Continente #002 - Carnaval

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CONTEÚDO

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Pré-História Nordeste 10.000 a.C. Pinturas rupestres e objetos em sítios arqueológicos sugerem como eram e viviam os primeiros brasileiros

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Capa: foto de caboclinho por Luiz Santos / Tempo d’Imagem

Brasil holandês

Marco zero

Revelações & polêmica

O homem que calculava

Imagens inéditas, o papel das mulheres durante a ocupação, a (polêmica) tradução de Tempo dos Flamengos e um cemitério judeu no Recife

Relato de uma conversa com Joaquim Cardozo, na qual o poeta-engenheiro fala de literatura, mangas, cajus e da Física aristotélica

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Século 21

Vida literária

O direito à cultura

O drama do exílio

No Brasil, embora a manutenção da cultura seja pública, como tudo o que chamamos de público, ela é de fato privada

Escritores expatriados enfrentam os fantasmas da irrealidade e do estranhamento, para os quais buscam a “cura” na criação literária

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Lição de arte

72 76

Entremez

Roberto Lúcio A abstração significativa do artista que buscou, nos parques de diversão populares, a inspiração para uma obra em constante experimentação

Memória virtual

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FLÁVIO LAMENHA

Uma reflexão sobre o conhecimento documentado e a responsabilidade de cada um sobre a narrativa da humanidade

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Um lugar Resistência de um bairro Um passeio impressionista pelo bairro de São José, no Recife, onde o choque entre antigo e moderno assume tons dramáticos

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Um personagem As memórias de Melquisedec Pastor do Nascimento, de uma infância pobre no bairro do Bongi, em Recife, à fama como livreiro

Sabores pernambucanos Banquete de Momo No Carnaval, pratos consistentes e muito gordos fazem a festa de quem não quer brincar o tempo todo

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A corte dos anônimos

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Últimas palavras De café e livros Um encontro entre Affonso de Taunay, do Instituto Brasileiro do Café, e Augusto Meyer, do Instituto Nacional do Livro, ilustra as incoerências do país

Mil palavras Ensaio fotográfico capta a ambivalência da corte de foliões de Carnaval, festa que para Raul Lody encarna a vingança histórica dos oprimidos

Cabeça-de-Rui-Barbosa

96 LUIZ SANTOS

Página 42

Crônica Mestre em vexames O poeta João Cabral de Melo Neto é vítima de um repórter iniciante com experiência em cometer gafes

70 Página 58


Expediente Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Gerente Executivo Lairton Cruz Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira Arte Luiz Arrais Editoração Eletrônica André Fellows Ilustrador Lin Colaboradores desta edição: Alberto da Cunha Melo, Camilo Soares, Celso Oliveira, Eduardo Queiroga (Lumiar), Fernando Monteiro, Flávio Lamenha, Geneton Moraes Neto, Ivana Borges, José Luiz Mota Menezes, Leonardo Dantas Silva, Luzilá Gonçalves Ferreira, Luiz Santos, Maarten van de Guchte, Elpídio Suassuna, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Marcos Galindo, Mascaro, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Pio Figueiroa, Raul Lody, Roberta Guimarães (Imago), Roberto Rômulo, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Sávio Araújo, Vandeck Santiago, Zuleide Duarte Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Elizabete Correia, Emmanoel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto,Rafael Rocha, Roberto Bandeira, Sílvio Mafra e Zenival

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE CEP 50100-140 Circulação e assinaturas Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 fone/fax: (81) 3222.4130 e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095

2 Continente Multicultural

Cartas Finalmente chegou uma revista pernambucana que vem corresponder aos anseios de quem gosta de cultura, de quem quer se atualizar e enriquecer sempre, enfim uma revista inteligente e completa. Sandro Silveira – Recife – PE A maior qualidade da revista são a concisão e a apresentação gráfica. Sugiro a abordagem de temas da História do Brasil e da América Latina, incluindo o imaginário, a religiosidade, o público e o privado, além dos movimentos sociais e das culturas de resistência. Walda Mota Weine – Fortaleza – CE O ponto alto da revista é a identidade gráfico-temática. Gostaria de sugerir uma matéria com o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho e também reportagens sobre a cultura judaica em Pernambuco. Outros temas interessantes são o resgate histórico da experiência do Gráfico Amador e, ainda, os movimentos sebastianistas, como a Pedra do Reino. Eduardo Henrique Alves da Silva – Recife – PE Gostei muito da entrevista com o poeta Ferreira Gullar, no número 0. A melhor qualidade da revista está na fotografia e no conteúdo. Gostaria que fossem abordados assuntos relacionados ao folclore nordestino. Márcia Borborema – Olinda – PE Através do professor e grande poeta Márcio Lima Dantas, da nossa UFRN e editor-contribuinte da revista virtual que edito aqui, tomei conhecimento de Continente Multicultural, que muito nos encantou pelo design e conteúdos que fogem ao provincianismo... Gostaria de estabelecer uma parceria entre sua revista e a nossa (Navegos, que recentemente tiramos do ar para submetê-la a uma reforma, mas logo voltaremos inclusive com sala de bate-papo). O que acha dessa idéia? Franklin Jorge – Natal – RN Li os Nºs 0 e 1 de Continente Multicultural e, sinceramente, fiquei agradavelmente surpreendido, com forma e conteúdo. Isso é que é globalização... das boas! Como dizia Millor Fernandes, livre pensar é só pensar. Pra frente com a viga, moçada. E ponham o teatro pernambucano, brasileiro, ibérico na pauta. Um abraço, Eduardo de Castro – Recife – PE


EDITORIAL

A ligação entre o homem de hoje e o mais remoto

N

atureza e cultura são pares tão complexos quanto necessidade e acaso. De um e de outro dependem os homens ávidos desde que se descobriram pensantes e tentam respostas para a sua origem e a criação das coisas. Cada vez que aprende mais sobre isso mais parece haver conexão entre o que se pensa hoje ser a humanidade e o que supõe terem sido os começos disto ou, nas melhores palavras de Jeremy Campbell: "As idéias a respeito das origens da cultura e, por conseguinte, acerca do desenvolvimento do intelecto humano, estão em um período de rápida transformação. À medida que começa a dissipar-se um pouco a névoa da pré-história, vemos que a cultura é extremamente antiga, e remonta talvez há uns três milhões de anos, até o tempo do Australopithecus, símio humanóide que acaso tivesse alguns lampejos de simbolismo. Uns calhaus encontrados próximos dos restos de australopitecus têm gravadas umas marcas naturais, que se assemelham a rostos. O homo habilis, o fabricante de ferramentas que viveu nas planícies entre dois milhões e dois milhões e quinhentos mil anos, talvez fosse capaz de certas formas de rito". Menos importante que a exatidão das datas – sempre motivo de discussão entre os especialistas – é a certeza de que há uma conexão plena, uma ligação íntima entre o homem de hoje e o mais remoto. Não que o outro seja ancestral deste, são os mesmos homens. O que empunha o primeiro osso e inventa o fogo – como já o provara magnificamente o filme 2001, uma Odisséia no Espaço – é o mesmo que pilota naves, escreve sobre elas e as põe numa coisa de luz chamada cinema. O começo do novo Milênio – os homens (tão seres para a morte, como queriam os existencialistas) amam ritos de princípios e cosmogonias – é um ótimo pretexto para investigar o tempo antes do convencionalismo do tempo. Como viviam esses homens antes de ideologizarem o simples feito de serem homens. Não os homens de Altamira ou Lascaux, não os europeus ou os africanos ou os asiáticos, mas os nordestinos, os primeiros severinos, os nômades de muitos e muitos antanhos. Um pouco da natureza e da cultura deles pode ser apreendida na reportagem de capa, que homenageia os cientistas que investigam as entranhas da terra e reencontram os primeiros brasileiros. Conhecendo o que é possível conhecer deles talvez caiba a cada um dizer, como Miguel Hernandez: "Me enorgullece el título de animal en mi vida,/ pero en el animal humano perservero." REPRODUÇÃO


