Rótulo da cerveja Abolicionista
Há exatamente um século, em 1900, Joaquim Nabuco escreveu a frase que hoje você canta, “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Qual é hoje o grande traço dessa herança na vida brasileira? O mais evidente é a favelização das grandes cidades e a estatística vergonhosa e escandalosa da predominância de negros entre os que vivem na situação de favelado. Isso é o resultado mais imediato e mais evidente. Mas há outros, muito mais sutis. Em O Abolicionismo, Joaquim Nabuco já registra esse fenômeno no nascedouro, ao dizer que estava se formando uma aglomeração de pessoas jogadas perto das cidades. Você uma vez escreveu que essa mistura de raças no Brasil não era garantia “nem de degradação nem de utopia genética”. Se você fosse procurar uma má herança dessa mistura, você citaria o quê? E a boa herança, qual foi? 8 Continente Multicultural
CONTEÚDO
Eu estou muito impregnado de Joaquim Nabuco. Já estou quase virando um pernambucano: é uma paixão. A maior honra hoje em dia é que minha casa, no Rio, fica pertinho da saída da rua Joaquim Nabuco. Fico honradíssimo. Eu estou tão embebido do pensamento de Joaquim Nabuco que quando ouço uma pergunta como essa me lembro do que ele disse ainda na campanha do abolicionismo – uma visão diferente da minha. É difícil citar, porque é uma questão complexa, mas ele via uma coisa muito má na mistura de uma raça que estava num estágio atrasado com uma raça que, por estar em estágio mais adiantado de civilização, agia brutalmente. A combinação da submissão dos negros com a brutalidade dos brancos era alguma coisa que só poderia criar uma formação nacional débil e má. Mas Joaquim Nabuco diz coisas lindas, como, por exemplo, que grande parte da atitude servil do negro apresentava uma superioridade humana e moral que chegava às raias do sublime. Por essa razão, ele diz que, em muitos casos, tinha saudade dos escravos – um sentimento ambíguo. Joaquim Nabuco viu exemplos de abnegação, entrega, despojamento e ausência de egoísmo em escravos que chegavam à raia da santidade. Isso poderia vir a compensar o que havia de brutal na atitude do senhor. Para ele, uma nação fundada nessa relação tem todas as probabilidades de não funcionar bem e ter um futuro sombrio. Há um momento em que ele cita um pensador inglês que disse que os negros nos Estados Unidos nunca chegariam a uma verdadeira felicidade. Mas ele via uma grande possibilidade de felicidade para os negros do Brasil, no futuro, porque aqui não havia aquela separação. Naturalmente, não é o que a realidade de hoje confirma. Não podemos de forma alguma dizer que esta é a nossa realidade. Em todo caso, os escravagistas do sul dos Estados Unidos mantinham a nitidez da superioridade que justificava a escravização da raça negra. Nem os escravos americanos nem os seus filhos podiam ter participação na cidadania. Não podiam nem pleitear igualdade. Depois da abolição americana, era essa a posição dos racistas do Sul. Aqui no
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Conversa franca
Capa: foto de Caetano Veloso por Eduardo Knapp / Folha Imagem
A formação de um pernambucano Caetano Veloso canta Joaquim Nabuco em seu novo disco, Noites do Norte, e põe o jornalismo cultural na berlinda
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Século XXI
Marco zero
Carnaval de destruição
O Brasil dos paradoxos
A concepção neoliberal da cultura representa a combinação de manipulação histórica com um neovandalismo cínico
A difícil tarefa de se viver da poesia, num país que não lê e que possui mais editoras que livrarias
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Mil palavras Filhos de deuses Ensaio fotográfico revela o mundo dos índios ticunas, como parte de um projeto sobre fé e religiosidade na América Latina
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Entremez O maestro armorial REPRODUÇÃO
RE
PR
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por a adoção de medidas de reparação histórica aos negros. O vice-presidente da República, um homem do PFL – um partido de centro-direita ou considerado no espectro político brasileiro como estando à direita – escreveu um artigo em que diz não tudo o que deve ser dito, mas o que uma autoridade como ele na melhor das hipóteses diria. O artigo é muito bom! Reputo de grande valor histórico. Não tenho lido por parte de políticos de esquerda textos sobre o mesmo assunto tão nítidos e tão corretos. Agora, vão dizer: “Olhem o Caetano Veloso com o PSDB, Fernando Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, ele está em cima do muro...” Mas ninguém pode medir se artista é direita, esquerda ou centro. Não pode julgar um artista como se o que ele faz devesse ser pesado a partir dessas categorias! Dizer que um artista está em cima do muro é uma coisa estúpida. Porque necessariamente o artista deve pairar muito acima do muro! A verdade é essa! O jeito de Baden Powell tocar violão era direita ou esquerda? Gostaria que alguém me dissesse. Eu acho chato querer vincular.
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Lição de arte
História
Gil Vicente
Especial
Novos tempos de flamengos As conquistas recentes dos pesquisadores sobre a presença neerlandesa no Brasil em 24 páginas de artigos e reportagens
A música de Antônio Madureira acima da camisa-de-força do movimento liderado por Ariano Suassuna
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O pintor pernambucano fala de sua obra sombria e inquieta, que serviu de motivação aos poemas da gaúcha Beatriz Viégas-Faria
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FLÁVIO LAMENHA
Comportamento Brazilian way of life Escritor norte-americano ridiculariza o uso da língua inglesa no Brasil como acessório de moda e afirmação de status
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Sabores pernambucanos
Últimas Palavras
Lingüiça de pegar judeu
Manhãs de esperança
A história do cozido e os ingredientes de uma receita que já serviu até aos propósitos da Inquisição
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Uma saudação ao alvorecer do milênio, com a certeza de um tempo de renovação, liberdade e juventude
95 Continente Multicultural 1
REPRODUÇÃO
Expediente Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly, Rivaldo Paiva Gerente Executivo Lairton Cruz Editor Mário Hélio Colaboradores desta edição Agnaldo Farias, Alberto da Cunha Melo, Anco Márcio Tenório Vieira, Evaldo Cabral de Mello, Geneton Moraes Neto, Gustavo Borges, Lodewijk Hulsman, Marcos Galindo, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Mascaro, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Patrícia Alves Dias, Patrick Bogner, Roger MacBride Allen, Ronaldo Correia de Brito
Cartas Um exemplar da revista Continente Multicultural caiu em minhas mãos. Ainda não parei para ler tudo, mas irei conferir direitinho. Gostaria de parabenizar pelo trabalho competente e criativo. Taciana Antunes, Recife – PE O que vi da revista foi suficiente para constatar que ela supera as forças pequenas do meio e tem qualidade nacional. Pena que a difusão seja precária. Eu mesmo descobri por mero acaso. No mais, desejo que a revista vingue e sobreviva por muitos e muitos meses. Falar de anos seria otimismo disparatado. Fernando Mota Lima, Recife – PE
Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Elizabete Correia, Emmanoel Larré, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Geraldo Sant’Ana, Mauro Lopes, Roberto Bandeira, Silvio Mafra e Zenival Assistente de Produção Alexandre Bandeira Editoração Eletrônica André Fellows Ilustração Lin Arte Luiz Arrais Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE CEP 50100-140 Circulação e assinaturas Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 fone/fax: (81) 3222.4130 e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095
2 Continente Multicultural
Num dos principais centros culturais do país, onde o teatro tem grandes contribuições e certa solidez histórica, é incompreensível a ausência desta expressão artística no conteúdo da revista. Roberto Carlos Rangel Costa, Recife – PE Daqui do meu canto, no ermo do Planalto, quero desejar sucesso, vida longa e vitórias e mais vitórias para todos os que fazem Continente Multicultural. Florian Madruga, Brasília – DF Foi com grande alegria que li Continente, revista que não poderia ter nome mais adequado, especialmente por seu caráter eclético, cosmopolita e que, confirmando a ótima produção pernambucana, deverá ter o mesmo sucesso do Suplemento Cultural do Diário Oficial. Destaque para a entrevista com o poeta Ferreira Gullar e para a crônica de José Cláudio. Parabéns à CEPE e longa vida à Continente, um oásis de boa e necessária leitura e que em nada fica a dever às publicações do mesmo gênero do Sudeste do país. Micheliny Verunschk, Recife – PE Li e reli muitas vezes. Achei fantástica. Lêda Rivas, Recife – PE
não devemos perder – ainda que aprendamos a respeitar os sinais de trânsito! Eduardo Giannetti – um sujeito que admiro imensamente, adoro o jeito de ele pensar desde que li o livro que ele escreveu sobre economia – me perguntou uma vez se eu achava que o Brasil poderia passar a ser organizado, nesse sentido de parar no sinal de trânsito. Não vejo necessariamente uma contradição insolúvel. Tenho sentimentos ambíguos semelhantes aos que encontrei em Joaquim Nabuco com relação à escravidão. Talvez o desrespeito às leis de trânsito venha de muita coisa que a escravidão nos deixou. O sujeito que, por possuir um automóvel, se julga no direito de fazer o que quer que seja – e fura o sinal vermelho – se acostumou a uma sociedade de senhores e escravos, não a uma sociedade de cidadãos que devem se respeitar em pé de igualdade. A repressão se mostra tímida diante do proprietário do automóvel, mas se mostra violenta diante dos despossuídos. Isso é parte da formação do Brasil – uma vergonha, uma coisa tétrica; mas, algo em tudo isso é precioso, é bonito, leva a essa sensualidade do modo de ser do brasileiro na rua e a essa doçura no trato, uma série de coisas bonitas que o Brasil não deve perder. O modo de você ver as pessoas na rua leva o Brasil a estar sempre em risco de se tornar uma espécie de paraíso do turismo sexual – um sintoma do legado da escravidão, porque é uso do corpo do outro por quem pode usar. Mas o país que corre o risco de ser um ambiente de turismo sexual tem, em princípio, algo de precioso e maravilhoso – que não deve ser destruído por um moralismo que venha a fazer uma assepsia da vida cotidiana que nos livrasse do perigo de ver as nossas meninas, os nossos meninos prostituídos por estrangeiros. O risco que nós corremos, sob muitos aspectos, é maravilhoso. Não havendo este reconhecimento, essa limpeza não interessa. Então é nessa vertente de ambigüidades de julgamento moral que eu me identifiquei muito profundamente com esse trecho de Joaquim Nabuco sobre a escravidão. Mas admiro também imensamente todo o resto – que é mais racional e não ambíguo.
Joaquim Nabuco em 1876, nomeado adido de primeira classe junto à Legação do Brasil, em Washington
queixa deve ser feita contra elas; todas as exigências devem ser feitas a elas; quase nenhuma responsabilidade resta para o cidadão. É essa vontade louca de cada brasileiro se tornar um funcionário público, uma estrutura que leva a coisas que me indignam. Sou, por exemplo, um obsessivo pela obediência às leis do trânsito. Sempre me pareceu absolutamente inaceitável que as pessoas no Brasil não considerem o sinal de trânsito um sinal nítido e simples, uma lei de convivência social paradigmática de todas as outras leis de convivência social. Mas vejo também a linguagem corporal, extremamente sensual e bonita dos brasileiros nas ruas. Estrangeiros – que às vezes trago ao Brasil – ficam fascinados com esse jeito de ser e de andar na rua dos brasileiros – que transmite uma impressão de felicidade física. O diretor do museu Guggenheim, que veio ao Brasil para escolher a cidade onde vão instalar uma filial do museu, disse, depois de um dia: “Quero morar aqui!” Pelo modo de as pessoas se moverem! Isso me parece misteriosamente vinculado à dificuldade brasileira de entender o asO que é que impressionou você no artigo que pecto abstrato de leis tão simples quanto as de trânsito. Antes, muito antes de ler o que Joaquim Na- o vice-ppresidente Marco Maciel escreveu sobre o buco escreveu sobre a escravidão, eu pensava as- movimento negro no Brasil? sim. Eu manterei, sempre, minha posição pública Eu li o artigo de Marco Maciel no Dia Nacontra o desrespeito às leis do trânsito, mas, intima- cional da Consciência Negra. Achei de grande immente, olho para esse fenômeno com amor e ternu- portância, porque é um artigo que, além de correto, ra. Vejo que é parte de alguma coisa preciosa que não teve pudores de ir nos pontos essenciais, ao pro-
Continente Multicultural 7
Capa do novo CD de Caetano Veloso, Noites do Norte, inspirado no pensamento de Joaquim Nabuco
Holandeses
REPRODUÇÃO
Por que o tema da raça brasileira aparece tão fortemente em suas últimas músicas? O que é que provocou o interesse por esse tema agora? Interesso-me por esse assunto desde menino. Não parei de me interessar. Mas quando eu ia começar a fazer esse novo disco, eu só pensava nos sons: queria fazer experimentações com o modo de gravar a voz com percussão. Eu nem sabia que canções eu iria cantar ou compor. Mas, assim que recebi de presente o livro Minha Formação, fiquei maravilhado com Joaquim Nabuco. Desde o início, fiquei impressionado com a amplidão da visão e o estilo de Joaquim Nabuco. O que me impressionou também foi o modo de Joaquim Nabuco ver a política internacional no século 19, a situação na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. O comentário que ele faz dos Estados Unidos dá uma impressão de uma lucidez total, uma total ausência de provincianismo. É uma voz de uma verdadeira elite brasileira assim como a gente gostaria de poder sonhar. E, no entanto, a gente tem! Fiquei maravilhado com Joaquim Nabuco antes de chegar a essa questão da raça. Quando Joaquim Nabuco entra nas lembranças do abolicionismo – ele que foi um dos líderes mais notáveis da campanha da abolição –, faz uma reflexão sobre uma lembrança de infância, quando o assunto da escravidão apareceu para ele como um problema a ser resolvido. Fiquei apaixonado por um texto magnífico que começa dizendo: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. A frase entra com grande impacto. O que vem depois vai aprofundando o problema para um lado que a gente não espera. Eu achei que ali estava um texto de densidade e beleza, uma expressão profunda do Brasil. Eu disse assim: “Vou imprimir este texto de Joaquim Nabuco na primeira página do libreto do meu novo disco”. Não pensei, num primeiro momento, em musicar aquelas palavras de Joaquim Nabuco. Terminei musicando, coisa que me parecia muito difícil, porque era um texto em prosa, reflexivo, mas com um certo tom lírico. O assunto entrou no meu disco com mais peso do que eu imaginava.
Eu já estava muito fascinado por ele antes de ele confessar essa sutileza do espírito individual diante da questão. É um momento complexo e ambíguo do Minha Formação. Talvez seja o momento mais intimamente confessional de todo o livro. Depois dessa confissão é que vem o trecho que me levou a querer musicar. O assunto terminou dando o título a meu disco – que se chama Noites do Norte. Mas essa confissão permitiu que ele retomasse a idéia de que a escravidão tinha organizado – ou desorganizado! – a vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito esforço para desfazer o trabalho da escravidão. É um bordão do pensamento de Joaquim Nabuco, que, neste momento de Minha Formação, aparece sob a luz do reconhecimento de um sentimento contraditório: aquele que mais lutou pela abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo que é o Brasil. Quando vi que, logo em seguida, ele expande esse sentimento para um retrato abrangente do Brasil, eu disse: “É mais do que poesia!”
Que outro horror brasileiro, além da escravidão, seria capaz de despertar sentimentos ambíguos em você? Eu estou embebido dessa visão do Joaquim Nabuco. Venho lendo e relendo Minha Formação. Já Joaquim Nabuco confessou, em Minha For- reli – muito! – O Abolicionismo. Assim como fez Joamação, que tinha um sentimento contraditório: ele, quim Nabuco, acho difícil, neste momento, não atrique tinha lutado com todas as forças contra a es- buir todos os horrores nacionais à escravidão – que cravidão, confessou que sentia o que ele chamava ele descreve como tendo formado o Brasil. Joaquim Nabuco atribuía à escravidão a esde “singular nostalgia” – a saudade do escravo. O que deixou você fascinado com Joaquim Nabuco trutura do pensamento do homem brasileiro como foi o sentimento ambíguo que ele teve em relação a ser social: é a sensação paralisadora que o brasileiro tem de que tudo se deve às autoridades oficiais; toda esse tema?
6 Continente Multicultural
A
e Nabuco
história dos feitos há muito tempo praticados pelos holandeses no Brasil tem agora um novo desdobramento. O historiador Marcos Galindo, professor da Universidade Federal de Pernambuco, e outros mestres neerlandeses, em Amsterdam, Leiden e Haia, vêm escrevendo em silêncio novos capítulos daquele momento do período colonial que até hoje curiosidade e fascínio provoca no país. Diversos frutos desse trabalho incansável de Galindo já estão sendo colhidos. A primeira vitória sua é a publicação em holandês do clássico Tempo dos Flamengos, de José Antonio Gonsalves de Mello. Na lista das publicações a aparecer neste ano ainda estão os estudos de Evaldo Cabral de Mello, que brinda os leitores desta revista com um estudo inédito sobre a vida de Maurício de Nassau anterior à sua chegada ao Brasil. A presença “flamenga” no Brasil resultou numa fantasia coletiva de prosperidade a que não escapou sequer uma consciência lúcida como Joaquim Nabuco, citado no livro Olinda Restaurada, de Evaldo Cabral de Mello: “Eu imagino muitas vezes o que teria sido a sorte deste país se não fosse expulsa aquela raça ousada que no século 16 trouxe consigo os dois princípios a que ela deve a sua independência, dois princípios hoje tão desprezados pelo governo liberal, a liberdade de consciência e a liberdade de comércio (...) esses dois princípios, a raça holandesa os trouxe para esta terra no século 17 quando eles não floresciam, por assim dizer, ainda neste continente; foi na costa de Pernambuco, que essas duas liberdades foram primeiro acesas e que primeiro elas alumiaram, como as luzes cambiantes de um grande farol, os mares da América.” Mas, Nabuco, depois, mudaria de opinião, como informa o historiador, e citaria o Brasil como uma das grandes obras lusitanas. Muitos no país, no entanto, ainda mantêm essa fantasia nostálgica de um futuro pretérito, amparando-se, sobretudo, no período nassoviano, de criação por assim dizer do Recife, que Nabuco considerava ter “um passado que a coroa como uma auréola e que brilha ao luar sobre as suas pontes e as suas torres como a alma de uma nacionalidade morta”. Nassau e Nabuco são duas das personagens mais carismáticas da história do Brasil, inegavelmente. O mais novo fascinado pelo abolicionista pernambucano é o cantor e compositor Caetano Veloso. Ao receber de presente do editor José Mário Pereira o livro Minha Formação, da Topbooks, tal foi o impacto da leitura da obra que ele se sentiu “quase pernambucano”, como revela em longa entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, que publicamos na íntegra.
Caetano Veloso, o mais baiano dos artistas baianos, anuncia, a quem interessar possa: vem se sentindo “quase” um pernambucano. Motivo: o deslumbramento que lhe causou a leitura do livro Minha Formação, escrito há um século pelo abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco. Depois de ganhar de presente um exemplar da nova edição do livro, publicado pela editora Topbooks, Caetano Veloso ficou “maravilhado” não apenas com a beleza do texto, mas também com as confissões feitas pelo abolicionista. O homem que combateu com todas as forças a escravidão escreveu, num belo texto confessional, que sentia saudade dos escravos. O impacto da descoberta de Joaquim Nabuco foi imediato sobre o mais inquieto dos compositores brasileiros de primeiro time. Caetano Veloso extraiu de uma passagem de Joaquim Nabuco o título do disco que
REPRODUÇÃO
FOLHA IMAGEM/EDUARDO KNAPP
CONVERSA FRANCA
Caetano Joaquim
Veloso Nabuco lançou em dezembro – Noites do Norte. Resolveu enfrentar o desafio de musicar um texto em prosa de Joaquim Nabuco sobre a escravidão – devidamente incluído no disco. Como se não bastasse, ficou bem impressionado com o artigo que o vice-presidente da República, o pernambucano Marco Maciel, escreveu na Folha de S. Paulo no Dia Nacional da Consciência Negra. Caetano Veloso elogia a firmeza do artigo em defesa do negro. Por fim, proclama que o melhor grupo em atividade na música brasileira vem do Recife: a banda Nação Zumbi. Neste depoimento – que Continente Multicultural publica na íntegra com exclusividade – Caetano Veloso explica com detalhes a origem da paixão intelectual por Joaquim Nabuco. Trechos desta entrevista exclusiva apareceram no site de Caetano Veloso na Internet. Agora, pela primeira vez, o depoimento é publicado sem cortes. Geneton Moraes Neto
Caetano Veloso, o mais baiano dos artistas baianos, anuncia, a quem interessar possa: vem se sentindo “quase” um pernambucano. Motivo: o deslumbramento que lhe causou a leitura do livro Minha Formação, escrito há um século pelo abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco. Depois de ganhar de presente um exemplar da nova edição do livro, publicado pela editora Topbooks, Caetano Veloso ficou “maravilhado” não apenas com a beleza do texto, mas também com as confissões feitas pelo abolicionista. O homem que combateu com todas as forças a escravidão escreveu, num belo texto confessional, que sentia saudade dos escravos. O impacto da descoberta de Joaquim Nabuco foi imediato sobre o mais inquieto dos compositores brasileiros de primeiro time. Caetano Veloso extraiu de uma passagem de Joaquim Nabuco o título do disco que
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FOLHA IMAGEM/EDUARDO KNAPP
CONVERSA FRANCA
Caetano Joaquim
Veloso Nabuco lançou em dezembro – Noites do Norte. Resolveu enfrentar o desafio de musicar um texto em prosa de Joaquim Nabuco sobre a escravidão – devidamente incluído no disco. Como se não bastasse, ficou bem impressionado com o artigo que o vice-presidente da República, o pernambucano Marco Maciel, escreveu na Folha de S. Paulo no Dia Nacional da Consciência Negra. Caetano Veloso elogia a firmeza do artigo em defesa do negro. Por fim, proclama que o melhor grupo em atividade na música brasileira vem do Recife: a banda Nação Zumbi. Neste depoimento – que Continente Multicultural publica na íntegra com exclusividade – Caetano Veloso explica com detalhes a origem da paixão intelectual por Joaquim Nabuco. Trechos desta entrevista exclusiva apareceram no site de Caetano Veloso na Internet. Agora, pela primeira vez, o depoimento é publicado sem cortes. Geneton Moraes Neto
Capa do novo CD de Caetano Veloso, Noites do Norte, inspirado no pensamento de Joaquim Nabuco
Holandeses
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Por que o tema da raça brasileira aparece tão fortemente em suas últimas músicas? O que é que provocou o interesse por esse tema agora? Interesso-me por esse assunto desde menino. Não parei de me interessar. Mas quando eu ia começar a fazer esse novo disco, eu só pensava nos sons: queria fazer experimentações com o modo de gravar a voz com percussão. Eu nem sabia que canções eu iria cantar ou compor. Mas, assim que recebi de presente o livro Minha Formação, fiquei maravilhado com Joaquim Nabuco. Desde o início, fiquei impressionado com a amplidão da visão e o estilo de Joaquim Nabuco. O que me impressionou também foi o modo de Joaquim Nabuco ver a política internacional no século 19, a situação na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. O comentário que ele faz dos Estados Unidos dá uma impressão de uma lucidez total, uma total ausência de provincianismo. É uma voz de uma verdadeira elite brasileira assim como a gente gostaria de poder sonhar. E, no entanto, a gente tem! Fiquei maravilhado com Joaquim Nabuco antes de chegar a essa questão da raça. Quando Joaquim Nabuco entra nas lembranças do abolicionismo – ele que foi um dos líderes mais notáveis da campanha da abolição –, faz uma reflexão sobre uma lembrança de infância, quando o assunto da escravidão apareceu para ele como um problema a ser resolvido. Fiquei apaixonado por um texto magnífico que começa dizendo: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. A frase entra com grande impacto. O que vem depois vai aprofundando o problema para um lado que a gente não espera. Eu achei que ali estava um texto de densidade e beleza, uma expressão profunda do Brasil. Eu disse assim: “Vou imprimir este texto de Joaquim Nabuco na primeira página do libreto do meu novo disco”. Não pensei, num primeiro momento, em musicar aquelas palavras de Joaquim Nabuco. Terminei musicando, coisa que me parecia muito difícil, porque era um texto em prosa, reflexivo, mas com um certo tom lírico. O assunto entrou no meu disco com mais peso do que eu imaginava.
Eu já estava muito fascinado por ele antes de ele confessar essa sutileza do espírito individual diante da questão. É um momento complexo e ambíguo do Minha Formação. Talvez seja o momento mais intimamente confessional de todo o livro. Depois dessa confissão é que vem o trecho que me levou a querer musicar. O assunto terminou dando o título a meu disco – que se chama Noites do Norte. Mas essa confissão permitiu que ele retomasse a idéia de que a escravidão tinha organizado – ou desorganizado! – a vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito esforço para desfazer o trabalho da escravidão. É um bordão do pensamento de Joaquim Nabuco, que, neste momento de Minha Formação, aparece sob a luz do reconhecimento de um sentimento contraditório: aquele que mais lutou pela abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo que é o Brasil. Quando vi que, logo em seguida, ele expande esse sentimento para um retrato abrangente do Brasil, eu disse: “É mais do que poesia!”
Que outro horror brasileiro, além da escravidão, seria capaz de despertar sentimentos ambíguos em você? Eu estou embebido dessa visão do Joaquim Nabuco. Venho lendo e relendo Minha Formação. Já Joaquim Nabuco confessou, em Minha For- reli – muito! – O Abolicionismo. Assim como fez Joamação, que tinha um sentimento contraditório: ele, quim Nabuco, acho difícil, neste momento, não atrique tinha lutado com todas as forças contra a es- buir todos os horrores nacionais à escravidão – que cravidão, confessou que sentia o que ele chamava ele descreve como tendo formado o Brasil. Joaquim Nabuco atribuía à escravidão a esde “singular nostalgia” – a saudade do escravo. O que deixou você fascinado com Joaquim Nabuco trutura do pensamento do homem brasileiro como foi o sentimento ambíguo que ele teve em relação a ser social: é a sensação paralisadora que o brasileiro tem de que tudo se deve às autoridades oficiais; toda esse tema?
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A
e Nabuco
história dos feitos há muito tempo praticados pelos holandeses no Brasil tem agora um novo desdobramento. O historiador Marcos Galindo, professor da Universidade Federal de Pernambuco, e outros mestres neerlandeses, em Amsterdam, Leiden e Haia, vêm escrevendo em silêncio novos capítulos daquele momento do período colonial que até hoje curiosidade e fascínio provoca no país. Diversos frutos desse trabalho incansável de Galindo já estão sendo colhidos. A primeira vitória sua é a publicação em holandês do clássico Tempo dos Flamengos, de José Antonio Gonsalves de Mello. Na lista das publicações a aparecer neste ano ainda estão os estudos de Evaldo Cabral de Mello, que brinda os leitores desta revista com um estudo inédito sobre a vida de Maurício de Nassau anterior à sua chegada ao Brasil. A presença “flamenga” no Brasil resultou numa fantasia coletiva de prosperidade a que não escapou sequer uma consciência lúcida como Joaquim Nabuco, citado no livro Olinda Restaurada, de Evaldo Cabral de Mello: “Eu imagino muitas vezes o que teria sido a sorte deste país se não fosse expulsa aquela raça ousada que no século 16 trouxe consigo os dois princípios a que ela deve a sua independência, dois princípios hoje tão desprezados pelo governo liberal, a liberdade de consciência e a liberdade de comércio (...) esses dois princípios, a raça holandesa os trouxe para esta terra no século 17 quando eles não floresciam, por assim dizer, ainda neste continente; foi na costa de Pernambuco, que essas duas liberdades foram primeiro acesas e que primeiro elas alumiaram, como as luzes cambiantes de um grande farol, os mares da América.” Mas, Nabuco, depois, mudaria de opinião, como informa o historiador, e citaria o Brasil como uma das grandes obras lusitanas. Muitos no país, no entanto, ainda mantêm essa fantasia nostálgica de um futuro pretérito, amparando-se, sobretudo, no período nassoviano, de criação por assim dizer do Recife, que Nabuco considerava ter “um passado que a coroa como uma auréola e que brilha ao luar sobre as suas pontes e as suas torres como a alma de uma nacionalidade morta”. Nassau e Nabuco são duas das personagens mais carismáticas da história do Brasil, inegavelmente. O mais novo fascinado pelo abolicionista pernambucano é o cantor e compositor Caetano Veloso. Ao receber de presente do editor José Mário Pereira o livro Minha Formação, da Topbooks, tal foi o impacto da leitura da obra que ele se sentiu “quase pernambucano”, como revela em longa entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, que publicamos na íntegra.
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Expediente Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly, Rivaldo Paiva Gerente Executivo Lairton Cruz Editor Mário Hélio Colaboradores desta edição Agnaldo Farias, Alberto da Cunha Melo, Anco Márcio Tenório Vieira, Evaldo Cabral de Mello, Geneton Moraes Neto, Gustavo Borges, Lodewijk Hulsman, Marcos Galindo, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Mascaro, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Patrícia Alves Dias, Patrick Bogner, Roger MacBride Allen, Ronaldo Correia de Brito
Cartas Um exemplar da revista Continente Multicultural caiu em minhas mãos. Ainda não parei para ler tudo, mas irei conferir direitinho. Gostaria de parabenizar pelo trabalho competente e criativo. Taciana Antunes, Recife – PE O que vi da revista foi suficiente para constatar que ela supera as forças pequenas do meio e tem qualidade nacional. Pena que a difusão seja precária. Eu mesmo descobri por mero acaso. No mais, desejo que a revista vingue e sobreviva por muitos e muitos meses. Falar de anos seria otimismo disparatado. Fernando Mota Lima, Recife – PE
Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Elizabete Correia, Emmanoel Larré, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Geraldo Sant’Ana, Mauro Lopes, Roberto Bandeira, Silvio Mafra e Zenival Assistente de Produção Alexandre Bandeira Editoração Eletrônica André Fellows Ilustração Lin Arte Luiz Arrais Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE CEP 50100-140 Circulação e assinaturas Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 fone/fax: (81) 3222.4130 e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095
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Num dos principais centros culturais do país, onde o teatro tem grandes contribuições e certa solidez histórica, é incompreensível a ausência desta expressão artística no conteúdo da revista. Roberto Carlos Rangel Costa, Recife – PE Daqui do meu canto, no ermo do Planalto, quero desejar sucesso, vida longa e vitórias e mais vitórias para todos os que fazem Continente Multicultural. Florian Madruga, Brasília – DF Foi com grande alegria que li Continente, revista que não poderia ter nome mais adequado, especialmente por seu caráter eclético, cosmopolita e que, confirmando a ótima produção pernambucana, deverá ter o mesmo sucesso do Suplemento Cultural do Diário Oficial. Destaque para a entrevista com o poeta Ferreira Gullar e para a crônica de José Cláudio. Parabéns à CEPE e longa vida à Continente, um oásis de boa e necessária leitura e que em nada fica a dever às publicações do mesmo gênero do Sudeste do país. Micheliny Verunschk, Recife – PE Li e reli muitas vezes. Achei fantástica. Lêda Rivas, Recife – PE
não devemos perder – ainda que aprendamos a respeitar os sinais de trânsito! Eduardo Giannetti – um sujeito que admiro imensamente, adoro o jeito de ele pensar desde que li o livro que ele escreveu sobre economia – me perguntou uma vez se eu achava que o Brasil poderia passar a ser organizado, nesse sentido de parar no sinal de trânsito. Não vejo necessariamente uma contradição insolúvel. Tenho sentimentos ambíguos semelhantes aos que encontrei em Joaquim Nabuco com relação à escravidão. Talvez o desrespeito às leis de trânsito venha de muita coisa que a escravidão nos deixou. O sujeito que, por possuir um automóvel, se julga no direito de fazer o que quer que seja – e fura o sinal vermelho – se acostumou a uma sociedade de senhores e escravos, não a uma sociedade de cidadãos que devem se respeitar em pé de igualdade. A repressão se mostra tímida diante do proprietário do automóvel, mas se mostra violenta diante dos despossuídos. Isso é parte da formação do Brasil – uma vergonha, uma coisa tétrica; mas, algo em tudo isso é precioso, é bonito, leva a essa sensualidade do modo de ser do brasileiro na rua e a essa doçura no trato, uma série de coisas bonitas que o Brasil não deve perder. O modo de você ver as pessoas na rua leva o Brasil a estar sempre em risco de se tornar uma espécie de paraíso do turismo sexual – um sintoma do legado da escravidão, porque é uso do corpo do outro por quem pode usar. Mas o país que corre o risco de ser um ambiente de turismo sexual tem, em princípio, algo de precioso e maravilhoso – que não deve ser destruído por um moralismo que venha a fazer uma assepsia da vida cotidiana que nos livrasse do perigo de ver as nossas meninas, os nossos meninos prostituídos por estrangeiros. O risco que nós corremos, sob muitos aspectos, é maravilhoso. Não havendo este reconhecimento, essa limpeza não interessa. Então é nessa vertente de ambigüidades de julgamento moral que eu me identifiquei muito profundamente com esse trecho de Joaquim Nabuco sobre a escravidão. Mas admiro também imensamente todo o resto – que é mais racional e não ambíguo.
Joaquim Nabuco em 1876, nomeado adido de primeira classe junto à Legação do Brasil, em Washington
queixa deve ser feita contra elas; todas as exigências devem ser feitas a elas; quase nenhuma responsabilidade resta para o cidadão. É essa vontade louca de cada brasileiro se tornar um funcionário público, uma estrutura que leva a coisas que me indignam. Sou, por exemplo, um obsessivo pela obediência às leis do trânsito. Sempre me pareceu absolutamente inaceitável que as pessoas no Brasil não considerem o sinal de trânsito um sinal nítido e simples, uma lei de convivência social paradigmática de todas as outras leis de convivência social. Mas vejo também a linguagem corporal, extremamente sensual e bonita dos brasileiros nas ruas. Estrangeiros – que às vezes trago ao Brasil – ficam fascinados com esse jeito de ser e de andar na rua dos brasileiros – que transmite uma impressão de felicidade física. O diretor do museu Guggenheim, que veio ao Brasil para escolher a cidade onde vão instalar uma filial do museu, disse, depois de um dia: “Quero morar aqui!” Pelo modo de as pessoas se moverem! Isso me parece misteriosamente vinculado à dificuldade brasileira de entender o asO que é que impressionou você no artigo que pecto abstrato de leis tão simples quanto as de trânsito. Antes, muito antes de ler o que Joaquim Na- o vice-ppresidente Marco Maciel escreveu sobre o buco escreveu sobre a escravidão, eu pensava as- movimento negro no Brasil? sim. Eu manterei, sempre, minha posição pública Eu li o artigo de Marco Maciel no Dia Nacontra o desrespeito às leis do trânsito, mas, intima- cional da Consciência Negra. Achei de grande immente, olho para esse fenômeno com amor e ternu- portância, porque é um artigo que, além de correto, ra. Vejo que é parte de alguma coisa preciosa que não teve pudores de ir nos pontos essenciais, ao pro-
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Rótulo da cerveja Abolicionista
Há exatamente um século, em 1900, Joaquim Nabuco escreveu a frase que hoje você canta, “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Qual é hoje o grande traço dessa herança na vida brasileira? O mais evidente é a favelização das grandes cidades e a estatística vergonhosa e escandalosa da predominância de negros entre os que vivem na situação de favelado. Isso é o resultado mais imediato e mais evidente. Mas há outros, muito mais sutis. Em O Abolicionismo, Joaquim Nabuco já registra esse fenômeno no nascedouro, ao dizer que estava se formando uma aglomeração de pessoas jogadas perto das cidades. Você uma vez escreveu que essa mistura de raças no Brasil não era garantia “nem de degradação nem de utopia genética”. Se você fosse procurar uma má herança dessa mistura, você citaria o quê? E a boa herança, qual foi? 8 Continente Multicultural
CONTEÚDO
Eu estou muito impregnado de Joaquim Nabuco. Já estou quase virando um pernambucano: é uma paixão. A maior honra hoje em dia é que minha casa, no Rio, fica pertinho da saída da rua Joaquim Nabuco. Fico honradíssimo. Eu estou tão embebido do pensamento de Joaquim Nabuco que quando ouço uma pergunta como essa me lembro do que ele disse ainda na campanha do abolicionismo – uma visão diferente da minha. É difícil citar, porque é uma questão complexa, mas ele via uma coisa muito má na mistura de uma raça que estava num estágio atrasado com uma raça que, por estar em estágio mais adiantado de civilização, agia brutalmente. A combinação da submissão dos negros com a brutalidade dos brancos era alguma coisa que só poderia criar uma formação nacional débil e má. Mas Joaquim Nabuco diz coisas lindas, como, por exemplo, que grande parte da atitude servil do negro apresentava uma superioridade humana e moral que chegava às raias do sublime. Por essa razão, ele diz que, em muitos casos, tinha saudade dos escravos – um sentimento ambíguo. Joaquim Nabuco viu exemplos de abnegação, entrega, despojamento e ausência de egoísmo em escravos que chegavam à raia da santidade. Isso poderia vir a compensar o que havia de brutal na atitude do senhor. Para ele, uma nação fundada nessa relação tem todas as probabilidades de não funcionar bem e ter um futuro sombrio. Há um momento em que ele cita um pensador inglês que disse que os negros nos Estados Unidos nunca chegariam a uma verdadeira felicidade. Mas ele via uma grande possibilidade de felicidade para os negros do Brasil, no futuro, porque aqui não havia aquela separação. Naturalmente, não é o que a realidade de hoje confirma. Não podemos de forma alguma dizer que esta é a nossa realidade. Em todo caso, os escravagistas do sul dos Estados Unidos mantinham a nitidez da superioridade que justificava a escravização da raça negra. Nem os escravos americanos nem os seus filhos podiam ter participação na cidadania. Não podiam nem pleitear igualdade. Depois da abolição americana, era essa a posição dos racistas do Sul. Aqui no
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Conversa franca
Capa: foto de Caetano Veloso por Eduardo Knapp / Folha Imagem
A formação de um pernambucano Caetano Veloso canta Joaquim Nabuco em seu novo disco, Noites do Norte, e põe o jornalismo cultural na berlinda
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Século XXI
Marco zero
Carnaval de destruição
O Brasil dos paradoxos
A concepção neoliberal da cultura representa a combinação de manipulação histórica com um neovandalismo cínico
A difícil tarefa de se viver da poesia, num país que não lê e que possui mais editoras que livrarias
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Mil palavras Filhos de deuses Ensaio fotográfico revela o mundo dos índios ticunas, como parte de um projeto sobre fé e religiosidade na América Latina
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Entremez O maestro armorial REPRODUÇÃO
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por a adoção de medidas de reparação histórica aos negros. O vice-presidente da República, um homem do PFL – um partido de centro-direita ou considerado no espectro político brasileiro como estando à direita – escreveu um artigo em que diz não tudo o que deve ser dito, mas o que uma autoridade como ele na melhor das hipóteses diria. O artigo é muito bom! Reputo de grande valor histórico. Não tenho lido por parte de políticos de esquerda textos sobre o mesmo assunto tão nítidos e tão corretos. Agora, vão dizer: “Olhem o Caetano Veloso com o PSDB, Fernando Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, ele está em cima do muro...” Mas ninguém pode medir se artista é direita, esquerda ou centro. Não pode julgar um artista como se o que ele faz devesse ser pesado a partir dessas categorias! Dizer que um artista está em cima do muro é uma coisa estúpida. Porque necessariamente o artista deve pairar muito acima do muro! A verdade é essa! O jeito de Baden Powell tocar violão era direita ou esquerda? Gostaria que alguém me dissesse. Eu acho chato querer vincular.
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Lição de arte
História
Gil Vicente
Especial
Novos tempos de flamengos As conquistas recentes dos pesquisadores sobre a presença neerlandesa no Brasil em 24 páginas de artigos e reportagens
A música de Antônio Madureira acima da camisa-de-força do movimento liderado por Ariano Suassuna
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O pintor pernambucano fala de sua obra sombria e inquieta, que serviu de motivação aos poemas da gaúcha Beatriz Viégas-Faria
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FLÁVIO LAMENHA
Comportamento Brazilian way of life Escritor norte-americano ridiculariza o uso da língua inglesa no Brasil como acessório de moda e afirmação de status
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Sabores pernambucanos
Últimas Palavras
Lingüiça de pegar judeu
Manhãs de esperança
A história do cozido e os ingredientes de uma receita que já serviu até aos propósitos da Inquisição
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Uma saudação ao alvorecer do milênio, com a certeza de um tempo de renovação, liberdade e juventude
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A vontade de ser americano
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qual concordo plenamente, não um meio de driblar isso. Mas é só em relação às críticas, mas muito difícil. Eu estou aqui “O que acontece é também quanto à feitura dos fazendo de uma maneira que me parece que pode mexer que se uma notícia segundos cadernos. Um sujeito pode ir fundo num articom esse quadro. Se a gente sobre um lançamento go sobre um assunto que conseguir mexer e mudar... qualquer sair antes ninguém escolheu. A gente vê As pessoas escrevem a que há uma certa reação. Mas crítica como e quando quiseem um jornal, esse negócio de sair, na prirem. Não faço entrevista com o outro não publica meira página de todos os joreles agora. A que estou fazendo agora com você pode ser lida – nada sobre o assunto! nais, o lançamento de um filme da Sharon Stone, é pobre, ou vista – na Internet por todo Se noticiar, porque não se privilegia a apremundo, ao mesmo tempo, jornoticia contra.” ciação. Ou bem você tem uma nalistas e não-jornalistas. Quem apreciação interessante sobre tiver acesso à Internet verá. Poum filme novo ou você não tem de até conferir o que os jornais publicarem. O que digo aqui pode também estimu- mesmo muito o que dizer. É fraco, num jornal, dizer lar entrevistas particulares sobre determinados que fulana ia filmar com beltrano, mas deixou de filassuntos. Ou sobre um detalhe que não foi falado. O mar na última hora... jornalista pode dizer assim: “Quero aporrinhar CaeEnsaístas conservadores, como o inglês Paul tano sobre um detalhe de que ele não falou”. A genJohnson, que escreveu um livro para dizer que a te faz, então, a entrevista. Se ninguém quiser fazer, tudo bem: não se faz, contanto que se mude a prá- arte moderna é uma porcaria, dizem que a grande tica. Eu realmente acho que é saudável e necessário praga desse final de século é o relativismo cultural: mudar. Os jornalistas também estão precisando! Nós tudo é válido, nada é ruim. Você não corre o risco estamos! Não pode um jornal sair parecendo que é o de estimular esse relativismo cultural ao criticar os críticos da predominância da chamada música corelease dos lançamentos. Para as assessorias e para quem oferece o pro- mercial no mercado? Eu olho com desconfiança esses conservadoduto – artistas, companhias de cinema, editoras, gravadoras – é como se o jornal fosse um release, como se res. Mas não gosto desse negócio de vale tudo não. a página do jornal fosse um veículo de lançamento. Por falar o que falo, compreendo que há um risco de Quando se trata de uma notícia, acho compreensível. parecer que dou força ao que eles chamam de “relatiHá notícias que todo mundo tem de dar mesmo. O vismo cultural”. Mas, na crítica que estou fazendo sujeito se dá bem quando consegue um furo de repor- aos jornalistas, não me sinto de maneira nenhuma tagem com a descoberta de uma tramóia. Mas, quan- dando força ao relativismo cultural. Pelo contrário! do se trata de um produto cultural, não é bem assim. Porque acho que o que vem acontecendo é um enfraSe sai um romance de Chico Buarque, qual é a van- quecimento da instância crítica. tagem de você sair na frente? A vantagem seria ler. O Os jornalistas se comportam como artistas leitor pensará: “Não vou deixar de comprar o Jornal do ultracomerciais. Mas se dão o direito de criticar Brasil, porque as resenhas são muito bem feitas”. Mas artistas que são, sob o ponto de vista profissional, as resenhas não podem ser muito bem feitas, porque muito mais responsáveis que eles! Os jornalistas se são feitas às pressas para sair antes. dão o direito de descartar a existência desses artistas como se eles, os artistas, fossem comerciais. O Mas você acha que pode quebrar esse vício que se vê, aí, é um relativismo inaceitável, uma através da Internet? confusão de valores que não posso aceitar! Sou É uma maneira de tentar quebrar. Pelo menos muito mais exigente! a entrevista sairá para todo mundo. Pode ser que haja O sujeito que critica não sabe redigir bem. um ritmo diferente. A gente vê que, na própria im- Mas Daniela Mercury canta afinado, ensaia bem os prensa, há esforço nesse sentido. Eu li, na revista números; Ivete Sangalo arrebenta cantando; Sandy é Bravo!, um artigo de Sérgio Augusto de Andrade uma cantora perfeita, sob o ponto de vista técnico. Eu que diz exatamente o que estou dizendo aqui. Adorei peço, pelo menos, que o sujeito que escreve na Folha ler porque ele diz com todas as letras exatamente o ou o outro que escreve no Globo redijam a frase corque eu vinha observando. Faz uma análise com a retamente. É o mínimo! Como Sandy é afinada, que
Brasil se deu algo que lá teria sido um escândalo: os negros alforriados podiam ter escravos! Podiam ser senhores. O fato de ele poder ter escravo significa que ele poderia ter o status de senhor. Joaquim NaNuma das músicas, você trata da vontade de buco dizia que a escravidão no Brasil foi muito Raul Seixas de “ser americano”. Há um século Joamais hábil, porque ela mexe em todos os interstícios da sociedade, enquanto que nos Estados Unidos, quim Nabuco tratava do problema de como nós, não. Isso dá uma possibilidade ao Brasil: se um dia brasileiros, víamos os estrangeiros. Num trecho de superar os problemas que a escravidão trouxe, o Minha Formação, ele diz que o ar lá é “mais vivo e Brasil pode realizar possibilidades que os Estados mais leve” que outros, “saturados de tradição e convencionalismo”. Os americanos estariam, segundo Unidos jamais poderão. O fato de os escravos brasileiros, uma vez Joaquim Nabuco, “inventando a vida, como se nada alforriados, poderem ser senhores significava que tivesse existido até então”. Você, que acaba de se não havia um impedimento de base racial, como transformar em discípulo de Joaquim Nabuco, tem nos Estados Unidos, para que, em princípio, pes- ou teve esse sentimento diante dos Estados Unidos? Joaquim Nabuco vai fundo também na crítisoas de qualquer cor viessem a participar da cidadania com plenitude. Joaquim Nabuco já dizia no ca à idéia de igualdade, tal como ela era vivida pelos século 19 o que muita gente pensa que só se disse americanos. Diz que os americanos viviam a ilusão de que tinham uma liberdade individual que resultava numa igualdade de cada indivíduo muito mais desenvolvida do que na Inglaterra, por exemplo. Para ele, que era anglófilo, a Inglaterra tinha uma solução que oferecia resultados melhores, porque a igualdade que se esboçava era feita com conteúdos de nobreza moral que os americanos desconheciam.
no Brasil depois dos anos 70, com o movimento negro e a influência americana: a escravidão brasileira se mostrou muito mais hábil do que no Sul dos Estados Unidos, porque pôde se perpetuar e se infiltrar por todos os meandros da sociedade brasileira, os mais sutis, inclusive. Isso não quer dizer que não haja vantagem na mistura e na confusão de hierarquia – uma característica que faz com que o movimento negro no Brasil não possa ser parecido com o dos Estados Unidos. Isso é mau e bom. É algo que os norte-americanos nunca tiveram nem puderam ter. Se nós conseguirmos crescer economicamente e superar aleijões que a escravidão deixou na nossa sociedade, temos uma matéria-prima humana que os Estados Unidos nem sequer conhecem.
Mas você tem o pensamento de que, como Joaquim Nabuco dizia, os americanos estavam reinventando a vida? Eu tenho esse pensamento. É o que a gente sente estando nos Estados Unidos – ou de longe. É o aspecto mais positivo e animador dos Estados Unidos. Interessa, porque parece um sopro de ar puro na história da Humanidade. Mas Joaquim Nabuco escreveu que os americanos, quando dizem que cada indivíduo pode ter liberdade, estão falando de norte-americanos brancos. Chineses e negros estão, na mente do americano, abaixo da condição de humanidade. Joaquim Nabuco dizia que, quando um americano olha para seus primeiros vizinhos na América Latina – o mexicano ou cubano, para não falar dos outros latino-americanos – ele faz com um desprezo nunca visto de um ente humano para outro em nenhuma outra situação. Aos olhos de Joaquim Nabuco, essa atitude desqualifica o valor espetacular da individualidade que a grande democracia americana preconizava e preconiza.
Rótulo dos Cigarros Nabuco. O abolicionista ainda teve seu rosto em rótulos dos cigarros Nabuquistas, Dr. Jm. Nabuco e Príncipes da Liberdade
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“Nenhuma das minhas idéias políticas se alterou nos Estados Unidos, mas ninguém aspira o ar americano sem achá-lo mais vivo, mais leve, mais elástico do que os outros, saturados de tradição e autoridade, de convencionalismo e cerimonial.” “...combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência – como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que a vi acabar pensei poder pedir também minha alforria, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia: a saudade do escravo...” “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país – e foi a que ele guardou; ela povoouo como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte.” “Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a na dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e eles, deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia – de que resultou a terna e reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel.” “Pela pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos... Debaixo dos meus pés estava tudo o que restava deles. Sozinho ali, invoquei todas as minhas reminiscências, chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei o ar carregado de aromas agrestes, que entretém a vegetação sobre suas covas...” “Oh, os santos pretos! Seriam eles os intercessores pela nossa infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas abençoaram com seu amor!”
Você ainda acredita incondicionalmente na idéia de que o Brasil vai ser – ou é – um país original? Acredito – mas não incondicionalmente. Se os países são originais, o Brasil é muito original! O que aconteceu na Argentina dá a ela características que fazem do país algo diferente do Chile. Eu, sinceramente, quando estava no Chile, senti uma saudade horrível da Argentina. Parecia que a Argentina era a Bahia! O Chile era tão formal, trazia uma mistura tão forte de europeísmo com neo-yuppismo americano que eu ficava com saudade da Argentina e do Uruguai, sem falar no Brasil. O fato de um país desse tamanho falar português e ter um autor como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil um grande segredo que nós guardamos e queremos revelar. É uma experiência única! Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça. É tão grande o acúmulo de desvantagens, num país ao mesmo tempo tão interessante, que a gente é forçado a ler isso como uma bênção. Isso não é uma questão apenas de eu querer me salvar, já que eu nasci no Brasil e sou mulato do interior da Bahia, filho de gente do povo. Minhas duas avós nunca se casaram. Cada uma teve filhos com mais de um homem. Ou seja: é gente do povo brasileiro mesmo! Meu pai era mulato. Eu já estou salvo! Qualquer mente inteligente concluirá que o país tem um acúmulo considerável de peculiaridades – desvantajosas em princípio, mas não malditas em si mesmas – que nos leva a desconfiar, com toda razão, de que tudo significa uma bênção. Além da referência direta a Joaquim Nabuco, você faz pelo menos duas homenagens no disco, uma a Antonioni, para quem você compôs uma música, e outra a Jorge Ben, de quem você regravou Zumbi. É possível comparar o significado de um e de outro sobre o que você faz? Além do Joaquim Nabuco, tenho no disco três personagens explicitamente homenageados: Raul Seixas, Michelangelo Antonioni e Jorge Ben. Raul Seixas é homenageado numa canção que se chama Rock in Raul.
EPITÁCIO PESSOA / AE
LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
REPRODUÇÃO
Exemplos de textos de Joaquim Nabuco que emocionaram Caetano Veloso no livro Minha Formação:
Hoje, nos Estados Unidos, pensa-se em multiculturalismo, mas é um prosseguimento de uma linha puritana que não se sabe aonde pode dar. Quando a gente olha para os Estados Unidos, no entanto, sente uma atração por coisas como o “ar puro” de que Joaquim Nabuco falou.
Caetano Veloso no palco – “MPB é toda a música feita pelos brasileiros”
vros, peças de teatro, filmes. Vejo sair na primeira página dos segundos cadernos, no mesmo dia, matérias parecidas, uma entrevista matada, uma crítica pequenininha, escrita sem tempo, em conseqüência de uma combinação feita entre os jornais e as assessorias de imprensa. Acho que o jornal perde e o produto perde. Porque o produto – um disco, um livro, um filme – vira uma notícia que é disputada pelos jornais. Parece que um vai furar o outro. Mas, penso, na apreciação de um livro, não seria cabível pensar que um jornal possa “furar” o outro. Ou alguém tem algo a dizer de interessante sobre aquele livro – e o fará quando estiver preparado, para que o jornal seja o melhor possível – ou então reduz-se tudo a uma notícia que será disputada entre os jornais. O que acontece hoje é que se uma notícia sobre um lançamento qualquer sair antes em um jornal, o outro não publica nada sobre o assunto! Se noticiar, noticia contra, ou esconde, ou boicota. É um problema que desmerece a imprensa – e os produtos também, porque eles terminam mal apreciados criticamente. Os críticos não têm tempo de ouvir! Recebem um CD com um press-release, no mesmo dia todos entrevistam o artista e saem rapidamente para as redações. Eu já acho a cara da gente meio ridícula ali, a toda hora, quando vai estrear um show ou quando vai ser lançado um disco. Quando se abre o jornal nos segundos cadernos, lá está a gente, na primeira O que incomoda você na postura da impren- página. É o caso de artistas como eu, Chico, Gil, Rosa diante de lançamentos de discos e livros? Por que berto, artistas de primeiro time que vão para a é que você resolveu neste disco primeiro falar através primeira página. É sempre igual aquilo. Acho meio da Internet para todo mundo? empobrecedor tanto para a própria imprensa quanto Faz algum tempo que me sinto um pouco mal para o produto que os jornais e revistas estão aprequando vejo nos jornais os lançamentos de discos, li- ciando. Então, tive uma vontade louca de procurar um rótulo que ia prender a gente nos trópicos. Era o que não queríamos. Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era buscado, então. A gente queria desrespeitar esse negócio. O filme Terra em Transe tem um desespero em relação à identidade brasileira. Há uma grande agressividade em relação a esse tema. Vivia-se, ali, o auge da obsessão com a identidade nacional. Isso fez a questão da busca de identidade entrar em crise – ou em transe. Isso me interessou muito logo que vi o filme. Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade do que o cinema e a literatura. Fizemos coisas que eram um desrespeito à própria busca da identidade, embora tivessem a ambição de resolver o problema da identidade nacional. Era como se a gente quisesse passar por cima do tema, como se a gente dissesse: “Eu considero que, com o desespero da busca de identidade, a vontade louca de imitar os americanos, a falta de segurança, a incapacidade de organizar uma sociedade respeitável, com tudo, acho que já tenho identidade suficiente. Já estou falando diretamente para o mundo”, como se dizia no Recife numa famosa emissão radiofônica: “Pernambuco falando para o mundo”.
O jornalismo em debate
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a Roma, tive a surpresa de vê-lo na platéia do meu show “Fina Estampa”. Nem vi que ele estava na platéia, mas, quando acabou o show, eles vieram ao camarim para falar comigo. Antonioni tinha ficado muito bem impressionado. Quando fiz em Roma o show que saiu do disco Prenda Minha, ele estava na platéia novamente. Voltamos a conversar. Curiosamente, ele não fala, desde que sofreu o derrame, há oito anos, mas se comunica – muito – através da mulher, dá opiniões através de gestos. É muito bem-humorado. Gostou muito do show. Já devo tanto a essa gente, já devo tanto a esse homem. Tento ir pagando pouco a pouco minha dívida com o cinema italiano – que, agora, acaba de crescer com o filme de Bertolucci, O Assédio. Nunca fui fã de Bertolucci, mas O Assédio é uma obra-prima. Eu digo: meu Deus, continua crescendo o meu débito com os cineastas italianos.
concordei com ele: achei que a música popular brasileira é uma arte de juventude. Você precisa de estar com disposição para viajar, cantar, subir no palco, compor músicas, ter aquela animação ingênua de quem acha que pode fazer mais canções. Escrever livros ou fazer filmes já se assenta mais para uma pessoa mais velha. Por isso, fiz um filme nos anos oitenta pensando em fazer outros. Pensei: já estou ficando velho. Então, faço só cinema – um negócio que assenta mais do que música popular para alguém mais velho. Também pensei em escrever livros, mas não gosto de ficção para mim. Eu tinha vontade de escrever outro livro, porque gostei muito de escrever Verdade Tropical. Pensei em escrever um livro sobre raça no Brasil – não um livro de scholar, mas um estudo, uma reflexão pessoal sobre minha experiência. Talvez um dia eu escreva. Não escrevi, mas li Joaquim Nabuco.
“Adoro quando Ariano Suassuna mantém aquela ranzinzice, mas não penso como ele. Porque é muito profundo, num verdadeiro brasileiro, sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os norte-americanos!” Fiz, então, uma música que se chama Michelangelo Antonioni. Fiz a letra em italiano, uma língua que mal falo. Organizei os poucos versos para ficar tudo direito e mandei para Antonioni, para que ele me dissesse se tinha aprovação. Fiquei muito feliz ao receber uma resposta dizendo que ele e a mulher tinham aprovado com entusiasmo. Gostaram da canção. Ao explicar porque estava lançando tão poucos discos, Chico Buarque disse, textualmente, numa entrevista recente, que a música popular talvez seja uma arte de juventude. Com o passar do tempo, os compositores já não têm aquela espontaneidade dos 20 anos. Você, que lançou o último disco autoral há três anos, também tem tido essa sensação? Não tenho – e Tom Zé não me deixa ter. Tom Zé fez, aos 64 anos, um disco que é o mais jovem que ele já fez. Fez com uma tal vontade que parece que ele vai fazer 300 músicas. Deve ser porque o disco foi feito no Brasil. Tom Zé voltou a gravar aqui. Desde os anos 70 – ou 80, no máximo – ele não gravava no Brasil. O disco, então, ficou vital. Quando li esta declaração de Chico numa entrevista, eu me identifiquei imediatamente com ela, 14 Continente Multicultural
O historiador Evaldo Cabral de Mello reclama de que a obsessão em procurar uma identidade nacional é típica de países inseguros. Você acha que a música, no caso do Brasil, pode ajudar o país a achar essa tal identidade? Você tem essa pretensão? A obsessão em encontrar uma identidade nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país. O Brasil tem todas as razões históricas para se sentir inseguro. O que falo não pode nem se contrapor à fala de um historiador – um sujeito que se dedica a estudar e a levantar dados. Eu, compositor de música popular, tinha, pessoalmente, na época do tropicalismo, uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo “desconstruir”, como se diz hoje em dia, a questão da identidade nacional. Nós fizemos um grande escândalo antinacionalista, demonstramos ostensivo desprezo pela idéia de busca de raízes da autenticidade nacional. O primeiro apelido do tropicalismo foi “som universal”. O nome “tropicalismo” veio depois. Gil gostava da expressão “som universal”. Também gostava de “pop”. Eu não gostava tanto de que se chamasse tropicalismo porque achava que era
Acabei de ouvir um disco de Tom Zé que tem uma música sobre Raul Seixas. É como se fosse um cordel que narra a chegada de Lampião e Raul Seixas no FMI. Os dois estão enfrentando o FMI e Washington. Já no meu disco, Raul aparece como um sujeito que superexibia a “vontade fela da puta de ser americano”. Era como Raul Seixas falava – um modo baiano antigo de falar; acho que em Pernambuco também. Pode parecer, a ouvidos mais tolos, que a minha canção apresente uma desaprovação seja do Raul seja da vontade de imitar os americanos. Em primeiro lugar, não desaprovo Raul, um dos meus artistas favoritos. O primeiro disco de Raul Seixas é um dos melhores já feitos no Brasil – uma obra-prima. Não havia quase nada feito por outros artistas brasileiros – pode pensar nos maiores nomes – de que eu gostasse mais. Havia muita pouca coisa que eu chegasse a gostar tanto quanto eu gostava de Ouro de Tolo. Nunca vivi, como ele e muita gente viveu e vive, a vontade imediata de ser americano. Não foi assim comigo e com muitas outras pessoas da minha geração, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Cacá Diegues. Mas aquele sentimento – mundial diante do que os Estados Unidos se tornaram – se manifestou ainda mais fortemente nos países da América. Era a vontade de chegar à situação do americano.
É como se a vida que podíamos levar não fosse a verdadeira vida. É como se, através dos filmes, canções e reportagens nas revistas, a gente visse que ali é que se vivia a verdadeira vida. Assim como tantos outros, Raul não queria viver o que não fosse a verdadeira vida. Rita Lee contou numa entrevista que Raul Seixas disse a ela: “Sou americano. Apenas nasci no país errado”. Todo o negócio do rock vem dessa vontade. Mas não é só o rock: a bossa-nova tem muito disso. João Gilberto é que deu um nó, uma virada. Mas Johnny Alf, Dick Farney, os próprios nomes que eles botaram em si mesmos, as músicas que eles fizeram... Aloísio de Oliveira – um letrista espetacular, uma pessoa maravilhosa, um homem que foi tudo para Carmen Miranda, o namorado, o companheiro, o sujeito que amparou Carmen nos Estados Unidos, autor de letras lindas com Tom Jobim – tinha aquela vontade louca de ser americano. Mas, em primeiro lugar, é difícil querer exigir que essa vontade não apareça. É alguma coisa vivida desde a infância. Também há a admiração do desenvolvimento harmônico e da sofisticação da música popular americana em comparação com as outras. Quem tem bom ouvido musical e ouve uma música harmonicamente mais rica e ritmicamente mais inventiva se sente atraído por ela, consegue entendê-la, quer re-
Uma baiana em frente à igreja do Bonfim – “Movimento negro no Brasil não pode ser parecido com o dos EUA”
Continente Multicultural 11
REPRODUÇÃO
Casa-grande e Capela de São Mateus, do Engenho Massangana, no município do Cabo, PE, onde Joaquim Nabuco viveu seus primeiros oito anos de vida
12 Continente Multicultural
num verdadeiro brasileiro, sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os norte-americanos! Não é a única coisa que pode acontecer com os brasileiros. Mas é muito freqüente, muito compreensível e muito profundo na formação de uma personalidade brasileira. Os rappers trazem uma conotação de crítica ao panorama racial brasileiro. Dizem coisas que a gente não acha em outras áreas da produção. O rap, para mim, é mais som do que conversa. Eu entendo mais uma letra de uma música cantada do que um rap. Mas ouvi tanto o disco dos Racionais MCs que já me acostumei. Aquilo é de uma beleza enorme. Falam de versos “violentamente pacíficos”. A gente vê ali uma pujança e uma liberdade de criação artística. Se eles não tivessem a vontade louca de imitar os americanos, a gente não estaria hoje contando com eles. Assim é o caso de Raul Seixas. Por esse motivo é que falo na letra “e hoje olha os mano”. Tudo é exemplo de dignificação dessa atitude. Quanto às outras personalidades que estão homenageadas no disco: Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural, é rock com samba, um brasileiro preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período crucial da vida. Ficou quase tão ligado a São Paulo quanto Chico Buarque ficou ao Rio de Janeiro. Jorge Ben se ligou ao iê-iê-iê em São Paulo porque não podia aparecer no Fino da Bossa: misturava rock com samba. O disco dos Racionais – por sinal – abre com uma música de Jorge Ben, Jorge da capadócia. É preciso ver que Jorge Ben, como João Gilberto de uma maneira totalmente diferente, fica num lugar onde essas coisas acontecem.
Jorge Ben tem muito mais vontade de imitar o americano que João Gilberto. Mas Jorge Ben criou uma solução única, em que a brasilidade entra não apenas com um percentual importante, mas também como uma função na estruturação da personalidade artística. É diferente de Tim Maia – um artista interessantíssimo. Por essa razão, Jorge Ben é mestre dos pagodeiros, rappers, tropicalistas e roqueiros. A gente encontra Jorge Ben nos neo-bossanovistas, nos discos do Milton Nascimento, nos pagodes, nos Racionais, nos meus discos. Desde os anos 70, sempre gravo músicas de Jorge Ben. Os Paralamas do Sucesso gravam, todo mundo grava. Porque ele é uma solução espetacular. Dá uma sensação de saúde cultural sem os amparos do status de uma educação de alta classe média. Não é assim. Jorge Ben não é letrado: é um grande poeta, um grande solucionador cultural, um sujeito imenso. Eu me sinto presente ali dentro do disco dos Racionais, que começa com uma música de Jorge Ben que também gravei. Há uma coisa que precisa ser dita, porque tem a ver com o que falei sobre Raul Seixas e Jorge Ben: não é verdade, de maneira nenhuma, que grupos de rap, como os Racionais, sejam alguma coisa destacada da MPB, algo que se opõe a ela. Tenho horror a esse negócio de MPB – parece uma doença que deu na música popular brasileira. Eu acho errado. Nunca me identifiquei com essa idéia. O tropicalismo veio para dizer que não tem nada a ver com isso. Eu mantenho até hoje essa atitude. Ouvem-se, no disco dos Racionais MCs, ecos da minha gravação da música de Jorge Ben – confirmados pelos componentes dos Racionais, pessoalmente, em conversa comigo. É algo importante, porque os vincula explicitamente – e o que eles fazem – à tradição da música popular brasileira. O vínculo já existiria, necessariamente. Mas há um vínculo de eleição por parte dos artistas. Num momento crucial, numa das letras mais lindas do disco, Mano Brown diz assim: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano”. É a frase do Belchior que, ali citada, marca a continuidade de história da música popular brasileira, o diálogo interno da MPB, o que não quer dizer que não haja diferenças enormes. Raul Seixas sempre foi meu amigo. Vi o último show que ele fez, aqui no Rio, com Marcelo Nova. Raul já estava quase sem poder falar, sem poder cantar. Fui homenageá-lo, conversar com ele, porque era meu amigo desde que voltei de Londres. Nunca tivemos briga, rusga, discordância, nada – nem pessoal nem artística. Raul Seixas queria ser feito um roqueiro que falava inglês, queria estudar numa high school, usava bota
LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
produzi-la, quer participar daquele mundo. É uma vontade legítima! O sujeito vê naqueles grupos de rock a sensação de que havia uma pujança de energia que tinha de ser extravasada em música barulhenta e roupas espalhafatosas. Então, o sujeito tem, desde criança, uma vontade genuína de fazer aquilo. Depois de adulto, o que ele faz com aquela vontade genuína é uma arte que ao mesmo tempo a exiba e comente com alguma ironia. Não com a ironia dos tropicalistas – que não vieram daí. Nós não viemos da vontade de imitar. Eu, sobretudo, não – nem tão pouco Gil, Gal, Betânia, Tom Zé. Toda a linhagem do rock vem daí. A música de Raul Seixas trata disso. Numa frase rápida, a letra diz: “E hoje olha os mano”. É uma menção aos rappers brasileiros – que também demonstram uma grande vontade de se identificar com os americanos. Os nomes que eles escolhem para si são nomes em inglês, parecidos com os dos negros americanos. É imensamente saudável, porque apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo como se dispõe o panorama racial no Brasil. Preferem se chamar Ice Blue, Mano Brown, Carlinhos Brown. Ganham o nome de James Brown. Isso é tudo muito complexo para mim. É o estímulo da minha vida. Mas, quando vejo uma vontade muito destrutiva de simplesmente imitar os americanos – e empobrecer a vida brasileira –, eu digo assim: “Essa gente merece um Ariano Suassuna”. Adoro quando Suassuna mantém aquela ranzinzice. Não penso como ele. Penso de uma maneira que ele já disse repetidas vezes que não aceita. Eu entendo que as pessoas, se traírem essa vontade genuína, estarão sendo menos brasileiras. Porque é muito profundo,
como se fosse do Oeste, vivia vestido de Elvis Presley. Eu não: desde menino, nunca tive vontade disso. Meu negócio é outro: eu gostava de Sílvio Caldas. Mas entendi essas pessoas. Vi o que significava o gosto pelo rock, vejo nos Manos hoje. Quanto a Antonioni: tenho com o cinema italiano uma dívida imensa – que venho pagando pouco a pouco. Eu gostava dos musicais americanos, mas tinha uma grande paixão pelos filmes neo-realistas italianos e pelos desdobramentos do neo-realismo. Fiz uma música sobre Giullieta Masina, o que me levou a ser convidado para fazer um espetáculo em homenagem a ela e a Federico Fellini – que, gravado, terminou saindo em disco. Depois de ter visto todos os filmes de Antonioni, tive um contato com ele. A admiração às vezes assombra. Tive um contato pessoal com Antonioni, graças a meus dois amigos e cineastas brasileiros Júlio Bressane e Cacá Diegues. Um não se dá com o outro, mas ambos adoram Antonioni. Os dois convidaram-no para jantar. Antonioni aceitou os dois convites. Todos dois me convidaram também. Antonioni, então, riu muito, porque eu estava nos dois grupos, totalmente diferentes. Quando fui
Popular com brinco de amendoim, na festa da Lavadeira na praia do Paiva em Pernambuco – “O Brasil é muito original”
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Casa-grande e Capela de São Mateus, do Engenho Massangana, no município do Cabo, PE, onde Joaquim Nabuco viveu seus primeiros oito anos de vida
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num verdadeiro brasileiro, sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os norte-americanos! Não é a única coisa que pode acontecer com os brasileiros. Mas é muito freqüente, muito compreensível e muito profundo na formação de uma personalidade brasileira. Os rappers trazem uma conotação de crítica ao panorama racial brasileiro. Dizem coisas que a gente não acha em outras áreas da produção. O rap, para mim, é mais som do que conversa. Eu entendo mais uma letra de uma música cantada do que um rap. Mas ouvi tanto o disco dos Racionais MCs que já me acostumei. Aquilo é de uma beleza enorme. Falam de versos “violentamente pacíficos”. A gente vê ali uma pujança e uma liberdade de criação artística. Se eles não tivessem a vontade louca de imitar os americanos, a gente não estaria hoje contando com eles. Assim é o caso de Raul Seixas. Por esse motivo é que falo na letra “e hoje olha os mano”. Tudo é exemplo de dignificação dessa atitude. Quanto às outras personalidades que estão homenageadas no disco: Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural, é rock com samba, um brasileiro preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período crucial da vida. Ficou quase tão ligado a São Paulo quanto Chico Buarque ficou ao Rio de Janeiro. Jorge Ben se ligou ao iê-iê-iê em São Paulo porque não podia aparecer no Fino da Bossa: misturava rock com samba. O disco dos Racionais – por sinal – abre com uma música de Jorge Ben, Jorge da capadócia. É preciso ver que Jorge Ben, como João Gilberto de uma maneira totalmente diferente, fica num lugar onde essas coisas acontecem.
