Chama #2

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O segredo da minha vida Lipe Canêdo

Todo dia, na hora do banho, eu viro peixe. Começou quando tinha 14 ou 15 anos, liguei o chuveiro e, de repente, me vi no chão, com dificuldades de respirar. Debati-me feito louca. Sentia a água morna a escorrer-me pelas escamas, abria e fechava a boca involuntariamente em busca de ar. Aterrorizada, saltava e ribombava no chão. Quedei assim minutos a fio, sem fôlego. Não conseguia gritar minha mãe, não conseguia fazer nada. Se pudesse desligar a água do chuveiro, minha primeira vontade, morreria sufocada. Pensei estar tendo um ataque. Não percebi o que me tornara. Meu corpo estava descoordenado, minha visão turva. Aos poucos as ideias foram se organizando. De um lado nada via. De outro, bem acima, um enorme círculo vertia água em mim. Sob minha perna direita, podia sentir a aspereza do ralo que absorvia a torrente. Quando logrei me acalmar, retornei à forma humana. Foi horrível. Fora isso, sou uma pessoa normal. Gosto de jazz, leio revistas de fofoca, dirijo um carrinho vermelho. Aos domingos gosto de passear no shopping. Sapatos: tenho-os aos montes. Namorados: nenhuns. Profissão? Não gosto de me gabar, mas coordeno o departamento de vendas de uma das maiores empresas do país. O salário é razoável. E não há um velhote do décimo primeiro andar que não me cobice o rabo. Eu sei, foda-se. Mas ando sempre de tailleur e calçados sóbrios de couro. Ninguém gosta de ninguém ali. Nem as mulheres da equipe comercial são afeitas a mim. Há umas três, ou duas, que me sorriem com naturalidade e não me querem fritar no azeite quente. A cada quinze dias, participo de uma aula de culinária com amigas do tempo de escola. Todas bem-criadas e bem-casadas. Sabem tudo da vida de gente que nem conhecem. Sempre me perguntam sobre a minha. Fora isso, eu adoro. Cozinho qualquer prato, menos frutos do mar. Sinto pavor só de pensar em comer pescado. Sou católica, filha de italianos. Canibalismo não me desce. Quando me descobri peixa, entrava em pânico toda vez. Comecei a tomar um ou dois banhos por semana. Nos outros dias, ligava o chuveiro e passava 20 minutos a fazer caretas no espelho. Às vezes acreditava que minhas axilas cheiravam a sardinha. Morria de vergonha.

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