ESPECIAL

Vestígios da Pré-História


ROBERTA GUIMARÃES / IMAGO

Pinturas rupestres dão pistas sobre a vida dos primeiros brasileiros

O

Nordeste abriga em seu território alguns dos tesouros mais antigos do Brasil. Talvez até das Américas. Uma riqueza desconhecida por muitos, às vezes ameaçada de destruição por ignorância e falta de cuidado. Nem ouro nem prata, tampouco navios naufragados – algo de importância bem maior: vestígios de um passado muito remoto, que auxiliam a busca para se descobrir quem éramos, como éramos e de onde viemos. Trata-se do acervo pré-histórico da região, diversificado, em grande quantidade, de importância mundial. Pinturas rupestres com milhares de anos, artefatos, vestígios dos primeiros nordestinos, dos primeiros brasileiros. – Está no Nordeste a maior concentração de abrigos com arte rupestre do mundo – diz a doutora em Arqueologia Gabriela Martin, que nos últimos 30 anos vem pesquisando a Pré-História da região. Estamos no apartamento dela, em Boa Viagem – eu, Mário Hélio e Anne-Marie Pessis, uma francesa doutora em Antropologia Visual e Doutora de Estado em Pré-História e há 20 anos também embrenhada no estudo da Pré-História nordestina. Antes de ir parar naquela conversa eu havia lido uma série de textos sobre o assunto e minha cabeça estava cheia de dúvidas, ignorâncias, preguiças gigantes, tigres de dente de sabre, esqueletos com mais de 10 mil anos, cenas iniciais do filme 2001, a vida dos ancestrais nordestinos, uma confusão dos diabos. Foi por isso que me espantei quando ela falou "do mundo". Teria ouvido direito? – Do mundo? – insisti. Queria certificar-me, poderia haver algum engano, talvez não tenha entendido direito. O assunto é muito específico, dá margem a esse tipo de equívoco, e eu não queria entrar naquele imenso cordão de gente que é capaz de tudo (até de forçar a verdade) para aumentar os méritos da região. – É, do mundo – repete ela. – E não é por brasileirismo, americanismo que digo isso. É um fato científico. Detalhe: Gabriela é espanhola. Casada com um brasileiro. Autora do livro Pré-História do Nordeste do Brasil (Editora Universitária/UFPE), uma síntese

Cena de luta, Rio Grande do Norte

Vandeck Santiago Continente Multicultural 5


ROBERTO RÔMULO

Gabriela Martin: arqueóloga estuda região há 30 anos

fogueiras que remontam a quase de 440 páginas, a primeira, de tudo que de importante existe sobre Está no Nordeste 50.000 anos. O homem teria estaali, portanto, muito antes. E o assunto, até então restrito a pubrasileiro a maior do para chegar necessariamente não blicações específicas. concentração de precisaria ter viajado pelo estreito, Bem escrito, com estilo, embora ainda um manual voltado abrigos com arte poderia tê-lo feito por outras vias. O continente americano é muipara arqueólogos e estudantes de Arqueologia – o que, ressalve-se, rupestre do mundo to extenso, não é possível que seu povoamento tenha-se dado só por não torna a leitura impossível para quem acha que a Era Glacial é apenas alguma marca um caminho – a defensora mais ressonante dessa tese de sorvete. Nenhum outro mérito tivesse este livro, é a arqueóloga paulista Niède Guidon, de 67 anos, teria o de haver enumerado e reunido a Pré-História que desde 1970 está à frente das pesquisas na Serra da Capivara. É uma guerreira – vem desde então da região, com nome, endereço e data. O livro está na terceira edição (a primeira saiu em enfrentando o, com o perdão da palavra, establishment 1996). A autora prepara agora um outro enfocando a arqueológico norte-americano e parte do brasileiro, na Pré-História no Brasil, este dirigido ao grande públi- defesa de suas teses. E criando uma obra que não é só co, sem o jargão arqueológico (Ver box na página 20). acadêmica: em 1998 inaugurou o Museu do Homem Americano, em São Raimundo Nonato (PI), Povoamento das Américas região em que fica a Serra da Capivara – que é um Outro dado de repercussão mundial, em relação Parque Nacional de 130 mil hectares, tornado paà Pré-História nordestina, é que a região é a base de trimônio cultural da humanidade em 1991. Na área uma teoria que defende ter a ocupação das Américas existem 420 sítios arqueológicos. Em suas diversas acontecido muito antes do que se supõe hoje, e por grutas encontram-se pinturas rupestres que podem vias diferentes da que hoje é considerada como única. até ser mais antigas do que as das cavernas mais O que se encontra estabelecido é que o povoa- famosas do mundo, a de Altamira (na Espanha) e de mento das Américas começou há 12.000 anos, com Lascaux (França). O local hoje é referência mundial levas de antepassados dos índios atuais. Eles teriam para a Arqueologia, independentemente da polêmica vindo de uma região entre a Mongólia e a Sibéria e sobre a datação dos seus achados. A idéia de o povoamento americano ter aconteatravessado o estreito de Bering (entre os extremos da Ásia e da América). A viagem teria acontecido por cido antes da barreira dos 12.000 anos ainda enfrenta muita resistência. As objeções que se fazem uma ponte de gelo formada na última era glacial. Doze mil anos, estreito de Bering – é o que se contra os vestígios mais antigos encontrados no encontra nas enciclopédias. Pois bem, na Serra da Piauí é que eles podem ser resultado de processos Capivara (PI), foram encontradas estruturas de naturais. Para os defensores dessa corrente, falta o 6 Continente Multicultural


elo que comprove a presença do homem naquela área, antes daquele período. Falta, por exemplo, um esqueleto humano. Nenhum resto humano até hoje encontrado no Brasil tem idade superior a 12.000 anos. No Nordeste o mais antigo tem perto de 10.000 anos – é o de uma mulher, encontrado em escavações na Serra da Capivara. O dado em si, porém, não contradiz as evidências da ocupação humana em datas muito anteriores aos achados ósseos, considera Gabriela. Não é só para comprovar a presença do homem naquele local, em determinado momento histórico, que o esqueleto humano é importante. Por meio de amostras retiradas deles é possível chegar-se ao perfil cultural do grupo ao qual ele pertencia. Sua alimentação, longevidade, traços de sua vida cotidiana e até moléstias que sofreu. Alguns problemas que existem para a descoberta de esqueletos, enumerados por Gabriela: "As terras ácidas existentes no solo brasileiro e as grandes áreas do trópico úmido pouco propício à conservação de ossos, os ritos de incineração dos cadáveres, a pouca densidade demográfica e a falta de pesquisa".

dessa época são estudados também em toda a região. Vestígios pré-históricos com datações em torno de 10.000 anos já foram encontrados na Bahia, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte. No Rio Grande do Norte realiza-se um trabalho que segue os passos do que acontece no Piauí, com a criação da Fundação do Seridó, presidida por Gabriela. O cemitério mais antigo encontrado na região, até agora, também fica neste Estado, no município de Carnaúba dos Dantas, numa localidade conhecida como Pedra do Alexandre. Lá se encontrou um enterramento de crianças com tempo superior a 9.000 anos. No município de Souza (PB) há o Vale dos Dinossauros, que se orgulha de ser "um dos sítios paleontológicos mais importantes do mundo". Os números que justificam isso: 505 trilhas de dinossauros, 51 espécies identificadas e 61 camadas sedimentares com pegadas do animal. A Paraíba tem em seu território também a mais famosa gravura rupestre do Brasil, a da Pedra do Ingá, no município de Ingá, a 37 km de Campina Grande. É um grande painel, feito em um bloco de

