ciclismo mundial, entre 1904 e 1926. Neste período, seus feitos somados já são dignos de nota: foi pioneiro do ciclocross e o primeiro ciclista a usar a famosa maillot jaune, a tão sonhada camisa amarela, no Tour de France de 1919. Eugène liderava a competição naquele ano, mas os jornalistas reclamavam que não conseguiam distingui-lo no meio do pelotão, de modo que a organização resolveu o problema obrigando o primeiro colocado a usar a camisa numa cor mais chamativa. Hoje todos os ciclistas profissionais sonham em vesti-la, mas

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na época Eugène detestou: a cor lhe rendeu o apelido de Canário. Provando que mandinga não traz boa sorte, o metódico Eugène Christophe era cheio de superstições. Só corria com um saquinho pendurado no pescoço contendo uma moeda de 20 e outra de 10 francos, um elo de corrente e uma chave de raio. A mania de organização deste herói do ciclismo felizmente legou aos dias de hoje uma enorme quantidade de informações. Ele mantinha, por exemplo, um diário com anotações de todas as corridas que participou, desde 1920.


Lá se pode ler desde os resultados, suas impressões pessoais, seus gastos e a premiação recebida. Todas as noites ele escrevia um pouco no hotel antes de arrumar minuciosamente seu equipamento para a manhã seguinte. De tão azarado que era, mesmo sendo muitas vezes considerado o melhor ciclista da competição, não venceu nenhuma das onze Voltas da França que disputou. Em 1912, por exemplo, Eugène teria vencido se o sistema fosse por tempo. A organização ainda adotava o sistema de pontos e ele perdeu, mesmo realizando um feito até hoje não repetido. Naquele ano Eugène protagonizou a maior fuga solo de todos os tempos: 315 km, sozinho, com a cara no vento. Diante da injustiça do resultado, no ano seguinte a organização adotou o sistema de premiação pelo menor tempo. Mas aí o azar, seu companheiro inseparável, falou mais alto e Eugène Christophe, perdeu o título novamente. Teria vencido se estivesse no sistema de pontos, mas perdeu porque algo impensável ocorreu... Eugène Christophe e Philippe Thys, que se tornaria campeão naquele ano, estavam cinco minutos à frente do pelotão numa das mais brutais etapas de todos os tempos, com sete montanhas e 404 km de extensão,

quando concluíram a subida do Tourmalet. Eugène parou no topo, sacou a sua roda traseira e a trocou de lado, para colocar uma marcha mais pesada. Sim, somente 25 anos depois, em 1937, o câmbio traseiro passaria a ser utilizado pela primeira vez no Tour de France. Até lá, as bicicletas dispunham de apenas uma engrenagem de cada lado, conforme a necessidade: subida ou plano. Com a marcha correta, Eugène mergulhou a toda velocidade vale abaixo. De acordo com os cálculos de Henri Desgrange, diretor da prova, o ciclista mantinha a liderança geral da prova com 18 minutos de vantagem. De repente, a 10 km da cidade de SainteMarie de Campan, no pé do vale, Eugène  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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autônomos; só o próprio atleta pode realizar consertos em sua bicicleta. Esqueçam as frescuras modernas, com equipes trocando todo o equipamento em menos de cinco segundos. O ciclismo era para fortes naquela época!

sentiu algo errado no guidão. Não conseguia mais direcionar a bicicleta e percebeu que a espiga do garfo estava quebrada. Tentando disfarçar para não prejudicar o patrocinador, desceu da bicicleta e passou a empurrá-la pela estrada em direção à próxima cidade. “Pela estrada” é modo de dizer. O melhor seria dizer “pelo caminho” ou “pela trilha”, porque as estradas não tinham asfalto e grandes pedras soltas não eram raras no curso da prova. Todos os ciclistas ultrapassados com esforço descomunal na subida o alcançaram. As provocações começavam, o que o deixou furioso. Eugène chorava de raiva e andou por mais de dez quilômetros até chegar à vila. Lá pediu informações e uma jovem o escoltou até a ferraria Lecomte, onde encontraria socorro mecânico. Mas nada é tão fácil assim. O art. 45 do regulamento não podia ser mais claro: os ciclistas têm que ser absolutamente

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Como não poderia nem mesmo aceitar a ajuda do ferreiro, Eugène Christophe trabalhou sozinho por três horas seguidas numa forja a carvão, amolecendo o metal e soldando as partes quebradas para consertar o garfo. Os fiscais da prova acompanhavam a tudo impassíveis, de olhos atentos, em absoluto silêncio. Só as batidas do martelo no ferro ecoavam pelo vilarejo, um clima de enterro havia se instaurado no local. O ferreiro apenas informava o que deveria ser feito e Eugène executava. Passada a primeira hora, os fiscais indagaram se podiam confiar em Eugène por alguns minutos. Queriam sair para um breve lanche. A resposta parece hoje ríspida, mas dadas as circunstâncias, é preciso reconhecer a elegância: “Se estão com fome, comam carvão! Sou o prisioneiro e vocês meus carcereiros!”. Ninguém arredou o pé. Um menino de sete anos bombeava o fole para manter as brasas vivas e Eugène foi penalizado em dez minutos - depois reduzidos a três minutos pela direção da prova - por ter contado com este apoio proibido. Consertada a bicicleta, Cri-Cri, como era conhecido, encheu seus bolsos de pão, as garrafas de água e seguiu adiante, concluindo naquele ano o Tour de


France na sétima posição geral, depois de escalar ainda os passos de Aspin e de Peyresourde, este último com 12 quilômetros de escalada com até oito por cento de inclinação. A Peugeot, fabricante da bicicleta, alega que o garfo quebrou por um acidente com um veículo na descida. Eugène anos mais tarde negaria, e de fato não existem registros da colisão. O mais provável, segundo o historiador Bill McGann, é que a Peugeot tenha criado esta história para não dar publicidade à fragilidade de seus quadros, o que, aliás, era natural numa época em que as estradas eram péssimas e a técnica de

seu garfo quebrou novamente, nos paralelepípedos de Valenciennes. O ferreiro mais próximo ficava a mais de um quilômetro de distância. Eugène perdeu então mais de duas horas e meia - e a vitória - enquanto consertava a peça. Não arriscou ser punido em dez minutos novamente: nem mesmo para manter a fornalha acesa recebeu ajuda. E como se não bastasse, na última etapa de 1919, uma sucessão de furos o fez cair de segundo para terceiro geral. Mesmo assim, completou a prova, de cabeça erguida.

O público, de tão fascinado pela história de superação, exigiu e Eugène Christophe acabou premiado pela direção da prova com o mesmo valor destinado MAS PARA CLASSIFICAR UM CICLISTA ao primeiro colocado geral. COMO “O MAIS AZARADO DE TODOS O Jornal L’Auto organizou OS TEMPOS” ISSO SERIA POUCO. uma lista de doadores que pagaram o prêmio de 13.310 francos. Foi preciso vinte listas no jornal para constar o nome de fundição ainda engatinhava. cada doador, dentre eles o Barão Henri de Rothschild, um dramaturgo e rico Mas para classificar um ciclista como empresário. “o mais azarado de todos os tempos” isso seria pouco. Se você achou Com tudo isso, você provavelmente demais, talvez seja a hora de rever seus desistiria do ciclismo e certamente conceitos… nunca mais olharia para uma bicicleta. Mas inacreditavelmente, em 1922, Sim, por que o raio não pode cair quando novamente disputava as três duas vezes no mesmo lugar? Em primeiras posições, Eugène quebrou 1919, seis anos depois, Eugène outro garfo, na descida do Galibier, nos estava na liderança da corrida, com Alpes. Mais uma longa caminhada e 30 minutos de vantagem, quando, no mais trabalho na ferraria. E mais uma penúltimo estágio, de Metz a Dunkirk, derrota fantástica!  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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As histórias de azar renderam tanto aos jornais quanto as narrativas das grandes vitórias do ciclismo mundial, a ponto de, em 1951, a Federação Francesa de Ciclismo ter instalado uma placa comemorativa na ferraria de Sainte-Marie de Campan. Na placa se lê: “Aqui, em 1913, o ciclista profissional Eugène Christophe, primeiro na classificação geral do Tour de France, vítima de um acidente mecânico no Tourmalet, consertou o garfo de sua bicicleta na ferraria. Tendo coberto grande quilometragem a pé, nas montanhas, e tendo perdido muitas horas, Eugène Christophe não abandonou a corrida que ele deveria ter vencido, mostrando um sublime exemplo de força de vontade. Um presente da Federação Francesa de Ciclismo, sob o patrocínio do L’Équipe”. Eugène, que tinha 66 anos então, encenou diante das câmeras o dia que lhe custou a sua mais provável vitória no Tour de France. No script, tal qual na história real, ele carregou a bicicleta no ombro, com a roda dianteira na mão, até a ferraria. Lá, com roupas de ciclismo, protagonizou os trabalhos de

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recuperação do garfo. O menino que o ajudou a bombear o fole e o fiscal da prova participaram da brincadeira. A jovem que indicou o caminho até a ferraria também estava lá. Os aplausos entusiasmados ao herói duraram minutos. Uma reconstituição mais moderna, com atores, pode ser vista no seguinte link: tinyurl.com/ mhjaofr. Em 1965 foi celebrado o aniversário de 80 anos de Eugène. Para comemorar, ele foi convidado para uma festa em Paris. O octogenário ciclista saiu da cidade de Malakoff, nas cercanias da capital francesa, com seu indefectível charuto na boca, e foi pedalando até a festa, no estúdio da Rádio Luxembourg. Pelo caminho, mais de uma centena de fãs o escoltava pelas ruas de Paris. Muitos não contiveram as lágrimas de emoção ao cumprimentá-lo. Aos 81 anos de muita vida e muita história, ainda membro ativo do grupo de ciclismo L’Etoile Sportive de Malakoff, Eugène Christophe faleceu, legando ao mundo o exemplo de força, superação e coragem que só o ciclismo proporciona. Sim. É hora também de você repousar a Revista Bicicleta no colo. Uma salva de palmas para Eugène! 



EVENTO Texto por Anderson Ricardo Schรถrner

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© ARMIN KUESTENBRUECK / BRASIL RIDE

BRASIL RIDE 2016 7ª EDIÇÃO

Enquanto atletas, estafes, voluntários e membros da organização se acomodavam em 700 barracas, 16 mil metros de fita bump se estendiam pelo percurso de mais de 550 km que os atletas teriam que percorrer pela Costa do Descobrimento. Praticamente uma cidade foi montada na Fazenda Conjunto Boa Vista, em Guaratinga, para abrigar quase 1.000 pessoas. 

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nquanto atletas, estafes, voluntários e membros da organização se acomodavam em 700 barracas, 16 mil metros de fita bump se estendiam pelo percurso de mais de 550 km que os atletas teriam que percorrer pela Costa do Descobrimento. Praticamente uma cidade foi montada na Fazenda Conjunto Boa Vista, em Guaratinga, para abrigar quase 1.000 pessoas. Depois de seis temporadas na Chapada Diamantina, a Brasil Ride aconteceu neste ano no sul da Bahia, sendo que as vilas da competição foram montadas

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em Guaratinga e Porto Seguro. Durante os sete estágios, enquanto os atletas consumiam 10 mil litros de água e 6.300 unidades de fruta, os 16 anjos azuis, como são conhecidos os mecânicos do Suporte Neutro da Shimano, atendiam a 1.500 chamados, utilizando 30 litros de lubrificante, realizando 1.100 regulagens de câmbio, 30 revisões de suspensões, 80 sangrias de freio e 40 alinhamentos de rodas. Uma estrutura elogiável! Mesmo em seu episódio triste, quando a ciclista alemã Ivonne Kraft passou mal e foi encontrada numa sombra próxima da 


15 A 22 DE OUTUBRO

567,4 KM

11.810 M DE ALTIMETRIA

250 DUPLAS DE 23 PAÍSES

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© FÁBIO PIVA / BRASIL RIDE

BRASIL RIDE 2016 / 7ª EDIÇÃO

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© ARMIN KUESTENBRUECK / BRASIL RIDE

GALERIA DE VÍDEOS

ETAPA 1

ETAPA 2

ETAPA 3

ETAPA 4

revistabicicleta.com.br/rb/cg1

revistabicicleta.com.br/rb/cg3

revistabicicleta.com.br/rb/cg4

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Prólogo de 21 km em Arraial d’Ajuda

128 km entre Arraial d’Ajuda e Guaratinga

92 km em Guaratinga

85 km em Guaratinga

© FOTOS VÍDEOS: REPRODUIÇÃO

ETAPA 5

134 km entre Guaratinga e Arraial d’Ajuda

ETAPA 6

ETAPA 7

revistabicicleta.com.br/rb/cg7

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34 km em Arraial d'Ajuda

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75 km em Arraial d'Ajuda


trilha, a organização se mostrou eficiente, com o rápido atendimento do médico da prova e o deslocamento da atleta através de um helicóptero UTI até o hospital.

