Chama #2

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O pai Diogo Aloni

– Pai, o que é isso no seu rosto? – É uma casca. – Igual de machucado? – Não. – Pode arrancar? – Não tem jeito de arrancar. A primeira vez que a casca apareceu no rosto de meu pai, eu tinha cinco anos. Depois disso, ficou impossível não enxergá-la. Hoje, com meus dezoito, o velho é um tronco fadado às raízes. Um dia, uma folha cresceu em sua bochecha direita, no mesmo ponto da primeira casca. Como quem espreme um cravo gordo, o velho tentou arrancá-la. Não tem jeito de arrancar, eu lhe disse. Voltou à posição de tronco fadado e ninguém mais tocou no assunto. No meio de um de seus cochilos após o almoço, ousei regar a folha. Foi aí que o verde consumiu a sala, o sofá, as duas tevês, os celulares. O verde abraçou os quadros, os santos e a nossa cadelinha amarrada ao balaústre. A casa então tornou-se o pai, como eu sempre suspeitei que ela fosse. Agora, se deixássemos de regar, apodreceria junto de tudo o que a casca havia abraçado. Se regássemos, eu estaria fadado a também ser tronco. Peguei minhas coisas, atravessei o lodo da sala com a suspeita de que ele não me veria. – Aonde você vai? – Só tô indo, pai. – Vai trair suas raízes, filho? – Não tem jeito de arrancar.

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