Ação cerimonial, Rio Grande do Norte

O povoamento das Américas é o tipo de polêmica que só o tempo, e novas descobertas, hão de resolver. Na área da Arqueologia a polêmica está sempre à espreita. No exato momento em que escrevo esta matéria, por exemplo, chegam notícias dando conta de contestações à tese hoje universalmente aceita de que o homem surgiu na África. Um grupo de pesquisadores australianos considera que, pelo menos na Oceania, a história pode ter sido diferente. A análise de DNA de um fóssil australiano de cerca de 60 mil anos (batizado de Homem de Mungo, por ter sido descoberto num lago que leva este nome, em 1974) não encontrou nele "evidências de origem africana". Mas é uma discussão ainda embrionária, com muito tempo e debate pela frente. Voltemos ao Nordeste, que tem assunto de sobra para nos ocupar. Outros Estados O Piauí concentra, hoje, a parte mais volumosa da Pré-História nordestina, mas sinais e registros

granito, que mede 24 metros de comprimento por 3 de altura. Fica à beira do riacho Ingá do Bacamarte. A presença humana nesse Estado já foi datada de 7.000 anos antes dos tempos presentes. Os desenhos são enigmáticos e, certamente por isso, têm-se prestado às interpretações mais fantasiosas. "Nenhuma inscrição rupestre foi tema de tanto interesse para eruditos e pseudocientistas como a Itaquatiara de Ingá", escreve Gabriela (Itaquatiara, em Tupi, significa Pedra Pintada). Apesar disso, porém, acrescenta a autora, até agora não houve "pesquisas completas feitas por arqueólogos profissionais que, isolando as fantasias de que fora objeto desde o século passado, procurassem inseri-la na Pré-História do Brasil como mais uma manifestação do mundo simbólico indígena". O homem pré-histórico nordestino é o ancestral direto dos índios de hoje. Já houve quem a considerasse obra de fenícios e gregos. Existe ainda outra explicação que vê nas suas gravuras origens na escrita da Ilha da Páscoa, Continente Multicultural 7


Gravura em pedra representando figura humana, Petrol창ndia (PE)


ROBERTA GUIMARÃES / IMAGO

"e outras afirmativas não menos fantasiosas", lamenta Gabriela. "A verdade é que os grafismos não oferecem nenhuma explicação fácil e lógica e é até possível que a sua finalidade fosse precisamente essa", escreve ela em seu livro. Em Sergipe, no sítio arqueológico do Justino (município de Canindé), foi localizado um dos mais densos cemitérios indígenas do Brasil, com a localização de cerca de 200 esqueletos, entre completos e incompletos. É a maior necrópole indígena do Nordeste. Em Pernambuco há registros da presença do homem pré-histórico em municípios próximos ao rio São Francisco, como Petrolina e Petrolândia, e em outros, como Afogados da Ingazeira, Arcoverde, Bom Jardim, Brejo da Madre de Deus, Buíque, Iati, Salgueiro, Santa Cruz do Capibaribe, Serra Talhada, Taquaritinga do Norte, Toritama, Venturosa e Vertentes. Em Pernambuco destacam-se o abrigo do Letreiro do Sobrado (Petrolândia), onde existe um

"painel de gravuras rupestres ocupando uma superfície de 12 metros de comprimento"; a Furna do Estrago, cemitério indígena localizado em Brejo da Madre de Deus, e o sítio Chã do Caboclo, em Bom Jardim. É mais no Sertão e Agreste que se encontram vestígios das ocupações pré-históricas no Nordeste. No litoral os dados confiáveis que existem são em pequena quantidade: aparecem no Maranhão e Rio Grande do Norte. Muito provavelmente há sinais da presença do homem pré-histórico na área, mas que, com o tempo, devem ter sido submersos. O que se tem descoberto até agora já é suficiente para mostrar a riqueza arqueológica do Nordeste – mas significa muito pouco diante do que ainda se tem para explorar. A região tem mais de 1,5 milhão de quilômetros quadrados. Um território imenso que deve estar guardando em suas entranhas as respostas, ou pelo menos fragmentos delas, para as perguntas com que esta matéria e tudo o mais começa: Quem éramos, como éramos, de onde viemos?

Cena de sexo, Rio Grande do Norte

Quem tem medo da preguiça gigante? O cotidiano do nosso homem pré-histórico

P

ra começo de conversa: imagine sair de casa e deparar-se com um animal que, apoiado nas patas traseiras, poderia ficar com quatro metros de altura. Esta possibilidade era um dado real no cotidiano do homem pré-histórico nordestino, em determinadas áreas. O bicho que atingia esse tamanho era a preguiça gigante. Outros com os quais os nossos ancestrais deveriam tomar cuidado: o tigre dente-de-sabre, que fa-

zia jus ao nome, porque tinha presas de até 20 centímetros, e atingia uma vez e meia o tamanho de um leão dos dias de hoje; e o mastodonte, espécie de avô dos elefantes, mas peludo. A principal obrigação do nordestino dessa época era permanecer vivo. Ele procurava somente sobreviver, conservar o que tinha – o que era uma característica do homem pré-histórico em geral. Vivia da caça, pesca e frutos silvestres, que colhia das árvores. Andava em pequenos grupos, de 10 a 20 pessoas. No Sertão procurava ficar às margens do rio Continente Multicultural 9


Gravura representante da Tradição Nordeste. Havia uma tendência ao geometrismo nas fases finais da subtradição Várzea Grande. São Raimundo Nonato (PI)

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ropa, nunca tornaram-se pastores. Não existe nenhum registro da domesticação de algum "animal economicamente rentável", atesta a arqueóloga. Da mesma forma que os indígenas que foram encontrados pelos portugueses, os homens pré-históricos da região andavam nus ou seminus. A organização social deles não era dividida em classes. Não tinham habitação permanente. A pedra, utilizada largamente nos artefatos, não foi usada para a construção de moradias. O homem pré-histórico da região não chegou a conhecer os metais. Morria-se cedo. Estudos feitos a partir de esqueletos encontrados em Brejo da Madre de Deus (no abrigo Furna do Estrago, que tem sinais de ocupação de cerca de 11 mil anos) constata que a expectativa de vida para aquele grupo era de 24 anos. As mulheres tinham de quatro a cinco filhos. Os homens mediam cerca de 1,60m; as mulheres, 1,52m. Narizes largos era uma característica deles. "O grande interesse da Pré-História brasileira", afirma Gabriela, "está em se observar a grande capacidade de adaptação do homem a uma natureza particularmente adversa e constatar que, nesse meio hostil, ele foi capaz de criar e desenvolver uma arte expressiva e bela, como são as pinturas rupestres, situadas nos domínios do semi-árido". O ser pré-histórico, por exemplo, não dispunha de instrumentos que facilitassem a sua vida. E enfrentava perigos terríveis e desconhecidos – o desconhecido sendo talvez o principal deles. Estavam à mercê do que não conheciam. O que iria sair da noite? O que era a noite? O que significavam os raios e trovões? Como proteger-se das feras que poderiam estar prontas para o ataque? O maior aliado era o fogo, utilizado pelo homem pré-histórico desde o Paleolítico Inferior (período inicial da Idade da Pedra). Afugentava as feras, iluminava os locais, aquecia contra o frio. A descoberta REPRODUÇÃO