©FABIO PIVA / BRASIL RIDE

No mais, foi uma festa só, do pedido de casamento de Edicarlos Oliveira da Silva, conhecido como Rosinha, que conheceu sua agora noiva Alexa Claudia Diekhaus na edição de 2013 da Brasil Ride, às

comemorações de Fabian Rabensteiner (Itália) e Alexey Medvedev (Rússia) na Open; das brasileiras Isabella Lacerda e Letícia Cândido na Ladies, depois de uma disputa acirrada com altos e baixos devido a problemas físicos e mecânicos; do brasileiro Abraão Azevedo, que venceu todas as edições da Brasil Ride, sendo quatro delas com o seu atual parceiro Bart Brentjens (Holanda); e dos campeões da Maratona XCM Brasil Ride, que coroou Samuele Porro entre os homens e Ana Clara Pie na Elite Feminina.  Resultados completos em www.brasilride.com.br © SPORTOGRAF / BRASIL RIDE


INFRAESTRUTURA

CICLOFAIXA NA CHAPADA DOS VEADEIROS Garantia de pedalada segura em meio à natureza do cerrado Texto e Fotos Ana Cristina Sampaio

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220 km de Brasília, no estado de Goiás, existe um paraíso. A Chapada dos Veadeiros é uma das regiões mais antigas do planeta, com cerca de 2,5 bilhões de anos. Localizada no ponto mais alto do planalto central, é um importante berço hidrográfico e oferece belas paisagens naturais, com dezenas de cachoeiras e enormes paredões rochosos, principais características do local.

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O Parque Nacional é patrimônio mundial natural da Unesco e a magia do lugar dá ensejo a histórias e mitos. Reza a lenda que a região é visitada por seres extraterrestres. De povoados indígenas (os Kalunga) a moradores que oferecem terapias esotéricas, a Chapada é um local de autoencontro em todos os sentidos. Em meio a essa paisagem de natureza exuberante, energia positiva e comunhão com a simplicidade existe uma ciclofai-


xa de primeira linha, que liga o povoado de São Jorge, porta de entrada ao Parque Nacional, à cidade de Alto Paraíso, um dos sete municípios que compõem a região da Chapada. Margeando a GO239, estrada que há pouco mais de dois anos encontra-se totalmente asfaltada, a excelente ciclofaixa instalada à direita de quem segue para São Jorge é bem sinalizada e segura, com trechos desafiadores e visual compensador. Um convite ao desbravamento de uma das regiões mais bonitas do planeta. O grupo de ciclistas Pedal 10, formado por colegas do Tribunal Regional do Trabalho em Brasília, experimentou o trajeto no dia 1º de outubro e saiu de lá encantado não só com a qualidade do asfalto e da sinalização, mas especialmente com o visual incrível que se tem ao longo de todo o percurso. Com pouco mais de três anos de existência, o Pedal 10 foi criado para promover o uso da bicicleta como esporte, lazer e transporte. O passeio na Chapada dos Veadeiros reuniu 11 destes ciclistas.

Foram pouco mais de quatro horas de pedal registrado no Strava, num total de 74 km de ida e volta, com altimetria acumulada de quase 800 m. No caminho, a alternância da chuva, típica da primavera no cerrado, ajudou a aliviar o calor característico do planalto central. A proposta era pedalar em meio à natureza, apreciando os paredões de rocha e as árvores retorcidas do cerrado, ao som do canto dos pássaros. Com apenas um pneu furado na ida e outro na volta, o grupo seguiu unido ao longo de uma estrada que vem sendo descoberta aos poucos pelos ciclistas. A região é conhecida por suas trilhas que levam a mirantes e cachoeiras, sempre desbravadas pelos mountain bikers. A recém-asfaltada GO -239, no entanto, apresenta-se como alternativa acessível a todo tipo de ciclista que deseja estar em contato com a Chapada sem necessariamente enfrentar os percalços de trilhas em matas fechadas e desafiadoras. O passeio pela rodovia também permite o apoio de um carro para eventual necessidade.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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Em cerca de cinco horas, o Pedal 10 fez o trajeto com apenas uma parada para reposição no posto de combustível da entrada da cidade. Foram momentos de alegria plena e sintonia total com a natureza e a energia que emana da Chapada. Uma opção a mais para quem quer unir ciclismo e turismo ecológico.

Conheça a Chapada dos Veadeiros Seus primeiros habitantes foram os índios Avá Canoeiros, Crixás e Goyazes. Em 1592 os bandeirantes abriram as primeiras trilhas. O nome da chapada faz referência aos caçadores de veado-campeiro. Por volta de 1730, começaram a chegar os primeiros bandeirantes, tendo como missão mais significativa a Bandeira do Anhanguera. Vinham faiscando o ouro dos riachos e criando as primeiras vilas e arraiais. Traziam consigo escravos negros, que logo fugiam para os vãos entre as montanhas, onde constituíam comunidades que até hoje vivem isoladas (kalungas), ao norte do município de Cavalcante, cidade que foi eixo e matriz da ocupação de toda a Chapada. O marco decisivo para o povoamento da região de Alto Paraíso foi, em 1750, a implantação da propriedade do Sr. Francisco de Almeida: a Fazenda Veadeiros, que passou a ser um pequeno núcleo de colonização, no qual foram se agrupando lavradores que se dedicaram à pecuária, ao cultivo de trigo e café. Da decadência do ouro (1780) até o fim do século XIX, nada ocorreu nestas paisagens que perturbasse o bucolismo dos quintais e do pastoreio.

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Em 1892 um fato anunciava radicais transformações no âmbito geográfico, político e social de toda a região do Brasil Central. Era a chegada da comissão exploradora do Planalto Central, comandada por Luís Cruls e constituída de diversos pesquisadores que tinham a finalidade de delimitar a área da futura capital do Brasil. Em setembro de 1926, a célebre Coluna Prestes atravessava a Chapada. Em 1931, a serviço do correio aéreo nacional, o brigadeiro Lysias Rodrigues passa por Veadeiros, vindo de São Paulo em direção a Belém. Esta visita resulta na magnífica obra literária “O roteiro do Tocantins”. Em 1912 foi descoberta a primeira grande jazida de cristal-de-rocha da Chapada e o povoamento de São Jorge ocorreu em função da tentativa de exploração desse mineral, pois vários acampamentos de garimpeiros acabaram se transformando em povoados e cidades. Na década de 70 começaram a chegar novos tipos de habitantes às cidades da região. Eram pessoas que deixaram a rotina estressante dos grandes centros urbanos em busca de uma vida melhor no campo: os alternativos. Com a inauguração de Brasília, em 1960, toda a região do entorno começou a refletir as profundas transformações desencadeadas a partir deste evento. Em 1980, dois fatos específicos de origens diversas, porém, complementares, tornaram-se um marco decisivo para a realidade atual: eram os projetos Alto Paraíso e Rumo ao Sol. O primeiro projeto,


de cunho governamental, buscava instalar diversos equipamentos urbanos, tais como hotel, aeroporto, asfalto etc, visando criar, a partir do turismo e da produção de frutas nobres, um polo regional de desenvolvimento do nordeste goiano. Já o “Rumo ao Sol” tinha como objetivo a instalação e desenvolvimento na área de comunidades alternativas, baseando-se em conceitos do naturalismo e do misticismo. O projeto, que era como um movimento hippie, atraiu a primeira grande leva de migrantes para a região. A partir daí, e com a implementação do Ecoturismo, a Chapada dos Veadeiros e as comunidades com ela relacionadas vem experimentando diversas transformações políticas, sociais e econômicas. (Fonte: Travessia Ecoturismo) A fauna local é bastante variada, sendo destaques: o lobo-guará (chrysocyon brachyurus) e o veado campeiro (ozo-

toceros bezoarticus). Das 312 espécies de aves existentes, podemos citar a ema (rhea americana), o urubu-rei (sarcoramphus papa) e várias espécies de gaviões, entre os quais o brites (leucovihous). Das 30 espécies endêmicas de aves ocorrentes no cerrado, 13 estão no parque nacional e oito são ameaçadas de extinção. O raríssimo pato mergulhão (mergus octosetaceus) inclui o parque em sua rota migratória e o usa para procriação. Mais de 1.000 espécies de borboletas e mariposas podem ser encontradas na unidade. Com olhar atento cerca de 34 espécies de sapos e rãs podem ser vistos e ao menos 33 espécies de répteis ocorrem na unidade. Por sua vez, já foram vistas 160 espécies de abelhas, sendo que, seis delas, novas para a ciência. Referente aos peixes, ocorrem 49 espécies nos rios e córregos que nascem ou passam pela unidade.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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O cerrado é uma savana tropical na qual a vegetação herbácea coexiste com mais de 420 espécies de árvores e arbustos esparsos. O solo é ácido e de baixa fertilidade, com altos níveis de ferro e alumínio. Na porção do bioma cerrado preservada pelo parque nacional existem muitas espécies endêmicas, isto é, aquelas que só ocorrem neste lugar. Isto porque o cerrado de altitude possui fitofisionomias raras como o cerrado rupestre (acima dos 900 m) onde são abundantes as canelas d’ema (velosiáceas). Algumas espécies (antúrios, filodendros, bromélias e orquídeas) concentram-se nas fendas das rochas e outras diretamente sobre elas (amburana), sem que haja solo. Nos campos rupestres vê-se com frequência a arnica, o mandiocão e o veludo. Outras fitofisionomias estão presentes como a mata ciliar, mata seca semidecídua, as várias formas do cerrado sentido restrito e veredas serpenteando os campos limpos, de aparência cinematográfica, a exemplo do jardim de maytreia, onde os buritis (mauritia flexuosa) formam um

verdadeiro cartão-postal. Estima-se em 50 o número de espécies raras, endêmicas ou sob o risco de extinção na área. Já foram identificadas 1.476 espécies de plantas no parque, das 6.429 que existem no bioma cerrado. Só de gramíneas encontrou-se 139 espécies, 69 de quaresmeiras, 1.476 de orquídeas, sendo que nove são novas descrições. (Fonte: chapadadosveadeiros.com) 



CICLOCIDADANIA Texto e Fotos Wesley Moura/CicloMissão

CICLOMISSÃO POR UMA MOBILIDADE KALUNGA O Brasil não conhece o Brasil. Ao contrário do que se imagina, o Brasil é feito de gente simples, seu maior contingente populacional. Gente que vive à sombra da indiferença nossa de cada dia, ocupando a gaveta do esquecimento das entidades públicas e dos homens do poder. Mas, é lá, naqueles torrões de terra ilhados sob o sol do sertão, que esta gente espera por você, por mim, pelos que podem colaborar com a sua atenção. E isto já é muito mais do que um dia receberam. 

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WhatsApp, Instagram, Facebook ou qualquer um desses veículos de distanciamento humano. Percebi que a verdadeira conexão está nas coisas simples.

“Calunga ou Kalunga é o nome atribuído a descendentes de escravos fugidos e libertos das minas de ouro do Brasil central que formaram comunidades autossuficientes e viveram mais de duzentos anos isolados em regiões remotas, próximas à Chapada dos Veadeiros”, conforme citação na Wikipédia.