Jorge Ben tem muito mais vontade de imitar o americano que João Gilberto. Mas Jorge Ben criou uma solução única, em que a brasilidade entra não apenas com um percentual importante, mas também como uma função na estruturação da personalidade artística. É diferente de Tim Maia – um artista interessantíssimo. Por essa razão, Jorge Ben é mestre dos pagodeiros, rappers, tropicalistas e roqueiros. A gente encontra Jorge Ben nos neo-bossanovistas, nos discos do Milton Nascimento, nos pagodes, nos Racionais, nos meus discos. Desde os anos 70, sempre gravo músicas de Jorge Ben. Os Paralamas do Sucesso gravam, todo mundo grava. Porque ele é uma solução espetacular. Dá uma sensação de saúde cultural sem os amparos do status de uma educação de alta classe média. Não é assim. Jorge Ben não é letrado: é um grande poeta, um grande solucionador cultural, um sujeito imenso. Eu me sinto presente ali dentro do disco dos Racionais, que começa com uma música de Jorge Ben que também gravei. Há uma coisa que precisa ser dita, porque tem a ver com o que falei sobre Raul Seixas e Jorge Ben: não é verdade, de maneira nenhuma, que grupos de rap, como os Racionais, sejam alguma coisa destacada da MPB, algo que se opõe a ela. Tenho horror a esse negócio de MPB – parece uma doença que deu na música popular brasileira. Eu acho errado. Nunca me identifiquei com essa idéia. O tropicalismo veio para dizer que não tem nada a ver com isso. Eu mantenho até hoje essa atitude. Ouvem-se, no disco dos Racionais MCs, ecos da minha gravação da música de Jorge Ben – confirmados pelos componentes dos Racionais, pessoalmente, em conversa comigo. É algo importante, porque os vincula explicitamente – e o que eles fazem – à tradição da música popular brasileira. O vínculo já existiria, necessariamente. Mas há um vínculo de eleição por parte dos artistas. Num momento crucial, numa das letras mais lindas do disco, Mano Brown diz assim: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano”. É a frase do Belchior que, ali citada, marca a continuidade de história da música popular brasileira, o diálogo interno da MPB, o que não quer dizer que não haja diferenças enormes. Raul Seixas sempre foi meu amigo. Vi o último show que ele fez, aqui no Rio, com Marcelo Nova. Raul já estava quase sem poder falar, sem poder cantar. Fui homenageá-lo, conversar com ele, porque era meu amigo desde que voltei de Londres. Nunca tivemos briga, rusga, discordância, nada – nem pessoal nem artística. Raul Seixas queria ser feito um roqueiro que falava inglês, queria estudar numa high school, usava bota
LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
produzi-la, quer participar daquele mundo. É uma vontade legítima! O sujeito vê naqueles grupos de rock a sensação de que havia uma pujança de energia que tinha de ser extravasada em música barulhenta e roupas espalhafatosas. Então, o sujeito tem, desde criança, uma vontade genuína de fazer aquilo. Depois de adulto, o que ele faz com aquela vontade genuína é uma arte que ao mesmo tempo a exiba e comente com alguma ironia. Não com a ironia dos tropicalistas – que não vieram daí. Nós não viemos da vontade de imitar. Eu, sobretudo, não – nem tão pouco Gil, Gal, Betânia, Tom Zé. Toda a linhagem do rock vem daí. A música de Raul Seixas trata disso. Numa frase rápida, a letra diz: “E hoje olha os mano”. É uma menção aos rappers brasileiros – que também demonstram uma grande vontade de se identificar com os americanos. Os nomes que eles escolhem para si são nomes em inglês, parecidos com os dos negros americanos. É imensamente saudável, porque apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo como se dispõe o panorama racial no Brasil. Preferem se chamar Ice Blue, Mano Brown, Carlinhos Brown. Ganham o nome de James Brown. Isso é tudo muito complexo para mim. É o estímulo da minha vida. Mas, quando vejo uma vontade muito destrutiva de simplesmente imitar os americanos – e empobrecer a vida brasileira –, eu digo assim: “Essa gente merece um Ariano Suassuna”. Adoro quando Suassuna mantém aquela ranzinzice. Não penso como ele. Penso de uma maneira que ele já disse repetidas vezes que não aceita. Eu entendo que as pessoas, se traírem essa vontade genuína, estarão sendo menos brasileiras. Porque é muito profundo,
como se fosse do Oeste, vivia vestido de Elvis Presley. Eu não: desde menino, nunca tive vontade disso. Meu negócio é outro: eu gostava de Sílvio Caldas. Mas entendi essas pessoas. Vi o que significava o gosto pelo rock, vejo nos Manos hoje. Quanto a Antonioni: tenho com o cinema italiano uma dívida imensa – que venho pagando pouco a pouco. Eu gostava dos musicais americanos, mas tinha uma grande paixão pelos filmes neo-realistas italianos e pelos desdobramentos do neo-realismo. Fiz uma música sobre Giullieta Masina, o que me levou a ser convidado para fazer um espetáculo em homenagem a ela e a Federico Fellini – que, gravado, terminou saindo em disco. Depois de ter visto todos os filmes de Antonioni, tive um contato com ele. A admiração às vezes assombra. Tive um contato pessoal com Antonioni, graças a meus dois amigos e cineastas brasileiros Júlio Bressane e Cacá Diegues. Um não se dá com o outro, mas ambos adoram Antonioni. Os dois convidaram-no para jantar. Antonioni aceitou os dois convites. Todos dois me convidaram também. Antonioni, então, riu muito, porque eu estava nos dois grupos, totalmente diferentes. Quando fui
Popular com brinco de amendoim, na festa da Lavadeira na praia do Paiva em Pernambuco – “O Brasil é muito original”
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a Roma, tive a surpresa de vê-lo na platéia do meu show “Fina Estampa”. Nem vi que ele estava na platéia, mas, quando acabou o show, eles vieram ao camarim para falar comigo. Antonioni tinha ficado muito bem impressionado. Quando fiz em Roma o show que saiu do disco Prenda Minha, ele estava na platéia novamente. Voltamos a conversar. Curiosamente, ele não fala, desde que sofreu o derrame, há oito anos, mas se comunica – muito – através da mulher, dá opiniões através de gestos. É muito bem-humorado. Gostou muito do show. Já devo tanto a essa gente, já devo tanto a esse homem. Tento ir pagando pouco a pouco minha dívida com o cinema italiano – que, agora, acaba de crescer com o filme de Bertolucci, O Assédio. Nunca fui fã de Bertolucci, mas O Assédio é uma obra-prima. Eu digo: meu Deus, continua crescendo o meu débito com os cineastas italianos.
concordei com ele: achei que a música popular brasileira é uma arte de juventude. Você precisa de estar com disposição para viajar, cantar, subir no palco, compor músicas, ter aquela animação ingênua de quem acha que pode fazer mais canções. Escrever livros ou fazer filmes já se assenta mais para uma pessoa mais velha. Por isso, fiz um filme nos anos oitenta pensando em fazer outros. Pensei: já estou ficando velho. Então, faço só cinema – um negócio que assenta mais do que música popular para alguém mais velho. Também pensei em escrever livros, mas não gosto de ficção para mim. Eu tinha vontade de escrever outro livro, porque gostei muito de escrever Verdade Tropical. Pensei em escrever um livro sobre raça no Brasil – não um livro de scholar, mas um estudo, uma reflexão pessoal sobre minha experiência. Talvez um dia eu escreva. Não escrevi, mas li Joaquim Nabuco.
“Adoro quando Ariano Suassuna mantém aquela ranzinzice, mas não penso como ele. Porque é muito profundo, num verdadeiro brasileiro, sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os norte-americanos!” Fiz, então, uma música que se chama Michelangelo Antonioni. Fiz a letra em italiano, uma língua que mal falo. Organizei os poucos versos para ficar tudo direito e mandei para Antonioni, para que ele me dissesse se tinha aprovação. Fiquei muito feliz ao receber uma resposta dizendo que ele e a mulher tinham aprovado com entusiasmo. Gostaram da canção. Ao explicar porque estava lançando tão poucos discos, Chico Buarque disse, textualmente, numa entrevista recente, que a música popular talvez seja uma arte de juventude. Com o passar do tempo, os compositores já não têm aquela espontaneidade dos 20 anos. Você, que lançou o último disco autoral há três anos, também tem tido essa sensação? Não tenho – e Tom Zé não me deixa ter. Tom Zé fez, aos 64 anos, um disco que é o mais jovem que ele já fez. Fez com uma tal vontade que parece que ele vai fazer 300 músicas. Deve ser porque o disco foi feito no Brasil. Tom Zé voltou a gravar aqui. Desde os anos 70 – ou 80, no máximo – ele não gravava no Brasil. O disco, então, ficou vital. Quando li esta declaração de Chico numa entrevista, eu me identifiquei imediatamente com ela, 14 Continente Multicultural
O historiador Evaldo Cabral de Mello reclama de que a obsessão em procurar uma identidade nacional é típica de países inseguros. Você acha que a música, no caso do Brasil, pode ajudar o país a achar essa tal identidade? Você tem essa pretensão? A obsessão em encontrar uma identidade nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país. O Brasil tem todas as razões históricas para se sentir inseguro. O que falo não pode nem se contrapor à fala de um historiador – um sujeito que se dedica a estudar e a levantar dados. Eu, compositor de música popular, tinha, pessoalmente, na época do tropicalismo, uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo “desconstruir”, como se diz hoje em dia, a questão da identidade nacional. Nós fizemos um grande escândalo antinacionalista, demonstramos ostensivo desprezo pela idéia de busca de raízes da autenticidade nacional. O primeiro apelido do tropicalismo foi “som universal”. O nome “tropicalismo” veio depois. Gil gostava da expressão “som universal”. Também gostava de “pop”. Eu não gostava tanto de que se chamasse tropicalismo porque achava que era
Acabei de ouvir um disco de Tom Zé que tem uma música sobre Raul Seixas. É como se fosse um cordel que narra a chegada de Lampião e Raul Seixas no FMI. Os dois estão enfrentando o FMI e Washington. Já no meu disco, Raul aparece como um sujeito que superexibia a “vontade fela da puta de ser americano”. Era como Raul Seixas falava – um modo baiano antigo de falar; acho que em Pernambuco também. Pode parecer, a ouvidos mais tolos, que a minha canção apresente uma desaprovação seja do Raul seja da vontade de imitar os americanos. Em primeiro lugar, não desaprovo Raul, um dos meus artistas favoritos. O primeiro disco de Raul Seixas é um dos melhores já feitos no Brasil – uma obra-prima. Não havia quase nada feito por outros artistas brasileiros – pode pensar nos maiores nomes – de que eu gostasse mais. Havia muita pouca coisa que eu chegasse a gostar tanto quanto eu gostava de Ouro de Tolo. Nunca vivi, como ele e muita gente viveu e vive, a vontade imediata de ser americano. Não foi assim comigo e com muitas outras pessoas da minha geração, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Cacá Diegues. Mas aquele sentimento – mundial diante do que os Estados Unidos se tornaram – se manifestou ainda mais fortemente nos países da América. Era a vontade de chegar à situação do americano.
É como se a vida que podíamos levar não fosse a verdadeira vida. É como se, através dos filmes, canções e reportagens nas revistas, a gente visse que ali é que se vivia a verdadeira vida. Assim como tantos outros, Raul não queria viver o que não fosse a verdadeira vida. Rita Lee contou numa entrevista que Raul Seixas disse a ela: “Sou americano. Apenas nasci no país errado”. Todo o negócio do rock vem dessa vontade. Mas não é só o rock: a bossa-nova tem muito disso. João Gilberto é que deu um nó, uma virada. Mas Johnny Alf, Dick Farney, os próprios nomes que eles botaram em si mesmos, as músicas que eles fizeram... Aloísio de Oliveira – um letrista espetacular, uma pessoa maravilhosa, um homem que foi tudo para Carmen Miranda, o namorado, o companheiro, o sujeito que amparou Carmen nos Estados Unidos, autor de letras lindas com Tom Jobim – tinha aquela vontade louca de ser americano. Mas, em primeiro lugar, é difícil querer exigir que essa vontade não apareça. É alguma coisa vivida desde a infância. Também há a admiração do desenvolvimento harmônico e da sofisticação da música popular americana em comparação com as outras. Quem tem bom ouvido musical e ouve uma música harmonicamente mais rica e ritmicamente mais inventiva se sente atraído por ela, consegue entendê-la, quer re-
Uma baiana em frente à igreja do Bonfim – “Movimento negro no Brasil não pode ser parecido com o dos EUA”
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“Nenhuma das minhas idéias políticas se alterou nos Estados Unidos, mas ninguém aspira o ar americano sem achá-lo mais vivo, mais leve, mais elástico do que os outros, saturados de tradição e autoridade, de convencionalismo e cerimonial.” “...combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência – como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que a vi acabar pensei poder pedir também minha alforria, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia: a saudade do escravo...” “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país – e foi a que ele guardou; ela povoouo como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte.” “Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a na dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e eles, deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia – de que resultou a terna e reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel.” “Pela pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos... Debaixo dos meus pés estava tudo o que restava deles. Sozinho ali, invoquei todas as minhas reminiscências, chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei o ar carregado de aromas agrestes, que entretém a vegetação sobre suas covas...” “Oh, os santos pretos! Seriam eles os intercessores pela nossa infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas abençoaram com seu amor!”
Você ainda acredita incondicionalmente na idéia de que o Brasil vai ser – ou é – um país original? Acredito – mas não incondicionalmente. Se os países são originais, o Brasil é muito original! O que aconteceu na Argentina dá a ela características que fazem do país algo diferente do Chile. Eu, sinceramente, quando estava no Chile, senti uma saudade horrível da Argentina. Parecia que a Argentina era a Bahia! O Chile era tão formal, trazia uma mistura tão forte de europeísmo com neo-yuppismo americano que eu ficava com saudade da Argentina e do Uruguai, sem falar no Brasil. O fato de um país desse tamanho falar português e ter um autor como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil um grande segredo que nós guardamos e queremos revelar. É uma experiência única! Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça. É tão grande o acúmulo de desvantagens, num país ao mesmo tempo tão interessante, que a gente é forçado a ler isso como uma bênção. Isso não é uma questão apenas de eu querer me salvar, já que eu nasci no Brasil e sou mulato do interior da Bahia, filho de gente do povo. Minhas duas avós nunca se casaram. Cada uma teve filhos com mais de um homem. Ou seja: é gente do povo brasileiro mesmo! Meu pai era mulato. Eu já estou salvo! Qualquer mente inteligente concluirá que o país tem um acúmulo considerável de peculiaridades – desvantajosas em princípio, mas não malditas em si mesmas – que nos leva a desconfiar, com toda razão, de que tudo significa uma bênção. Além da referência direta a Joaquim Nabuco, você faz pelo menos duas homenagens no disco, uma a Antonioni, para quem você compôs uma música, e outra a Jorge Ben, de quem você regravou Zumbi. É possível comparar o significado de um e de outro sobre o que você faz? Além do Joaquim Nabuco, tenho no disco três personagens explicitamente homenageados: Raul Seixas, Michelangelo Antonioni e Jorge Ben. Raul Seixas é homenageado numa canção que se chama Rock in Raul.
EPITÁCIO PESSOA / AE
LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
REPRODUÇÃO
Exemplos de textos de Joaquim Nabuco que emocionaram Caetano Veloso no livro Minha Formação:
Hoje, nos Estados Unidos, pensa-se em multiculturalismo, mas é um prosseguimento de uma linha puritana que não se sabe aonde pode dar. Quando a gente olha para os Estados Unidos, no entanto, sente uma atração por coisas como o “ar puro” de que Joaquim Nabuco falou.
Caetano Veloso no palco – “MPB é toda a música feita pelos brasileiros”
vros, peças de teatro, filmes. Vejo sair na primeira página dos segundos cadernos, no mesmo dia, matérias parecidas, uma entrevista matada, uma crítica pequenininha, escrita sem tempo, em conseqüência de uma combinação feita entre os jornais e as assessorias de imprensa. Acho que o jornal perde e o produto perde. Porque o produto – um disco, um livro, um filme – vira uma notícia que é disputada pelos jornais. Parece que um vai furar o outro. Mas, penso, na apreciação de um livro, não seria cabível pensar que um jornal possa “furar” o outro. Ou alguém tem algo a dizer de interessante sobre aquele livro – e o fará quando estiver preparado, para que o jornal seja o melhor possível – ou então reduz-se tudo a uma notícia que será disputada entre os jornais. O que acontece hoje é que se uma notícia sobre um lançamento qualquer sair antes em um jornal, o outro não publica nada sobre o assunto! Se noticiar, noticia contra, ou esconde, ou boicota. É um problema que desmerece a imprensa – e os produtos também, porque eles terminam mal apreciados criticamente. Os críticos não têm tempo de ouvir! Recebem um CD com um press-release, no mesmo dia todos entrevistam o artista e saem rapidamente para as redações. Eu já acho a cara da gente meio ridícula ali, a toda hora, quando vai estrear um show ou quando vai ser lançado um disco. Quando se abre o jornal nos segundos cadernos, lá está a gente, na primeira O que incomoda você na postura da impren- página. É o caso de artistas como eu, Chico, Gil, Rosa diante de lançamentos de discos e livros? Por que berto, artistas de primeiro time que vão para a é que você resolveu neste disco primeiro falar através primeira página. É sempre igual aquilo. Acho meio da Internet para todo mundo? empobrecedor tanto para a própria imprensa quanto Faz algum tempo que me sinto um pouco mal para o produto que os jornais e revistas estão aprequando vejo nos jornais os lançamentos de discos, li- ciando. Então, tive uma vontade louca de procurar um rótulo que ia prender a gente nos trópicos. Era o que não queríamos. Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era buscado, então. A gente queria desrespeitar esse negócio. O filme Terra em Transe tem um desespero em relação à identidade brasileira. Há uma grande agressividade em relação a esse tema. Vivia-se, ali, o auge da obsessão com a identidade nacional. Isso fez a questão da busca de identidade entrar em crise – ou em transe. Isso me interessou muito logo que vi o filme. Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade do que o cinema e a literatura. Fizemos coisas que eram um desrespeito à própria busca da identidade, embora tivessem a ambição de resolver o problema da identidade nacional. Era como se a gente quisesse passar por cima do tema, como se a gente dissesse: “Eu considero que, com o desespero da busca de identidade, a vontade louca de imitar os americanos, a falta de segurança, a incapacidade de organizar uma sociedade respeitável, com tudo, acho que já tenho identidade suficiente. Já estou falando diretamente para o mundo”, como se dizia no Recife numa famosa emissão radiofônica: “Pernambuco falando para o mundo”.
O jornalismo em debate
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A vontade de ser americano
REPRODUÇÃO
qual concordo plenamente, não um meio de driblar isso. Mas é só em relação às críticas, mas muito difícil. Eu estou aqui “O que acontece é também quanto à feitura dos fazendo de uma maneira que me parece que pode mexer que se uma notícia segundos cadernos. Um sujeito pode ir fundo num articom esse quadro. Se a gente sobre um lançamento go sobre um assunto que conseguir mexer e mudar... qualquer sair antes ninguém escolheu. A gente vê As pessoas escrevem a que há uma certa reação. Mas crítica como e quando quiseem um jornal, esse negócio de sair, na prirem. Não faço entrevista com o outro não publica meira página de todos os joreles agora. A que estou fazendo agora com você pode ser lida – nada sobre o assunto! nais, o lançamento de um filme da Sharon Stone, é pobre, ou vista – na Internet por todo Se noticiar, porque não se privilegia a apremundo, ao mesmo tempo, jornoticia contra.” ciação. Ou bem você tem uma nalistas e não-jornalistas. Quem apreciação interessante sobre tiver acesso à Internet verá. Poum filme novo ou você não tem de até conferir o que os jornais publicarem. O que digo aqui pode também estimu- mesmo muito o que dizer. É fraco, num jornal, dizer lar entrevistas particulares sobre determinados que fulana ia filmar com beltrano, mas deixou de filassuntos. Ou sobre um detalhe que não foi falado. O mar na última hora... jornalista pode dizer assim: “Quero aporrinhar CaeEnsaístas conservadores, como o inglês Paul tano sobre um detalhe de que ele não falou”. A genJohnson, que escreveu um livro para dizer que a te faz, então, a entrevista. Se ninguém quiser fazer, tudo bem: não se faz, contanto que se mude a prá- arte moderna é uma porcaria, dizem que a grande tica. Eu realmente acho que é saudável e necessário praga desse final de século é o relativismo cultural: mudar. Os jornalistas também estão precisando! Nós tudo é válido, nada é ruim. Você não corre o risco estamos! Não pode um jornal sair parecendo que é o de estimular esse relativismo cultural ao criticar os críticos da predominância da chamada música corelease dos lançamentos. Para as assessorias e para quem oferece o pro- mercial no mercado? Eu olho com desconfiança esses conservadoduto – artistas, companhias de cinema, editoras, gravadoras – é como se o jornal fosse um release, como se res. Mas não gosto desse negócio de vale tudo não. a página do jornal fosse um veículo de lançamento. Por falar o que falo, compreendo que há um risco de Quando se trata de uma notícia, acho compreensível. parecer que dou força ao que eles chamam de “relatiHá notícias que todo mundo tem de dar mesmo. O vismo cultural”. Mas, na crítica que estou fazendo sujeito se dá bem quando consegue um furo de repor- aos jornalistas, não me sinto de maneira nenhuma tagem com a descoberta de uma tramóia. Mas, quan- dando força ao relativismo cultural. Pelo contrário! do se trata de um produto cultural, não é bem assim. Porque acho que o que vem acontecendo é um enfraSe sai um romance de Chico Buarque, qual é a van- quecimento da instância crítica. tagem de você sair na frente? A vantagem seria ler. O Os jornalistas se comportam como artistas leitor pensará: “Não vou deixar de comprar o Jornal do ultracomerciais. Mas se dão o direito de criticar Brasil, porque as resenhas são muito bem feitas”. Mas artistas que são, sob o ponto de vista profissional, as resenhas não podem ser muito bem feitas, porque muito mais responsáveis que eles! Os jornalistas se são feitas às pressas para sair antes. dão o direito de descartar a existência desses artistas como se eles, os artistas, fossem comerciais. O Mas você acha que pode quebrar esse vício que se vê, aí, é um relativismo inaceitável, uma através da Internet? confusão de valores que não posso aceitar! Sou É uma maneira de tentar quebrar. Pelo menos muito mais exigente! a entrevista sairá para todo mundo. Pode ser que haja O sujeito que critica não sabe redigir bem. um ritmo diferente. A gente vê que, na própria im- Mas Daniela Mercury canta afinado, ensaia bem os prensa, há esforço nesse sentido. Eu li, na revista números; Ivete Sangalo arrebenta cantando; Sandy é Bravo!, um artigo de Sérgio Augusto de Andrade uma cantora perfeita, sob o ponto de vista técnico. Eu que diz exatamente o que estou dizendo aqui. Adorei peço, pelo menos, que o sujeito que escreve na Folha ler porque ele diz com todas as letras exatamente o ou o outro que escreve no Globo redijam a frase corque eu vinha observando. Faz uma análise com a retamente. É o mínimo! Como Sandy é afinada, que
Brasil se deu algo que lá teria sido um escândalo: os negros alforriados podiam ter escravos! Podiam ser senhores. O fato de ele poder ter escravo significa que ele poderia ter o status de senhor. Joaquim NaNuma das músicas, você trata da vontade de buco dizia que a escravidão no Brasil foi muito Raul Seixas de “ser americano”. Há um século Joamais hábil, porque ela mexe em todos os interstícios da sociedade, enquanto que nos Estados Unidos, quim Nabuco tratava do problema de como nós, não. Isso dá uma possibilidade ao Brasil: se um dia brasileiros, víamos os estrangeiros. Num trecho de superar os problemas que a escravidão trouxe, o Minha Formação, ele diz que o ar lá é “mais vivo e Brasil pode realizar possibilidades que os Estados mais leve” que outros, “saturados de tradição e convencionalismo”. Os americanos estariam, segundo Unidos jamais poderão. O fato de os escravos brasileiros, uma vez Joaquim Nabuco, “inventando a vida, como se nada alforriados, poderem ser senhores significava que tivesse existido até então”. Você, que acaba de se não havia um impedimento de base racial, como transformar em discípulo de Joaquim Nabuco, tem nos Estados Unidos, para que, em princípio, pes- ou teve esse sentimento diante dos Estados Unidos? Joaquim Nabuco vai fundo também na crítisoas de qualquer cor viessem a participar da cidadania com plenitude. Joaquim Nabuco já dizia no ca à idéia de igualdade, tal como ela era vivida pelos século 19 o que muita gente pensa que só se disse americanos. Diz que os americanos viviam a ilusão de que tinham uma liberdade individual que resultava numa igualdade de cada indivíduo muito mais desenvolvida do que na Inglaterra, por exemplo. Para ele, que era anglófilo, a Inglaterra tinha uma solução que oferecia resultados melhores, porque a igualdade que se esboçava era feita com conteúdos de nobreza moral que os americanos desconheciam.
no Brasil depois dos anos 70, com o movimento negro e a influência americana: a escravidão brasileira se mostrou muito mais hábil do que no Sul dos Estados Unidos, porque pôde se perpetuar e se infiltrar por todos os meandros da sociedade brasileira, os mais sutis, inclusive. Isso não quer dizer que não haja vantagem na mistura e na confusão de hierarquia – uma característica que faz com que o movimento negro no Brasil não possa ser parecido com o dos Estados Unidos. Isso é mau e bom. É algo que os norte-americanos nunca tiveram nem puderam ter. Se nós conseguirmos crescer economicamente e superar aleijões que a escravidão deixou na nossa sociedade, temos uma matéria-prima humana que os Estados Unidos nem sequer conhecem.
Mas você tem o pensamento de que, como Joaquim Nabuco dizia, os americanos estavam reinventando a vida? Eu tenho esse pensamento. É o que a gente sente estando nos Estados Unidos – ou de longe. É o aspecto mais positivo e animador dos Estados Unidos. Interessa, porque parece um sopro de ar puro na história da Humanidade. Mas Joaquim Nabuco escreveu que os americanos, quando dizem que cada indivíduo pode ter liberdade, estão falando de norte-americanos brancos. Chineses e negros estão, na mente do americano, abaixo da condição de humanidade. Joaquim Nabuco dizia que, quando um americano olha para seus primeiros vizinhos na América Latina – o mexicano ou cubano, para não falar dos outros latino-americanos – ele faz com um desprezo nunca visto de um ente humano para outro em nenhuma outra situação. Aos olhos de Joaquim Nabuco, essa atitude desqualifica o valor espetacular da individualidade que a grande democracia americana preconizava e preconiza.
Rótulo dos Cigarros Nabuco. O abolicionista ainda teve seu rosto em rótulos dos cigarros Nabuquistas, Dr. Jm. Nabuco e Príncipes da Liberdade
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Se o livro Verdade Tropical foi escrito contra Paulo Francis, que infelizmente morreu antes de o livro ser concluído, o disco Noites do Norte é contra ou a favor de quem? É a favor do Joaquim Nabuco. Geneton Moraes Neto é jornalista e chefe de redação do programa Fantástico, da TV Globo
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CAETANO & GIL & EDU & MILTON & CHICO Marcus Accioly Quando corria pelo Tristes trópicos (de Lévi-Strauss) a alegre Tropicália: som dos "novos baianos" (voz de exóticos tropicalistas) cantos da vanguardado-tempo contra o eclipse dos óculosde-vidro-verde (fundo-de-garrafa) aconteceu Caetano e estreou Gil (compositocantores do Brasil) aconteceu Caetano que ("sem lenço" nem "documento / contra o vento") foi bilingüemente (ao dúplice silêncio) cantar (de Capinam e Gil) o herói que procurou a morte como exemplo de amor à vida e à liberdade ("Soy loco por ti, América") um hino (onde "el nombre del hombre muerto" é vivo) estreou Gil (naquela ambígua-idade entre o Superbacana e o Super-homem) com um Domingo no parque da cidade onde a faca ("ê José") ainda come Juliana ("oi João") e o sol à tarde roda à roda-gigante o dia e some sob a lua (que nasce levitando o seu sorvete rosa de morango) na época-de-chumbo (paralelo ao Movimento) um outro som surgia de Edu Lobo (esporando o seu Ponteio) com Milton Nascimento (em Travessia) e Chico (religando elo por elo dos fios da canção) entretecia uma corrente-viva que (com nósde-ferro) armava a víbora da voz. (do livro inédito Latinomérica)
“Ivete Sangalo arrebenta cantando. Mas os artigos que a criticam são mal escritos! A idéia é primária, o português está errado, e eles vão falar mal da Ivete Sangalo? Não dá! É muito abaixo da Ivete Sangalo.” ele saiba pelo menos escrever. Mas, não! Ele é uma estrela da agressão e da opinião moderna. Só gosta de grupos de língua inglesa. Para ele, nada do que é brasileiro pode prestar jamais! Isso já é um princípio simplório demais. Fazem personagens assim, mas não apresentam sequer um produto comparável ao que Sandy e Júnior apresentam. Chitãozinho e Xororó cantam afinado, ensaiam bem os shows. Os artigos são mal escritos! Você vai ler: está errado o português! A idéia é primária, o português está errado, e ele vai falar mal da Sandy? Vai falar mal de Ivete Sangalo? Não dá! É muito abaixo da Ivete Sangalo, como quem apresenta um produto que vou consumir. Sou, então, muito mais exigente. Não há relativismo possível aí! O que estou dizendo é que essas pessoas são superiores àquelas outras, naquilo que fazem! De fato, são! Posso mostrar a você que, numa gravação da Sandy, a afinação é 100%! Eu levo você ao show da Sandy. Digo assim: “Você não vai ver aqui um buraco, porque ela entra no tempo certo, ela tem intensidade de voz certa em relação aos instrumentos, as harmonias estão certas, a afinação é em nível de Elis Regina!” Mas posso pegar o texto do crítico Pedro Alexandre Sanches e dizer: “Venha cá, o que é que este parágrafo quer dizer?” É tudo errado, mal escrito. Posso pegar o texto de Mário Marques: “Isso aqui está mal escrito!” Então, não existe nada de relativista nisso. Nada! Ao contrário: é possível mostrar claramente que o que estou dizendo é pertinente, porque há valores universais que podem ser reconhecidos ali. Há redações bem realizadas e há cantos afinados. Há cantos desafinados, você pode até medir a afinação em aparelhos. Não há nada de relativismo. Há, sim, valores absolutos, universais. Uma nota afinada é uma nota afinada! Também há uma modernidade a respeito da utilização da nota afinada, um interesse pela desafinação, pela microfonização, pela negação da tonalidade. Mas são outros quinhentos. Isso é o momento meu menos relativista: eu estou me atendo a valores reconhecíveis e indiscutíveis.
EDUARDO QUEIROGA / LUMIAR
ta. Todos os aspectos da direita ele enaltecia. Tornouse até meio acrítico quanto a isso. São meninos que lêem gibi. Acham que podem esculhambar comigo. Um jornalista dá uma entrevista ao jornal Caros Amigos e esculhamba comigo. Vem Roberto Freire – não o político pernambucano, mas o psicoterapeuta paulista – e reitera as palavras do jornalista meio jovem da Folha que me esculhambou. Roberto Freire, um homem velho, não tem vergonha na cara? Que negócio chato! Mas, na Folhateen, fazem esse tipo, como o menino que deu a entrevista para Caros Amigos. É um personagem que diz assim: “Temos que destruir a máfia do dendê!” Esculhambam comigo. Tenho cinqüenta e oito anos. Já fiz coisa pra caramba. Adoro o disco novo – que acabei de fazer. Tenho minhas limitações, não sou um grande músico, não me acho o bacana. Não mesmo! A maioria das pessoas a que me referi aqui considero superiores a mim, na minha profissão. Alguns, muito superiores. João Gilberto, muitíssimo! Jorge Ben, muito; Chico Buarque, muito, sob certos aspectos; Lenine, muito, sob outros; Paulinho da Viola, muito sob outros aspectos, musicalmente. São pessoas superiores a mim, mas tenho uma contribuição a dar que inclui uma visão crítica, uma recolocação do modo de fazer a música popular, pensar aquilo e apresentar algo do pensamento no meu trabalho, fazer algumas canções que sejam mais ou menos relevantes, que fiquem aí. Eu me acho assim. Não sou modesto: eu estou sendo objetivo ao máximo! É assim que me vejo. Não me acho grandes coisas. Mas esse pessoal me superestima. É preciso que se reitere que sou o máximo para que seja pesado eles dizerem que sou uma porcaria! O que eles querem é que se intensifique o retrato que eles fazem de si mesmos, como grandes figuras, como Paulo Francisinhos. Não leio a Folhateen, uma vez ou outra é que dou uma olhada. Eu sei que não é todo mundo que diz, ali, que sou uma porcaria. É, sobretudo, esse cara que era daqui de TV, já trabalhou no Fantástico. Mas não ligo muito. Isso é um problema da imprensa, é comercialismo, é criação de personagem para vender aquele veículo. Não tem nenhuma contribuição organizada a oferecer para o leitor.
Você diria que a competição exacerbada entre os jornais vem prejudicando a cobertura cultural? Eu acho que prejudica a cobertura cultural, empobrece a prática do jornalismo e compromete a própria qualidade dos cadernos ditos culturais. Não que não haja coisas boas e interessantes! Mas existe uma coisa que acho mais grave, porque é um sintoma de um grande comercialismo dos jornais e de uma vulgarização do aspecto comercial do jornal: é a transformação de jornalistas – que assinam o nome – em personagens que procuram caricaturarse para ver se se tornam figuras. Nesta área do jornalismo cultural, dá-se muita ênfase a uma suposta agressividade dos apreciadores. É uma agressividade forçada, para que o jornal fique polêmico ou seja a estrela do acontecimento. Então, quando sai um disco, vê-se na maioria das redações uma disputa para ver quem escreve de maneira mais chocante sobre os produtos e os produtores de cultura. Isso é um negócio chato. Sinceramente, não posso aceitar que as mesmas pessoas que agem por uma motivação comercial reclamem contra o comercialismo da axé music ou da música sertaneja ou do pagode! Tenho vontade de rir quando vejo esse tipo de jornal e esse tipo de jornalismo querendo torcer o nariz para a axé music ou para duplas sertanejas. Digo: “Comparada com o que vejo nesses veículos, Daniela Mercury é São Francisco de Assis! É incomparável!” Há nos blocos de axé a responsabilidade de apresentar um produto respeitável. Também há, nas duplas caipiras e nos grupos de pagode, a responsabilidade de apresentar um produto de alta qualidade, dentro daquilo a que se propõem – com exigência, com trabalho, com profissionalismo, com respeito por quem vai consumir. Não vejo nada disso na produção desses jornalistas que torcem o nariz para música axé, pagode e sertaneja. Eu li numa revista um artigo que citava números para dizer que considerava auspiciosa a queda na vendagem da axé music e do pagode. A verdaContinente Multicultural 17
Uma baiana na festa da Lavagem do Bonfim – “A escravidão no Brasil foi muito hábil”
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EDUARDO KNAPP / FOLHA IMAGEM
LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
de é que o mercado fonográfico brasileiro estava caindo em geral, mas essa revista se dava ao direito de festejar dizendo “É bom, porque nós vamos nos livrar de ouvir esse lixo”. Mas a revista era um lixo – e essa música é que é bem feita, por gente honesta. Para mim, não dá! Dizem: “É corporativismo de Caetano Veloso; não se pode falar nada contra a música popular...” Mas não é assim, não. Não sou corporativista! Sou bom colega, tenho o maior orgulho de chegar a todo lugar do mundo e me perguntarem com inveja: “Como é que isso acontece no Brasil? Como é que você se dá com Djavan, se dá com Lenine, conhece Ivete Sangalo, freqüenta Daniela Mercury, fala com Sandy e Júnior, é amigo de Milton Nascimento e janta com o Edu Lobo? Não entendo como é que vocês se dão! Porque não é o que acontece aqui na Inglaterra, aqui na França”. Não pode, é impensável essas pessoas aqui conviverem, se encontrarem, se admitirem umas às outras. Tenho orgulho que seja assim, acho bonito, me sinto bem. É da minha natureza. Não sou corporativista, não, quando gente de música erra, eu digo e tenho dito com a maior clareza, às vezes com grande agressividade! Já houve coisas que desaprovei abertamente. Não fico procurando, não sou palmatória do mundo, não vou ficar aqui dizendo “Fulano é bom, fulano não é”, mas acontece que há limites. Eu reajo mesmo a pessoas que agem mal. Eu me lembro da briga com Fagner nos anos 70, 80. Durante uma entrevista, respondi violentamente porque Fagner tinha sido desonesto e injusto comigo publicamente. Tinha mentido a meu respeito. Respondi violentamente. Aldir Blanc – que estava participando da entrevista – desligou o gravador e me mandou apagar, eu disse: “Não! Faço questão de gravar para que saia o que quero dizer”. Agora mesmo tive uma discordância com Marcelo D2 – do Planet Hemp – por causa de uma atitude pública que ele teve. Adorei a apresentação do Planet Hemp na festa da MTV, achei que foi o melhor número da noite. Marcelo D2 disse no jornal que não gosta da minha música. Disse-me também pessoalmente que não gosta da minha música, o que acho bom, porque se o fato dele não gostar contribui para ele ser como ele é, então ótimo. É bom que as pessoas não gostem de algumas coisas para que possam ser mais intensamente o que elas são. Mas ele agiu mal comigo de uma maneira imperdoável que não tem nada a ver com o fato dele gostar da minha música ou não. Marcelo D2 marcou uma gravação para a trilha do filme Orfeu, mas não foi. Ficamos esperando; ele adiou para a segun-
da noite, mas não foi nem deu explicação. Nós procuramos, mas não o encontramos. Um mês depois, ele dá uma entrevista à Folha de S. Paulo para dizer que não foi porque soube que quem estava produzindo era Caetano Veloso. Quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha de S. Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso. Pensei: quando eu o encontrar vou dizer a ele: “Você não é homem. Você não foi viril. Isso não está certo”. E disse a ele – não foi gritando nem dando escândalo. Falei firme com ele. Não tenho, então, esse problema. Quando aconteceu aqui a polêmica sobre o pagamento dos cachês aos artistas no show do réveillon, achei que Paulinho da Viola não agiu certo. Eu disse a ele numa carta. Reitero aqui. Eu estou seguro de que ele não estava! Muita gente me disse: “Não, não diga!” Gil tentou até a última das últimas horas não desacreditar daquilo que estava sendo apresentado por Paulinho como sendo a versão verdadeira. Mas eu já sabia que não era. Adoro Paulinho da Viola. Para mim, ele é um dos deuses do Brasil, mas aquilo estava errado. Eu disse com todas as letras, numa carta que escrevi para o Jornal
balhada por computador. Fez-se uma fotomontagem naturalmente, porque a Veja é um amadurecimento com os rostos dos personagens da matéria. A repor- do jornalismo brasileiro, representa alguma coisa; tagem, horrenda de ponta a ponta, foi escrita por Al- não sou basicamente contra, mas vejo que há, ali, fredo Ribeiro – que também se assina Tutty Vasquez. alguma coisa terrível. Ou eu é que sou terrível de Era de uma desonestidade brutal. Era a época de alguma maneira para algo ali que termina não Collor, o que tornava mais perigoso o negócio, por- dando certo. Não sei porque saiu a matéria sobre que dava uma sensação horrível. O artigo dizia que Vigário Geral. Era mentira o que foi dito ali. Quem aquele era um grupo de pessoas que se enchiam de fez sabia que era mentira, mas distorceu proposidinheiro com o Brasil, mas só falavam mal do país. tadamente, porque tinha vontade de me agredir. Incluíram-me num elenco criado artificialmente. Você citou o caderno Folhateen – da Folha de Não há identidade nenhuma entre Tom Jobim e Chico Anísio, Millôr Fernandes e eu. Nem me dou S. Paulo – como um dos lugares onde se publicam com Millôr Fernandes – que, aliás, é uma das figu- críticas a você com certa freqüência. Um dos coluras da imprensa que eu admirava quando criança. nistas, Álvaro Pereira Júnior, diz que aqui no Brasil Depois de criarem o elenco artificialmente, atribuí- qualquer compositor que queira fazer sucesso tem de ram a todos uma suposta vontade de depreciar o estender o tapete vermelho para Caetano Veloso. É Brasil. É uma coisa disparatada em relação a mim. esse o tipo de crítica que irrita você? Não propriamente. Pode ser até que outra pesPorque, a Folhateen acho soa diga que quero salvar o Brasil a todo custo, ou que é um pouco brin“Sou uma vedete, descobrir algum canto, alcadeira. Mas é uma brincaguma coisa fascinante ou deira que tem um probleum cantor popular maravilhosa, uma identidama: o do comercialismo. famoso, um personagem Aquilo ali é feito para criar de especial do país. Mas é uma coisa horrenda dizer público de entretenimento um tipo de público, um que eu tendo a desmerecer tipo de platéia de que eles com uma capacidade de são os palhaços, os bem o país ou que eu demonstro uma grande ingratidão desenhados. É o negócio articular idéias e uma porque eu ganharia muito de Paulo Francis. O sujeito dinheiro com o Brasil! São escreve dizendo tudo o que vocação crítica muito termos inaceitáveis. Eu dispensa, não respeita fulano, desenvolvida. Não me se: “Assim não é possível!” eles falam tudo, “sei de tuNão dá para entender como do”, “estou por dentro”, acho grandes coisas” uma revista que se diz a “sei onde as cobras dormais respeitada – ou que mem”, “não tenho medo de supostamente se dirige ao leitor mais sério – pode vir dizer isto e aquilo”. É aquele personagem da imcom um negócio desses. Não dá para entender! Eu prensa. Mas Paulo Francis era um grande jordisse: “Não falo mais com essa gente! Chega!” nalista, um homem muito culto, muito inteligente, Fiquei muitos anos sem falar. Quem dirigia a revista escrevia rápido. Fez uma grande carreira de vedete. era esse Mário Sérgio Conti – um sujeito que hoje O grande confronto que houve entre mim e Paulo escreve bem na Folha de S. Paulo. É um oásis na Francis – e ele me agrediu violentamente – aconteceu Ilustrada, em meio a tanta gente que escreve mal. porque, mais cedo ou mais tarde, teria de haver um Deve escrever bem porque é mais velho, já aprendeu choque: sou uma vedete, um cantor popular famoso, a escrever um pouquinho mais. O fato é que ele – um personagem público do entretenimento com uma que dirigia a revista – e Alfredo Ribeiro – que fez o capacidade de articular idéias e uma vocação crítica artigo – terminaram saindo da Veja tempos depois. muito desenvolvida que apareceu no meu trabalho e Eu disse: “Acho que vou falar com a Veja”. Mas saiu nas minhas entrevistas. Já ele era um crítico e um jora matéria sobre Vigário Geral. Vi, então, que o pro- nalista muito articulado. Era um mau romancista, o blema não é Conti nem Ribeiro nem Vasquez. O que deve ter lhe causado amargura, porque ele queria problema é que aquele ali tem que ser – infe- ser um homem de alta cultura. lizmente! – inimigo meu. Faz parte de um aspecto Os meninos da Folhateen – os mais novos – do apartheid brasileiro o fato de eu ter de estar em pegaram justamente a última fase do Paulo Francis, oposição à revista Veja. Eu deveria poder apoiá-la, a mais reacionária, ligada a tudo o que fosse de direiContinente Multicultural 23
páginas coloridas com Tom Zé não foi a excelência real do trabalho que ele faz – e de fato é excelente –, mas a oportunidade de meter o pau em mim e em Gil! Não evitam mentir descaradamente. Mas ver essa gente falar mal de Alexandre Pires – que canta bem, é afinado, ensaia o show com responsabilidade e apresenta o produto perfeitamente – não dá, não dá! Aliás, sobre Tom Zé eles nunca disseram nada nos anos 70. Quando os discos de Tom Zé saíam, a imprensa nada fez por eles. Agora querem que seja minha ou de Gil a culpa pelo fato de Tom Zé não ter sido noticiado pela imprensa na época em que lançou discos maravilhosos, como, sobretudo, o Estudando o Samba – uma obra-prima. Eu, pessoalmente, já tive raiva da revista Veja por outras coisas. Quando Elis Regina morreu, achei abominável o tratamento que a Veja deu. Disse isso de público. O modo como eles LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
suástica. “Tudo é marketing de Caetano...” A revista, aí, me trata com desrespeito. Isso é um negócio brutal, sob o ponto de vista do jornalismo. Por que é feito isso? Há pouco tempo, na TV, um sujeito que faz programa de entrevistas na MTV perguntou para um garoto, num programa feito para adolescentes: “O que é que você acha que se deve fazer para o rock no Brasil ficar legal? A gente deve matar Caetano Veloso?” Matar?!!! Perguntar a um adolescente se é uma boa idéia matar Caetano Veloso? Isso é horrível, é absurdo. O mesmo apresentador deu uma entrevista na Istoé dizendo que tinha sido repreendido pela direção da emissora. Mas diz assim: “Ah, Marcelo D2 tem razão: disse à Folha de S. Paulo que não se pode falar nada contra Caetano Veloso”. Mas o que vejo, o tempo todo, na Folhateen (suplemento semanal da Folha de S. Paulo) é aquele
Caboclo de Lança do Maracatu Rural – “O Brasil apresenta um acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma bênção”
pessoal só falando mal de mim. Igualmente, na Ilustrada (caderno de cultura da Folha). A Veja é assim. Agora, para dizer que Tom Zé é bacana, “o verdadeiro rebelde”, a Veja esculhamba comigo, diz que eu gravei a música Sozinho, uma música banal, para botar na trilha sonora de uma novela. Mas eles sabem que não é verdade! Não foi o que aconteceu! Por que faz, então? Se a revista vai elogiar Tom Zé, por que tem de publicar um artigo, um negócio contra mim, Gal, Gil e Betânia? Aquilo desmerece Tom Zé, porque parece que o que animou a redação a fazer duas 22 Continente Multicultural
trataram foi um desrespeito horrível, uma atitude sensacionalista, um comercialismo baixo. Com o caso do cacique Paiakan também: sensacionalismo baixo! Comparado com aquilo, Ivete Sangalo é uma cantora de música religiosa estritamente pura, não fez nada por dinheiro. Eu não entendo essa moral! Parei de falar com a Veja quando eles fizeram uma reportagem em que eles punham Tom Jobim, eu, Millôr Fernandes e Chico Anísio, sob o título O clube dos ressentidos. A revista trouxe uma fotografia de uma ala da comissão de frente da Mangueira, tra-
“O Marcelo D2, do Planet Hemp, quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha de S. Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso. Pensei: quando eu o encontrar, direi a ele: ‘Você não é homem. Você não foi viril’. E disse a ele”
GEYSON MAGNO / LUMIAR
A banda do Recife Nação Zumbi, que Caetano conheceu recentemente e achou a melhor coisa do mundo
do Brasil. Uma porção de gente me esculhambou, em milhões de cartas. Vejo gente que hoje fala comigo na rua, mas escreveu me xingando. Comigo, então, não existe esse negócio de corporativismo banana nenhuma! Uma das melhores coisas que vi ultimamente foi o show da Nação Zumbi. Fui ver sozinho em Santa Teresa. Achei maravilhoso; achei a banda a melhor coisa do mundo. Mas, outro dia, Lírio, diretor de cinema, estava me dizendo que eles tinham ficado zangados porque não gostam do meu som. Eu disse: “Se é para fazer aquilo, então acho bom que não gostem do meu som”. Porque, para mim, aquilo que a Nação Zumbi faz é tudo o que há de bom. Talvez seja a melhor banda do Brasil atualmente! Desde o tempo de Chico Science, acho aquilo espetacular. Lírio estava me dizendo que eles tinham um grilo, porque eu tinha dito que aquilo veio do Olodum. Era como se o ritmo da Nação Zumbi tivesse sido tirado do Olodum. A idéia de um grupo de percussão de rua se modernizar com influências internacionais e manter ligações com a tradição da música de carnaval de rua é uma coisa que se tornou notória através do Olodum, não nego. O Olodum não tem uma banda própria que se compare nem de longe ou que tenha nível para lamber os pés da banda da Nação Zumbi. Mas o Olodum é o Olodum! Historicamente, influenciou esse tipo de atitude no Brasil inteiro. Não posso ver a Nação Zumbi sem pensar que, sem o Olodum, o estímulo para tomar aquela atitude nunca teria aparecido. O Olodum precedeu e estimulou aquilo. É o que eu disse. E é verdade. Ninguém precisa gostar do meu som, mas não tem o direito de dizer que eu disse uma coisa que eu não disse.
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Você diz que a imprensa reclama da qualidade da chamada música comercial, mas a imprensa deve se lembrar de que também ela segue as leis do comércio. Você quer convocar a imprensa a fazer uma comparação entre a qualidade do produto oferecido pelos jornalistas e a música? É esse o desafio que você quer fazer? Você falou exatamente o que eu podia ter falado em poucas palavras. Eu, pessoalmente, estou convencido de que a música comercial é de melhor qualidade do que a imprensa comercial brasileira. Gostaria que os jornalistas atentassem para isso. Você já reclamou de que as críticas que se fazem à axé music e aos pagodeiros escondem, na verdade, um preconceito contra a inclusão de gente humilde no mercado consumidor. O motivo é esse? É o motivo principal escondido atrás de tudo. O comentário que li celebrando o fato de o mercado ter caído foi publicado pela revista Veja. Íamos deixar de ouvir “esse lixo, axé, pagode, sertanejo”. Isso tudo é um modo de dizer: “A inclusão no mercado dessa gentalha que passou a consumir discos e a eleger esse ou aquele tipo de música é um negócio que o Brasil nunca teve, mas é passageiro, vai acabar, graças a Deus está passando, e vamos ficar nós aqui, com uma revista bacaninha, com uma gente de alto nível”. Acontece que não é assim. Isso daí é pavor de que a superação da escravidão – que Joaquim Nabuco preconizava – se realize. Você diz que o Brasil tem uma tendência para o apartheid tanto social quanto cultural. Quais são as manifestações concretas desse apartheid na música, no terreno musical, do gosto musical? Fiquei assustado quando você disse que eu disse que o Brasil tem uma tendência para o apartheid – tanto cultural quanto social. O Brasil tem
uma tendência para manter um grupo pequeno que termina funcionando como uma elite, no sentido de ser líder intelectual das maiorias. Mas é apenas uma elite dos que se salvaram da miséria. Isso é que é a elite, na verdade. Quando você conhece um brasileiro de sua classe social, você fala dez minutos e logo descobre que ele conhece quatro ou cinco pessoas com quem você tem algum tipo de relacionamento ou é parente. É pequeno o grupo de pessoas que está fora da grande massa miserável. Isso é que considero ser verdadeiramente um apartheid. Não gosto de quem diz ou quem tenta dizer que a segregação racial no Brasil é pior do que a que havia na África do Sul – onde existia um apartheid oficial pior do que a segregação racial que o Sul dos Estados Unidos conheceu. Discordo. Não acho que seja pior. Penso mais como Joaquim Nabuco. Um pouco além de Joaquim Nabuco quanto a este problema. Não gosto da tendência de chamar uma área da criação de música popular no Brasil de MPB. É considerá-la como se fosse a parte elevada de algo que, na maioria, é “vulgar e ruim”. Isso é um erro total! Eu me sinto violentamente agredido por isso. Quer dizer que eu sou MPB e Raulzito e os Racionais MCs não são? Ao mesmo tempo, eu, ofi-
área mais respeitável que se chama MPB, à qual eu pertenceria. Errado! Mas há também brigas mais ou menos alimentadas – que não deveriam ter razão de ser, mas chegam a níveis baixíssimos, não por minha culpa. É o caso da revista Veja, por exemplo – uma coisa chocante. Não falo com a revista Veja há 10 anos. Faz uns dois, três anos, eu ia voltar a falar, ia voltar a aceitar. Eu estava começando a pensar a voltar a falar com a revista, porque os responsáveis por um negócio imperdoável que aconteceu há anos já tinham sido afastados. Eu digo: a revista começou em 68; eu comecei em 67. A Veja tinha uma vontade louca de imitar a revista americana Time, no tamanho, na frase com dois pontos embaixo das fotos, enfim, tudo bem. A Veja até publica reportagens políticas boas, é a melhor revista semanal do Brasil, assim de brincadeira, a mais respeitada, mas comigo é muito ruim, é muito errada! Quando eu estava pensando “agora vou falar”, fizeram uma reportagem sobre minha ida a Vigário Geral com o pessoal do afro-reggae. São meus afilhados, colaboro com eles na medida em que posso, admiro enormemente o que eles vêm fazendo. O disco que eles vão lançar é uma beleza, o show é um acontecimento, todo mundo deveria ver. Eu espero
“Um sujeito da MTV perguntou para um garoto: ‘O que é que você acha que se deve fazer para o rock no Brasil ficar legal? A gente deve matar Caetano Veloso?’ Matar?!!! Perguntar a um adolescente se é uma boa idéia matar Caetano Veloso?” que em breve todo mundo veja em toda parte do Brasil, porque é espetacular. Mas eles têm um número em que eles entram todos encapuzados no palco. O que eles me pediram? Como eu ia cantar logo em seguida, eles me pediram que eu entrasse encapuzado com eles. Eu iria ficar lá no meio do palco. Depois, quando eles todos levantassem o capuz, eu levantaria – e já sairia cantando. Já se veria que era eu. Depois, eu ficaria sozinho cantando. Assim fizemos. Mas a revista Veja publicou uma Você uma vez disse que os artistas não devem reportagem mentindo descaradamente e dizendo e não podem seguir a mesma hierarquia que os que eu botei uma máscara preta para fazer marketing. jornalistas seguem – e vice-vversa. Qual é o maior Parecia que só eu é que tinha ido de máscara. A equívoco da imprensa em relação a você? revista dizia que aquilo era uma coisa terrível porque Em primeiro lugar, para falar da imprensa em quem usa aquelas máscaras são os matadores. Era termos gerais, o equívoco é a idéia de que há uma como se eu fosse para um gueto judeu com uma
cialmente, estaria junto com Chico Buarque, Chico César, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Mas aí a Daniela Mercury não é – ou agora já quase é. Já o Chiclete com Banana não é. A turma que é MPB necessariamente estaria num nível superior de produção musical. Não acho! Não acho mesmo. As duas coisas estão erradas. O que se pode chamar de MPB é só uma coisa: a música popular feita, no Brasil, pelos brasileiros.
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GEYSON MAGNO / LUMIAR
A banda do Recife Nação Zumbi, que Caetano conheceu recentemente e achou a melhor coisa do mundo
do Brasil. Uma porção de gente me esculhambou, em milhões de cartas. Vejo gente que hoje fala comigo na rua, mas escreveu me xingando. Comigo, então, não existe esse negócio de corporativismo banana nenhuma! Uma das melhores coisas que vi ultimamente foi o show da Nação Zumbi. Fui ver sozinho em Santa Teresa. Achei maravilhoso; achei a banda a melhor coisa do mundo. Mas, outro dia, Lírio, diretor de cinema, estava me dizendo que eles tinham ficado zangados porque não gostam do meu som. Eu disse: “Se é para fazer aquilo, então acho bom que não gostem do meu som”. Porque, para mim, aquilo que a Nação Zumbi faz é tudo o que há de bom. Talvez seja a melhor banda do Brasil atualmente! Desde o tempo de Chico Science, acho aquilo espetacular. Lírio estava me dizendo que eles tinham um grilo, porque eu tinha dito que aquilo veio do Olodum. Era como se o ritmo da Nação Zumbi tivesse sido tirado do Olodum. A idéia de um grupo de percussão de rua se modernizar com influências internacionais e manter ligações com a tradição da música de carnaval de rua é uma coisa que se tornou notória através do Olodum, não nego. O Olodum não tem uma banda própria que se compare nem de longe ou que tenha nível para lamber os pés da banda da Nação Zumbi. Mas o Olodum é o Olodum! Historicamente, influenciou esse tipo de atitude no Brasil inteiro. Não posso ver a Nação Zumbi sem pensar que, sem o Olodum, o estímulo para tomar aquela atitude nunca teria aparecido. O Olodum precedeu e estimulou aquilo. É o que eu disse. E é verdade. Ninguém precisa gostar do meu som, mas não tem o direito de dizer que eu disse uma coisa que eu não disse.
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Você diz que a imprensa reclama da qualidade da chamada música comercial, mas a imprensa deve se lembrar de que também ela segue as leis do comércio. Você quer convocar a imprensa a fazer uma comparação entre a qualidade do produto oferecido pelos jornalistas e a música? É esse o desafio que você quer fazer? Você falou exatamente o que eu podia ter falado em poucas palavras. Eu, pessoalmente, estou convencido de que a música comercial é de melhor qualidade do que a imprensa comercial brasileira. Gostaria que os jornalistas atentassem para isso. Você já reclamou de que as críticas que se fazem à axé music e aos pagodeiros escondem, na verdade, um preconceito contra a inclusão de gente humilde no mercado consumidor. O motivo é esse? É o motivo principal escondido atrás de tudo. O comentário que li celebrando o fato de o mercado ter caído foi publicado pela revista Veja. Íamos deixar de ouvir “esse lixo, axé, pagode, sertanejo”. Isso tudo é um modo de dizer: “A inclusão no mercado dessa gentalha que passou a consumir discos e a eleger esse ou aquele tipo de música é um negócio que o Brasil nunca teve, mas é passageiro, vai acabar, graças a Deus está passando, e vamos ficar nós aqui, com uma revista bacaninha, com uma gente de alto nível”. Acontece que não é assim. Isso daí é pavor de que a superação da escravidão – que Joaquim Nabuco preconizava – se realize. Você diz que o Brasil tem uma tendência para o apartheid tanto social quanto cultural. Quais são as manifestações concretas desse apartheid na música, no terreno musical, do gosto musical? Fiquei assustado quando você disse que eu disse que o Brasil tem uma tendência para o apartheid – tanto cultural quanto social. O Brasil tem
uma tendência para manter um grupo pequeno que termina funcionando como uma elite, no sentido de ser líder intelectual das maiorias. Mas é apenas uma elite dos que se salvaram da miséria. Isso é que é a elite, na verdade. Quando você conhece um brasileiro de sua classe social, você fala dez minutos e logo descobre que ele conhece quatro ou cinco pessoas com quem você tem algum tipo de relacionamento ou é parente. É pequeno o grupo de pessoas que está fora da grande massa miserável. Isso é que considero ser verdadeiramente um apartheid. Não gosto de quem diz ou quem tenta dizer que a segregação racial no Brasil é pior do que a que havia na África do Sul – onde existia um apartheid oficial pior do que a segregação racial que o Sul dos Estados Unidos conheceu. Discordo. Não acho que seja pior. Penso mais como Joaquim Nabuco. Um pouco além de Joaquim Nabuco quanto a este problema. Não gosto da tendência de chamar uma área da criação de música popular no Brasil de MPB. É considerá-la como se fosse a parte elevada de algo que, na maioria, é “vulgar e ruim”. Isso é um erro total! Eu me sinto violentamente agredido por isso. Quer dizer que eu sou MPB e Raulzito e os Racionais MCs não são? Ao mesmo tempo, eu, ofi-
área mais respeitável que se chama MPB, à qual eu pertenceria. Errado! Mas há também brigas mais ou menos alimentadas – que não deveriam ter razão de ser, mas chegam a níveis baixíssimos, não por minha culpa. É o caso da revista Veja, por exemplo – uma coisa chocante. Não falo com a revista Veja há 10 anos. Faz uns dois, três anos, eu ia voltar a falar, ia voltar a aceitar. Eu estava começando a pensar a voltar a falar com a revista, porque os responsáveis por um negócio imperdoável que aconteceu há anos já tinham sido afastados. Eu digo: a revista começou em 68; eu comecei em 67. A Veja tinha uma vontade louca de imitar a revista americana Time, no tamanho, na frase com dois pontos embaixo das fotos, enfim, tudo bem. A Veja até publica reportagens políticas boas, é a melhor revista semanal do Brasil, assim de brincadeira, a mais respeitada, mas comigo é muito ruim, é muito errada! Quando eu estava pensando “agora vou falar”, fizeram uma reportagem sobre minha ida a Vigário Geral com o pessoal do afro-reggae. São meus afilhados, colaboro com eles na medida em que posso, admiro enormemente o que eles vêm fazendo. O disco que eles vão lançar é uma beleza, o show é um acontecimento, todo mundo deveria ver. Eu espero
“Um sujeito da MTV perguntou para um garoto: ‘O que é que você acha que se deve fazer para o rock no Brasil ficar legal? A gente deve matar Caetano Veloso?’ Matar?!!! Perguntar a um adolescente se é uma boa idéia matar Caetano Veloso?” que em breve todo mundo veja em toda parte do Brasil, porque é espetacular. Mas eles têm um número em que eles entram todos encapuzados no palco. O que eles me pediram? Como eu ia cantar logo em seguida, eles me pediram que eu entrasse encapuzado com eles. Eu iria ficar lá no meio do palco. Depois, quando eles todos levantassem o capuz, eu levantaria – e já sairia cantando. Já se veria que era eu. Depois, eu ficaria sozinho cantando. Assim fizemos. Mas a revista Veja publicou uma Você uma vez disse que os artistas não devem reportagem mentindo descaradamente e dizendo e não podem seguir a mesma hierarquia que os que eu botei uma máscara preta para fazer marketing. jornalistas seguem – e vice-vversa. Qual é o maior Parecia que só eu é que tinha ido de máscara. A equívoco da imprensa em relação a você? revista dizia que aquilo era uma coisa terrível porque Em primeiro lugar, para falar da imprensa em quem usa aquelas máscaras são os matadores. Era termos gerais, o equívoco é a idéia de que há uma como se eu fosse para um gueto judeu com uma
cialmente, estaria junto com Chico Buarque, Chico César, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Mas aí a Daniela Mercury não é – ou agora já quase é. Já o Chiclete com Banana não é. A turma que é MPB necessariamente estaria num nível superior de produção musical. Não acho! Não acho mesmo. As duas coisas estão erradas. O que se pode chamar de MPB é só uma coisa: a música popular feita, no Brasil, pelos brasileiros.