São Francisco, que entre outras coisas lhe garantia alimentos. É comum encontrar pinturas e gravuras pré-históricas em abrigos e pedras desta região. O rio São Francisco foi um "centro de atração e caminho natural de grupos indígenas pré-históricos", escreveu Gabriela Martin no livro O rio São Francisco – A natureza e o homem, publicado pela Chesf em 1998. "As primeiras levas chegadas às margens do S. Francisco datam do oitavo milênio.Em torno do sétimo milênio encontramos já populações préhistóricas assentadas no médio e baixo S. Francisco, instaladas em grutas pouco profundas e em terraços próximos do rio", afirma Gabriela, neste livro. Eles percorriam longas áreas nas proximidades do rio, mas não se afastavam muito dele. Ali "acampavam temporariamente e preparavam seus instrumentos de pedra e osso para caçar e pescar". É certo também que os índios de hoje, das tribos dos Pankararu, Atikum e Kimbiwa, no lado pernambucano, Truka, Kiriri e Pankarere, na Bahia, são remanescentes do homem pré-histórico que peregrinou pela região, há pelo menos 8.000 anos. O clima e o meio físico foram diferentes dos atuais. Havia Mata Atlântica, por exemplo, no sudeste do Piauí, na região em que fica a Serra da Capivara. Pelo que se conhece até o momento pode-se afirmar que eram fisicamente como os índios atuais. Com algumas peculiaridades: a dentição era mais forte; o crânio, mais espesso. Eram originários da Ásia, do grupo dos mongolóides. Depois do "estágio histórico" como caçadores tornaram-se também agricultores. Plantavam principalmente mandioca. Neste caso não estavam sozinhos – a cultura expandira-se para quase todo o Brasil. "A mandioca foi o alimento básico de grande parte das populações pré-históricas do Brasil", escreve Gabriela. Diferentemente do ocorrido na Eu-


do fogo representou um grande passo adiante na trajetória do homem. Os homens pré-históricos do Nordeste (como, de resto, do mundo) provavelmente faziam uso de alucinógenos. Há grafismos rupestres que, de acordo com estudos feitos pela arqueóloga Maria da Conceição Beltrão, na Bahia, podem ter sido produzidos sob o efeito de psicotrópicos. Pesquisadores de outras áreas, ressalva Gabriela, também encontraram explicações semelhantes para algumas pinturas e gravuras do período. "Todos os povos, de todas as culturas, utilizam ou utilizaram algum tipo de droga para rituais religiosos, afastamento do mal, homenagem às divindades, fins medicinais ou como forma de alcançar satisfação espiritual", afirma.

Obscurantismo "A Pré-História não foi um período de obscurantismo, como se pensa, mas um período de inovação e criatividade incríveis", afirma Anne-Marie. Imagine-se, argumenta ela, o que é poder sobreviver sem nada, criando tudo, convivendo com animais gigantes, procurando formas de adaptação ao meio e transmitindo isso a gerações seguintes. Por isso, pode-se dizer que o homem pré-histórico era um ser que enfrentava até mais complexidades do que o homem atual. – Eram seres extremamente sensíveis e extremamente preocupados por entender – acrescenta, citando as pinturas e gravuras rupestres como exemplo dessa característica.

Ação cerimonial, Lençóis (BA)

Zazá e Luzia As mulheres mais antigas do Brasil

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mulher mais antiga do Nordeste tem cerca de 9.700 anos. Foi descoberta em 1990, na Serra da Capivara, em escavações comandadas por Niède Guidón. Foi batizada de Zazá – no início era Zuzu, porque se pensava que o esqueleto era de um homem. Exames de DNA comprovaram seu verdadeiro sexo. A morte de Zazá aconteceu por um motivo, digamos, peculiarmente pré-histórico: um bloco de seis toneladas de uma rocha desprendeu-se do teto e a queda provocou uma onda expansiva que a matou. Um estudo do esqueleto feito pela antropóloga francesa Éveline Peyre identificou alguns detalhes

da nordestina mais antiga: tinha aproximadamente 30 anos e 1,55 metro. Uma análise dos dentes mostrou que a alimentação dela era "dura e com mastigação demorada", como se lê no livro de Gabriela Martin. Estava com seis cáries, o que, para a época, indicava "uma dentadura sadia para uma mulher de 30 anos". Zazá não é a mulher mais antiga já encontrada no Brasil – é a segunda. A primeira foi localizada em 1975, no sítio Lapa Vermelha, em Minas Gerais, com cerca de 11.500 anos – o fóssil humano mais antigo localizado nas Américas, até agora. Mais exatamente: só o crânio dela é que foi encontrado. Estudos feitos a partir dele indicaram que ela media aproximadamente 1m50 de altura e ao Continente Multicultural 11


ROBERTA GUIMARÃES / IMAGO

As pinturas nas rochas de grutas freqüentemente sugerem movimentos rituais

morrer estava com pouco mais de 20 anos. Não se sabe a causa de sua morte. Foi batizada de Luzia – e é hoje foco de outra polêmica sobre as origens do homem americano. Ganhou notoriedade há três anos, quando seu crânio foi retirado do Museu Nacional, do Rio de Janeiro (onde estava desde a descoberta), para um estudo ao qual nunca havia sido submetida antes. Teve suas feições reconstituídas pela Universidade de Manchester, em um trabalho encomendado pela TV inglesa BBC, para um documentário. Para isso fez-se uso de pesquisas das quais constaram exames de tomografia do crânio e imagens processadas em computador. O resultado final mostrou Luzia com rosto negróide, olhos bem redondos, nariz largo – ou seja, sem ter nada a ver com os atuais índios brasileiros, remanescentes dos primeiros homens a chegarem ao Brasil, provenientes de grupos mongóis da Ásia (mongolóides). Os traços físicos de Luzia, de acordo com a reconstituição, seriam semelhantes aos de africanos e aborígenes australianos. Ela faria parte, então, de um grupo não-mongolóide – teoria que, a se confirmar, modificaria a tese atual de povoamento das Américas. Indicaria que uma leva de negróides teria chegado antes dos mongolóides. A tese é controversa e está muito longe de ter aprovação da chamada comunidade científica em geral. Nunca se encontraram, até hoje, nos índios brasileiros, traços genéticos indicativos de origem não-mongolóide. Este povo negróide de Luzia não

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teria deixado nenhuma descendência na população mundial indígena de hoje. O principal partidário da teoria de ocupação nãomongolóide no Brasil é o bioarqueólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo. Para comparar O esqueleto humano mais completo já encontrado até agora é também de uma mulher. Tem 3,2 milhões de anos. Foi encontrado em 1974, na Etiópia, pelos norte-americanos Donald Johanson e Tom Gray. 40% dos seus ossos estão preservados. O esqueleto está em exposição no Museu do Homem, em Paris. Foi chamada de "Lucy", uma homenagem dos seus descobridores à famosa música dos Beatles, Lucy in the Sky with the Diamonds. A Luzia, do Brasil, recebeu este nome por influência indireta de Lucy. Isso porque, ao responder pergunta de jornalistas sobre a possibilidade dela ser uma versão americana de Lucy, Walter Neves argumentou que, dado o fato de ser brasileira, o nome estava mais para Luzia. No fechamento desta edição da Continente Multicultural, notícia distribuída pela Reuters informava que um fóssil ainda mais antigo do que "Lucy" tinha sido encontrado na Etiópia, por um pesquisador daquele país. Seria de uma criança e teria cerca de 3,4 milhões de anos. Foram encontrados fragmentos de mandíbula e parte do esqueleto que inclui o crânio, todos os ossos em ótimo estado de preservação.


A pedra lascada Os riscos da depredação

O

s achados pré-históricos do Nordeste enfrentam o permanente risco da depredação. No seu grau máximo, às vezes. Já houve até caso de uma rocha com grafismos rupestres ter sido dinamitada por uma pedreira que atuava na área, informa Gabriela. A Pedra do Ingá – a mais famosa do Brasil, vale a repetição –, por exemplo, tinha mais grafismos do que se vê hoje. Parte deles foi destruída na década de 50 para a "fabricação de lajes de pavimentação".

gistros de cerca de 7.000 anos, foi coberta pelas águas do Lago de Itaparica. O acervo tinha sido retirado antes, mas a gruta foi submersa. Um caso de atrativo turístico bem aproveitado é o do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. O acesso ao local é feito por três guaritas. Não se entra sem autorização. E todo grupo deve ser acompanhado por um guia. Lá existem mais de 35 mil pinturas catalogadas. Uma machadinha de pedra polida, com 9.200 anos, e cerâmica de 8.960 anos são as mais antigas até o momento encontradas nas Américas.