Uma região rica em minério até os dias de hoje, com trilhas abertas há séculos por escravos e bandeirantes no olho da Chapada dos Veadeiros, oferece essas cicatrizes modais traçadas aos pés do Rio Almas. As únicas opções em mobilidade nessas regiões são por meio de burros, cavalos e na maioria das vezes a pé, provocando um atraso histórico na vida desses atores rurais. Com a estratégia voltada para não serem capturados, os escravos fugidos se esconderam em grutas, choupanas e entre vales e serras onde apenas um carro 4x4 nos dias de hoje e com muita dificuldade pode chegar.

avalcante, município do nordeste goiano, tem uma história incrível! Toda reminiscência parece ainda estar viva na memória dos descendentes dos escravos fugidos para aquela região. Comportando vários povoados, Cavalcante tem em seu solo o sangue de gente que só queria o direito à liberdade. Obrigados a viverem em Quilombos, fizeram surgir neste contexto goiano o povo Kalunga.

Entre as dezenove definições ou traduções desta palavra, as que mais chamam a atenção são estas duas: lugar seguro ou tudo de bom! Há pouco mais de um ano, tenho visitado alguns destes povoados provocando e instigando uma vivência com os nativos Kalunga. Eu, pensando que pudesse oferecer a eles um pouco do mundo do lado de cá, não imaginava a grande riqueza que encontraria ao ouvir as crônicas da vida simples desta gente que nem sabe que existe

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Dona Daínda, uma líder Kalunga que vive na comunidade de Vão de Almas, com quem já estabeleci amizade, diz que “só com muita força de vontade e se a gente quiser conseguimos chegar lá”, seja “lá” aonde for, indicando a esperança naqueles olhos cansados de sertão. Cheguei há um ano no povoado do Engenho II para a entrega de 40 bicicletas às crianças que escreveram cartas para o Papai Noel dos Correios. A ONG que eu trabalhava ofereceu as bikes. Conversando com os professores 


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e líderes comunitários, me foi informado que se bicicletas fossem entregues no Vão de Almas e Vão do Moleque, povoados de muito difícil acesso, aí sim o ícone de felicidade ganharia uma utilidade maior do que para diversão. Serviria para a locomoção de crianças de 4 a 17 anos que caminham horas, às vezes até 10 km, para chegar nas escolas atravessando rios, enfrentando o escuro, o frio e todo tipo de infortúnios, tão somente para poder estudar. Fazem isto para ser gente. Com a ausência de pontes e acessibilidade adequada, verifiquei que a bicicleta seria, de fato, uma conquista importantíssima. Mergulhei de cabeça, corpo e alma na cultura Kalunga, a fim de compreendê-los melhor. Vi um ser humano com traços primitivos, acuado. Homens, mulheres e crianças com traços físicos firmes, com uma boniteza delicada e ao mesmo tempo rústica, mas igualmente espetacular! Parece que mesmo depois de 129 anos da abolição, outros padrões e modelos de escravidão ainda permeiam a rotina dessa gente. Vale relembrar: “a Lei Imperial n.º 3.353, mais conhecida como Lei Áurea, sancionada em 13 de maio de 1888, foi o diploma legal que extinguiu a escravidão no Brasil. Foi precedida pela lei n.º 2.040 (Lei do

Ventre Livre), de 28 de setembro de 1871, que libertou todas as crianças nascidas de pais escravos, e pela lei n.º 3.270 (Lei Saraiva-Cotegipe), de 28 de setembro de 1885, que regulava "a extinção gradual do elemento servil”. (Fonte: Wikipédia). Perambulando pelas comunidades, vi crianças à mercê da própria sorte, sem perspectivas de uma vida melhor. Elas encontram na escola o fio de esperança para reverter seus bloqueios emocionais e sociais. Decidi fazer a minha parte, ao tentar ajudar esses meninos e meninas. Tomei uma decisão que se transformou num projeto social chamado CicloMissão. Comecei a mobilizar amigos, igrejas, sociedade civil em Brasília – DF, enfim, para que pudessem doar material escolar, bicicletas usadas, roupas e brinquedos, entre outros itens. Fizemos um breve levantamento, com o apoio da Secretaria de Educação do município, de quantos alunos havia nesses povoados, e chegamos a um número de 400 alunos. “Wow... é muito menino, como eu vou fazer?”, pensei. Criei uma página no Facebook e comecei a mostrar fotos e vídeos das minhas incursões naquelas localidades. Conversei com as crianças e fiz pesquisas para saber se a bicicleta seria de fato um benefício. Em minha primeira  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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visita, não tinha ideia de como seria lá, e sempre me perguntava se a bicicleta serviria para eles. Depois de duas horas subindo e descendo serra, atravessando rios, parando pra ver como estavam os pneus dos carros que nos levavam, me deparo com uma cena, ao descermos uma chapada de perder de vista, por volta das 10 horas da manhã: três crianças em uma bicicleta aro 20. Uma sentada no banco, era o pedalante e guiava o guidão; a outra sentada no cano da frente do quadro, era o freio, e a de trás, era a carona com seus pés descalços apoiados nos parafusos da roda traseira. Cada um não devia ter mais que 10 anos de idade. As meninas com seus lenços branquinhos segurando os cabelos bem amarradinhos. E o garoto, o herói delas. Aquele que com a força de um homem adulto, conduzia suas lindas colegas ao ambiente escolar em sua bike coletiva. Saquei minha câmera e fiz o registro. Pedi para que olhassem pra mim, e parassem por uns minutos, queria conhecê-los. De repente, o herói grita: “Freia aí, Larissa!” Então, destemidamente, ela enterra seus dois calcanhares no chão quente da Chapada, e param pra me ouvir. Viramos amigos. E fui com eles até a escola, uma choupana simples de adobe e telhado de folha de buriti.

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Daí em diante geramos no coração desses meninos a chance de sonhar com uma bicicleta. O grande conflito apenas começava. Voltei pra Brasília com muito material, fotos, vídeos e histórias de superação pra deixar qualquer “Papillon” de boca aberta. Então, fiz um breve relatório e comecei a pedir. Insistentemente pedia bicicletas usadas, dinheiro pra consertar essas bicicletas, roupas, remédios, material escolar, enfim, o que fosse possível. E as pessoas se mobilizaram e conseguimos levar no decorrer de todo o ano toneladas de coisas. Mas o principal, as bicicletas, ainda não tínhamos. O desespero começou a querer tomar conta, mas seguimos em frente. Pensamos em desistir diversas vezes, mas sempre éramos encorajados a permanecer firmes. Conseguimos 100 bicicletas, mas 24 foram roubadas de nós, e outras 20 foram doadas por engano a outra instituição. O que já não era suficiente perdeu mais fôlego. Adiamos várias vezes durante o ano a entrega das bicicletas e a ansiedade no coração das crianças era grande. Nunca os vi murmurar, nunca os vi reclamar porque as bicicletas não chegavam. Ao contrário, sempre celebravam ao máximo a expectativa e a possibilidade de dar certo.


Com muita dificuldade, depois de vários meses de espera, enfim nos restaram 30 bicicletas. E decidimos então, mesmo sem ter batido a meta de 400 bikes, dar um jeito de levar assim mesmo. Era menos de 10% do total esperado, mas era tudo o que tínhamos. A prefeitura do município providenciou os transportes que precisávamos pra levar essas bicicletas. O caminhão quebrou, o motorista errou a escola e o caminho. Lá não tem energia elétrica e muito menos sinal de celular, e guiados pela sabedoria de quem anda ali todos os dias, tentamos perceber as marcas de pneus no chão arenoso pra saber se o caminhão passou. Até que encontramos e resgatamos as, então, 29 bicicletas, pois ainda fomos roubados em mais uma bicicleta. É de chorar!

Quem quiser colaborar ou participar de alguma maneira, entre em contato:

 ciclomissao@gmail.com  61 9944-4217 / Wesley Moura  /wesley.moura.56679

seria reduzida pra 40 minutos ou menos. Promovemos um mini curso de pequenos reparos e deixamos suprimentos básicos para as manutenções. Remendos, câmaras de ar, cabos de aço, óleo lubrificante e ferramentas. Tudo fruto de doações. Depois que mergulhei no universo

Cinco horas depois chegamos às duas escolas que receberiam as primeiras bicicletas. Os meninos aguardavam afoitos. Enfim, os últimos reparos e começamos a entregar. E mesmo tendo sido roubada uma bicicleta, as 29 bicicletas alcançaram exatamente todas as crianças destas duas escolas e nenhuma delas ficou sem bicicleta.

Kalunga, o Caminho da minha vida tem

Foi pra nós como se um ciclo tivesse sido fechado. A alegria das crianças e dos pais era tamanha que não cabia dentro deles e escorria pelos olhos. Pois, ao menos para aqueles 29 meninos e meninas, a caminhada de duas horas

pessoas. Desejamos neste ano garantir

me proporcionado a alegria de encontrar seres que precisam ser melhor compreendidos, amados e enxergados como gente! A boa notícia é que decidimos continuar com esta luta. Vamos conseguir levar mais bicicletas, tenho certeza, mas contamos com a sensibilização de mais justiça e o alívio do sofrimento dessa gente por meio da sensibilização que a bike pode promover. #ciclomissãocontinua  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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MOBILIDADE Texto por Therbio Felipe M. Cezar

A CIDADE AS PESSOAS E A BICICLETA COMBINAÇÃO PERFEITA Enquanto fenômeno social global, o movimento pela bicicleta tem alcançado proporções inimagináveis e em uma velocidade vertiginosa, graças, em parte, às mídias sociais. Mais ainda, o caráter de humanização do cotidiano, das cidades e das relações, por conta da experiência única proporcionada sobre a bicicleta, surpreende até aos mais experientes. Nada tem mais compatibilidade com a mobilidade humana do que a bicicleta. E na mobilidade humana, nada consegue transformar mais seu usuário em uma pessoa melhor do que a bicicleta. 

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uscar o significado pleno das palavras auxilia a conquistar melhor compreensão de tudo o que elas tocam, encerram, explicitam ou alcançam. No título deste texto ousamos colocar a expressão “combinação perfeita” arriscando-nos ao exagero. Mas, como escrever é uma aventura, faço votos que ao final da leitura tanto quem a leu quanto quem a produziu possam sorrir, de acordo. O verbo “combinar” pode ser compreendido de inúmeras formas, tais como a ação de condizer, compatibilizar, adaptar, associar ou mesclar, enfim. Já o adjetivo “perfeito” remete à qualificação primorosa, ideal, sem arestas, sem retoques ou absoluta de algo, alguém ou alguma coisa. A combinação perfeita anunciada para a tríade ‘pessoas, cidade e bicicleta’ pode ser interpretada como o mais harmonioso arranjo produzido para contemplar, entre tantas coisas, os deslocamentos, a saúde, o lazer, o esporte, a cultura, a solidariedade, bem como a inteligente forma de conservar a diversidade socioambiental para o hoje e para o futuro próximo (leia-se sustentabilidade). É possível dizer, então, que tal combinação contempla a vida em todas as suas dimensões. A escolha das pessoas pela bicicleta é uma ação plena de sabedoria, porém, passa, muito especialmente, pela prática, pela experiência. Não existe

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teoria sem prática. Por exemplo, se a Associação Transporte Ativo, do especialista Zé Lobo, consegue desenvolver avanços superiores em mobilidade em Copacabana, Rio de Janeiro (veja sobre as Ciclo Rotas em ta.org.br), e se ampliam os resultados destas práticas chegando tal conhecimento a outras partes do país, é fato que estão gerando conhecimento de alto nível, mas também é posto que os impactos disto estarão intimamente ligados à geração de felicidade, de paz e de bem-estar para aquelas comunidades. Quando se pensa em mobilidade por bicicleta, afeta-se substancialmente pessoas, tanto as que pedalam quanto as que ainda não. Sabe, é um caso daqueles que Vandré tão bem decantou: “...quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”, e como bem ensina Zé Lobo em suas palestras Brasil adentro e afora, quem ainda não se deu conta de que a bicicleta já não é o veículo alternativo, e sim, o carro, esta pessoa ainda se encontra no século XX. Ainda que se trate de um veículo, a priori, individual, a vida em bicicleta é a experiência de sociabilidade e coletividade do século XXI, a qual se coloca integralmente contrária ao egoísmo universalista do automóvel. Aliás, este sentimento repleto de ostracismo está claramente presente nas propagandas televisivas do mercado de automóveis. São inúmeros


QUEM SABE FAZ A HORA, NÃO ESPERA ACONTECER... A BICICLETA JÁ NÃO É O VEÍCULO ALTERNATIVO, E SIM, O CARRO. © STRIDA DIVULGAÇÃO

os exemplos atuais, mas três chamam extremante a atenção. No primeiro deles, a marca de automóveis faz uma apologia à inveja e à produção de desigualdades, quando um garoto indo à escola, no banco de trás do carro, pede ao pai para estacionar em tal lugar, vários dias seguidos. Somente ao final da propaganda é que se tem a imagem de que aquele ponto escolhido era de onde os coleguinhas da janela da escola poderiam vê-lo desembarcar. Ou seja, desde cedo, o culto ao poder do automóvel.