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páginas coloridas com Tom Zé não foi a excelência real do trabalho que ele faz – e de fato é excelente –, mas a oportunidade de meter o pau em mim e em Gil! Não evitam mentir descaradamente. Mas ver essa gente falar mal de Alexandre Pires – que canta bem, é afinado, ensaia o show com responsabilidade e apresenta o produto perfeitamente – não dá, não dá! Aliás, sobre Tom Zé eles nunca disseram nada nos anos 70. Quando os discos de Tom Zé saíam, a imprensa nada fez por eles. Agora querem que seja minha ou de Gil a culpa pelo fato de Tom Zé não ter sido noticiado pela imprensa na época em que lançou discos maravilhosos, como, sobretudo, o Estudando o Samba – uma obra-prima. Eu, pessoalmente, já tive raiva da revista Veja por outras coisas. Quando Elis Regina morreu, achei abominável o tratamento que a Veja deu. Disse isso de público. O modo como eles LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
suástica. “Tudo é marketing de Caetano...” A revista, aí, me trata com desrespeito. Isso é um negócio brutal, sob o ponto de vista do jornalismo. Por que é feito isso? Há pouco tempo, na TV, um sujeito que faz programa de entrevistas na MTV perguntou para um garoto, num programa feito para adolescentes: “O que é que você acha que se deve fazer para o rock no Brasil ficar legal? A gente deve matar Caetano Veloso?” Matar?!!! Perguntar a um adolescente se é uma boa idéia matar Caetano Veloso? Isso é horrível, é absurdo. O mesmo apresentador deu uma entrevista na Istoé dizendo que tinha sido repreendido pela direção da emissora. Mas diz assim: “Ah, Marcelo D2 tem razão: disse à Folha de S. Paulo que não se pode falar nada contra Caetano Veloso”. Mas o que vejo, o tempo todo, na Folhateen (suplemento semanal da Folha de S. Paulo) é aquele
Caboclo de Lança do Maracatu Rural – “O Brasil apresenta um acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma bênção”
pessoal só falando mal de mim. Igualmente, na Ilustrada (caderno de cultura da Folha). A Veja é assim. Agora, para dizer que Tom Zé é bacana, “o verdadeiro rebelde”, a Veja esculhamba comigo, diz que eu gravei a música Sozinho, uma música banal, para botar na trilha sonora de uma novela. Mas eles sabem que não é verdade! Não foi o que aconteceu! Por que faz, então? Se a revista vai elogiar Tom Zé, por que tem de publicar um artigo, um negócio contra mim, Gal, Gil e Betânia? Aquilo desmerece Tom Zé, porque parece que o que animou a redação a fazer duas 22 Continente Multicultural
trataram foi um desrespeito horrível, uma atitude sensacionalista, um comercialismo baixo. Com o caso do cacique Paiakan também: sensacionalismo baixo! Comparado com aquilo, Ivete Sangalo é uma cantora de música religiosa estritamente pura, não fez nada por dinheiro. Eu não entendo essa moral! Parei de falar com a Veja quando eles fizeram uma reportagem em que eles punham Tom Jobim, eu, Millôr Fernandes e Chico Anísio, sob o título O clube dos ressentidos. A revista trouxe uma fotografia de uma ala da comissão de frente da Mangueira, tra-
“O Marcelo D2, do Planet Hemp, quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha de S. Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso. Pensei: quando eu o encontrar, direi a ele: ‘Você não é homem. Você não foi viril’. E disse a ele”
Uma baiana na festa da Lavagem do Bonfim – “A escravidão no Brasil foi muito hábil”
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EDUARDO KNAPP / FOLHA IMAGEM
LUIZ SANTOS / ACERVOIMAGEM
de é que o mercado fonográfico brasileiro estava caindo em geral, mas essa revista se dava ao direito de festejar dizendo “É bom, porque nós vamos nos livrar de ouvir esse lixo”. Mas a revista era um lixo – e essa música é que é bem feita, por gente honesta. Para mim, não dá! Dizem: “É corporativismo de Caetano Veloso; não se pode falar nada contra a música popular...” Mas não é assim, não. Não sou corporativista! Sou bom colega, tenho o maior orgulho de chegar a todo lugar do mundo e me perguntarem com inveja: “Como é que isso acontece no Brasil? Como é que você se dá com Djavan, se dá com Lenine, conhece Ivete Sangalo, freqüenta Daniela Mercury, fala com Sandy e Júnior, é amigo de Milton Nascimento e janta com o Edu Lobo? Não entendo como é que vocês se dão! Porque não é o que acontece aqui na Inglaterra, aqui na França”. Não pode, é impensável essas pessoas aqui conviverem, se encontrarem, se admitirem umas às outras. Tenho orgulho que seja assim, acho bonito, me sinto bem. É da minha natureza. Não sou corporativista, não, quando gente de música erra, eu digo e tenho dito com a maior clareza, às vezes com grande agressividade! Já houve coisas que desaprovei abertamente. Não fico procurando, não sou palmatória do mundo, não vou ficar aqui dizendo “Fulano é bom, fulano não é”, mas acontece que há limites. Eu reajo mesmo a pessoas que agem mal. Eu me lembro da briga com Fagner nos anos 70, 80. Durante uma entrevista, respondi violentamente porque Fagner tinha sido desonesto e injusto comigo publicamente. Tinha mentido a meu respeito. Respondi violentamente. Aldir Blanc – que estava participando da entrevista – desligou o gravador e me mandou apagar, eu disse: “Não! Faço questão de gravar para que saia o que quero dizer”. Agora mesmo tive uma discordância com Marcelo D2 – do Planet Hemp – por causa de uma atitude pública que ele teve. Adorei a apresentação do Planet Hemp na festa da MTV, achei que foi o melhor número da noite. Marcelo D2 disse no jornal que não gosta da minha música. Disse-me também pessoalmente que não gosta da minha música, o que acho bom, porque se o fato dele não gostar contribui para ele ser como ele é, então ótimo. É bom que as pessoas não gostem de algumas coisas para que possam ser mais intensamente o que elas são. Mas ele agiu mal comigo de uma maneira imperdoável que não tem nada a ver com o fato dele gostar da minha música ou não. Marcelo D2 marcou uma gravação para a trilha do filme Orfeu, mas não foi. Ficamos esperando; ele adiou para a segun-
da noite, mas não foi nem deu explicação. Nós procuramos, mas não o encontramos. Um mês depois, ele dá uma entrevista à Folha de S. Paulo para dizer que não foi porque soube que quem estava produzindo era Caetano Veloso. Quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha de S. Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso. Pensei: quando eu o encontrar vou dizer a ele: “Você não é homem. Você não foi viril. Isso não está certo”. E disse a ele – não foi gritando nem dando escândalo. Falei firme com ele. Não tenho, então, esse problema. Quando aconteceu aqui a polêmica sobre o pagamento dos cachês aos artistas no show do réveillon, achei que Paulinho da Viola não agiu certo. Eu disse a ele numa carta. Reitero aqui. Eu estou seguro de que ele não estava! Muita gente me disse: “Não, não diga!” Gil tentou até a última das últimas horas não desacreditar daquilo que estava sendo apresentado por Paulinho como sendo a versão verdadeira. Mas eu já sabia que não era. Adoro Paulinho da Viola. Para mim, ele é um dos deuses do Brasil, mas aquilo estava errado. Eu disse com todas as letras, numa carta que escrevi para o Jornal
balhada por computador. Fez-se uma fotomontagem naturalmente, porque a Veja é um amadurecimento com os rostos dos personagens da matéria. A repor- do jornalismo brasileiro, representa alguma coisa; tagem, horrenda de ponta a ponta, foi escrita por Al- não sou basicamente contra, mas vejo que há, ali, fredo Ribeiro – que também se assina Tutty Vasquez. alguma coisa terrível. Ou eu é que sou terrível de Era de uma desonestidade brutal. Era a época de alguma maneira para algo ali que termina não Collor, o que tornava mais perigoso o negócio, por- dando certo. Não sei porque saiu a matéria sobre que dava uma sensação horrível. O artigo dizia que Vigário Geral. Era mentira o que foi dito ali. Quem aquele era um grupo de pessoas que se enchiam de fez sabia que era mentira, mas distorceu proposidinheiro com o Brasil, mas só falavam mal do país. tadamente, porque tinha vontade de me agredir. Incluíram-me num elenco criado artificialmente. Você citou o caderno Folhateen – da Folha de Não há identidade nenhuma entre Tom Jobim e Chico Anísio, Millôr Fernandes e eu. Nem me dou S. Paulo – como um dos lugares onde se publicam com Millôr Fernandes – que, aliás, é uma das figu- críticas a você com certa freqüência. Um dos coluras da imprensa que eu admirava quando criança. nistas, Álvaro Pereira Júnior, diz que aqui no Brasil Depois de criarem o elenco artificialmente, atribuí- qualquer compositor que queira fazer sucesso tem de ram a todos uma suposta vontade de depreciar o estender o tapete vermelho para Caetano Veloso. É Brasil. É uma coisa disparatada em relação a mim. esse o tipo de crítica que irrita você? Não propriamente. Pode ser até que outra pesPorque, a Folhateen acho soa diga que quero salvar o Brasil a todo custo, ou que é um pouco brin“Sou uma vedete, descobrir algum canto, alcadeira. Mas é uma brincaguma coisa fascinante ou deira que tem um probleum cantor popular maravilhosa, uma identidama: o do comercialismo. famoso, um personagem Aquilo ali é feito para criar de especial do país. Mas é uma coisa horrenda dizer público de entretenimento um tipo de público, um que eu tendo a desmerecer tipo de platéia de que eles com uma capacidade de são os palhaços, os bem o país ou que eu demonstro uma grande ingratidão desenhados. É o negócio articular idéias e uma porque eu ganharia muito de Paulo Francis. O sujeito dinheiro com o Brasil! São escreve dizendo tudo o que vocação crítica muito termos inaceitáveis. Eu dispensa, não respeita fulano, desenvolvida. Não me se: “Assim não é possível!” eles falam tudo, “sei de tuNão dá para entender como do”, “estou por dentro”, acho grandes coisas” uma revista que se diz a “sei onde as cobras dormais respeitada – ou que mem”, “não tenho medo de supostamente se dirige ao leitor mais sério – pode vir dizer isto e aquilo”. É aquele personagem da imcom um negócio desses. Não dá para entender! Eu prensa. Mas Paulo Francis era um grande jordisse: “Não falo mais com essa gente! Chega!” nalista, um homem muito culto, muito inteligente, Fiquei muitos anos sem falar. Quem dirigia a revista escrevia rápido. Fez uma grande carreira de vedete. era esse Mário Sérgio Conti – um sujeito que hoje O grande confronto que houve entre mim e Paulo escreve bem na Folha de S. Paulo. É um oásis na Francis – e ele me agrediu violentamente – aconteceu Ilustrada, em meio a tanta gente que escreve mal. porque, mais cedo ou mais tarde, teria de haver um Deve escrever bem porque é mais velho, já aprendeu choque: sou uma vedete, um cantor popular famoso, a escrever um pouquinho mais. O fato é que ele – um personagem público do entretenimento com uma que dirigia a revista – e Alfredo Ribeiro – que fez o capacidade de articular idéias e uma vocação crítica artigo – terminaram saindo da Veja tempos depois. muito desenvolvida que apareceu no meu trabalho e Eu disse: “Acho que vou falar com a Veja”. Mas saiu nas minhas entrevistas. Já ele era um crítico e um jora matéria sobre Vigário Geral. Vi, então, que o pro- nalista muito articulado. Era um mau romancista, o blema não é Conti nem Ribeiro nem Vasquez. O que deve ter lhe causado amargura, porque ele queria problema é que aquele ali tem que ser – infe- ser um homem de alta cultura. lizmente! – inimigo meu. Faz parte de um aspecto Os meninos da Folhateen – os mais novos – do apartheid brasileiro o fato de eu ter de estar em pegaram justamente a última fase do Paulo Francis, oposição à revista Veja. Eu deveria poder apoiá-la, a mais reacionária, ligada a tudo o que fosse de direiContinente Multicultural 23
Se o livro Verdade Tropical foi escrito contra Paulo Francis, que infelizmente morreu antes de o livro ser concluído, o disco Noites do Norte é contra ou a favor de quem? É a favor do Joaquim Nabuco. Geneton Moraes Neto é jornalista e chefe de redação do programa Fantástico, da TV Globo
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CAETANO & GIL & EDU & MILTON & CHICO Marcus Accioly Quando corria pelo Tristes trópicos (de Lévi-Strauss) a alegre Tropicália: som dos "novos baianos" (voz de exóticos tropicalistas) cantos da vanguardado-tempo contra o eclipse dos óculosde-vidro-verde (fundo-de-garrafa) aconteceu Caetano e estreou Gil (compositocantores do Brasil) aconteceu Caetano que ("sem lenço" nem "documento / contra o vento") foi bilingüemente (ao dúplice silêncio) cantar (de Capinam e Gil) o herói que procurou a morte como exemplo de amor à vida e à liberdade ("Soy loco por ti, América") um hino (onde "el nombre del hombre muerto" é vivo) estreou Gil (naquela ambígua-idade entre o Superbacana e o Super-homem) com um Domingo no parque da cidade onde a faca ("ê José") ainda come Juliana ("oi João") e o sol à tarde roda à roda-gigante o dia e some sob a lua (que nasce levitando o seu sorvete rosa de morango) na época-de-chumbo (paralelo ao Movimento) um outro som surgia de Edu Lobo (esporando o seu Ponteio) com Milton Nascimento (em Travessia) e Chico (religando elo por elo dos fios da canção) entretecia uma corrente-viva que (com nósde-ferro) armava a víbora da voz. (do livro inédito Latinomérica)
“Ivete Sangalo arrebenta cantando. Mas os artigos que a criticam são mal escritos! A idéia é primária, o português está errado, e eles vão falar mal da Ivete Sangalo? Não dá! É muito abaixo da Ivete Sangalo.” ele saiba pelo menos escrever. Mas, não! Ele é uma estrela da agressão e da opinião moderna. Só gosta de grupos de língua inglesa. Para ele, nada do que é brasileiro pode prestar jamais! Isso já é um princípio simplório demais. Fazem personagens assim, mas não apresentam sequer um produto comparável ao que Sandy e Júnior apresentam. Chitãozinho e Xororó cantam afinado, ensaiam bem os shows. Os artigos são mal escritos! Você vai ler: está errado o português! A idéia é primária, o português está errado, e ele vai falar mal da Sandy? Vai falar mal de Ivete Sangalo? Não dá! É muito abaixo da Ivete Sangalo, como quem apresenta um produto que vou consumir. Sou, então, muito mais exigente. Não há relativismo possível aí! O que estou dizendo é que essas pessoas são superiores àquelas outras, naquilo que fazem! De fato, são! Posso mostrar a você que, numa gravação da Sandy, a afinação é 100%! Eu levo você ao show da Sandy. Digo assim: “Você não vai ver aqui um buraco, porque ela entra no tempo certo, ela tem intensidade de voz certa em relação aos instrumentos, as harmonias estão certas, a afinação é em nível de Elis Regina!” Mas posso pegar o texto do crítico Pedro Alexandre Sanches e dizer: “Venha cá, o que é que este parágrafo quer dizer?” É tudo errado, mal escrito. Posso pegar o texto de Mário Marques: “Isso aqui está mal escrito!” Então, não existe nada de relativista nisso. Nada! Ao contrário: é possível mostrar claramente que o que estou dizendo é pertinente, porque há valores universais que podem ser reconhecidos ali. Há redações bem realizadas e há cantos afinados. Há cantos desafinados, você pode até medir a afinação em aparelhos. Não há nada de relativismo. Há, sim, valores absolutos, universais. Uma nota afinada é uma nota afinada! Também há uma modernidade a respeito da utilização da nota afinada, um interesse pela desafinação, pela microfonização, pela negação da tonalidade. Mas são outros quinhentos. Isso é o momento meu menos relativista: eu estou me atendo a valores reconhecíveis e indiscutíveis.
EDUARDO QUEIROGA / LUMIAR
ta. Todos os aspectos da direita ele enaltecia. Tornouse até meio acrítico quanto a isso. São meninos que lêem gibi. Acham que podem esculhambar comigo. Um jornalista dá uma entrevista ao jornal Caros Amigos e esculhamba comigo. Vem Roberto Freire – não o político pernambucano, mas o psicoterapeuta paulista – e reitera as palavras do jornalista meio jovem da Folha que me esculhambou. Roberto Freire, um homem velho, não tem vergonha na cara? Que negócio chato! Mas, na Folhateen, fazem esse tipo, como o menino que deu a entrevista para Caros Amigos. É um personagem que diz assim: “Temos que destruir a máfia do dendê!” Esculhambam comigo. Tenho cinqüenta e oito anos. Já fiz coisa pra caramba. Adoro o disco novo – que acabei de fazer. Tenho minhas limitações, não sou um grande músico, não me acho o bacana. Não mesmo! A maioria das pessoas a que me referi aqui considero superiores a mim, na minha profissão. Alguns, muito superiores. João Gilberto, muitíssimo! Jorge Ben, muito; Chico Buarque, muito, sob certos aspectos; Lenine, muito, sob outros; Paulinho da Viola, muito sob outros aspectos, musicalmente. São pessoas superiores a mim, mas tenho uma contribuição a dar que inclui uma visão crítica, uma recolocação do modo de fazer a música popular, pensar aquilo e apresentar algo do pensamento no meu trabalho, fazer algumas canções que sejam mais ou menos relevantes, que fiquem aí. Eu me acho assim. Não sou modesto: eu estou sendo objetivo ao máximo! É assim que me vejo. Não me acho grandes coisas. Mas esse pessoal me superestima. É preciso que se reitere que sou o máximo para que seja pesado eles dizerem que sou uma porcaria! O que eles querem é que se intensifique o retrato que eles fazem de si mesmos, como grandes figuras, como Paulo Francisinhos. Não leio a Folhateen, uma vez ou outra é que dou uma olhada. Eu sei que não é todo mundo que diz, ali, que sou uma porcaria. É, sobretudo, esse cara que era daqui de TV, já trabalhou no Fantástico. Mas não ligo muito. Isso é um problema da imprensa, é comercialismo, é criação de personagem para vender aquele veículo. Não tem nenhuma contribuição organizada a oferecer para o leitor.
Você diria que a competição exacerbada entre os jornais vem prejudicando a cobertura cultural? Eu acho que prejudica a cobertura cultural, empobrece a prática do jornalismo e compromete a própria qualidade dos cadernos ditos culturais. Não que não haja coisas boas e interessantes! Mas existe uma coisa que acho mais grave, porque é um sintoma de um grande comercialismo dos jornais e de uma vulgarização do aspecto comercial do jornal: é a transformação de jornalistas – que assinam o nome – em personagens que procuram caricaturarse para ver se se tornam figuras. Nesta área do jornalismo cultural, dá-se muita ênfase a uma suposta agressividade dos apreciadores. É uma agressividade forçada, para que o jornal fique polêmico ou seja a estrela do acontecimento. Então, quando sai um disco, vê-se na maioria das redações uma disputa para ver quem escreve de maneira mais chocante sobre os produtos e os produtores de cultura. Isso é um negócio chato. Sinceramente, não posso aceitar que as mesmas pessoas que agem por uma motivação comercial reclamem contra o comercialismo da axé music ou da música sertaneja ou do pagode! Tenho vontade de rir quando vejo esse tipo de jornal e esse tipo de jornalismo querendo torcer o nariz para a axé music ou para duplas sertanejas. Digo: “Comparada com o que vejo nesses veículos, Daniela Mercury é São Francisco de Assis! É incomparável!” Há nos blocos de axé a responsabilidade de apresentar um produto respeitável. Também há, nas duplas caipiras e nos grupos de pagode, a responsabilidade de apresentar um produto de alta qualidade, dentro daquilo a que se propõem – com exigência, com trabalho, com profissionalismo, com respeito por quem vai consumir. Não vejo nada disso na produção desses jornalistas que torcem o nariz para música axé, pagode e sertaneja. Eu li numa revista um artigo que citava números para dizer que considerava auspiciosa a queda na vendagem da axé music e do pagode. A verdaContinente Multicultural 17
pliar o campo discursivo, materializado em programas de pesquisa e intercâmbio acadêmico. O Brasil avançou muito na construção dos modelos teóricos que hoje valem para o período, mas outros paradigmas jazem enclausurados em uma massa ainda disforme de informação histórica, não suficientemente explorada. Por outro lado, a Holanda dispõe de excelentes grupos de pesquisa e universidades conceituadas, mas que fazem uso estreito destes documentos, e exploram apenas superficialmente este importante movimento histórico que envolve os princípios da expansão marítima, comércio atlântico, relações comerciais, capitalismo judeu e relações interétnicas, entre outros tantos temas. Desde o princípio da aventura portuguesa na exploração e comercialização do açúcar produzido no Atlântico, os ricos e florescentes flamengos participaram financeiramente da montagem da agroindústria do açúcar no Nordeste brasileiro, e conseqüentemente se habilitaram ao comércio, refino e distribuição deste produto que conquista espaço significativo na economia holandesa. Esta economia permanece em equilíbrio até que a União Ibérica coloca Portugal e Espanha abaixo da Coroa dos Felipes, mudando os lugares na mesa dos aliados e os rumos históricos do Atlântico Sul. Era o décimo sétimo século da era cristã, um período de efervescência econômica e cultural da Europa renascida e iluminada pelo Humanismo. Ao norte do continente, um caldeirão de pequenas nacionalidades indefinidas forjariam uma identidade mercantil poderosa, abrigadas em república sob o título de Províncias Unidas dos Países Baixos. O Século do Ouro, olhado com reservas pelo puritanismo calvinista, transbordava um esplendor cultural sem precedentes. Neste século, Amsterdam abrigou figuras como Rembrant, o francês René Decartes, o marano judeu novo de origem portuguesa Benedictus Espinoza, Constatijn Huigens, Hugo de Grotte, entre tantos outros. Amsterdam crescia com os novos ventos soprados pelo mercantilismo enriquecendo uma casta de burgueses bem-sucedidos, envolvidos com o comércio marítimo, especialmente com o mercado atlântico. O esplendor “contido” de Amsterdam e das demais províncias do norte dos Países Baixos representava a derrocada da Antuérpia como portão de en32 Continente Multicultural
trada europeu para este mercado, e o esboço de uma nova ordem geopolítica e econômica européia. A Guerra dos Oitenta Anos libertara estas províncias arrasadas pela intolerância do jugo espanhol, impulsionando-as para o Atlântico, destino final de todos os mercadores. A produção tropical de açúcar, madeiras tintureiras e especiarias, criaram um ambiente comercial prodigioso para o capital mercantil. O Brasil era o lugar onde se produzia o ouro branco – o açúcar – e outros produtos tropicais que geravam os excedentes, que a seu turno, alimentavam a ambição dos capitalistas mercadores; mas era também, por excelência, o que a economia moderna denomina de “mercado emergente”, onde escravos africanos e manufaturados europeus tinham consumo garantido. Esta combinação criara desde o século 16 uma corrente de circulação de bens extremamente atraente para a burguesia capitalista, gerando altos lucros nesta troca de produtos. Parte significativa dos recursos gerados na comercialização do açúcar retornava imediatamente para o capital mercantil, através do mercado de escravos ao qual a colônia estava dependente. Tecidos manufaturados e tinturados com pau-brasil na Europa e toda uma sorte de quinquilharias, tais como espelhos, anzóis, facas; instrumentos de ferro como serrotes, martelos e torqueses, etc. Valia a lei do mercado intermediário: compravam-se bens tropicais a seus produtores a baixo preço, enquanto se repassavam a estes mesmos produtores os manufaturados europeus, a alto preço. Na Europa, a regra invertia-se: os produtos adquiridos a baixo preço nos trópicos alcançavam nestas praças preços elevados, enquanto os bens manufaturados no continente eram comprados em um mercado crescente, regulados pela lei da oferta e procura, e conseqüentemente a preços mais competitivos. A Holanda tinha aspirações coloniais distintas das dos ibéricos, para os quais o domínio dos centros produtores, as políticas de monopólio e subjugo dos povos nativos eram entendidas como parte da regra do sucesso colonial. Interessavam primordialmente aos capitalistas holandeses o mercado e o máximo de liberdade de ação comercial a seu favor, bem ao gosto de William Ulselinx, um dos arquitetos da Companhia das Índias e, sem dúvida, um dos pioneiros do conceito de mercado aberto e global.
SÉCULO XXI
Vand e neova
D
A história dos monumentos culturais da humanidade é a história do vandalismo cultural.
a destruição da biblioteca de Alexandria à destruição da floresta Atlântica brasileira, da perda de obras de Aristóteles ao deslocamento do marco zero do Recife, a lista de atos vândalos é de magnitude tal que certamente ultrapassa em muito a de realizações humanas. Cada novo império, cada novo déspota, cada novo funcionário destrói, corrompe, e – às vezes – constrói, em muitos casos, obras medíocres. Quem já perambulou pelos museus do mundo desfilou perante pequenos e grandes fragmentos remanescentes deste carnaval de destruição. Mil anos de Erótica corrompidos por uma igreja em busca de genitálias decepadas. Suntuosos templos reduzidos a pó pelo vandalismo religioso. O que resta das sete maravilhas do mundo da antigüidade? Por que os Aliados bombardearam Dresden, os egípcios saquearam as pirâmides, os brasileiros destroem as suas florestas? Movidos pelo brutal instinto de destruição, pela inveja, pela cupidez humana, monumentos, culturas, povos inteiros foram dizimados. Acompanhando as mudanças de poder e ideologias, os últimos cinco séculos viram a ascensão dos interesses econômicos definir a face do vandalismo. Na busca de ouro, toda a América pré-colombiana foi vitimada pelas novas tecnologias de destruição. Nas disputas entre França e Inglaterra pela partilha dos monumentos que sobraram da antigüidade, a única frustração foi a da incapacidade de desmontar uma pirâmide e remontála no centro de Londres ou Paris. Pragmáticos, os
norte-americanos erigiram seu próprio obelisco em Washington e se preocuparam mais em vandalizar a culinária mundial com a imposição psicológica do hambúrguer e milk-shake. As reações vieram quase sempre associadas a um contravandalismo político. Quase metade dos monumentos de Paris foi saqueada ou demolida no período da Comuna. O grafitismo, a pichação de obras expostas em vias públicas se tornaram a mais anárquica e a mais idiota manifestação do vandalismo antivandalismo. Os soviéticos transformaram os templos religiosos em museus e criaram o mausoléu de Lênin como novo templo de adoração. Os atuais líderes religiosos da Rússia responderam canonizando o último czar. O mais significante ato de vandalismo desta época foi o desmonte e transporte dos mármores de Elgin, figuras de adorno ao Pantheon, para o Museu Britânico. Vandalismo cometido em nome dos elevados valores da humanidade, as figuras sofreram ainda a agressão de uma restauração excessiva que destruiu detalhes preciosos de seu relevo. Hoje, em nome da arte mundial, o governo da Grécia reivindica a volta das peças ao monumento original restaurado no coração de Atenas. As autoridades do Museu Britânico argumentam que a devolução das peças abriria um precedente histórico perigoso. Imagine se todas as obras roubadas voltassem ao seu país original. Seria o fim da maioria dos grandes museus do mundo. E se as terras das Américas voltassem às mãos dos índios. Se os descendentes dos escravos recebessem indenizações pelos
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 26 Continente Multicultural
A criação de uma base de dados documental do Brasil holandês contribui de forma inédita e imediata para o aumento da produção de pesquisas tanto no Brasil quanto na Holanda pelo inventário do Barão de Ramiz Galvão (1874), e por iniciativa do IAHGP, propôs ao governo imperial uma missão, encarregada de coletar nos arquivos de Haia documentos relativos à ocupação holandesa no Brasil. A missão Hygino teve lugar entre 1885 e 1886. O pesquisador concentrou sua ação nos papéis da Companhia das Índias Ocidentais, onde identificou, paleografou e reproduziu um monumento documental de 11.530 páginas manuscritas dispostas em 31 volumes que compõem o fundo José Hygino do IAHGP. Esta missão, além de cobrir os fundos inéditos da velha Companhia das Índias Ocidentais, os mais importantes para a história do período colonial holandês no Brasil, foi a primeira que contou com um historiador brasileiro com conhecimento seguro do holandês. Esta circunstância permitiu um trabalho muito mais objetivo e exaustivo que as missões anteriores. Naturalmente, as cópias produzidas por Hygino não cobrem o universo total da documentação existente nos arquivos por ele visitados. Em seu relatório também declara não ter se dedicado em profundidade aos Cartórios dos Estados Gerais, por supor já terem sido cobertos por Joaquim Caetano três décadas antes. Guiado por uma criteriosa seleção, Hygino preocupou-se apenas em copiar os manuscritos mais representativos a seu crivo, excluindo neste trabalho a rica documentação anexa aos processos (bijlagen). A missão do prof. José Antonio Gonsalves de Mello foi a última das grandes iniciativas de pesquisa documental, que reuniu, copiou e trouxe documentos holandeses para o Brasil. Desenvolveu-se em dois estágios, 1957-58 e 1962. À parte, foi desenvolvida com o estímulo direto de Gilberto Freyre e do então reitor da Universidade do Recife, o professor Joaquim Amazonas. Esta missão fazia parte de um plano de pesquisa que incluía, além dos arquivos holandeses, uma outra investigação precedente, realizada entre os anos de 1951 e 1952, nos arquivos de
Portugal, Espanha, França, Inglaterra; tendo esta prosseguido nos anos que se sucederam. O prof. José Antonio, com domínio do holandês e paleógrafo experiente, valeu-se das pesquisas de seus antecessores e das informações levantadas por Hermann Wäetjen (1912) para realizar uma prospecção orientada e metódica, guiada por um planejamento bem definido, cobrindo, além dos arquivos visitados pelas missões precedentes, outros ainda desconhecidos aos pesquisadores brasileiros. Fez microfilmar grande quantidade de fontes que escaparam à atenção dos outros pesquisadores. Os relatórios desta missão foram publicados pela Imprensa Universitária em 1959 sob o título A Universidade do Recife e a Pesquisa Histórica. Neste documento, o autor descreve seu trabalho e tece um histórico das missões anteriores. José Antonio Gonsalves de Mello cobriu os seguintes arquivos: Algemeen Rijksarchief – Haia; Koninklijk Huisarchief (Arquivo da Casa Real) – Haia; Archief van de Hervormde Geemeente (Arquivo da Comunidade Reformada) – Amsterdam; Gemeente Archief (Arquivo Municipal) – Amsterdam; Universiteitbibliotheek te Leiden – Leiden; Coleções de Mapas de Rotherdam – Atlas van Stolk; Coleção Engelbrecht – do Maritien Museum Prins Hendrik. Não obstante o esforço do dr. José Antonio Gonsalves e da importância dos documentos recolhidos, seu trabalho de resgate, como no caso dos antecessores, cobriu apenas parte do conjunto documental disponível. Alem disso, os resultados de sua missão, publicados no relatório de 1959, não contemplam catalogação ou guia para as fontes microfilmadas, não permitindo ao usuário uma visualização global nem o acesso dirigido às reproduções.
Detalhe de S. Salvador/ Baya de Todos os Sanctos, gravura de Claes Jansz Visscher e Hessel Gerritsz, ca. 1624
De Pernambuco para o mundo A pesquisa documental e a produção historiográfica que envolvem as relações Brasil-Holanda situam-se, via de regra, no período clássico de domínio colonial holandês (1630-1654). Uma das constatações desta pesquisa é da necessidade de se investir historiograficamente em outros períodos, anteriores e posteriores à ocupação holandesa no Nordeste brasileiro. As relações comerciais entre lusos e batavos se espraiam no tempo, muito antes e muito depois do período clássico holandês no Brasil. É importante vasculhar e construir modelos explicativos mais complexos, que envolvam as relações diacronicamente. Isto, efetivamente, tem que se refletir em um programa de pesquisa documental mais amplo, e, mais ainda, em um esforço conjunto entre o Brasil e a Holanda, no sentido de amContinente Multicultural 31
REPRODUÇÃO
Seu relatório causou um verdadeiro frenesi na comunidade de historiadores e arquivistas brasileiros. O que anunciava-se era bastante significativo: a descoberta de uma grande quantidade de manuscritos, pertencentes à antiga Companhia das Índias Ocidentais (WIC), oriundos da câmara da Zelândia, e que até então julgavam-se destruídos em 1821. A excitação era natural, tratava-se do último arquivo colonial de interesse histórico brasileiro, ainda totalmente virgem. A notícia abria as portas para uma geração de novos pesquisadores embriagados de positivismo, que esperavam impacientemente pelo esclarecimento de um enorme hiato histórico que então se apresentava na história colonial brasileira: o curto período de um quarto de século do domínio holandês. A partir da segunda metade do século passado se sucederam diversas iniciativas, oficiais e privadas, com o objetivo de inventariar e coletar fontes históricas, relativas ao Brasil, depositadas em arquivos europeus. Distintas nos motivos que as orientavam, estas missões se complementam no decorrer do tempo e indexam hoje um rico acervo documental que evidencia a importância do período histórico do domínio holandês no Brasil (1630-1654). Entre 1841 e 1854, era encarregado de negócios do Brasil na Holanda Joaquim Caetano da Silva (1810-1873), que recebeu do imperador D. Pedro II a incumbência de pesquisar fontes documentais referentes aos limites de fronteiras com a Guiana Francesa. Durante dez anos, Caetano trabalhou em arquivos franceses e holandeses; resultou deste trabalho o livro L’Oyapoc et L’Amazone. Nos Países Baixos, Caetano concentrou-se no Algemeen Rijksarchief, em Haia. Nesta época, existia neste arquivo apenas o acervo do Cartório dos Estados Gerais das Províncias Unidas. Os fundos mais densos para a história do período de domínio colonial holandês, oriundos da Companhia das Índias Ocidentais, estavam depositados em Midelburg, capital da província da Zelândia, e só foram incorporados ao Arquivo Real de Haia em 1859. Joaquim Caetano reproduziu grande quantidade de documentos que somam oito volumes, acompanhados de tradução para o francês. Este acervo permanece sob a guarda do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. Uma relação, à guisa de índice, que foi publicada no Catálogo da Exposição de História do Brasil, serve de guia para consulta dos fundos por ele coletados. José Hygino Duarte Pereira (1847-1901), então lente da Faculdade de Direito do Recife, historiador, membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, IAHGP, estimulado
alismo ndalismo cultural danos históricos causados pelo capitalismo, assim como os descendentes dos judeus vitimados pelo nazismo estão recebendo milhões do governo e empresas da Alemanha; ou como os fumantes esperam receber das empresas de cigarros. Será que uma ação de reparação histórica, a mera devolução das peças ao Pantheon, pode mesmo desencadear o fim do mundo? Mas, se enquanto existir o Museu Britânico, haverá esperança entre gregos quanto à restauração completa de seu templo, o mesmo não se pode afirmar sobre aquelas obras para sempre perdidas. A destruição dos documentos sobre a escravidão no Brasil foi outro ato cometido em nome dos elevados princípios do humanismo. Em um país dividido por um canyon ideológico e social, as conquistas políticas são seguidas sempre de um porém. Acabamos com a escravidão, porém devemos esquecê-la e apagá-la das mentes das futuras gerações por ser vergonha nacional; democratizamos o país, porém garantindo a manutenção dos privilégios das elites e o aprofundamento das desigualdades sociais. Defendemos o estado de direito, salvaguardando porém alguns direitos especiais para todos da elite. Defendemos a ecologia, porém, salvaguardando o desenvolvimento econômico. Esta tem sido a máxima da filosofia brasileira sobre a natureza. Se os norte-americanos mataram seus índios, por que nós não? Se os ingleses destruíram suas florestas, por que nós não? Se os parisienses destruíram mais de uma vez sua cidade, se Londres ardeu em chamas por dias, por que não as nossas cidades? As dunas do Rio Grande do Norte, as florestas, a biodiversidade lenta-
mente desaparecem para sempre, como os arquivos sobre a escravidão. Nem todo ato considerado como vandalismo é, contudo, de se lamentar. Sobre as ruínas do antigo castelo do Louvre construiu-se o palácio e hoje museu mais visitado do mundo. Os franceses destruíram a Paris do ancient régime e o Georges Haussmann construiu uma nova cidade, hoje tida como a mais bela. Das ruínas das antigas Tóquio e Berlim surgiram novas metropolis com novos monumentos. No planalto central do Brasil, surgiu Brasília, expressão da ideologia de que o Brasil é o país do futuro. Contudo, a exceção à regra parece ser cada vez menor. A globalização exacerba e cria novas formas de vandalismo. Se a idéia de memória histórica se opõe à idéia de vandalismo; se a história da humanidade tem sido a historia da destruição e usurpação do relato e dos monumentos do passado, a concepção neoliberal de cultura representa a combinação da manipulação histórica com um neovandalismo cínico. Igrejas que viram discotecas ou bares, monumentos privatizados e tendo sua história reescrita em louvor dos novos donos. Quando um museu exibe excremento como obra de vanguarda, a única interpretação possível é que se está diante de uma obra de protesto de uma prática de contravandalismo que estava fora da arte, e hoje, perante a absorção da cultura dirigida pelo mercado, é tida como a essência da arte.
Marcos Guedes é ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco
Continente Multicultural 27
teresse brasileiro na Holanda. Considerava-se que estes arquivos seriam de especial interesse para o Brasil, uma vez que não tinham sido esgotados os recursos informacionais neles contidos. Entendiase, adicionalmente, que as missões anteriores de Joaquim Caetano Silva (1851); José Hygino Duarte Pereira (1885-86) e José Antonio Gonsalves de Mello (1957-58) tinham recolhido apenas uma fração dos conjuntos disponíveis na Holanda. Ajuntou-se a esse dado a constatação bibliográfica de que, no que pese o quase século e meio que nos separa da primeira missão de Joaquim Caetano, pouco mais de meia dúzia de pesquisadores brasileiros tinham feito uso historiográfico pragmático das coleções de reproduções depositadas em instituições nacionais. A língua holandesa, na qual a maioria dos documentos deste conjunto foi produ-
zida, inviabilizava o acesso à informação para um conjunto amplo de pesquisadores brasileiros. Estava patente que tínhamos em mãos um problema documentalista, cuja solução interessaria sobremaneira ao público brasileiro. Acervo esclarecedor Os documentos presentes nas coleções holandesas caracterizam-se pela alta densidade informacional e detalhamento dos conteúdos. Embora não tão extensas quanto os fundos portugueses, estas coleções guardam um potencial esclarecedor sobre um período da história brasileira ainda não suficientemente explorado. Na historiografia holandesa o conhecimento estabelecido sobre as relações coloniais Brasil-Holanda ainda é pouco significativo. Correntemente, tem-
História do Brasil n a Holanda A descoberta de novos documentos sobre o Brasil holandês anima os pesquisadores e traz à tona um testemunho único do experimento colonial que modelou os mercados globalizados
Marcos Galindo
REPRODUÇÃO
HISTÓRIA Mapa do Cabo de Santo Agostinho, original manuscrito do Algemeen Rijksarchief de Haia (1634)
E
m 1977, desenvolveu-se, no Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco, uma proposta de pesquisa acadêmica intitulada Ultramar, dedicada aos problemas que envolvem o gerenciamento e a difusão de informação em meio digital. Trata de estudar “acessibilidade à informação”, atentando para as novas formas de comunicação científica que se impõem diante dos novos paradigmas da informação e cultura, como instrumento reprodutor de conhecimento. A proposta Ultramar previa originalmente o desenvolvimento de um fundo documental do período do Brasil holandês. Este fundo visava explorar o potencial histórico dos repositórios documentais de in-
se invocado, para justificar o pouco interesse científico pelo período, o peso maior atribuído à experiência colonial holandesa no Oriente, nas Antilhas e Suriname. Por outro lado, os trabalhos que tratam do domínio holandês no Brasil sofrem de uma falta de diversidade de narrativas, essencial ao debate histórico e à construção de paradigmas diferenciados sobre os quais novas perspectivas históricas possam ser desenvolvidas. Até o presente, o esforço das iniciativas documentalistas foi marcado por propostas de resgate e preservação, sem contemplar estratégias de acessibilidade e difusão que viabilizassem a expansão do campo de pesquisa. As experiências de José Hygino, Joaquim Caetano e José A. Gonsalves (detalhadas a seguir) nos mostram que não foi a ausência de interesse de historiadores brasileiros que limitou o uso destas coleções, mas a falta de um tratamento adequado que facilitasse acesso abrangente a estas fontes. Apesar de sua importância, o acesso de forma ampla a esta informação histórica esteve inviabilizado, até hoje, pela barreira lingüística do holandês, ficando a compreensão de seu conteúdo, restrita a um seleto número de pesquisadores habilitados a esta língua. Os acervos documentais reunidos são um patrimônio histórico e cultural, e como tal, público e inalienável. Entretanto, muitos deles têm sido historicamente tratados como bem privado, sob a justificativa da preservação da memória nacional. Iniciativas de preservação atuais não podem mais ser aplicadas sem um esforço político de igual tamanho que viabilize o acesso às coleções. No caso dos documentos de interesse histórico brasileiro, depositados em arquivos holandeses, estamos nos referindo a um rico acervo de um dos mais decisivos momentos da nossa formação nacional, com repercussões econômicas, históricas e sociais que chegam a nossos dias. A descoberta A 10 de setembro de 1874 o Diário Oficial da Coroa publicava o relatório de viagem do Barão de Ramiz, então diretor da Biblioteca Nacional brasileira, a quem o Imperador confiara a missão de observar e colher idéias para a reformulação da Biblioteca Nacional, e verificar a existência de manuscritos inéditos de interesse para a história do Brasil. Nesta incumbência, o Barão de Ramiz visitou as principais bibliotecas da Europa, entre elas a de Berlim, Zurique, Florença, Milão, Roma, Paris, Lisboa, o Museu Britânico; a Koninklijke Bibliotheek e o Algemeen Rijksarchief, em Haia; neste último, encontrara Ramiz fundos documentais, recém-incorporados, contendo abundantes referências sobre o Brasil. Continente Multicultural 29
teresse brasileiro na Holanda. Considerava-se que estes arquivos seriam de especial interesse para o Brasil, uma vez que não tinham sido esgotados os recursos informacionais neles contidos. Entendiase, adicionalmente, que as missões anteriores de Joaquim Caetano Silva (1851); José Hygino Duarte Pereira (1885-86) e José Antonio Gonsalves de Mello (1957-58) tinham recolhido apenas uma fração dos conjuntos disponíveis na Holanda. Ajuntou-se a esse dado a constatação bibliográfica de que, no que pese o quase século e meio que nos separa da primeira missão de Joaquim Caetano, pouco mais de meia dúzia de pesquisadores brasileiros tinham feito uso historiográfico pragmático das coleções de reproduções depositadas em instituições nacionais. A língua holandesa, na qual a maioria dos documentos deste conjunto foi produ-
zida, inviabilizava o acesso à informação para um conjunto amplo de pesquisadores brasileiros. Estava patente que tínhamos em mãos um problema documentalista, cuja solução interessaria sobremaneira ao público brasileiro. Acervo esclarecedor Os documentos presentes nas coleções holandesas caracterizam-se pela alta densidade informacional e detalhamento dos conteúdos. Embora não tão extensas quanto os fundos portugueses, estas coleções guardam um potencial esclarecedor sobre um período da história brasileira ainda não suficientemente explorado. Na historiografia holandesa o conhecimento estabelecido sobre as relações coloniais Brasil-Holanda ainda é pouco significativo. Correntemente, tem-
História do Brasil n a Holanda A descoberta de novos documentos sobre o Brasil holandês anima os pesquisadores e traz à tona um testemunho único do experimento colonial que modelou os mercados globalizados
Marcos Galindo
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HISTÓRIA Mapa do Cabo de Santo Agostinho, original manuscrito do Algemeen Rijksarchief de Haia (1634)
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m 1977, desenvolveu-se, no Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco, uma proposta de pesquisa acadêmica intitulada Ultramar, dedicada aos problemas que envolvem o gerenciamento e a difusão de informação em meio digital. Trata de estudar “acessibilidade à informação”, atentando para as novas formas de comunicação científica que se impõem diante dos novos paradigmas da informação e cultura, como instrumento reprodutor de conhecimento. A proposta Ultramar previa originalmente o desenvolvimento de um fundo documental do período do Brasil holandês. Este fundo visava explorar o potencial histórico dos repositórios documentais de in-
se invocado, para justificar o pouco interesse científico pelo período, o peso maior atribuído à experiência colonial holandesa no Oriente, nas Antilhas e Suriname. Por outro lado, os trabalhos que tratam do domínio holandês no Brasil sofrem de uma falta de diversidade de narrativas, essencial ao debate histórico e à construção de paradigmas diferenciados sobre os quais novas perspectivas históricas possam ser desenvolvidas. Até o presente, o esforço das iniciativas documentalistas foi marcado por propostas de resgate e preservação, sem contemplar estratégias de acessibilidade e difusão que viabilizassem a expansão do campo de pesquisa. As experiências de José Hygino, Joaquim Caetano e José A. Gonsalves (detalhadas a seguir) nos mostram que não foi a ausência de interesse de historiadores brasileiros que limitou o uso destas coleções, mas a falta de um tratamento adequado que facilitasse acesso abrangente a estas fontes. Apesar de sua importância, o acesso de forma ampla a esta informação histórica esteve inviabilizado, até hoje, pela barreira lingüística do holandês, ficando a compreensão de seu conteúdo, restrita a um seleto número de pesquisadores habilitados a esta língua. Os acervos documentais reunidos são um patrimônio histórico e cultural, e como tal, público e inalienável. Entretanto, muitos deles têm sido historicamente tratados como bem privado, sob a justificativa da preservação da memória nacional. Iniciativas de preservação atuais não podem mais ser aplicadas sem um esforço político de igual tamanho que viabilize o acesso às coleções. No caso dos documentos de interesse histórico brasileiro, depositados em arquivos holandeses, estamos nos referindo a um rico acervo de um dos mais decisivos momentos da nossa formação nacional, com repercussões econômicas, históricas e sociais que chegam a nossos dias. A descoberta A 10 de setembro de 1874 o Diário Oficial da Coroa publicava o relatório de viagem do Barão de Ramiz, então diretor da Biblioteca Nacional brasileira, a quem o Imperador confiara a missão de observar e colher idéias para a reformulação da Biblioteca Nacional, e verificar a existência de manuscritos inéditos de interesse para a história do Brasil. Nesta incumbência, o Barão de Ramiz visitou as principais bibliotecas da Europa, entre elas a de Berlim, Zurique, Florença, Milão, Roma, Paris, Lisboa, o Museu Britânico; a Koninklijke Bibliotheek e o Algemeen Rijksarchief, em Haia; neste último, encontrara Ramiz fundos documentais, recém-incorporados, contendo abundantes referências sobre o Brasil. Continente Multicultural 29
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Seu relatório causou um verdadeiro frenesi na comunidade de historiadores e arquivistas brasileiros. O que anunciava-se era bastante significativo: a descoberta de uma grande quantidade de manuscritos, pertencentes à antiga Companhia das Índias Ocidentais (WIC), oriundos da câmara da Zelândia, e que até então julgavam-se destruídos em 1821. A excitação era natural, tratava-se do último arquivo colonial de interesse histórico brasileiro, ainda totalmente virgem. A notícia abria as portas para uma geração de novos pesquisadores embriagados de positivismo, que esperavam impacientemente pelo esclarecimento de um enorme hiato histórico que então se apresentava na história colonial brasileira: o curto período de um quarto de século do domínio holandês. A partir da segunda metade do século passado se sucederam diversas iniciativas, oficiais e privadas, com o objetivo de inventariar e coletar fontes históricas, relativas ao Brasil, depositadas em arquivos europeus. Distintas nos motivos que as orientavam, estas missões se complementam no decorrer do tempo e indexam hoje um rico acervo documental que evidencia a importância do período histórico do domínio holandês no Brasil (1630-1654). Entre 1841 e 1854, era encarregado de negócios do Brasil na Holanda Joaquim Caetano da Silva (1810-1873), que recebeu do imperador D. Pedro II a incumbência de pesquisar fontes documentais referentes aos limites de fronteiras com a Guiana Francesa. Durante dez anos, Caetano trabalhou em arquivos franceses e holandeses; resultou deste trabalho o livro L’Oyapoc et L’Amazone. Nos Países Baixos, Caetano concentrou-se no Algemeen Rijksarchief, em Haia. Nesta época, existia neste arquivo apenas o acervo do Cartório dos Estados Gerais das Províncias Unidas. Os fundos mais densos para a história do período de domínio colonial holandês, oriundos da Companhia das Índias Ocidentais, estavam depositados em Midelburg, capital da província da Zelândia, e só foram incorporados ao Arquivo Real de Haia em 1859. Joaquim Caetano reproduziu grande quantidade de documentos que somam oito volumes, acompanhados de tradução para o francês. Este acervo permanece sob a guarda do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. Uma relação, à guisa de índice, que foi publicada no Catálogo da Exposição de História do Brasil, serve de guia para consulta dos fundos por ele coletados. José Hygino Duarte Pereira (1847-1901), então lente da Faculdade de Direito do Recife, historiador, membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, IAHGP, estimulado
alismo ndalismo cultural danos históricos causados pelo capitalismo, assim como os descendentes dos judeus vitimados pelo nazismo estão recebendo milhões do governo e empresas da Alemanha; ou como os fumantes esperam receber das empresas de cigarros. Será que uma ação de reparação histórica, a mera devolução das peças ao Pantheon, pode mesmo desencadear o fim do mundo? Mas, se enquanto existir o Museu Britânico, haverá esperança entre gregos quanto à restauração completa de seu templo, o mesmo não se pode afirmar sobre aquelas obras para sempre perdidas. A destruição dos documentos sobre a escravidão no Brasil foi outro ato cometido em nome dos elevados princípios do humanismo. Em um país dividido por um canyon ideológico e social, as conquistas políticas são seguidas sempre de um porém. Acabamos com a escravidão, porém devemos esquecê-la e apagá-la das mentes das futuras gerações por ser vergonha nacional; democratizamos o país, porém garantindo a manutenção dos privilégios das elites e o aprofundamento das desigualdades sociais. Defendemos o estado de direito, salvaguardando porém alguns direitos especiais para todos da elite. Defendemos a ecologia, porém, salvaguardando o desenvolvimento econômico. Esta tem sido a máxima da filosofia brasileira sobre a natureza. Se os norte-americanos mataram seus índios, por que nós não? Se os ingleses destruíram suas florestas, por que nós não? Se os parisienses destruíram mais de uma vez sua cidade, se Londres ardeu em chamas por dias, por que não as nossas cidades? As dunas do Rio Grande do Norte, as florestas, a biodiversidade lenta-
mente desaparecem para sempre, como os arquivos sobre a escravidão. Nem todo ato considerado como vandalismo é, contudo, de se lamentar. Sobre as ruínas do antigo castelo do Louvre construiu-se o palácio e hoje museu mais visitado do mundo. Os franceses destruíram a Paris do ancient régime e o Georges Haussmann construiu uma nova cidade, hoje tida como a mais bela. Das ruínas das antigas Tóquio e Berlim surgiram novas metropolis com novos monumentos. No planalto central do Brasil, surgiu Brasília, expressão da ideologia de que o Brasil é o país do futuro. Contudo, a exceção à regra parece ser cada vez menor. A globalização exacerba e cria novas formas de vandalismo. Se a idéia de memória histórica se opõe à idéia de vandalismo; se a história da humanidade tem sido a historia da destruição e usurpação do relato e dos monumentos do passado, a concepção neoliberal de cultura representa a combinação da manipulação histórica com um neovandalismo cínico. Igrejas que viram discotecas ou bares, monumentos privatizados e tendo sua história reescrita em louvor dos novos donos. Quando um museu exibe excremento como obra de vanguarda, a única interpretação possível é que se está diante de uma obra de protesto de uma prática de contravandalismo que estava fora da arte, e hoje, perante a absorção da cultura dirigida pelo mercado, é tida como a essência da arte.
Marcos Guedes é ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco
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SÉCULO XXI
Vand e neova
D
A história dos monumentos culturais da humanidade é a história do vandalismo cultural.
a destruição da biblioteca de Alexandria à destruição da floresta Atlântica brasileira, da perda de obras de Aristóteles ao deslocamento do marco zero do Recife, a lista de atos vândalos é de magnitude tal que certamente ultrapassa em muito a de realizações humanas. Cada novo império, cada novo déspota, cada novo funcionário destrói, corrompe, e – às vezes – constrói, em muitos casos, obras medíocres. Quem já perambulou pelos museus do mundo desfilou perante pequenos e grandes fragmentos remanescentes deste carnaval de destruição. Mil anos de Erótica corrompidos por uma igreja em busca de genitálias decepadas. Suntuosos templos reduzidos a pó pelo vandalismo religioso. O que resta das sete maravilhas do mundo da antigüidade? Por que os Aliados bombardearam Dresden, os egípcios saquearam as pirâmides, os brasileiros destroem as suas florestas? Movidos pelo brutal instinto de destruição, pela inveja, pela cupidez humana, monumentos, culturas, povos inteiros foram dizimados. Acompanhando as mudanças de poder e ideologias, os últimos cinco séculos viram a ascensão dos interesses econômicos definir a face do vandalismo. Na busca de ouro, toda a América pré-colombiana foi vitimada pelas novas tecnologias de destruição. Nas disputas entre França e Inglaterra pela partilha dos monumentos que sobraram da antigüidade, a única frustração foi a da incapacidade de desmontar uma pirâmide e remontála no centro de Londres ou Paris. Pragmáticos, os
norte-americanos erigiram seu próprio obelisco em Washington e se preocuparam mais em vandalizar a culinária mundial com a imposição psicológica do hambúrguer e milk-shake. As reações vieram quase sempre associadas a um contravandalismo político. Quase metade dos monumentos de Paris foi saqueada ou demolida no período da Comuna. O grafitismo, a pichação de obras expostas em vias públicas se tornaram a mais anárquica e a mais idiota manifestação do vandalismo antivandalismo. Os soviéticos transformaram os templos religiosos em museus e criaram o mausoléu de Lênin como novo templo de adoração. Os atuais líderes religiosos da Rússia responderam canonizando o último czar. O mais significante ato de vandalismo desta época foi o desmonte e transporte dos mármores de Elgin, figuras de adorno ao Pantheon, para o Museu Britânico. Vandalismo cometido em nome dos elevados valores da humanidade, as figuras sofreram ainda a agressão de uma restauração excessiva que destruiu detalhes preciosos de seu relevo. Hoje, em nome da arte mundial, o governo da Grécia reivindica a volta das peças ao monumento original restaurado no coração de Atenas. As autoridades do Museu Britânico argumentam que a devolução das peças abriria um precedente histórico perigoso. Imagine se todas as obras roubadas voltassem ao seu país original. Seria o fim da maioria dos grandes museus do mundo. E se as terras das Américas voltassem às mãos dos índios. Se os descendentes dos escravos recebessem indenizações pelos
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 26 Continente Multicultural
A criação de uma base de dados documental do Brasil holandês contribui de forma inédita e imediata para o aumento da produção de pesquisas tanto no Brasil quanto na Holanda pelo inventário do Barão de Ramiz Galvão (1874), e por iniciativa do IAHGP, propôs ao governo imperial uma missão, encarregada de coletar nos arquivos de Haia documentos relativos à ocupação holandesa no Brasil. A missão Hygino teve lugar entre 1885 e 1886. O pesquisador concentrou sua ação nos papéis da Companhia das Índias Ocidentais, onde identificou, paleografou e reproduziu um monumento documental de 11.530 páginas manuscritas dispostas em 31 volumes que compõem o fundo José Hygino do IAHGP. Esta missão, além de cobrir os fundos inéditos da velha Companhia das Índias Ocidentais, os mais importantes para a história do período colonial holandês no Brasil, foi a primeira que contou com um historiador brasileiro com conhecimento seguro do holandês. Esta circunstância permitiu um trabalho muito mais objetivo e exaustivo que as missões anteriores. Naturalmente, as cópias produzidas por Hygino não cobrem o universo total da documentação existente nos arquivos por ele visitados. Em seu relatório também declara não ter se dedicado em profundidade aos Cartórios dos Estados Gerais, por supor já terem sido cobertos por Joaquim Caetano três décadas antes. Guiado por uma criteriosa seleção, Hygino preocupou-se apenas em copiar os manuscritos mais representativos a seu crivo, excluindo neste trabalho a rica documentação anexa aos processos (bijlagen). A missão do prof. José Antonio Gonsalves de Mello foi a última das grandes iniciativas de pesquisa documental, que reuniu, copiou e trouxe documentos holandeses para o Brasil. Desenvolveu-se em dois estágios, 1957-58 e 1962. À parte, foi desenvolvida com o estímulo direto de Gilberto Freyre e do então reitor da Universidade do Recife, o professor Joaquim Amazonas. Esta missão fazia parte de um plano de pesquisa que incluía, além dos arquivos holandeses, uma outra investigação precedente, realizada entre os anos de 1951 e 1952, nos arquivos de
Portugal, Espanha, França, Inglaterra; tendo esta prosseguido nos anos que se sucederam. O prof. José Antonio, com domínio do holandês e paleógrafo experiente, valeu-se das pesquisas de seus antecessores e das informações levantadas por Hermann Wäetjen (1912) para realizar uma prospecção orientada e metódica, guiada por um planejamento bem definido, cobrindo, além dos arquivos visitados pelas missões precedentes, outros ainda desconhecidos aos pesquisadores brasileiros. Fez microfilmar grande quantidade de fontes que escaparam à atenção dos outros pesquisadores. Os relatórios desta missão foram publicados pela Imprensa Universitária em 1959 sob o título A Universidade do Recife e a Pesquisa Histórica. Neste documento, o autor descreve seu trabalho e tece um histórico das missões anteriores. José Antonio Gonsalves de Mello cobriu os seguintes arquivos: Algemeen Rijksarchief – Haia; Koninklijk Huisarchief (Arquivo da Casa Real) – Haia; Archief van de Hervormde Geemeente (Arquivo da Comunidade Reformada) – Amsterdam; Gemeente Archief (Arquivo Municipal) – Amsterdam; Universiteitbibliotheek te Leiden – Leiden; Coleções de Mapas de Rotherdam – Atlas van Stolk; Coleção Engelbrecht – do Maritien Museum Prins Hendrik. Não obstante o esforço do dr. José Antonio Gonsalves e da importância dos documentos recolhidos, seu trabalho de resgate, como no caso dos antecessores, cobriu apenas parte do conjunto documental disponível. Alem disso, os resultados de sua missão, publicados no relatório de 1959, não contemplam catalogação ou guia para as fontes microfilmadas, não permitindo ao usuário uma visualização global nem o acesso dirigido às reproduções.
Detalhe de S. Salvador/ Baya de Todos os Sanctos, gravura de Claes Jansz Visscher e Hessel Gerritsz, ca. 1624
De Pernambuco para o mundo A pesquisa documental e a produção historiográfica que envolvem as relações Brasil-Holanda situam-se, via de regra, no período clássico de domínio colonial holandês (1630-1654). Uma das constatações desta pesquisa é da necessidade de se investir historiograficamente em outros períodos, anteriores e posteriores à ocupação holandesa no Nordeste brasileiro. As relações comerciais entre lusos e batavos se espraiam no tempo, muito antes e muito depois do período clássico holandês no Brasil. É importante vasculhar e construir modelos explicativos mais complexos, que envolvam as relações diacronicamente. Isto, efetivamente, tem que se refletir em um programa de pesquisa documental mais amplo, e, mais ainda, em um esforço conjunto entre o Brasil e a Holanda, no sentido de amContinente Multicultural 31
pliar o campo discursivo, materializado em programas de pesquisa e intercâmbio acadêmico. O Brasil avançou muito na construção dos modelos teóricos que hoje valem para o período, mas outros paradigmas jazem enclausurados em uma massa ainda disforme de informação histórica, não suficientemente explorada. Por outro lado, a Holanda dispõe de excelentes grupos de pesquisa e universidades conceituadas, mas que fazem uso estreito destes documentos, e exploram apenas superficialmente este importante movimento histórico que envolve os princípios da expansão marítima, comércio atlântico, relações comerciais, capitalismo judeu e relações interétnicas, entre outros tantos temas. Desde o princípio da aventura portuguesa na exploração e comercialização do açúcar produzido no Atlântico, os ricos e florescentes flamengos participaram financeiramente da montagem da agroindústria do açúcar no Nordeste brasileiro, e conseqüentemente se habilitaram ao comércio, refino e distribuição deste produto que conquista espaço significativo na economia holandesa. Esta economia permanece em equilíbrio até que a União Ibérica coloca Portugal e Espanha abaixo da Coroa dos Felipes, mudando os lugares na mesa dos aliados e os rumos históricos do Atlântico Sul. Era o décimo sétimo século da era cristã, um período de efervescência econômica e cultural da Europa renascida e iluminada pelo Humanismo. Ao norte do continente, um caldeirão de pequenas nacionalidades indefinidas forjariam uma identidade mercantil poderosa, abrigadas em república sob o título de Províncias Unidas dos Países Baixos. O Século do Ouro, olhado com reservas pelo puritanismo calvinista, transbordava um esplendor cultural sem precedentes. Neste século, Amsterdam abrigou figuras como Rembrant, o francês René Decartes, o marano judeu novo de origem portuguesa Benedictus Espinoza, Constatijn Huigens, Hugo de Grotte, entre tantos outros. Amsterdam crescia com os novos ventos soprados pelo mercantilismo enriquecendo uma casta de burgueses bem-sucedidos, envolvidos com o comércio marítimo, especialmente com o mercado atlântico. O esplendor “contido” de Amsterdam e das demais províncias do norte dos Países Baixos representava a derrocada da Antuérpia como portão de en32 Continente Multicultural
trada europeu para este mercado, e o esboço de uma nova ordem geopolítica e econômica européia. A Guerra dos Oitenta Anos libertara estas províncias arrasadas pela intolerância do jugo espanhol, impulsionando-as para o Atlântico, destino final de todos os mercadores. A produção tropical de açúcar, madeiras tintureiras e especiarias, criaram um ambiente comercial prodigioso para o capital mercantil. O Brasil era o lugar onde se produzia o ouro branco – o açúcar – e outros produtos tropicais que geravam os excedentes, que a seu turno, alimentavam a ambição dos capitalistas mercadores; mas era também, por excelência, o que a economia moderna denomina de “mercado emergente”, onde escravos africanos e manufaturados europeus tinham consumo garantido. Esta combinação criara desde o século 16 uma corrente de circulação de bens extremamente atraente para a burguesia capitalista, gerando altos lucros nesta troca de produtos. Parte significativa dos recursos gerados na comercialização do açúcar retornava imediatamente para o capital mercantil, através do mercado de escravos ao qual a colônia estava dependente. Tecidos manufaturados e tinturados com pau-brasil na Europa e toda uma sorte de quinquilharias, tais como espelhos, anzóis, facas; instrumentos de ferro como serrotes, martelos e torqueses, etc. Valia a lei do mercado intermediário: compravam-se bens tropicais a seus produtores a baixo preço, enquanto se repassavam a estes mesmos produtores os manufaturados europeus, a alto preço. Na Europa, a regra invertia-se: os produtos adquiridos a baixo preço nos trópicos alcançavam nestas praças preços elevados, enquanto os bens manufaturados no continente eram comprados em um mercado crescente, regulados pela lei da oferta e procura, e conseqüentemente a preços mais competitivos. A Holanda tinha aspirações coloniais distintas das dos ibéricos, para os quais o domínio dos centros produtores, as políticas de monopólio e subjugo dos povos nativos eram entendidas como parte da regra do sucesso colonial. Interessavam primordialmente aos capitalistas holandeses o mercado e o máximo de liberdade de ação comercial a seu favor, bem ao gosto de William Ulselinx, um dos arquitetos da Companhia das Índias e, sem dúvida, um dos pioneiros do conceito de mercado aberto e global.
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gênito, o futuro Guilherme, o Taciturno, fundador da independência dos Países Baixos, o qual, aos quinze anos, podia ser facilmente reconvertido à religião católica. Destarte, quando Guilherme, o Rico, desapareceu, a casa de Nassau-Dillenburg, vale dizer, o ramo alemão, foi parar às mãos do seu segundo filho, João VI, o Velho, para distinguir do seu filho e neto homônimos, João VII, o do Meio, e João VIII, o Jovem. João, o Velho, foi o avô paterno do nosso João Maurício. Ele foi um colaborador fiel e incansável do irmão mais velho, embora estivesse longe de compartilhar a tolerância religiosa de que Guilherme, o Taciturno, deu repetidas provas, após sua volta ao aprisco do protestantismo, na esteira da revolta que acaudilhou contra Felipe II, da Espanha. João, o Velho, originalmente luterano, fizera-se calvinista nos primeiros anos setenta, introduzindo a doutrina de Genebra no seu território, a exemplo do que ocorria no vizinho Palatinado. Era a época em que ele e seus irmãos haviam-se engajado na revolução dos Países Baixos. Quando o Taciturno se viu forçado a abandonar suas terras, em face do fracasso inicial do movimento, refugiou-se em Dillenburg, que se transformou num importante centro político visando a articular a ajuda militar dos 40 Continente Multicultural
príncipes protestantes da Alemanha, a dar acolhida e abrigo aos refugiados neerlandeses da repressão católica e a financiar os preparativos bélicos de Guilherme. Dillenburg transformou-se, assim, na base alemã para a invasão dos Países Baixos. Uma vez que os rebeldes conseguiram firmar-se na região ao norte dos grandes rios que separam a Holanda atual da Bélgica, João, o Velho, como stathouder, isto é, como governador civil e militar, da Guéldria, desempenhou papel de primeiro plano na política neerlandesa, inclusive no tocante à negociação da União de Utrecht, que estabeleceu o laço confederal entre as províncias rebeladas contra a Espanha. Mas, em 1850, falecida sua mãe, João, o Velho, teve de regressar à Dillenburg para administrar o patrimônio da família. Seu militantismo calvinista não o abandonou, porém, como atesta sua liderança no Grafenverein, ou seja, na associação de condes calvinistas da Alemanha, destinada a resistir à paz de Augsburg, que excluíra os calvinistas das prebendas religiosas, o que resultava em dano para os segundões de uma nobreza prolífica. Foi, também como parte destes planos de união política, que João, o Velho, fundou em Herborn, nas proximidades do seu castelo, a Academia Nassauensis, visando à educação dos filhos da aristocracia. A tônica do seu currículo inci-
Desta forma, a experiência da velha Companhia das Índias Ocidentais (WIC) não é apenas a história do domínio ocidental sobre povos nativos colonizados, mas a história pela disputa de um mercado modelar, de cuja compreensão depende o entendimento e desdobramento de toda uma cadeia de exploração de mercados tropicais, via Atlântico, envolvendo aí o desenvolvimento e decadência da experiência pernambucana e a ascensão do mercado americano de Nova Amsterdam (hoje Nova Iorque), e os centros produtores antilhanos e caribenhos. Para o Brasil, esta história reveste-se de especial importância, não apenas como a expressão de um fenômeno local, como muitas vezes tem sido tratada pela historiografia regionalista, muitas vezes embebida por um pensamento saudosista de glórias cavalarescas passadas. Cabe hoje fazer uma história onde possa-se vislumbrar a importância deste período, e suas conseqüências para o desenvolvimento global, a posição de Pernambuco para o mundo, como já vem sendo feito por autores como Evaldo Cabral de Mello. Mas muito ainda tem para ser refletido sobre este período histórico, é isto que nos mostra a documentação depositada nos arquivos holandeses. Mergulhar nos acervos documentais que permanecem virgens na Holanda é também mergulhar em uma agenda de pesquisa nova, exigida pelos novos métodos e tendências do pensamento histórico moderno.