Figura humana que pode representar um antecedente do culto da jurema e do juazeiro praticado pelos indígenas do Nordeste. Carnaúba dos Dantas (RN)

O turismo ajudou o desenvolvimento da região: fez surgir um hotel (em São Raimundo Nonato, local mais próximo do parque), escolas, boas estradas. Outro lugar que explora o turismo com base no passado pré-histórico é o do Vale dos Dinossauros, em Souza (PB), inaugurado em julho de 1998. Tem uma área de 1.080 quilômetros quadrados. Seu maior atrativo é o das pegadas dos dinossauros, gravadas em um solo que hoje é lama petrificada, mas que há 120 milhões de anos eram margens de um lago. A descoberta das pegadas aconteceu em 1924. A preocupação com a preservação dos sinais da Pré-História tem levado as autoridades, no Exterior, a tomar medidas extremas. As cavernas com arte rupestre mais famosas do mundo, Altamira (Espanha) e Lascaux (França), por exemplo, estão fechadas para visitação pública. ROBERTA GUIMARÃES / IMAGO

O chamado "turismo ecológico" que se faz a estes lugares também é condenado por Gabriela. "As pessoas passam as mãos, repintam, arrancam pedaços...", lamenta ela. Há casos em que todo o sítio arqueológico desaparece. A Gruta do Padre, em Petrolândia, com re-

A preservação dos sítios arqueológicos preocupa os especialistas

Continente Multicultural 13


Os primeiros artistas Interpretação dos registros é sempre arriscada

U

Universo pré-histórico: bichos e gente no mesmo espaço, Mirador de Parelhas (RN)

ROBERTA GUIMARÃES / IMAGO

Nos desenhos com temática sexual é freqüente a m sujeito deitado, segurando a cabeça com a mão esquerda e, representação de homens com pênis gigantes. Numa com a outra mão, se masturban- delas uma figura segura o pênis com as duas mãos, do. Uma mulher tendo as per- supostamente para exibi-lo. Há também represennas abertas pelo homem e sendo tações de casais fazendo sexo durante uma dança (no possuída por ele. Um homem Rio Grande do Norte). A interpretação do que os desenhos e gravuras desferindo um golpe violentíssiquerem representar é sempre arriscada, e o que nos mo em outro, que cai sem reação. Cenas de alguma peça, filme ou qualquer mani- parece ser necessariamente não significa que seja – festação artística da atualidade? Não, cenas da Pré- por isso, ao ler as cenas descritas no primeiro paráHistória. Desenhadas em rochas espalhadas pela grafo deste texto o leitor atento deve colocar um região. Registros da arte rupestre (assim chamada "aparentemente" antes das afirmações, para evitar por ser realizada em rochas), manifestados em pin- possíveis escorregões históricos. O pigmento mais usado turas e gravuras. Os primeiros era de cor vermelha, em várias "quadros". Para Ariano Suassuna a arte do homem préA Arqueologia tende tonalidades. Para pintar em níveis altos utilizava-se troncos histórico é o legítimo começo a ver as pinturas de árvores que, colocados junda cultura brasileira e não a pré-históricas por sua to às paredes, serviam de "esdos colonizadores europeus. No Nordeste há centenas função utilitária, sem cada". O homem pré-histórico dessas pinturas e gravuras (as excluir a idéia estética retratava o que via, mas, curiopinturas são feitas em caversamente, a paisagem como tal nas; as gravuras, em rochas localizadas à beira de rios). A maior parte encontra- nunca aparece nos registros. Os perfis eram bidida até o momento encontra-se no Piauí, mas muitas mensionais, como se estivessem pairando no espaço. Em Altamira (Espanha), primeira caverna com se espalham por quase toda a região. As temáticas desenhos rupestres a ser descoberta, em 1879, os mais comuns são de caça, culto à fertilidade, iniciação sexual. Aparecem também cenas de luta, de desenhos reproduzem vários animais da época préguerra, de dança – numa destas, emblemática, duas histórica – bisontes, cavalos, javalis. Foram desenhafiguras parecem estar dançando segurando os qua- dos todos no teto da caverna – o que lhe valeu a qualificação de "Capela Sistina" da arte pré-histórica. dris (em São Raimundo Nonato, no Piauí). Um dado curioso: nos primeiros desenhos não Seus desenhos foram datados como sendo de até surgem cenas de luta, estas só vão aparecer depois, 14.000 anos atrás. Mais tarde, em 1940, foi descoberta a segunda por volta de 9.000 anos atrás – quando começa tamcaverna hoje mais conhecida: a de Lascaux, na Franbém o crescimento demográfico na região.


ROBERTO RÔMULO

ça. É lá que se encontra "uma das primeiras cenas de caça na qual já aparece a intenção de configurar uma composição", lê-se em História Geral da Arte, Pintura I, Ediciones del Prado, Lisboa, 1995. É um bisonte ferido por uma lança atacando um homem com cabeça de pássaro, de braços estendidos. A arte rupestre de Lascaux é a mais antiga do mundo, pelo que se sabe até o momento: 17.000 anos. As encontradas no Brasil remontam a um período máximo de 12.000 anos. Os estilos são diferentes, embora em alguns casos, como se surpreende Gabriela, desenhos feitos a centenas de quilômetros de distância de um para o outro pareçam ter sido feitos "pelas mesmas mãos". Para efeito de classificação, as gravuras e pinturas na região são classificadas de "tradição Nordeste" e "tradição Agreste". A primeira, segundo Anne-Marie Pessis, em texto publicado na revista Clio, série Arqueológica, UFPE, 1989, "caracteriza-se por estar composta de figuras humanas e animais, freqüentemente arranjadas de modo a representar ações da vida, cotidiana e cerimonial, do homem na Pré-História". O estilo da tradição Nordeste tem, na maioria, a participação de "figuras humanas simples, com um mínimo de traços identificatórios". Nelas vê-se "a

Anne-Marie: pinturas rupestres eram meio de comunicação

de longas penas e asas abertas, cujo antropomorfismo sugere a representação de um homem-pássaro", segundo Gabriela. Na arte rupestre existem composições chamadas "emblemáticas" – são aquelas em que, de acordo com Anne-Marie, vêem-se "arranjos de figuras em posturas e executando gestos que não permitem reconhecer a natureza da ação representada", aparentemente com "significação simbólica".

Figuras associadas a grafismo em forma de tridígito (seta?). São Raimundo Nonato (PI)

sexualidade, a dança lúdica e ritual, a caça individual de pequenos animais, os ritos cerimoniais". As figuras humanas têm de cinco a 15 centímetros – e aparecem sempre em movimento. "Às vezes possuídas de grande agitação, com o rosto de perfil e como se gritassem", escreve Gabriela. O estilo tem, ainda, diversidade de temas e "riqueza de enfeites e atributos que acompanham a figura humana". A tradição Agreste apresenta "técnica gráfica e riqueza temática inferior à Tradição Nordeste", afirma Gabriela em seu livro. O nome é proveniente do fato de que os lugares com esse tipo de arte rupestre estão no Agreste de Pernambuco e sul da Paraíba. Os desenhos da tradição Agreste mostram uma série de peculiaridades: aparecem grafismos de grande tamanho (de até um metro de altura). Há dificuldades para reconhecer as espécies dos animais representados. Aparece com freqüência "um pássaro

No Morro do Chapéu e na Chapada Diamantina, ambos na Bahia, encontram-se muitas "figuras de lagartos associados a possíveis representações de corpos celestes", informa Gabriela. O "olhar artístico" que a arte rupestre provoca não é o mais importante para a Arqueologia – que a vê, talvez possamos definir assim, sob uma perspectiva utilitária. Anne-Marie, por exemplo, analisa o registro rupestre como um meio de comunicação, uma pré-escrita, não como arte – ainda que, como destaca Gabriela, "não exclua que possa também ser estudado no contexto das idéias estéticas". Segundo Gabriela, "a tendência atual entre os arqueólogos é não interpretar as representações rupestres, e sim, apenas descrever o que há, o que se pode ver, procedendo-se a análises mais técnicas do que interpretativas".