Já a segunda propaganda, na verdade imitada por inúmeras marcas, apresenta que ao entrar no carro ‘x’ todos os demais carros desaparecem, é incrível! As ruas ficam com quase nenhum pedestre, e os que lá existem ficam hipnotizados por ver aquele veículo andando sozinho pelas ruas carregando apenas um indivíduo. É de pasmar, para não dizer o quanto é ridículo. E o terceiro exemplo, para não ir muito mais além, é o do valet que busca um determinado modelo de carro no estacionamento. É claro que neste estacionamento só existem modelos daquela marca. Plantando segregação,  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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NADA TEM MAIS COMPATIBILIDADE COM A MOBILIDADE HUMANA DO QUE A BICICLETA... NADA CONSEGUE TRANSFORMAR MAIS SEU USUÁRIO EM UMA PESSOA MELHOR DO QUE A BICICLETA.


inveja, egoísmo, luxúria, individualismo, a passos largos se distancia da mobilidade sustentável a tal indústria do automóvel. Mas, e quanto às propagandas de motocicletas? Tudo o que se vê da posição do piloto é um túnel estreito chamado estrada e a paisagem só é percebida ao final dos reclames, quando a moto está parada em cima de uma montanha ou na beira da praia. O que é mais insustentável do que a exclusão em qualquer nível? O que pode ser menos moderno do que a segregação? Quando abordamos inicialmente sobre a compatibilidade, podemos vislumbrar, apenas para ilustrar, a bicicleta em sua dimensão de veículo, a fim de entender o quão significativa é esta associação entre pessoas, cidade e bicicleta. De todos os veículos que se elevaram à categoria de meios de transporte, a bicicleta é a que está mais perto da dimensão do pedestre, seja pela posição de pedalar, seja pela velocidade empregada e pelo volume de espaço ocupado. A combinação perfeita vai muito mais além dos benefícios individuais aos ciclistas (melhor saúde, aumento da estima, bem-estar em alta, diminuição da ociosidade, integração social, economia). Alcança proporções globais quando se tem em mente a “pegada de carbono” (que é a medida do impacto das atividades humanas sobre as

emissões de gases do efeito estufa, ou seja, condiz com a quantidade de dióxido de carbono equivalente liberada na realização de cada atividade), principalmente pela diminuição da dependência de combustíveis fósseis, leia-se, o uso indiscriminado e egoísta do automóvel. Falando-se em sustentabilidade, não se pode esquecer que a chave para ela, em realidade, é a humanização do desenvolvimento humano. Uma invenção tão fantástica quanto a bicicleta promove uma das mais democráticas formas de humanizar o fazer humano (entenda-se: os deslocamentos, a produção cultural, a integração social, a qualificação econômica, etc), possibilitando que, de fato, a coexistência humana seja mais sustentada por práticas coerentes e sensatas de existir. Temos visto e lido por diferentes e credenciadas fontes e canais que cidades que estão zoneando e restringindo seu centro urbano para veículos a propulsão humana e pedestres estão ganhando em qualidade de vida acumulada, em benefícios à saúde dos usuários a pequeno e médio prazo, conseguindo aumentar a consumação nos espaços comerciais promovida pela alta rotatividade de clientes, e inclusive garantir a revitalização do centro histórico e adoção de espaços públicos como espaços qualificados de estar a lazer, sem apelar para a gentrificação.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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JÁ A ESCOLHA PELA BICICLETA GARANTE A CRESCENTE ONDA DE BEM-ESTAR QUE POSSIBILITA AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS ALMEJADAS E TÃO BEM-VINDAS. © SCOTT DIVULGAÇÃO

O modelo vigente de consumo baseado no automóvel, no individualismo exacerbado e na acumulação de direitos de uns sobre os dos demais, garante a insustentabilidade do próprio modelo, seu colapso e a imobilidade posta nas cidades de qualquer tamanho. Já a escolha pela bicicleta garante, de imediato, a crescente onda de bemestar que possibilita as transformações sociais almejadas e tão bem-vindas.

Que segredo era este, tão bem guardado

Lembrando, duas individualidades só podem gerar duas solidões. A proposta da bicicleta vem quebrar este paradigma.

Se a sua resposta, ao fim, assim como

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em nossas infâncias, que soube esperar o momento mais oportuno para emergir no presente enquanto resposta mais do que suficiente para as atuais e futuras problemáticas socioculturais, socioeconômicas e socioambientais? Que artefato, objeto, ferramenta, veículo, enfim, poderia ser mais promissor para a mobilidade?

a minha, for a bicicleta, fechamos esta leitura de acordo e com um sorriso consciente de quem pedala! 



GRUPO DE PEDAL


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GURIAS NO PEDAL Exclusivamente para mulheres, este grupo de Caxias do Sul, RS, é um exemplo da força da presença feminina no pedal.  Texto Anderson Ricardo Schörner Fotos Paulo Pasa - Divulgação Gurias no Pedal

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o ganhar uma bicicleta de seu noivo, em 2010, a gaúcha Rocheli Muller passou a pedalar pelas ruas de Caxias do Sul – RS. Enquanto pedalava sozinha, a personal trainer nutria o desejo de formar um grupo feminino. Em 2012, convidou algumas meninas para pedalar também. Cinco meninas compareceram para o que seria o início do grupo. A partir daí, inúmeros encontros aconteceram aos sábados, sempre com três ou quatro meninas. Para pular de cinco para 60 gurias pedalando, e mais de 550 meninas no grupo, a saída foi interagir. “Em julho de 2014”, diz Rocheli, “postei um convite em uma rede social, em todos os grupos ciclísticos de Caxias do Sul que eu conhecia, somente para mulheres que tinham interesse em pedalar com este pequeno grupo pelo interior de Caxias e região, formando então o Grupo Gurias no Pedal”. À medida que as integrantes compartilhavam fotos e relatos dos passeios, a procura de várias outras mulheres com o mesmo interesse crescia. É assim: um dos melhores jeitos para conquistar mais pessoas ao pedal é pelo exemplo, vivenciando e compartilhando seus benefícios. Um grupo rosa e lilás percorrendo as ruas do centro e interior

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de Caxias do Sul acaba por incluir e incentivar a prática esportiva de forma mais intensa e transformadora. Ainda, pedalar em grupo alimenta o entusiasmo das próprias integrantes, que dividem experiências, entram na sintonia de ajudar umas às outras, além de ser mais seguro pedalar em grupo. Segundo Rocheli, “hoje, temos uniformes com camisetas, calções e polainas coloridas, participamos de passeios fora da cidade, fazemos encontros com festas e jantas e/ou piqueniques todos os meses, temos carteirinha do clube de vantagens do grupo que nos oferece descontos em vários estabelecimentos comerciais e, além disso, temos o prazer de conhecer pessoas ótimas, belas paisagens junto à natureza linda de nossa região e ainda praticando uma atividade que nos mantém em forma, não precisamos de mais nada para sermos felizes”. O grupo pretende ser um marco na cidade para que outras meninas, independentemente de idade e nível de pedalada, sigam este exemplo em qualquer esporte. Elas realizam pedais em todos os níveis, desde pedais leves para iniciantes, com 15 a 25 km, até pedais mais pesados com mais de 100 km. “Basta ter uma mountain bike, equipamentos básicos de segurança, como capacete, óculos, farol e luvas, e


 O primeiro encontro contou com 5 meninas.

bastante força de vontade, pois alegria e diversão é o que não falta em nossos passeios”, afirma Rocheli. Além disso, as gurias também levam as iniciantes para pedais curtos urbanos, ensinando sobre a sinalização no trânsito. Outra forma divertida de promover a bicicleta é através de pedais temáticos, com fantasias, que chama muito a atenção. Geralmente, são duas ou três saídas por sábado, em turnos diferentes, com níveis de dificuldade diferentes. “Os pedais em nossa região são sempre regados de desafios”, diz Rocheli, “pois em Caxias do Sul e arredores há muitos morros e pedais de nível médio dificilmente tem altimetria de menos de 1.500 m. São regiões de muitos vales, onde os italianos, principais colonizadores da região, construíram suas casas no alto dos morros, diferentemente dos alemães, que na região se fixaram próximos aos rios, nas baixadas. Então, descemos e subimos o tempo todo. Há locais em que temos 15 km de subidas sem parar em estradas de chão. Aliás, sempre que vamos para o interior, nos deparamos com uma natureza sem explicação de tão linda, com belas estradas de chão com cascalhos e pedras, o que aumenta a dificuldade do pedal, mas nos deixa ainda mais fortes. Gostamos muito de trilhas também, e em nossa região temos muitas delas em mato bem fechado.

Além de pedalar por nossa cidade, participamos de passeios organizados em outros locais no Rio Grande do Sul, como Gramado, Igrejinha, Garibaldi etc. Os lugares em que passamos na serra gaúcha são maravilhosos, e não é difícil nos depararmos com lindas cachoeiras, grandes rios, cânions, plantações enormes, mata fechada e campos abertos. Sempre digo que a bicicleta me levou a lugares tão lindos que eu jamais passaria se estivesse de carro. Esse contato tão próximo com a natureza que a bicicleta nos proporciona não tem explicação, só estando no local para apreciar essa beleza. Por isso, ao verem as fotos, as pessoas ficam impressionadas e querem pedalar conosco”. 

NO GRUPO, HÁ VÁRIOS EXEMPLOS DE SUPERAÇÃO ATRAVÉS DA BICICLETA. EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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No grupo, há vários exemplos de superação através da bicicleta. Mulheres que começaram a pedalar com as Gurias no Pedal por não conseguirem acompanhar o ritmo intenso dos pedais masculinos, e que agora se sentem confiantes sobre a bike. Elas adoraram descobrir um grupo só de meninas no qual pudessem participar. Outras curaram a asma pedalando. Muitas começaram com o grupo depois dos 50 anos e hoje pedalam mais do que muitas pessoas mais novas. Uma mulher de 52 anos citou que para ela, que é vovó de gêmeas, é um privilégio pedalar com as Gurias no Pedal, com meninas que têm idade para serem suas filhas. Outra citou a experiência de ter visto a mãe ter um acidente vascular cerebral e decidiu participar do grupo para que ela também não passe pela mesma situação. Há também aquelas que já pedalavam antes, há mais de 10 anos, e adoraram a notícia de ter um grupo exclusivamente feminino na cidade e nunca mais pararam de pedalar conosco. Todas olham para trás e veem os morros que conseguiram subir pedalando e ficam orgulhosas por terem conseguido. Os benefícios que a bicicleta traz para elas são inúmeros. Desde o âmbito pessoal, com a melhora da qualidade de vida, o desenvolvimento da proatividade para realizar as atividades diárias e as amizades que são levadas para a vida toda, até o âmbito social, em que contribuem para um mundo mais sustentável e uma cidade mais humanizada. Por isso, quando elas acordam às seis horas da manhã no frio de três graus da serra gaúcha, ou realizam uma passeata em protesto ao desrespeito no trânsito, elas sabem o quanto isso vale a pena. 



© MINISTÉRIO DO ESPORTE / FOTOS PÚBLICAS (10/10/2016)

RIO 2016

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PARALIMPÍADAS RIO 2016 Texto Therbio Felipe M. Cezar

A VITÓRIA DA TOLERÂNCIA SOBRE A INDIFERENÇA

Como duvidar que o esporte seja uma das mais fantásticas manifestações humanas? Mais uma vez, porém, de forma emblemática, o esporte arrebata multidões e permite concretizar muito além de marcas, medalhas e posições no pódio. Entre 7 e 18 de setembro, na Cidade Maravilhosa, mas porque não dizer, no Brasil, a tolerância venceu a indiferença. Eis, possivelmente, o maior e mais importante legado das Paralimpíadas Rio 2016. 