Detalhe de um quadro existente no Museu de Igaraçu, ca. 1729, em que aparecem as cidades de “Goyana” e “Ittamaracá”
Marcos Galindo é historiador. Há três anos na Holanda, vem preparando sua tese de doutorado, Os caminhos do São Francisco e a conquista do país dos Tapuias, sobre a expansão colonial pelo rio São Francisco REPRODUÇÃO
Carlos V, sacro imperador romano (extrema esquerda), discute com o eleitor da Saxônia uma questão em disputa na Confissão de Augsburgo, uma declaração de credo protestante oferecida pelos reformadores em 1530, numa última tentativa de reconciliação com a Igreja romana
Canal comercial O último varão dos Avis, o visionário D. Sebastião, encontrara em 1578 a morte, ou “encantarase” em Alcácer-Quibir sem deixar descendência, dando princípio a uma grave crise dinástica, agravada após a morte do seu tio, o velho cardeal D. Henrique, em 1580, também sem deixar sucessão. O Habsburgo Felipe II, a despeito da disputa interna portuguesa, consegue se impor como herdeiro legítimo incorporando Portugal no que chamou de “União Peninsular ou Ibérica”, que levaria Portugal a uma decadência da qual não mais se recuperaria. Um dos reflexos imediatos da União Ibérica, que se estendeu por seis décadas, foi o rompimento com os aliados portugueses, inimigos dos espanhóis: os franceses, ingleses e holandeses. Desta forma, o projeto brasileiro capitaneado por mercadores holandeses não pode ser entendido como uma pura e simples conquista territorial, mas a busca da restauração de um canal comercial rompido pela intromissão da política espanhola. “A conquista de Pernambuco e das capitanias vizinhas effectuada pelos Hollandezes no seculo 17 não foi mais do que um episodio da luta prolongada que se travara na Europa entre os reis de Hespanha e os seus subditos rebellados das Provincias Neerlandezas”, disparava José Hygino. A documentação que hoje encontra-se depositada nos arquivos holandeses é importante para o Brasil, mas, antes disto, é de fundamental importância para a história universal, como testemunho único de um experimento colonial que laboratoriou e modelou toda uma expressão comercial de mercados globalizados, cujas sementes, foram plantadas nos massapês do Nordeste colonial brasileiro do século 17.
Imagem sem título de Itamaracá. Original manuscrito do Algemeen Rijksarchief. Haia, ca. 1665
HET RASPHUIS A prisão do pau-brasil
Num shopping de Amsterdam, um portão do século 16 é o vestígio do presídio que servia como fábrica de corantes de pau-brasil contrabandeado
U
m turista visitando a cidade de Amsterdam acidentalmente entra no shopping Kalvertoren, encravado no olho da ferradura que forma o centro antigo da cidade, próximo à torre do Munt (moeda). Ao sair para a Heiligeweg, olha para trás e percebe um velho portão do século 16 integrado na arquitetura moderna do shopping, pelo qual passou quase sem perceber. Os velhos de Amsterdam recordam-se deste lugar como a piscina do Heiligeweg. Acima do portão, chama a atenção do turista três figuras: uma mulher, com o escudo da cidade de Amsterdam e um chicote, ladeada por dois homens jovens acorrentados. Sobre o frontispício, duas frases em latim: castigatio e virtudis est domare quae cvncti pavent, o que em português quer dizer: castigo e virtude é domar o que todos temem. O portão tem uma elegância que testemunha a mão de um grande arquiteto. Ele é o que resta do complexo do velho monastério das freiras Clarissas, que foi demolido no ano 1895 para a construção da piscina pública, que há alguns anos deu lugar ao shopping. O turista não é o primeiro estrangeiro a visitar este lugar velho; muitos visitantes comentaram
Lodewijk Hulsman 34 Continente Multicultural
território, disputa que só foi resolvida mediante acordo pelo qual os Lauremburg passaram da jurisdição daquele prelado para a do arcebispo de Treves, de quem receberam o novo castelo. Desde então a família passou a viver em Nassau e, por conseguinte, a se chamarem condes de Nassau. No período subseqüente, ela sai definitivamente do que se chamavam as trevas da Idade Média e que eram, na realidade, apenas as trevas no conhecimento dos historiadores. Seu patrimônio fundiário aumenta e, sinal de promoção nobiliárquica, membros seus participam do círculo de Frederico Barbarroxa, a quem apoiaram nas reivindicações imperiais no Norte da Itália e nos conflitos com o Papado. No começo do século 13, Henrique de Nassau, o Rico, arredondou seu feudo, que ficou compreendendo toda a área da margem direita do Reno entre os rios Main e Sieg. A ele, deve-se a construção do castelo de Sonnenberg, próximo de Wiesbaden, e, sobretudo, do castelo de Dillenburg, localizado à margem do Dill, afluente do Lahn, o qual se tornará a sede hereditária e onde nascerá não só seu mais eminente vulto, Guilherme, o Taciturno, libertador dos Países Baixos, como também o nosso João Maurício de NassauSiegen. Após o desaparecimento de Henrique, a família bifurcou-se no ramo walmariano, que recebeu as terras ao sul do Lahn; e no ramo otoniano, que herdou a parte norte do Lahn inclusive Siegen e Dillenburg. Os walmarianos chegaram a dar um Imperador do Sacro Império Romano e Germânico, Adolfo de Nassau, eleito no século 13 contra um Habsburgo, rivalidade ainda lembrada no século 16 para justificar a rebelião do Taciturno, otoniano, contra outro Habsburgo, o rei Felipe II, da Espanha. A Renânia e os Países Baixos sempre estiveram estreitamente ligados graças às intensas comunicações fluviais e comerciais, mas só nos primeiros anos do século 15 é que os Nassau se estabeleceram nas terras planturosas do baixo Reno, que eram, então, parte do Sacro Império, quando um deles adquiriu o senhorio de Breda e outros domínios mediante o casamento numa antiga família local. Após seu faleci-
mento, os bens foram Os começos divididos numa herança alemã e noutra neer- dos Nassau landesa, o detentor des- confundem-se ta última tornando-se o com a lenda; e mais rico e poderoso representante da linha- esta, como de gem. Mas a fortuna ne- costume, tem erlandesa estava fadada a ir parar, por duas ve- diferentes zes, nas mãos dos “pri- versões mos pobres” alemães. Como Engilbert II não deixasse herdeiros, sua fortuna passou aos Nassau de Dillenburg (1504), na pessoa de Henrique III, casado com uma Chalon, cabendo a herança ao irmão, Guilherme, a quem consorciou com uma Egmont, pertencente à alta nobreza dos Países Baixos. Mas Guilherme, também chamado “o Rico”, converteu-se ao luteranismo, reformando as igrejas do seu condado. Ao contrário da motivação de tantos senhores germânicos do seu tempo, a sua não parece ter sido econômica (o clero possuía escassos bens nas suas terras), mas sinceramente espiritual, havendo decorrido do seu segundo matrimônio com Juliana, condessa von Stolberg. Contudo, as estreitas relações entre os dois ramos não foram prejudicadas pela conversão dos Nassau alemães à religião reformada. À morte de Henrique II, seu patrimônio neerlandês coube a seu filho único, René de Châlon, príncipe de Orange, por haver herdado de um tio materno o principado de Orange, no sul da França. René tinha direitos teóricos, ou os exercia efetivamente, sobre um reino, três principados, um ducado, dezesseis condados, dois marquesados, dois viscondados, cinqüenta baronias e trezentas senhorias, o que equivalia ao que se chamou “uma nova Lotaríngia”, pois, como a original, ia da foz do Mosa à do Ródano. Mortalmente ferido (1544) no sítio de Saint Dizier, no decurso da guerra entre Carlos V e Francisco I, da França, René de Châlon ficou sem descendência, razão pela qual novamente os bens do ramo neerlandês foram parar às mãos dos parentes alemães, não às do tio Guilherme, que, se havendo convertido ao protestantismo, tornara-se inaceitável como chefe de Nassau-Breda, mas a seu primo-
antes de Pernambuco
Maurício de Nassau. Gravura em cobre, extraída do livro de Gaspar Barléu, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, 1647
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Uma breve história da dinastia Nassau e daquele que veio a ser chamado “o Brasileiro”, antes de vir ao Brasil
Nassau Evaldo Cabral de Mello 38 Continente Multicultural
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Carvalho esculpido em baixo-relevo, de autor desconhecido, representando o embarque e o transporte de pau-brasil. La Rouen - França
A Rasphuis foi uma das primeiras casas de reforma no mundo e é o protótipo das instituições penitenciárias modernas
sobre a Rasphuis, (a casa de ralar), ou Tuchthuis, nome oficial. O portão prestigioso testemunha o valor que a oligarquia, os Regenten, dava a este, que já foi um projeto penal. O arquiteto era o famoso de Keyser, e se diz que Hooft – então prefeito de Amsterdam e uma das figuras mais conhecidas da literatura dos Países Baixos àquela época – escolheu pessoalmente o texto de Sêneca para decorar a entrada da casa de reforma. A Rasphuis que iniciou suas atividades no ano de 1596, foi uma das primeiras casas de reforma no mundo e é o protótipo das instituições penitenciárias encontradas no presente. No fim do século 16, todas as grandes cidades nos Países Baixos começaram a enfrentar problemas sociais, causados pelos imigrantes, que chegaram a formar mais de 60% da população de algumas cidades. Uma onda de criminalidade pequena e uma presença constante de mendigos e mascates ameaçava os cidadãos. O pensamento de Erasmo de Rotterdam inspirou o filósofo Coornhert a escrever um livro sobre criminologia,
chamado Boeventucht (Disciplina de Ladrão), publicado no ano de 1588. Neste texto, Coornhert conceitualizou a conexão entre trabalho e prisão, que hoje em dia é tão comum, e desenvolveu a idéia de que a punição dos delinqüentes deveria ter uma utilidade para a sociedade. A sua idéia era construir prisões onde os presos fossem reeducados por uma disciplina de trabalho e produzissem uma ação positiva para a sociedade. A cidade de Amsterdam, havia pouco tempo, se declarara protestante. As idéias de Coornhert agradaram aos Regenten (dirigentes), com um projeto no novo espírito do humanismo e calvinismo que soprava na cidade. As idéias de Coornhert sobre a reeducação dos criminosos para uma vida produtiva, em vez da tortura, pareciam uma solução interessante, mas, em meados do século 16, sobreveio uma crise econômica geral na Europa, e as comunidades não puderam mais sustentar as instituições punitivas. A Rasphuis então foi projetada como uma empresa independente com intenção de gerar lucro, bem de acordo com um dito popular deste tempo: “Deus ajuda aquele que ajuda a si mesmo”. Dois regentes, Jan Lourensz Spiegel e dr. Sebastiaen Egbertz, se destacaram como principais pioneiros e estimuladores do projeto, e em 1596, o primeiro Tuchthuis abriu as suas portas no lugar do monastério que havia ficado vazio depois da expulsão da igreja católica da cidade. REPRODUÇÃO
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A
escolha do alemão João Maurício, conde de Nassau-Siegen, como governador do Brasil holandês, deveu-se, em última análise, aos laços estreitos que sua família há muito mantinha com os Países Baixos. Os começos dos Nassau confundem-se com a lenda; e esta, como de costume, tem diferentes versões. Segundo uma delas, procedentes do que é hoje a Suíça, os Nassau se teriam estabelecido, ao tempo de Carlos Magno, na região do médio Reno, entre os vales do Main, do Lahn e do Sieg. Pretendeu-se até que o ancestral fundador fora um aristocrata romano que acompanhara Júlio César, por este encarregado da defesa aérea; ou o príncipe suevo Nasua (donde Nassau), citado nos comentários sobre a guerra das Gálias. Por sua vez, os historiadores românticos do século 19 sustentarão o parentesco com a poderosa linhagem dos Hatton. O mais recente biógrafo do Taciturno prefere a tradição que situa a origem da estirpe nos irmãos Drutwin e Dudo, que viveram em fins do século 11. Do segundo, descendiam os condes de Lauremburg, que senhoreavam seu castelo da ribeira do Lahn, vizinhanças de Limburg. No século 12, eles construíram uma outra cidadela, Nassau, à margem esquerda do rio. A iniciativa deu origem a um prolongado litígio com o bispo de Worms, que reivindicava o
Dois prisioneiros da Rasphuis cumprem a sua pena raspando o pau-brasil
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Depois de 1590, os negociantes procuraram importar a madeira direto de Pernambuco, sem respeitar as regras da coroa de Portugal. O pau-brasil de Pernambuco dava três vezes mais corante que a madeira sappan, que vinha da Ásia
RO
DU Ç
ÃO
Pernambuco, sem respeitar as regras impostas pela coroa de Portugal. A Caesalpinia Echinata de Pernambuco dava três vezes mais corante que a madeira sappan, e era conhecida pelos holandeses como Fernambuc. Quando os Regenten de Amsterdam procuravam atividades para os presos, eles buscavam-nas principalmente dentro da área de produção de tecidos. A produção de corante era uma coisa, então, feita pelos tintureiros. O pau-brasil era uma madeira de alta densidade, que fazia do processo de beneficiamento uma tarefa penosa. Quanto mais fina fosse ralada a madeira, mais corante produzia na infusão com a água e o pó.
REP
Pote de cerâmica do século 17, para guardar a brasilina, corante extraído do pau-brasil
O lugar era apropriado à função da nova instituição na vida econômica de Amsterdam. A imagem em baixo do texto no portão nos indica esta função. Nesta imagem, vemos um carro puxado por três tigres e três leões, domados por uma figura com chicote. Em cima do carro, vemos troncos de madeira e raspas (raladores). A madeira é pau-brasil, e os raladores servem para reduzi-la a pó, necessário para a produção do corante chamado brasilina. A brasilina era conhecida na Europa desde o século 12. A primeira importação chegou da Ásia pelo Oriente Médio, e a madeira tomou vários nomes como Verzino, Pressilig e Brasil. A madeira que veio da Ásia, depois, foi chamada de Sappan. A palavra Brasil já constava, no ano 1400, no livro das regras municipais (keurenboek) de Amsterdam. A prefeitura havia ordenado, neste ano, para os tintureiros, usar ao menos três libras (peso) desta madeira para tingir um laken (um pano específico de alta qualidade). O pau-brasil era um corante vermelho e, naquele tempo, a mais cara de todas as cores. Amsterdam era uma das poucas cidades que tinha uma indústria de tintureiros sem ter produção de tecidos. Esta indústria que tingia pano importado era chamada de apretise. O corante era usado pelos tintureiros artesãos e pelos pintores de arte. A produção de tinta era uma atividade individual, e as receitas de tintas eram segredos que valiam muito dinheiro, como testemunham vários contratos no keurenboek para ensinar a preparação de certas receitas de tinta. A descoberta da terra do Brasil aconteceria num momento muito oportuno: a conquista do Byzantium pelos turcos, em 1453, cortara a via de importação do pau-brasil asiático, e a indústria de tecidos de Flandres tornou-se o melhor freguês de Portugal. Depois da destruição de Antwerpen, no ano 1572, começou um êxodo dos protestantes flamengos. O ano de 1590 é considerado como o começo da expansão da sociedade dos Países Baixos. A indústria de tecidos recebeu uma injeção de especialistas e idéias trazidas pelos imigrantes. A produção de novos tecidos começou e a cidade de Leiden, a 30 km de Amsterdam, rapidamente converteu-se num centro de tecidos de alta qualidade, criando uma demanda constante de corantes. A exportação de paubrasil do Brasil via Portugal para Flandres, que já era feita em grande parte por navios da República, foi cada vez mais dirigida para os Países Baixos. A importação de pau-brasil em Amsterdam cresceu depois de 1590 e, nos arquivos notariais, encontra-se testemunho das tentativas dos negociantes procurando importar a madeira direto de
REPRODUÇÃO
Os presos não precisavam andar, ou o podiam fazer acorrentados no lugar, o que facilitava a supervisão, e a invenção de um novo tipo de instrumento de raspagem da madeira (rasp), que passou a produzir um pó bem mais fino, completou o plano de empresa que parecia ser destinado para o sucesso econômico. O número dos presos aumentou rápido, de 12, em 1596, para mais de 100 no começo de século 17. Panfletos da época exaltavam a influência bendita do “São Raspius”, ajudado por “São Ponus”. Os mendigos e vagabundos eram forçados, se necessário por castigo, com bastão (São Ponus), a trabalhar. A Rasphuis testou também uma solução para combater dissidentes, como os jesuítas. Uma terceira categoria de trabalhadores eram as crianças rebeldes que eram internadas pelos próprios pais para se disciplinarem. Muitos visitantes dos Países Baixos e outros países como a Bélgica, França e Alemanha escreveram sobre esta novidade. Muitas casas de reforma, modeladas a partir do exemplo de Amsterdam, abriram suas portas em outras cidades, como Haarlem, Leiden e, no exterior, em 1612, em Antwerpen, Hamburg, Bremen, Kobenhavn, Dantzig e Warsawa. Para garantir a rentabilidade da nova instituição, o conselho municipal de Amsterdam concedeu o monopólio comercial da produção de raspa de pau-brasil às Rasphuis. Aos contraventores estava reservada a pena de ser preso na própria Rasphuis. O monopólio e sua pena foram estendidos para o estado da Holanda e West Frísia, em 1602, pelo governo destas províncias. Na verdade, o local da Rasphuis na Heiligeweg, em Amsterdam, era bem próximo dos grandes centros de tecido na cidade. Atrás estava situado o cais do Rouen. Desta cidade francesa importava-se paubrasil para os Países Baixos desde a primeira viagem do capitão de Gonneville para o Brasil, no ano 1503. Do outro lado da torre do Munt, ainda encontramos o Staalstraat, a rua das amostras, onde eram contro-
ladas a qualidade e a cor dos tecidos, e no Groenburgwal havia várias empresas de tinturaria. Entretanto o sucesso econômico nunca se realizava. Já no ano da publicação do livro de Coornhert, Albert de Veer pediu patente para um moinho para quebrar pau-brasil. Em volta de 1600, o moinho de tinta, patenteado por Cornelis Corneliszoon, já era capaz de produzir um pó bem mais fino do que o dos presos. A gerência da Rasphuis começou, então, uma batalha que vai durar quase 200 anos, exigindo o respeito forçado ao monopólio. Os moinhos de pau-brasil foram banidos de Amsterdam. Entretanto, um pouco mais ao norte, em Zaanstreek, já existia o maior parque de moinhos do mundo de então. Para lá é que mais se dirigiam os produtores de tecidos para moer sua madeira de tinta, que, então, também não era mais só pau-brasil, mas também campeche, brasiletto e muitas outras. Depois de 1656, a Rasphuis começou a explorar também um moinho, enfeitado com uma escultura de dois homens ralando, no lugar hoje ocupado pelo teatro Carré, mas não conseguiu reverter a batalha. Cada vez mais a Rasphuis ficava mais na margem da economia. Com a chegada da legislação napoleônica acabou o poder do município para prender delinqüentes e a Rasphuis tornou-se uma casa de detenção comum, até que, demolida no ano 1895, foi substituída pela piscina de que os velhos moradores de Amsterdam se lembram. Só o portão ficou como um símbolo da relação entre o Brasil e os Países Baixos, que começou com a importação da madeira pau-brasil para a indústria de tecidos, uma das fundadoras da sociedade proto-industrial e capitalista da República das sete províncias no século 17. Um símbolo de um passado largamente esquecido, pois, infelizmente, não existem estudos sobre a grande importação de madeira de tinta do Brasil para os Países Baixos, que começou no início do século 16 e resistiu até o começo do século 20.
Carvalho esculpido em baixo-relevo, de autor desconhecido, representando o corte do pau-brasil
Lodewijk Hulsman é historiador, sociólogo e pesquisador de cultura brasileira na Universidade de Amsterdam
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Depois de 1590, os negociantes procuraram importar a madeira direto de Pernambuco, sem respeitar as regras da coroa de Portugal. O pau-brasil de Pernambuco dava três vezes mais corante que a madeira sappan, que vinha da Ásia
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Pernambuco, sem respeitar as regras impostas pela coroa de Portugal. A Caesalpinia Echinata de Pernambuco dava três vezes mais corante que a madeira sappan, e era conhecida pelos holandeses como Fernambuc. Quando os Regenten de Amsterdam procuravam atividades para os presos, eles buscavam-nas principalmente dentro da área de produção de tecidos. A produção de corante era uma coisa, então, feita pelos tintureiros. O pau-brasil era uma madeira de alta densidade, que fazia do processo de beneficiamento uma tarefa penosa. Quanto mais fina fosse ralada a madeira, mais corante produzia na infusão com a água e o pó.
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Pote de cerâmica do século 17, para guardar a brasilina, corante extraído do pau-brasil
O lugar era apropriado à função da nova instituição na vida econômica de Amsterdam. A imagem em baixo do texto no portão nos indica esta função. Nesta imagem, vemos um carro puxado por três tigres e três leões, domados por uma figura com chicote. Em cima do carro, vemos troncos de madeira e raspas (raladores). A madeira é pau-brasil, e os raladores servem para reduzi-la a pó, necessário para a produção do corante chamado brasilina. A brasilina era conhecida na Europa desde o século 12. A primeira importação chegou da Ásia pelo Oriente Médio, e a madeira tomou vários nomes como Verzino, Pressilig e Brasil. A madeira que veio da Ásia, depois, foi chamada de Sappan. A palavra Brasil já constava, no ano 1400, no livro das regras municipais (keurenboek) de Amsterdam. A prefeitura havia ordenado, neste ano, para os tintureiros, usar ao menos três libras (peso) desta madeira para tingir um laken (um pano específico de alta qualidade). O pau-brasil era um corante vermelho e, naquele tempo, a mais cara de todas as cores. Amsterdam era uma das poucas cidades que tinha uma indústria de tintureiros sem ter produção de tecidos. Esta indústria que tingia pano importado era chamada de apretise. O corante era usado pelos tintureiros artesãos e pelos pintores de arte. A produção de tinta era uma atividade individual, e as receitas de tintas eram segredos que valiam muito dinheiro, como testemunham vários contratos no keurenboek para ensinar a preparação de certas receitas de tinta. A descoberta da terra do Brasil aconteceria num momento muito oportuno: a conquista do Byzantium pelos turcos, em 1453, cortara a via de importação do pau-brasil asiático, e a indústria de tecidos de Flandres tornou-se o melhor freguês de Portugal. Depois da destruição de Antwerpen, no ano 1572, começou um êxodo dos protestantes flamengos. O ano de 1590 é considerado como o começo da expansão da sociedade dos Países Baixos. A indústria de tecidos recebeu uma injeção de especialistas e idéias trazidas pelos imigrantes. A produção de novos tecidos começou e a cidade de Leiden, a 30 km de Amsterdam, rapidamente converteu-se num centro de tecidos de alta qualidade, criando uma demanda constante de corantes. A exportação de paubrasil do Brasil via Portugal para Flandres, que já era feita em grande parte por navios da República, foi cada vez mais dirigida para os Países Baixos. A importação de pau-brasil em Amsterdam cresceu depois de 1590 e, nos arquivos notariais, encontra-se testemunho das tentativas dos negociantes procurando importar a madeira direto de
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Os presos não precisavam andar, ou o podiam fazer acorrentados no lugar, o que facilitava a supervisão, e a invenção de um novo tipo de instrumento de raspagem da madeira (rasp), que passou a produzir um pó bem mais fino, completou o plano de empresa que parecia ser destinado para o sucesso econômico. O número dos presos aumentou rápido, de 12, em 1596, para mais de 100 no começo de século 17. Panfletos da época exaltavam a influência bendita do “São Raspius”, ajudado por “São Ponus”. Os mendigos e vagabundos eram forçados, se necessário por castigo, com bastão (São Ponus), a trabalhar. A Rasphuis testou também uma solução para combater dissidentes, como os jesuítas. Uma terceira categoria de trabalhadores eram as crianças rebeldes que eram internadas pelos próprios pais para se disciplinarem. Muitos visitantes dos Países Baixos e outros países como a Bélgica, França e Alemanha escreveram sobre esta novidade. Muitas casas de reforma, modeladas a partir do exemplo de Amsterdam, abriram suas portas em outras cidades, como Haarlem, Leiden e, no exterior, em 1612, em Antwerpen, Hamburg, Bremen, Kobenhavn, Dantzig e Warsawa. Para garantir a rentabilidade da nova instituição, o conselho municipal de Amsterdam concedeu o monopólio comercial da produção de raspa de pau-brasil às Rasphuis. Aos contraventores estava reservada a pena de ser preso na própria Rasphuis. O monopólio e sua pena foram estendidos para o estado da Holanda e West Frísia, em 1602, pelo governo destas províncias. Na verdade, o local da Rasphuis na Heiligeweg, em Amsterdam, era bem próximo dos grandes centros de tecido na cidade. Atrás estava situado o cais do Rouen. Desta cidade francesa importava-se paubrasil para os Países Baixos desde a primeira viagem do capitão de Gonneville para o Brasil, no ano 1503. Do outro lado da torre do Munt, ainda encontramos o Staalstraat, a rua das amostras, onde eram contro-
ladas a qualidade e a cor dos tecidos, e no Groenburgwal havia várias empresas de tinturaria. Entretanto o sucesso econômico nunca se realizava. Já no ano da publicação do livro de Coornhert, Albert de Veer pediu patente para um moinho para quebrar pau-brasil. Em volta de 1600, o moinho de tinta, patenteado por Cornelis Corneliszoon, já era capaz de produzir um pó bem mais fino do que o dos presos. A gerência da Rasphuis começou, então, uma batalha que vai durar quase 200 anos, exigindo o respeito forçado ao monopólio. Os moinhos de pau-brasil foram banidos de Amsterdam. Entretanto, um pouco mais ao norte, em Zaanstreek, já existia o maior parque de moinhos do mundo de então. Para lá é que mais se dirigiam os produtores de tecidos para moer sua madeira de tinta, que, então, também não era mais só pau-brasil, mas também campeche, brasiletto e muitas outras. Depois de 1656, a Rasphuis começou a explorar também um moinho, enfeitado com uma escultura de dois homens ralando, no lugar hoje ocupado pelo teatro Carré, mas não conseguiu reverter a batalha. Cada vez mais a Rasphuis ficava mais na margem da economia. Com a chegada da legislação napoleônica acabou o poder do município para prender delinqüentes e a Rasphuis tornou-se uma casa de detenção comum, até que, demolida no ano 1895, foi substituída pela piscina de que os velhos moradores de Amsterdam se lembram. Só o portão ficou como um símbolo da relação entre o Brasil e os Países Baixos, que começou com a importação da madeira pau-brasil para a indústria de tecidos, uma das fundadoras da sociedade proto-industrial e capitalista da República das sete províncias no século 17. Um símbolo de um passado largamente esquecido, pois, infelizmente, não existem estudos sobre a grande importação de madeira de tinta do Brasil para os Países Baixos, que começou no início do século 16 e resistiu até o começo do século 20.
Carvalho esculpido em baixo-relevo, de autor desconhecido, representando o corte do pau-brasil
Lodewijk Hulsman é historiador, sociólogo e pesquisador de cultura brasileira na Universidade de Amsterdam
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Uma breve história da dinastia Nassau e daquele que veio a ser chamado “o Brasileiro”, antes de vir ao Brasil
Nassau Evaldo Cabral de Mello 38 Continente Multicultural
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Carvalho esculpido em baixo-relevo, de autor desconhecido, representando o embarque e o transporte de pau-brasil. La Rouen - França
A Rasphuis foi uma das primeiras casas de reforma no mundo e é o protótipo das instituições penitenciárias modernas
sobre a Rasphuis, (a casa de ralar), ou Tuchthuis, nome oficial. O portão prestigioso testemunha o valor que a oligarquia, os Regenten, dava a este, que já foi um projeto penal. O arquiteto era o famoso de Keyser, e se diz que Hooft – então prefeito de Amsterdam e uma das figuras mais conhecidas da literatura dos Países Baixos àquela época – escolheu pessoalmente o texto de Sêneca para decorar a entrada da casa de reforma. A Rasphuis que iniciou suas atividades no ano de 1596, foi uma das primeiras casas de reforma no mundo e é o protótipo das instituições penitenciárias encontradas no presente. No fim do século 16, todas as grandes cidades nos Países Baixos começaram a enfrentar problemas sociais, causados pelos imigrantes, que chegaram a formar mais de 60% da população de algumas cidades. Uma onda de criminalidade pequena e uma presença constante de mendigos e mascates ameaçava os cidadãos. O pensamento de Erasmo de Rotterdam inspirou o filósofo Coornhert a escrever um livro sobre criminologia,
chamado Boeventucht (Disciplina de Ladrão), publicado no ano de 1588. Neste texto, Coornhert conceitualizou a conexão entre trabalho e prisão, que hoje em dia é tão comum, e desenvolveu a idéia de que a punição dos delinqüentes deveria ter uma utilidade para a sociedade. A sua idéia era construir prisões onde os presos fossem reeducados por uma disciplina de trabalho e produzissem uma ação positiva para a sociedade. A cidade de Amsterdam, havia pouco tempo, se declarara protestante. As idéias de Coornhert agradaram aos Regenten (dirigentes), com um projeto no novo espírito do humanismo e calvinismo que soprava na cidade. As idéias de Coornhert sobre a reeducação dos criminosos para uma vida produtiva, em vez da tortura, pareciam uma solução interessante, mas, em meados do século 16, sobreveio uma crise econômica geral na Europa, e as comunidades não puderam mais sustentar as instituições punitivas. A Rasphuis então foi projetada como uma empresa independente com intenção de gerar lucro, bem de acordo com um dito popular deste tempo: “Deus ajuda aquele que ajuda a si mesmo”. Dois regentes, Jan Lourensz Spiegel e dr. Sebastiaen Egbertz, se destacaram como principais pioneiros e estimuladores do projeto, e em 1596, o primeiro Tuchthuis abriu as suas portas no lugar do monastério que havia ficado vazio depois da expulsão da igreja católica da cidade. REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
A
escolha do alemão João Maurício, conde de Nassau-Siegen, como governador do Brasil holandês, deveu-se, em última análise, aos laços estreitos que sua família há muito mantinha com os Países Baixos. Os começos dos Nassau confundem-se com a lenda; e esta, como de costume, tem diferentes versões. Segundo uma delas, procedentes do que é hoje a Suíça, os Nassau se teriam estabelecido, ao tempo de Carlos Magno, na região do médio Reno, entre os vales do Main, do Lahn e do Sieg. Pretendeu-se até que o ancestral fundador fora um aristocrata romano que acompanhara Júlio César, por este encarregado da defesa aérea; ou o príncipe suevo Nasua (donde Nassau), citado nos comentários sobre a guerra das Gálias. Por sua vez, os historiadores românticos do século 19 sustentarão o parentesco com a poderosa linhagem dos Hatton. O mais recente biógrafo do Taciturno prefere a tradição que situa a origem da estirpe nos irmãos Drutwin e Dudo, que viveram em fins do século 11. Do segundo, descendiam os condes de Lauremburg, que senhoreavam seu castelo da ribeira do Lahn, vizinhanças de Limburg. No século 12, eles construíram uma outra cidadela, Nassau, à margem esquerda do rio. A iniciativa deu origem a um prolongado litígio com o bispo de Worms, que reivindicava o
Dois prisioneiros da Rasphuis cumprem a sua pena raspando o pau-brasil
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HET RASPHUIS A prisão do pau-brasil
Num shopping de Amsterdam, um portão do século 16 é o vestígio do presídio que servia como fábrica de corantes de pau-brasil contrabandeado
U
m turista visitando a cidade de Amsterdam acidentalmente entra no shopping Kalvertoren, encravado no olho da ferradura que forma o centro antigo da cidade, próximo à torre do Munt (moeda). Ao sair para a Heiligeweg, olha para trás e percebe um velho portão do século 16 integrado na arquitetura moderna do shopping, pelo qual passou quase sem perceber. Os velhos de Amsterdam recordam-se deste lugar como a piscina do Heiligeweg. Acima do portão, chama a atenção do turista três figuras: uma mulher, com o escudo da cidade de Amsterdam e um chicote, ladeada por dois homens jovens acorrentados. Sobre o frontispício, duas frases em latim: castigatio e virtudis est domare quae cvncti pavent, o que em português quer dizer: castigo e virtude é domar o que todos temem. O portão tem uma elegância que testemunha a mão de um grande arquiteto. Ele é o que resta do complexo do velho monastério das freiras Clarissas, que foi demolido no ano 1895 para a construção da piscina pública, que há alguns anos deu lugar ao shopping. O turista não é o primeiro estrangeiro a visitar este lugar velho; muitos visitantes comentaram
Lodewijk Hulsman 34 Continente Multicultural
território, disputa que só foi resolvida mediante acordo pelo qual os Lauremburg passaram da jurisdição daquele prelado para a do arcebispo de Treves, de quem receberam o novo castelo. Desde então a família passou a viver em Nassau e, por conseguinte, a se chamarem condes de Nassau. No período subseqüente, ela sai definitivamente do que se chamavam as trevas da Idade Média e que eram, na realidade, apenas as trevas no conhecimento dos historiadores. Seu patrimônio fundiário aumenta e, sinal de promoção nobiliárquica, membros seus participam do círculo de Frederico Barbarroxa, a quem apoiaram nas reivindicações imperiais no Norte da Itália e nos conflitos com o Papado. No começo do século 13, Henrique de Nassau, o Rico, arredondou seu feudo, que ficou compreendendo toda a área da margem direita do Reno entre os rios Main e Sieg. A ele, deve-se a construção do castelo de Sonnenberg, próximo de Wiesbaden, e, sobretudo, do castelo de Dillenburg, localizado à margem do Dill, afluente do Lahn, o qual se tornará a sede hereditária e onde nascerá não só seu mais eminente vulto, Guilherme, o Taciturno, libertador dos Países Baixos, como também o nosso João Maurício de NassauSiegen. Após o desaparecimento de Henrique, a família bifurcou-se no ramo walmariano, que recebeu as terras ao sul do Lahn; e no ramo otoniano, que herdou a parte norte do Lahn inclusive Siegen e Dillenburg. Os walmarianos chegaram a dar um Imperador do Sacro Império Romano e Germânico, Adolfo de Nassau, eleito no século 13 contra um Habsburgo, rivalidade ainda lembrada no século 16 para justificar a rebelião do Taciturno, otoniano, contra outro Habsburgo, o rei Felipe II, da Espanha. A Renânia e os Países Baixos sempre estiveram estreitamente ligados graças às intensas comunicações fluviais e comerciais, mas só nos primeiros anos do século 15 é que os Nassau se estabeleceram nas terras planturosas do baixo Reno, que eram, então, parte do Sacro Império, quando um deles adquiriu o senhorio de Breda e outros domínios mediante o casamento numa antiga família local. Após seu faleci-
mento, os bens foram Os começos divididos numa herança alemã e noutra neer- dos Nassau landesa, o detentor des- confundem-se ta última tornando-se o com a lenda; e mais rico e poderoso representante da linha- esta, como de gem. Mas a fortuna ne- costume, tem erlandesa estava fadada a ir parar, por duas ve- diferentes zes, nas mãos dos “pri- versões mos pobres” alemães. Como Engilbert II não deixasse herdeiros, sua fortuna passou aos Nassau de Dillenburg (1504), na pessoa de Henrique III, casado com uma Chalon, cabendo a herança ao irmão, Guilherme, a quem consorciou com uma Egmont, pertencente à alta nobreza dos Países Baixos. Mas Guilherme, também chamado “o Rico”, converteu-se ao luteranismo, reformando as igrejas do seu condado. Ao contrário da motivação de tantos senhores germânicos do seu tempo, a sua não parece ter sido econômica (o clero possuía escassos bens nas suas terras), mas sinceramente espiritual, havendo decorrido do seu segundo matrimônio com Juliana, condessa von Stolberg. Contudo, as estreitas relações entre os dois ramos não foram prejudicadas pela conversão dos Nassau alemães à religião reformada. À morte de Henrique II, seu patrimônio neerlandês coube a seu filho único, René de Châlon, príncipe de Orange, por haver herdado de um tio materno o principado de Orange, no sul da França. René tinha direitos teóricos, ou os exercia efetivamente, sobre um reino, três principados, um ducado, dezesseis condados, dois marquesados, dois viscondados, cinqüenta baronias e trezentas senhorias, o que equivalia ao que se chamou “uma nova Lotaríngia”, pois, como a original, ia da foz do Mosa à do Ródano. Mortalmente ferido (1544) no sítio de Saint Dizier, no decurso da guerra entre Carlos V e Francisco I, da França, René de Châlon ficou sem descendência, razão pela qual novamente os bens do ramo neerlandês foram parar às mãos dos parentes alemães, não às do tio Guilherme, que, se havendo convertido ao protestantismo, tornara-se inaceitável como chefe de Nassau-Breda, mas a seu primo-
antes de Pernambuco
Maurício de Nassau. Gravura em cobre, extraída do livro de Gaspar Barléu, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, 1647
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gênito, o futuro Guilherme, o Taciturno, fundador da independência dos Países Baixos, o qual, aos quinze anos, podia ser facilmente reconvertido à religião católica. Destarte, quando Guilherme, o Rico, desapareceu, a casa de Nassau-Dillenburg, vale dizer, o ramo alemão, foi parar às mãos do seu segundo filho, João VI, o Velho, para distinguir do seu filho e neto homônimos, João VII, o do Meio, e João VIII, o Jovem. João, o Velho, foi o avô paterno do nosso João Maurício. Ele foi um colaborador fiel e incansável do irmão mais velho, embora estivesse longe de compartilhar a tolerância religiosa de que Guilherme, o Taciturno, deu repetidas provas, após sua volta ao aprisco do protestantismo, na esteira da revolta que acaudilhou contra Felipe II, da Espanha. João, o Velho, originalmente luterano, fizera-se calvinista nos primeiros anos setenta, introduzindo a doutrina de Genebra no seu território, a exemplo do que ocorria no vizinho Palatinado. Era a época em que ele e seus irmãos haviam-se engajado na revolução dos Países Baixos. Quando o Taciturno se viu forçado a abandonar suas terras, em face do fracasso inicial do movimento, refugiou-se em Dillenburg, que se transformou num importante centro político visando a articular a ajuda militar dos 40 Continente Multicultural
príncipes protestantes da Alemanha, a dar acolhida e abrigo aos refugiados neerlandeses da repressão católica e a financiar os preparativos bélicos de Guilherme. Dillenburg transformou-se, assim, na base alemã para a invasão dos Países Baixos. Uma vez que os rebeldes conseguiram firmar-se na região ao norte dos grandes rios que separam a Holanda atual da Bélgica, João, o Velho, como stathouder, isto é, como governador civil e militar, da Guéldria, desempenhou papel de primeiro plano na política neerlandesa, inclusive no tocante à negociação da União de Utrecht, que estabeleceu o laço confederal entre as províncias rebeladas contra a Espanha. Mas, em 1850, falecida sua mãe, João, o Velho, teve de regressar à Dillenburg para administrar o patrimônio da família. Seu militantismo calvinista não o abandonou, porém, como atesta sua liderança no Grafenverein, ou seja, na associação de condes calvinistas da Alemanha, destinada a resistir à paz de Augsburg, que excluíra os calvinistas das prebendas religiosas, o que resultava em dano para os segundões de uma nobreza prolífica. Foi, também como parte destes planos de união política, que João, o Velho, fundou em Herborn, nas proximidades do seu castelo, a Academia Nassauensis, visando à educação dos filhos da aristocracia. A tônica do seu currículo inci-
Desta forma, a experiência da velha Companhia das Índias Ocidentais (WIC) não é apenas a história do domínio ocidental sobre povos nativos colonizados, mas a história pela disputa de um mercado modelar, de cuja compreensão depende o entendimento e desdobramento de toda uma cadeia de exploração de mercados tropicais, via Atlântico, envolvendo aí o desenvolvimento e decadência da experiência pernambucana e a ascensão do mercado americano de Nova Amsterdam (hoje Nova Iorque), e os centros produtores antilhanos e caribenhos. Para o Brasil, esta história reveste-se de especial importância, não apenas como a expressão de um fenômeno local, como muitas vezes tem sido tratada pela historiografia regionalista, muitas vezes embebida por um pensamento saudosista de glórias cavalarescas passadas. Cabe hoje fazer uma história onde possa-se vislumbrar a importância deste período, e suas conseqüências para o desenvolvimento global, a posição de Pernambuco para o mundo, como já vem sendo feito por autores como Evaldo Cabral de Mello. Mas muito ainda tem para ser refletido sobre este período histórico, é isto que nos mostra a documentação depositada nos arquivos holandeses. Mergulhar nos acervos documentais que permanecem virgens na Holanda é também mergulhar em uma agenda de pesquisa nova, exigida pelos novos métodos e tendências do pensamento histórico moderno.
Detalhe de um quadro existente no Museu de Igaraçu, ca. 1729, em que aparecem as cidades de “Goyana” e “Ittamaracá”
Marcos Galindo é historiador. Há três anos na Holanda, vem preparando sua tese de doutorado, Os caminhos do São Francisco e a conquista do país dos Tapuias, sobre a expansão colonial pelo rio São Francisco REPRODUÇÃO
Carlos V, sacro imperador romano (extrema esquerda), discute com o eleitor da Saxônia uma questão em disputa na Confissão de Augsburgo, uma declaração de credo protestante oferecida pelos reformadores em 1530, numa última tentativa de reconciliação com a Igreja romana
Canal comercial O último varão dos Avis, o visionário D. Sebastião, encontrara em 1578 a morte, ou “encantarase” em Alcácer-Quibir sem deixar descendência, dando princípio a uma grave crise dinástica, agravada após a morte do seu tio, o velho cardeal D. Henrique, em 1580, também sem deixar sucessão. O Habsburgo Felipe II, a despeito da disputa interna portuguesa, consegue se impor como herdeiro legítimo incorporando Portugal no que chamou de “União Peninsular ou Ibérica”, que levaria Portugal a uma decadência da qual não mais se recuperaria. Um dos reflexos imediatos da União Ibérica, que se estendeu por seis décadas, foi o rompimento com os aliados portugueses, inimigos dos espanhóis: os franceses, ingleses e holandeses. Desta forma, o projeto brasileiro capitaneado por mercadores holandeses não pode ser entendido como uma pura e simples conquista territorial, mas a busca da restauração de um canal comercial rompido pela intromissão da política espanhola. “A conquista de Pernambuco e das capitanias vizinhas effectuada pelos Hollandezes no seculo 17 não foi mais do que um episodio da luta prolongada que se travara na Europa entre os reis de Hespanha e os seus subditos rebellados das Provincias Neerlandezas”, disparava José Hygino. A documentação que hoje encontra-se depositada nos arquivos holandeses é importante para o Brasil, mas, antes disto, é de fundamental importância para a história universal, como testemunho único de um experimento colonial que laboratoriou e modelou toda uma expressão comercial de mercados globalizados, cujas sementes, foram plantadas nos massapês do Nordeste colonial brasileiro do século 17.
Imagem sem título de Itamaracá. Original manuscrito do Algemeen Rijksarchief. Haia, ca. 1665
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Quadro estatístico aproximado sobre a população recifense nas décadas de ocupação holandesa e hoje
sil é ainda mais difícil. Talvez fosse melhor atacar o Sudeste, ou então explorar outras de nossas riquezas. Quais seriam estas? A cultura? Fotógrafos e artistas plásticos recifenses poderiam reproduzir pinturas do litoral pernambucano para distribuir na Europa. Esculturas de Abelardo da Hora e Francisco Brennand e quadros de João Câmara fariam às vezes de documentos em arte. Um novo Recife neerlandês visto artisticamente, desta vez por olhos recifenses, como antes fizeram os acompanhantes de Nassau. Os invasores poderiam fazer contrabando de nosso folclore, música, artes plásticas, Carnaval, como teriam feito com a cana, o pau-brasil e os negros africanos. Aliás, as reservas morais/religiosas dos calvinistas quanto ao trabalho escravo durariam até enxergarem o bom negócio, a partir de 1638, mais ou menos. Façamos um parêntese histórico. O trabalho escravo e o tráfico de negros renderam muito à WIC. Há no livro Seminário Internacional: Tempo dos Flamengos e outros Tempos (Massangana, 1999) que os negros preferiam os senhores portugueses aos neerlandeses. Eram os judeus, inclusive, os senhores preferidos dos escravos. Os negros não trabalhavam nos “Shabat” e eram liberados nos domingos. Fecha parêntese. Não esqueçamos a possibilidade de uma nova política de conquista e exploração, através da conciliação, tal como fez Maurício de Nassau. Os Países Baixos enviariam dirigentes comprometidos com
uma multinacional – que nem precisaria ser a WIC – e poderiam iniciar adquirindo estatais em leilão. Uma companhia de energia elétrica ou de telefonia seria estrategicamente excelente, pois, permitiria não só controle da comunicação à distância, mas daria a oportunidade de trabalhar diretamente com o bemestar dos usuários. Depois comprariam alguma grande cadeia de supermercados locais, para colocar à venda produtos originários da Holanda e promover o cosmopolitismo gastronômico. Porém, duas operações seriam fundamentais para consolidar a ocupação. A primeira seria controlar os grandes centros de consumo e lazer: os shopping centers. Lá, o bem-estar seria mais rápida e satisfatoriamente alcançado. Promoções, festas e eventos atrairiam cada vez mais cidadãos aos seus espaços atraentes e com segurança do ambiente ao estacionamento. Para os invasores não haveria problema de adaptação, pois, os shopping são iguais em todo o mundo. A segunda operação seguiria a tradição nassoviana de liberdade religiosa, porém não se restringiria a isso. Seria criada uma igreja, protestante como os holandeses, mas não necessariamente calvinista. Seria lícito ostentar riqueza e uma neopentecostal a opção apropriada. Talvez incorporassem até uma TV local para veicular programas religiosos, a TV Nassau, com anúncios de empresas neerlandesas e locais. Os templos seriam construídos seguindo a arquitetura tradicional neerlandesa, mas com sotaque local na aparência, afinal, os pedreiros seriam recifenses, como nos tempos de Nassau. Se após tudo isso, faltasse aos cidadãos locais poder de acesso a todas estas conquistas holandesas, seria dado o último golpe. A aquisição de um banco local para fornecer empréstimos e financiamentos. Estimular o crescimento e investir na cidade seria não só estratégia de garantir público consumidor, mas daria um ótimo argumento político. Campanhas beneficentes seriam empregadas pelo banco, para ajudar hospitais e creches. Quem sabe o banco e a Igreja de Nassau, juntos, realizassem uma campanha de arrecadação de alimentos com o selo WIC. Estes seriam adquiridos no supermercado holandês e entregues na praça da alimentação do Shopping Nassau. A campanha seria noticiada na emissora de TV da igreja e falaria que os doadores receberiam um desconto na conta da telefônica privatizada e concorreriam a uma passagem com acompanhante para Amsterdam. Golpe arriscado. Os inadimplentes já os expulsaram daqui uma vez. Gustavo Borges é jornalista e mestrando em comunicação pela Universidade Federal da Bahia
dia nos aspectos práticos da formação, atraindo inclusive protestantes poloneses, boêmios e húngaros, que, nos seus países de origem, enfrentavam a Contra Reforma comandada pela Áustria na Europa central. Herborn ficou conhecida pela alta qualidade do ensino e pela reputação da sua biblioteca e da sua oficina tipográfica. Embora o calvinismo ortodoxo dominasse, ele não chegava a ponto de sufocar a atividade intelectual, como também acontecia em Heidelberg ou Basiléia (Suíça). Mesmo quando, a partir de 1600, teve lugar a crescente polarização religiosa da política interna alemã, a instituição nassoviana continuou a tolerar certa latitude mental, ao contrário do que ocorreu em Heidelberg. Dos seus três matrimônios, João, o Velho, teve nada menos de vinte filhos. Dele procediam os ramos da família conhecidos por Nassau-Dillenburg, Nassau-Siegen (o ramo do nosso João Maurício), Nassau-Beilstein, Nassau-Diez e Nassau-Hadamar. Em 1606, Dillenburg coube ao primogênito, Guilherme Luís, que militava nos Países Baixos, onde se tornara stathouder da Frísia e de Groningen, e de quem descende a atual casa real dos Países Baixos. A João, o do Meio, pai de João Maurício, tocará a cidade e o distrito de Siegen, de área reduzida e rendimentos modestos. João, o do Meio, era o segundo rebento do casamento com uma landgra-
vina de Leuchtenberg. Como os irmãos, estudou em Heidelberg, sob a supervisão de um tutor e de um capelão. Ali, primeiro sinal da curiosidade intelectual que o caracterizará, escreveu, em latim, um ensaio sobre Epaminondas. Após dois anos de universidade, viajou à França e à Itália, dando particular atenção ao ensino e ao treinamento militar. Pertencendo à segunda geração da família a engajar-se na guerra contra a Espanha, partiu para a Holanda. A convivência com o primo, o stathouder Maurício, que, então, introduzia no exército neerlandês as reformas pelas quais se fará célebre, despertou seu interesse teórico pela arte militar. Havendo enviuvado, serviu de 1600 a 1602 sob Carlos IX, da Suécia, na Polônia, daí regressando definitivamente à Alemanha. João, o do Meio, casou-se duas vezes, com Magdalena van Waldeck, condessa de WaldeckWildungen, e com Margaretha van Holstein (15831658), filha do duque Johan van Sleeswijk-Holstein, e Elisabeth, princesa de Brunswijk. João Maurício foi o primogênito desse segundo matrimônio. Ele nasceu a 17 de junho de 1604, em Dillenburg, tendo por padrinhos o avô materno e o stathouder Maurício, que João, o do Meio, quisera homenagear no nome do filho. De Dillenburg, só restam as ruínas. A construção, datando do século 13, fora reformada nos começos do 16, com vistas à residência permanente dos Nassau alemães. No topo da sua escarpa, que o rio Dill cingia por três lados, ela desfrutava de uma situação estratégica invejável. Calculava-se que, em seus vários edifícios, podiamse acolher, em caso de necessidade, mais de quatrocentas pessoas, seu suprimento de água potável estando garantido por uma rede que captava a água da chuva e das alturas. Tratava-se também de uma residência confortável e de bom gosto, dispondo nada menos de 70 quartos de dormir, galerias, biblioteca de livros latinos e alemães, muitos dos quais escolhidos a dedo segundo indicação de Lutero, salas e salões decorados de tapeçarias versando temas da história sagrada, da antiguidade clássica e até do Renascimento. As preocupações estéticas da família também se manifestavam no pátio fronteiro, com sua fonte de sete jatos d’água, no jardim de baixo, à maneira de um bosque, olhando o rio, e no jardim do alto, localizado na terraça, com suas alamedas de tílias. Uma velha biografia de Guilherme, o Taciturno, dános uma descrição idílica do conjunto: “uma região agradavelmente cheia de bosques ao longo de um afluente do Lahn, tinha como centro a próspera aldeia de Dillenburg em torno do seu velho castelo, com suas torres cônicas ultrapassando as árvores. Vinhas cresciam nas margens ensolaradas do pequeno Continente Multicultural 41
rio Dill, ameixeiras e cerejeiras em flor ondeavam sob as brisas da primavera nos pomares ribeirinhos e havia excelente caça nas matas vizinhas”. João Maurício viveu em Dillenburg apenas seus primeiros anos de vida, pois, em 1606, com o falecimento de seu avô e o decorrente arranjo patrimonial, seu pai transferiu-se com a família para Siegen, que, como vimos, lhe coubera em herança. Aí, João, o do Meio, dedicou-se inteiramente à gestão das suas terras, construindo o castelo de Siegen, e, sobretudo, à sua grande vocação, o ensino militar. Com base nas reformas de Maurício nos Países Baixos, ele reestruturou as milícias do condado, que seu pai havia criado em 1850, de vez que os Nassau não dispunham de recursos com que pagar os caros exércitos mercenários da época. Redigiu, igualmente, um manual de arte militar. Exteriormente, assumiu suas responsabilidades no Grafenverein e organizou as milícias do Palatinado. Comparado ao de João, o Velho, seu militantismo calvinista foi, contudo, moderado, como se viu no tocante aos conflitos alemães da segunda década do século 17, a disputa em torno de Julich Chaves e a guerra do Palatinado. Evidentemente, ele encarou com apreensão a polarização entre protestantes e católicos alemães que redundaria na Guerra dos Trinta Anos. Ademais, no seu testamento, ele previu uma política de liberdade religiosa para católicos e luteranos em Siegen, como a que pautará o governo do seu filho em Pernambuco. Em nossos dias, quando na esteira do nazismo e das ditaduras castrenses o militarismo tornou-se a antítese do humanismo, requer certo esforço conceber a simbiose que caracterizou João, o do Meio, e a educação que dispensou aos filhos. Na Europa do norte, o neo-estoicismo constituiu a base dessa simbiose. Para a aristocracia local, permanentemente ameaçada pela perda de status, em decorrência da deterioração dos rendimentos da terra e período inflacionário, uma educação humanista e militar tornou-se uma estratégia de sobrevivência com que fazer face à concorrência crescente da classe média, que, optando pelo estudo do Direito, chamava a si as funções estatais. O pai de João Maurício foi um entusiasta da obra de Antônio de Guevara, O Relógio dos Príncipes, do qual resumiu do próprio punho vários trechos para governo dos filhos. Entre os “espelhos de príncipes”, de que foi abundante a tradição humanista, o livro de Guevara, publicado em 1529, foi o mais popular, tornando-se, provavelmente, após a Bíblia, o texto mais lido na Europa. Exceção neste gênero de literatura, ele não se destinava somente aos reis e príncipes, mas a todos aqueles que, na Corte, na nobreza e na burocracia, estivessem a serviço do 42 Continente Multicultural
Estado. A educação era o fundamento do seu sistema, cabendo-lhe incutir os princípios que representavam a principal garantia de leis equitativas aplicadas por governantes justos. Nesta perspectiva, era essencial evitar que pequenos erros de formação pudessem viciar o caráter do futuro chefe. Guevara não poupa mesmo conselhos e advertências acerca da criação dos filhos e da sua alimentação, inclusive do valor da amamentação. Nada se conhece acerca da existência, na pequena vila contal, nem da infância de João Maurício, embora um dos seus biógrafos, P.J. Bouman, sugira que “a paisagem romântica das colinas cobertas de bosques de Siegen desenvolveu precocemente seu amor pela natureza”. Contudo, com base no modelo predominante entre a nobreza germânica da época, M.E.H.N. Mout procurou reconstruir os primeiros anos daquele que ficará conhecido entre os seus por “o Brasileiro”. Os rudimentos da educação eram proporcionados em casa, seguindo-se o ensino da escola latina local. João Maurício terá sido instruído inicialmente pelo pai, pedagogo, freqüentando, depois, a escola de Siegen, que era basicamente uma escola contal, onde preceptores de bom nível ensinavam seus irmãos. No caso de João Maurício, foram Wolfgang Stover e Heinrich Hatzfeld, que nada tinham de notáveis,
lítica e relações internacionais, arquitetura e urbanismo ou sociologia. Talvez devêssemos nos concentrar apenas na cultura. E, se além de imaginar holandeses contemporâneos a invadir o país, pensássemos na antiga esquadra neerlandesa do século 17 como um fato recente? Como seriam os invasores? Que fariam? Maurício de Nassau é uma ponte? A esquadra que bombardearia o Porto do Recife, após desviar de navios de grãos e turistas, desembarcaria na praça do Marco Zero. Os soldados formariam em pelotão, sombreados pela Bolsa de Valores, o prédio do Bandepe e a Associação Comercial. Ali, marchariam em direção à avenida Marquês de Olinda, que teria sido a rua da Balsa. Ao passar pela avenida os neerlandeses observariam as vias que a cruzam dos dois lados. À direita e à esquerda estão o que seriam as ruas do Mar (Vigário Tenório), do Carcereiro (Madre de Deus) e do Vinho (absorvida pela rua Alfredo Lisboa). Parte do pelotão se afastaria para tomar o sentido da rua do Bom Jesus, onde dariam com construções que lembram pouco ou quase nada o que teria sido a rua dos Judeus. Encontrariam do sobrado que em seu primeiro andar teria abrigado a primeira sinagoga das Américas, vestígios das paredes laterais, do piso, de artefatos originais. Na rua predominam bares, boates, restaurantes e, no fim, uma praça. Por ali, dispersariam mais uns tantos. Parte provaria sushi, outros, a boate de música caribenha. O restante seguiria no sentido do istmo que vai até Olinda, daria com o Forte do Brum e, lá, o encontro dos neerlandeses com a história. O maior batalhão seguiria pela avenida Marquês de Olinda onde veriam a ponte Maurício de Nassau. Como uma metalinguagem histórica, os invasores se deparariam com a prova concreta de sua passagem. Ponte que o conde governador construiria para ligar o Recife à ilha de Antonio Vaz ou Cidade Maurícia. Assim ficaria conhecido o povoado que deu origem aos bairros de Santo Antônio e São José. A ilha seria perfeita para uma urbanização planejada nos moldes da ampliação de Amsterdam de 1590 e 1612, e o arquiteto Pieter Post, o incumbido de planejar (1639) um traçado moderno, com um longo canal que a dividiria em duas. Lotes proporcionais ao terreno, com diversos canais menores para drenar os alagados e vias paralelas e ortogonais entre
si. Praças privilegiariam comércio e lazer. Urbanização humanista como a própria figura de Nassau e o que seria seu governo. Penetrariam os invasores pela avenida 1º de Março e veriam a rua do Imperador com seus altos edifícios, sem entender a ausência de canais em um local como aquele. Construiriam alguns para drenar a água das marés, evitar enchentes e, talvez, até oferecer alternativa de transporte. Naquele momento já pensariam na exploração da área e análise de suas ruas e edificações. Ora, o plano era fortificar para proteger de ataques inimigos. Por ali, encontrariam a rua do Diario de Pernambuco, a rua Duque de Caxias, a rua Larga do Rosário. Avistariam, mais para o norte, o Palácio do Campo das Princesas e não concordariam com sua disposição, pois o teriam feito um pouco mais à frente, voltado para o bairro do Recife, e o chamariam Palácio das Torres do Governador Conde João Maurício de Nassau ou Friburgo. Os menos satisfeitos sugeririam andar até a Boa Vista, pois lá, sim, seria um ótimo lugar para um palácio. Chamariam-no de Palácio da Boa Vista e também seria do conde. No caminho para o sul, encontrariam a rua das Calçadas e por ela chegariam à praça Dom Vital, que poderia ter sido a praça da Nova Maurícia. Os invasores dispersariam por completo na altura da pracinha do Diário. O que teria sido a antiga praça da Maurícia, a do Mercado Grande. Os Países Baixos teriam uma mínima condição de consolidar seus objetivos de conquista e exploração pela cultura canavieira. A cana-de-açúcar já não tem hoje o valor comercial de outrora. Explorar pau-bra-
Antigas ruas que compunham o Recife holandês e suas prováveis correspondentes no atual bairro do Recife
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IVANA BORGES
Nassau, Holanda e o Recife invadido
O Recife, a partir do Marco Zero: o Espaço Cultural Bandepe, a Associação Comercial e a Bolsa de Valores
havendo ambos freqüentado a academia de Herborn e exercido funções burocráticas junto à família. Sabese que João Maurício prestou exames na escola latina da cidade, mas aparentemente não a cursou. No modelo aristocrático, a etapa posterior devia consistir no Kavalierstour, isto é, no estágio em alguma universidade renomada, destinado a “desasnar”, isto é, ampliar a experiência do mundo, e ensinar-lhe um ou mais idiomas estrangeiros. Em 1614, aos dez anos, João Maurício foi enviado à universidade de Basiléia, na Suíça, famosa desde os tempos de Erasmo, o que não deixa de ser indicativo do moderantismo religioso de João, o do Meio, pois ela ainda vivia sob a influência de Castellion, que fora um dos principais opositores de Calvino, inclusive no relativo à pedra-de-toque do verdadeiro reformado, vale dizer, o dogma da predestinação. A caminho de Basiléia, João Maurício conheceu a corte do seu cunhado Moritz von Hesse-Kassel, marido de sua meia-irmã Juliana, onde se lhe reuniram dois sobrinhos, Guilherme e Felipe, que também seguiam para a universidade suíça, sob o olhar vigilante de tutores e preceptores. Em Basiléia, eles permaneceram de junho de 1614 a junho de 1615; dali, partiram para Genebra, onde a influência de Théodore de Bèze havia atenuado o rigor do tempo de Calvino. Ao cabo de seis meses, regressaram a REPRODUÇÃO
Seria o Recife diferente caso a ocupação holandesa prosseguisse? Qual seria o impacto de uma invasão hoje?
T
odas as alusões ao Conde que foi governador do Brasil holandês são positivas no imaginário recifense. Maurício de Nassau, além de ser um nome, se torna um conceito hermético e cristalizado. A idéia de administração pública, quando associada a Maurício de Nassau, constrói, a partir do substantivo, o adjetivo. É ser capaz de desenvolver e prosperar. É executar uma gestão “maurícia”. A fantasia nostálgica do tempo de Nassau e a ocupação do Recife há muito têm espaço no imaginário recifense. O historiador Evaldo Cabral de Mello menciona que entre o século 18 e 19, os questionamentos sobre as vantagens da retomada do colonialismo português, após a expulsão dos neerlandeses em 1654, têm início. Aliás, neerlandês é como se chama o sujeito originário dos Países Baixos, que naqueles tempos eram uma república composta, inclusive, pelo que é hoje a Bélgica. Gustavo 46 Continente Multicultural
É fato que a gestão do conde foi o período mais pacífico da ocupação neerlandesa. Houve desenvolvimento urbano na cidade com a construção de praças, ruas, fortificações e canais. Artes e ciências foram valorizadas com a presença de artistas como Frans Post, Albert Eckhout, Zacarias Wagner e George Marcgraf, que retrataram a realidade do Recife holandês através de suas paisagens de fauna, flora e hábitos dos locais. Contudo, o governo nassoviano representou apenas sete dos vinte e quatro anos da ocupação nos estados que hoje compõem o Nordeste brasileiro. Visualizar todo o período de dominação neerlandesa através do governo de Maurício de Nassau é não somente um erro histórico, mas, em vista do conceito que analisamos no início, uma falácia. Será que o Recife seria diferente, mais precocemente urbano e calvinista, caso a ocupação holandesa no Nordeste prosseguisse? Qual seria o impacto desta invasão hoje? Poderíamos explorar Borges diversos aspectos, entre economia, po-
Hoje, quando o militarismo tornou-se a antítese do humanismo, requer certo esforço conceber a simbiose que caracterizou João, o do Meio, e a educação que dispensou aos filhos Kassel, onde João Maurício permanecerá de começos de 1616 até o verão de 1619, período que provavelmente terá sido mais estimulante para sua formação do que o transcorrido na Suíça, não só devido à duração da estada, mas ao ambiente, pois a corte de Kassel era incomparavelmente mais brilhante que a de Siegen ou a de Dillenburg. Ali, ele continuou seus estudos no Collegium Mauritianum, criado por Moritz von Hesse-Kassel para os rebentos da nobreza protestante, e onde haviam estudado dois dos meios irmãos de João Maurício. O currículo era abrangente, pois, além de idiomas – inclusive o francês, em que “o Brasileiro” sempre se exprimirá à vontade, o italiano e o espanhol, que lhe será útil no Brasil – incluía o estudo de retórica, história, filosofia, teologia e astronomia, para não falar de matemática, essencial à arte militar. Buscando conciliar o humanismo e a velha cultura nobiliárquica, o colégio dotava também seus pupilos com as prendas convencionais a um aristocrata, como o gosto de montar, da música, da dança e da esgrima. Mas os interesses de Moritz von Hesse-Kassel não ficavam por aqui, pois abrangiam também o teatro e, mais inconvencionalmente, a ciência e o ocultismo. Embora não seja possível precisar a extensão dos contactos que “o Brasileiro” teria mantido com essas idéias, a verdade é que, a despeito das diferenças confessionais, tornara-se perceptível a influência da corte católica do Imperador Rodolfo, em Praga, sobre a calvinista, em Kassel. Sabe-se que aquela irradiou culturalmente sobre toda a Europa central, graças à síntese do ocultismo e do humanismo. A diferença frisante de ambas tradições intelectuais fez com que essa interpenetração tenha representado na Europa de finais de quinhentos um acontecimento insólito. Sabe-se que para a corte de Kassel emigraram alguns dos alquimistas desempregados devido ao falecimento de Rodolfo (1612). O próprio Moritz von Hesse-Kassel ocupou-se ativamente com a alquimia, havendo criado, na universidade de Mar-
Busto em terracota pintada de Carlos V aos 17 anos
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REPRODUÇÃO
burg, a primeira cátedra de química da Europa. Foi também em Kassel que se publicou naqueles anos o manifesto fundador da Rosa Cruz, que propunha uma grande reforma da Cristandade baseada nas artes mágicas. Estudante do Collegium Mauritianum e participando da vida da corte na sua posição de irmão da landgravina, João Maurício não poderia ignorar o influxo e a extensão desse movimento. Mas sua segunda estadia em Kassel foi interrompida no verão de 1619. O landgrave havia introduzido uma reorganização do colégio que acarretava aumento substancial das despesas de escolaridade, e como nem sequer João Maurício se pudesse beneficiar de uma isenção, o pai o trouxe de volta a Siegen. Ali, ele encontrou a academia militar entrementes fundada por João, o do Meio, e destinada à nobreza protestante, embora não exista indicação de que a tenha cursado. A iniciativa não teve, aliás, o sucesso esperado, pois não contou com mais de vinte alunos, sendo prejudicada pelo início da guerra dos Trinta Anos e pelo predomínio da velha concepção aristocrática, a qual também ressoa nos Lusíadas, segundo a qual a arte militar aprendia-se no campo de batalha e não numa academia. É seguro, porém, que “o Brasileiro” terá dedicado o essencial desse período a consultar a família e a si mesmo sobre o rumo a dar à sua existência. Se a conjuntura era das mais sombrias, era também das mais prometedoras para quem 44 Continente Multicultural
se decidisse pela carreira militar. As tensões religiosas na Alemanha iam finalmente explodir depois do decênio de radicalização que se iniciara com a fundação da União Evangélica (1608), reunindo os príncipes protestantes sob a liderança de Frederico V, do Palatinado, e com a formação da Liga Católica, que sob a chefia de Maximiliano da Baviera e com o apoio da Áustria e da Espanha, era a ponta-de-lança da recatolicização da Alemanha. Em 1618, no ambiente ideologicamente exaltante das comemorações do primeiro centenário da Reforma luterana, a revolta protestante da Boêmia pusera no trono o Eleitor palatino, cujo regime não sobreviverá à derrota infligida pelos imperiais na batalha da Montanha Branca. Por outro lado, a Espanha intervirá militarmente no baixo Palatinado e a Baviera terá as mãos livres para ocupar o alto Palatinado. Pouco a pouco, a Guerra de Trinta Anos envolverá a Alemanha e a Europa. Graças à proteção dos primos ricos, há três gerações os Nassau da Alemanha iam, naturalmente, fazer a vida nos Países Baixos. Ali haviam militado o avô paterno, o pai e os meio-irmãos de João Maurício. Ali também o farão seus irmãos mais moços. O stathouder das Províncias Unidas, Maurício, era primo de João, o do Meio, e padrinho do “Brasileiro”, também sobrinho do stathouder da Frísia, Guilherme Luís. Em princípio, tais proteções deviam ser infalíveis. Em 1619, a mãe de João Maurício solici-
tava ao cunhado que intercedesse junto a Maurício de Nassau para que obtivesse uma comissão para seu primogênito. Naquele mesmo ano, João Maurício demorou-se algum tempo na Frísia e em Haia, nada conseguindo, nem numa, nem noutra corte. Em março de 1620, ele retornou a Leeuwarden, mas Guilherme Luís considerou-o demasiado jovem e o recambiou para Siegen. Decorridos alguns meses, falecia o tio stathouder, e João Maurício aproveitou a oportunidade do funeral para contactar o padrinho, que lhe deu uma comissão de cavalaria. O exército dos Países Baixos tratava de remobilizar-se na perspectiva da expiração, nos começos de 1621, da trégua hispanoneerlandesa dos doze anos. As posições em Madri, como em Haia, haviam-se tornado suficientemente rígidas como para deixar prever que o velho conflito se reacenderia. João Maurício se distinguirá nas várias campanhas militares que tinham lugar anualmente ao longo da fronteira oriental e meridional dos Países Baixos, onde se fazia sentir toda a pressão do poderio espanhol. Ele participou do sítio de Den Bosch (1632) e da reconquista de Schenckenshaus (1636), mas foi o assédio de Maastricht (1632) que o tornou conhecido e respeitado da noite para o dia. Foi, com efeito, o esquadrão sob seu comando que repeliu o ataque com que as tropas imperiais do general Pappenheim buscavam levantar o cerco neerlandês da importante
praça-forte. Data desta época sua predileção pelo convívio com artistas e homens de letras, o que, somado a seu gosto cosmopolita, explica também seu renome bem como a sedução que exercerá sobre seus governados luso-brasileiros. Deveu-se, no fundo, a estas preferências, sua partida para o Brasil holandês. É que, em 1632, João Maurício encetara a edificação de um palácio na Haia, a Mauritshuis, atualmente um dos pontos de atração turística da capital neerlandesa. A obra resultou muito mais dispendiosa do que ele projetara, de modo que foram principalmente os compromissos financeiros para concluí-la que o convenceram a aceitar o convite que lhe fazia a Companhia das Índias Ocidentais para assumir o governo político e militar do Recife, com o título de governador e comandante-em-chefe e com um salário chamado de “principesco” por um historiador, mas que não era tanto assim, se dermos crédito às queixas do interessado: 1.500 florins mensais, ajuda de custo de 6.000 florins, soldo de coronel do exército neerlandês e 2% sobre o valor dos navios apresados no Brasil. Nassau partiu do porto de Texel, a 25 de outubro de 1636, chegando em dezembro ao Recife, de onde logo escreveria, entusiasmado sobre “esse belo país do Brasil, que não tem igual sob o céu”.