Continente Multicultural 15


EDUARDO QUEIROGA / LUMIAR

Aventureiros acorreram aos sítios pré-históricos em busca de antigas civilizações

O Nordeste fenício ou paixão e morte do austríaco

A

Loudovico Chovenágua

ntes dos portugueses, muito antes dos holandeses, quem esteve no Nordeste foram os fenícios – sim, aquele povo que aparece na Bíblia, especialista em comércio e navegação e que ocupava um território onde hoje se localiza o Líbano. Estiveram aqui e deixaram inscrições em pedras, por meio das quais a visita deles foi descoberta. Ao mesmo tempo que os fenícios, ou quem sabe antes deles, ou pouco depois, não interessa muito porque estamos falando de uma fantasia, estiveram aqui também os gregos e os vikings. Todos estes mitos que surgiram sobre as origens brasileiras encontraram guarida "nos primeiros re16 Continente Multicultural

latos da Pré-História brasileira", explica Gabriela, quando "se misturavam dados científicos com fantasias sobre civilizações perdidas". É uma fase em que "as informações sobre pinturas e gravuras rupestres – abundantes no Nordeste brasileiro –, assim como outros restos pré-históricos, misturam-se aos poucos com notícias fantásticas sobre fenícios, gregos e vikings". O mito fenício foi o de maior consistência. Acredite: chegou a ser considerado verdadeiro, graças à falsificação de uma inscrição que teria sido encontrada por um brasileiro inexistente chamado Joaquim Alves da Costa. Na época em que este mito vicejou, nos tempos de D. Pedro II, a principal autoridade ligada ao assunto, um alagoano chamado Ladislau Netto, encampou-o com fervor.


Ladislau, que foi diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro e era um "protegido" de D. Pedro II, havia estudado na Sorbonne, onde se doutorou em Ciências Naturais e foi discípulo de Ernest Renan, um especialista em... Arqueologia fenícia (havia inclusive realizado escavações na região em que os fenícios viveram). Mais tarde Ladislau Netto admitiu que a versão fenícia no Brasil era uma fraude. O que, informa Gabriela no livro, "não o conseguiu livrar totalmente da fama de mentiroso e falsário que o perseguiu durante toda sua vida". Tanto que, quase um século depois, em 1973, o paraibano Geraldo Jofily publicou artigo na Revista de História da Universidade de São Paulo com ataques contra ele. Apesar disso, Ladislau Netto teve uma obra reconhecida por muitos, chegando a ser apontado como o "pai da Arqueologia brasileira". Loudovico Chovenágua Com a ciência arqueológica ainda engatinhando no país, o Nordeste foi destino de muitos aventureiros que procuravam aqui sinais de civilizações an-

riosas formações encontradas no Piauí, hoje Parque Nacional das Sete Cidades, transformou-as em sete cidades fabulosas do império fenício colonial de além-mar", resenha Gabriela. Ludwig era considerado pelos amigos sertanejos como um sujeito "calmo e grandalhão, professor de história e bededor de cachaça, que andava estudando ruínas". Em suas andanças pela região acabou descobrindo muitas gravuras rupestres – verdadeiras, mas não feitas pelos fenícios nem pelos gregos, como ele imaginava... Convicto das origens de seus achados, imaginou que eles eram a prova da existência de várias cidades surgidas da união de fenícios e troianos. Todas ficavam no litoral nordestino, na área entre o Maranhão e a Bahia. Sua maior descoberta, porém, foi a de outra figura que também parece criatura de celulóide: o agricultor José Azevedo Dantas, da Paraíba. Dantas, de família muito pobre, teria aprendido a ler com ensinamentos ministrados pelos irmãos mais velhos, nas areias de um rio. Teve a sensibilidade de

Homem deitado se masturbando, Rio Grande do Norte

copiar cuidadosamente os retigas. O mais extraordinário gistros rupestres que encontradeles, uma figura a quem a O fascínio dos sítios va na região do Seridó. Enfeiexpressão "parece saído de um filme" ajusta-se com firmeza, pré-históricos produziu xou tudo em um manuscrito de 200 páginas, que sobrevifoi o austríaco Ludwig Schemitos e até fraudes, veu até hoje; está no Instituto wennagen, que peregrinou pela região entre 1910 e 1920. como a fantástica versão Histórico da Paraíba. Não se tem notícia do fim Dada a dificuldade de proda origem fenícia ou do "Doutor Chovenágua". As nunciar o nome dele corretaas fantasias sobre últimas informações dele são mente, o nordestino logo o reda época deste encontro com batizou de "Doutor Loudovia presença Dantas. Conforme Gabriela, a co Chovenágua". de gregos e vikings última referência a ele, conheLudwig escreveu artigos e cida, aparece no livro Registro um livro sobre sua experiência e descobertas, Antiga História do Brasil de 1100 a.C a das Sete Cidades, de Victor Gonçalves Neto (1963). É 1500 d.C, que teve uma edição inicial no Piauí, em o epitáfio de um visionário: "À memória de Ludovico Schewennagen... Nas1928, e outra em 1970, pela editora Cátedra, do Rio ceu em algum lugar da velha Áustria de anteguerras, de Janeiro. "A obra é um incrível tratado sobre as viagens dos morreu, talvez de fome, aqui n'algum canto do Norfenícios ao Brasil; o autor, impressionado com as cu- deste do Brasil. Orai por ele". Continente Multicultural 17


REPRODUÇÃO ROBERTA GUIMARÃES / IMAGO

Os arqueólogos são cautelosos em interpretar pinturas como esta: dança ou guerra?

Bases do mito fenício Onde, então, empurrar Os colonizadores aqueles índios que viviam nos As raízes deste mito, e de surpreenderam-se lugares encontrados? E, mais outros que seguem a mesma difícil ainda, como fazê-lo? trilha, localizam-se bem anao encontrar, Resposta: nas viagens dos potes, e tem a ver com o atrelano Novo Mundo, vos que eram mencionados na mento do estudo da Pré-Hisgrupos humanos Bíblia, "em passagens do Antória brasileira à cronologia tigo Testamento que falam de bíblica – o que era praticasobre os quais navegações demoradas a lumente uma regra nos países a Bíblia não trazia gares não satisfatoriamente de tradição cristã. qualquer referência identificados". No século 17, cálculos feiOutro detalhe, explicitado tos sob o comando da Igreja definiram que o mundo fora criado no ano de 4004 no livro de Gabriela: "Havia também a necessidade antes de Cristo. Toda a história da humanidade, de situar os indígenas americanos dentro dos tradientão, deveria caber num período de menos de cionais episódios bíblicos da Arca de Noé e das tribos perdidas de Israel. Em conseqüência, fenícios, gre6.000 anos. Por isso, quando "os descobridores espanhóis e gos ou mesmo israelitas deveriam ser os antigos portugueses e alguns eruditos que os seguiram, ascendentes dos indígenas achados, séculos depois, enfrentaram, passadas as primeiras surpresas, a desgraçadamente em estado de regressão cultural". Foi essa linha de pensamento – juntamente com evidência de que existiam nas terras de Cipango e Vera Cruz numerosos grupos humanos dos quais acontecimentos de época – que permitiu o florescia Bíblia não falava, empreenderam, então, a difícil mento dos mitos sobre a ocupação do Brasil por tarefa de procurar-lhe um lugar ao sol nas páginas povos antigos. da Bíblia." Vandeck Santiago é jornalista


A música das cavernas Antropóloga vê a música na Pré-História, a partir de vestígios encontrados nas pinturas das grutas