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momento permite, incita e sugere reflexões profundas, dentre elas o questionamento sobre até onde vai o limite humano? E se chegarmos à conclusão de que não há limites (porque dentro de determinadas perspectivas, ele não existe), o que isto realmente nos quer dizer e nos leva a pensar? Promovendo um ponto de partida, reflito que o que nos faz iguais é que somos todos diferentes. Ou seja, convivemos em um grupo de seres iguais dentro da sua característica essencial da própria diferença. E vamos além. Seria o limite do corpo, limite também para a mente? E o limite desta, também o seria do espírito? Pois, eis que este evento mundial de congraçamento sob a égide do esporte que une nações e continentes, fez por onde conceber um concreto mundo possível dentro do qual a percepção do outro e de suas diferenças nos aproxima. Neste um minuto da história do Século XXI, no atual apogeu das tecnologias, da virtualidade e dos gadgets, em plena materialização das violências de toda natureza vindo à tona, quando o planeta dá claras evidências de que o modelo civilizatório vigente nos levou ao colapso, pois é, neste mesmo minuto que nos presenciamos frente aos olhos de bilhões de espectadores, a tônica foi aceitar diferenças. Por humanização pode se entender, de maneira muito simples, o processo

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de atribuir características humanas e sensíveis a coisas, elementos ou processos. Viu-se, então, a cada nova prova ou disputa, a humanização do humano em nós. O incômodo e o desconforto que tocou fundo os corações nestes poucos dias de evento, aliás, sem todo aquela glamourização do evento que o precedeu, levou tantas e tantas pessoas a repensar que já não é mais urgente incluir, mas sim, conviver. Reforço, já não se trata mais de projetos ou programas para elevar a inclusão social, porque a convivência harmônica e digna é imprescindível, é o patamar que necessitamos atingir, indistintamente, em todas as esferas, e com urgência. É claro que a emoção sobreveio, porém, se pronunciou na forma de reformular nosso fazer cidadão diante da eminente limitação do outro, o qual realiza feitos que nem eu nem você que nos lê, conseguiria nas mesmas condições. Então, é válido afirmar que, dentro de determinadas circunstâncias, a limitação do outro pode ser vencida se eu colaborar com ele. Se eu lhe emprestar aquilo de que carece é fato que ele deixará de ter limites socialmente amalgamados num tempo em que eles já não são, ainda bem, aceitáveis. Limites podem ser compreendidos como fronteiras. Então, reformulando, elas realmente existem ou são fruto do nosso condicionamento mental e de nossos interesses? Há limite para a gentileza, doçura, caridade? Há fronteiras para sorrisos, abraços e para promover as 


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© ANDRÉ MOTTA / BRASIL2016.GOV.BR/ HEUSIACTION / FOTOS PÚBLICAS (10/10/2016)

© ANDRÉ MOTTA / BRASIL2016.GOV.BR / HEUSIACTION / FOTOS PÚBLICAS (10/10/2016)


© TOMAZ SILVA/ AGÊNCIA BRASIL / FOTOS PÚBLICAS (10/10/2016)

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© MIRIAM JESKE / HEUSI ACTION / FOTOS PÚBLICAS (10/10/2016)


plenas capacidades do outro junto a mim? O evento Paralimpíadas Rio 2016 colocou um desafio à sociedade mundial, não só do Brasil: já não é mais aceitável não aceitar. Com alegria, 23 modalidades esportivas tiraram o fôlego das plateias presentes ou a distância, em 528 provas envolvendo 160 países, sem falar no número de voluntários. Com a mesma alegria, tivemos a chance de presenciar heróis do cotidiano invisível de nossas cidades ultrapassando o vento, as alturas e as linhas de chegada. Presenciar o Aaron Fotheringham realizar aquele salto em cadeira de rodas na abertura foi, uau, como vou dizer, uau! E o que dizer sobre assistir o ex-piloto Alessandro Zanardi, 15 anos depois do acidente automobilístico que lhe fez ter as pernas amputadas, alcançar dois ouros e uma prata no ciclismo de estrada? Mas, houve tanto mais a encantar que citar alguns nomes não chega a ser injustiça: a australiana Libby Kosmala, que aos 74 anos fez história na prova de tiro; as duas atletas, uma russa e a outra albanesa, Hannah e Tatyana McFadden, adotadas pela mesma mãe norte-americana, competindo lado a lado como irmãs rivais no esporte durante a prova dos 100 metros rasos para cadeirantes; as medalhas com guizos entregues aos atletas com deficiência visual, uma inovação contra a indiferença; a despedida de Clodoaldo Silva; enfim, apelos emergenciais à percepção do outro e de suas necessidades ainda não satisfeitas porque grande parte do

mundo continua de braços cruzados. Quem pode menos: quem não tem um ou outro membro ou quem não os usa em favor de uma coletividade? Quem tem paralisia cerebral ou quem está inerte e estático em seus conceitos não revistos? Quem é clinicamente cego ou quem não quer ver que não vê? São tantas as reflexões, ainda que motivadas pela emoção, que teremos muito o que pensar. Talvez seja hora de pensar que estávamos amputados da emoção, que estivemos por tanto tempo surdos às carências dos outros, não demos um passo em direção a quem tem mobilidade limitada pela nossa inércia. Único saldo triste, sem dúvida, foi a morte do atleta iraniano Bahman Golbarnezhad na prova de ciclismo de estrada, primeira vez que algo assim aconteceu em um evento paralímpico. Palavras, eu sei que você irá dizer, Therbio, são apenas palavras. Mas, prefiro pensar, principalmente, que o sentido de palavras como resiliência, superação, sonho, realidade, convivência, limite, necessitarão de um novo entendimento a partir deste evento. Porque o impensável foi alcançado, o impossível foi descartado, o impróprio foi repaginado. Porque a tolerância venceu a indiferença. E como é bom sentir isto. Viva a bicicleta, sempre!  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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RARIDADES Texto e Fotos Valter F. Bustos

CECIZINHA A

mizades entre pessoas cujo colecionismo versa sobre o mesmo tema é sempre muito bom e agradável por inúmeras razões. Dentre elas, destaco aquele famoso “toque” que nos traz de volta ao rumo quando viajamos muito, ou uma dica sobre um assunto ou tema importante. Veio de um amigo uma sugestão para a Seção de Raridades, que, confesso, deixei passar batido ao longo desse trabalho. Trata-se de bicicletas infantis ou infanto-juvenis, geralmente peças interessantes e que de fato e verdade, foi, é e será o primeiro veículo que ganhamos ou recebemos na vida. O resto, vem depois e será por nossa decisão. O fato é que há 15 dias um amigo a quem emprestei uma Monark 1960, para compor o cenário de uma peça

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de teatro, trouxe-me de presente uma Caloi Cecizinha 1983, em muito bom estado de conservação. Não deu outra, aproveitei o “toque” e a boa qualidade da bicicleta, que precisou apenas de uma limpeza e alguns ajustes para a elaboração desta matéria. As bicicletas femininas e infantis, na maioria das vezes, são peças em melhores condições gerais devido ao baixo uso e boa conservação. Quando se fala da Caloi, alguns modelos fizeram história e a linha Ceci pode ser considerada um de seus melhores lançamentos quanto ao sucesso de público e de vendas. O carro-chefe da marca foi a Ceci 26, com e sem câmbio de três velocidades, cuja garota propaganda foi a atriz e modelo Bruna Lombardi. Os modelos 


NA CECIZINHA ARO 10

salta aos olhos o freio dianteiro tipo side pull, desenvolvido para os modelos maiores, e o selim, desproporcional ao tamanho da bicicleta.

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infantis e infanto-juvenis foram lançados tempos depois. Mantinham a estrutura básica de quadro e garfo, uma bela solução de design e conforto, que passariam por mudanças num futuro não muito distante e que levaram à perda de identidade dos modelos. Uma pena! A ideia de trazer modelos adultos de sucesso para o universo infantil não é errada ou digna de reprovação, obviamente, desde que o projeto leve em consideração os fatores essenciais da biologia humana, como a estrutura física, tamanho, força muscular e por aí vai. Sob esses aspectos, a maioria dos modelos nacionais pecaram por causa da improvisação de peças e acessórios das bicicletas adultas adaptadas aos modelos infantis, em menosprezo da ergonomia humana. No caso da Cecizinha aro 10, salta aos olhos o freio dianteiro tipo side pull, desenvolvido para os modelos maiores, e o selim, desproporcional ao tamanho da bicicleta. O conjunto composto pelo movimento central e as pedivelas montadas com buchas plásticas e parafusos funciona. Porém, um aperto maior emperra o grupo, que por falta de uma boa lubrificação, dificulta o ato de pedalar para a criança. Inegavelmente, a linha composta pelas bicicletas aro 10, 14, e 20 vendeu muito e fez a alegria de muitas crianças, que hoje suspiram de saudades. Afinal, como se diz: “a primeira bicicleta a gente nunca esquece”.

HISTÓRIA DA CALOI Falar da história da Caloi requer

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uma breve viagem ao final do Século XIX, quando a pedra fundamental da marca foi lançada durante o ano de 1898 na capital paulista, por Luigi Caloi, juntamente com o seu cunhado, Agenor Poletti, mecânico de profissão, fundadores da Casa Poletti & Caloi, que consertava, reformava e alugava bicicletas na Rua Barão de Itapetininga, centro de São Paulo. Vale lembrar que, não muito distante do estabelecimento, estava localizado o Velódromo Paulista, no começo da Rua da Consolação onde hoje, bem próximos, estão a Praça Roosevelt e a Igreja da Consolação. Temos em nosso acervo um mapa original da capital datado de 1918, onde aparece a exata localização desse antigo Velódromo, construído e projetado em 1896 pelo arquiteto italiano Thomaz Gaudêncio Bezzi, a pedido de Dona Veridiana Valéria da Silva Prado, avó de Pradinho Junior, considerado um dos primeiros campeões brasileiros de ciclismo, senão o primeiro, uma vez que o assunto gera um certa polêmica entre o Rio e São Paulo, uma conversa interessante, que fica para outra hora. Outro espaço bastante concorrido era o Circo de Velocípedes, montado na Praça da República, onde as pessoas alugavam e aprendiam a andar de biciclos e bicicletas. Essas duas grandes atrações de uma bucólica São Paulo, agregavam todas as provas e atividades de ciclismo à época. Na virada do Novo Século, Luigi, com os olhos voltados para o futuro, buscou uma importante parceria para ampliar seus negócios e tornou-se representante das bicicletas


© REPRODUÇÃO

Bianchi no Brasil. Com os negócios em franca expansão e um mercado garantido, em 1924, Luigi faleceu e seus filhos Henrique, Guido e José Pedro fundaram a Casa Irmãos Caloi, uma sociedade de duração efêmera, cuja dissolução ainda é objeto de pesquisa. O fato é que, sozinho, Guido Caloi deu o pontapé inicial para a formação daquela que durante as décadas vindouras seria a maior fabricante de bicicletas do país, até desaparecer na década de 1990. Sem nenhuma dúvida, ele foi o arquiteto do império Caloi. Com o advento da II Guerra Mundial surgiram inúmeras dificuldades para a importação de peças, acessórios e material de reposição para montagem de bicicletas. Logo, através de sua iniciativa, foi montada a primeira unidade de fabricação no Bairro do Brooklin, na Zona Sul da cidade. Terminada a Guerra, em abril de 1948, a Indústria e Comércio de Bicicletas Caloi fez seu registro na Junta Comercial de São Paulo. Com quase uma semana de antecedência, a Monark já tinha feito o mesmo caminho. Aos interessados em conhecer essa história com mais aprofundamento, faço uso desse espaço para indicar nossa pesquisa publicada através da Revista Bicisport da extinta Pinus Editora, páginas 59 a 61, ano IV, nº 23, do ano de 1990. As décadas de 50 e 60, como explico na pesquisa, foram as mais ricas da empresa em termos de bons lançamentos e qualidade dos produtos. Em 1955, com o falecimento de Guido Caloi, assumiu a direção dos negócios o jovem empresário Bruno Antonio Caloi, o maestro que