Um quadro do século 15 mostra o imperador Frederico Barbarroxa acompanhando o papa Alexandre III, a fim de simbolizar a submissão de Frederico à autoridade papal, após a reconciliação do seu império com o papa, em 1177
Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor dos livros Rubro Veio – O imaginário da restauração pernambucana, Olinda Restaurada e O Negócio do Brasil, entre outros
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burg, a primeira cátedra de química da Europa. Foi também em Kassel que se publicou naqueles anos o manifesto fundador da Rosa Cruz, que propunha uma grande reforma da Cristandade baseada nas artes mágicas. Estudante do Collegium Mauritianum e participando da vida da corte na sua posição de irmão da landgravina, João Maurício não poderia ignorar o influxo e a extensão desse movimento. Mas sua segunda estadia em Kassel foi interrompida no verão de 1619. O landgrave havia introduzido uma reorganização do colégio que acarretava aumento substancial das despesas de escolaridade, e como nem sequer João Maurício se pudesse beneficiar de uma isenção, o pai o trouxe de volta a Siegen. Ali, ele encontrou a academia militar entrementes fundada por João, o do Meio, e destinada à nobreza protestante, embora não exista indicação de que a tenha cursado. A iniciativa não teve, aliás, o sucesso esperado, pois não contou com mais de vinte alunos, sendo prejudicada pelo início da guerra dos Trinta Anos e pelo predomínio da velha concepção aristocrática, a qual também ressoa nos Lusíadas, segundo a qual a arte militar aprendia-se no campo de batalha e não numa academia. É seguro, porém, que “o Brasileiro” terá dedicado o essencial desse período a consultar a família e a si mesmo sobre o rumo a dar à sua existência. Se a conjuntura era das mais sombrias, era também das mais prometedoras para quem 44 Continente Multicultural
se decidisse pela carreira militar. As tensões religiosas na Alemanha iam finalmente explodir depois do decênio de radicalização que se iniciara com a fundação da União Evangélica (1608), reunindo os príncipes protestantes sob a liderança de Frederico V, do Palatinado, e com a formação da Liga Católica, que sob a chefia de Maximiliano da Baviera e com o apoio da Áustria e da Espanha, era a ponta-de-lança da recatolicização da Alemanha. Em 1618, no ambiente ideologicamente exaltante das comemorações do primeiro centenário da Reforma luterana, a revolta protestante da Boêmia pusera no trono o Eleitor palatino, cujo regime não sobreviverá à derrota infligida pelos imperiais na batalha da Montanha Branca. Por outro lado, a Espanha intervirá militarmente no baixo Palatinado e a Baviera terá as mãos livres para ocupar o alto Palatinado. Pouco a pouco, a Guerra de Trinta Anos envolverá a Alemanha e a Europa. Graças à proteção dos primos ricos, há três gerações os Nassau da Alemanha iam, naturalmente, fazer a vida nos Países Baixos. Ali haviam militado o avô paterno, o pai e os meio-irmãos de João Maurício. Ali também o farão seus irmãos mais moços. O stathouder das Províncias Unidas, Maurício, era primo de João, o do Meio, e padrinho do “Brasileiro”, também sobrinho do stathouder da Frísia, Guilherme Luís. Em princípio, tais proteções deviam ser infalíveis. Em 1619, a mãe de João Maurício solici-
tava ao cunhado que intercedesse junto a Maurício de Nassau para que obtivesse uma comissão para seu primogênito. Naquele mesmo ano, João Maurício demorou-se algum tempo na Frísia e em Haia, nada conseguindo, nem numa, nem noutra corte. Em março de 1620, ele retornou a Leeuwarden, mas Guilherme Luís considerou-o demasiado jovem e o recambiou para Siegen. Decorridos alguns meses, falecia o tio stathouder, e João Maurício aproveitou a oportunidade do funeral para contactar o padrinho, que lhe deu uma comissão de cavalaria. O exército dos Países Baixos tratava de remobilizar-se na perspectiva da expiração, nos começos de 1621, da trégua hispanoneerlandesa dos doze anos. As posições em Madri, como em Haia, haviam-se tornado suficientemente rígidas como para deixar prever que o velho conflito se reacenderia. João Maurício se distinguirá nas várias campanhas militares que tinham lugar anualmente ao longo da fronteira oriental e meridional dos Países Baixos, onde se fazia sentir toda a pressão do poderio espanhol. Ele participou do sítio de Den Bosch (1632) e da reconquista de Schenckenshaus (1636), mas foi o assédio de Maastricht (1632) que o tornou conhecido e respeitado da noite para o dia. Foi, com efeito, o esquadrão sob seu comando que repeliu o ataque com que as tropas imperiais do general Pappenheim buscavam levantar o cerco neerlandês da importante
praça-forte. Data desta época sua predileção pelo convívio com artistas e homens de letras, o que, somado a seu gosto cosmopolita, explica também seu renome bem como a sedução que exercerá sobre seus governados luso-brasileiros. Deveu-se, no fundo, a estas preferências, sua partida para o Brasil holandês. É que, em 1632, João Maurício encetara a edificação de um palácio na Haia, a Mauritshuis, atualmente um dos pontos de atração turística da capital neerlandesa. A obra resultou muito mais dispendiosa do que ele projetara, de modo que foram principalmente os compromissos financeiros para concluí-la que o convenceram a aceitar o convite que lhe fazia a Companhia das Índias Ocidentais para assumir o governo político e militar do Recife, com o título de governador e comandante-em-chefe e com um salário chamado de “principesco” por um historiador, mas que não era tanto assim, se dermos crédito às queixas do interessado: 1.500 florins mensais, ajuda de custo de 6.000 florins, soldo de coronel do exército neerlandês e 2% sobre o valor dos navios apresados no Brasil. Nassau partiu do porto de Texel, a 25 de outubro de 1636, chegando em dezembro ao Recife, de onde logo escreveria, entusiasmado sobre “esse belo país do Brasil, que não tem igual sob o céu”.
Um quadro do século 15 mostra o imperador Frederico Barbarroxa acompanhando o papa Alexandre III, a fim de simbolizar a submissão de Frederico à autoridade papal, após a reconciliação do seu império com o papa, em 1177
Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor dos livros Rubro Veio – O imaginário da restauração pernambucana, Olinda Restaurada e O Negócio do Brasil, entre outros
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IVANA BORGES
Nassau, Holanda e o Recife invadido
O Recife, a partir do Marco Zero: o Espaço Cultural Bandepe, a Associação Comercial e a Bolsa de Valores
havendo ambos freqüentado a academia de Herborn e exercido funções burocráticas junto à família. Sabese que João Maurício prestou exames na escola latina da cidade, mas aparentemente não a cursou. No modelo aristocrático, a etapa posterior devia consistir no Kavalierstour, isto é, no estágio em alguma universidade renomada, destinado a “desasnar”, isto é, ampliar a experiência do mundo, e ensinar-lhe um ou mais idiomas estrangeiros. Em 1614, aos dez anos, João Maurício foi enviado à universidade de Basiléia, na Suíça, famosa desde os tempos de Erasmo, o que não deixa de ser indicativo do moderantismo religioso de João, o do Meio, pois ela ainda vivia sob a influência de Castellion, que fora um dos principais opositores de Calvino, inclusive no relativo à pedra-de-toque do verdadeiro reformado, vale dizer, o dogma da predestinação. A caminho de Basiléia, João Maurício conheceu a corte do seu cunhado Moritz von Hesse-Kassel, marido de sua meia-irmã Juliana, onde se lhe reuniram dois sobrinhos, Guilherme e Felipe, que também seguiam para a universidade suíça, sob o olhar vigilante de tutores e preceptores. Em Basiléia, eles permaneceram de junho de 1614 a junho de 1615; dali, partiram para Genebra, onde a influência de Théodore de Bèze havia atenuado o rigor do tempo de Calvino. Ao cabo de seis meses, regressaram a REPRODUÇÃO
Seria o Recife diferente caso a ocupação holandesa prosseguisse? Qual seria o impacto de uma invasão hoje?
T
odas as alusões ao Conde que foi governador do Brasil holandês são positivas no imaginário recifense. Maurício de Nassau, além de ser um nome, se torna um conceito hermético e cristalizado. A idéia de administração pública, quando associada a Maurício de Nassau, constrói, a partir do substantivo, o adjetivo. É ser capaz de desenvolver e prosperar. É executar uma gestão “maurícia”. A fantasia nostálgica do tempo de Nassau e a ocupação do Recife há muito têm espaço no imaginário recifense. O historiador Evaldo Cabral de Mello menciona que entre o século 18 e 19, os questionamentos sobre as vantagens da retomada do colonialismo português, após a expulsão dos neerlandeses em 1654, têm início. Aliás, neerlandês é como se chama o sujeito originário dos Países Baixos, que naqueles tempos eram uma república composta, inclusive, pelo que é hoje a Bélgica. Gustavo 46 Continente Multicultural
É fato que a gestão do conde foi o período mais pacífico da ocupação neerlandesa. Houve desenvolvimento urbano na cidade com a construção de praças, ruas, fortificações e canais. Artes e ciências foram valorizadas com a presença de artistas como Frans Post, Albert Eckhout, Zacarias Wagner e George Marcgraf, que retrataram a realidade do Recife holandês através de suas paisagens de fauna, flora e hábitos dos locais. Contudo, o governo nassoviano representou apenas sete dos vinte e quatro anos da ocupação nos estados que hoje compõem o Nordeste brasileiro. Visualizar todo o período de dominação neerlandesa através do governo de Maurício de Nassau é não somente um erro histórico, mas, em vista do conceito que analisamos no início, uma falácia. Será que o Recife seria diferente, mais precocemente urbano e calvinista, caso a ocupação holandesa no Nordeste prosseguisse? Qual seria o impacto desta invasão hoje? Poderíamos explorar Borges diversos aspectos, entre economia, po-
Hoje, quando o militarismo tornou-se a antítese do humanismo, requer certo esforço conceber a simbiose que caracterizou João, o do Meio, e a educação que dispensou aos filhos Kassel, onde João Maurício permanecerá de começos de 1616 até o verão de 1619, período que provavelmente terá sido mais estimulante para sua formação do que o transcorrido na Suíça, não só devido à duração da estada, mas ao ambiente, pois a corte de Kassel era incomparavelmente mais brilhante que a de Siegen ou a de Dillenburg. Ali, ele continuou seus estudos no Collegium Mauritianum, criado por Moritz von Hesse-Kassel para os rebentos da nobreza protestante, e onde haviam estudado dois dos meios irmãos de João Maurício. O currículo era abrangente, pois, além de idiomas – inclusive o francês, em que “o Brasileiro” sempre se exprimirá à vontade, o italiano e o espanhol, que lhe será útil no Brasil – incluía o estudo de retórica, história, filosofia, teologia e astronomia, para não falar de matemática, essencial à arte militar. Buscando conciliar o humanismo e a velha cultura nobiliárquica, o colégio dotava também seus pupilos com as prendas convencionais a um aristocrata, como o gosto de montar, da música, da dança e da esgrima. Mas os interesses de Moritz von Hesse-Kassel não ficavam por aqui, pois abrangiam também o teatro e, mais inconvencionalmente, a ciência e o ocultismo. Embora não seja possível precisar a extensão dos contactos que “o Brasileiro” teria mantido com essas idéias, a verdade é que, a despeito das diferenças confessionais, tornara-se perceptível a influência da corte católica do Imperador Rodolfo, em Praga, sobre a calvinista, em Kassel. Sabe-se que aquela irradiou culturalmente sobre toda a Europa central, graças à síntese do ocultismo e do humanismo. A diferença frisante de ambas tradições intelectuais fez com que essa interpenetração tenha representado na Europa de finais de quinhentos um acontecimento insólito. Sabe-se que para a corte de Kassel emigraram alguns dos alquimistas desempregados devido ao falecimento de Rodolfo (1612). O próprio Moritz von Hesse-Kassel ocupou-se ativamente com a alquimia, havendo criado, na universidade de Mar-
Busto em terracota pintada de Carlos V aos 17 anos
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rio Dill, ameixeiras e cerejeiras em flor ondeavam sob as brisas da primavera nos pomares ribeirinhos e havia excelente caça nas matas vizinhas”. João Maurício viveu em Dillenburg apenas seus primeiros anos de vida, pois, em 1606, com o falecimento de seu avô e o decorrente arranjo patrimonial, seu pai transferiu-se com a família para Siegen, que, como vimos, lhe coubera em herança. Aí, João, o do Meio, dedicou-se inteiramente à gestão das suas terras, construindo o castelo de Siegen, e, sobretudo, à sua grande vocação, o ensino militar. Com base nas reformas de Maurício nos Países Baixos, ele reestruturou as milícias do condado, que seu pai havia criado em 1850, de vez que os Nassau não dispunham de recursos com que pagar os caros exércitos mercenários da época. Redigiu, igualmente, um manual de arte militar. Exteriormente, assumiu suas responsabilidades no Grafenverein e organizou as milícias do Palatinado. Comparado ao de João, o Velho, seu militantismo calvinista foi, contudo, moderado, como se viu no tocante aos conflitos alemães da segunda década do século 17, a disputa em torno de Julich Chaves e a guerra do Palatinado. Evidentemente, ele encarou com apreensão a polarização entre protestantes e católicos alemães que redundaria na Guerra dos Trinta Anos. Ademais, no seu testamento, ele previu uma política de liberdade religiosa para católicos e luteranos em Siegen, como a que pautará o governo do seu filho em Pernambuco. Em nossos dias, quando na esteira do nazismo e das ditaduras castrenses o militarismo tornou-se a antítese do humanismo, requer certo esforço conceber a simbiose que caracterizou João, o do Meio, e a educação que dispensou aos filhos. Na Europa do norte, o neo-estoicismo constituiu a base dessa simbiose. Para a aristocracia local, permanentemente ameaçada pela perda de status, em decorrência da deterioração dos rendimentos da terra e período inflacionário, uma educação humanista e militar tornou-se uma estratégia de sobrevivência com que fazer face à concorrência crescente da classe média, que, optando pelo estudo do Direito, chamava a si as funções estatais. O pai de João Maurício foi um entusiasta da obra de Antônio de Guevara, O Relógio dos Príncipes, do qual resumiu do próprio punho vários trechos para governo dos filhos. Entre os “espelhos de príncipes”, de que foi abundante a tradição humanista, o livro de Guevara, publicado em 1529, foi o mais popular, tornando-se, provavelmente, após a Bíblia, o texto mais lido na Europa. Exceção neste gênero de literatura, ele não se destinava somente aos reis e príncipes, mas a todos aqueles que, na Corte, na nobreza e na burocracia, estivessem a serviço do 42 Continente Multicultural
Estado. A educação era o fundamento do seu sistema, cabendo-lhe incutir os princípios que representavam a principal garantia de leis equitativas aplicadas por governantes justos. Nesta perspectiva, era essencial evitar que pequenos erros de formação pudessem viciar o caráter do futuro chefe. Guevara não poupa mesmo conselhos e advertências acerca da criação dos filhos e da sua alimentação, inclusive do valor da amamentação. Nada se conhece acerca da existência, na pequena vila contal, nem da infância de João Maurício, embora um dos seus biógrafos, P.J. Bouman, sugira que “a paisagem romântica das colinas cobertas de bosques de Siegen desenvolveu precocemente seu amor pela natureza”. Contudo, com base no modelo predominante entre a nobreza germânica da época, M.E.H.N. Mout procurou reconstruir os primeiros anos daquele que ficará conhecido entre os seus por “o Brasileiro”. Os rudimentos da educação eram proporcionados em casa, seguindo-se o ensino da escola latina local. João Maurício terá sido instruído inicialmente pelo pai, pedagogo, freqüentando, depois, a escola de Siegen, que era basicamente uma escola contal, onde preceptores de bom nível ensinavam seus irmãos. No caso de João Maurício, foram Wolfgang Stover e Heinrich Hatzfeld, que nada tinham de notáveis,
lítica e relações internacionais, arquitetura e urbanismo ou sociologia. Talvez devêssemos nos concentrar apenas na cultura. E, se além de imaginar holandeses contemporâneos a invadir o país, pensássemos na antiga esquadra neerlandesa do século 17 como um fato recente? Como seriam os invasores? Que fariam? Maurício de Nassau é uma ponte? A esquadra que bombardearia o Porto do Recife, após desviar de navios de grãos e turistas, desembarcaria na praça do Marco Zero. Os soldados formariam em pelotão, sombreados pela Bolsa de Valores, o prédio do Bandepe e a Associação Comercial. Ali, marchariam em direção à avenida Marquês de Olinda, que teria sido a rua da Balsa. Ao passar pela avenida os neerlandeses observariam as vias que a cruzam dos dois lados. À direita e à esquerda estão o que seriam as ruas do Mar (Vigário Tenório), do Carcereiro (Madre de Deus) e do Vinho (absorvida pela rua Alfredo Lisboa). Parte do pelotão se afastaria para tomar o sentido da rua do Bom Jesus, onde dariam com construções que lembram pouco ou quase nada o que teria sido a rua dos Judeus. Encontrariam do sobrado que em seu primeiro andar teria abrigado a primeira sinagoga das Américas, vestígios das paredes laterais, do piso, de artefatos originais. Na rua predominam bares, boates, restaurantes e, no fim, uma praça. Por ali, dispersariam mais uns tantos. Parte provaria sushi, outros, a boate de música caribenha. O restante seguiria no sentido do istmo que vai até Olinda, daria com o Forte do Brum e, lá, o encontro dos neerlandeses com a história. O maior batalhão seguiria pela avenida Marquês de Olinda onde veriam a ponte Maurício de Nassau. Como uma metalinguagem histórica, os invasores se deparariam com a prova concreta de sua passagem. Ponte que o conde governador construiria para ligar o Recife à ilha de Antonio Vaz ou Cidade Maurícia. Assim ficaria conhecido o povoado que deu origem aos bairros de Santo Antônio e São José. A ilha seria perfeita para uma urbanização planejada nos moldes da ampliação de Amsterdam de 1590 e 1612, e o arquiteto Pieter Post, o incumbido de planejar (1639) um traçado moderno, com um longo canal que a dividiria em duas. Lotes proporcionais ao terreno, com diversos canais menores para drenar os alagados e vias paralelas e ortogonais entre
si. Praças privilegiariam comércio e lazer. Urbanização humanista como a própria figura de Nassau e o que seria seu governo. Penetrariam os invasores pela avenida 1º de Março e veriam a rua do Imperador com seus altos edifícios, sem entender a ausência de canais em um local como aquele. Construiriam alguns para drenar a água das marés, evitar enchentes e, talvez, até oferecer alternativa de transporte. Naquele momento já pensariam na exploração da área e análise de suas ruas e edificações. Ora, o plano era fortificar para proteger de ataques inimigos. Por ali, encontrariam a rua do Diario de Pernambuco, a rua Duque de Caxias, a rua Larga do Rosário. Avistariam, mais para o norte, o Palácio do Campo das Princesas e não concordariam com sua disposição, pois o teriam feito um pouco mais à frente, voltado para o bairro do Recife, e o chamariam Palácio das Torres do Governador Conde João Maurício de Nassau ou Friburgo. Os menos satisfeitos sugeririam andar até a Boa Vista, pois lá, sim, seria um ótimo lugar para um palácio. Chamariam-no de Palácio da Boa Vista e também seria do conde. No caminho para o sul, encontrariam a rua das Calçadas e por ela chegariam à praça Dom Vital, que poderia ter sido a praça da Nova Maurícia. Os invasores dispersariam por completo na altura da pracinha do Diário. O que teria sido a antiga praça da Maurícia, a do Mercado Grande. Os Países Baixos teriam uma mínima condição de consolidar seus objetivos de conquista e exploração pela cultura canavieira. A cana-de-açúcar já não tem hoje o valor comercial de outrora. Explorar pau-bra-
Antigas ruas que compunham o Recife holandês e suas prováveis correspondentes no atual bairro do Recife
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REPRODUÇÃO
Quadro estatístico aproximado sobre a população recifense nas décadas de ocupação holandesa e hoje
sil é ainda mais difícil. Talvez fosse melhor atacar o Sudeste, ou então explorar outras de nossas riquezas. Quais seriam estas? A cultura? Fotógrafos e artistas plásticos recifenses poderiam reproduzir pinturas do litoral pernambucano para distribuir na Europa. Esculturas de Abelardo da Hora e Francisco Brennand e quadros de João Câmara fariam às vezes de documentos em arte. Um novo Recife neerlandês visto artisticamente, desta vez por olhos recifenses, como antes fizeram os acompanhantes de Nassau. Os invasores poderiam fazer contrabando de nosso folclore, música, artes plásticas, Carnaval, como teriam feito com a cana, o pau-brasil e os negros africanos. Aliás, as reservas morais/religiosas dos calvinistas quanto ao trabalho escravo durariam até enxergarem o bom negócio, a partir de 1638, mais ou menos. Façamos um parêntese histórico. O trabalho escravo e o tráfico de negros renderam muito à WIC. Há no livro Seminário Internacional: Tempo dos Flamengos e outros Tempos (Massangana, 1999) que os negros preferiam os senhores portugueses aos neerlandeses. Eram os judeus, inclusive, os senhores preferidos dos escravos. Os negros não trabalhavam nos “Shabat” e eram liberados nos domingos. Fecha parêntese. Não esqueçamos a possibilidade de uma nova política de conquista e exploração, através da conciliação, tal como fez Maurício de Nassau. Os Países Baixos enviariam dirigentes comprometidos com
uma multinacional – que nem precisaria ser a WIC – e poderiam iniciar adquirindo estatais em leilão. Uma companhia de energia elétrica ou de telefonia seria estrategicamente excelente, pois, permitiria não só controle da comunicação à distância, mas daria a oportunidade de trabalhar diretamente com o bemestar dos usuários. Depois comprariam alguma grande cadeia de supermercados locais, para colocar à venda produtos originários da Holanda e promover o cosmopolitismo gastronômico. Porém, duas operações seriam fundamentais para consolidar a ocupação. A primeira seria controlar os grandes centros de consumo e lazer: os shopping centers. Lá, o bem-estar seria mais rápida e satisfatoriamente alcançado. Promoções, festas e eventos atrairiam cada vez mais cidadãos aos seus espaços atraentes e com segurança do ambiente ao estacionamento. Para os invasores não haveria problema de adaptação, pois, os shopping são iguais em todo o mundo. A segunda operação seguiria a tradição nassoviana de liberdade religiosa, porém não se restringiria a isso. Seria criada uma igreja, protestante como os holandeses, mas não necessariamente calvinista. Seria lícito ostentar riqueza e uma neopentecostal a opção apropriada. Talvez incorporassem até uma TV local para veicular programas religiosos, a TV Nassau, com anúncios de empresas neerlandesas e locais. Os templos seriam construídos seguindo a arquitetura tradicional neerlandesa, mas com sotaque local na aparência, afinal, os pedreiros seriam recifenses, como nos tempos de Nassau. Se após tudo isso, faltasse aos cidadãos locais poder de acesso a todas estas conquistas holandesas, seria dado o último golpe. A aquisição de um banco local para fornecer empréstimos e financiamentos. Estimular o crescimento e investir na cidade seria não só estratégia de garantir público consumidor, mas daria um ótimo argumento político. Campanhas beneficentes seriam empregadas pelo banco, para ajudar hospitais e creches. Quem sabe o banco e a Igreja de Nassau, juntos, realizassem uma campanha de arrecadação de alimentos com o selo WIC. Estes seriam adquiridos no supermercado holandês e entregues na praça da alimentação do Shopping Nassau. A campanha seria noticiada na emissora de TV da igreja e falaria que os doadores receberiam um desconto na conta da telefônica privatizada e concorreriam a uma passagem com acompanhante para Amsterdam. Golpe arriscado. Os inadimplentes já os expulsaram daqui uma vez. Gustavo Borges é jornalista e mestrando em comunicação pela Universidade Federal da Bahia
dia nos aspectos práticos da formação, atraindo inclusive protestantes poloneses, boêmios e húngaros, que, nos seus países de origem, enfrentavam a Contra Reforma comandada pela Áustria na Europa central. Herborn ficou conhecida pela alta qualidade do ensino e pela reputação da sua biblioteca e da sua oficina tipográfica. Embora o calvinismo ortodoxo dominasse, ele não chegava a ponto de sufocar a atividade intelectual, como também acontecia em Heidelberg ou Basiléia (Suíça). Mesmo quando, a partir de 1600, teve lugar a crescente polarização religiosa da política interna alemã, a instituição nassoviana continuou a tolerar certa latitude mental, ao contrário do que ocorreu em Heidelberg. Dos seus três matrimônios, João, o Velho, teve nada menos de vinte filhos. Dele procediam os ramos da família conhecidos por Nassau-Dillenburg, Nassau-Siegen (o ramo do nosso João Maurício), Nassau-Beilstein, Nassau-Diez e Nassau-Hadamar. Em 1606, Dillenburg coube ao primogênito, Guilherme Luís, que militava nos Países Baixos, onde se tornara stathouder da Frísia e de Groningen, e de quem descende a atual casa real dos Países Baixos. A João, o do Meio, pai de João Maurício, tocará a cidade e o distrito de Siegen, de área reduzida e rendimentos modestos. João, o do Meio, era o segundo rebento do casamento com uma landgra-
vina de Leuchtenberg. Como os irmãos, estudou em Heidelberg, sob a supervisão de um tutor e de um capelão. Ali, primeiro sinal da curiosidade intelectual que o caracterizará, escreveu, em latim, um ensaio sobre Epaminondas. Após dois anos de universidade, viajou à França e à Itália, dando particular atenção ao ensino e ao treinamento militar. Pertencendo à segunda geração da família a engajar-se na guerra contra a Espanha, partiu para a Holanda. A convivência com o primo, o stathouder Maurício, que, então, introduzia no exército neerlandês as reformas pelas quais se fará célebre, despertou seu interesse teórico pela arte militar. Havendo enviuvado, serviu de 1600 a 1602 sob Carlos IX, da Suécia, na Polônia, daí regressando definitivamente à Alemanha. João, o do Meio, casou-se duas vezes, com Magdalena van Waldeck, condessa de WaldeckWildungen, e com Margaretha van Holstein (15831658), filha do duque Johan van Sleeswijk-Holstein, e Elisabeth, princesa de Brunswijk. João Maurício foi o primogênito desse segundo matrimônio. Ele nasceu a 17 de junho de 1604, em Dillenburg, tendo por padrinhos o avô materno e o stathouder Maurício, que João, o do Meio, quisera homenagear no nome do filho. De Dillenburg, só restam as ruínas. A construção, datando do século 13, fora reformada nos começos do 16, com vistas à residência permanente dos Nassau alemães. No topo da sua escarpa, que o rio Dill cingia por três lados, ela desfrutava de uma situação estratégica invejável. Calculava-se que, em seus vários edifícios, podiamse acolher, em caso de necessidade, mais de quatrocentas pessoas, seu suprimento de água potável estando garantido por uma rede que captava a água da chuva e das alturas. Tratava-se também de uma residência confortável e de bom gosto, dispondo nada menos de 70 quartos de dormir, galerias, biblioteca de livros latinos e alemães, muitos dos quais escolhidos a dedo segundo indicação de Lutero, salas e salões decorados de tapeçarias versando temas da história sagrada, da antiguidade clássica e até do Renascimento. As preocupações estéticas da família também se manifestavam no pátio fronteiro, com sua fonte de sete jatos d’água, no jardim de baixo, à maneira de um bosque, olhando o rio, e no jardim do alto, localizado na terraça, com suas alamedas de tílias. Uma velha biografia de Guilherme, o Taciturno, dános uma descrição idílica do conjunto: “uma região agradavelmente cheia de bosques ao longo de um afluente do Lahn, tinha como centro a próspera aldeia de Dillenburg em torno do seu velho castelo, com suas torres cônicas ultrapassando as árvores. Vinhas cresciam nas margens ensolaradas do pequeno Continente Multicultural 41
REPRODUÇÃO
coma). Se a Ford do Brasil decidir vender o seu enorme e possante veículo, num país de língua inglesa, terá um bocado de problemas a menos que mude o nome para algo além de Deserter (Desertor). E eu não acredito que muitos visitantes americanos estejam ansiosos para experimentar o restaurante do aeroporto de Brasília, chamado (em inglês) The Albatross. O nome do bar do aeroporto (também em inglês) é Good Head. Eu poderia dar muitos exemplos mais, como o restaurante Tip Dog e a loja de sapatos Foot Free (para amputados?), mas vocês já pegaram a idéia. Para falar a verdade, eu cometo tantos erros gritantes em português que me lembro do velho ditado sobre pessoas que têm telhado de vidro. Mas, mesmo que não seja sempre usado com perfeição, o inglês é muito forte por aqui, e há muitos fatores que só garantirão que se torne mais forte. Qualquer coisa relacionada a computadores e eletrônica certamente dará mais uma avenida de invasão para a língua inglesa e a cultura americana. As marcas americanas – Compaq, IBM, Hewlett-Packard – dominam o mercado. Como nos Estados Unidos, as marcas japonesas, especialmente de impressoras, também se saem bem– , mas a maioria das marcas japonesas (e de qualquer outro país) que chegam ao Brasil são a versão americana, com instruções em inglês. O mesmo se aplica a televisores, estéreos e afins legalmente importados. Um jornal oferecia um dicionário inglês-português como prêmio pela assinatura, e os seus anúncios mostravam uma consumidora esgotada tentando entender o manual de instruções do seu estéreo pelo cara-ou-coroa. Somente o seu dicionário grátis poderia salvar o dia. Ter instruções úteis é tão raro que é um fator de venda: algumas geringonças são anunciadas com o aviso de que incluem instruções em português. Enquanto um número razoável de programas de computador foram traduzidos para o português, muitos não foram. E, é claro, o inglês é a língua franca da Internet. Dos principais backbones bra56 Continente Multicultural
sileiros da Internet, quase todos passam pelos Estados Unidos. Uma mensagem de e-mail, de uma vizinhança do Rio a outra, provavelmente atravessaria o equador, ida e volta, para viajar uns vinte quilômetros. Poderia ser dito que o imperialismo cultural começa em casa. Ligue a televisão e serão altas as chances de você ver algo americano – e muito altas de ser lixo americano. Os brasileiros produzem muito dos seus programas, e muitos deles são bem feitos –, mas você pode encontrar muitos filmes americanos velhos e mal dublados, junto com mal dublados comerciais de meia hora, de produtos de limpeza e aparelhos para ajudá-lo a parar de fumar. Se você tiver TV a cabo, terá CNN, HBO, TNT, e MTV em português e espanhol, os canais Warner Brothers e Sony (exibindo seriados produzidos nestes estúdios), e, dentre todas as coisas, Country Music Television. (A maioria das músicas na MTV e quase todas as músicas na CM, são americanas, ou pelo menos em inglês, com umas poucas músicas latinas jogadas. Mas há esses estranhos cruzamentos. Ontem à noite mesmo, eu fui presenteado com a visão de um brasileiro pegando o seu banjo...) Volte para casa, ligue o rádio, e a probabilidade é grande de que o que você ouvirá não será samba ou bossa nova, mas Lionel Ritchie. (Eu acabei de ligar o rádio aleatoriamente e consegui o que se parece muito com os Pretenders cantando uma velha canção do Air Supply, I’m Not in Love. O que diabos isso está fazendo no ar?) Por alguma razão, a porcaria mais cafona dos anos 70 em inglês está por toda a parte das ondas aéreas. Talvez por que seja barata. Apareça numa festa, e é provável que a música de dança seja – repare bem – a disco da era Paleolítica. Gloria Gaynor anunciando I Will Survive está muito em voga (agora o rádio está tocando alguma versão genérica de Stop in the Name of Love. É possível que eu tenha que usar um machado nele). Apenas uma nota posterior no processo de escrita deste artigo: a mesma estação de rádio acaba de tocar pelo menos seis músicas de língua inglesa seguidas,
O pintor holandês Roberto van der Ploeg usa os quadros de Eckhout para brincar com estereótipos e retratar o Brasil a partir de Olinda
O novo Eckhout
O
pintor holandês Roberto van der Ploeg se propôs um desafio: pintar o Brasil através do retrato. Para tanto, precisava de modelos emblemáticos, tal como outro pintor holandês, Albert Eckhout, precisou deles no século 17, para o mesmo propósito. Ploeg os encontrou entre a gente simples da zona rural de Olinda. Ao final do trabalho, titulou sua série de quatro casais e uma dança de Nativos. A escolha pelo termo anacrônico é uma ironia, à qual as obras e a história de Eckhout servem de base. Foi ele quem primeiro compôs um retrato fiel da natureza e dos tipos humanos brasileiros, conforme a orientação humanística e científica da comitiva de Nassau. Mas se Eckhout dispunha de tupinambás e tapuias para pintar o Brasil verdadeiro, hoje Ploeg não poderia mapear as raças, como fez o primeiro, com cada casal representando um tipo étnico. Os seus “nativos” já não são puros. Mas ainda são, pelo menos aos olhos da elite, primitivos e incultos. Eis a ironia: Eckhout destruiu alguns estereótipos; Ploeg brinca com outros tantos. Enquanto o primeiro pin- Alexandre
tava para a Europa uma realidade distante, o segundo quer falar mais baixo, de um povo que vive entre o idílio de uma vida desregrada e o inferno de privações, para uma elite que está bem pertinho, do outro lado da cidade. Na composição de seus quadros, ele evidencia a referência ao pintor seiscentista. Os modelos apresentam posição semelhante aos de Eckhout: o Guerreiro negro deste tem a mão na cintura, como o Cacaucatandocaju de Ploeg; a índia tupi, com a criança no colo e balaio na cabeça, torna-se a mulher grávida, com o bebê no braço e uma sacola de compras, do Recife. A linha do horizonte à altura dos joelhos cria a mesma perspectiva que põe os personagens em primeiro plano enquanto chama a atenção para o cenário ao fundo embaixo de um céu imenso, a “atmosfera rarefeita” de que falam os analistas de Eckhout. Finalmente, exemplares da flora e da fauna locais completam os quadros. Mas, porque o seu propósito é outro, Ploeg vai além da paráfrase, para inserir nas telas elementos narrativos e outras referências, como em Adão e Eva e o cão chupando manga. Ao fundo deste díptico, em que os modelos posam como o casal tarairiu de Eckhout, o panorama é uma versão Bandeira mais ou menos fiel da fachada do
Auto-retrato de Roberto van der Ploeg
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Da esquerda para a direita: Negra com criança (Eckhout),1641, (270 x 180cm) O gigante negro (Ploeg), 1998, óleo sobre tela (130 x 210cm) Cacaucatandocaju, (Ploeg), 1998, óleo sobre tela (130 x 210cm) Guerreiro negro, (Eckhout),1641, (264 x 162cm)
Shopping Tacaruna, com as logomarcas em neon. Adão e Eva levam uma vida sem pecado (a cobra morta ao pé de Adão), mas foram expulsos do paraíso de consumo. Para alguns críticos, a composição planejada de elementos metafóricos já aparecia em Eckhout, disfarçada em razões antes documentais do que estéticas. O próprio Ploeg cita como exemplos a palmeira e as conchas ao lado do Guerreiro negro, que ele interpreta como representações da virilidade da raça, respectivamente através do falo e do órgão feminino. Ploeg cria suas próprias metáforas para falar dos nativos. Em Mameluca de Vestidinho Vermelho, a menina carrega uma jaca próxima à cabeça e leva uma mão à cintura (como a mameluca de Eckhout). O vestido é vermelho, e não branco, as curvas do corpo se acentuam, o cachorro dormindo lembra o Lobo Mau da Chapeuzinho Vermelho. A Mameluca representa a fertilidade da Zona da Mata pela sensualidade, tanto dos sentidos (o cheiro forte da cana e da jaca; as cores vivas), quanto do sexo. Faz par com este quadro o Sertão de Matuto e tatu. O pé de algaroba, mesmo cinzento de tanta seca, continua verde na folhagem, dando vagens.
Tanto um quanto o outro artista revelam-se admirados por seus modelos, mas sem deslumbramentos. “Para mim, são eles o retrato, a força e a esperança deste país”, diz Ploeg. Seu testemunho ganha tanto mais força quando se conhece um pouco da sua vida. Roberto van der Ploeg tem 45 anos de idade e 21 de Pernambuco. Teólogo, começou a se interessar pela questão do Terceiro Mundo no começo da década de 70, quando decidiu morar em algum país da América Latina. Aprendeu a língua espanhola, mas um amigo belga o convidou a vir morar no Brasil, para estudar no Instituto de Teologia do Recife e trabalhar com a comunidade do Alto do Pascoal, no Recife. A criançada do Alto lhe ensinou “um português não muito educado”, e foi o primeiro contato que Ploeg teve com a cultura pernambucana. Desde então, conheceu de perto as dificuldades por que passa a população pobre, e aprendeu o jeito brasileiro de “se virar”, a criatividade que desperta não só para o sustento como para a arte. “Eu faço uma comparação com o que eu conheço”, explica, referindo-se à arte holandesa. “A produção artística da Holanda se insere logo no interna-
O primeiro casal da série de Ploeg retrata a miscigenação, mais as cores brasileiras do que uma suposta raça brasileira. “A mulher é Josineide, de traços indígenas com sua filha Eveline, negra toda. Elas estão à frente da Cidade Tabajara, bairro onde moram, em Olinda. A pose lembra a mulher negra de Eckhout com o menino mulato. A força e presença da raça negra na formação do povo brasileiro estão simbolizadas no galo, um gigante negro.
50 Continente Multicultural
O retrato do homem é Cacau, negro de raça, moreno de cor, posando como o Guerreiro negro de Eckhout, numa missão mais pacífica, apanhando caju no sítio onde mora. É Cacaucatandocaju, numa palavra só. O bicho é um camaleão, que adapta sua cor à paisagem como Cacau faz no seu dia-a-dia para garantir sua sobrevivência.” Roberto Ploeg
Os compradores brasileiros na Flórida já foram comparados a nuvens de gafanhotos por exaustos, porém satisfeitos donos de loja. Assim como com os gafanhotos, nada resta, em absoluto, uma vez que os brasileiros tenham enxameado a loja. Nas minhas várias viagens dos Estados Unidos para o Brasil, eu tenho notado um fenômeno interessante na esteira da bagagem: em média, para cada mala que desce a esteira, há uma caixa contendo uma engenhoca eletrônica ou aparato de consumo de um tipo ou de outro. Eu já vi computadores, impressoras, televisões, videocassetes, máquinas de fax, carrinhos de bebê, até árvores de Natal artificiais nas bagagens brasileiras. Dada a diferença de preço entre o Brasil e os Estados Unidos, um comprador esperto pode até financiar a sua viagem trazendo bens para casa e revendendo-os com um lucro suficiente para cobrir os gastos da passagem, dos hotéis e afins (tudo muito ilegal, é claro, mas isso nunca parou ninguém). Há rumores de pessoas que gerenciam indústrias domésticas inteiras, nesta base; por exemplo, há, supostamente, uma
mulher aqui em Brasília que comanda uma loja de roupas ou confecção na sua casa, com todo o estoque conseguido via mala-express. Esse tipo de compra ficou tão fora de controle que algumas linhas aéreas que fazem rotas Brasil–EUA deixaram bem claro que não mais aceitarão caixas de papelão como bagagem normal durante os períodos de pico, pela muito boa razão de que todos aqueles videocassetes e televisores estão entupindo as malas normais. Eu omitirei qualquer descrição das várias aventuras com bagagens de mão que testemunhei, deixando-as à imaginação do leitor. Um conto do folclore urbano diz que a seleção brasileira de futebol, nos Estados Unidos para a Copa do Mundo de 1994, fretou um avião apenas para trazer todo o resultado da sua sanha consumista. Os oficiais da alfândega que chegaram a ousar sugerir que a bagagem do time fosse revistada foram praticamente postos atrás das grades. Por muitos anos, era política oficial do governo limitar as importações estrangeiras para encorajar a produção doméstica. Não foi surpresa que, ao eliminarem a competição, também eliminaram o ímpeto para melhorar a qualidade, com a conseqüência de que muitos produtos brasileiros ficaram de segunda categoria – um fato que se tornou desconfortavelmente aparente quando as barreiras comerciais foram relaxadas. Para qualquer coisa, de preservativos a enlatados e até carros, os brasileiros estão descobrindo que a versão importada é realmente melhor. Sem dúvida, a competição irá aprimorar as versões brasileiras, mas por agora, é dado como certo que a versão estrangeira é melhor – e há um forte elemento de verdade nesta idéia. Tudo isto não faz mais do que pôr o inglês na moda. E quando uma língua é usada mais ou menos como acessório da moda, a coerência é sacrificada no altar da sofisticação pretendida. A primeira manhã em que minha esposa e eu chegamos ao Brasil, exaustos e cambaleando pelo aeroporto, reparamos um balcão de almoço anunciando “smell chicken” (não há tradução provável. A expressão deve ter sido escrita num inglês errado, pelo dono do estabelecimento; “galinha de cheiro”). Decidimos não arriscar. E eu duvido que a jovem moça, vestida com elegância, que vimos na noite anterior, realmente entendesse todos os níveis de significação que havia em uma pessoa sul-americana vestindo uma camisa que promovia a loja Banana Republic (República das Bananas). Eu certamente espero que outra jovem que eu vi não entendesse – ou pelo menos não falasse sério – a sátira ao slogan da Nike na sua camisa. Em letras de 40 centímetros, lia-se just do me (Só me Continente Multicultural 55
vativos, Blowtex (eu juro que não estou inventando esse nome), desapareceu das prateleiras junto às caixas registradoras de um supermercado local, para ser substituída pelas camisinhas Trojan. Os pacotes, em português, alardeavam que as Trojan não eram apenas Importado, mas também aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration: entidade de controle de qualidade de produtos alimentícios e farmacológicos). Não estou certo se esta substituição de uma marca doméstica de preservativos é o ápice ou o nadir do imperialismo cultural, mas pelo menos torna a noite de sábado bem mais internacional. Nenhuma discussão sobre o imperialismo cultural americano no Brasil estaria completa sem uma menção ao Tio Walt. Mais de 50 por cento dos brasileiros que pedem um passaporte indicam o desejo
zona rural da cidade. Vive cercado de mulher, filhos, parentes e agregados. São eles os seus “nativos”. Ploeg chegou a pintar a si próprio, em um dos quadros da série, A rainha do milho, que corresponde à dança dos tarairius, de Eckhout. “Completei a série com um quadro de dança, um forró do jeito que a gente faz no mês de junho, retratando a tribo de casa”, brinca. Entre os participantes da dança, Ploeg está de costas, ao fundo. A posição é sintomática e revela a lógica com que o artista se aproxima de seus modelos. Ploeg, assim como Eckhout, não se considera um brasileiro. Nem um holandês, já que se acomodou ao modo de vida daqui, a ponto de se sentir estranho na Holanda. “Considero-me Roberto, e é assim que me sinto bem”, afirma. Posicionando-se frente aos “nativos” somente como ser humano e tratando-os como tais, recupera o espírito do primeiro pintor que revelou a essência do brasileiro. A exposição da série Nativos está programada para março, no Espaço Cultural Bandepe, com curadoria da marchande Tereza Dourado. Completarão a mostra mais 13 telas do pintor. Alexandre Bandeira é jornalista
A escolha de uma logomarca sobre a outra pode ser misteriosa, mas o motivo para se usar os bonés e as camisetas não. Eles são a afirmação de moda e símbolos de status. e gelatinas inglesas e os cogumelos franceses enlatados estão lá, mas a maior parte da prateleira é ocupada por itens de gourmet como ketchup Heinz e molho de salada Shop-Rite, que, junto com outros produtos americanos totalmente genéricos, ficam bem expostos (faz-me pensar o quão requintadas aquelas geléias inglesas realmente são). O Gatorade é muito famoso. Por nenhuma razão que eu possa descobrir, Pringles, o substituto americano das batatas-fritas, é muito popular e muito evidente. Eu notei recentemente que uma marca brasileira comum de preser54 Continente Multicultural
de visitar a Disneylândia como uma das razões para quererem viajar aos Estados Unidos. Tem-se tornado uma tradição terrivelmente cara a de meninas de quinze anos, bem de vida, ganharem uma viagem à Disneylândia, em vez da festa de debutante fora de moda. Qualquer avião voando dos Estados Unidos ao Brasil carrega, provavelmente, pelo menos uma dessas jovens damas (embora elas geralmente viajem em grupo). Ela será a que estiver trazendo um Mickey Mouse ou um Pato Donald de pelúcia, que são, geralmente, maiores do que ela.
Da esquerda para a direita: Índio tarairiu, (Eckhout), sem data, (269 x 170cm) Adão e Eva e o cão chupando manga – díptico, (Ploeg,), 1999, óleo sobre tela (260 x 210cm) Índia tarairiu, (Eckhout), sem data, (264 x 159cm)
(PLOEG) FRANCISCO BACCARO; (ECKHOUT) REPRODUÇÃO
o chapéu do Tio Sam e tem suas mãos abertas de cada lado da cabeça, polegares nas orelhas, enquanto mostra a língua através de um sorriso engraçado. Eu não pude deixar de me perguntar o quão forte era, de fato, seu domínio do idioma.) As notícias americanas ganham uma razoável importância nos jornais e na televisão. Na Veja, uma revista comparável à Time ou Newsweek, há uma seção semanal com duas páginas de fofocas sobre celebridades chamada Gente, bem parecida com a seção People, da Time. É raro, aliás, que Gente deixe de mencionar pelo menos uma estrela de filme ou celebridade americana, de um tipo ou de outro. Muitos supermercados têm seções especiais de importados, onde você pode comprar (supostamente) iguarias requintadas, de todo o mundo. As geléias
cionalismo predominantemente anglo-saxônico. Não há uma música popular holandesa, como aqui há a MPB.” Do país natal, aliás, ressente também o modo excessivamente organizado, “aprisionante”, de vida: “Na Holanda a vida é tão segurada, regulamentada e cômoda que mais parece uma clínica geriátrica, situada num parque bem arrumado, onde nada mais acontece e todo mundo está esperando a morte”. Ploeg prefere a vida livre, sem agendas, ainda que cheia de aperreios. Sua própria condição de artista o coloca numa situação desafiante, para sobreviver apenas de suas pinturas. Decisão tomada há cinco anos, e da qual ele não se arrepende: “Sempre tive medo de me dedicar pra valer à arte. Porque considero a arte uma atividade quase monástica, de uma solidão, enquanto como teólogo eu era acostumado a ter uma platéia. Na arte, você está sozinho em seu ateliê, diante de uma tela ou de outro suporte, para expressar o que percebe e sente sobre tudo. Eu tinha muito medo de enfrentar esse momento de criação. Acho que tive que crescer como pessoa para poder externar isso”. A moradia em Olinda e a convivência com outros artistas também o ajudaram a dar o decisivo passo. Hoje, ele mora no Alto 4 de Outubro, em Jatobá,
O quarto casal é situado numa cena urbana, enfatizando os aspectos do crescente “apartheid social” nas grandes cidades. “As duas telas formam um quadro só: Adão e Eva e o cão chupando manga. A posição e os bichos, a cobra morta e o cachorro são referências ao casal de índios tarairius de Eckhout. Retrato, digamos, do habitante pré-colombiano, protótipo do homem americano, Adão e Eva num suposto
paraíso das Américas. Assim está o casal hoje frente ao paraíso de consumo do qual é excluído. A cobra morta, desde que abaixo do equador não há pecado. O cão chupando manga, pois assim deve fazer para sobreviver.” Roberto Ploeg Continente Multicultural 51
COMPORTAMENTO
Yankees, come home O imperialismo cultural americano toma o Brasil através da moda, e nenhum brasileiro parece se incomodar com isso
I
magine, por exemplo, ir ao maior e mais requintado centro de compras do subúrbio mais badalado de Washington, D.C. – a capital da nação. Imagine que você percebe que uma loja tem nome alemão. Então imagine que a loja ao lado também tem um nome alemão – e que há várias palavras alemãs nos cartazes pendurados na janela. Após caminhar um pouco, de repente lhe ocorre que quase um quarto das lojas no centro tem cartazes em alemão ou nomes alemães. Ao entrar nas lojas, você nota que muitos produtos têm, pelo menos, alguma coisa em alemão no rótulo, e muitos dos itens mais caros vêm coroados com o aviso: importado. Com certeza, os produtos em questão – CDs, computadores, roupas, aparatos de cozinha, alimentos, qualquer coisa – são importados, mas, fora isso, são de qualidade absolutamente comum. Você começa a ter a impressão de que ser importa-
Robert M. Allen 52 Continente Multicultural
do é, por si só, uma coisa boa, o que por sua vez traz a noção implícita de que qualquer coisa manufaturada domesticamente não presta. Você volta a atenção às lojas e reconhece várias companhias e restaurantes realmente alemães, que abriram filiais. Muitas lojas locais obviamente se basearam em modelos alemães e adotaram nomes alemães. Quase todos os filmes nos cinemas multiplex são alemães. A livraria tem uma seção especial de livros em alemão, e outra de revistas em alemão. A música alemã – inclusive a música alemã ruim – toca ferozmente nas lojas musicais, e o sistema de som do centro está tocando uma versão melosa de Muzak (Muzak é uma companhia norte-americana especializada em produzir música ambiente), de uma antiga balada pop alemã. É Natal, e o centro está enfeitado com decorações festivas – com uma representação mais ou menos precisa dos símbolos e imagens natalinas alemãs como motivo central. E então você percebe a coisa mais estranha de todas à sua volta. Ninguém se incomoda com isso. Ninguém acha estranho. Até onde você pode ver, ninguém sente nenhuma paranóia em relação aos alemães ou se manifesta contra o imperialismo cultural alemão... Bem-vindo a Brasília, capital do Brasil. Volte à primeira seção deste artigo e troque “Washington, D.C.” por “Brasília”, troque a palavra “alemão” por “americano”, e você terá uma descrição absolutamente sem exageros de uma visita ao nosso centro de compras local. (Aliás, o centro, em si, segue claramente o padrão do modelo americano, e o nome do lugar é Park Shopping. Na verdade, shopping, o gerúndio do verbo inglês “to shop” (comprar), tornou-se um substantivo na língua portuguesa do Brasil, significando “centro de compras”. A frase “I am going to the mall” (eu vou ao centro de compras) seria traduzida em algo como “Eu vou ao shopping”.) Provavelmente, pelo menos seis dos oito filmes que as telas de cinema estão exibindo são americanos. Você pode comer no McDonalds, presentear-se com um Dunkin Donut, jogar um pouco nas pistas de boliche Brunswick, conseguir uma cópia do último livro de Danielle Steele ou qualquer uma dentre várias revistas americanas ou inglesas (que geralmente estão com um mês de atraso), ver as crianças senta-
rem no colo de Papai Noel, comprar um computador Compaq, ou até perambular pelo General Nutrition Center para conseguir levedura de cerveja. Meu palpite é que algumas marcas estão tão bem estabelecidas que os moradores locais nem sabem que elas não são locais. Fanta, Coca-Cola e Sprite estão totalmente “localizadas”, para cunhar um termo. (Mas se você quiser uma Sprite, peça por uma spreet-che. A não ser, é claro, que queira uma Sete-Uppe para ajudá-lo a engolir as batatas-fritas.) Para qualquer lugar que olhe no Park Shopping, você verá pessoas portando emblemas da Disneylândia, suas camisetas enfeitadas com imagens do Pernalonga, ou com a logomarca dos New York Giants, ou deste hotel de Las Vegas, ou daquele lugar noturno de Los Angeles. Bonés com nomes de times de beisebol são muito populares. O basquete é muito jogado por aqui, e os times de basquete são a escolha mais pedida para camisas e bonés, com os times de futebol num segundo lugar bem próximo e os de beisebol bem atrás. Alguns times e cidades são mais populares. Os Chicago Bulls e os New York Giants são muito famosos, compreensivelmente. São grandes cidades com times de muito destaque. Menos explicável é a popularidade de alguma coisa com o nome dos Charlotte Hornets ou dos Georgetown Hoyas. E eu não sei ao certo por que os bonés dos Jayhawks, da Universidade do Kansas, estavam à venda em Fortaleza, uma cidade ao norte do país. A escolha de uma logomarca sobre a outra pode ser misteriosa, mas o motivo para se usar os bonés e as camisas não são. Eles são afirmações de moda e símbolos de status. Se você usa uma camiseta dos Giants por aqui, isto prova (ou pelo menos sugere) que você foi a Nova Iorque e que está na moda, tem estilo e é rico. Não são apenas os centros de compra, tampouco. Qualquer coisa anunciada em inglês está na moda, e qualquer coisa americana é muito chique. Escolas de língua inglesa estão por toda a parte. (Minha favorita se anuncia como uma “academia de idiomática”. O anúncio mostra um personagem com um globo terrestre como sua enorme cabeça. O personagem veste Continente Multicultural 53
COMPORTAMENTO
Yankees, come home O imperialismo cultural americano toma o Brasil através da moda, e nenhum brasileiro parece se incomodar com isso
I
magine, por exemplo, ir ao maior e mais requintado centro de compras do subúrbio mais badalado de Washington, D.C. – a capital da nação. Imagine que você percebe que uma loja tem nome alemão. Então imagine que a loja ao lado também tem um nome alemão – e que há várias palavras alemãs nos cartazes pendurados na janela. Após caminhar um pouco, de repente lhe ocorre que quase um quarto das lojas no centro tem cartazes em alemão ou nomes alemães. Ao entrar nas lojas, você nota que muitos produtos têm, pelo menos, alguma coisa em alemão no rótulo, e muitos dos itens mais caros vêm coroados com o aviso: importado. Com certeza, os produtos em questão – CDs, computadores, roupas, aparatos de cozinha, alimentos, qualquer coisa – são importados, mas, fora isso, são de qualidade absolutamente comum. Você começa a ter a impressão de que ser importa-
Robert M. Allen 52 Continente Multicultural
do é, por si só, uma coisa boa, o que por sua vez traz a noção implícita de que qualquer coisa manufaturada domesticamente não presta. Você volta a atenção às lojas e reconhece várias companhias e restaurantes realmente alemães, que abriram filiais. Muitas lojas locais obviamente se basearam em modelos alemães e adotaram nomes alemães. Quase todos os filmes nos cinemas multiplex são alemães. A livraria tem uma seção especial de livros em alemão, e outra de revistas em alemão. A música alemã – inclusive a música alemã ruim – toca ferozmente nas lojas musicais, e o sistema de som do centro está tocando uma versão melosa de Muzak (Muzak é uma companhia norte-americana especializada em produzir música ambiente), de uma antiga balada pop alemã. É Natal, e o centro está enfeitado com decorações festivas – com uma representação mais ou menos precisa dos símbolos e imagens natalinas alemãs como motivo central. E então você percebe a coisa mais estranha de todas à sua volta. Ninguém se incomoda com isso. Ninguém acha estranho. Até onde você pode ver, ninguém sente nenhuma paranóia em relação aos alemães ou se manifesta contra o imperialismo cultural alemão... Bem-vindo a Brasília, capital do Brasil. Volte à primeira seção deste artigo e troque “Washington, D.C.” por “Brasília”, troque a palavra “alemão” por “americano”, e você terá uma descrição absolutamente sem exageros de uma visita ao nosso centro de compras local. (Aliás, o centro, em si, segue claramente o padrão do modelo americano, e o nome do lugar é Park Shopping. Na verdade, shopping, o gerúndio do verbo inglês “to shop” (comprar), tornou-se um substantivo na língua portuguesa do Brasil, significando “centro de compras”. A frase “I am going to the mall” (eu vou ao centro de compras) seria traduzida em algo como “Eu vou ao shopping”.) Provavelmente, pelo menos seis dos oito filmes que as telas de cinema estão exibindo são americanos. Você pode comer no McDonalds, presentear-se com um Dunkin Donut, jogar um pouco nas pistas de boliche Brunswick, conseguir uma cópia do último livro de Danielle Steele ou qualquer uma dentre várias revistas americanas ou inglesas (que geralmente estão com um mês de atraso), ver as crianças senta-
rem no colo de Papai Noel, comprar um computador Compaq, ou até perambular pelo General Nutrition Center para conseguir levedura de cerveja. Meu palpite é que algumas marcas estão tão bem estabelecidas que os moradores locais nem sabem que elas não são locais. Fanta, Coca-Cola e Sprite estão totalmente “localizadas”, para cunhar um termo. (Mas se você quiser uma Sprite, peça por uma spreet-che. A não ser, é claro, que queira uma Sete-Uppe para ajudá-lo a engolir as batatas-fritas.) Para qualquer lugar que olhe no Park Shopping, você verá pessoas portando emblemas da Disneylândia, suas camisetas enfeitadas com imagens do Pernalonga, ou com a logomarca dos New York Giants, ou deste hotel de Las Vegas, ou daquele lugar noturno de Los Angeles. Bonés com nomes de times de beisebol são muito populares. O basquete é muito jogado por aqui, e os times de basquete são a escolha mais pedida para camisas e bonés, com os times de futebol num segundo lugar bem próximo e os de beisebol bem atrás. Alguns times e cidades são mais populares. Os Chicago Bulls e os New York Giants são muito famosos, compreensivelmente. São grandes cidades com times de muito destaque. Menos explicável é a popularidade de alguma coisa com o nome dos Charlotte Hornets ou dos Georgetown Hoyas. E eu não sei ao certo por que os bonés dos Jayhawks, da Universidade do Kansas, estavam à venda em Fortaleza, uma cidade ao norte do país. A escolha de uma logomarca sobre a outra pode ser misteriosa, mas o motivo para se usar os bonés e as camisas não são. Eles são afirmações de moda e símbolos de status. Se você usa uma camiseta dos Giants por aqui, isto prova (ou pelo menos sugere) que você foi a Nova Iorque e que está na moda, tem estilo e é rico. Não são apenas os centros de compra, tampouco. Qualquer coisa anunciada em inglês está na moda, e qualquer coisa americana é muito chique. Escolas de língua inglesa estão por toda a parte. (Minha favorita se anuncia como uma “academia de idiomática”. O anúncio mostra um personagem com um globo terrestre como sua enorme cabeça. O personagem veste Continente Multicultural 53
vativos, Blowtex (eu juro que não estou inventando esse nome), desapareceu das prateleiras junto às caixas registradoras de um supermercado local, para ser substituída pelas camisinhas Trojan. Os pacotes, em português, alardeavam que as Trojan não eram apenas Importado, mas também aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration: entidade de controle de qualidade de produtos alimentícios e farmacológicos). Não estou certo se esta substituição de uma marca doméstica de preservativos é o ápice ou o nadir do imperialismo cultural, mas pelo menos torna a noite de sábado bem mais internacional. Nenhuma discussão sobre o imperialismo cultural americano no Brasil estaria completa sem uma menção ao Tio Walt. Mais de 50 por cento dos brasileiros que pedem um passaporte indicam o desejo
zona rural da cidade. Vive cercado de mulher, filhos, parentes e agregados. São eles os seus “nativos”. Ploeg chegou a pintar a si próprio, em um dos quadros da série, A rainha do milho, que corresponde à dança dos tarairius, de Eckhout. “Completei a série com um quadro de dança, um forró do jeito que a gente faz no mês de junho, retratando a tribo de casa”, brinca. Entre os participantes da dança, Ploeg está de costas, ao fundo. A posição é sintomática e revela a lógica com que o artista se aproxima de seus modelos. Ploeg, assim como Eckhout, não se considera um brasileiro. Nem um holandês, já que se acomodou ao modo de vida daqui, a ponto de se sentir estranho na Holanda. “Considero-me Roberto, e é assim que me sinto bem”, afirma. Posicionando-se frente aos “nativos” somente como ser humano e tratando-os como tais, recupera o espírito do primeiro pintor que revelou a essência do brasileiro. A exposição da série Nativos está programada para março, no Espaço Cultural Bandepe, com curadoria da marchande Tereza Dourado. Completarão a mostra mais 13 telas do pintor. Alexandre Bandeira é jornalista
A escolha de uma logomarca sobre a outra pode ser misteriosa, mas o motivo para se usar os bonés e as camisetas não. Eles são a afirmação de moda e símbolos de status. e gelatinas inglesas e os cogumelos franceses enlatados estão lá, mas a maior parte da prateleira é ocupada por itens de gourmet como ketchup Heinz e molho de salada Shop-Rite, que, junto com outros produtos americanos totalmente genéricos, ficam bem expostos (faz-me pensar o quão requintadas aquelas geléias inglesas realmente são). O Gatorade é muito famoso. Por nenhuma razão que eu possa descobrir, Pringles, o substituto americano das batatas-fritas, é muito popular e muito evidente. Eu notei recentemente que uma marca brasileira comum de preser54 Continente Multicultural
de visitar a Disneylândia como uma das razões para quererem viajar aos Estados Unidos. Tem-se tornado uma tradição terrivelmente cara a de meninas de quinze anos, bem de vida, ganharem uma viagem à Disneylândia, em vez da festa de debutante fora de moda. Qualquer avião voando dos Estados Unidos ao Brasil carrega, provavelmente, pelo menos uma dessas jovens damas (embora elas geralmente viajem em grupo). Ela será a que estiver trazendo um Mickey Mouse ou um Pato Donald de pelúcia, que são, geralmente, maiores do que ela.
Da esquerda para a direita: Índio tarairiu, (Eckhout), sem data, (269 x 170cm) Adão e Eva e o cão chupando manga – díptico, (Ploeg,), 1999, óleo sobre tela (260 x 210cm) Índia tarairiu, (Eckhout), sem data, (264 x 159cm)
(PLOEG) FRANCISCO BACCARO; (ECKHOUT) REPRODUÇÃO
o chapéu do Tio Sam e tem suas mãos abertas de cada lado da cabeça, polegares nas orelhas, enquanto mostra a língua através de um sorriso engraçado. Eu não pude deixar de me perguntar o quão forte era, de fato, seu domínio do idioma.) As notícias americanas ganham uma razoável importância nos jornais e na televisão. Na Veja, uma revista comparável à Time ou Newsweek, há uma seção semanal com duas páginas de fofocas sobre celebridades chamada Gente, bem parecida com a seção People, da Time. É raro, aliás, que Gente deixe de mencionar pelo menos uma estrela de filme ou celebridade americana, de um tipo ou de outro. Muitos supermercados têm seções especiais de importados, onde você pode comprar (supostamente) iguarias requintadas, de todo o mundo. As geléias
cionalismo predominantemente anglo-saxônico. Não há uma música popular holandesa, como aqui há a MPB.” Do país natal, aliás, ressente também o modo excessivamente organizado, “aprisionante”, de vida: “Na Holanda a vida é tão segurada, regulamentada e cômoda que mais parece uma clínica geriátrica, situada num parque bem arrumado, onde nada mais acontece e todo mundo está esperando a morte”. Ploeg prefere a vida livre, sem agendas, ainda que cheia de aperreios. Sua própria condição de artista o coloca numa situação desafiante, para sobreviver apenas de suas pinturas. Decisão tomada há cinco anos, e da qual ele não se arrepende: “Sempre tive medo de me dedicar pra valer à arte. Porque considero a arte uma atividade quase monástica, de uma solidão, enquanto como teólogo eu era acostumado a ter uma platéia. Na arte, você está sozinho em seu ateliê, diante de uma tela ou de outro suporte, para expressar o que percebe e sente sobre tudo. Eu tinha muito medo de enfrentar esse momento de criação. Acho que tive que crescer como pessoa para poder externar isso”. A moradia em Olinda e a convivência com outros artistas também o ajudaram a dar o decisivo passo. Hoje, ele mora no Alto 4 de Outubro, em Jatobá,
O quarto casal é situado numa cena urbana, enfatizando os aspectos do crescente “apartheid social” nas grandes cidades. “As duas telas formam um quadro só: Adão e Eva e o cão chupando manga. A posição e os bichos, a cobra morta e o cachorro são referências ao casal de índios tarairius de Eckhout. Retrato, digamos, do habitante pré-colombiano, protótipo do homem americano, Adão e Eva num suposto
paraíso das Américas. Assim está o casal hoje frente ao paraíso de consumo do qual é excluído. A cobra morta, desde que abaixo do equador não há pecado. O cão chupando manga, pois assim deve fazer para sobreviver.” Roberto Ploeg Continente Multicultural 51
Da esquerda para a direita: Negra com criança (Eckhout),1641, (270 x 180cm) O gigante negro (Ploeg), 1998, óleo sobre tela (130 x 210cm) Cacaucatandocaju, (Ploeg), 1998, óleo sobre tela (130 x 210cm) Guerreiro negro, (Eckhout),1641, (264 x 162cm)
Shopping Tacaruna, com as logomarcas em neon. Adão e Eva levam uma vida sem pecado (a cobra morta ao pé de Adão), mas foram expulsos do paraíso de consumo. Para alguns críticos, a composição planejada de elementos metafóricos já aparecia em Eckhout, disfarçada em razões antes documentais do que estéticas. O próprio Ploeg cita como exemplos a palmeira e as conchas ao lado do Guerreiro negro, que ele interpreta como representações da virilidade da raça, respectivamente através do falo e do órgão feminino. Ploeg cria suas próprias metáforas para falar dos nativos. Em Mameluca de Vestidinho Vermelho, a menina carrega uma jaca próxima à cabeça e leva uma mão à cintura (como a mameluca de Eckhout). O vestido é vermelho, e não branco, as curvas do corpo se acentuam, o cachorro dormindo lembra o Lobo Mau da Chapeuzinho Vermelho. A Mameluca representa a fertilidade da Zona da Mata pela sensualidade, tanto dos sentidos (o cheiro forte da cana e da jaca; as cores vivas), quanto do sexo. Faz par com este quadro o Sertão de Matuto e tatu. O pé de algaroba, mesmo cinzento de tanta seca, continua verde na folhagem, dando vagens.
