Chama #2

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As memórias da pele Ana Paula Dacota

Tenho a pele negra. Demorei muitos anos para me autodeclarar assim. Porque o tom é mais claro. Porque meu cabelo não é pixaim. Por muito tempo me autodefini como morena. Me declarava como “parda”. Na minha certidão de nascimento a cor de pele foi declarada pelo tabelião assim: “cor clara”. Muitas vezes fui chamada de mulata, nêga, neguinha, moreninha… até conseguir encontrar a minha identidade, que não foi um processo fácil, pois ser mestiço é como ser a “terceira margem” de um rio de cores de pele que em nossa sociedade inflige a cada um legado de lutas mais explícitas ou não. Por muito tempo eu fechei meus olhos, minha mente e meus ouvidos às discriminações que eu sofria. O preconceito é bem sutil, ainda mais com os morenos ou negros mais claros. “A raiz do seu cabelo é lisa”, “Seus traços são tão finos”, “Sua mãe é branca, relaxa”. Consequentemente minha boca também se fechou. Vivia como se nada percebesse, como se não tivesse ouvido, visto ou sofrido. Seguia em frente sem perceber que aceitar calada o preconceito velado que me infligiam fazia com que eu cada vez mais tivesse menos identidade. Relembrando minha infância percebo que a cultura branca da minha família mestiça, onde tinham branquinhos e moreninhos, não aceitava meus cabelos anelados e um pouco crespos. Sim, eu tinha a “raiz lisa”, mas cabelos cacheados. Lembro das tias que rodavam meu cabelo em uma touca de meia de nylon e depois me colocavam embaixo de secadores fortíssimos, que pareciam capacetes de alienígenas, para alisar meu cabelo. Diziam que eu só ficava bonita de cabelo liso. E essa luta contra minha natureza capilar adentrou a adolescência. Elas me levavam em salões de beleza caros para “dar um jeito” em mim, fazer “escova”. Minha madrinha chegou a pagar semanalmente um salão, pois só gostava de me ver com os cabelos escorridos. “Você precisa ficar bonita para arranjar um namorado, menina!” – era o que eu escutava o tempo todo. Na juventude consegui me rebelar um pouco contra esse padrão. Cresci sem uma Taís Araújo (modelo e atriz negra) ou uma Maju (a repórter do tempo, do Jornal Nacional) para me espelhar. Por sorte tive algumas amigas que conseguiam “dar um jeito” nos cabelos anelados,

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