Assista à propaganda de divulgação da Cecizinha. revistabicicleta.com.br/rb/cew

levou a empresa a ter reconhecimento internacional, inclusive com uma unidade fabril em Jacksonville, no Estado da Flórida. Porém, a abertura do mercado de bicicletas trouxe dificuldades para a fábrica que detinha, juntamente com sua concorrente, o monopólio do mercado nacional. Uma série de problemas de toda ordem foram surgindo, cujo ápice foi a contratação de uma assessoria para resolver essa situação muito delicada, e o final dessa história foi a venda da marca e instalações para o grupo Dorel Industries, do Canadá, proprietária das marcas Schwinn, Mongoose e GT, detentora de 70% das ações. O negócio foi fechado em 22 de agosto de 2013, e o valor da transação não foi divulgado para a imprensa especializada. Um final melancólico para um império construído com muita fibra e determinação.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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© GREENLAND / SHUTTERSTOCK.COM

REFLEXÃO

REMINISCÊNCIAS Texto por Therbio Felipe M. Cezar

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ra quase final de dezembro quando vi seu pai entrar, ofegante, próximo ao horário de encerramento da loja onde eu estava exposta. Talvez, eu nem tenha percebido bem, mas me pareceu que a escolha foi mais ou menos assim: “...é...é...aquela ali, pode ser aquela ali mesmo..” Havia dezenas como eu naquela loja cheia de luzes brancas, vitrines e preços remarcados a todo instante. Aquele poderia ter sido o dia em que nos conheceríamos, mas não foi. Os encarregados da entrega foram bastante cuidadosos comigo, afinal, eu tinha que estar inteira no ato do recebimento. Quando a porta da casa se abriu, pensei que iria te ver, mas não foi bem isto que aconteceu. Correram a esconder-me numa sala cheia de presentes próximos a uma árvore de mentira. Fiquei ali, um pouco desajeitada, equilibrada no pequeno descanso que me sustentava entre uma boneca com cara de paisagem e uma bola de futebol, em estado murchoquase-vazio. As horas passaram lentamente. As luzes acende-apaga-acende daquela árvore de mentira também pareciam imitar estrelas. Pensando bem, então, elas também eram de mentira. Na manhã seguinte, o silêncio pairava absoluto até que uma correria tomou a sala onde eu estava e, entre tantos

gritos, vi um olhar opaco cheio de ramelas ganhar brilho e alguém de mediana estatura vindo em minha direção com o andar trôpego, cabelo desregrado e uma expressão incrédula. Quase inaudível, entendi: “...ela é minha?!?!” Dali em diante, confesso, minha memória não me ajuda muito a recordar, mas me parece que começamos um relacionamento. Durante o dia todo, senti seus comandos forçando-me a ir adiante, a passar pela poça de lama, subir e descer as calçadas, além é claro, de frear bruscamente para impressionar qualquer um que estivesse prestando a atenção. Foram férias muito ativas, rememoro. E tudo o que é muito ativo, e bom, dura tempo suficiente para deixar saudade. Lembro-me de que, sempre após nossas aventuras pelas ruas irregulares de paralelepípedo do bairro, eu era deixada em uma garagem ao fundo do terreno, junto a baldes, ancinhos, latas de querosene e, obviamente, aquela mesma bola meio murcha, meio cheia, suja de meleca do cachorro da vizinha. As tais ‘volta às aulas’ chegaram, e me senti útil ao ser o veículo prioritário para levá-lo à escola, até mesmo nos dias de chuva. Ficar esperando por você, escorada na parede de cimento crespo fez minha pintura ganhar novos traços. Até alguns adesivos que declaravam minha origem se perderam de tanto roçar meu quadro nas paredes e naquela  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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torneira um tanto torta, choramingona interminável, e que fazia o gênero caimas-não-cai. O tempo perdia a noção de mim na mesma medida em que eu perdia a noção das idas e vindas à escola, ao clube e à igreja; inúmeras apostas de corrida contra modelos mais jovens, porém, sem experiência; perdi consciência de quantas foram as quedas por motivo algum ou por todos, quando, principalmente, você tratava de se exibir para colegas ou para aquela menina, até simpática, que tinha ferros nos dentes e teimava em mascar chicletes para se sentir moderna. Inúmeras, também, foram as intermináveis noites ouvindo a chuva bater, sem piedade, naquele teto de zinco da velha garagem, tadinha. Outras vezes, o frio das madrugadas me fez retesar o quadro e os desgastados Cantilever, ouvindo o ranger dos dentes do idoso Rex a roer o que restara daquela bola quase-sempremurcha, agora em pedaços um tanto irreconhecíveis. Milhares de noites iguais, uma após outra, passaram como as páginas daqueles livros velhos que se encontravam, displicentes, no chão da garagem, quando tocadas pelo vento e seu zumbido. Era Melissa, lembro-me bem, o nome daquela namorada que você buscava em casa, todos os domingos, a fim de levá-la às matinês. Ela não se importava de sentar de lado no quadro enquanto

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você, despretensiosamente, é claro, a protegia entre os braços no caminho de ida e volta. Eu, parada ali em frente ao Cine Astor, já parecia fazer parte da parede ou do poste pichado, repleto de panfletos colados de maneira irregular e disforme, e infelizmente, cheirando à urina dos notívagos e moradores de rua. Era outro desses dezembros, tantos foram os que se passaram sem que fizesse qualquer diferença para mim, mas neste, em especial, senti que algo estranho iria acontecer. Entre cânticos repetitivos falando de neve num país tropical e mesas fartas no mesmo país desigual, percebi que um objeto com quatro rodas provocou em você o mesmo andar trôpego e aquela idêntica expressão de incredulidade de dezenas de anos atrás. Na manhã seguinte, não saímos. Quero dizer, não saí da garagem. Nem à tarde, nem nos dias que se repetiram, penosamente, um após o outro. Não entendia os motivos que levam os humanos a descartar coisas das quais pensam não precisar mais. Seu pai, já aposentado há vários anos, ousou tentar equilibrar-se num pequeno e tímido passeio em um domingo, mas não fomos longe. Ele queixou-se de dores nas costas e acabei voltando para casa empurrada pela sua vizinha, dona Margot, aquela enfermeira solteirona que você dizia ser boa gente. Foi a última vez que saí da garagem. Aliás, a garagem foi demolida para dar


lugar a mais um cômodo, pouco tempo depois. Ouvi dizer que você iria morar naquele espaço com sua recém-esposa e um filho, coisas que acontecem, diziam os mais velhos. É bem possível que seu pai tenha tido momentos lindos com o seu filho, mas eu não soube. Aliás, soube, devido aos prantos e às visitas que nunca vi naquela casa que seu pai morreu logo em seguida, numa manhã de quase dezembro. Sinto por você e pela dívida que sempre tive com seu pai, por ter me presenteado ao filho.

Desesperança, sei lá, tomou conta de mim. Passei a entender o significado da palavra indiferença. Sem luzes. Sem sons. Sem nós. Silêncio. Um risco luminoso, meio indeciso, passava pelo friso daquela entrada dos meus aposentos, não sei precisar quanto tempo havia passado. Lembrome de ter visto poeira pelo ar e luz, mescladas. Um rosto com poucos traços reconhecíveis me levavam a crer que, possivelmente, era você ali, quase igual ao seu pai no dia em que o mesmo entrou, ofegante, pela porta da loja.

Fui parar em um lugar escuro, empoeirado e com roedores, em cima do teto "O TEMPO PERDIA A da sua nova casa, junto a Fui retirada NOÇÃO DE MIM NA tanta coisa sem sentido com certo MESMA MEDIDA EM que passei a duvidar cuidado QUE EU PERDIA A da minha existência e daquele lugar NOÇÃO DAS IDAS E utilidade. Meus pneus não feito de pó, VINDAS..." memórias e resistiram à voracidade dores, não daqueles animaizinhos. entendo Da mesma forma, meu bem porquê, aliás, fui retirada dali em selim foi se transformando em refeição. partes. As tais partes que restavam. Desfiz-me de todos os meus sonhos de Uma flanela cruzou-me de sul a norte seguir pelas ruas e calçadas, como se e aquilo tinha certo tom de carinho, é desfaz de suas folhas a árvore naquela possível. Toda aquela luminosidade me estação cinza. deixou um pouco tonta, mas percebi que você me olhava atentamente, como se Não havia mais dezembros. Não havia estivesse tentando contar bagas em um mais voltas à padaria. Não havia. Eu, cacho de uvas. enfim, não havia. Lampejos de risadas e rostos felizes vinham à minha mente, Perdi o sentidos. Ouvi ruídos que jamais hora ou outra, garantindo fragmentos de havia conhecido, pareciam rochas loucura àquilo que eu já não sabia mais sendo esfregadas umas nas outras. se era dia ou noite. Havia faíscas ligeiras lembrando os  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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relâmpagos das noites de chuva na antiga garagem. Senti-me bem, não sei ao certo por que motivos. Na verdade, senti-me melhor quando notei novos cabos, novos freios, um selim esnobe esbanjando bossa, uma lanterna traseira e um farol dianteiro cromado, campainha simpática novinha, entre outras coisas tão especiais que ousaria dizer que só havia me sentido assim, tão bem, quando saí da linha de montagem e fui parar naquela tão saudosa loja, há tanto tempo que nem é possível precisar. Quando o obreiro artista que em mim trabalhava poliu as últimas partes, por

fim, entregou-me a você. E do meio de outras tão jovens quanto eu agora, vi surgir alguém que me lembrava o moleque de nariz sujo que deu sentido a toda a minha existência. Você se agachou junto a mim, segurando-me com todo o jeito de quem segura uma velha senhora. Senti que você estava confiante, embora trêmulo. Ouvi sua voz embargada proferir um nome tão belo quanto sonoro, e logo depois disso deixou-me ser tocada pelo meu novo dono, dizendo: “filho, nós estamos em dezembro... e esta é a sua bicicleta! Que você seja tão feliz quanto eu fui”. 







CICLOTURISMO

O GRUPO DE PEDAL OS DINOSSAUROS REALIZOU UMA EXPEDIÇÃO POR MAR VERMELHO (AL) E GARANHUNS (PE), CIDADES CONHECIDAS COMO AS SUÍÇAS ALAGOANA E PERNAMBUCANA, POR POSSUÍREM UM CLIMA DIFERENTE DO AGRESTE NORDESTINO. TÃO LOGO ENCERRARAM A TRAVESSIA, OS DINOSSAUROS PARTIRAM PARA A SUÍÇA EUROPEIA, QUE ENVOLTA PELOS ALPES, REVELA PAISAGENS INCRÍVEIS A CADA PEDALADA!  150

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Texto e Fotos Ruben Wanderley

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SUÍÇAS NORDESTINAS

MAR VERMELHO (AL) E GARANHUNS (PE) DE MOUNTAIN BIKE Mar Vermelho e Garanhuns são cidades localizadas na Zona da Mata de Alagoas e no agreste pernambucano. Ambas se diferenciam de outras cidades nordestinas pelo clima frio e baixas temperaturas, principalmente no inverno, e são conhecidas como as “Suíças” Alagoana e Pernambucana. Lá se realizam, em julho, os famosos festivais de inverno, com várias atrações musicais, eventos culturais e gastronomia. Nosso pedal também fez uma ponte por Bom Conselho, já no sertão pernambucano, onde fechamos um triân-gulo com os três microclimas da região nordestina: o sertão, o agreste e a mata.