Tanto um quanto o outro artista revelam-se admirados por seus modelos, mas sem deslumbramentos. “Para mim, são eles o retrato, a força e a esperança deste país”, diz Ploeg. Seu testemunho ganha tanto mais força quando se conhece um pouco da sua vida. Roberto van der Ploeg tem 45 anos de idade e 21 de Pernambuco. Teólogo, começou a se interessar pela questão do Terceiro Mundo no começo da década de 70, quando decidiu morar em algum país da América Latina. Aprendeu a língua espanhola, mas um amigo belga o convidou a vir morar no Brasil, para estudar no Instituto de Teologia do Recife e trabalhar com a comunidade do Alto do Pascoal, no Recife. A criançada do Alto lhe ensinou “um português não muito educado”, e foi o primeiro contato que Ploeg teve com a cultura pernambucana. Desde então, conheceu de perto as dificuldades por que passa a população pobre, e aprendeu o jeito brasileiro de “se virar”, a criatividade que desperta não só para o sustento como para a arte. “Eu faço uma comparação com o que eu conheço”, explica, referindo-se à arte holandesa. “A produção artística da Holanda se insere logo no interna-
O primeiro casal da série de Ploeg retrata a miscigenação, mais as cores brasileiras do que uma suposta raça brasileira. “A mulher é Josineide, de traços indígenas com sua filha Eveline, negra toda. Elas estão à frente da Cidade Tabajara, bairro onde moram, em Olinda. A pose lembra a mulher negra de Eckhout com o menino mulato. A força e presença da raça negra na formação do povo brasileiro estão simbolizadas no galo, um gigante negro.
50 Continente Multicultural
O retrato do homem é Cacau, negro de raça, moreno de cor, posando como o Guerreiro negro de Eckhout, numa missão mais pacífica, apanhando caju no sítio onde mora. É Cacaucatandocaju, numa palavra só. O bicho é um camaleão, que adapta sua cor à paisagem como Cacau faz no seu dia-a-dia para garantir sua sobrevivência.” Roberto Ploeg
Os compradores brasileiros na Flórida já foram comparados a nuvens de gafanhotos por exaustos, porém satisfeitos donos de loja. Assim como com os gafanhotos, nada resta, em absoluto, uma vez que os brasileiros tenham enxameado a loja. Nas minhas várias viagens dos Estados Unidos para o Brasil, eu tenho notado um fenômeno interessante na esteira da bagagem: em média, para cada mala que desce a esteira, há uma caixa contendo uma engenhoca eletrônica ou aparato de consumo de um tipo ou de outro. Eu já vi computadores, impressoras, televisões, videocassetes, máquinas de fax, carrinhos de bebê, até árvores de Natal artificiais nas bagagens brasileiras. Dada a diferença de preço entre o Brasil e os Estados Unidos, um comprador esperto pode até financiar a sua viagem trazendo bens para casa e revendendo-os com um lucro suficiente para cobrir os gastos da passagem, dos hotéis e afins (tudo muito ilegal, é claro, mas isso nunca parou ninguém). Há rumores de pessoas que gerenciam indústrias domésticas inteiras, nesta base; por exemplo, há, supostamente, uma
mulher aqui em Brasília que comanda uma loja de roupas ou confecção na sua casa, com todo o estoque conseguido via mala-express. Esse tipo de compra ficou tão fora de controle que algumas linhas aéreas que fazem rotas Brasil–EUA deixaram bem claro que não mais aceitarão caixas de papelão como bagagem normal durante os períodos de pico, pela muito boa razão de que todos aqueles videocassetes e televisores estão entupindo as malas normais. Eu omitirei qualquer descrição das várias aventuras com bagagens de mão que testemunhei, deixando-as à imaginação do leitor. Um conto do folclore urbano diz que a seleção brasileira de futebol, nos Estados Unidos para a Copa do Mundo de 1994, fretou um avião apenas para trazer todo o resultado da sua sanha consumista. Os oficiais da alfândega que chegaram a ousar sugerir que a bagagem do time fosse revistada foram praticamente postos atrás das grades. Por muitos anos, era política oficial do governo limitar as importações estrangeiras para encorajar a produção doméstica. Não foi surpresa que, ao eliminarem a competição, também eliminaram o ímpeto para melhorar a qualidade, com a conseqüência de que muitos produtos brasileiros ficaram de segunda categoria – um fato que se tornou desconfortavelmente aparente quando as barreiras comerciais foram relaxadas. Para qualquer coisa, de preservativos a enlatados e até carros, os brasileiros estão descobrindo que a versão importada é realmente melhor. Sem dúvida, a competição irá aprimorar as versões brasileiras, mas por agora, é dado como certo que a versão estrangeira é melhor – e há um forte elemento de verdade nesta idéia. Tudo isto não faz mais do que pôr o inglês na moda. E quando uma língua é usada mais ou menos como acessório da moda, a coerência é sacrificada no altar da sofisticação pretendida. A primeira manhã em que minha esposa e eu chegamos ao Brasil, exaustos e cambaleando pelo aeroporto, reparamos um balcão de almoço anunciando “smell chicken” (não há tradução provável. A expressão deve ter sido escrita num inglês errado, pelo dono do estabelecimento; “galinha de cheiro”). Decidimos não arriscar. E eu duvido que a jovem moça, vestida com elegância, que vimos na noite anterior, realmente entendesse todos os níveis de significação que havia em uma pessoa sul-americana vestindo uma camisa que promovia a loja Banana Republic (República das Bananas). Eu certamente espero que outra jovem que eu vi não entendesse – ou pelo menos não falasse sério – a sátira ao slogan da Nike na sua camisa. Em letras de 40 centímetros, lia-se just do me (Só me Continente Multicultural 55
REPRODUÇÃO
coma). Se a Ford do Brasil decidir vender o seu enorme e possante veículo, num país de língua inglesa, terá um bocado de problemas a menos que mude o nome para algo além de Deserter (Desertor). E eu não acredito que muitos visitantes americanos estejam ansiosos para experimentar o restaurante do aeroporto de Brasília, chamado (em inglês) The Albatross. O nome do bar do aeroporto (também em inglês) é Good Head. Eu poderia dar muitos exemplos mais, como o restaurante Tip Dog e a loja de sapatos Foot Free (para amputados?), mas vocês já pegaram a idéia. Para falar a verdade, eu cometo tantos erros gritantes em português que me lembro do velho ditado sobre pessoas que têm telhado de vidro. Mas, mesmo que não seja sempre usado com perfeição, o inglês é muito forte por aqui, e há muitos fatores que só garantirão que se torne mais forte. Qualquer coisa relacionada a computadores e eletrônica certamente dará mais uma avenida de invasão para a língua inglesa e a cultura americana. As marcas americanas – Compaq, IBM, Hewlett-Packard – dominam o mercado. Como nos Estados Unidos, as marcas japonesas, especialmente de impressoras, também se saem bem– , mas a maioria das marcas japonesas (e de qualquer outro país) que chegam ao Brasil são a versão americana, com instruções em inglês. O mesmo se aplica a televisores, estéreos e afins legalmente importados. Um jornal oferecia um dicionário inglês-português como prêmio pela assinatura, e os seus anúncios mostravam uma consumidora esgotada tentando entender o manual de instruções do seu estéreo pelo cara-ou-coroa. Somente o seu dicionário grátis poderia salvar o dia. Ter instruções úteis é tão raro que é um fator de venda: algumas geringonças são anunciadas com o aviso de que incluem instruções em português. Enquanto um número razoável de programas de computador foram traduzidos para o português, muitos não foram. E, é claro, o inglês é a língua franca da Internet. Dos principais backbones bra56 Continente Multicultural
sileiros da Internet, quase todos passam pelos Estados Unidos. Uma mensagem de e-mail, de uma vizinhança do Rio a outra, provavelmente atravessaria o equador, ida e volta, para viajar uns vinte quilômetros. Poderia ser dito que o imperialismo cultural começa em casa. Ligue a televisão e serão altas as chances de você ver algo americano – e muito altas de ser lixo americano. Os brasileiros produzem muito dos seus programas, e muitos deles são bem feitos –, mas você pode encontrar muitos filmes americanos velhos e mal dublados, junto com mal dublados comerciais de meia hora, de produtos de limpeza e aparelhos para ajudá-lo a parar de fumar. Se você tiver TV a cabo, terá CNN, HBO, TNT, e MTV em português e espanhol, os canais Warner Brothers e Sony (exibindo seriados produzidos nestes estúdios), e, dentre todas as coisas, Country Music Television. (A maioria das músicas na MTV e quase todas as músicas na CM, são americanas, ou pelo menos em inglês, com umas poucas músicas latinas jogadas. Mas há esses estranhos cruzamentos. Ontem à noite mesmo, eu fui presenteado com a visão de um brasileiro pegando o seu banjo...) Volte para casa, ligue o rádio, e a probabilidade é grande de que o que você ouvirá não será samba ou bossa nova, mas Lionel Ritchie. (Eu acabei de ligar o rádio aleatoriamente e consegui o que se parece muito com os Pretenders cantando uma velha canção do Air Supply, I’m Not in Love. O que diabos isso está fazendo no ar?) Por alguma razão, a porcaria mais cafona dos anos 70 em inglês está por toda a parte das ondas aéreas. Talvez por que seja barata. Apareça numa festa, e é provável que a música de dança seja – repare bem – a disco da era Paleolítica. Gloria Gaynor anunciando I Will Survive está muito em voga (agora o rádio está tocando alguma versão genérica de Stop in the Name of Love. É possível que eu tenha que usar um machado nele). Apenas uma nota posterior no processo de escrita deste artigo: a mesma estação de rádio acaba de tocar pelo menos seis músicas de língua inglesa seguidas,
O pintor holandês Roberto van der Ploeg usa os quadros de Eckhout para brincar com estereótipos e retratar o Brasil a partir de Olinda
O novo Eckhout
O
pintor holandês Roberto van der Ploeg se propôs um desafio: pintar o Brasil através do retrato. Para tanto, precisava de modelos emblemáticos, tal como outro pintor holandês, Albert Eckhout, precisou deles no século 17, para o mesmo propósito. Ploeg os encontrou entre a gente simples da zona rural de Olinda. Ao final do trabalho, titulou sua série de quatro casais e uma dança de Nativos. A escolha pelo termo anacrônico é uma ironia, à qual as obras e a história de Eckhout servem de base. Foi ele quem primeiro compôs um retrato fiel da natureza e dos tipos humanos brasileiros, conforme a orientação humanística e científica da comitiva de Nassau. Mas se Eckhout dispunha de tupinambás e tapuias para pintar o Brasil verdadeiro, hoje Ploeg não poderia mapear as raças, como fez o primeiro, com cada casal representando um tipo étnico. Os seus “nativos” já não são puros. Mas ainda são, pelo menos aos olhos da elite, primitivos e incultos. Eis a ironia: Eckhout destruiu alguns estereótipos; Ploeg brinca com outros tantos. Enquanto o primeiro pin- Alexandre
tava para a Europa uma realidade distante, o segundo quer falar mais baixo, de um povo que vive entre o idílio de uma vida desregrada e o inferno de privações, para uma elite que está bem pertinho, do outro lado da cidade. Na composição de seus quadros, ele evidencia a referência ao pintor seiscentista. Os modelos apresentam posição semelhante aos de Eckhout: o Guerreiro negro deste tem a mão na cintura, como o Cacaucatandocaju de Ploeg; a índia tupi, com a criança no colo e balaio na cabeça, torna-se a mulher grávida, com o bebê no braço e uma sacola de compras, do Recife. A linha do horizonte à altura dos joelhos cria a mesma perspectiva que põe os personagens em primeiro plano enquanto chama a atenção para o cenário ao fundo embaixo de um céu imenso, a “atmosfera rarefeita” de que falam os analistas de Eckhout. Finalmente, exemplares da flora e da fauna locais completam os quadros. Mas, porque o seu propósito é outro, Ploeg vai além da paráfrase, para inserir nas telas elementos narrativos e outras referências, como em Adão e Eva e o cão chupando manga. Ao fundo deste díptico, em que os modelos posam como o casal tarairiu de Eckhout, o panorama é uma versão Bandeira mais ou menos fiel da fachada do
Auto-retrato de Roberto van der Ploeg
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MIL PALAVRAS
Um jornal oferecia um dicionário inglês-português como prêmio pela assinatura. Os anúncios mostravam uma mulher esgotada tentando entender o manual de instruções pelo cara-ou-coroa. Somente o seu dicionário grátis poderia salvar o dia a maioria delas horrível. Tendo ouvido o bastante para o interesse de reportagem, eu agora desliguei o rádio com um distinto sentimento de alívio. Os brasileiros, dentre todos os povos, não precisam disso. Se há um país na Terra que não precisa importar a música popular dos malditos ianques, é este aqui. Nem, num sentido mais amplo, precisa de qualquer um dos outros bricabraques culturais que recebem de nós. Eu sinto mais do que um certo desconforto com tudo isso e estou perplexo com o
fato de que a maioria dos brasileiros não se sente assim – como certamente já sentiu no passado. “Yankee Go Home” costumava ser o mote do dia, não muitos anos atrás – e com alguma justiça. Tio Sam pode ser um pouco demais às vezes. Por que ainda não houve nenhum revide à presente invasão cultural é um mistério para mim. Talvez a resposta seja a de que o revide ainda esteja por vir. Robert MacBride Allen é escritor, com 17 obras de ficção científica publicadas. Tradução de Alexandre Bandeira
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SABORES PERNAMBUCANOS
A sustança do cozido No Neolítico, o homem inventou vasilhames que colocava sobre o fogo com água, caça e ervas aromáticas. Foi quando, provavelmente, nasceu o cozido Houve uma hesitação, Jorge disse: – O cozido talvez. E o conselheiro com afecto: – O nosso Jorge opina pelo cozido. – Também estou pela sua! – exclamou o Alves Coutinho, voltado para Jorge, com o olho afogado em reconhecimento: – O Cozidinho! Eça de Queirós (O Primo Basílio)
O
s índios brasileiros comiam frutas, palmitos, raízes, moluscos, peixes e caças. Pela fricção de varas faziam fogo. Conheceram só depois, com os portugueses, os animais domésticos – boi, bode, ovelha, galinha – e a arte de fazer fagulhas com o choque de pedras sílex. À noite viajavam com tições acesos, como faziam os sertanejos até bem pouco tempo, para espantar animais e demônios. Tostavam a caça em espetos – técnica praticada por todos os povos caçadores. Eventualmente cozinhavam ou ferviam alimentos. Mas o fogo
era, sobretudo, conforto e comodidade, criando ambiente para a vida em comum. Onde estava o fogo estava a família. Não por acaso, a parte da casa em que se acende o fogo continua sendo, entre os portugueses, chamada de lar. A lareira. No período Paleolítico, o homem primitivo aprendeu a manter aceso o fogo, assando carne diretamente na chama ou sobre carvões. Comer já não era só matar a fome, passando a ser, também, um ato de prazer. Depois, no Neolítico, inventou vasilhames que colocava sobre o fogo com água, caça, ervas aromáticas e sementes. Foi quando, provavelmente, nasceu o cozido – prato simples e completo, presente em todas
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 58 Continente Multicultural
Brasil, só no início do século 19, em 1808, com a transferência da corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro, em virtude da invasão de Portugal por Napoleão, e por decreto de D. João VI, foi criada a Imprensa Régia. As conseqüências desse atraso tecnológico ainda não foram devidamente levantadas por pesquisas históricas de que eu tenha conhecimento, embora para as autoras do livro A Formação da Leitura no Brasil, Regina Zilberman e Marisa Lojolo, em virtude daquele atraso “fomos moldados sem a prática da leitura”. O que podemos supor é que, naqueles três séculos, se o escritor brasileiro não tinha onde mandar imprimir o seu livro, não dispunha também de público suficientemente alfabetizado para lê-lo, para comprá-lo, porque, como bem disse o padre Serafim Leite, “a Igreja foi a única educadora do Brasil até fins do século 18”. Estou mais propenso a acreditar que aquela proibição de oficinas gráficas no Brasil pode ter condenado muitos originais à destruição nas gavetas, e muita coisa escrita, não só literária, que poderia facilitar a compreensão do nosso passado, perdeu-se para sempre. Quanto ao hábito de leitura, eu o associo ao desenvolvimento do ensino formal, ao aperfeiçoamento e à universalização da educação. País dos paradoxos, o Brasil é considerado o oitavo produtor de livros do mundo, mas dos 5.507 municípios, apenas 600 possuem livrarias. E o que é mais curioso: em meu país existem mais editoras que livrarias. Segundo dados da Câmara Brasileira do Livro, para 1.280 editoras cadastradas pelo sindicato do setor, existem apenas 1.200 livrarias. Se o número
destas estivesse de acordo com as recomendações da Unesco, de uma livraria para cada 10 mil pessoas, o Brasil, com 169.700 milhões de habitantes, deveria ter nada menos que 16,5 mil livrarias. O resultado disso é que a produção de livros fica congestionada num reduzido número de pontos de venda. País também situado entre os de maior concentração de renda do mundo, as poucas livrarias estão localizadas no Sudeste, assim como a produção editorial, que segue, claro, a concentração industrial como um todo. Para se ter uma idéia aproximada dessa concentração, basta dizer que quatro empresas dominam, juntas, 11% das lojas. Mas os livreiros queixam-se do governo federal por adquirir diretamente das editoras os livros que são distribuídos por todas as escolas públicas do país, compras anuais de mais de cem milhões de livros. Também se queixam dos pontos não específicos de venda de livros, como supermercados, papelarias, grandes magazines e lojas virtuais, que oferecem abatimento nos preços de capa. Pleiteiam uma legislação que regule o mercado, evitando os grandes descontos que os colocam em desvantagem na concorrência. Os escritores assistem a tudo isso como se fosse uma briga entre dois golias, que nada tivesse a ver com suas vidas. Esperam um tempo em que o analfabetismo funcional seja eliminado e a leitura se torne um vício necessário para a maioria dos brasileiros. Só assim, talvez, seja possível que até nós, os poetas, num futuro distante, possamos viver do suor de nossa poesia. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
as culturas, com pequenas variações de ingredientes. O cozido completo, com diferentes tipos de carne e vegetais, tem origem judia. É a adafina (coisa quente) – principal alimento do Shabbath, dia de louvor, que equivale ao repouso dominical dos cristãos. Nele, não se podia abater ou salgar animais, amassar farinha, acender fogo. O prato era então preparado na véspera – com carnes, legumes, couve, ovos cozidos, grão-debico. Toucinho e carne de porco foram acrescentados depois, na Inquisição, como prova pública de fidelidade aos preceitos religiosos. Em seguida, o cozido chegou à península ibérica. Na Espanha era chamado, originalmente, de olla podrida – porque se cozinhava tanto e tão lentamente que, como dizia Rodrigues Marím, “quase tudo se desfaz, como fruta que amadurece demais”. Cada região tem seu jeito próprio de preparar. O madrileño ou puchero usa carnes de boi e porco, toucinho, chouriço, grão-de-bico, feijão verde, couve, cebola, aipo e batata. O catalão tem também uma salsicha regional preta e branca, a botifarra, além de pilota, um picado de carnes, alho, pão ralado e ovo batido. O andaluz, bem colorido, é rico em vegetais e perfumado com açafrão e pimentões. O galego tem porco e feijão branco. Em Portugal também se chamava, bem antigamente, de olha podrida. Está presente no primeiro livro de receita impresso em nossa língua (1680) – a Arte de Cozinhar de Domingos Rodrigues: “Ponha-se em hua panella a cozer hum pedaço de vacca muito gorda, hua
galinha, hum adem, hua perdiz, ou pombos, hum coelho, hua lebre, havendo-a, hua orelheyra, ou pá, se for tempo de porco, hum pedaço de lacão, chouriços, lingoíça e lombo de porco, tudo misturado com nabos, se os houver, ou rabões, três cabeças de alhos grandes, grãos, duas ou três dúzias de castanhas, sal e cheiros; quando estiver cozido, mande-se à meza, em hum prato sobre sopas de pão”. Muda igualmente conforme a região. O do Minho tem carne de boi, galinha, presunto, toucinho, chouriço, couve, cenoura e batata. O de Trás-os-Montes, alem disso, vitela e nabos. O do Alentejo não usa carne de boi. Na França é pot au feu, com carne de boi, tutano, cenoura, nabo, alho-poró, cerefólio, couve, cravo e cebola. Na Itália, bollito misto, com carne de boi, vitela, língua, porco, galinha, enchidos e legumes variados. Na Bélgica, hochepot, com rabo de boi, vitela e presunto com osso. Na Holanda, hutspot, com carne de boi, legumes, feijão branco, cenoura, batata e cebola. Na Irlanda, irish stew, com carne de carneiro e vegetais. Em Pernambuco é servido completo – com carnes, defumados, legumes e vegetais. Um prato, como se diz por aqui, de “sustança”. Mais importante é que a pluralidade deve estar dentro da panela, com os alimentos; e, também, fora dela, com família e amigos reunidos à sua volta. Não é prato para se comer sozinho. Cozido tem a cara do domingo. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
COZIDO PERNAMBUCANO (para 20 pessoas) Ingredientes: 4 kg de carne: ossobuco, músculo, costela de boi e peito. 2 kg de carnes defumadas: paio, lombinho, costela, toucinho de fumeiro, lingüiça portuguesa 1 ½ kg de charque Tomates picados e inteiros 3 kg de batata inglesa Cebolas picadas e inteiras 1 kg de jerimum 6 dentes de alho socados Macaxeira, batata doce, inhame a gosto Pimentões verdes e vermelhos em pedaços grandes Repolho, couve, cenoura a gosto 5 ovos cozidos 4 espigas de milho Sal, pimenta e folhas de louro Coentro, salsa e cebolinha Farinha de mandioca para o pirão
Preparo:
Coloque as carnes defumadas e a charque de molho, na véspera. Tempere ossobuco, músculo, costela e peito com sal, pimenta, cebola, alho, coentro, salsa e cebolinha, também na véspera. Em caldeirão, refogue-os com cebola, alho, tomates e pimentões. Junte a charque e os defumados. Cubra com água e deixe cozinhar por bom tempo. Acrescente milho e introduza raízes, legumes e vegetais, de acordo com o tempo de cozimento. Por último cozinhe os ovos e não mexa mais. Para o pirão, separe um pouco do caldo e vá despejando farinha, aos poucos, mexendo sempre. Sirva em travessa grande, arrumando cuidadosamente carnes e legumes.
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MARCO ZERO
Viver de poesia A crise de identidade da poesia pesa sobre o escritor que enfrenta uma formação proletária e um país analfabeto
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uando soube estar incluído entre os participantes da mesa Condições de Criação nos Países Lusófonos, a primeira idéia que me veio foi a de que os organizadores do Seminário Internacional de Lusografias (Évora, 7 a 11.11.2000) estavam interessados na maneira como os escritores são tratados em seus respectivos países e se esse tratamento seria de modo a favorecer ou dificultar o seu trabalho criador. Assim estive tentado a dizer-lhes que a condição de classe do escritor – para além da qualidade intrínseca de sua obra – seria uma determinante muito mais poderosa das facilidades ou obstáculos ao fazer literário, que as condições geográficas ou étnicas, por exemplo. Mas, tanto as condições de classe quanto as outras, favoráveis ou adversas ao exercício de escrever, não são determinantes da boa ou da má qualidade das obras, como se pode exemplificar com um Milton, pobre e cego, escrevendo o seu Paraíso Perdido, e Goethe, rico e saudável, escrevendo o seu Fausto. No entanto, se esses gigantes da Literatura criaram suas obras-primas em condições materiais diametralmente opostas, tinham ambos uma formação acadêmica só acessível às elites econômicas da Inglaterra e Alemanha, nas respectivas épocas. Essas considerações não poderão, portanto, ser despidas de todo e qualquer determinismo, nem concordantes com o determinismo na Arte, em particular aquele cultivado pelo velho Taine, e muito menos ainda o mais recente, do marxismo vulgar, que não reconhece a influência recíproca entre a produção material e a
espiritual. O artista não está acima das numerosas injunções a que estão submetidos, a vida inteira, todos os mortais, nem a qualidade de sua obra é um mero reflexo das condições materiais de sua existência. É a maneira de ele, artista, superar ou transfigurar essas injunções que vai determinar o grau de universalidade que sua obra pode alcançar. Para o veemente Lucács, “a Arte ou é universal ou simplesmente não é Arte”. As dificuldades materiais dos escritores de formação proletária, no Brasil – e acredito que sejam as mesmas nos outros países e não só os lusófonos – podem estar acrescidas por equívocos, caso se trate de um poeta e não de um ficcionista. Atenho-me à condição de poeta porque é a poesia minha prática quotidiana. É preciso destacar que estamos falando de poesia erudita, que exige nível relativamente alto de instrução formal. Assim, um país com alto percentual de analfabetismo – caso do Brasil – terá menos oportunidade de fazer desabrochar plenamente as personalidades potencialmente aptas a realizar uma poesia à altura de uma antiquíssima, variada e valiosa tradição. São nessas circunstâncias macro-sociais que os condicionamentos econômicos, reduzindo as oportunidades de acesso à instrução formal, podem extraviar vocações, desviar talentos poéticos para outros destinos. A Poesia, e suspeito que não só no Brasil, virou um grande paradoxo: não se sabe o que esperar dela e o prestígio que ela pode oferecer se circunscreve a isolados nichos sob a vertiginosa montanha da cultura de massa. Apesar disso, vem aumentando o número dos que a têm como um valor social e procuram praticá-la cada vez mais. No Brasil, os autores de livros didáticos transcrevem
Alberto da Cunha Melo 60 Continente Multicultural
letras de música popular e citam os compositores como poetas, ao lado de grandes nomes da poesia brasileira e portuguesa, e até astros do show-business se sentem honrados ao ser chamados de poetas. E já se registram cerca de 30 mil brasileiros com interesse prioritário em poesia, e mais de 2000 poetas divulgam seus poemas no site www.secrel.com.br/jpoesia/poesia.html. Isso ainda não quer dizer que a intrusa na festa capitalista começa a ser convidada para os brindes. A poesia, que seria para João Cabral de Melo Neto “a exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de organização de estruturas verbais”, atomizou-se em variadas tendências, até o ponto de não haver mais nenhuma poética universal que sirva de parâmetro, como a grega serviu para a poética latino-horaciana e esta, para o classicismo europeu. Neste século que findou, o verso-livre ampliou os equívocos sobre a natureza da poesia e abriu caminho para a ingenuidade, o engodo e, mesmo, a irresponsabilidade. Enquanto Eliot asseverou que nenhum verso é livre para o verdadeiro poeta (na verdade ele disse “no verse is free enough for whoever wishes to do the job well”, mas nós, poetas, sabemos quem, na poesia, quer fazer “um bom trabalho”), o poeta brasileiro Manuel Bandeira, na primeira metade do século, já dizia, em Itinerário de Pasárgada, que “o verso-livre deu a todo mundo a ilusão de que uma série de linhas desiguais é poema”. Foi justamente essa assimetria do verso-livre que facilitou a permissividade dos autores de livros didáticos ao atribuírem o status de poema às letras de música popular, numa parceria de marketing entre a indústria do livro e a indústria discográfica. Mas, o problema de identidade da poesia já era preocupação de Goethe em princípios do século 19, quando, em suas Conversações com Eckermann, comentava que “para escrever
boa prosa é preciso ter alguma coisa a dizer; quem não tem nada para dizer é capaz, todavia, de escrever versos e encadear rimas, porque uma palavra puxa a outra e acaba sempre por aparecer alguma coisa que, intrinsecamente, nada é, mas tem a aparência de o ser”. Aparência de arte, simulacro da arte, eis o indicador principal do “kitsch”, algo que, como se vê, não é uma invenção da cultura de massa de nossos dias. Essa digressão aparentemente desnecessária sobre a crise de identidade da poesia, crise que torna ambígua a imagem do poeta em nossos dias, foi feita para mostrar que essa ambigüidade, quando associada a uma formação proletária, faz pesar muito sobre o poeta as incompreensões e as expectativas contraditórias de uma sociedade mais materialista que o materialismo marxista que vivia a temer, de uma sociedade que vê a poesia, como já o disse uma vez, no máximo, como um bem desnecessário. Se a primeira idéia que me veio, ao abordar esse tema, foi a de expectativas sociais em relação aos escritores e do tratamento que recebem de acordo com as respostas a tais expectativas, a segunda idéia que me alcançou foi a das possibilidades de divulgação do trabalho literário em países lusófonos. Dentro dessa outra visão, e limitando-me ao Brasil, o primeiro dado histórico a nos incomodar é que, assim como fomos um dos últimos países no mundo a abolir a escravidão, fomos, também, um dos últimos países ocidentais a imprimir livros, a ter o direito de imprimilos. Enquanto em Portugal, segundo alguns historiadores, a implantação da imprensa situa-se no século 15, século de sua invenção, entre os anos de 1464, 1465 (para Francisco Freire de Carvalho), 1466 e 1467 (para Paulo Perestrello da Câmara), ou seja, foi Leiria a quarta cidade “onde na Europa se usara a tipografia”, no Continente Multicultural 61
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Viver de poesia A crise de identidade da poesia pesa sobre o escritor que enfrenta uma formação proletária e um país analfabeto
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uando soube estar incluído entre os participantes da mesa Condições de Criação nos Países Lusófonos, a primeira idéia que me veio foi a de que os organizadores do Seminário Internacional de Lusografias (Évora, 7 a 11.11.2000) estavam interessados na maneira como os escritores são tratados em seus respectivos países e se esse tratamento seria de modo a favorecer ou dificultar o seu trabalho criador. Assim estive tentado a dizer-lhes que a condição de classe do escritor – para além da qualidade intrínseca de sua obra – seria uma determinante muito mais poderosa das facilidades ou obstáculos ao fazer literário, que as condições geográficas ou étnicas, por exemplo. Mas, tanto as condições de classe quanto as outras, favoráveis ou adversas ao exercício de escrever, não são determinantes da boa ou da má qualidade das obras, como se pode exemplificar com um Milton, pobre e cego, escrevendo o seu Paraíso Perdido, e Goethe, rico e saudável, escrevendo o seu Fausto. No entanto, se esses gigantes da Literatura criaram suas obras-primas em condições materiais diametralmente opostas, tinham ambos uma formação acadêmica só acessível às elites econômicas da Inglaterra e Alemanha, nas respectivas épocas. Essas considerações não poderão, portanto, ser despidas de todo e qualquer determinismo, nem concordantes com o determinismo na Arte, em particular aquele cultivado pelo velho Taine, e muito menos ainda o mais recente, do marxismo vulgar, que não reconhece a influência recíproca entre a produção material e a
espiritual. O artista não está acima das numerosas injunções a que estão submetidos, a vida inteira, todos os mortais, nem a qualidade de sua obra é um mero reflexo das condições materiais de sua existência. É a maneira de ele, artista, superar ou transfigurar essas injunções que vai determinar o grau de universalidade que sua obra pode alcançar. Para o veemente Lucács, “a Arte ou é universal ou simplesmente não é Arte”. As dificuldades materiais dos escritores de formação proletária, no Brasil – e acredito que sejam as mesmas nos outros países e não só os lusófonos – podem estar acrescidas por equívocos, caso se trate de um poeta e não de um ficcionista. Atenho-me à condição de poeta porque é a poesia minha prática quotidiana. É preciso destacar que estamos falando de poesia erudita, que exige nível relativamente alto de instrução formal. Assim, um país com alto percentual de analfabetismo – caso do Brasil – terá menos oportunidade de fazer desabrochar plenamente as personalidades potencialmente aptas a realizar uma poesia à altura de uma antiquíssima, variada e valiosa tradição. São nessas circunstâncias macro-sociais que os condicionamentos econômicos, reduzindo as oportunidades de acesso à instrução formal, podem extraviar vocações, desviar talentos poéticos para outros destinos. A Poesia, e suspeito que não só no Brasil, virou um grande paradoxo: não se sabe o que esperar dela e o prestígio que ela pode oferecer se circunscreve a isolados nichos sob a vertiginosa montanha da cultura de massa. Apesar disso, vem aumentando o número dos que a têm como um valor social e procuram praticá-la cada vez mais. No Brasil, os autores de livros didáticos transcrevem
Alberto da Cunha Melo 60 Continente Multicultural
letras de música popular e citam os compositores como poetas, ao lado de grandes nomes da poesia brasileira e portuguesa, e até astros do show-business se sentem honrados ao ser chamados de poetas. E já se registram cerca de 30 mil brasileiros com interesse prioritário em poesia, e mais de 2000 poetas divulgam seus poemas no site www.secrel.com.br/jpoesia/poesia.html. Isso ainda não quer dizer que a intrusa na festa capitalista começa a ser convidada para os brindes. A poesia, que seria para João Cabral de Melo Neto “a exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de organização de estruturas verbais”, atomizou-se em variadas tendências, até o ponto de não haver mais nenhuma poética universal que sirva de parâmetro, como a grega serviu para a poética latino-horaciana e esta, para o classicismo europeu. Neste século que findou, o verso-livre ampliou os equívocos sobre a natureza da poesia e abriu caminho para a ingenuidade, o engodo e, mesmo, a irresponsabilidade. Enquanto Eliot asseverou que nenhum verso é livre para o verdadeiro poeta (na verdade ele disse “no verse is free enough for whoever wishes to do the job well”, mas nós, poetas, sabemos quem, na poesia, quer fazer “um bom trabalho”), o poeta brasileiro Manuel Bandeira, na primeira metade do século, já dizia, em Itinerário de Pasárgada, que “o verso-livre deu a todo mundo a ilusão de que uma série de linhas desiguais é poema”. Foi justamente essa assimetria do verso-livre que facilitou a permissividade dos autores de livros didáticos ao atribuírem o status de poema às letras de música popular, numa parceria de marketing entre a indústria do livro e a indústria discográfica. Mas, o problema de identidade da poesia já era preocupação de Goethe em princípios do século 19, quando, em suas Conversações com Eckermann, comentava que “para escrever
boa prosa é preciso ter alguma coisa a dizer; quem não tem nada para dizer é capaz, todavia, de escrever versos e encadear rimas, porque uma palavra puxa a outra e acaba sempre por aparecer alguma coisa que, intrinsecamente, nada é, mas tem a aparência de o ser”. Aparência de arte, simulacro da arte, eis o indicador principal do “kitsch”, algo que, como se vê, não é uma invenção da cultura de massa de nossos dias. Essa digressão aparentemente desnecessária sobre a crise de identidade da poesia, crise que torna ambígua a imagem do poeta em nossos dias, foi feita para mostrar que essa ambigüidade, quando associada a uma formação proletária, faz pesar muito sobre o poeta as incompreensões e as expectativas contraditórias de uma sociedade mais materialista que o materialismo marxista que vivia a temer, de uma sociedade que vê a poesia, como já o disse uma vez, no máximo, como um bem desnecessário. Se a primeira idéia que me veio, ao abordar esse tema, foi a de expectativas sociais em relação aos escritores e do tratamento que recebem de acordo com as respostas a tais expectativas, a segunda idéia que me alcançou foi a das possibilidades de divulgação do trabalho literário em países lusófonos. Dentro dessa outra visão, e limitando-me ao Brasil, o primeiro dado histórico a nos incomodar é que, assim como fomos um dos últimos países no mundo a abolir a escravidão, fomos, também, um dos últimos países ocidentais a imprimir livros, a ter o direito de imprimilos. Enquanto em Portugal, segundo alguns historiadores, a implantação da imprensa situa-se no século 15, século de sua invenção, entre os anos de 1464, 1465 (para Francisco Freire de Carvalho), 1466 e 1467 (para Paulo Perestrello da Câmara), ou seja, foi Leiria a quarta cidade “onde na Europa se usara a tipografia”, no Continente Multicultural 61
Brasil, só no início do século 19, em 1808, com a transferência da corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro, em virtude da invasão de Portugal por Napoleão, e por decreto de D. João VI, foi criada a Imprensa Régia. As conseqüências desse atraso tecnológico ainda não foram devidamente levantadas por pesquisas históricas de que eu tenha conhecimento, embora para as autoras do livro A Formação da Leitura no Brasil, Regina Zilberman e Marisa Lojolo, em virtude daquele atraso “fomos moldados sem a prática da leitura”. O que podemos supor é que, naqueles três séculos, se o escritor brasileiro não tinha onde mandar imprimir o seu livro, não dispunha também de público suficientemente alfabetizado para lê-lo, para comprá-lo, porque, como bem disse o padre Serafim Leite, “a Igreja foi a única educadora do Brasil até fins do século 18”. Estou mais propenso a acreditar que aquela proibição de oficinas gráficas no Brasil pode ter condenado muitos originais à destruição nas gavetas, e muita coisa escrita, não só literária, que poderia facilitar a compreensão do nosso passado, perdeu-se para sempre. Quanto ao hábito de leitura, eu o associo ao desenvolvimento do ensino formal, ao aperfeiçoamento e à universalização da educação. País dos paradoxos, o Brasil é considerado o oitavo produtor de livros do mundo, mas dos 5.507 municípios, apenas 600 possuem livrarias. E o que é mais curioso: em meu país existem mais editoras que livrarias. Segundo dados da Câmara Brasileira do Livro, para 1.280 editoras cadastradas pelo sindicato do setor, existem apenas 1.200 livrarias. Se o número
destas estivesse de acordo com as recomendações da Unesco, de uma livraria para cada 10 mil pessoas, o Brasil, com 169.700 milhões de habitantes, deveria ter nada menos que 16,5 mil livrarias. O resultado disso é que a produção de livros fica congestionada num reduzido número de pontos de venda. País também situado entre os de maior concentração de renda do mundo, as poucas livrarias estão localizadas no Sudeste, assim como a produção editorial, que segue, claro, a concentração industrial como um todo. Para se ter uma idéia aproximada dessa concentração, basta dizer que quatro empresas dominam, juntas, 11% das lojas. Mas os livreiros queixam-se do governo federal por adquirir diretamente das editoras os livros que são distribuídos por todas as escolas públicas do país, compras anuais de mais de cem milhões de livros. Também se queixam dos pontos não específicos de venda de livros, como supermercados, papelarias, grandes magazines e lojas virtuais, que oferecem abatimento nos preços de capa. Pleiteiam uma legislação que regule o mercado, evitando os grandes descontos que os colocam em desvantagem na concorrência. Os escritores assistem a tudo isso como se fosse uma briga entre dois golias, que nada tivesse a ver com suas vidas. Esperam um tempo em que o analfabetismo funcional seja eliminado e a leitura se torne um vício necessário para a maioria dos brasileiros. Só assim, talvez, seja possível que até nós, os poetas, num futuro distante, possamos viver do suor de nossa poesia. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
as culturas, com pequenas variações de ingredientes. O cozido completo, com diferentes tipos de carne e vegetais, tem origem judia. É a adafina (coisa quente) – principal alimento do Shabbath, dia de louvor, que equivale ao repouso dominical dos cristãos. Nele, não se podia abater ou salgar animais, amassar farinha, acender fogo. O prato era então preparado na véspera – com carnes, legumes, couve, ovos cozidos, grão-debico. Toucinho e carne de porco foram acrescentados depois, na Inquisição, como prova pública de fidelidade aos preceitos religiosos. Em seguida, o cozido chegou à península ibérica. Na Espanha era chamado, originalmente, de olla podrida – porque se cozinhava tanto e tão lentamente que, como dizia Rodrigues Marím, “quase tudo se desfaz, como fruta que amadurece demais”. Cada região tem seu jeito próprio de preparar. O madrileño ou puchero usa carnes de boi e porco, toucinho, chouriço, grão-de-bico, feijão verde, couve, cebola, aipo e batata. O catalão tem também uma salsicha regional preta e branca, a botifarra, além de pilota, um picado de carnes, alho, pão ralado e ovo batido. O andaluz, bem colorido, é rico em vegetais e perfumado com açafrão e pimentões. O galego tem porco e feijão branco. Em Portugal também se chamava, bem antigamente, de olha podrida. Está presente no primeiro livro de receita impresso em nossa língua (1680) – a Arte de Cozinhar de Domingos Rodrigues: “Ponha-se em hua panella a cozer hum pedaço de vacca muito gorda, hua
galinha, hum adem, hua perdiz, ou pombos, hum coelho, hua lebre, havendo-a, hua orelheyra, ou pá, se for tempo de porco, hum pedaço de lacão, chouriços, lingoíça e lombo de porco, tudo misturado com nabos, se os houver, ou rabões, três cabeças de alhos grandes, grãos, duas ou três dúzias de castanhas, sal e cheiros; quando estiver cozido, mande-se à meza, em hum prato sobre sopas de pão”. Muda igualmente conforme a região. O do Minho tem carne de boi, galinha, presunto, toucinho, chouriço, couve, cenoura e batata. O de Trás-os-Montes, alem disso, vitela e nabos. O do Alentejo não usa carne de boi. Na França é pot au feu, com carne de boi, tutano, cenoura, nabo, alho-poró, cerefólio, couve, cravo e cebola. Na Itália, bollito misto, com carne de boi, vitela, língua, porco, galinha, enchidos e legumes variados. Na Bélgica, hochepot, com rabo de boi, vitela e presunto com osso. Na Holanda, hutspot, com carne de boi, legumes, feijão branco, cenoura, batata e cebola. Na Irlanda, irish stew, com carne de carneiro e vegetais. Em Pernambuco é servido completo – com carnes, defumados, legumes e vegetais. Um prato, como se diz por aqui, de “sustança”. Mais importante é que a pluralidade deve estar dentro da panela, com os alimentos; e, também, fora dela, com família e amigos reunidos à sua volta. Não é prato para se comer sozinho. Cozido tem a cara do domingo. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
COZIDO PERNAMBUCANO (para 20 pessoas) Ingredientes: 4 kg de carne: ossobuco, músculo, costela de boi e peito. 2 kg de carnes defumadas: paio, lombinho, costela, toucinho de fumeiro, lingüiça portuguesa 1 ½ kg de charque Tomates picados e inteiros 3 kg de batata inglesa Cebolas picadas e inteiras 1 kg de jerimum 6 dentes de alho socados Macaxeira, batata doce, inhame a gosto Pimentões verdes e vermelhos em pedaços grandes Repolho, couve, cenoura a gosto 5 ovos cozidos 4 espigas de milho Sal, pimenta e folhas de louro Coentro, salsa e cebolinha Farinha de mandioca para o pirão
Preparo:
Coloque as carnes defumadas e a charque de molho, na véspera. Tempere ossobuco, músculo, costela e peito com sal, pimenta, cebola, alho, coentro, salsa e cebolinha, também na véspera. Em caldeirão, refogue-os com cebola, alho, tomates e pimentões. Junte a charque e os defumados. Cubra com água e deixe cozinhar por bom tempo. Acrescente milho e introduza raízes, legumes e vegetais, de acordo com o tempo de cozimento. Por último cozinhe os ovos e não mexa mais. Para o pirão, separe um pouco do caldo e vá despejando farinha, aos poucos, mexendo sempre. Sirva em travessa grande, arrumando cuidadosamente carnes e legumes.
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SABORES PERNAMBUCANOS
A sustança do cozido No Neolítico, o homem inventou vasilhames que colocava sobre o fogo com água, caça e ervas aromáticas. Foi quando, provavelmente, nasceu o cozido Houve uma hesitação, Jorge disse: – O cozido talvez. E o conselheiro com afecto: – O nosso Jorge opina pelo cozido. – Também estou pela sua! – exclamou o Alves Coutinho, voltado para Jorge, com o olho afogado em reconhecimento: – O Cozidinho! Eça de Queirós (O Primo Basílio)
O
s índios brasileiros comiam frutas, palmitos, raízes, moluscos, peixes e caças. Pela fricção de varas faziam fogo. Conheceram só depois, com os portugueses, os animais domésticos – boi, bode, ovelha, galinha – e a arte de fazer fagulhas com o choque de pedras sílex. À noite viajavam com tições acesos, como faziam os sertanejos até bem pouco tempo, para espantar animais e demônios. Tostavam a caça em espetos – técnica praticada por todos os povos caçadores. Eventualmente cozinhavam ou ferviam alimentos. Mas o fogo
era, sobretudo, conforto e comodidade, criando ambiente para a vida em comum. Onde estava o fogo estava a família. Não por acaso, a parte da casa em que se acende o fogo continua sendo, entre os portugueses, chamada de lar. A lareira. No período Paleolítico, o homem primitivo aprendeu a manter aceso o fogo, assando carne diretamente na chama ou sobre carvões. Comer já não era só matar a fome, passando a ser, também, um ato de prazer. Depois, no Neolítico, inventou vasilhames que colocava sobre o fogo com água, caça, ervas aromáticas e sementes. Foi quando, provavelmente, nasceu o cozido – prato simples e completo, presente em todas
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 58 Continente Multicultural
MIL PALAVRAS
Um jornal oferecia um dicionário inglês-português como prêmio pela assinatura. Os anúncios mostravam uma mulher esgotada tentando entender o manual de instruções pelo cara-ou-coroa. Somente o seu dicionário grátis poderia salvar o dia a maioria delas horrível. Tendo ouvido o bastante para o interesse de reportagem, eu agora desliguei o rádio com um distinto sentimento de alívio. Os brasileiros, dentre todos os povos, não precisam disso. Se há um país na Terra que não precisa importar a música popular dos malditos ianques, é este aqui. Nem, num sentido mais amplo, precisa de qualquer um dos outros bricabraques culturais que recebem de nós. Eu sinto mais do que um certo desconforto com tudo isso e estou perplexo com o
fato de que a maioria dos brasileiros não se sente assim – como certamente já sentiu no passado. “Yankee Go Home” costumava ser o mote do dia, não muitos anos atrás – e com alguma justiça. Tio Sam pode ser um pouco demais às vezes. Por que ainda não houve nenhum revide à presente invasão cultural é um mistério para mim. Talvez a resposta seja a de que o revide ainda esteja por vir. Robert MacBride Allen é escritor, com 17 obras de ficção científica publicadas. Tradução de Alexandre Bandeira
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PATRICK BOGNER FLÁVIO LAMENHA
De um caderno antigo PA 1/1, 1979, Litografia (56,5 x 36cm)
O
pintor Gil Vicente é um perito em abismos. Não satisfeito em tornar-se virtuoso na difícil e irônica arte do retrato, volta-se para pintar o invisível, o sombrio, o insondável quase do subconsciente. Tudo o que há de subterrâneo numa cabeça humana, a mais intrigante das formas inventadas. As suas figuras já são de há muito almas inquietas, como rostos sempre revistos por dentro. Se as cicatrizes rasuram as lousas das máscaras-máquinas sensíveis que são os rostos humanos, ele faz o seu abismo cada vez mais em movimento e afina o seu traço para riscar, poluir, manchar, submeter as suas imagens a todos os choques e estremecimentos possíveis. Encontra o novo a partir dos elementos aparentemente mais comuns. Por isso é tão fácil dar razão ao crítico Mario Praz (escrevendo sobre Dannunzio): “A originalidade de um artista consiste na ruptura das associações mais óbvias”. Escapando da necessidade fácil de agradar, o artista não teme os seus Mário 72 Continente Multicultural
horrores. Nem busca ser um facilitador de caminhos. Nunca foi um iconófilo, porque desde o fascínio que exerce sobre si a figura, especialmente a humana, quase que naturalmente rumou para uma sutil iconoclastia. E com isto vem fazendo uma arte a cada exposição mais complexa. Se é possível falar ainda numa anatomia de alma e melancolia como se fala do corpo, o rosto é o território privilegiado disto. Sobretudo da solidão e da agonia. Da inquietação humana, mesmo disfarçada em mimese. Uma cabeça pode ter cada uma de suas partes perfurada, amputada, mutilada, deformada. O nariz, a língua, o pescoço, os dentes, os cabelos, as orelhas, os lábios – nada fica em estado puro ou intacto. Homens e mulheres, como à diferença dos deuses que amam formar, adoram deformar-se e reformar-se. Em nenhuma época, como no século passado – era por excelência das imagens – o corpo e o rosto viveram mais como objeto de culto e transfiguração. O engano, entretanto, seria pensar que essas reinvenções do corpo humano são típicas ou principais das culturas urbanas ocidentais do final do segundo milênio. Seja a transfixão ritual da língua pelos maias, ou de laceração na Índia, ou amputação da úvula no Chade, perfuração das bochechas na Síria, ou até a excisão de narizes, lábios e orelhas praticada pelos mochicas, a insatisfação dos humanos com os seus rostos é assunto que já resultou em livros e mais livros. Tudo terá um sentido ritual ou de simples ornamentação? Neste mundo não há nada simples, acudiria logo um escritor perito em fantasmagorias. A arte é pródiga não em desvendar a realidade, ou facilitar a leitura do mundo, mas penetrar as suas entranhas, os seus abismos. Se abismo atrai abismo, o da pintura abraça o da poesia. O livro Pampa Pernambucano, que a poetisa gaúcha Beatriz Viégas-Faria lança no próximo mês, foi motivado pelos quadros de Gil Vicente que ela viu através de imagens indiretas (em vídeo, principalmente). Num depoimento exclusivo, o artista fala de sua formação, as obras, o mercado de arte, e, completando-o, os ensaios de Agnaldo Farias e Anco Márcio TenóHélio rio Vieira.
Fecha os olhos A câmera fazia-lhes as reverências dignas daquelas concedidas aos filhos dos deuses... porque eram ticunas, descendentes de Yo’i e Ipi.
e vê
A
enorme caixa tinha um só olho, jo- ameaçado pelos motores explosivos que cortam os gado sobre ela um pano negro. Ela céus e as águas. Quando vozes lhes pediam que cerrassem os havia sido prostrada diante dos Genaro, Juan, Bráulio, Tertulina, olhos, o faziam sem pestanejar, sem medo da (cerr)Valentina, Pastora e Flormaria, ação e da morte. Pareciam aceitar com tranqüilidade lhes fazendo as reverências dignas a inevitável viagem de suas almas para um campo daquelas concedidas apenas aos fi- onde dorme uma eternidade, sem qualquer submislhos dos deuses... porque todos eram ticunas, descen- são ao que poderia parecer lembrá-los da efemeridentes de Yo’i e Ipi. (Versão da cosmogonia a partir dade de seus corpos. E quando as mesmas vozes pediam-lhes que mirassem, refletiam a memória e a da tradição dos povos indígenas Ticunas) Yo’i e Ipi eram irmãos e um dia pescaram do resistência milenar de um povo cravadas nos seus igarapé Eware os ticunas, as gentes que rumaram negros olhos. Por debaixo do pano preto, as vozes enxergavam para o lado onde nasce o sol, e outras, para onde o melhor os ticunas, seus reflexos, suas almas – apesar sol se põe. Possuíam a altivez e a cor dos filhos do sol. de suas visões invertidas, todos de cabeça para baixo. Eram enfeitados de plumagens verdes e amarelas Eram como miragens cobertas por névoa da verdade, dos papagaios e azuis e brancas das araras. Uns espelhando o que somos, ou, pelo menos, o que portavam jóias de tucumã-piranga, atadas à mesma poderíamos ser. As vozes não eram de deuses, sequer semideuses. palha de tucum que acaricia as mãos (que lavam a macaxeira nas águas do rio) nas coxas das mulhe- Eram dos escravos da assombração do etnocídio e res de lá. Eram todos reis e príncipes de um reino genocídio da humanidade, em busca da redenção. Éramos alguns os donos das vozes, repetindo paverde onde os pequenos nadam ao lado de peixes gigantes cor-de-rosa, e o mirar calmo dos olhos ar- ra nós mesmos, como surat e mantras, “cierra los ojos y mira... fecha os olhos e vê”. repuxados do seu povo é ditado pelas ondas do som do rio, às vezes Patrícia Alves Dias Continente Multicultural 65
FLÁVIO LAMENHA
PATRICK BOGNER
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PATRÍCIA ALVES DIAS
do mundo
No começo
Patrícia Alves Dias, fotografada por Patrick Bogner enquanto tirava o retrato das crianças ticunas, exibido no centro da página seguinte
Em entrevista exclusiva, Gil Vicente faz um retrato do ambiente artístico em Pernambuco, desde a criação no ateliê até a exposição nos museus e galerias; da formação do artista à educação do público; do papel em branco à obra de arte
PATRÍCIA ALVES DIAS
LIÇÃO DE ARTE
E
Abismos em movimento
ra final de ano. Fim de século. O mundo ameaçava explodir com o bug do milênio. E na Colômbia, o Exército colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias (FARC) haviam decidido cessar fogo e estabelecer trégua por uma semana. Alguns dias antes, um destroyer americano ancorava no porto de Tabatinga, e militares brasileiros reforçavam a presença na região da Cabeça do Cachorro que faz fronteira com o Sul da Colômbia... no fim do mundo... no começo do mundo... Era inevitável a associação à guerra do Vietnã: aviões sobrevoando pequenos vilarejos de pontes e palafitas. Jovens soldados, filhos da terra, caminhavam tensos, carregados de granadas e fuzis, vigiando a si próprios e a seus irmãos, vestidos de “mato”... A presença ostensiva de militares estrangeiros, intensificada hoje, menos de um ano depois, com o pacote de ajuda militar dos EUA ao Plano Colômbia. Mesmo assim, um grupo seleto de artistas, intelectuais, entre músicos, dramaturgos, atores, poetas (ah, Pablito! Um menino de lua, de rua – talvez tenham sido os versos mais lunáticos e puros sobre a lua que nasceram de ti) viajava para Puerto Nariño, vilarejo localizado a noroeste de Letícia, na confluência dos rios Loreto, Yaku, Zancudillo, Tarapoto e Amazonas, para o III Festival de Arte e Cultura Indígena, promovido pelo governo colombiano e a administração do município. Junto ao grupo, o fotógrafo francês Patrick Bogner, o antropólogo também francês e não menos admirável Jean-Claude Elias, Rosário Sanabria, cientista social colombiana, e eu como jornalista e assistente de Patrick. Rumamos para a reserva florestal dos ticunas, num vilarejo no Sul da Colômbia, habitado por índios yaguas e ticunas, por colonos e comerciantes, para registrar o encontro de xamãs que também acontecia na ocasião. Nossa viagem fazia parte da primeira etapa do projeto de Patrick sobre fé e religiosidade na América Latina, inédito e ainda em realização. Falei para Patrick que seria a continuação de sua peregrinação e procura pela “Terra sem Males” (iniciada em tantas passagens e andanças pelo Brasil e pelo mundo, e reveladas em ensaios, publicações e exposições fotográficas, como Momentos Suspensos/1990, Sertão/1993, Carnaval em Migalhas/1996 e Cariocas/1999). Estas fotografias são um pouco dos apontamentos e impressões da viagem. Algumas registradas no negativo. Outras, apenas na alma.
Patrícia Alves Dias é jornalista e cineasta Patrick Bogner é fotógrafo
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ENTREMEZ
A liberdade de não pertencer a movimentos
O Armorial não surge como um movimento espontâneo. Ele é criação de Ariano Suassuna, que vai distribuindo títulos armoriais àqueles que ilustram as suas idéias
E
u posso dizer que faço parte da história de Pernambuco. Pelo menos da história oficial. Isso se considerarem de alguma importância um registro fotográfico feito por um dos governos de direita, pós 64, num livro de propaganda do Estado, Pernambuco Sim. Eu apareço sentado no chão, de costas para o altar principal da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, assistindo a um concerto do Quinteto Armorial. Uso uma barba grande, muito na moda entre os estudantes universitários da época, uma camiseta curta de listas e umas sandálias de borracha de pneu. Não dá pra ver nada disso na foto, e só eu mesmo me reconheço. Mas é um registro de grande importância para mim. Estamos por volta de 71, tempos terríveis de repressão, coisa que um jovem de dezenove anos, idade que eu tinha, não consegue conceber. As nossas aulas de anatomia, no curso de Medicina, eram interrompidas pelo vociferante professor Bianor da Hora, aos gritos de que traria o Quarto Exército para nos levar em cana e conter nossos arroubos de adolescentes. Nessa foto “famosa”, a figura central é a de um senhor de aproximadamente 44 anos, que parece reger
o pequeno conjunto de cinco instrumentos. Na época, cada apresentação do Quinteto Armorial era precedida e acompanhada de longas explicações sobre a música que seria ouvida. Ariano Suassuna, no caso, começava por elogiar o trabalho do compositor e violonista Zoca Madureira, afirmando sempre que ele era a grande esperança da música nacional. Ariano ocupava o cargo de diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco (DEC), e o Quinteto era filiado ao Departamento. Tido nas alas de esquerda da universidade como perigosamente reacionário e de direita, Ariano era esquerdista para os que ocupavam o poder. A esquerda não perdoava a vinculação do mestre ao DEC, e sua arte armorial era considerada a serviço da Revolução, sobretudo a música do Quinteto, usada para propagandas oficiais. Esse rancor esquerdista iria se agravar num verdadeiro patrulhamento, quando Ariano aceitou a Secretaria de Cultura do Município, do prefeito de direita, Antonio Farias. Continuo a afirmar que é pouco compreensível para um jovem de hoje esses conceitos e divisões arbitrárias de direita e esquerda. Eu chegara do Crato em 69, para estudar Medicina. Esqueci numa gaveta uns modestos planos de investi-
Ronaldo Correia de Brito 68 Continente Multicultural
gação da cultura do Cariri, toscamente alinhavados nos tempos de estudante secundário. Fui morar na Casa do Estudante Universitário e passei a freqüentar diariamente o DEC, em companhia do poeta Ângelo Monteiro. As impressões desse tempo não caberiam num simples artigo. O DEC, dirigido por Ariano, era um foco de produção e resistência cultural. Nada era mais vivo no Recife, marcado pela intolerância e pela forte repressão. De modo totalmente diverso dos movimentos do Teatro de Arena e do Oficina, Ariano arrebanhava pintores, escultores, músicos, romancistas e poetas em torno das suas idéias armoriais. Contrariando os discursos políticos mais assumidamente engajados, ele propunha a cultura popular como modelo e meio para a construção de uma nacionalidade brasileira. Essa cultura, viva e incorruptível, representava uma verdadeira resistência a todas as formas de repressão. Ariano fez desse tema a sua ideologia, transformandose no Quixote do popular. O que tornava incompreensível e indefensável o discurso do mestre era a mistura com os seus delírios, os seus anarquismos de aspirante a Imperador do Brasil e seu forte personalismo. Se estudamos a história dos movimentos culturais em todo o mundo, reconhecemos que eles são sementes embrionárias que brotam de forma dispersa em vários lugares do planeta. O simbolismo, identificado com a França, tem Yeats e Joyce na Irlanda, Eliot e Gertrud Stein na América do Norte, para citar apenas estes. Lendo o excelente ensaio de Edmund Wilson, O Castelo de Axel, em nenhum ponto do mesmo encontro as referências a um possível titular do movimento. Nada mais democrático que o romantismo, espalhado pelo mundo, sem fronteiras. O Armorial não surge como um movimento espontâneo. Ele é criação de Ariano Suassuna e assim é apresentado. Como os reis davam títulos de propriedade de terra a seus vassalos, Ariano vai distribuindo títulos armoriais àqueles que ilustram as suas idéias. Essa foi a impressão que ficou, quando vi pela primeira vez aquele músico compenetrado e grave, Zoca Madureira. Apresentado como o novo Villa-Lobos, ele de fato se dedicava à investigação e criação da música brasileira. O Quinteto propunha-se a dar uma feição erudita à música nordestina rústica. Para isto, era preciso que as flautas soassem como pífanos, os violinos, como rabecas, o marimbau, como um berimbau de lata dos cegos de feira. Ao mesmo tempo que re-
volucionária, essa idéia era uma camisa-de-força, pois delimitava os signos com que o artista podia criar. Na sua curta carreira, o Quinteto teve um grande sucesso. Em suas apresentações, quase sempre feitas por Ariano Suassuna, havia uma fala preliminar em que ele dizia: “Quando eu criei o Movimento Armorial, ou, quando eu fundei o Quinteto Armorial”. No discurso psicanalítico busca-se separar a fala do filho da fala do pai. Eu buscava diferenciar a criação de Madureira da criação de Ariano. Como no romantismo, em que não é necessário referir Beethoven para dar legalidade à música de Verdi, tentava escutar a música de Madureira isolada do discurso de Ariano. Há uma aparente ruptura entre as composições mais urbanas de Zoca – valsa, maxixe, polca, dobrado, mazurca – e a música armorial, sobretudo a dos quatro discos do Quinteto. É como se dentro do artista brigassem tendências, prevalecendo um desejo de ser mais uno, diversificado e livremente universal, o que acontece com o novo trabalho do Quarteto Romançal. Agora, um violino já pode soar como violino e uma flauta não precisa mais que harpejar como flauta. Isto nos faz perguntar: a quem servem os movimentos? Aos seus idealizadores? Por mais que promova os seus múltiplos parceiros, sempre que Ariano fala da obra dos artistas armoriais é como se falasse de sua própria criação. Quando assistia aos concertos do Quinteto, ficava com a impressão de que Ariano era quem criava e Zoca Madureira executava. Esse é o modo perverso com que se transmitem as falas de uma política cultural, onde há supostos autores e seguidores. Nietzsche rompeu com Wagner para não ser o mero porta-voz das suas idéias nacionalistas grandiloqüentes. O mesmo fez Jung com Freud, levando o mestre a vários desmaios ao sentir-se abandonado pelo seu discípulo favorito. Madureira tem-se aberto às influências dos músicos do leste europeu, aos japoneses, aos americanos do Khronos Quartet e até mesmo aos sintetizadores. Um artista tem que estar permanentemente em diálogo com a sua tradição e a sua contemporaneidade. O discurso armorial de Ariano Suassuna muitas vezes me lembra Montaigne, quando diz: “Ouso não somente falar de mim, mas falar somente de mim: disperso-me quando escrevo sobre outra coisa”. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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A liberdade de não pertencer a movimentos
O Armorial não surge como um movimento espontâneo. Ele é criação de Ariano Suassuna, que vai distribuindo títulos armoriais àqueles que ilustram as suas idéias
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u posso dizer que faço parte da história de Pernambuco. Pelo menos da história oficial. Isso se considerarem de alguma importância um registro fotográfico feito por um dos governos de direita, pós 64, num livro de propaganda do Estado, Pernambuco Sim. Eu apareço sentado no chão, de costas para o altar principal da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, assistindo a um concerto do Quinteto Armorial. Uso uma barba grande, muito na moda entre os estudantes universitários da época, uma camiseta curta de listas e umas sandálias de borracha de pneu. Não dá pra ver nada disso na foto, e só eu mesmo me reconheço. Mas é um registro de grande importância para mim. Estamos por volta de 71, tempos terríveis de repressão, coisa que um jovem de dezenove anos, idade que eu tinha, não consegue conceber. As nossas aulas de anatomia, no curso de Medicina, eram interrompidas pelo vociferante professor Bianor da Hora, aos gritos de que traria o Quarto Exército para nos levar em cana e conter nossos arroubos de adolescentes. Nessa foto “famosa”, a figura central é a de um senhor de aproximadamente 44 anos, que parece reger
o pequeno conjunto de cinco instrumentos. Na época, cada apresentação do Quinteto Armorial era precedida e acompanhada de longas explicações sobre a música que seria ouvida. Ariano Suassuna, no caso, começava por elogiar o trabalho do compositor e violonista Zoca Madureira, afirmando sempre que ele era a grande esperança da música nacional. Ariano ocupava o cargo de diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco (DEC), e o Quinteto era filiado ao Departamento. Tido nas alas de esquerda da universidade como perigosamente reacionário e de direita, Ariano era esquerdista para os que ocupavam o poder. A esquerda não perdoava a vinculação do mestre ao DEC, e sua arte armorial era considerada a serviço da Revolução, sobretudo a música do Quinteto, usada para propagandas oficiais. Esse rancor esquerdista iria se agravar num verdadeiro patrulhamento, quando Ariano aceitou a Secretaria de Cultura do Município, do prefeito de direita, Antonio Farias. Continuo a afirmar que é pouco compreensível para um jovem de hoje esses conceitos e divisões arbitrárias de direita e esquerda. Eu chegara do Crato em 69, para estudar Medicina. Esqueci numa gaveta uns modestos planos de investi-
Ronaldo Correia de Brito 68 Continente Multicultural
gação da cultura do Cariri, toscamente alinhavados nos tempos de estudante secundário. Fui morar na Casa do Estudante Universitário e passei a freqüentar diariamente o DEC, em companhia do poeta Ângelo Monteiro. As impressões desse tempo não caberiam num simples artigo. O DEC, dirigido por Ariano, era um foco de produção e resistência cultural. Nada era mais vivo no Recife, marcado pela intolerância e pela forte repressão. De modo totalmente diverso dos movimentos do Teatro de Arena e do Oficina, Ariano arrebanhava pintores, escultores, músicos, romancistas e poetas em torno das suas idéias armoriais. Contrariando os discursos políticos mais assumidamente engajados, ele propunha a cultura popular como modelo e meio para a construção de uma nacionalidade brasileira. Essa cultura, viva e incorruptível, representava uma verdadeira resistência a todas as formas de repressão. Ariano fez desse tema a sua ideologia, transformandose no Quixote do popular. O que tornava incompreensível e indefensável o discurso do mestre era a mistura com os seus delírios, os seus anarquismos de aspirante a Imperador do Brasil e seu forte personalismo. Se estudamos a história dos movimentos culturais em todo o mundo, reconhecemos que eles são sementes embrionárias que brotam de forma dispersa em vários lugares do planeta. O simbolismo, identificado com a França, tem Yeats e Joyce na Irlanda, Eliot e Gertrud Stein na América do Norte, para citar apenas estes. Lendo o excelente ensaio de Edmund Wilson, O Castelo de Axel, em nenhum ponto do mesmo encontro as referências a um possível titular do movimento. Nada mais democrático que o romantismo, espalhado pelo mundo, sem fronteiras. O Armorial não surge como um movimento espontâneo. Ele é criação de Ariano Suassuna e assim é apresentado. Como os reis davam títulos de propriedade de terra a seus vassalos, Ariano vai distribuindo títulos armoriais àqueles que ilustram as suas idéias. Essa foi a impressão que ficou, quando vi pela primeira vez aquele músico compenetrado e grave, Zoca Madureira. Apresentado como o novo Villa-Lobos, ele de fato se dedicava à investigação e criação da música brasileira. O Quinteto propunha-se a dar uma feição erudita à música nordestina rústica. Para isto, era preciso que as flautas soassem como pífanos, os violinos, como rabecas, o marimbau, como um berimbau de lata dos cegos de feira. Ao mesmo tempo que re-
volucionária, essa idéia era uma camisa-de-força, pois delimitava os signos com que o artista podia criar. Na sua curta carreira, o Quinteto teve um grande sucesso. Em suas apresentações, quase sempre feitas por Ariano Suassuna, havia uma fala preliminar em que ele dizia: “Quando eu criei o Movimento Armorial, ou, quando eu fundei o Quinteto Armorial”. No discurso psicanalítico busca-se separar a fala do filho da fala do pai. Eu buscava diferenciar a criação de Madureira da criação de Ariano. Como no romantismo, em que não é necessário referir Beethoven para dar legalidade à música de Verdi, tentava escutar a música de Madureira isolada do discurso de Ariano. Há uma aparente ruptura entre as composições mais urbanas de Zoca – valsa, maxixe, polca, dobrado, mazurca – e a música armorial, sobretudo a dos quatro discos do Quinteto. É como se dentro do artista brigassem tendências, prevalecendo um desejo de ser mais uno, diversificado e livremente universal, o que acontece com o novo trabalho do Quarteto Romançal. Agora, um violino já pode soar como violino e uma flauta não precisa mais que harpejar como flauta. Isto nos faz perguntar: a quem servem os movimentos? Aos seus idealizadores? Por mais que promova os seus múltiplos parceiros, sempre que Ariano fala da obra dos artistas armoriais é como se falasse de sua própria criação. Quando assistia aos concertos do Quinteto, ficava com a impressão de que Ariano era quem criava e Zoca Madureira executava. Esse é o modo perverso com que se transmitem as falas de uma política cultural, onde há supostos autores e seguidores. Nietzsche rompeu com Wagner para não ser o mero porta-voz das suas idéias nacionalistas grandiloqüentes. O mesmo fez Jung com Freud, levando o mestre a vários desmaios ao sentir-se abandonado pelo seu discípulo favorito. Madureira tem-se aberto às influências dos músicos do leste europeu, aos japoneses, aos americanos do Khronos Quartet e até mesmo aos sintetizadores. Um artista tem que estar permanentemente em diálogo com a sua tradição e a sua contemporaneidade. O discurso armorial de Ariano Suassuna muitas vezes me lembra Montaigne, quando diz: “Ouso não somente falar de mim, mas falar somente de mim: disperso-me quando escrevo sobre outra coisa”. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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Em entrevista exclusiva, Gil Vicente faz um retrato do ambiente artístico em Pernambuco, desde a criação no ateliê até a exposição nos museus e galerias; da formação do artista à educação do público; do papel em branco à obra de arte
PATRÍCIA ALVES DIAS
LIÇÃO DE ARTE
E
Abismos em movimento
ra final de ano. Fim de século. O mundo ameaçava explodir com o bug do milênio. E na Colômbia, o Exército colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias (FARC) haviam decidido cessar fogo e estabelecer trégua por uma semana. Alguns dias antes, um destroyer americano ancorava no porto de Tabatinga, e militares brasileiros reforçavam a presença na região da Cabeça do Cachorro que faz fronteira com o Sul da Colômbia... no fim do mundo... no começo do mundo... Era inevitável a associação à guerra do Vietnã: aviões sobrevoando pequenos vilarejos de pontes e palafitas. Jovens soldados, filhos da terra, caminhavam tensos, carregados de granadas e fuzis, vigiando a si próprios e a seus irmãos, vestidos de “mato”... A presença ostensiva de militares estrangeiros, intensificada hoje, menos de um ano depois, com o pacote de ajuda militar dos EUA ao Plano Colômbia. Mesmo assim, um grupo seleto de artistas, intelectuais, entre músicos, dramaturgos, atores, poetas (ah, Pablito! Um menino de lua, de rua – talvez tenham sido os versos mais lunáticos e puros sobre a lua que nasceram de ti) viajava para Puerto Nariño, vilarejo localizado a noroeste de Letícia, na confluência dos rios Loreto, Yaku, Zancudillo, Tarapoto e Amazonas, para o III Festival de Arte e Cultura Indígena, promovido pelo governo colombiano e a administração do município. Junto ao grupo, o fotógrafo francês Patrick Bogner, o antropólogo também francês e não menos admirável Jean-Claude Elias, Rosário Sanabria, cientista social colombiana, e eu como jornalista e assistente de Patrick. Rumamos para a reserva florestal dos ticunas, num vilarejo no Sul da Colômbia, habitado por índios yaguas e ticunas, por colonos e comerciantes, para registrar o encontro de xamãs que também acontecia na ocasião. Nossa viagem fazia parte da primeira etapa do projeto de Patrick sobre fé e religiosidade na América Latina, inédito e ainda em realização. Falei para Patrick que seria a continuação de sua peregrinação e procura pela “Terra sem Males” (iniciada em tantas passagens e andanças pelo Brasil e pelo mundo, e reveladas em ensaios, publicações e exposições fotográficas, como Momentos Suspensos/1990, Sertão/1993, Carnaval em Migalhas/1996 e Cariocas/1999). Estas fotografias são um pouco dos apontamentos e impressões da viagem. Algumas registradas no negativo. Outras, apenas na alma.