A

tarefa é árdua: como obviamente os ancestrais dos nossos indígenas, que habitavam há mais de 20 mil anos a região sertaneja (então coberta de florestas vicejantes), não deixaram gravado o som que produziam, a antropóloga Cristiane de Andrade Buco partiu dos tênues indícios contidos nas pinturas encontradas nas grutas e abrigos da área para inferir que o homo sapiens sapiens brasileiro tocava flauta e maracás, em cerimônias coletivas. De material mesmo – o tecnicamente denominado vestígio primário – foi encontrado, ao longo da exploração arqueológica de mais de 140 sítios, apenas um objeto: uma tosca flauta de madeira, assim mesmo entupida por sedimentos no decorrer dos anos, impossibilitando que se conhecesse o seu som. As inferências de Buco estão na dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História da UFPE – Indicadores da prática musical na PréHistória do Nordeste brasileiro, em 1999. Dada a impossibilidade de reconstituição sonora da música da Pré-História, ela chama visões sonoras os vestígios que atestam a prática musical no período. Tomando por base os grafismos, ela infere a presença da música, de duas maneiras: diretamente, por acessórios acoplados a figuras humanas (flauta e maracá) e, indiretamente, pela suposição da existência de música em cenas em que a gestualidade das figuras humanas representa movimentos de dança. O estudo envolveu coleta de campo, consulta a uma extensa bibliografia nacional e internacional e trabalho de laboratório, resultando na definição de quatro materializações dessas visões sonoras, vestígios

que melhor indicassem a existência da prática musical na Pré-História da região. São elas: uma flauta de madeira, encaixada como instrumento musical; uma cena pictórica com uma figura antromorfa com instrumento musical, denominada os músicos; uma cena de dança onde a música está representada pelos movimentos das figuras, denominada a dança (ilustração ao alto); e uma cena pictórica onde há um tocador de maracá, denominada a festa. Sobre o método adotado, esclarece a autora: "Assim, escolhidos os vestígios a serem considerados, realizamos a pesquisa bibliográfica referente a textos e iconografia correlata que auxiliasse no embasamento da inferência da prática musical na Pré-História, enfatizando a importância do elemento musical como um dado cultural a ser observado, analisado e valorizado como um componente cultural complexo". Além disso, num vasto exercício de interdisciplinaridade – Arqueologia, História, Pintura, Música, Informática – Buco criou uma quinta visão sonora, experimental, fazendo uma releitura artístico-musical de um vestígio arqueológico. Com notações musicais e gravações de vários instrumentos, as pinturas rupestres foram transformadas em música, por computador. São sons estranhos, atonais, expressivos. Representam um signo do que poderiam ser os sentimentos daqueles povos caçadores-coletores. Cristiane de Andrade Buco desbrava um caminho pioneiro, com a consciência da necessidade de que a trilha seja estendida para mais à frente, ao delimitar o alcance do seu trabalho: "A presença da prática musical entre os povos pré-históricos é um fato a ser pesquisado e valorizado, e esta dissertação é um início de fundamentação dos dados sobre esta temática". Continente Multicultural 19


PRINCIPAIS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS DO NORDESTE Sambaquia Estearias

Post Scriptum

Sete Cidades

CEARÁ

Dunas

Crateús

MARANHÃO

Soledade

Açu Vila Flor

Arqueologia: A palavra vem do grego Archaîos (Antigo) + Logos (conhecimento, estudo). Literalmente seria o estudo do que é antigo. O conceito atual: a disciplina que estuda as sociedades atuais ou passadas por meio da cultura material.

Salgueiro

S. Raimundo Nonato

Dunas

Seridó

PARAÍBA

Brejo da Madre Deus

B. Jardim

Araripina

PIAUI

RIO GRANDE DO NORTE

PERNAMBUCO

Itaparica

Sobradinho

Arcoverde Litoral

Xingó

ALAGOAS

Central

BAHIA Serra Geral

Datação das descobertas: Toda matéria orgânica emite radioatividade (o carbono 14). Quando esta matéria morre – seja um homem, animal ou vegetal – começa a perder este carbono 14 e se transformar em carbono 12 (um carbono inerte). Na década de 50 se descobriu a forma de medir a perda do carbono 14 em seres vivos ou mortos – e por esse processo, medindo-se a perda de carbono 14 e a quantidade de carbono 12, chega-se à datação do material encontrado. “Atual estágio do conhecimento”: Jargão dos estudiosos da História. É importante porque o passado vive sendo constantemente revisitado, e há sempre a possibilidade de novas descobertas alterarem o conhecimento que se tem hoje.

FONTE: PRÉ-HISTÓRIA DO NORDESTE DO BRASIL – GABRIELA MARTINS

Pré-H História: O período mais antigo da História. Designa a trajetória do desenvolvimento do homem antes da escrita (que surgiu por volta de 3.000 a.C.). Tem início com o surgimento dos primeiros hominídeos (os ancestrais do homem moderno). A Pré-História pode ser dividida em três grandes períodos: a Idade da Pedra (subdividida em Paleolítico Inferior, Médio e Superior; Mesolítico e Neolítico), a Idade do Bronze e a Idade do Ferro.

Um retrato do “homem das cavernas” A vida pré-histórica no Brasil, o novo livro da arqueóloga Gabriela Martin, ainda em finalização, abordará menos os objetos e mais o homem. Gabriela explica que quer um livro sem a aridez das publicações técnicas, direcionado aos estudantes e professores, mais do que aos especialistas da área. "Será um livro de divulgação da Arqueologia", explica a autora, que pretende lançá-lo ainda este ano. Ela entende que a profissão não tem o charme que se vê no cinema, "trabalha-se muito para se encontrar alguns estilhaços de ossos". Mas acredita 20 Continente Multicultural

que os achados podem interessar a um público maior se ajudarem a pintar um retrato do ser humano pré-histórico: a sua religiosidade, o sexo, o meio ambiente, as estratégias de sobrevivência. Com esse enfoque e com a experiência e rigor necessários para fugir das fantasias a respeito, Gabriela pretende desmistificar muito do que consiste o senso comum sobre "os homens das cavernas". "Pouca gente percebe que quando se fala em homens da Pré-História está se falando nos antepassados dos índios", diz a autora.




HISTÓRIA

Mapas

Gravuras, cartas e mapas de artistas e técnicos holandeses formam o mais expressivo registro de imagens do Brasil colonial. Boa parte desse tesouro documental inédito, localizado em arquivos do Recife e da Holanda, será publicado em breve

do tesouro

Panorâmica da Bahia de Todelos Sanctus – Johannes Vingboons – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Século 17

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Plano geral da cidade do Recife – Johannes Vingboons – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – Século 17

U

m dos maiores tesouros documentais da história do Brasil está no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, quase intocado. São mais de setenta páginas com mapas e vistas do Recife e Olinda do período de domínio holandês desenhadas por Vingboons. Dois outros dos seus atlas integram o acervo das bibliotecas do Vaticano e da Universidade de Leiden, na Holanda. O desta última resultou, no ano passado, numa publicação de poucos exemplares, fora de comércio. "Sem dúvida alguma, o mais expressivo registro imagético do Brasil colonial foi produzido em um quarto de século durante a ocupação holandesa no Nordeste", diz o historiador Marcos Galindo. "Grande parte desse acervo veio à luz sob o mecenato do conde Maurício de Nassau, que abrigou em sua corte tropical importantes artistas como Franz Post e Albert Eckhout".