M

ar Vermelho é uma das cidades mais altas de Alagoas, a 650 m acima do nível do mar. Por possuir inúmeras espécies de Gravatá, um tipo de árvore que no outono deixa cair suas folhas de coloração vermelha no chão e nas águas dos lagos, recebeu este sugestivo nome. Possui também características de região europeia, com clima de serra e inúmeras fontes de

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águas minerais. Sua temperatura já chegou a atingir 10°C. Ficamos acomodados em duas fazendas locais, próximas da cidade, e a partir daí demos início ao nosso pedal. O segredo para o sucesso da pedalada é acordar cedo e sair com o nascer do dia, para usufruir de uma temperatura mais amena e evitar um pouco o sol, que é bastante forte a partir das 10 h 30 min 


Cidade de Mar Vermelho

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Cidade de Garanhuns

Homem sertanejo

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até a tarde. No primeiro dia fizemos uma puxada direta e forte com paradas pequenas para vencer cerca de 98 km até Garanhuns (850 m de altitude), onde pernoitamos. Depois seguimos mais 55 km até Bom Conselho (700 m de altitude), já no sertão pernambucano, e no último dia seguimos de volta para o Mar Vermelho, em mais 75 km por outra vertente do caminho, num total aproximado de 230 km pedalados em três dias. Neste cenário rústico, com vistas exuberantes do interior nordestino, pudemos presenciar de perto toda a profusão de cores e contrastes da região. Ao mesmo tempo, passamos a resgatar alguns valores que às vezes perdemos ou não percebemos no cotidiano do nosso dia a dia, com este contato mais íntimo com o ambiente rural, ao nos aproximarmos de pessoas, da história e do contexto local, vivenciando in loco toda a essência de uma vida que tem seu fluxo normal, simples, calma e sem pressa, típica do interior. Sentimonos também muito mais completos, como nordestinos que somos. Nosso grupo “Os Dinossauros” já realizou este percurso duas vezes, e este ano recebemos outros convidados para juntarem-se a nós nesta difícil travessia. Geralmente fazemos com carro de apoio, pois os locais são bem ermos, com altas temperaturas. Apesar das duas cidades possuírem

climas amenos, o resto do percurso é extremamente quente, como em todo o agreste e sertão nordestino. O trecho Mar Vermelho / Garanhuns é praticamente de subida, atingindo em torno de 2.100 m de altimetria, o que já é bastante alto em termos de Brasil, então, imagine no nordeste, onde suas cidades estão mais no nível do mar. Nos sentíamos como numa verdadeira montanha-russa com subidas e descidas constantes, tendo sempre como recompensa os visuais incríveis do lugar. No primeiro trecho, pedalamos por pequenas estradas margeando vegetações típicas do bioma da região, como gravatás, cactos, ingazeiras e muitas áreas onde os lajedos e rochas afloravam na paisagem. É fácil notar também a religiosidade e a fé do povo do interior com a vista de inúmeras igrejas, capelinhas brancas e imagens espalhadas pelas curvas dos caminhos.

CIDADES E HISTÓRIAS Durante o percurso, fizemos algumas paradas estratégicas para descanso, lanches e sobretudo para conhecermos pequenas cidades e vilas carregadas de histórias interessantes e riqueza cultural, apesar de serem, em sua maioria, tão carentes e abandonadas por nossos legisladores. Inicialmente margeamos o Rio Paraíba, passando pela Vila de São Francisco, que fica às margens deste mesmo rio. É lá que está enterrado Frei Damião de  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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Gravatá, vegetação típica da zona da mata, origem do nome da cidade de Mar Vermelho

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Bozzano, que viveu na vila seus últimos anos e pediu para ser enterrado ali. Foi nesta vila que também ocorreu um dos crimes que mais chocaram Alagoas no início dos anos 50, e que reflete, infelizmente, muito do tipo de política que é praticada no interior nordestino até os dias atuais. Isto se deu a partir da chegada, em 1937, de Antônio Fernandes Amorim, o Beato Franciscano, como era conhecido. Na sua vida de verdadeiro monge, dormia em esteiras e se alimentava do que traziam para ele. Foi aos poucos desenvolvendo o lugarejo, que era um antro de prostituição e todo tipo de vícios, transformando-o em um lugar de rezas, fé e romarias. Em 30 de julho de 1954, por volta das 18 h, um defeito no fio de energia da casa do religioso fizera escurecer a residência, e Franciscano foi assassinado quando trocava uma lâmpada. A verdade é que ele se transformou rapidamente num carismático líder religioso, a ponto de despertar interesses nos políticos dos municípios circunvizinhos, que procuravam seu apoio em busca de votos. Como aquele ano era de eleição para deputados, o beato deu seu apoio à candidatura do genro do candidato que viria a ser Governador de Alagoas naquele ano. Foi seu grande erro, isso despertou uma forte ciumeira política nos adversários, que passaram a vê-lo como extraordinário arrebanhador de votos. José Calcutá, o executor do crime, foi detido e preso. A partir daí, criando

mirabolantes álibis, sem citar nomes e causando mistérios e dúvidas para esconder a verdade sobre os mandantes, deixou até hoje a incógnita sobre a morte do Franciscano. Quando morreu, Franciscano já havia entregue a vila aos frades capuchinhos, e o provincial, na época, Frei Otávio, era pertencente aos frades da província de Lucca, na Itália, ordem à qual pertencia Frei Damião. Tanto que hoje a vila é comandada pelo Frei Fernando Rossi, que acompanhou Frei Damião ao longo de aproximadamente 50 anos. Outra cidade que passamos ainda em Alagoas, próxima da vila, foi “Quebrangulo”, onde nasceu o grande escritor alagoano Graciliano Ramos. Pudemos admirar sua singela e despretensiosa arquitetura, típica do interior nordestino, com seus conjuntos de casas conjugadas com cores alegres e contrastantes. A cidade fica também às margens do Rio Paraíba e tem a origem de seu estranho nome no líder dos negros fugitivos que ali se instalaram, quando da derrocada final do Quilombo dos Palmares em Alagoas. Alguns remanescentes dos Palmares se refugiaram na região, Quebrangulo era o nome do líder dos negros fugitivos. Tivemos, ainda na cidade, a surpresa da visita do ex-prefeito, que nos contou fatos e histórias interessantes sobre a mesma, sugerindo que fôssemos conhecer um dos principais biomas de mata atlântica de Alagoas naquela região, a reserva de “Serra Talhada”, inclusive com banhos de cachoeiras.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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Saímos em direção à reserva, mas um desvio da rota naquela hora poderia nos atrasar em nossos objetivos, já que havia ainda uma boa distância a percorrer. Resolvemos continuar em nosso itinerário e deixar para uma próxima vez esta visita, que julgamos interessante conhecer. Seguimos por estradões de terra e alguns singletracks, já sentindo o efeito do sol, que àquela hora estava bastante forte. Nossa parada para almoço foi na cidade de Lagoa do Ouro, já em Pernambuco, que tem seu nome

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ligado à cor de suas areias, que brilham, sobretudo quanto mais forte está o sol. Acredito que algum mineral produza este efeito luminoso e dourado, bem visível no solo árido de suas estradas, que foi por onde iniciamos nosso último trecho de pedal para Garanhuns, a Suíça Pernambucana, chegando por volta das 4 h da tarde. Todo o trecho que fizemos durante o dia foi por estradas de terra, porém, neste trecho final, percorremos uns 4 km de pista (com pouca movimentação) tendo a escolta do carro de apoio como


proteção contra acidentes. Sofremos bastante no total do percurso com o calor e as intermináveis subidas, mas depois de uma atividade física intensa como a que fizemos, nada como um bom banho para tirar a fadiga, uma refeição de-cente para repor as calorias e um descanso merecido para se recompor do desgaste. Depois de pernoitarmos na “Cidade das Flores”, fomos conhecê-la de bicicleta, seguindo para Bom Conselho, cidade que marca o início do sertão pernambucano. Seu nome é em razão da construção do monumental colégio de Nossa Senhora do Bom Conselho. Esse foi o primeiro educandário de grande porte para a educação feminina no nordeste. É célebre a frase de seu fundador, o capuchinho Frei Caetano de Messina: “Educando-se uma menina, educa-se uma mãe; educando-se uma mãe, transforma-se uma sociedade”. Seguimos pedalando para vencer mais de 1.050 m de altimetria pelo município que está inserido em sua maior parte no planalto da Borborema, com relevo suave e ondulado. Ao sul, parte da área insere-se na depressão sertaneja, e sua vegetação nativa é composta por caatinga com pequenos trechos de floresta. Bom Conselho se notabilizou na época do cangaço, por possuir um dos maiores líderes sertanejos do nordeste, o coronel José Abílio de Papacaça (antigo nome da região). Foi em seus domínios que se refugiou, buscando proteção, o jovem Virgulino Ferreira da Silva e seus irmãos,

quando da morte de seus genitores em Alagoas, se transformando no terrível cangaceiro “Lampião”. Depois de um café da manhã bem sertanejo, já finalizando nosso trajeto, seguimos fechando o triângulo, direto para Mar Vermelho, em Alagoas, em mais 75 km de trilhas, via Serra do Chorador (o nome diz tudo). Galgamos 1.500 m de altimetria em nossa última escalada, que terminou com uma deliciosa buchada de bode, prato típico sertanejo, para garantir a sustança necessária para repor as calorias perdidas pelo esforço desprendido no aclive final. Em todos estes dias de pedal, tivemos a oportunidade de conhecer mais profundamente nossa região. E nada melhor do que fazer isto de bicicleta, que tem a capacidade de nos colocar em um contato direto e íntimo com a rica cultura local. Desta forma, passamos a valorizar mais nossas raízes e este povo tão abandonado e sofrido do interior, embora seja tão trabalhador e sempre presente na preservação de seus costumes, crenças e tradições. Apesar do desgaste, das subidas, do mormaço e, sobretudo, do calor escaldante do sertão, como num verdadeiro efeito estufa, ainda não foi desta vez que “Os Dinossauros” foram extintos. Muito pelo contrário, depois de conhecer as duas Suíças Nordestinas, seguimos para um pedal de aproximadamente 15 dias na verdadeira Suíça Europeia.  EDIÇÃO DIGITAL 01 NOVEMBRO 2016

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SUÍÇA EUROPEIA A Suíça é um país que praticamente não tem fronteiras demarcadas visualmente, isto porque os Alpes, que formam a maior parte de seu território, se estende para leste até a Áustria, para oeste até a França, e para o sul formando vales até a Lombardia, onde a fronteira se espalha por muitos lagos. Embora a fronteira norte siga o curso do Reno, mesmo aqui ela cruza este traçado natural abrangendo um mosaico de enclaves alemães e suíços em torno da região de Schaffhausen. Sem acesso ao mar e bem no centro cultural e geográfico da Europa, o país é admirado pela beleza de seu ambiente alpino, o povo é respeitado por sua engenhosidade industrial e técnica, pela responsabilidade social e por um governo democrático direto. É também uma das nações mais ricas do mundo. Foi este país interessante de paisagens únicas que nosso grupo de pedal, Os Dinossauros, resolveu conhecer de bicicleta, em um total de 510 km percorridos!

N

ós, do grupo de pedal Os Dinossauros, sempre priorizamos o conhecimento de novas culturas, histórias, costumes, pessoas e lugares através de uma atividade ao ar livre como o MTB ou o cicloturismo. A partir daí passamos a nos conhecer melhor e evoluímos como seres humanos no ambiente que vivemos dentro de nosso planeta. Nosso lema sempre foi união, companheirismo e respeito ao meio ambiente, tudo com muita diversão.

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Fomos para a Suíça no começo de junho e um detalhe que não sabíamos é que nesta época, temporada do verão europeu, é o período com maior índice pluviométrico no país. Chove muito! Chegamos a Zurique em uma terçafeira, e fomos conhecer um pouco dessa cidade que é atravessada por elegantes pontes baixas, já que o Rio Limmat divide a cidade conforme sai do lago Zurique e ruma para o norte. Já era fim da tarde, fomos jantar e aproveitamos para apreciar seu lindo visual à noite. 


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Montamos nossas mountain bikes que trouxemos do Brasil, visitamos algumas bicicletarias para nos equiparmos para a chuva e fizemos um pedal de reconhecimento para testar as magrelas nas redondezas de Zurique. Foram 60 km em um dia perfeito e com sol. No dia seguinte, novamente com tempo bom, aproveitamos para conhecer o outro lado da “Costa de Ouro”, 40 km de pedal ao largo do lago de Zurique, que é um dos maiores da Suíça. A alta qualidade de vida na cidade é em grande parte graças a este lago. O litoral norte é um dos mais procurados para viver. O nome "Costa de Ouro" vem dos altos preços de seus imóveis de um lado, e da localização geográfica de outro. As magníficas moradias no norte são banhadas pelo sol até tarde. O lado que pedalamos neste dia foi o sul, o lado oposto que jocosamente é chamado de “Costa Sniffle”. Esta costa é coberta pela sombra das montanhas no início do dia e é causa de muitos resfriados e narizes entupidos, daí seu apelido.

com subidas sempre curtas, mas de intensas inclinações e finalizamos em Pfäffikon, após 35 km de pedal. Seguimos a partir daí em uma curta viagem de comboio para Einsieldeln. Pernoitamos nesta pequena cidade com 15.000 habitantes localizada no planalto sul do lago em Zurique. É enorme o número de religiosos na cidade, que é uma rota popular de peregrinação, inclusive para o Caminho de Santiago, na Espanha.