Patrícia Alves Dias é jornalista e cineasta Patrick Bogner é fotógrafo
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FLÁVIO LAMENHA
PATRICK BOGNER
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PATRÍCIA ALVES DIAS
do mundo
No começo
Patrícia Alves Dias, fotografada por Patrick Bogner enquanto tirava o retrato das crianças ticunas, exibido no centro da página seguinte
PATRICK BOGNER FLÁVIO LAMENHA
De um caderno antigo PA 1/1, 1979, Litografia (56,5 x 36cm)
O
pintor Gil Vicente é um perito em abismos. Não satisfeito em tornar-se virtuoso na difícil e irônica arte do retrato, volta-se para pintar o invisível, o sombrio, o insondável quase do subconsciente. Tudo o que há de subterrâneo numa cabeça humana, a mais intrigante das formas inventadas. As suas figuras já são de há muito almas inquietas, como rostos sempre revistos por dentro. Se as cicatrizes rasuram as lousas das máscaras-máquinas sensíveis que são os rostos humanos, ele faz o seu abismo cada vez mais em movimento e afina o seu traço para riscar, poluir, manchar, submeter as suas imagens a todos os choques e estremecimentos possíveis. Encontra o novo a partir dos elementos aparentemente mais comuns. Por isso é tão fácil dar razão ao crítico Mario Praz (escrevendo sobre Dannunzio): “A originalidade de um artista consiste na ruptura das associações mais óbvias”. Escapando da necessidade fácil de agradar, o artista não teme os seus Mário 72 Continente Multicultural
horrores. Nem busca ser um facilitador de caminhos. Nunca foi um iconófilo, porque desde o fascínio que exerce sobre si a figura, especialmente a humana, quase que naturalmente rumou para uma sutil iconoclastia. E com isto vem fazendo uma arte a cada exposição mais complexa. Se é possível falar ainda numa anatomia de alma e melancolia como se fala do corpo, o rosto é o território privilegiado disto. Sobretudo da solidão e da agonia. Da inquietação humana, mesmo disfarçada em mimese. Uma cabeça pode ter cada uma de suas partes perfurada, amputada, mutilada, deformada. O nariz, a língua, o pescoço, os dentes, os cabelos, as orelhas, os lábios – nada fica em estado puro ou intacto. Homens e mulheres, como à diferença dos deuses que amam formar, adoram deformar-se e reformar-se. Em nenhuma época, como no século passado – era por excelência das imagens – o corpo e o rosto viveram mais como objeto de culto e transfiguração. O engano, entretanto, seria pensar que essas reinvenções do corpo humano são típicas ou principais das culturas urbanas ocidentais do final do segundo milênio. Seja a transfixão ritual da língua pelos maias, ou de laceração na Índia, ou amputação da úvula no Chade, perfuração das bochechas na Síria, ou até a excisão de narizes, lábios e orelhas praticada pelos mochicas, a insatisfação dos humanos com os seus rostos é assunto que já resultou em livros e mais livros. Tudo terá um sentido ritual ou de simples ornamentação? Neste mundo não há nada simples, acudiria logo um escritor perito em fantasmagorias. A arte é pródiga não em desvendar a realidade, ou facilitar a leitura do mundo, mas penetrar as suas entranhas, os seus abismos. Se abismo atrai abismo, o da pintura abraça o da poesia. O livro Pampa Pernambucano, que a poetisa gaúcha Beatriz Viégas-Faria lança no próximo mês, foi motivado pelos quadros de Gil Vicente que ela viu através de imagens indiretas (em vídeo, principalmente). Num depoimento exclusivo, o artista fala de sua formação, as obras, o mercado de arte, e, completando-o, os ensaios de Agnaldo Farias e Anco Márcio TenóHélio rio Vieira.
Fecha os olhos A câmera fazia-lhes as reverências dignas daquelas concedidas aos filhos dos deuses... porque eram ticunas, descendentes de Yo’i e Ipi.
e vê
A
enorme caixa tinha um só olho, jo- ameaçado pelos motores explosivos que cortam os gado sobre ela um pano negro. Ela céus e as águas. Quando vozes lhes pediam que cerrassem os havia sido prostrada diante dos Genaro, Juan, Bráulio, Tertulina, olhos, o faziam sem pestanejar, sem medo da (cerr)Valentina, Pastora e Flormaria, ação e da morte. Pareciam aceitar com tranqüilidade lhes fazendo as reverências dignas a inevitável viagem de suas almas para um campo daquelas concedidas apenas aos fi- onde dorme uma eternidade, sem qualquer submislhos dos deuses... porque todos eram ticunas, descen- são ao que poderia parecer lembrá-los da efemeridentes de Yo’i e Ipi. (Versão da cosmogonia a partir dade de seus corpos. E quando as mesmas vozes pediam-lhes que mirassem, refletiam a memória e a da tradição dos povos indígenas Ticunas) Yo’i e Ipi eram irmãos e um dia pescaram do resistência milenar de um povo cravadas nos seus igarapé Eware os ticunas, as gentes que rumaram negros olhos. Por debaixo do pano preto, as vozes enxergavam para o lado onde nasce o sol, e outras, para onde o melhor os ticunas, seus reflexos, suas almas – apesar sol se põe. Possuíam a altivez e a cor dos filhos do sol. de suas visões invertidas, todos de cabeça para baixo. Eram enfeitados de plumagens verdes e amarelas Eram como miragens cobertas por névoa da verdade, dos papagaios e azuis e brancas das araras. Uns espelhando o que somos, ou, pelo menos, o que portavam jóias de tucumã-piranga, atadas à mesma poderíamos ser. As vozes não eram de deuses, sequer semideuses. palha de tucum que acaricia as mãos (que lavam a macaxeira nas águas do rio) nas coxas das mulhe- Eram dos escravos da assombração do etnocídio e res de lá. Eram todos reis e príncipes de um reino genocídio da humanidade, em busca da redenção. Éramos alguns os donos das vozes, repetindo paverde onde os pequenos nadam ao lado de peixes gigantes cor-de-rosa, e o mirar calmo dos olhos ar- ra nós mesmos, como surat e mantras, “cierra los ojos y mira... fecha os olhos e vê”. repuxados do seu povo é ditado pelas ondas do som do rio, às vezes Patrícia Alves Dias Continente Multicultural 65
Origem e formação Minhas referências todas são pernambucanas. Mas sei que a formação em Pernambuco está há muitos anos com um déficit terrível. A gente está sem bacharelado há mais de vinte anos, e sem escolas particulares de arte. A formação se dá no contato com outros artistas, em pequenos cursos, por vias indiretas, em locais como a Escolinha de Arte do Recife, como foi o meu caso e de muitos outros artistas, José Patrício, Flávio Gadelha, que passaram por lá também. Quando eu viajei a Paris, em 80 e 81, eu já estava completamente impregnado com as informações daqui, porque comecei muito novo e o que eu via no Recife era muito mais os trabalhos de Brennand na rua, os painéis, as exposições dos artistas daqui de Pernambuco, José Cláudio, Guita Charifker, os poucos Vicente e Cícero dos nossos museus. Tudo isso foi me deixando marcas muito fortes. O mais comum na produção pernambucana era a representação da figura, e havia também a minha inclinação pessoal pela representação da figura.
FLÁVIO LAMENHA
Sendo o meu interesse maior a figura humana – mesmo quando não está presente, o interesse é ela, inclusive nas paisagens e naturezas mortas – sei que não são o tronco e os membros os símbolos principais da representação. A cabeça é que contém uma quantidade maior de signos que identificam a representação facilmente, além de reunir todos os sentidos. Fazendo uma leitura mais psicológica, penso que o meu interesse era a descoberta da identidade. Você também vê a identidade muito mais no rosto do que na mão, ou num tórax. Para eu descobrir a minha identidade e descobrir a identidade do outro. Visto no panorama da arte, o retrato do rosto, a representação da cabeça é um tema que perpassa toda a história. É um tema clássico da pintura, que foi usado em todos os momentos. Quando fui para Paris, uma das coisas que mais me interessaram foi ver no Louvre e em outros lugares aqueles retratos que se faziam no Egito para colocar no embalsamento dos mortos. Eram retratos somente da cabeça, no tamanho natural, feitos em encáustica. Essas pinturas mexeram comigo. Foi no começo da década de 80, quando eu estava na França, e acho que eles foram um empurrão no meu interesse pelo retrato, porque voltei de lá muito impressionado.
Desenho da série Sessenta cabeças, 1997, nanquim sobre papel (76 x 56cm)
TADEU LUBAMBO
A cabeça, o rosto
De cabeça para baixo, 1985, óleo sobre tela (70 x 50cm)
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FLÁVIO LAMENHA
A representação
Idéias ruins
O desenvolvimento do meu trabalho está centrado no emaranhado das questões que envolvem a representação da figura humana. Mas não no emaranhado técnico para essa representação. Nunca trabalhei com uma técnica diferente, inédita, nem procurei fazer pesquisas de novos suportes técnicos. A minha exposição recente, por exemplo, é mais uma afirmação disso. As técnicas que eu uso são comuns. Ou é nanquim sobre papel, carvão sobre papel. Eu não misturei carvão com nanquim, ou com óleo, eu não fiz nada disso. É o básico, normal. Minha pesquisa está mais direcionada para a linguagem, o conceito e o conteúdo da representação do que para o meio que uso. Tenho uma atração muito particular também pelo exercício de contenção, de depuração, de pobreza. Eu quero conseguir sobreviver no mínimo e no comum. São desafios que a gente se coloca. Você só cria com desafios. Será que com nanquim sobre papel ou carvão sobre papel eu posso fazer um trabalho que ainda desperte algum interesse? Ou eu vou precisar estar usando novidades tecnológicas para me comunicar, para poder ter um diálogo com as pessoas através do trabalho? Até a forma que uso para exibir o trabalho é comum. Eu poderia estar imaginando instalações muito diferentes para esses trabalhos e tal, mas faz parte da magreza, da enxutez do conceito o uso de materiais e meios comuns.
Não faço muita pesquisa de suportes e materiais diferentes porque tenho a tendência muito grande de cair no efeito pelo efeito. Tenho que ficar me vigiando constantemente para me defender contra os “achados”, e para me defender, sempre, contra as idéias ruins. Quando a gente vai trabalhar, a primeira coisa a fazer é se livrar das idéias ruins que vão chegando. Se você se livrar pelo menos das oito ou dez idéias ruins que chegam antes, você já depurou alguma coisa. Para isso eu procuro não me distrair com o efeito novo, com o suporte novo.
Acho que pinto principalmente, não diria a solidão, mas o isolamento da figura. Eu tenho um interesse muito grande em investigar essa dificuldade do ser humano em interagir. Tanto que, em raríssimos quadros meus aparecem mais de uma figura. Como já observou Beatriz Viégas-Faria, mesmo quando aparecem mais de uma figura, elas estão separadas por um espaço físico no quadro ou estão separadas por um espaço psicológico. Ou o encontro pode ser momentâneo, como ela observou no desenho A visita, que tem um homem e uma mulher juntos, mas por pouco tempo. É uma visita. RICARDO FELIPE
Retrato de Gilvan Samico, 1986, óleo sobre tela (120 x 100cm)
Isolamento da figura
Trinta cabeças, 1997, nanquim sobre papel (76 x 56cm)
Vocação e insistência Eu sempre me lembro de uma frase de Brennand que acho ótima, “a diferença de quem é artista para quem não é artista, é porque o artista insistiu”. Principalmente hoje em dia, isso é muito real. Porque, como conversamos, não há necessidade de a pessoa ter talento para o desenho, ou de ter a capacidade de pintar e representar o real, não precisa existir esse talento. O que precisa existir é reflexão prática e teórica, para provocar as conexões e a inteligência do aluno. E eu acho que isso se ensina, sim, através do confrontamento de obras, da análise de idéias, das visitas comentadas a exposições, e discutindo a produção que esses alunos estão fazendo. Isso é o que eu penso ser o papel essencial de um bacharelado, que está sendo prometido há vários anos e está sendo
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muito adiado. Eu acho que é de suma importância a volta do bacharelado, e que se instale um curso atualizado, que conte com a experiência de teóricos e profissionais destacáveis no estado e no país. Precisa haver essa ponte entre a universidade e a produção atual para que se desenvolva um programa de formação ampla. Sem o curso, as pessoas que se voltam para as artes plásticas, atualmente, têm que procurar particularmente os artistas mais experientes. E esse acompanhamento é feito em Pernambuco de forma graciosa e natural. Eu fui recebido, nos anos da minha formação, por vários artistas nos seus ateliês, e tive meu trabalho olhado e comentado, com toda a honestidade, por eles, aos quais sempre agradeço muito. Hoje em dia, faço o mesmo com outros artistas que estão começando. Maiores informações sobre Gil Vicente no site: http://www.gilvicente.com.br
Págs. seguintes: Soldado holandês morto, 1994, óleo sobre tela (100 x 120cm)
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FLÁVIO LAMENHA
Cabeça escura deitada, 1999, óleo sobre tela (80 x 120cm)
As pessoas têm a idéia de que o artista só fica criando, e aí chega o representante de um museu muito importante no ateliê e diz: “Olhe, eu vou comprar suas obras e vou fazer uma exposição sua”. As coisas não acontecem exatamente assim. A gente se envolve com tudo e é responsável por muita coisa. Além do mais, o artista plástico é uma figura profissional muito mal retribuída, porque ele só ganha dinheiro quando ele perde a obra, quando a obra deixa de ser dele. E isso vai acontecer uma vez só para cada obra. Ele não ganha porque exibe o seu trabalho, e só raramente recebe honorários por ceder imagens para reprodução. As instituições brasileiras começam, felizmente, a pagar cachês de participação para os artistas nas exposições, porque afinal de contas, o ateliê investe muito dinheiro para que aquela obra esteja sendo exposta. No Recife, o melhor local para se ver o trabalho de um artista é o seu ateliê. É o lugar que tem mais trabalhos para serem vistos e comprados. Isso não é bom para os artistas, que acumulam funções e incham a estrutura do ateliê para incluir atendimento e contatos, nem para o sistema, que fica funcionando deficientemente. Precisamos de galerias inclusive porque se vende muita arte pernambucana em Pernambuco, e temos colecionadores fiéis. É assim em to-
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RICARDO FELIPE
sa que o singulariza: a atmosfera pesada, melancólica. Existe um clima melancólico, mas não é nenhuma melancolia especial, e sim, uma melancolia prosaica mesmo, do cotidiano. Como o meu normal como pessoa tende para a melancolia, e estou sempre próximo a uma crise, à beira de uma crise, eu acho que isso passa para o trabalho.
Sentado em pé, 1988, guache sobre papel (93 x 69cm)
Horror ao estilo
Coleções públicas É lamentável que ainda não se tenha feito um levantamento dessas coleções particulares em Pernambuco. Muitas obras poderiam ser vistas por mais gente, e ser paqueradas por instituições públicas locais através de acordos de levantamento, catalogação e conservação das obras em troca de um contrato de comodato por alguns anos. Se as instituições locais não tiveram, nos últimos 100 anos, a esperteza – não digo nem a sensibilidade – de formar acervo dos pernambucanos, corram para reparar essa lacuna. O Estado e a cidade deveriam ter, cada um, pelo menos 30 obras excelentes de cada nome importante da arte pernambucana. O investimento seria mínimo se tivesse sido feito no tempo certo. E pra quê? Para possuir uma coleção valiosa? Não! Para dar identidade a seu povo. Se não fizeram antes, que pensem programas para fazer agora com as gerações que estão produzindo. Museus sem acervo e sem produzir eventos originais não têm poder de barganha. Penso que o MAMAM, que já ganhou estrutura de museu e fez um bom trabalho, deve produzir, por exemplo, uma ótima retrospectiva de José Cláudio, acompanhada de um livro completo e bem editado. É preciso também aprender a produzir seus próprios eventos.
Eu sempre fui muito contido com a cor. Minha paleta clareou por um tempo, alterou alguns registros, mas eu sempre sou atraído, quando crio, pelo escuro e pelo sombrio. Mesmo nas cores quentes, a coisa nunca é tão exacerbada. Na minha relação com a produção popular, a mesma atração que eu tenho pelas figuras esculpidas ou gravadas em madeira, eu tenho pelo tratamento das cores, com interesse especial pela geometria colorida. Acho que é uma produção muito singular e difícil de ser encontrada, com essa vocação para a cor, em outros lugares do Brasil além do Nordeste. É uma sabedoria intuitiva muito grande. Eu tenho horror à palavra estilo. Tudo que se parece com a configuração de uma marca pessoal me estremece. A minha auto-imposição a uma enxutez é Eu fui problematizando as questões plásticas e as muito mais motivada por uma tentativa de anulação de representação. Nos trabalhos atuais existe uma da autoria do que por uma tentativa da elaboração e discussão formal muito maior sobre a utilização do configuração de um estilo e de uma marca. Quando espaço, composição, valores etc. Não houve um desenrolar linear entre uma representação mais direta e outra que foi problematizando essas questões. Houve uma sofisticação no modo de abordar a figura. Desde o começo meu trabalho sempre foi muito variado. Procurei percorrer todos os caminhos de representação que me atraíram. Mas os temas e os caminhos também são comuns. Eu nunca procurei uma forma de representar inédita. Tenho muito medo do inédito, da inovação. Prefiro partir do que já está pronto.
FLÁVIO LAMENHA
Ateliê, mercado, coleções particulares
Medo do inédito
do o mundo: os artistas locais vendem mais porque são os conhecidos da comunidade. O setor de artes plásticas tem essa reserva natural de mercado. O maior colecionador de Samico, hoje, é pernambucano, e isso é importante para o Estado, para o colecionador e para o artista, principalmente sabendo-se que sua obra está sendo bem conservada, como é o caso. Temos muita coisa boa de Cícero Dias, de Vicente do Rego Monteiro e de outros artistas nas coleções privadas.
FLÁVIO LAMENHA
depender também da atuação dela a valorização do artista. Ser apenas vendedor de arte é bem mais fácil. Mas o que a gente encontra com facilidade no Brasil são os tiradores de pedido. Tirar pedido é fácil demais: “Olhe, faça mais três quadros daquele vermelho e dois do amarelo”. Precisamos de galerias que participem da administração da carreira do artista. Como isso não acontece no Recife, é até difícil de acontecer de forma profissional mesmo em São Paulo, todas as obrigações, providências e tarefas recaem sobre os ateliês dos artistas. E o público não imagina a mão-de-obra que é. Se houvesse uma galeria que centralizasse a divulgação de dez artistas, outra de mais dez, com perfis adequados à atuação do marchand, a carga para os ateliês iria diminuir bastante. E o artista reservaria o melhor do seu tempo para a pesquisa e criação das obras, que é a parte que lhe cabe.
À beira de uma crise Na arte contemporânea não existe barreira a nenhum procedimento técnico, a nenhum suporte. É tão válido o uso de uma instalação em vídeo quanto um desenho ou uma performance. Isso é uma conquista madura da arte contemporânea, que cada vez privilegia menos os modismos. Tecnicamente, acho que o meu trabalho se insere na produção contemporânea. Talvez tenha uma coi-
Desenho da série Sessenta cabeças, 1997, nanquim sobre papel (76 x 56cm)
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FLÁVIO LAMENHA
co precisa mudar os de assimilação e de relação com essa produção. Você não pode julgar um trabalho de arte contemporânea assim: “O que é que ele quis dizer com isso? O que é que ele quis pintar com isso? Isso está mal pintado ou bem pintado?” Vamos renovar, vamos nos esforçar também para ter uma presença inteligente diante do trabalho. Porque o trabalho pode ter uma presença inteligente diante de você, e se você não tiver o que conversar com ele, vai sair de lá vazio. E por favor não bote a culpa no trabalho! O público tende a preferir um trabalho porque o código que ele tem é antigo. E é assim porque o nosso país não formou esse público para que ele tivesse acompanhado e assimilado esses outros códigos. Isso vem sendo reparado com um número maior de exposições e publicações.
Figura verde, 2000, óleo sobre tela (204 x 238cm)
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Pintura e desenho Na produção contemporânea não existe mais o que é um bom desenho, um mau desenho, uma boa pintura, uma má pintura. Também não existe a necessidade de a pessoa saber desenhar para pintar. Digo que se compreendeu, no século 20, que os valores não residem aí, na capacidade de copiar, no adestramento da mão para o desenho ou para a pintura ou no conhecimento técnico. O que importa é o conceito do trabalho, a inteligência do trabalho, a expressividade. Tudo o mais é supérfluo. A arte aprofundou muito a discussão sobre ela mesma; e muitas vezes, certos trabalhos só sobrevivem artisticamente porque são “mal feitos”. Apesar de ter escolhido um caminho de formação de aprender a desenhar, aprender a pintar a partir do natural e tal, eu não defendo isto de jeito nenhum. Principalmente como o único caminho. O leque é abertíssimo e nada disso tem importância capital.
Mídia Vale tudo em termos de arte. Mas, o trabalho precisa ser um golpe, realmente. Um golpe de inteligência, de expressão. E pede do espectador a mesma coisa. Os teóricos discutem a arte e estudam os artistas; os artistas se esforçam muito para se renovar, para renovar os meios expressivos, seja revalidando meios ou criando meios novos. O público precisa acompanhar isso. Porque você só estabelece uma relação a partir de certos códigos de assimilação. Se os códigos de confecção estão sendo alterados, o públi-
Instituições e galerias Já tivemos aqui em Pernambuco um número maior de galerias particulares que comercializavam obras de arte. Hoje são poucas. Em compensação, a gente está com um número maior de espaços públicos e uma melhor qualidade da ação institucional, no cenário das artes plásticas do Brasil e de Pernambuco. Eu destaco o setor de artes plásticas da Fundação Joaquim Nabuco, que tem analisado nosso FOTOS: FLÁVIO LAMENHA
desenho, fico com a preocupação de me ausentar do trabalho. Como se eu tivesse que depurar a ponto de me ausentar. Eu acho que o estilo, se tiver de ser reconhecido, deve ser o sotaque, o que você não conseguiu evitar de jeito nenhum, o resquício de você no trabalho, e não o que é feito propositadamente para ser identificado como estilo. Disso daí é que eu estou fora mesmo. Nessa série de desenhos que desenvolvi nos últimos três anos, percebi como era forte a minha preocupação de localizar e tentar destruir todos esses focos maneiristas na representação da pintura, todos esses focos que pudessem identificar o meu modo de representar a figura. É a tentativa de destruir isso. Dentro desses desenhos de cabeças, no leque que se abre de modos de representar a figura, de variações de caminhos de representação da figura, está contida uma preocupação de destruir a autoria. E uma tentativa de me aproximar e dialogar com o involuntário (sabendo o risco que existe aí também). Está implícita nessa série de desenhos uma discussão a respeito de autoria, de estilo, do que é feito conscientemente e do que é feito sem querer, sem intenção, sem pretensão. Me interessa muito discutir isso, porque muda muito a caligrafia quando existe uma intenção. Nos últimos dez anos, cresceu muito o meu interesse por trabalhos que divergem do meu. Quero ver caligrafias diferentes e perceber como outros artistas escolhem e resolvem diversos problemas de criação. A minha relação com a produção popular também é muito disso. Ela está impregnada de intuição, às vezes tão-somente de intuição plástica, que não há nenhuma interferência de pretensão. Como existe na produção também de crianças, de doentes mentais, existe na produção popular. Ou então, a pretensão da pessoa está tão equivocadamente deslocada que o resultado é maravilhoso. Isso me interessa muito.
nhecem, por exemplo, o trabalho de Cildo Meireles ou Lígia Clark, artistas que mereceram exposições organizadas e apresentadas por instituições seriíssimas da Europa e dos Estados Unidos.
Cabeça azul e vermelha, 1998, óleo sobre tela (120 x 80cm)
O público e os códigos Grande parte do público também confunde fama com prestígio. Uma coisa é tempo de mídia, outra é reconhecimento artístico. Sair na revista Caras é apenas mídia, não é reconhecimento. Na cultura tem picaretagem como nas outras áreas profissionais. O importante é que as instituições que avalizam e legitimam artistas e obras sejam sérias. O trabalho de muitos artistas “famosos” está longe dessas instituições, mas pode aparecer freqüentemente nas TVs mundanas. Na mídia mundial, não só na brasileira, há uma distorção de valores em função da indústria cultural. Poucos brasileiros co-
Cabeça azul e vermelha 2, 1999, óleo sobre tela (80 x 60cm)
circuito e proposto programas de apoio à formação, exibição e reflexão. Uma galeria de arte, hoje em dia, além de vender, tem o papel essencial de representar o artista. Ela precisa estar conectada com as outras galerias do país e do exterior e participando de feiras internacionais, levando os artistas que ela representa (hoje, não é utopia pensar em mercado internacional). Ela precisa apresentar os artistas que representa a críticos e curadores, possibilitando sua inclusão em exposições importantes. Quer dizer, ela é a ponte entre os artistas e o sistema artístico, e tem que fazer isso muito bem. A galeria tem que estar bem equipada tecnologicamente, ter bom espaço, boas assessorias e uma disposição de investimento muito grande. Porque vai Continente Multicultural 77
FLÁVIO LAMENHA
co precisa mudar os de assimilação e de relação com essa produção. Você não pode julgar um trabalho de arte contemporânea assim: “O que é que ele quis dizer com isso? O que é que ele quis pintar com isso? Isso está mal pintado ou bem pintado?” Vamos renovar, vamos nos esforçar também para ter uma presença inteligente diante do trabalho. Porque o trabalho pode ter uma presença inteligente diante de você, e se você não tiver o que conversar com ele, vai sair de lá vazio. E por favor não bote a culpa no trabalho! O público tende a preferir um trabalho porque o código que ele tem é antigo. E é assim porque o nosso país não formou esse público para que ele tivesse acompanhado e assimilado esses outros códigos. Isso vem sendo reparado com um número maior de exposições e publicações.
Figura verde, 2000, óleo sobre tela (204 x 238cm)
76 Continente Multicultural
Pintura e desenho Na produção contemporânea não existe mais o que é um bom desenho, um mau desenho, uma boa pintura, uma má pintura. Também não existe a necessidade de a pessoa saber desenhar para pintar. Digo que se compreendeu, no século 20, que os valores não residem aí, na capacidade de copiar, no adestramento da mão para o desenho ou para a pintura ou no conhecimento técnico. O que importa é o conceito do trabalho, a inteligência do trabalho, a expressividade. Tudo o mais é supérfluo. A arte aprofundou muito a discussão sobre ela mesma; e muitas vezes, certos trabalhos só sobrevivem artisticamente porque são “mal feitos”. Apesar de ter escolhido um caminho de formação de aprender a desenhar, aprender a pintar a partir do natural e tal, eu não defendo isto de jeito nenhum. Principalmente como o único caminho. O leque é abertíssimo e nada disso tem importância capital.
Mídia Vale tudo em termos de arte. Mas, o trabalho precisa ser um golpe, realmente. Um golpe de inteligência, de expressão. E pede do espectador a mesma coisa. Os teóricos discutem a arte e estudam os artistas; os artistas se esforçam muito para se renovar, para renovar os meios expressivos, seja revalidando meios ou criando meios novos. O público precisa acompanhar isso. Porque você só estabelece uma relação a partir de certos códigos de assimilação. Se os códigos de confecção estão sendo alterados, o públi-
Instituições e galerias Já tivemos aqui em Pernambuco um número maior de galerias particulares que comercializavam obras de arte. Hoje são poucas. Em compensação, a gente está com um número maior de espaços públicos e uma melhor qualidade da ação institucional, no cenário das artes plásticas do Brasil e de Pernambuco. Eu destaco o setor de artes plásticas da Fundação Joaquim Nabuco, que tem analisado nosso FOTOS: FLÁVIO LAMENHA
desenho, fico com a preocupação de me ausentar do trabalho. Como se eu tivesse que depurar a ponto de me ausentar. Eu acho que o estilo, se tiver de ser reconhecido, deve ser o sotaque, o que você não conseguiu evitar de jeito nenhum, o resquício de você no trabalho, e não o que é feito propositadamente para ser identificado como estilo. Disso daí é que eu estou fora mesmo. Nessa série de desenhos que desenvolvi nos últimos três anos, percebi como era forte a minha preocupação de localizar e tentar destruir todos esses focos maneiristas na representação da pintura, todos esses focos que pudessem identificar o meu modo de representar a figura. É a tentativa de destruir isso. Dentro desses desenhos de cabeças, no leque que se abre de modos de representar a figura, de variações de caminhos de representação da figura, está contida uma preocupação de destruir a autoria. E uma tentativa de me aproximar e dialogar com o involuntário (sabendo o risco que existe aí também). Está implícita nessa série de desenhos uma discussão a respeito de autoria, de estilo, do que é feito conscientemente e do que é feito sem querer, sem intenção, sem pretensão. Me interessa muito discutir isso, porque muda muito a caligrafia quando existe uma intenção. Nos últimos dez anos, cresceu muito o meu interesse por trabalhos que divergem do meu. Quero ver caligrafias diferentes e perceber como outros artistas escolhem e resolvem diversos problemas de criação. A minha relação com a produção popular também é muito disso. Ela está impregnada de intuição, às vezes tão-somente de intuição plástica, que não há nenhuma interferência de pretensão. Como existe na produção também de crianças, de doentes mentais, existe na produção popular. Ou então, a pretensão da pessoa está tão equivocadamente deslocada que o resultado é maravilhoso. Isso me interessa muito.
nhecem, por exemplo, o trabalho de Cildo Meireles ou Lígia Clark, artistas que mereceram exposições organizadas e apresentadas por instituições seriíssimas da Europa e dos Estados Unidos.
Cabeça azul e vermelha, 1998, óleo sobre tela (120 x 80cm)
O público e os códigos Grande parte do público também confunde fama com prestígio. Uma coisa é tempo de mídia, outra é reconhecimento artístico. Sair na revista Caras é apenas mídia, não é reconhecimento. Na cultura tem picaretagem como nas outras áreas profissionais. O importante é que as instituições que avalizam e legitimam artistas e obras sejam sérias. O trabalho de muitos artistas “famosos” está longe dessas instituições, mas pode aparecer freqüentemente nas TVs mundanas. Na mídia mundial, não só na brasileira, há uma distorção de valores em função da indústria cultural. Poucos brasileiros co-
Cabeça azul e vermelha 2, 1999, óleo sobre tela (80 x 60cm)
circuito e proposto programas de apoio à formação, exibição e reflexão. Uma galeria de arte, hoje em dia, além de vender, tem o papel essencial de representar o artista. Ela precisa estar conectada com as outras galerias do país e do exterior e participando de feiras internacionais, levando os artistas que ela representa (hoje, não é utopia pensar em mercado internacional). Ela precisa apresentar os artistas que representa a críticos e curadores, possibilitando sua inclusão em exposições importantes. Quer dizer, ela é a ponte entre os artistas e o sistema artístico, e tem que fazer isso muito bem. A galeria tem que estar bem equipada tecnologicamente, ter bom espaço, boas assessorias e uma disposição de investimento muito grande. Porque vai Continente Multicultural 77
FLÁVIO LAMENHA
Cabeça escura deitada, 1999, óleo sobre tela (80 x 120cm)
As pessoas têm a idéia de que o artista só fica criando, e aí chega o representante de um museu muito importante no ateliê e diz: “Olhe, eu vou comprar suas obras e vou fazer uma exposição sua”. As coisas não acontecem exatamente assim. A gente se envolve com tudo e é responsável por muita coisa. Além do mais, o artista plástico é uma figura profissional muito mal retribuída, porque ele só ganha dinheiro quando ele perde a obra, quando a obra deixa de ser dele. E isso vai acontecer uma vez só para cada obra. Ele não ganha porque exibe o seu trabalho, e só raramente recebe honorários por ceder imagens para reprodução. As instituições brasileiras começam, felizmente, a pagar cachês de participação para os artistas nas exposições, porque afinal de contas, o ateliê investe muito dinheiro para que aquela obra esteja sendo exposta. No Recife, o melhor local para se ver o trabalho de um artista é o seu ateliê. É o lugar que tem mais trabalhos para serem vistos e comprados. Isso não é bom para os artistas, que acumulam funções e incham a estrutura do ateliê para incluir atendimento e contatos, nem para o sistema, que fica funcionando deficientemente. Precisamos de galerias inclusive porque se vende muita arte pernambucana em Pernambuco, e temos colecionadores fiéis. É assim em to-
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RICARDO FELIPE
sa que o singulariza: a atmosfera pesada, melancólica. Existe um clima melancólico, mas não é nenhuma melancolia especial, e sim, uma melancolia prosaica mesmo, do cotidiano. Como o meu normal como pessoa tende para a melancolia, e estou sempre próximo a uma crise, à beira de uma crise, eu acho que isso passa para o trabalho.
Sentado em pé, 1988, guache sobre papel (93 x 69cm)
Horror ao estilo
Coleções públicas É lamentável que ainda não se tenha feito um levantamento dessas coleções particulares em Pernambuco. Muitas obras poderiam ser vistas por mais gente, e ser paqueradas por instituições públicas locais através de acordos de levantamento, catalogação e conservação das obras em troca de um contrato de comodato por alguns anos. Se as instituições locais não tiveram, nos últimos 100 anos, a esperteza – não digo nem a sensibilidade – de formar acervo dos pernambucanos, corram para reparar essa lacuna. O Estado e a cidade deveriam ter, cada um, pelo menos 30 obras excelentes de cada nome importante da arte pernambucana. O investimento seria mínimo se tivesse sido feito no tempo certo. E pra quê? Para possuir uma coleção valiosa? Não! Para dar identidade a seu povo. Se não fizeram antes, que pensem programas para fazer agora com as gerações que estão produzindo. Museus sem acervo e sem produzir eventos originais não têm poder de barganha. Penso que o MAMAM, que já ganhou estrutura de museu e fez um bom trabalho, deve produzir, por exemplo, uma ótima retrospectiva de José Cláudio, acompanhada de um livro completo e bem editado. É preciso também aprender a produzir seus próprios eventos.
Eu sempre fui muito contido com a cor. Minha paleta clareou por um tempo, alterou alguns registros, mas eu sempre sou atraído, quando crio, pelo escuro e pelo sombrio. Mesmo nas cores quentes, a coisa nunca é tão exacerbada. Na minha relação com a produção popular, a mesma atração que eu tenho pelas figuras esculpidas ou gravadas em madeira, eu tenho pelo tratamento das cores, com interesse especial pela geometria colorida. Acho que é uma produção muito singular e difícil de ser encontrada, com essa vocação para a cor, em outros lugares do Brasil além do Nordeste. É uma sabedoria intuitiva muito grande. Eu tenho horror à palavra estilo. Tudo que se parece com a configuração de uma marca pessoal me estremece. A minha auto-imposição a uma enxutez é Eu fui problematizando as questões plásticas e as muito mais motivada por uma tentativa de anulação de representação. Nos trabalhos atuais existe uma da autoria do que por uma tentativa da elaboração e discussão formal muito maior sobre a utilização do configuração de um estilo e de uma marca. Quando espaço, composição, valores etc. Não houve um desenrolar linear entre uma representação mais direta e outra que foi problematizando essas questões. Houve uma sofisticação no modo de abordar a figura. Desde o começo meu trabalho sempre foi muito variado. Procurei percorrer todos os caminhos de representação que me atraíram. Mas os temas e os caminhos também são comuns. Eu nunca procurei uma forma de representar inédita. Tenho muito medo do inédito, da inovação. Prefiro partir do que já está pronto.
FLÁVIO LAMENHA
Ateliê, mercado, coleções particulares
Medo do inédito
do o mundo: os artistas locais vendem mais porque são os conhecidos da comunidade. O setor de artes plásticas tem essa reserva natural de mercado. O maior colecionador de Samico, hoje, é pernambucano, e isso é importante para o Estado, para o colecionador e para o artista, principalmente sabendo-se que sua obra está sendo bem conservada, como é o caso. Temos muita coisa boa de Cícero Dias, de Vicente do Rego Monteiro e de outros artistas nas coleções privadas.
FLÁVIO LAMENHA
depender também da atuação dela a valorização do artista. Ser apenas vendedor de arte é bem mais fácil. Mas o que a gente encontra com facilidade no Brasil são os tiradores de pedido. Tirar pedido é fácil demais: “Olhe, faça mais três quadros daquele vermelho e dois do amarelo”. Precisamos de galerias que participem da administração da carreira do artista. Como isso não acontece no Recife, é até difícil de acontecer de forma profissional mesmo em São Paulo, todas as obrigações, providências e tarefas recaem sobre os ateliês dos artistas. E o público não imagina a mão-de-obra que é. Se houvesse uma galeria que centralizasse a divulgação de dez artistas, outra de mais dez, com perfis adequados à atuação do marchand, a carga para os ateliês iria diminuir bastante. E o artista reservaria o melhor do seu tempo para a pesquisa e criação das obras, que é a parte que lhe cabe.
À beira de uma crise Na arte contemporânea não existe barreira a nenhum procedimento técnico, a nenhum suporte. É tão válido o uso de uma instalação em vídeo quanto um desenho ou uma performance. Isso é uma conquista madura da arte contemporânea, que cada vez privilegia menos os modismos. Tecnicamente, acho que o meu trabalho se insere na produção contemporânea. Talvez tenha uma coi-
Desenho da série Sessenta cabeças, 1997, nanquim sobre papel (76 x 56cm)
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FLÁVIO LAMENHA
A representação
Idéias ruins
O desenvolvimento do meu trabalho está centrado no emaranhado das questões que envolvem a representação da figura humana. Mas não no emaranhado técnico para essa representação. Nunca trabalhei com uma técnica diferente, inédita, nem procurei fazer pesquisas de novos suportes técnicos. A minha exposição recente, por exemplo, é mais uma afirmação disso. As técnicas que eu uso são comuns. Ou é nanquim sobre papel, carvão sobre papel. Eu não misturei carvão com nanquim, ou com óleo, eu não fiz nada disso. É o básico, normal. Minha pesquisa está mais direcionada para a linguagem, o conceito e o conteúdo da representação do que para o meio que uso. Tenho uma atração muito particular também pelo exercício de contenção, de depuração, de pobreza. Eu quero conseguir sobreviver no mínimo e no comum. São desafios que a gente se coloca. Você só cria com desafios. Será que com nanquim sobre papel ou carvão sobre papel eu posso fazer um trabalho que ainda desperte algum interesse? Ou eu vou precisar estar usando novidades tecnológicas para me comunicar, para poder ter um diálogo com as pessoas através do trabalho? Até a forma que uso para exibir o trabalho é comum. Eu poderia estar imaginando instalações muito diferentes para esses trabalhos e tal, mas faz parte da magreza, da enxutez do conceito o uso de materiais e meios comuns.
Não faço muita pesquisa de suportes e materiais diferentes porque tenho a tendência muito grande de cair no efeito pelo efeito. Tenho que ficar me vigiando constantemente para me defender contra os “achados”, e para me defender, sempre, contra as idéias ruins. Quando a gente vai trabalhar, a primeira coisa a fazer é se livrar das idéias ruins que vão chegando. Se você se livrar pelo menos das oito ou dez idéias ruins que chegam antes, você já depurou alguma coisa. Para isso eu procuro não me distrair com o efeito novo, com o suporte novo.
Acho que pinto principalmente, não diria a solidão, mas o isolamento da figura. Eu tenho um interesse muito grande em investigar essa dificuldade do ser humano em interagir. Tanto que, em raríssimos quadros meus aparecem mais de uma figura. Como já observou Beatriz Viégas-Faria, mesmo quando aparecem mais de uma figura, elas estão separadas por um espaço físico no quadro ou estão separadas por um espaço psicológico. Ou o encontro pode ser momentâneo, como ela observou no desenho A visita, que tem um homem e uma mulher juntos, mas por pouco tempo. É uma visita. RICARDO FELIPE
Retrato de Gilvan Samico, 1986, óleo sobre tela (120 x 100cm)
Isolamento da figura
Trinta cabeças, 1997, nanquim sobre papel (76 x 56cm)
Vocação e insistência Eu sempre me lembro de uma frase de Brennand que acho ótima, “a diferença de quem é artista para quem não é artista, é porque o artista insistiu”. Principalmente hoje em dia, isso é muito real. Porque, como conversamos, não há necessidade de a pessoa ter talento para o desenho, ou de ter a capacidade de pintar e representar o real, não precisa existir esse talento. O que precisa existir é reflexão prática e teórica, para provocar as conexões e a inteligência do aluno. E eu acho que isso se ensina, sim, através do confrontamento de obras, da análise de idéias, das visitas comentadas a exposições, e discutindo a produção que esses alunos estão fazendo. Isso é o que eu penso ser o papel essencial de um bacharelado, que está sendo prometido há vários anos e está sendo
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muito adiado. Eu acho que é de suma importância a volta do bacharelado, e que se instale um curso atualizado, que conte com a experiência de teóricos e profissionais destacáveis no estado e no país. Precisa haver essa ponte entre a universidade e a produção atual para que se desenvolva um programa de formação ampla. Sem o curso, as pessoas que se voltam para as artes plásticas, atualmente, têm que procurar particularmente os artistas mais experientes. E esse acompanhamento é feito em Pernambuco de forma graciosa e natural. Eu fui recebido, nos anos da minha formação, por vários artistas nos seus ateliês, e tive meu trabalho olhado e comentado, com toda a honestidade, por eles, aos quais sempre agradeço muito. Hoje em dia, faço o mesmo com outros artistas que estão começando. Maiores informações sobre Gil Vicente no site: http://www.gilvicente.com.br
Págs. seguintes: Soldado holandês morto, 1994, óleo sobre tela (100 x 120cm)
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Origem e formação Minhas referências todas são pernambucanas. Mas sei que a formação em Pernambuco está há muitos anos com um déficit terrível. A gente está sem bacharelado há mais de vinte anos, e sem escolas particulares de arte. A formação se dá no contato com outros artistas, em pequenos cursos, por vias indiretas, em locais como a Escolinha de Arte do Recife, como foi o meu caso e de muitos outros artistas, José Patrício, Flávio Gadelha, que passaram por lá também. Quando eu viajei a Paris, em 80 e 81, eu já estava completamente impregnado com as informações daqui, porque comecei muito novo e o que eu via no Recife era muito mais os trabalhos de Brennand na rua, os painéis, as exposições dos artistas daqui de Pernambuco, José Cláudio, Guita Charifker, os poucos Vicente e Cícero dos nossos museus. Tudo isso foi me deixando marcas muito fortes. O mais comum na produção pernambucana era a representação da figura, e havia também a minha inclinação pessoal pela representação da figura.
FLÁVIO LAMENHA
Sendo o meu interesse maior a figura humana – mesmo quando não está presente, o interesse é ela, inclusive nas paisagens e naturezas mortas – sei que não são o tronco e os membros os símbolos principais da representação. A cabeça é que contém uma quantidade maior de signos que identificam a representação facilmente, além de reunir todos os sentidos. Fazendo uma leitura mais psicológica, penso que o meu interesse era a descoberta da identidade. Você também vê a identidade muito mais no rosto do que na mão, ou num tórax. Para eu descobrir a minha identidade e descobrir a identidade do outro. Visto no panorama da arte, o retrato do rosto, a representação da cabeça é um tema que perpassa toda a história. É um tema clássico da pintura, que foi usado em todos os momentos. Quando fui para Paris, uma das coisas que mais me interessaram foi ver no Louvre e em outros lugares aqueles retratos que se faziam no Egito para colocar no embalsamento dos mortos. Eram retratos somente da cabeça, no tamanho natural, feitos em encáustica. Essas pinturas mexeram comigo. Foi no começo da década de 80, quando eu estava na França, e acho que eles foram um empurrão no meu interesse pelo retrato, porque voltei de lá muito impressionado.
Desenho da série Sessenta cabeças, 1997, nanquim sobre papel (76 x 56cm)
TADEU LUBAMBO
A cabeça, o rosto
De cabeça para baixo, 1985, óleo sobre tela (70 x 50cm)
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FLÁVIO LAMENHA
Gilberto Freyre defendia uma arte que traduzisse a diversidade regional, mas sem perder de vista a unidade maior, que é o Brasil
O Ataúde, 1982, óleo sobre tela (50 x 70cm)
antropófago”, escreveu ele no seu Manifesto –, para os regionalistas todas as manifestações artísticas não-brasileiras (fossem elas americanas, européias, africanas ou orientais) interessavam tanto quanto as da sua Região e as da sua Tradição (lembremos o interesse que Freyre sempre cultivou pela obra de Picasso – tantas vezes evocada ao longo dos seus escritos – e, particularmente, como bem nos lembra César Leal, pelas pinturas de Gauguin, considerado por ele “o pintor máximo [...] da vida e da paisagem tropical [...]”). Aliás, qualquer manifestação artística não-brasileira não poderia (ou talvez não deveria) ser deglutida sem passar pelo crivo crítico da Região e da Tradição. Filho dessa tradição pensada e refletida programaticamente nos anos 20 deste século, Gil Vicente é um artista plástico que conseguiu construir sua obra superando a atitude autofágica que caracteriza ou caracterizou o trabalho de muitos dos seus contemporâneos e precursores. O melhor exemplo é a sua série mais recente, Sessenta cabeças e outros desenhos (recentemente adquirida pelo Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães – MAMAM –, do Recife). Nessa seqüência de nanquim sobre papel, Gil realiza uma intervenção sobre a linguagem que até então ele vinha adotando para caracterizar as suas telas a óleo, representadas no livro de Beatriz Viégas-Faria pelas obras A cega, Contraluz, Homem apoiado na mesa e Mulher sentada perto da mesa. Estas pinturas, por sua vez, já se distanciam de uma outra fase anterior, vista aqui nos trabalhos Cachoeira do Urubu e Fruteira de Brennand e pintura de Samico. Neste último, uma explícita homenagem a dois dos artistas pernambucanos que constituem a sua família espiritual. Artistas que não por acaso têm, nas suas obras e nos seus escritos, marcas de meditações verticalizadas – e não superficiais – dos conceitos de Tradição e Região. Ainda entre os que formam o seu paideuma, podemos citar Vicente do Rego Monteiro e João Câmara, pintores que foram
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superando, cada um ao seu modo, a “leitura campista” do Brasil – seja porque fugiram de uma leitura simplista e reducionista do mundo que os envolve, seja porque, através da reflexão sobre a linguagem, conseguiram construir aquilo que era tão almejado pelos que fizeram o Congresso Regionalista de 26: escrever uma arte brasileira não provinciana; e com feições próprias que os fazem ser identificados entre os seus contemporâneos. Nesta recente produção de Gil, marcadamente expressionista, sobressai a inquietação de quem está com um olhar arguto, de um lado, para a rica e não menos conflitante diversidade cultural de Pernambuco e, de outro, para a produção do seu tempo, no Brasil ou no mundo. No meio de toda essa balbúrdia intelectual, a preocupação em não deixar de cultivar a individualidade e o traço que lhe faz em peculiar. Há, ainda nessa fase, um aprofundamento maior das questões referentes às ações e paixões daqueles viventes que, neste fim-de-século, existenciam as grandes cidades. Em todas as “cabeças”, assim como em todos os “outros desenhos”, percebe-se um traço de solidão, traço que é reforçado pela ausência, no papel, de qualquer cor que não sejam os tons preto, branco e cinza. Os homens e as mulheres retratados parecem buscar algo que talvez
FLÁVIO LAMENHA
FLÁVIO LAMENHA
A volta (estudo), 1998, grafite sobre papel (21 x 30cm) À dir. A volta, 1998, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
A primeira paisagem Com a série de cabeças, Gil Vicente arma-se apenas de carvão ou nanquim, para enfrentar o papel em branco.
O
desenho é grande, por volta de das de nanquim, justapostas, até recobrir toda a área um metro e meio por um e se- previamente pintada. Em seguida, buscando uma tenta. Para realizá-lo, o artista difusibilidade maior do nanquim, borrifava todo o dividiu o papel em seis pedaços papel até quase encharcá-lo. Depois, sem amainar a iguais. Um papel espesso e re- conversa, esperava-o secar. Avaliava então o resultasistente, capaz de suportar as su- do e reiniciava o processo. Quem do desenho se aproximasse notaria que à cessivas camadas de nanquim com as quais ele era empapado. Bastante poroso sua frente, fixado numa prancha de madeira, estava também. O nanquim escorria pela sua superfície e o projeto da obra; um desenho limpo, executado em infiltrava-se em seus alvéolos, como se quisesse apa- linhas finas numa folha branca comum. O que no gar desde dentro, do âmago, a luz branca e intensa pequeno papel aparecia nítido, uma imagem cicatrizada em definitivo no branco, no outro, naquele que que de lá se elevava. O processo continha poucos passos e o artista carregava sua versão ampliada, ao contrário, uma levava-o desenvolto, sem se alhear do movimento em imagem branca e difusa esplendia em meio à escuvolta, um pouco ao ritmo da música que aumentava ridão. Neste, não apenas os limites da imagem eram o calor já grande daquela hora, consciente dos fun- borrados, como a própria superfície pintada de preto cionários que por ali trançavam desempenhando era sutilmente descontínua, efeito produzido pelas suas tarefas, sem deixar de dar atenção ao amigo que eventuais sobreposições de pinceladas e porque tamveio visitá-lo e que desfiava piadas recostado no ba- bém não se pode prever com exatidão o resultado da tente da porta para melhor aproveitar a brisa inexis- névoa borrifada. As seqüências de nuvens fabricadas tente. Com a atenção bifurcada entre dentro e fora pelo artista iam baixando lentamente sobre a superfído trabalho que estava executando, ele definitiva- cie e se podia adivinhar a suave destruição que elas mente não possuía parentesco com a imagem român- provocavam ao longo das faixas regulares de nantica do artista atormentado, para quem a solidão e o quim. A escuridão compacta ia se dissolvendo e se silêncio são os únicos companheiros aceitáveis. De estilhaçando em círculos cinzas infinitesimais. A mesma água que inventava o cinza quando em quando, aplicava com Agnaldo Farias era a responsável por levar o nandestreza pinceladas largas, carrega82 Continente Multicultural
pintores holandeses); e pela necessidade de se fundar uma arte que fosse brasileira e não apenas uma “macaqueação” da que vinha sendo produzida na Europa; uma arte que respeitasse, como um todo, tanto as manifestações culturais e artísticas do passado nacional (Tradição), quanto as diversas manifestações regionais que enriquecem e, ao seu modo, formam a cultura brasileira (Região). Ou seja, uma arte que traduzisse a diversidade regional, mas sem perder de vista a unidade maior, que é o Brasil. Esse “autocentramento” estético (para citarmos Antônio Dimas) – mas não autofágico – que tão bem vai caracterizar, nos anos 20, as preocupações intelectuais de uma parcela significativa da inteligência pernambucana, irá levar, no campo das artes plásticas (bem como no da literatura) ao que Décio Pignatari chama (referindo-se aos cariocas, mas que se aplica muito bem ao caso pernambucano) de “leitura ‘campista’” do Brasil. Nesta leitura – que também irá contaminar vários dos pintores modernistas brasileiros, e não só os que eram ligados ao movimento Regionalista –, marcada ora pelo resgate histórico, ora pela estetização do cotidiano (muitas vezes de maneira quase que didática, como são exemplos os desenhos/pinturas e painéis históricos de Manoel Bandeira e Balthasar da Câmara, respectivamente), vemos que diversos artistas plásticos (fazendo um corte de viés conservador, superficial, na verticalidade que os conceitos de Região e Tradição traziam consigo) vão rejeitar soluções e formas artísticas mais “radicais”. Esse pé atrás, ao longo de quase todo o século 20, com o experimentalismo (prevalecendo sempre a pintura e o desenho figurativos), levou Joaquim Cardozo a comparar a tradição Regionalista em Pernambuco, que assim como os sete fôlegos de um gato, de tempos em tempos renasce, ao “que foi e ainda é, para os alemães, o expressionismo”. A diferença entre uma e outra tradição, creio, é, no caso pernambucano, o prevalecer do olhar histórico e antropológico guiando (mesmo que isso não seja explícito) o que deve e o que não deve ser retratado em detrimento, muitas vezes, da preocupação com os próprios elementos formais intrínsecos à linguagem plástica. Esse tipo de desconfiança pelas experiências formais vai ser, de certa forma, um dos traços definidores da “Escola Pernambucana de Pintura” e irá se manifestar em vários grupos artísticos que surgiram ao longo deste século. Um exemplo do que afirmamos acima. Escrevendo sobre a Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR.), que fora criada em 1948, o escultor Abelardo da Hora, um dos seus fundadores, assinala que
“a falta de orientação (dentro da SAMR.) gerava tendências opostas, o que fazia das nossas exposições amostras sem expressão e sem unidade e o que era do povo e dos próprios expositores, contaminados na sua maioria pelo formalismo cosmopolita e descaracterizador da nossa cultura”. (grifo nosso). Uma posição de permanente desconfiança e que, não raras vezes, descamba para uma postura reacionária, auto-suficiente e xenófoba para com toda discussão formal que se apresente e que possa levar à descaracterização dos valores culturais de uma região (no caso, o Nordeste; mais especificamente, Pernambuco). Em regra geral, essa é ou foi, ao longo dessas últimas sete décadas, a postura intelectual de muito dos pintores, escultores e desenhistas que firmaram e deram projeção ao que se conhece hoje como “Escola Pernambucana de Pintura”. Não raras vezes, o que fica evidente na obra e no discurso de alguns desses artistas é uma caricatura grosseira e deturpada do que fora defendido pelos regionalistas de 26. Nestes, apesar de um inegável conservadorismo estético, o autocentramento regional passa, dentro de uma postura crítica, por um tripé, onde o homem do presente deve tentar compreender os valores e as manifestações culturais do universo que o cerca (Região) sem deixar de manter uma conversação constante com os mesmos valores e manifestações culturais que alicerçaram o país (Tradição). Munido dessas duas referências, ele deve estabelecer o diálogo com as formas artísticas e as idéias de outros povos e culturas (cosmopolitismo). Estariam estabelecidas, assim, através da conciliação entre o regional e o humano, a tradição e a experimentação, as bases para uma arte brasileira, por sua vez, uma arte universal. É uma espécie de antropofagia invertida. Pois se para Oswald de Andrade só lhe interessava o que não era seu – “Lei do homem. Lei do
Reflexos do passeio, 1998, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
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quim rumo às entranhas do papel; tornava-o um líquido mais ágil, permitindo-o escorrer pelas ranhuras e insinuar-se pelas frestas que davam para os estratos mais profundos. Por fim, a imagem que emergia do mar de nanquim: um nadador. Um homem avança, abrindo uma fenda luminosa na escuridão. Seu corpo está quase inteiramente submerso no negro. Não está na horizontal, o que seria indicativo de um deslizar contínuo e tranqüilo. Ao contrário, a linha diagonal de seu tronco esclarece que seu movimento pelo negro é vagaroso. Negros já são seus cabelos longos, como a cova de seu olho esquerdo, ponto denso de sua face sombria. Mas o pouco que do seu corpo se dá a ver é, embora crepitante, luminoso. Sobretudo o ombro e o cotovelo direito que, em ângulo aberto, indica a decisão e o sentido do avanço. Tingem-se de sombra os dedos de sua mão prestes a trespassar a água. São traços de tinta. O homem só e nu progride pela extensão imponderável de preto, a cor que contém todas as cores.
G
il Vicente define-se como um pintor. Mais precisamente, como pintor figurativo. Desde o início, aos treze anos, na Escolinha de Arte do Recife, ele travou contato com todos os aspectos relativos ao ofício. Sua opção pela pintura figurativa colocou-o ao lado da tradição mais fértil do meio artístico pernambucano, representada por nomes como Francisco Brennand, João Câmara, Gilvan Samico e, principalmente, José Cláudio. Digo principalmente porque foi José Cláudio quem teve maior ascendência sobre Gil Vicente. Seja pelo universo temático, as paisagens e as figuras humanas, seja pela pincelada carregada de energia para a melhor representação das folhas de uma palmeira ou dos movimentos dos braços; a pincelada em que a técnica refinada e precisa repentinamente parece ceder lugar ao gesto trêfego, ocioso, premeditadamente destrambelhado. Por tudo isso é que analisar uma obra como a de Gil Vicente nos faz compreender algumas proposições básicas
de uma das tradições mais ricas e bem cultivadas do nosso meio artístico. Gil Vicente vem construindo sua obra através de paisagens, naturezas-mortas e retratos. Temas clássicos que ele vem enfrentando com procedimentos típicos da contemporaneidade, como o desenho de observação realizado com maestria e que, no entanto, se vê perturbado por outros códigos plásticos. Há, como se pode ver, através de um apanhado das obras dos últimos anos, uma busca de equivalência entre linguagens distintas; o espaço pictórico como um espaço de convívio entre operações de linguagem de natureza variada. Um domínio dessa ordem do universo plástico em níveis e ângulos diversos é, como se pode supor, empresa que demanda tempo, paciência e perseverança. Para a pintura da paisagem, o artista, acompanhado de amigos como Guita Charifker, Luciano Pinheiro, Samico, deslocava-se para fora de seu ateliê. O trabalho ao ar livre, consoante o ritmo da natureza, a variação da luz, o interesse pela infinidade de ângulos, termina por ser rápido. Atento à resolução do binômio forma-composição, o artista desenvolveu sua acuidade em reter da matéria vista o que lhe parece essencial, sobrepondo a isso o melhor enquadramento, o ângulo capaz de potencializar a imagem. A natureza-morta, outro assunto de interesse do artista, é laboratório de outro feitio, mais afeito ao estudo de cores e das relações formais. Nada do espontaneísmo anterior: trata-se de processo mais lento e que se inicia com a composição calculada de elementos, na qual a armação geométrica faz com as relações cromáticas seu par problemático. Mas é no retrato que a trajetória de Gil Vicente obteve os melhores resultados e que o colocaram numa posição única frente aos artistas da sua geração. Até recentemente, fiel a sua formação, seus retratos eram preferencialmente realizados em sessões com modelos vivos. Paulatinamente, a par da preferência por figuras isoladas, os resultados, em que pese a familiaridade do tema, foram ficando mais complexos, mais estranhos. Suas telas, mais e mais conscientes do FLÁVIO LAMENHA
seus pilares fincados nas idéias que foram defendidas tanto no 1° Congresso Regionalista do Nordeste, realizado em fevereiro de 1926, no Recife, quanto no Livro do Nordeste, publicado no ano anterior, como parte das comemorações do centenário do Diario de Pernambuco. Ambos tinham à frente o então jovem sociólogo, quase recém-chegado dos Estados Unidos, Gilberto Freyre. Esses dois momentos de aglomeração e convergência de várias gerações de nordestinos, das mais diversas matrizes ideológicas, revelam a preocupação, por conseguinte, a reação dos seus membros participantes, principalmente de Gilberto Freyre, contra a forma como as idéias modernas, de inspiração americana ou européia, estavam sendo adotadas acriticamente pelas elites brasileiras ao tempo em que se desdenhavam as boas experiências e soluções do passado, seja no campo urbanístico e no modus de vida, seja no tocante às várias manifestações da arte. Era o início de uma reflexão (de viés antes nitidamente histórico e antropológico do que estético) que perpassaria quase toda a obra do autor de Casa-grande & Senzala, e que influenciaria não só os seus contemporâneos, como as várias gerações de artistas e intelectuais brasileiros que lhe seguiram: a da tentativa de pensar a cultura brasileira a partir dos conceitos de Região e Tradição. Nos alicerces desses conceitos estavam uma clara contraposição às preocupações puramente estéticas e de experimentos de linguagens dos modernistas de 22, prin-
RICARDO FELIPE
FLÁVIO LAMENHA
Minha mãe morta, 1997, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
cipalmente os da primeira dentição. No campo específico das artes plásticas, que é, por enquanto, o que nos interessa, uma das principais reivindicações de Gilberto Freyre e, por extensão, do Livro do Nordeste, era que os pintores da terra explorassem os “valores íntimos” da paisagem e da vida brasileira, subtraindo a aura ainda reinante dos modelos do academicismo europeu, acatados pelas elites nacionais como referências de bom gosto e refinamento: a exemplo de “decorar edifícios públicos com as figuras das quatro estações que não representam aspectos da nossa vida; com os Mercúrios; com os eternos leões e as eternas moças cor-de-rosa e de barretes frígios”. Em substituição a essa arte “alienante” que, ao longo do processo de reeuropeização do Brasil, no século 19, foi sendo indiscriminadamente importada, Gilberto Freyre evoca o passado histórico e cita o exemplo dos então recém-descobertos Franz Post e Albert Eckhout, que no século 17 tão bem souberam aproveitar as sugestões plásticas que a região oferecia-lhes: é que “só os hóspedes da terra procuraram fixar a ingênua beleza da indústria animadora da nossa paisagem”, alfineta. Ao contrário dos modernistas de 22 que, num primeiro momento, repudiam tudo que pudesse representar o passado artístico nacional, Gilberto Freyre se revela tão preocupado com as questões brasileiras do presente quanto com as do passado. Seu objetivo é estruturar um projeto intelectual amplo que compreenda várias vias de comunicação. Esse projeto passava pelo diálogo crítico com os elementos formais dos modernismos da Europa (lembremos que quem primeiro escreveu no Brasil sobre o Ulisses, de Joyce, fora ele, em 11 de dezembro de 1924, no Diario de Pernambuco) e dos Estados Unidos (Freyre sempre se mostrou um admirador dos imagistas americanos. Seu poema “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados” é um exemplo); pela defesa e o resgate das “ricas” e “sugestivas” experiências estéticas do passado brasileiro (a exemplo dos citados
Sem título, 1973 (aprox.), nanquim sobre papel (48 x 33cm)
Fumaça no seu olho, 1983, óleo sobre tela (30 x 81cm)
Continente Multicultural 83
FLÁVIO LAMENHA
FLÁVIO LAMENHA RICARDO FELIPE
“Nossos amigos fazem parte de nossas vidas, e nossa vida explica nossas amizades.” Raïssa Maritain. In As grandes amizades
Fruteira de Brennand e pintura de Samico, 1993, óleo sobre tela (60 x 80cm) À direita, Sem título, 1998, carvão sobre papel (200 x 150cm)
princípio de que o que cabe ao pintor é a fundação de um espaço, e não a representação de um espaço já dado, afastavam-se dos modelos humanos na razão direta em que se interessavam por tratá-los exclusivamente como fenômenos da ordem da linguagem. Ainda eram composições derivadas da acepção clássica do termo – imagens colhidas do mundo e construídas no quadrilátero da tela com todos os cuidados que lhes são peculiares: as relações entre as partes, a relação fundo-figura etc. –, mas não há dúvida de que já se distanciavam perigosamente desse conceito. A reorientação definitiva do seu percurso ocorreu com a série Sessenta cabeças, apresentada ao público carioca neste mesmo MAM, em janeiro de 1998, na exposição Vista assim do alto mais parece um céu no chão, de minha curadoria, e que aconteceu como evento paralelo ao Salão Nacional, numa edição de resto marcada pelo número de bons jovens artistas pernambucanos revelados a um público mais amplo. Com a série de cabeças, Gil Vicente põe de lado as cores e vários dos instrumentos e recursos com os quais ele leva seu ofício de pintor, para, armado apenas de carvão ou nanquim, enfrentar o papel em branco. O retrato aparece como única e obsessiva questão. Mas, um retrato que não o do corpo flagrado nas posições ordinárias ou em poses montadas com arranjo: o retrato em 3x4, o retrato fechado, o rosto. O rosto do outro. A primeira paisagem. O tema do rosto mantém-se em sua longa duração por toda a história da arte, aquém e além dela mesma. Talvez, porque diante da presença do rosto do outro, recoloco e atualizo, por vizinhança perturbadora, o meu próprio enigma. Entre as coisas com as quais convivemos cotidianamente, venham elas da natureza ou dos homens, o rosto é a mais fascinante. Talvez, porque seu conhecimento, mais que outra coisa qualquer, traz a promessa de mitigar nossa solidão e clausura.