35 km + trem

Existe um lindo mosteiro barroco, que conta-se, foi iniciado por St. Meinrad, um homem piedoso que foi atraído para uma vida de reclusão e que construiu uma pequena capela no local. Ele mantinha dois corvos como companheiros. Diz a lenda que foi morto por ladrões e que vários milagres ocorreram ao redor de seu corpo. Seus corvos perseguiram os assassinos até que eles foram capturados e levados a julgamento em Zurique. O mosteiro e a igreja foram construídos no exato lugar da capela construída por St. Meinrad e seu vão livre de telhado está entre os maiores da Suíça.

Estávamos com as malas etiquetadas no hall do hotel esperando a empresa de transporte e iniciamos nossa pedalada de Zurique a Einsiedeln sob forte temporal, já protegidos e preparados. Começamos atravessando uma área residencial na costa dourada, com subidas curtas e íngremes em direção a Rapperswil. Utilizamos a rota 66, que por conta de suas ensolaradas encostas é também uma área vinícola. Pedalamos

A igreja, que forma a parte do complexo barroco central do conjunto, possui em seu interior murais e detalhes em ouro. Dentro dela existe a capela da misericórdia, construída onde St. Meinrad costumava rezar. Ela abriga a Madona Negra, uma estatuazinha da virgem que se misturou à fuligem das milhares de velas e incensos ao longo dos séculos, até que foi pintada com tinta preta em 1803. Se assemelha à 

ZURIQUE A EINSIEDELN

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O lindo visual de Zurique, à noite

Sem acesso ao mar, a Suíça encanta pela beleza de seu ambiente alpino

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padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.

EINSIEDELN A LUCERNA 75 km Tomamos a rota 22, com um percurso que logo no início nos levou até um aclive bastante íngreme. No topo, uma pausa para as fotos e para desfrutar de uma vista panorâmica deslumbrante. Tudo parecia perfeito, para quem treinou no agreste e no sertão nordestino entre cactos, mandacarus, rasga beiços e xiquexique, aquilo tudo parecia um jardim. Nesta hora passamos a admirar mais este país ao mesmo tempo que valorizamos a brava gente sertaneja do nordeste brasileiro, sobretudo pela capacidade de vencer as adversidades. Depois de uma descida perigosa e longa no início para alcançamos a rota 9 em Bilarrstag, saímos da estradinha asfaltada para entrarmos por um desfiladeiro profundo na floresta com várias redes de cavernas com estalactites e pequenos lagos. Para a visitação é recomendável utilizar roupas quentes, pois é muito frio lá embaixo. Seguimos margeando um estreito rio pelo vale até alcançarmos Lucerna, uma das cidades mais lindas que conhecemos pedalando, com uma população de 60 mil habitantes e cortada pelo Rio Reuss que separa a cidade velha dos distritos modernos. Sua localização em estreita proximidade com as montanhas e vários monumentos culturais fizeram dela um dos primeiros centros de indústria do

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turismo nascente da Suíça. Ao chegarmos, atravessamos pela Nadelwehr, que é uma estrutura de controle de inundação que foi construída em 1852 e regula a altura da água do lago Vierwaldstättersee que atravessa a cidade. Nos acomodamos no hotel e fomos a pé conhecer um dos símbolos de Lucerna que remonta ao século XIV, a "Ponte da Capela", que é a ponte de madeira mais antiga da Europa e cartão postal da cidade.

LUCERNA A INTERLAKEN 60 km + comboio Deixamos Lucerna pela manhã bem cedo e seguimos para Interlaken em um pedal tranquilo, admirando os visuais incríveis do lugar e sua bela arquitetura. Quando pensamos na Suíça, sempre vem a ideia dos Alpes e sua montanhas majestosas ou, em outras palavras, muitas subidas! Não foi bem assim, nossa pedalada foi classificada como de nível três, ou seja, do tipo moderada, nada que uma pessoa com condicionamento em dia não possa fazê-la. Já para se alcançar as grandes altitudes existem trens de montanha que podem levar as bicicletas e uma vez lá em cima é só se jogar para baixo e curtir o visual incrível das paisagens. Foi o que fizemos neste percurso, inclusive indo conhecer o famoso Grandhotel Giessbach, ao pé da Giessbach Falls, cachoeira que é alcançada a partir do lago por um dos mais antigos funiculares na Europa. 


Saindo de Einsiedeln em direção a Lucerna

Nadelwehr, estrutura de controle de inundação construída em 1852, no lago Vierwaldstättersee, em Lucerna

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Na planície entre o lago de Thun e o lago Brienzersee reside Interlaken, cujo nome latino "entre lacus", ou “entre os lagos”, remonta a um antigo mosteiro. Chegamos já um pouco tarde por um percurso na floresta admirando as águas azuis-turquesa do lago.

INTERLAKEN A BERNA 40 km + boat trip Neste dia dormimos até mais tarde e saímos por volta do meio-dia para pegarmos um barco através do lago Thunersee. Aproveitamos para curtir por duas horas as paisagens ao redor de Interlaken com destino a Thun, cidade localizada entre várias montanhas íngremes. Conhecemos o castelo Schandau no final do lago Thun, onde o rio Aare flui para fora do mesmo. Thun é a maior cidade de guarnição do exército suíço. Ao sairmos de lá, continuamos pedalando pela rota 8, a rota Aare, indo para Berna onde no final da tarde alcançamos a capital da Suíça. Exploramos Berna de bike logo que chegamos. Há várias fontes renascentistas coloridas pela cidade, que é considerada um dos maiores exemplos de construção urbana medieval na Europa, foi o berço da teoria geral da relatividade de Albert Einstein. Goethe, em uma carta de 1779, escreveu que “ela (Berna) é o exemplo de cidade mais bonito que já vi”.

BERNA A BIEL 50 km

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Saímos no outro dia pela rota 8 seguindo o rio Aare em direção a Biel e fomos conhecer Aarberg, pequena cidade que é atravessada por uma bela ponte de madeira velha. Continuamos pedalando ao longo da margem oeste para Biel, com a vista constante dos picos montanhosos do sul ao sopé da Cordilheira do Jura, que é uma região vinícola famosa na Suíça. Neste ponto da pedalada, minha bicicleta apresentou problemas no passador da relação de marchas e resolvemos que quando chegássemos a Biel, procuraríamos uma bicicletaria para substituir o mesmo. Aproveitamos para consertar também o amortecedor dianteiro da bike de outro ciclista do grupo, que já vinha apresentando problemas desde o início da pedalada. Deixamos as mesmas na oficina e pegamos no outro dia, com todos os problemas resolvidos. Biel é a maior cidade bilíngue na Suíça. Alemão e francês, ambos têm direitos iguais na esfera pública. Por ter esta característica, o lado francês recebeu um grande impulso com a imigração de relojoeiros da França no século XIX. Daquela data em diante, a relojoaria tornou-se um aspecto importante da vida industrial da cidade. Depois da uma desaceleração durante os anos 70, a indústria da cidade ganhou força novamente porque vários dos maiores fabricantes mundiais de relógio não abandonaram a sua produção em Biel. É lá que estão as fábricas das famosas marcas Omega e Rolex. 


Na pequena aldeia de Altreu, mais de 30 casais de cegonhas vivem em uma área protegida de 1.500 hectares

Grandhotel Giessbach, ao pé da Giessbach Falls

Pedalando pela margem oeste do rio Aare em direção a Biel

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BIEL A SOLOTHURN

SOLOTHURN A AARAU

30 km

60 km

Pegamos nossas bicicletas logo cedo e seguimos o percurso que nos leva ao longo das margens sul do rio, novamente paralelo à cadeia de montanhas do Jura. Conhecemos também a pequena aldeia de "Altreu", que é conhecida além das fronteiras da Suíça por seus assentamentos de cegonhas. Mais de 30 casais de cegonhas vivem em uma área protegida de 1.500 hectares.

Partimos pela rota 8 ao longo do Rio Aare, e passamos pela ponte de madeira velha de Wargen. É interessante percebemos a qualidade da água na Suíça. Mesmo em cidades, os rios são aptos para banho e ao longo de todas as trilhas existem fontes em abundância, com água de extrema transparência. Praticamente fiz todos os percursos com apenas uma caramanhola, sempre abastecendo-a durante as trilhas.

Quem pratica uma atividade como mountain bike sempre tem a oportunidade de contemplar todos os dias a natureza, e é normal o contato com os animais domesticados, selvagens, ou os pássaros em seus habitats, e é comum visualizar suas reações naturais a humanos. Passamos a entendê-los melhor, assim como entender nossas possíveis reações enquanto seres humanos onde sempre estamos aprendendo e evoluindo com este contato que a bicicleta nos oferece. Em Altreu fizemos questão de conhecer uma velha senhora que possuía um pequeno centro de preservação destas aves e outros animais daquele ecossistema. A partir daí seguimos em direção a Solothurn, que é conhecida por ser a mais bela cidade barroca da Suíça. Solothurn possui a maior coleção suíça de arte desde a Idade Média até hoje. Ao lado de obras de artistas suíços, como Jean Tinguely, também abriga obras de Vincent Van Gogh, Henri Matisse e Paul Cézanne.

Em todos os percursos na Suíça também existem mesas com frutas para lanches pelo caminho (maçãs, morango, pêssegos, etc) tudo na base da confiança. Existem pequenas caixinhas com preços, sem a presença do vendedor, o que demonstra o grau de educação e honestidade de seu povo.

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Mais tarde, ao entrarmos em Aarau, conhecemos o edifício mais antigo da cidade, um castelo localizado na orla que hoje abriga um museu. A estrutura remonta o século XIII e foi construído a partir de pedras com formas brutas. No interior, mais de 100 mil itens com detalhes sobre a história da cidade.

AARAU A ZURIQUE 60 km Tomamos o rumo de volta a Zurique pela rota 8, já sentindo saudades de tudo que vivenciamos neste dias, com um misto também de satisfação e admiração por este país fantástico. 


No caminho para Solothurn

Ponte de madeira em Wargen, no rio Aare


ROTEIRO 1 Zurique e arredores

60 km

2 Lake Zurique

40 km

3 Zurique a Einsiedeln

35 km

4 Einsiedeln a Lucerne

75 km

5 Lucerne a Interlaken

60 km

6 Interlaken a Berna

40 km

7 Berna a Biel

50 km

8 Biel a Solothurn

30 km

9 Solothurn a Aarau

60 km

10 Aarau a Zurique

60 km TOTAL 510 km

Seguimos o caminho ao longo da margem do rio Aare para a esquerda e logo avistamos o castelo dos Habsburgos no cume do Wulpelsberg. Este foi o principal castelo da dinastia Habsburg, poucos quilômetros depois estávamos em Brugg, onde o leito do rio se estreita por alguns metros. Esta é a única oportunidade entre o lago Thun e a foz do Reno, onde o rio Aare pode ser superado por um único tronco de árvore. A partir de Brugg, entramos na rota 5 ao longo do rio Reuss para Baden, seguindo para Zurique. Neste percurso pudemos perceber como os suíços são meticulosos na preservação de seu

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ambiente natural. Dois exemplos disso são os sistemas de transporte público e a abordagem quanto a reciclagem de lixo, que praticamente não existe nas trilhas. A Suíça foi o primeiro país a tornar obrigatório o uso de conversores catalíticos de carros, e seus regulamentos quanto à emissão de gases tóxicos estão entre os mais rigorosos do mundo. Há também, por outro lado, um incentivo à cultura da bicicleta desde a mais tenra idade. A população é incentivada a usá-la, todas as rotas são bastantes sinalizadas e a maioria das plantas e animais alpinos são protegidos por lei, algumas espécies, inclusive, reintroduzidas na natureza. As florestas, que cobrem cerca de um terço do país, também são protegidas e é proibido desmatar áreas grandes em razão do risco de desmoronamentos e avalanches. O país é signatário da convenção Alpina de 1999 que protege os Alpes dos efeitos nocivos do turismo e do transporte motorizado. Ao chegamos de volta a Zurique, fomos comemorar com saudades o fim da jornada. Cerveja, racletes e fondue marcaram nossa despedida. Ah, e é claro: compramos vários dos melhores chocolates do mundo! 




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