84 Continente Multicultural
Mas, porque existe uma distância irremissível entre eu e outro, desenhar o rosto do outro significa também – inelutavelmente – projetar um rosto sobre o rosto do outro. E é por esse motivo que todos os retratos de Gil Vicente, divergindo da sua produção anterior, são retratos imaginários. Em preto-e-branco, os retratos, as cabeças vão se sucedendo em vistas de frente, de lado, do alto, de baixo, em meia rotação; tão de perto que delas não se percebem os ombros onde estão assentadas, ou, quando já aparecem de vez decepadas, como fragmentos de um manequim; podem ser nítidas, cristalinas, realçando pormenores e encantando pelo esforço em capturar o que é miúdo e discreto; pode ser uma vaga efígie, um semblante nublado e misterioso, subitamente rompido pelo vazamento de uma fração expressiva; podem irromper de um emaranhado de linhas, como um brilho que a luz vai buscar na profundidade; pode ser econômica, quase nada, um rosto tão diáfano que se desenha contra o ar; pode ser tão prolixa e suja que só a reconhecemos após muito trabalho do nosso olhar. Eram sessenta. Hoje, já são bem mais e tendem ao infinito. Apresentadas lado a lado, elas saturam pelo conjunto, o que potencializa seus elementos internos, orientados agora não tanto pelas questões compositivas já comentadas e que pertenciam aos trabalhos anteriores, mas por outras noções, como ritmo, força, tensão, expansão, desdobramento, densidade, termos, enfim, mais abstratos. Explorando esses recursos, o corpo desse trabalho composto de cabeças traz em si a pluralidade de gestos do artista; diante dessas seqüências de cabeças, várias delas beirando a abstração, nós, os espectadores, colocamo-nos diante da dimensão plural do nosso enigma. Agnaldo Farias é curador no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da USP
Pampa
Longo diálogo, 1982, óleo sobre tela (50 x 70cm)
pernambucano Gil Vicente é um dos melhores representantes da “Escola Pernambucana de Pintura”, que reconstrói a cultura a partir da Região nordestina e da Tradição
O
que levou Beatriz Viégas-Faria, na mansidão da sua planície gaúcha, entre um intervalo e outro das suas traduções de Shakespeare, a compor, inspirada em 16 trabalhos do artista plástico Gil Vicente, os 40 poemas que formam o seu Pampa Pernambucano? Iremos encontrar, nos poemas de Beatriz ou nas telas de Gil, um caso um tanto que raro de metainspiração, posto que Beatriz Viégas-Faria se inspira em trabalhos que, por sua vez, foram inspirados em objetos, Anco Márcio
ações e paixões de quem os criou. E quem os criou tem, no Brasil, um lugar privilegiado entre os da sua geração, além de ser um dos melhores representantes da chamada “Escola Pernambucana de Pintura”, escola que, para alguns, tem suas bases fincadas na pintura sacra colonial e nos quadros e desenhos que foram realizados pelos holandeses ao tempo em que tiveram o Nordeste sob o seu jugo. Neste último caso, parece-nos que há uma quase imemorial visão idílica e mítica de uma tradição pernambucana de pintura. Visão idílica e mítica à parte, o que podemos acatar como “Escola PernamTenório Vieira bucana de Pintura” tem Continente Multicultural 85
FLÁVIO LAMENHA
FLÁVIO LAMENHA RICARDO FELIPE
“Nossos amigos fazem parte de nossas vidas, e nossa vida explica nossas amizades.” Raïssa Maritain. In As grandes amizades
Fruteira de Brennand e pintura de Samico, 1993, óleo sobre tela (60 x 80cm) À direita, Sem título, 1998, carvão sobre papel (200 x 150cm)
princípio de que o que cabe ao pintor é a fundação de um espaço, e não a representação de um espaço já dado, afastavam-se dos modelos humanos na razão direta em que se interessavam por tratá-los exclusivamente como fenômenos da ordem da linguagem. Ainda eram composições derivadas da acepção clássica do termo – imagens colhidas do mundo e construídas no quadrilátero da tela com todos os cuidados que lhes são peculiares: as relações entre as partes, a relação fundo-figura etc. –, mas não há dúvida de que já se distanciavam perigosamente desse conceito. A reorientação definitiva do seu percurso ocorreu com a série Sessenta cabeças, apresentada ao público carioca neste mesmo MAM, em janeiro de 1998, na exposição Vista assim do alto mais parece um céu no chão, de minha curadoria, e que aconteceu como evento paralelo ao Salão Nacional, numa edição de resto marcada pelo número de bons jovens artistas pernambucanos revelados a um público mais amplo. Com a série de cabeças, Gil Vicente põe de lado as cores e vários dos instrumentos e recursos com os quais ele leva seu ofício de pintor, para, armado apenas de carvão ou nanquim, enfrentar o papel em branco. O retrato aparece como única e obsessiva questão. Mas, um retrato que não o do corpo flagrado nas posições ordinárias ou em poses montadas com arranjo: o retrato em 3x4, o retrato fechado, o rosto. O rosto do outro. A primeira paisagem. O tema do rosto mantém-se em sua longa duração por toda a história da arte, aquém e além dela mesma. Talvez, porque diante da presença do rosto do outro, recoloco e atualizo, por vizinhança perturbadora, o meu próprio enigma. Entre as coisas com as quais convivemos cotidianamente, venham elas da natureza ou dos homens, o rosto é a mais fascinante. Talvez, porque seu conhecimento, mais que outra coisa qualquer, traz a promessa de mitigar nossa solidão e clausura.
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Mas, porque existe uma distância irremissível entre eu e outro, desenhar o rosto do outro significa também – inelutavelmente – projetar um rosto sobre o rosto do outro. E é por esse motivo que todos os retratos de Gil Vicente, divergindo da sua produção anterior, são retratos imaginários. Em preto-e-branco, os retratos, as cabeças vão se sucedendo em vistas de frente, de lado, do alto, de baixo, em meia rotação; tão de perto que delas não se percebem os ombros onde estão assentadas, ou, quando já aparecem de vez decepadas, como fragmentos de um manequim; podem ser nítidas, cristalinas, realçando pormenores e encantando pelo esforço em capturar o que é miúdo e discreto; pode ser uma vaga efígie, um semblante nublado e misterioso, subitamente rompido pelo vazamento de uma fração expressiva; podem irromper de um emaranhado de linhas, como um brilho que a luz vai buscar na profundidade; pode ser econômica, quase nada, um rosto tão diáfano que se desenha contra o ar; pode ser tão prolixa e suja que só a reconhecemos após muito trabalho do nosso olhar. Eram sessenta. Hoje, já são bem mais e tendem ao infinito. Apresentadas lado a lado, elas saturam pelo conjunto, o que potencializa seus elementos internos, orientados agora não tanto pelas questões compositivas já comentadas e que pertenciam aos trabalhos anteriores, mas por outras noções, como ritmo, força, tensão, expansão, desdobramento, densidade, termos, enfim, mais abstratos. Explorando esses recursos, o corpo desse trabalho composto de cabeças traz em si a pluralidade de gestos do artista; diante dessas seqüências de cabeças, várias delas beirando a abstração, nós, os espectadores, colocamo-nos diante da dimensão plural do nosso enigma. Agnaldo Farias é curador no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da USP
Pampa
Longo diálogo, 1982, óleo sobre tela (50 x 70cm)
pernambucano Gil Vicente é um dos melhores representantes da “Escola Pernambucana de Pintura”, que reconstrói a cultura a partir da Região nordestina e da Tradição
O
que levou Beatriz Viégas-Faria, na mansidão da sua planície gaúcha, entre um intervalo e outro das suas traduções de Shakespeare, a compor, inspirada em 16 trabalhos do artista plástico Gil Vicente, os 40 poemas que formam o seu Pampa Pernambucano? Iremos encontrar, nos poemas de Beatriz ou nas telas de Gil, um caso um tanto que raro de metainspiração, posto que Beatriz Viégas-Faria se inspira em trabalhos que, por sua vez, foram inspirados em objetos, Anco Márcio
ações e paixões de quem os criou. E quem os criou tem, no Brasil, um lugar privilegiado entre os da sua geração, além de ser um dos melhores representantes da chamada “Escola Pernambucana de Pintura”, escola que, para alguns, tem suas bases fincadas na pintura sacra colonial e nos quadros e desenhos que foram realizados pelos holandeses ao tempo em que tiveram o Nordeste sob o seu jugo. Neste último caso, parece-nos que há uma quase imemorial visão idílica e mítica de uma tradição pernambucana de pintura. Visão idílica e mítica à parte, o que podemos acatar como “Escola PernamTenório Vieira bucana de Pintura” tem Continente Multicultural 85
86 Continente Multicultural
quim rumo às entranhas do papel; tornava-o um líquido mais ágil, permitindo-o escorrer pelas ranhuras e insinuar-se pelas frestas que davam para os estratos mais profundos. Por fim, a imagem que emergia do mar de nanquim: um nadador. Um homem avança, abrindo uma fenda luminosa na escuridão. Seu corpo está quase inteiramente submerso no negro. Não está na horizontal, o que seria indicativo de um deslizar contínuo e tranqüilo. Ao contrário, a linha diagonal de seu tronco esclarece que seu movimento pelo negro é vagaroso. Negros já são seus cabelos longos, como a cova de seu olho esquerdo, ponto denso de sua face sombria. Mas o pouco que do seu corpo se dá a ver é, embora crepitante, luminoso. Sobretudo o ombro e o cotovelo direito que, em ângulo aberto, indica a decisão e o sentido do avanço. Tingem-se de sombra os dedos de sua mão prestes a trespassar a água. São traços de tinta. O homem só e nu progride pela extensão imponderável de preto, a cor que contém todas as cores.
G
il Vicente define-se como um pintor. Mais precisamente, como pintor figurativo. Desde o início, aos treze anos, na Escolinha de Arte do Recife, ele travou contato com todos os aspectos relativos ao ofício. Sua opção pela pintura figurativa colocou-o ao lado da tradição mais fértil do meio artístico pernambucano, representada por nomes como Francisco Brennand, João Câmara, Gilvan Samico e, principalmente, José Cláudio. Digo principalmente porque foi José Cláudio quem teve maior ascendência sobre Gil Vicente. Seja pelo universo temático, as paisagens e as figuras humanas, seja pela pincelada carregada de energia para a melhor representação das folhas de uma palmeira ou dos movimentos dos braços; a pincelada em que a técnica refinada e precisa repentinamente parece ceder lugar ao gesto trêfego, ocioso, premeditadamente destrambelhado. Por tudo isso é que analisar uma obra como a de Gil Vicente nos faz compreender algumas proposições básicas
de uma das tradições mais ricas e bem cultivadas do nosso meio artístico. Gil Vicente vem construindo sua obra através de paisagens, naturezas-mortas e retratos. Temas clássicos que ele vem enfrentando com procedimentos típicos da contemporaneidade, como o desenho de observação realizado com maestria e que, no entanto, se vê perturbado por outros códigos plásticos. Há, como se pode ver, através de um apanhado das obras dos últimos anos, uma busca de equivalência entre linguagens distintas; o espaço pictórico como um espaço de convívio entre operações de linguagem de natureza variada. Um domínio dessa ordem do universo plástico em níveis e ângulos diversos é, como se pode supor, empresa que demanda tempo, paciência e perseverança. Para a pintura da paisagem, o artista, acompanhado de amigos como Guita Charifker, Luciano Pinheiro, Samico, deslocava-se para fora de seu ateliê. O trabalho ao ar livre, consoante o ritmo da natureza, a variação da luz, o interesse pela infinidade de ângulos, termina por ser rápido. Atento à resolução do binômio forma-composição, o artista desenvolveu sua acuidade em reter da matéria vista o que lhe parece essencial, sobrepondo a isso o melhor enquadramento, o ângulo capaz de potencializar a imagem. A natureza-morta, outro assunto de interesse do artista, é laboratório de outro feitio, mais afeito ao estudo de cores e das relações formais. Nada do espontaneísmo anterior: trata-se de processo mais lento e que se inicia com a composição calculada de elementos, na qual a armação geométrica faz com as relações cromáticas seu par problemático. Mas é no retrato que a trajetória de Gil Vicente obteve os melhores resultados e que o colocaram numa posição única frente aos artistas da sua geração. Até recentemente, fiel a sua formação, seus retratos eram preferencialmente realizados em sessões com modelos vivos. Paulatinamente, a par da preferência por figuras isoladas, os resultados, em que pese a familiaridade do tema, foram ficando mais complexos, mais estranhos. Suas telas, mais e mais conscientes do FLÁVIO LAMENHA
seus pilares fincados nas idéias que foram defendidas tanto no 1° Congresso Regionalista do Nordeste, realizado em fevereiro de 1926, no Recife, quanto no Livro do Nordeste, publicado no ano anterior, como parte das comemorações do centenário do Diario de Pernambuco. Ambos tinham à frente o então jovem sociólogo, quase recém-chegado dos Estados Unidos, Gilberto Freyre. Esses dois momentos de aglomeração e convergência de várias gerações de nordestinos, das mais diversas matrizes ideológicas, revelam a preocupação, por conseguinte, a reação dos seus membros participantes, principalmente de Gilberto Freyre, contra a forma como as idéias modernas, de inspiração americana ou européia, estavam sendo adotadas acriticamente pelas elites brasileiras ao tempo em que se desdenhavam as boas experiências e soluções do passado, seja no campo urbanístico e no modus de vida, seja no tocante às várias manifestações da arte. Era o início de uma reflexão (de viés antes nitidamente histórico e antropológico do que estético) que perpassaria quase toda a obra do autor de Casa-grande & Senzala, e que influenciaria não só os seus contemporâneos, como as várias gerações de artistas e intelectuais brasileiros que lhe seguiram: a da tentativa de pensar a cultura brasileira a partir dos conceitos de Região e Tradição. Nos alicerces desses conceitos estavam uma clara contraposição às preocupações puramente estéticas e de experimentos de linguagens dos modernistas de 22, prin-
RICARDO FELIPE
FLÁVIO LAMENHA
Minha mãe morta, 1997, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
cipalmente os da primeira dentição. No campo específico das artes plásticas, que é, por enquanto, o que nos interessa, uma das principais reivindicações de Gilberto Freyre e, por extensão, do Livro do Nordeste, era que os pintores da terra explorassem os “valores íntimos” da paisagem e da vida brasileira, subtraindo a aura ainda reinante dos modelos do academicismo europeu, acatados pelas elites nacionais como referências de bom gosto e refinamento: a exemplo de “decorar edifícios públicos com as figuras das quatro estações que não representam aspectos da nossa vida; com os Mercúrios; com os eternos leões e as eternas moças cor-de-rosa e de barretes frígios”. Em substituição a essa arte “alienante” que, ao longo do processo de reeuropeização do Brasil, no século 19, foi sendo indiscriminadamente importada, Gilberto Freyre evoca o passado histórico e cita o exemplo dos então recém-descobertos Franz Post e Albert Eckhout, que no século 17 tão bem souberam aproveitar as sugestões plásticas que a região oferecia-lhes: é que “só os hóspedes da terra procuraram fixar a ingênua beleza da indústria animadora da nossa paisagem”, alfineta. Ao contrário dos modernistas de 22 que, num primeiro momento, repudiam tudo que pudesse representar o passado artístico nacional, Gilberto Freyre se revela tão preocupado com as questões brasileiras do presente quanto com as do passado. Seu objetivo é estruturar um projeto intelectual amplo que compreenda várias vias de comunicação. Esse projeto passava pelo diálogo crítico com os elementos formais dos modernismos da Europa (lembremos que quem primeiro escreveu no Brasil sobre o Ulisses, de Joyce, fora ele, em 11 de dezembro de 1924, no Diario de Pernambuco) e dos Estados Unidos (Freyre sempre se mostrou um admirador dos imagistas americanos. Seu poema “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados” é um exemplo); pela defesa e o resgate das “ricas” e “sugestivas” experiências estéticas do passado brasileiro (a exemplo dos citados
Sem título, 1973 (aprox.), nanquim sobre papel (48 x 33cm)
Fumaça no seu olho, 1983, óleo sobre tela (30 x 81cm)
Continente Multicultural 83
FLÁVIO LAMENHA
FLÁVIO LAMENHA
A volta (estudo), 1998, grafite sobre papel (21 x 30cm) À dir. A volta, 1998, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
A primeira paisagem Com a série de cabeças, Gil Vicente arma-se apenas de carvão ou nanquim, para enfrentar o papel em branco.
O
desenho é grande, por volta de das de nanquim, justapostas, até recobrir toda a área um metro e meio por um e se- previamente pintada. Em seguida, buscando uma tenta. Para realizá-lo, o artista difusibilidade maior do nanquim, borrifava todo o dividiu o papel em seis pedaços papel até quase encharcá-lo. Depois, sem amainar a iguais. Um papel espesso e re- conversa, esperava-o secar. Avaliava então o resultasistente, capaz de suportar as su- do e reiniciava o processo. Quem do desenho se aproximasse notaria que à cessivas camadas de nanquim com as quais ele era empapado. Bastante poroso sua frente, fixado numa prancha de madeira, estava também. O nanquim escorria pela sua superfície e o projeto da obra; um desenho limpo, executado em infiltrava-se em seus alvéolos, como se quisesse apa- linhas finas numa folha branca comum. O que no gar desde dentro, do âmago, a luz branca e intensa pequeno papel aparecia nítido, uma imagem cicatrizada em definitivo no branco, no outro, naquele que que de lá se elevava. O processo continha poucos passos e o artista carregava sua versão ampliada, ao contrário, uma levava-o desenvolto, sem se alhear do movimento em imagem branca e difusa esplendia em meio à escuvolta, um pouco ao ritmo da música que aumentava ridão. Neste, não apenas os limites da imagem eram o calor já grande daquela hora, consciente dos fun- borrados, como a própria superfície pintada de preto cionários que por ali trançavam desempenhando era sutilmente descontínua, efeito produzido pelas suas tarefas, sem deixar de dar atenção ao amigo que eventuais sobreposições de pinceladas e porque tamveio visitá-lo e que desfiava piadas recostado no ba- bém não se pode prever com exatidão o resultado da tente da porta para melhor aproveitar a brisa inexis- névoa borrifada. As seqüências de nuvens fabricadas tente. Com a atenção bifurcada entre dentro e fora pelo artista iam baixando lentamente sobre a superfído trabalho que estava executando, ele definitiva- cie e se podia adivinhar a suave destruição que elas mente não possuía parentesco com a imagem român- provocavam ao longo das faixas regulares de nantica do artista atormentado, para quem a solidão e o quim. A escuridão compacta ia se dissolvendo e se silêncio são os únicos companheiros aceitáveis. De estilhaçando em círculos cinzas infinitesimais. A mesma água que inventava o cinza quando em quando, aplicava com Agnaldo Farias era a responsável por levar o nandestreza pinceladas largas, carrega82 Continente Multicultural
pintores holandeses); e pela necessidade de se fundar uma arte que fosse brasileira e não apenas uma “macaqueação” da que vinha sendo produzida na Europa; uma arte que respeitasse, como um todo, tanto as manifestações culturais e artísticas do passado nacional (Tradição), quanto as diversas manifestações regionais que enriquecem e, ao seu modo, formam a cultura brasileira (Região). Ou seja, uma arte que traduzisse a diversidade regional, mas sem perder de vista a unidade maior, que é o Brasil. Esse “autocentramento” estético (para citarmos Antônio Dimas) – mas não autofágico – que tão bem vai caracterizar, nos anos 20, as preocupações intelectuais de uma parcela significativa da inteligência pernambucana, irá levar, no campo das artes plásticas (bem como no da literatura) ao que Décio Pignatari chama (referindo-se aos cariocas, mas que se aplica muito bem ao caso pernambucano) de “leitura ‘campista’” do Brasil. Nesta leitura – que também irá contaminar vários dos pintores modernistas brasileiros, e não só os que eram ligados ao movimento Regionalista –, marcada ora pelo resgate histórico, ora pela estetização do cotidiano (muitas vezes de maneira quase que didática, como são exemplos os desenhos/pinturas e painéis históricos de Manoel Bandeira e Balthasar da Câmara, respectivamente), vemos que diversos artistas plásticos (fazendo um corte de viés conservador, superficial, na verticalidade que os conceitos de Região e Tradição traziam consigo) vão rejeitar soluções e formas artísticas mais “radicais”. Esse pé atrás, ao longo de quase todo o século 20, com o experimentalismo (prevalecendo sempre a pintura e o desenho figurativos), levou Joaquim Cardozo a comparar a tradição Regionalista em Pernambuco, que assim como os sete fôlegos de um gato, de tempos em tempos renasce, ao “que foi e ainda é, para os alemães, o expressionismo”. A diferença entre uma e outra tradição, creio, é, no caso pernambucano, o prevalecer do olhar histórico e antropológico guiando (mesmo que isso não seja explícito) o que deve e o que não deve ser retratado em detrimento, muitas vezes, da preocupação com os próprios elementos formais intrínsecos à linguagem plástica. Esse tipo de desconfiança pelas experiências formais vai ser, de certa forma, um dos traços definidores da “Escola Pernambucana de Pintura” e irá se manifestar em vários grupos artísticos que surgiram ao longo deste século. Um exemplo do que afirmamos acima. Escrevendo sobre a Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR.), que fora criada em 1948, o escultor Abelardo da Hora, um dos seus fundadores, assinala que
“a falta de orientação (dentro da SAMR.) gerava tendências opostas, o que fazia das nossas exposições amostras sem expressão e sem unidade e o que era do povo e dos próprios expositores, contaminados na sua maioria pelo formalismo cosmopolita e descaracterizador da nossa cultura”. (grifo nosso). Uma posição de permanente desconfiança e que, não raras vezes, descamba para uma postura reacionária, auto-suficiente e xenófoba para com toda discussão formal que se apresente e que possa levar à descaracterização dos valores culturais de uma região (no caso, o Nordeste; mais especificamente, Pernambuco). Em regra geral, essa é ou foi, ao longo dessas últimas sete décadas, a postura intelectual de muito dos pintores, escultores e desenhistas que firmaram e deram projeção ao que se conhece hoje como “Escola Pernambucana de Pintura”. Não raras vezes, o que fica evidente na obra e no discurso de alguns desses artistas é uma caricatura grosseira e deturpada do que fora defendido pelos regionalistas de 26. Nestes, apesar de um inegável conservadorismo estético, o autocentramento regional passa, dentro de uma postura crítica, por um tripé, onde o homem do presente deve tentar compreender os valores e as manifestações culturais do universo que o cerca (Região) sem deixar de manter uma conversação constante com os mesmos valores e manifestações culturais que alicerçaram o país (Tradição). Munido dessas duas referências, ele deve estabelecer o diálogo com as formas artísticas e as idéias de outros povos e culturas (cosmopolitismo). Estariam estabelecidas, assim, através da conciliação entre o regional e o humano, a tradição e a experimentação, as bases para uma arte brasileira, por sua vez, uma arte universal. É uma espécie de antropofagia invertida. Pois se para Oswald de Andrade só lhe interessava o que não era seu – “Lei do homem. Lei do
Reflexos do passeio, 1998, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
Continente Multicultural 87
FLÁVIO LAMENHA
Gilberto Freyre defendia uma arte que traduzisse a diversidade regional, mas sem perder de vista a unidade maior, que é o Brasil
O Ataúde, 1982, óleo sobre tela (50 x 70cm)
antropófago”, escreveu ele no seu Manifesto –, para os regionalistas todas as manifestações artísticas não-brasileiras (fossem elas americanas, européias, africanas ou orientais) interessavam tanto quanto as da sua Região e as da sua Tradição (lembremos o interesse que Freyre sempre cultivou pela obra de Picasso – tantas vezes evocada ao longo dos seus escritos – e, particularmente, como bem nos lembra César Leal, pelas pinturas de Gauguin, considerado por ele “o pintor máximo [...] da vida e da paisagem tropical [...]”). Aliás, qualquer manifestação artística não-brasileira não poderia (ou talvez não deveria) ser deglutida sem passar pelo crivo crítico da Região e da Tradição. Filho dessa tradição pensada e refletida programaticamente nos anos 20 deste século, Gil Vicente é um artista plástico que conseguiu construir sua obra superando a atitude autofágica que caracteriza ou caracterizou o trabalho de muitos dos seus contemporâneos e precursores. O melhor exemplo é a sua série mais recente, Sessenta cabeças e outros desenhos (recentemente adquirida pelo Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães – MAMAM –, do Recife). Nessa seqüência de nanquim sobre papel, Gil realiza uma intervenção sobre a linguagem que até então ele vinha adotando para caracterizar as suas telas a óleo, representadas no livro de Beatriz Viégas-Faria pelas obras A cega, Contraluz, Homem apoiado na mesa e Mulher sentada perto da mesa. Estas pinturas, por sua vez, já se distanciam de uma outra fase anterior, vista aqui nos trabalhos Cachoeira do Urubu e Fruteira de Brennand e pintura de Samico. Neste último, uma explícita homenagem a dois dos artistas pernambucanos que constituem a sua família espiritual. Artistas que não por acaso têm, nas suas obras e nos seus escritos, marcas de meditações verticalizadas – e não superficiais – dos conceitos de Tradição e Região. Ainda entre os que formam o seu paideuma, podemos citar Vicente do Rego Monteiro e João Câmara, pintores que foram
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superando, cada um ao seu modo, a “leitura campista” do Brasil – seja porque fugiram de uma leitura simplista e reducionista do mundo que os envolve, seja porque, através da reflexão sobre a linguagem, conseguiram construir aquilo que era tão almejado pelos que fizeram o Congresso Regionalista de 26: escrever uma arte brasileira não provinciana; e com feições próprias que os fazem ser identificados entre os seus contemporâneos. Nesta recente produção de Gil, marcadamente expressionista, sobressai a inquietação de quem está com um olhar arguto, de um lado, para a rica e não menos conflitante diversidade cultural de Pernambuco e, de outro, para a produção do seu tempo, no Brasil ou no mundo. No meio de toda essa balbúrdia intelectual, a preocupação em não deixar de cultivar a individualidade e o traço que lhe faz em peculiar. Há, ainda nessa fase, um aprofundamento maior das questões referentes às ações e paixões daqueles viventes que, neste fim-de-século, existenciam as grandes cidades. Em todas as “cabeças”, assim como em todos os “outros desenhos”, percebe-se um traço de solidão, traço que é reforçado pela ausência, no papel, de qualquer cor que não sejam os tons preto, branco e cinza. Os homens e as mulheres retratados parecem buscar algo que talvez
FLÁVIO LAMENHA
nem eles mesmos saibam o que seja. É uma solidão tão vasta que parece ultrapassar os limites da metrópole, estendendo-se às regiões mais ermas da terra (“Paisagem”). Podemos dizer que essa solidão já está presente nos óleos sobre telas “A Cega”, “Contraluz”, “Homem apoiado na mesa” e “Mulher sentada perto da mesa”. Mas nenhum desses quadros, acredito, consegue ser tão violento no que retrata como os trabalhos que formam Sessenta cabeças e outros desenhos. Como quer Beatriz Viégas-Faria, numa alusão a Gonçalves Dias, talvez o que vemos em todos esses rostos seja a tradução de uma saudade – “Que saudade tenho eu/ de minha terra pernambucana/ das curvas insanas, de um verde indefinido, em todos os seus sons –/ nestes ecoava um sentido e uma, e duas, e três vezes/ a palavra linda também” (“Banzo”). Tanto neste poema como em outros versos de Beatriz podemos notar que o olhar sombrio de Gil sobre o tempo que lhe é presente toma outras cores e tons. O que na tela pode ser um gozo acompanhado de muita dor e aparente violência, como nos parece ser o caso de A Visita, no poema de Beatriz, lemos que “é onírica/ é pesadelo de Goya/ a desejada visita”. Visita que o narrador conclui com uma indagação: “Nessa líquida fronteira/ entre sono e vigília/ per-
Gil Vicente conseguiu construir sua obra superando a atitude autofágica que caracteriza ou caracterizou o trabalho de seus contemporâneos e precursores cebemos, ainda quente,/ pergunta perfumada no ar:/ Quem visitou quem?” (“Visitas noturnas”). A aparente violência retratada no papel é, na leitura de Beatriz, diluída pelo desejo que une o homem à mulher. Noutro desenho – Sem título – vemos o rosto de um jovem dormindo. Aqui, os traços de Gil são densos, como quem tenta denunciar a tensão de um sono pouco tranqüilo, um pesadelo que só é possível ser visto pelas contrações dos músculos da face. Para Beatriz, nem pesadelo nem tensão, somente o sono de um Narciso exibicionista, que dorme cansado porque seu “[...] criador, exibido/ esqueceu de te olhar” (“Exibicionismo 1”). E aqui podemos perguntar: qual criador? Deus ou Gil? Por fim, o nanquim sobre papel que Gil Vicente intitulou de Paisagem: o que para nós pareceu ser uma desolada paisagem localizada em qualquer ponto da terra é, nos versos de “Repercussão na paisagem urbana”, apenas uma cena campestre que vai sendo observada a partir de um carro em movimento, numa auto-estrada. Ao fato aparentemente corriqueiro, é acrescentada uma chuva que insistentemente bate no veículo, conduzindo o narrador dos versos a lembrar os problemas pessoais e urbanos que o afligem: os pivetes que limpam o pára-brisa do carro, a menina que seduz o seu motorista, o seu exercício de musculação ou o novo batuque que pode nascer dos sons que vêm dos pingos da chuva. Depois desse longo percurso, poderíamos repetir a pergunta que fizemos no começo deste texto: o que levou Beatriz a se inspirar nas telas de Gil para compor os seus poemas? Acredito que as perguntas que pontuam a obra de Gil parece que são as mesmas que incomodam Beatriz: a pressa alienante do dia-a-dia; a solidão que parece não poder ser compartilhada nem entendida pelo outro; os incômodos desejos que não podem ser preteridos; ou uma vontade de retornar para algum lugar, que tanto pode ser a casa – universo que acreditamos dominar – quanto uma introspecção sobre si mesmo. Continente Multicultural 89
FLÁVIO LAMENHA
Beatriz Viégas-Faria
Teste de Anatomia, 1999, óleo sobre tela (76 x 58cm)
O Gil Vicente que assinala este final de milênio é um artista que está pontuando sua obra a partir de uma leitura crítica e sincrônica dos seus pais espirituais. E, ao fazê-la, está recriando a “Escola Pernambucana de Pintura” (assim como outros no passado mais recente ou mais distante fizeram-na); por conseguinte, os conceitos de Tradição e Região que a balizam. A Tradição para ele não é mais a do mundo que o português, o negro e o índio criaram, mas a do mundo que o Homem, através das suas ações e paixões, vem edificando. Este mesmo Homem, de maneira penosa e solitária, vem, nos dias que se seguem, tentando construir alguma nova utopia para continuar a dar ao seu mundo algum sentido. A Região, no caso, continua a ser o espaço íntimo, seja ele cultural ou afetivo, donde não podemos escapar. Por mais que pensemos no Homem sempre com “H” maiúsculo, no seu sentido universal, ele só se torna um ser substantivo, e não um ente abstrato, quando olhamos para aquele que está ao nosso lado – seja ele o vizinho, o amigo ou o que habita a nossa casa – e, diante das suas alegrias e tristezas, conseguimos desenvolver algum tipo de empatia por ele. Mas retornemos a Raïssa Maritain e à epígrafe que abre esse texto. Parafraseando-a, o que lemos, ouvimos e vemos faz parte de nossas vidas, e o que fazemos com nossa vida pode justificar tudo que com ela aprendemos. É o que nos parecem ensinar os belos poemas de Beatriz e os quadros de Gil, e também a amizade que ambos construíram a partir de elementos que vão além das fronteiras regionais: as ações e as paixões do homem.
É onírica, é pesadelo de Goya a desejada visita
Anco Márcio Tenório Vieira é crítico literário
(do livro Pampa Pernambucano, inspirado na obra de Gil Vicente. Porto Alegre: Uniprom, 2000)
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A visita, 1998, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
Desde um abraço sonhado desde meu calor epidérmico deste teu forte rubor Enfim! vem o sono da razão despertar-nos a carne São dois o mesmo desejo, é de ambos o mesmo sonho ficando dentro de um quadro A visita, que se dorme sem querer, querida, detém-se na composição, estrutura que então se perpetua e fascina para não se concretizar. Mas instalam-se na pele minha excitada impressão digital tua impressionada excitação genital que se acabam em águas mornas quando nos acordamos eu em minha cama tu na tua Nessa líquida fronteira entre sono e vigília percebemos, ainda quente, pergunta perfumada no ar: Quem visitou quem?
Tempos de amanhãs
E
xpectantes amanhãs de belas manhãs. Manhãs de esperanças, de aconchegos. Janeiros amanhecidos já ensolarados e temperados pelo abafado calor predecessor de chuvas aliviantes; das mangas açucaradas enfeitando quintais; dos vovôs e vovós balançantes nas cadeiras da saudade; de comportamentos recicláveis; das saudáveis lembranças de outros janeiros de muitos verões. Ah! Saudosos janeiros dourados da metade do último século – de uma geração de jovens corajosos que pensavam e liam, abordando, irreverentes, o futuro do país com a destreza dos sábios e a alegria sem lenços, sem documentos. Somos renovadores da nova era. Não com as cavilosas lucubrações sombrias sobre o tempo de atentarmos para os novos tempos que advirão pela magia do calendário da imaginação. Entendamos um janeiro de outro século, de outro milênio, como se não fosse mais um mês de dias comuns. Que se danem os atropelos dos irrefletidos; as provações do destino; as sinucas de bico; a violência dos homens; as idiotices dos incapazes; as caras lisas e lavadas de choramingos; os amores não correspondidos; as traições daqueles que se dizem amigos; os que não sabem o que dizem; os bandoleiros de gravatas – estorricados de maldade; os efeitos maléficos de programações televisivas que só destroem a instituição familiar. Que as bestas tirânicas de qualquer canto do mundo se percam na desolação. Que vão às favas os invejosos que nunca vencerão, os despreparados e os intelectuais confeitados. Para o inferno os ladrões da Nação, das idéias, da cidadania, dos sonhos infantis nunca sonhados pelos menores errantes nas vielas do abandono. Abominemos as guerras que prenunciam outras guerras; as fanáticas brigas étnicas e religiosas por terras e conceitos extraídos de hábitos remotos de civilizações esquecidas. Uma porção do mundo vive arengando por qualquer motivo, reservando para a humanidade uma virada de século e de milênio com tão pouco humanismo.
E vejam que o céu nos afaga com seu infinito; o perdão ainda nos despeja o consolo da luta pela paz. Os mistérios de Mântua, por certo, serão revelados, e Shakespeare gritará rouco o barulho do nada, fazendo lembrar do apogeu monárquico, espelhado por Luís XIV, sob o magistério espiritual de Bossuet, reforçando a doutrina da soberania que apenas traz o bestial absolutismo (pelo favor excepcional das circunstâncias). Creio em Deus; no conhecimento; na elevação espiritual; na flor que nos encanta; no sorriso de uma criança e na vida extraterrena. Desprezo os que nunca sabem o que fazer nem como viver. Sendo minha intenção escrever coisas proveitosas para quem as entenda, pareceu-me mais conveniente pensar em Maquiavel e seguir a verdade efetiva, de fato (veritá effectuale), da coisa, mais do que a sua imaginação. Por isso, a enorme dívida que temos para com o príncipe de Florença e alguns poucos, como Francis Bacon, que descreveram o que o homem faz, e não o que deveria fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente à inocência da pomba, quando não se conhece exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o seu dardo. Livrai-nos, pois, Senhor, de traumas e de tremas; do vento atômico; da língua dos iletrados; dos maus políticos, seus risos, suas manias; da velha droga que vicia o moço; do jacobinismo de todos que se acham estadistas; das bandas de pagodes; da justiça que tarda e sempre falha; do fim do mundo; dos cachimbentos tecnocratas; da pressa dos historiadores; dos pastores universais; do enterro de segunda mão; da menina puritana que tem um pai que é uma fera; da ingratidão; das elites hipócritas e dos oportunistas sem terras; dos donos do mando, dos mísseis e da lama; da mentira; e das doenças, para nos livrar dos médicos. Viva 2001! Viva a liberdade! Vivam as mulatas no compasso do frevo! Vivam as Marias concebidas de pecados! Viva o avesso! Vivam as famílias de boa vontade! Vivam a música e as letras! Vivam as amizades! Viva o amor! Viva o amanhã! Vivam todos os vivas!...
Rivaldo Paiva - escritor Continente Multicultural 95
ÚLTIMAS PALAVRAS
FLÁVIO LAMENHA
Visitas noturnas
FLÁVIO LAMENHA
Uma descida aos infernos Diagonal de Pedro, 1999, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
Cada quadro de Gil é como se ele dissesse: isso é uma violência que eu pratico contra o que há de mais delicado em mim. E mesmo assim eu faço
A
José Cláudio
cho que já disseram que todos os retratos de Gil são auto-retratos. Ele pode ter tirado até de figurinha de sabonete Eucalol, pode ter tirado de revista, de fotografia de jornal, mas o que importa é que é sempre auto-retrato de Gil. Eu acho que Gil teve essa coisa que eu invejo loucamente. Hoje eu sou o cara velho, que é vítima de si próprio, que passa a vida oferecendo coisas ao público e tem uma hora que o público cobra. Então, sem querer, ele está inventando um monstro que vai devorá-lo. Eu agora estou sendo devorado por esse monstro que eu mesmo inventei. As pessoas já vêm a mim querendo um quadro que ofereci durante a vida toda e aquela pessoa finalmente resolveu ter um quadro desse. Não interessa o que eu estou com vontade de fazer, eu tenho que parir aquilo. Gil resolveu dar uma banana a tudo isso e entrar dentro de si próprio. Não ligar para toda a história dele, a habilidade, a maravilha que é o desenho dele, os nus, que eu sempre também invejei demais. Sempre achei uma coisa incrível a habilidade que Gil tem, e não perdeu – você vê uma cabeça dele, é uma coisa assombrosa. Mas enfim, o aspecto exterior da pintura dele, que já tinha aberto um lugar no mundo, ele resolveu mudar, ele teve a coragem de virar as costas e começar de novo, com toda cultura dele, com todo acervo, e entrar dentro de si. Seja lá a cara de quem ele fez, eu vejo como uma descida aos infernos. É a coragem de se encarar nas
suas horas mais tristes. Nada é gratuito, nenhum traço é gratuito. A gente vê a cada quadro ele se vendo: ele se vê morto, ele se vê cadáver, ele se vê traindo a si mesmo – não só à sua pintura como a todas as convicções que lhe foram postas na cabeça desde criança, e sei lá a que fidelidades. É como se ele jogasse tudo fora e voltasse. Como se ele se tornasse de uma hora para outra, diante do trabalho, um camarada completamente livre, amoral, aético, ateu. Eu vejo o quadro como se ele estivesse dizendo: Isso aqui é um pecado, é uma violência que eu pratico contra a coisa mais delicada que existe dentro de mim. E mesmo assim eu vou fazer isso. Então, tudo isso para mim é uma viagem sem fim por dentro de si mesmo. E pelo lado mais trágico, mais desamparado. Aquelas horas que a gente se desmente e tem coragem de se aniquilar, de se trair. Eu acho até que o que se passou, ou está se passando com Gil, é uma queda muito dentro dele. Ele deve ter tido coragem de tomar uma atitude que até então ele não tinha decisão de assumir. Não é somente uma modificação estética, é uma modificação filosófica, uma modificação que tem a ver com o sagrado que está incutido dentro dele e ele quis pôr à prova, quis destruir, emerdar, avacalhar, quebrar de todas as formas. Não sei se para libertar-se, e também para condenar-se de uma vez por todas e nunca mais ter medo de ser um monstro, de ser um vampiro, de ser um infame. O pintor José Cláudio deu este depoimento de improviso na abertura do debate com Moacir dos Anjos e Marcus Lontra sobre a exposição de Gil Vicente Desenhos (6.7.1999)
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Cronologia
Gil Vicente aos cinco anos, em 1963 Com José Cláudio e Tereza Dourado em 1987, organizando a exposição Saudades
Capa do livro A Mão e o Fuso, de Marilda Vasconcelos de Oliveira, 1988, mãe do artista
1958 – Nasce no Recife, Pernambuco, terceiro dos cinco filhos de Lauro de Oliveira e Marilda Vasconcelos de Oliveira. Seu nome é escolhido pelo avô materno, João Vasconcelos, escritor e crítico literário. A casa é freqüentada por artistas e escritores, e Gil é vivamente incentivado pelos pais a desenvolver seu interesse pela pintura. 1972/1977 – Estuda diversas técnicas de desenho, pintura e gravura sob a orientação de Tereza Carmem Diniz, na Escolinha de Arte do Recife, onde também aprende gravura em metal com José de Barros. Estuda desenho e pintura de observação nos ateliês de extensão do Centro de Artes da UFPE, orientado por Inaldo Medeiros, Lenira Regueira e Isidro Queralt Pratt. Recebe o 1º Prêmio do Salão dos Novos, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco e o 1º Prêmio em Pintura no Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. 1976/1978 – Em seu período de formação, é fortemente influenciado pelos artistas pernambucanos, principalmente José Cláudio e Francisco Brennand. Conclui o segundo grau escolar e dedica-se, desde então, exclusivamente às artes plásticas. Participa, com outros artistas, da fundação da Oficina Guaianases de Gravura (hoje integrada ao Centro de Artes da UFPE), onde convive com artistas mais experientes e produz litografias até 1992. Realiza sua primeira mostra individual no Recife, com pinturas, desenhos e gravuras, na Galeria Abelardo Rodrigues. 1981/1986 – Recebe o Prêmio MEC/Funarte no Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, e estuda na
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Escola de Belas Artes de Paris como bolsista do Governo Francês. De volta ao Brasil, pinta paisagens ao ar livre, semanalmente, com os artistas Gilvan Samico, Luciano Pinheiro e Guita Charifker. Participa do Panorama da Arte Atual Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Realiza retratos, em pintura e desenho, de diversos amigos artistas. Expõe no Rio de Janeiro com Luciano Pinheiro e Maria Tomaselli, a convite do Centro Cultural Cândido Mendes. FLÁVIO LAMENHA
Arte, no Centro Cultural Bandepe. 1997/1998 – Expõe na Galeria Paulo Darzé, em Salvador, e inicia a série de desenhos Sessenta cabeças. Participa da mostra Vista assim do alto mais parece um céu no chão, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, um mapeamento da arte brasileira sob curadoria de Agnaldo Farias. Junto com outros artistas e críticos brasileiros, orienta oficinas no evento Arte em Movimento, no SESC Pompéia, em São Paulo. 1999/2000 – Trabalha durante um mês em Berlin, no workshop Brasil/Alemanha Contrapartida II. Sua exposição individual mais recente, Desenhos, viaja, desde 1997, por diversas instituições e museus brasileiros. A poeta gaúcha Beatriz Viégas-Faria lança o livro Pampa Pernambucano, com poesias e textos inspirados na obra de Gil Vicente. Capa do catálogo da exposição “Guaches Recentes”, 1988
1986/1989 – Viaja aos Estados Unidos, a convite do Governo Americano, para conhecer artistas, instituições e escolas de arte. Integra a equipe que idealiza e edita o Jornal Edição de Arte, tablóide mensal sobre artes plásticas publicado e distribuído profissionalmente durante nove meses. Realiza com José Cláudio a mostra Saudades, com interpretações do quadro homônimo de Almeida Jr., promoção de Tereza Dourado no Museu do Estado de Pernambuco. Ilustra o livro de poesias A Mão e o Fuso, de sua mãe, que recebeu o Prêmio Manuel Bandeira, da UBE. 1989/1996 – Participa do Atelier Coletivo, em Olinda, junto com outros artistas, onde faz xilogravura sob a orientação de Gilvan Samico. Expõe pinturas na Galeria Vicente do Rego Monteiro, da Fundação Joaquim Nabuco, e na Galeria Futuro 25, no Recife. Expõe com o Atelier Coletivo na Dinamarca e na Alemanha. É homenageado na mostra O Papel da
1988 – Guaches Recentes. Galeria Officina, Recife. 1990 – Pinturas. Fundação Joaquim Nabuco, Recife. 1993 – Naturezas Mortas/Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1996 – Figuras/Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1997 – Sessenta Cabeças. Galeria Nara Roesler, São Paulo. 1997 – Pinturas Com Modelo. Paulo Darzé Galeria de Arte, Salvador. 1998 – Sessenta Cabeças e Outros Desenhos. Museu de Arte Moderna da Bahia. 1998 – Sessenta Cabeças e Outros Desenhos. Núcleo de Arte Contemporânea, João Pessoa. 1999 – Desenhos. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1999 – Desenhos. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife. Mostras Individuais 1978 – Pinturas, Desenhos e Gravuras. Galeria Abelardo Rodrigues, Recife. 1980 – Pinturas e Desenhos. Museu de Arte Contemporânea, Olinda. 1982 – Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1983 – Guaches. Edf Galeria de Arte, Belém. 1984 – Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1986 – Paisagens/Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1987 – Pinturas. Duailibe Galeria, Fortaleza. 1987 – Gil Vicente e José Cláudio. Museu do Estado, Recife.
Capa do livro Pampa Pernambucano, de Beatriz Viégas-Faria, 2000
Vídeos 1996 – Gil Vicente – Ofício e Silêncio. Direção de Grima Grimaldi e Paulo Macedônia. Inclui depoimentos de críticos e artistas. Produtora Sincronia. 1997 – Projeto IBM – Encontro Marcado com a Arte – Gil Vicente. Entrevista dirigida por Jorge Brennand Jr. para o canal Bravo-Brasil. Produtora Work Vídeo. 2000 – Arte Contemporânea no Recife. Direção de Cacá Ricalvi. Programa gravado no atelier de Gil Vicente para a série Mundo da Arte, do canal TV Senac.
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Cronologia
Gil Vicente aos cinco anos, em 1963 Com José Cláudio e Tereza Dourado em 1987, organizando a exposição Saudades
Capa do livro A Mão e o Fuso, de Marilda Vasconcelos de Oliveira, 1988, mãe do artista
1958 – Nasce no Recife, Pernambuco, terceiro dos cinco filhos de Lauro de Oliveira e Marilda Vasconcelos de Oliveira. Seu nome é escolhido pelo avô materno, João Vasconcelos, escritor e crítico literário. A casa é freqüentada por artistas e escritores, e Gil é vivamente incentivado pelos pais a desenvolver seu interesse pela pintura. 1972/1977 – Estuda diversas técnicas de desenho, pintura e gravura sob a orientação de Tereza Carmem Diniz, na Escolinha de Arte do Recife, onde também aprende gravura em metal com José de Barros. Estuda desenho e pintura de observação nos ateliês de extensão do Centro de Artes da UFPE, orientado por Inaldo Medeiros, Lenira Regueira e Isidro Queralt Pratt. Recebe o 1º Prêmio do Salão dos Novos, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco e o 1º Prêmio em Pintura no Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. 1976/1978 – Em seu período de formação, é fortemente influenciado pelos artistas pernambucanos, principalmente José Cláudio e Francisco Brennand. Conclui o segundo grau escolar e dedica-se, desde então, exclusivamente às artes plásticas. Participa, com outros artistas, da fundação da Oficina Guaianases de Gravura (hoje integrada ao Centro de Artes da UFPE), onde convive com artistas mais experientes e produz litografias até 1992. Realiza sua primeira mostra individual no Recife, com pinturas, desenhos e gravuras, na Galeria Abelardo Rodrigues. 1981/1986 – Recebe o Prêmio MEC/Funarte no Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, e estuda na
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Escola de Belas Artes de Paris como bolsista do Governo Francês. De volta ao Brasil, pinta paisagens ao ar livre, semanalmente, com os artistas Gilvan Samico, Luciano Pinheiro e Guita Charifker. Participa do Panorama da Arte Atual Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Realiza retratos, em pintura e desenho, de diversos amigos artistas. Expõe no Rio de Janeiro com Luciano Pinheiro e Maria Tomaselli, a convite do Centro Cultural Cândido Mendes. FLÁVIO LAMENHA
Arte, no Centro Cultural Bandepe. 1997/1998 – Expõe na Galeria Paulo Darzé, em Salvador, e inicia a série de desenhos Sessenta cabeças. Participa da mostra Vista assim do alto mais parece um céu no chão, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, um mapeamento da arte brasileira sob curadoria de Agnaldo Farias. Junto com outros artistas e críticos brasileiros, orienta oficinas no evento Arte em Movimento, no SESC Pompéia, em São Paulo. 1999/2000 – Trabalha durante um mês em Berlin, no workshop Brasil/Alemanha Contrapartida II. Sua exposição individual mais recente, Desenhos, viaja, desde 1997, por diversas instituições e museus brasileiros. A poeta gaúcha Beatriz Viégas-Faria lança o livro Pampa Pernambucano, com poesias e textos inspirados na obra de Gil Vicente. Capa do catálogo da exposição “Guaches Recentes”, 1988
1986/1989 – Viaja aos Estados Unidos, a convite do Governo Americano, para conhecer artistas, instituições e escolas de arte. Integra a equipe que idealiza e edita o Jornal Edição de Arte, tablóide mensal sobre artes plásticas publicado e distribuído profissionalmente durante nove meses. Realiza com José Cláudio a mostra Saudades, com interpretações do quadro homônimo de Almeida Jr., promoção de Tereza Dourado no Museu do Estado de Pernambuco. Ilustra o livro de poesias A Mão e o Fuso, de sua mãe, que recebeu o Prêmio Manuel Bandeira, da UBE. 1989/1996 – Participa do Atelier Coletivo, em Olinda, junto com outros artistas, onde faz xilogravura sob a orientação de Gilvan Samico. Expõe pinturas na Galeria Vicente do Rego Monteiro, da Fundação Joaquim Nabuco, e na Galeria Futuro 25, no Recife. Expõe com o Atelier Coletivo na Dinamarca e na Alemanha. É homenageado na mostra O Papel da
1988 – Guaches Recentes. Galeria Officina, Recife. 1990 – Pinturas. Fundação Joaquim Nabuco, Recife. 1993 – Naturezas Mortas/Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1996 – Figuras/Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1997 – Sessenta Cabeças. Galeria Nara Roesler, São Paulo. 1997 – Pinturas Com Modelo. Paulo Darzé Galeria de Arte, Salvador. 1998 – Sessenta Cabeças e Outros Desenhos. Museu de Arte Moderna da Bahia. 1998 – Sessenta Cabeças e Outros Desenhos. Núcleo de Arte Contemporânea, João Pessoa. 1999 – Desenhos. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1999 – Desenhos. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife. Mostras Individuais 1978 – Pinturas, Desenhos e Gravuras. Galeria Abelardo Rodrigues, Recife. 1980 – Pinturas e Desenhos. Museu de Arte Contemporânea, Olinda. 1982 – Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1983 – Guaches. Edf Galeria de Arte, Belém. 1984 – Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1986 – Paisagens/Pinturas. Galeria Futuro 25, Recife. 1987 – Pinturas. Duailibe Galeria, Fortaleza. 1987 – Gil Vicente e José Cláudio. Museu do Estado, Recife.
Capa do livro Pampa Pernambucano, de Beatriz Viégas-Faria, 2000
Vídeos 1996 – Gil Vicente – Ofício e Silêncio. Direção de Grima Grimaldi e Paulo Macedônia. Inclui depoimentos de críticos e artistas. Produtora Sincronia. 1997 – Projeto IBM – Encontro Marcado com a Arte – Gil Vicente. Entrevista dirigida por Jorge Brennand Jr. para o canal Bravo-Brasil. Produtora Work Vídeo. 2000 – Arte Contemporânea no Recife. Direção de Cacá Ricalvi. Programa gravado no atelier de Gil Vicente para a série Mundo da Arte, do canal TV Senac.
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FLÁVIO LAMENHA
Uma descida aos infernos Diagonal de Pedro, 1999, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
Cada quadro de Gil é como se ele dissesse: isso é uma violência que eu pratico contra o que há de mais delicado em mim. E mesmo assim eu faço
A
José Cláudio
cho que já disseram que todos os retratos de Gil são auto-retratos. Ele pode ter tirado até de figurinha de sabonete Eucalol, pode ter tirado de revista, de fotografia de jornal, mas o que importa é que é sempre auto-retrato de Gil. Eu acho que Gil teve essa coisa que eu invejo loucamente. Hoje eu sou o cara velho, que é vítima de si próprio, que passa a vida oferecendo coisas ao público e tem uma hora que o público cobra. Então, sem querer, ele está inventando um monstro que vai devorá-lo. Eu agora estou sendo devorado por esse monstro que eu mesmo inventei. As pessoas já vêm a mim querendo um quadro que ofereci durante a vida toda e aquela pessoa finalmente resolveu ter um quadro desse. Não interessa o que eu estou com vontade de fazer, eu tenho que parir aquilo. Gil resolveu dar uma banana a tudo isso e entrar dentro de si próprio. Não ligar para toda a história dele, a habilidade, a maravilha que é o desenho dele, os nus, que eu sempre também invejei demais. Sempre achei uma coisa incrível a habilidade que Gil tem, e não perdeu – você vê uma cabeça dele, é uma coisa assombrosa. Mas enfim, o aspecto exterior da pintura dele, que já tinha aberto um lugar no mundo, ele resolveu mudar, ele teve a coragem de virar as costas e começar de novo, com toda cultura dele, com todo acervo, e entrar dentro de si. Seja lá a cara de quem ele fez, eu vejo como uma descida aos infernos. É a coragem de se encarar nas
suas horas mais tristes. Nada é gratuito, nenhum traço é gratuito. A gente vê a cada quadro ele se vendo: ele se vê morto, ele se vê cadáver, ele se vê traindo a si mesmo – não só à sua pintura como a todas as convicções que lhe foram postas na cabeça desde criança, e sei lá a que fidelidades. É como se ele jogasse tudo fora e voltasse. Como se ele se tornasse de uma hora para outra, diante do trabalho, um camarada completamente livre, amoral, aético, ateu. Eu vejo o quadro como se ele estivesse dizendo: Isso aqui é um pecado, é uma violência que eu pratico contra a coisa mais delicada que existe dentro de mim. E mesmo assim eu vou fazer isso. Então, tudo isso para mim é uma viagem sem fim por dentro de si mesmo. E pelo lado mais trágico, mais desamparado. Aquelas horas que a gente se desmente e tem coragem de se aniquilar, de se trair. Eu acho até que o que se passou, ou está se passando com Gil, é uma queda muito dentro dele. Ele deve ter tido coragem de tomar uma atitude que até então ele não tinha decisão de assumir. Não é somente uma modificação estética, é uma modificação filosófica, uma modificação que tem a ver com o sagrado que está incutido dentro dele e ele quis pôr à prova, quis destruir, emerdar, avacalhar, quebrar de todas as formas. Não sei se para libertar-se, e também para condenar-se de uma vez por todas e nunca mais ter medo de ser um monstro, de ser um vampiro, de ser um infame. O pintor José Cláudio deu este depoimento de improviso na abertura do debate com Moacir dos Anjos e Marcus Lontra sobre a exposição de Gil Vicente Desenhos (6.7.1999)
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FLÁVIO LAMENHA
Beatriz Viégas-Faria
Teste de Anatomia, 1999, óleo sobre tela (76 x 58cm)
O Gil Vicente que assinala este final de milênio é um artista que está pontuando sua obra a partir de uma leitura crítica e sincrônica dos seus pais espirituais. E, ao fazê-la, está recriando a “Escola Pernambucana de Pintura” (assim como outros no passado mais recente ou mais distante fizeram-na); por conseguinte, os conceitos de Tradição e Região que a balizam. A Tradição para ele não é mais a do mundo que o português, o negro e o índio criaram, mas a do mundo que o Homem, através das suas ações e paixões, vem edificando. Este mesmo Homem, de maneira penosa e solitária, vem, nos dias que se seguem, tentando construir alguma nova utopia para continuar a dar ao seu mundo algum sentido. A Região, no caso, continua a ser o espaço íntimo, seja ele cultural ou afetivo, donde não podemos escapar. Por mais que pensemos no Homem sempre com “H” maiúsculo, no seu sentido universal, ele só se torna um ser substantivo, e não um ente abstrato, quando olhamos para aquele que está ao nosso lado – seja ele o vizinho, o amigo ou o que habita a nossa casa – e, diante das suas alegrias e tristezas, conseguimos desenvolver algum tipo de empatia por ele. Mas retornemos a Raïssa Maritain e à epígrafe que abre esse texto. Parafraseando-a, o que lemos, ouvimos e vemos faz parte de nossas vidas, e o que fazemos com nossa vida pode justificar tudo que com ela aprendemos. É o que nos parecem ensinar os belos poemas de Beatriz e os quadros de Gil, e também a amizade que ambos construíram a partir de elementos que vão além das fronteiras regionais: as ações e as paixões do homem.
É onírica, é pesadelo de Goya a desejada visita
Anco Márcio Tenório Vieira é crítico literário
(do livro Pampa Pernambucano, inspirado na obra de Gil Vicente. Porto Alegre: Uniprom, 2000)
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A visita, 1998, nanquim sobre papel (153 x 171cm)
Desde um abraço sonhado desde meu calor epidérmico deste teu forte rubor Enfim! vem o sono da razão despertar-nos a carne São dois o mesmo desejo, é de ambos o mesmo sonho ficando dentro de um quadro A visita, que se dorme sem querer, querida, detém-se na composição, estrutura que então se perpetua e fascina para não se concretizar. Mas instalam-se na pele minha excitada impressão digital tua impressionada excitação genital que se acabam em águas mornas quando nos acordamos eu em minha cama tu na tua Nessa líquida fronteira entre sono e vigília percebemos, ainda quente, pergunta perfumada no ar: Quem visitou quem?
Tempos de amanhãs
E
xpectantes amanhãs de belas manhãs. Manhãs de esperanças, de aconchegos. Janeiros amanhecidos já ensolarados e temperados pelo abafado calor predecessor de chuvas aliviantes; das mangas açucaradas enfeitando quintais; dos vovôs e vovós balançantes nas cadeiras da saudade; de comportamentos recicláveis; das saudáveis lembranças de outros janeiros de muitos verões. Ah! Saudosos janeiros dourados da metade do último século – de uma geração de jovens corajosos que pensavam e liam, abordando, irreverentes, o futuro do país com a destreza dos sábios e a alegria sem lenços, sem documentos. Somos renovadores da nova era. Não com as cavilosas lucubrações sombrias sobre o tempo de atentarmos para os novos tempos que advirão pela magia do calendário da imaginação. Entendamos um janeiro de outro século, de outro milênio, como se não fosse mais um mês de dias comuns. Que se danem os atropelos dos irrefletidos; as provações do destino; as sinucas de bico; a violência dos homens; as idiotices dos incapazes; as caras lisas e lavadas de choramingos; os amores não correspondidos; as traições daqueles que se dizem amigos; os que não sabem o que dizem; os bandoleiros de gravatas – estorricados de maldade; os efeitos maléficos de programações televisivas que só destroem a instituição familiar. Que as bestas tirânicas de qualquer canto do mundo se percam na desolação. Que vão às favas os invejosos que nunca vencerão, os despreparados e os intelectuais confeitados. Para o inferno os ladrões da Nação, das idéias, da cidadania, dos sonhos infantis nunca sonhados pelos menores errantes nas vielas do abandono. Abominemos as guerras que prenunciam outras guerras; as fanáticas brigas étnicas e religiosas por terras e conceitos extraídos de hábitos remotos de civilizações esquecidas. Uma porção do mundo vive arengando por qualquer motivo, reservando para a humanidade uma virada de século e de milênio com tão pouco humanismo.
E vejam que o céu nos afaga com seu infinito; o perdão ainda nos despeja o consolo da luta pela paz. Os mistérios de Mântua, por certo, serão revelados, e Shakespeare gritará rouco o barulho do nada, fazendo lembrar do apogeu monárquico, espelhado por Luís XIV, sob o magistério espiritual de Bossuet, reforçando a doutrina da soberania que apenas traz o bestial absolutismo (pelo favor excepcional das circunstâncias). Creio em Deus; no conhecimento; na elevação espiritual; na flor que nos encanta; no sorriso de uma criança e na vida extraterrena. Desprezo os que nunca sabem o que fazer nem como viver. Sendo minha intenção escrever coisas proveitosas para quem as entenda, pareceu-me mais conveniente pensar em Maquiavel e seguir a verdade efetiva, de fato (veritá effectuale), da coisa, mais do que a sua imaginação. Por isso, a enorme dívida que temos para com o príncipe de Florença e alguns poucos, como Francis Bacon, que descreveram o que o homem faz, e não o que deveria fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente à inocência da pomba, quando não se conhece exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o seu dardo. Livrai-nos, pois, Senhor, de traumas e de tremas; do vento atômico; da língua dos iletrados; dos maus políticos, seus risos, suas manias; da velha droga que vicia o moço; do jacobinismo de todos que se acham estadistas; das bandas de pagodes; da justiça que tarda e sempre falha; do fim do mundo; dos cachimbentos tecnocratas; da pressa dos historiadores; dos pastores universais; do enterro de segunda mão; da menina puritana que tem um pai que é uma fera; da ingratidão; das elites hipócritas e dos oportunistas sem terras; dos donos do mando, dos mísseis e da lama; da mentira; e das doenças, para nos livrar dos médicos. Viva 2001! Viva a liberdade! Vivam as mulatas no compasso do frevo! Vivam as Marias concebidas de pecados! Viva o avesso! Vivam as famílias de boa vontade! Vivam a música e as letras! Vivam as amizades! Viva o amor! Viva o amanhã! Vivam todos os vivas!...
Rivaldo Paiva - escritor Continente Multicultural 95
ÚLTIMAS PALAVRAS
FLÁVIO LAMENHA
Visitas noturnas
FLÁVIO LAMENHA
nem eles mesmos saibam o que seja. É uma solidão tão vasta que parece ultrapassar os limites da metrópole, estendendo-se às regiões mais ermas da terra (“Paisagem”). Podemos dizer que essa solidão já está presente nos óleos sobre telas “A Cega”, “Contraluz”, “Homem apoiado na mesa” e “Mulher sentada perto da mesa”. Mas nenhum desses quadros, acredito, consegue ser tão violento no que retrata como os trabalhos que formam Sessenta cabeças e outros desenhos. Como quer Beatriz Viégas-Faria, numa alusão a Gonçalves Dias, talvez o que vemos em todos esses rostos seja a tradução de uma saudade – “Que saudade tenho eu/ de minha terra pernambucana/ das curvas insanas, de um verde indefinido, em todos os seus sons –/ nestes ecoava um sentido e uma, e duas, e três vezes/ a palavra linda também” (“Banzo”). Tanto neste poema como em outros versos de Beatriz podemos notar que o olhar sombrio de Gil sobre o tempo que lhe é presente toma outras cores e tons. O que na tela pode ser um gozo acompanhado de muita dor e aparente violência, como nos parece ser o caso de A Visita, no poema de Beatriz, lemos que “é onírica/ é pesadelo de Goya/ a desejada visita”. Visita que o narrador conclui com uma indagação: “Nessa líquida fronteira/ entre sono e vigília/ per-
Gil Vicente conseguiu construir sua obra superando a atitude autofágica que caracteriza ou caracterizou o trabalho de seus contemporâneos e precursores cebemos, ainda quente,/ pergunta perfumada no ar:/ Quem visitou quem?” (“Visitas noturnas”). A aparente violência retratada no papel é, na leitura de Beatriz, diluída pelo desejo que une o homem à mulher. Noutro desenho – Sem título – vemos o rosto de um jovem dormindo. Aqui, os traços de Gil são densos, como quem tenta denunciar a tensão de um sono pouco tranqüilo, um pesadelo que só é possível ser visto pelas contrações dos músculos da face. Para Beatriz, nem pesadelo nem tensão, somente o sono de um Narciso exibicionista, que dorme cansado porque seu “[...] criador, exibido/ esqueceu de te olhar” (“Exibicionismo 1”). E aqui podemos perguntar: qual criador? Deus ou Gil? Por fim, o nanquim sobre papel que Gil Vicente intitulou de Paisagem: o que para nós pareceu ser uma desolada paisagem localizada em qualquer ponto da terra é, nos versos de “Repercussão na paisagem urbana”, apenas uma cena campestre que vai sendo observada a partir de um carro em movimento, numa auto-estrada. Ao fato aparentemente corriqueiro, é acrescentada uma chuva que insistentemente bate no veículo, conduzindo o narrador dos versos a lembrar os problemas pessoais e urbanos que o afligem: os pivetes que limpam o pára-brisa do carro, a menina que seduz o seu motorista, o seu exercício de musculação ou o novo batuque que pode nascer dos sons que vêm dos pingos da chuva. Depois desse longo percurso, poderíamos repetir a pergunta que fizemos no começo deste texto: o que levou Beatriz a se inspirar nas telas de Gil para compor os seus poemas? Acredito que as perguntas que pontuam a obra de Gil parece que são as mesmas que incomodam Beatriz: a pressa alienante do dia-a-dia; a solidão que parece não poder ser compartilhada nem entendida pelo outro; os incômodos desejos que não podem ser preteridos; ou uma vontade de retornar para algum lugar, que tanto pode ser a casa – universo que acreditamos dominar – quanto uma introspecção sobre si mesmo. Continente Multicultural 89