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Mas, não se resume a esses artistas nem a nomes igualmente famosos como Marcgraff e Wagner a totalidade de obras de interesse brasileiro produzidas pelos holandeses no século 17. "A obra de cartógrafos a serviço da Companhia das Índias Ocidentais constitui-se num precioso acervo ainda pouco explorado, como é o caso de Golliat e Vingboons, além de outros anônimos, conservados, hoje, entre outros sítios, nos arcazes do Algemeemrijksarchief, e também pela Biblioteca da Universidade de Leiden", informa Galindo. O que singulariza a produção de Vingboons a respeito do Brasil? Segundo Marcos Galindo, é a exatidão e a vivacidade das imagens. "Ele captou a luz tropical, por isto as suas paisagens são muito mais reais e vivas que as clássicas e quase tristes de Post", avalia. Desse conjunto, ainda pouco explorado pelos brasileiros na Holanda, destacam-se peças da coleção da Biblioteca da Universidade de Leiden, que incluem uma gravura de Johann Blaeu, com panora-


Carta dos arredores do Rio de Janeiro – Johannes Vingboons – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – Século 17

ma do Recife e Olinda conquistadas, além de mapas e cartas da Paraíba, Rio de Janeiro e Bahia de Todos os Santos. "A carta de Blaeu é a mesma reproduzida, reduzida, no panfleto Lonck, editado para narrar a conquista de Pernambuco pelo almirante Lonck, do qual o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano possui um original em exposição permanente", acrescenta o historiador.

Galindo está organizando uma edição especial desse rico material, em tiragem limitada, com as imagens reproduzidas no formato original (50 x 75cm), em papel de alta qualidade, acompanhadas de textos explicativos de especialistas brasileiros e estrangeiros. Em primeira mão, Continente Multicultural reproduz uma pequena seleção desses registros ainda inéditos no país. Cartas dos arredores da cidade da Paraíba – Johannes Vingboons – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – Século 17

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Tempo de O historiador Benjamin Teensma, que descobriu falhas nas fontes usadas por José Antonio Gonsalves de Mello

Tradução da obra clássica sobre a ocupação holandesa no Brasil revela falhas nas fontes pesquisadas

O

s estudos sobre a ocupação holandesa no Brasil, segundo o pesquisador Leonardo Dantas Silva, podem ser divididos em antes e depois do aparecimento de Tempo dos Flamengos. O livro, de 1947, foi o que primeiro apresentou ao público lusófono o material arquivístico da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), até hoje a mais extensa documentação histórica sobre o período do domínio holandês. Mas um trabalho de tradução da obra para a língua neerlandesa, no ano passado, descobriu incoerências que sugerem que as fontes utilizadas pelo autor, José Antonio Gonsalves de Mello, eram pouco fidedignas. O responsável pela descoberta chama-se Benjamin Nicolaas Teensma, lusitanista de 68 anos, nascido na ilha de Sumatra, Indonésia, e residente em Leiden, na Holanda. Foi ele quem identificou a origem dos defeitos, que começaram quando os documentos originais da WIC foram copiados do Arquivo Geral do Estado de Haia, onde estão guardados, para o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, em 1886. A transcrição foi supervisionada pelo catedrático recifense José Hygínio Duarte Pereira, mas, como explica Teensma, foi executada “por um ou mais amanuenses holandeses anônimos, contratados por via de anúncio público, e cuja competência até agora não havia sido questionada por ninguém”. Foram as cópias desses amanuenses que serviram de base para José Antonio Gonsalves de Mello escrever Tempo dos Flamengos. Alexandre 26 Continente Multicultural

A maioria das corruptelas identificadas por Teensma resulta em nomes errados de locais e pessoas, que ele chama de “fantasmas históricos”, como um major Sedeum van Points (na verdade, Johann von Coin), ou um judeu Antônio Díaz Paparrobalos (o guia índio Antônio Paraupaba). O engenheiro Andries Pistor vem disfarçado em quatro variantes ao longo da obra: Jan Cardinael, Andries Daultrij, Andries Falloo e Conselheiro André Pfiltz. No inglês John Harrison pode-se reconhecer Moisés Cohen Henriques. Além destes, que se explicam pela semelhança visual entre a grafia da palavra original e a da corruptela, outros erros foram cometidos, segundo Teensma, pelo desconhecimento dos amanuenses de termos correntes no século 17. Também foram identificados erros em alguns valores apresentados no livro, como o falso montante de 282.191 florins, referente à participação dos judeus nos contratos assinados em 1645 (na verdade, f. 182.191). Teensma descobriu o problema ao ser incumbido da tradução de Tempo dos Flamengos para o holandês. Junto com o historiador brasileiro Marcos Galindo, também residente na Holanda, resolveu terminar a tarefa iniciada por Garmant Nico Visser, geógrafo nascido em 1910, na Frísia, que já havia traduzido o livro sem ter conseguido, no entanto, um editor para a sua tradução. Visser foi a chave para a descoberta de Teensma porque, em vez de transpor para o holandês as citações de documentos da WIC que José Antonio já havia apresentado em português, pediu ao autor que lhe remetesse cópias dos originais. Quando, em 1997, um Visser Bandeira doente, quase cego, pediu ao ami-

MARCOS GALINDO

correções


go Teensma que desse um destino adequado ao seu material, os originais chegaram às mãos de quem lhes pôde identificar o erro. A definitiva tradução, com as correções apresentadas em colchetes, ao lado das corruptelas, já está pronta, e a equipe de Teensma e Galindo já fechou negócio com a editora holandesa Walburg Pers. O projeto recebeu pronta simpatia do embaixador do Brasil na Holanda, dr. Afonso Massot, que garantiu

o financiamento do Ministério Brasileiro das Relações Exteriores e do Itamaraty. Apesar das imperfeições, Teensma reconhece o pioneirismo do livro. Ciente dos planos de se editar uma 4ª edição brasileira de Tempo dos Flamengos, aproveita para elogiar a “obra-mestra, que abriu caminho para as demais sobre o Brasil holandês. Os outros vieram depois, já podiam plantar em terra trabalhada”, completa.

ENTREVISTA:

BENJAMIN TEENSMA Qual é a sua avaliação da obra de José Antonio Gonsalves de Mello, após a sua revisão? O livro Tempo dos Flamengos já leva mais de meio século de existência. Revelou, pela primeira vez, a grande importância do material arquivístico neerlandês da WIC, tal como existe no Arquivo Geral do Estado de Haia. O autor fala nove línguas e foi o primeiro a traduzir para o público brasileiro extensos trechos desse material. Eis o grande mérito da obra, que se baseia principalmente nas cópias desse material arquivístico neerlandês, existentes no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, do Recife. No entanto, é precisamente aqui que se encontra um dos principais problemas do livro, porque essas cópias foram feitas na Holanda pelos fins do século 19, por amanuenses neerlandeses que não foram de primeira qualidade científica. Nas cópias deles abundam as corruptelas. Como avalia o autor José Antonio? Um livro, logo após a sua publicação, pertence ao patrimônio público e só assim é que pode ser alvo de crítica, positiva ou negativa, segundo os méritos da obra, e segundo a evolução dos critérios apreciativos do público leitor. Na sua crítica, o público deve limitar-se ao conteúdo da obra e não se ocupar da pessoa do autor. Como foi o processo de tradução/correção? Traduzindo o livro descobri uma quantidade muito grande de corruptelas, sobretudo nos topônimos e antropônimos, mas também em termos correntes no neerlandês do século 17, mas desconheci-

Capa da terceira edição do livro Tempo dos Flamengos, de José Antonio Gonsalves de Mello, que em breve ganhará sua primeira tradução, em holandês

dos pelos amanuenses do século 19. A principal maneira de detectá-los é desconfiar sistematicamente de todos os termos que ocorrem apenas uma vez no documento e analisá-los dentro dos quadros históricos da presença neerlandesa no Brasil, no século 17. Para exemplificar o fenômeno, observo que havia poucos oficiais no exército neerlandês da categoria de major, de modo que um major Sedeum van Points é facilmente identificável como o major Johann von Coin, pela simples consulta da listinha dos majores presentes. Um elemento imprescindível em semelhante metodologia restauradora é a manifesta congruência visual entre a grafia da corruptela e a da palavra restaurada. Todas as edições de Tempo dos Flamengos estão cheias de erratas desse gênero, e é absolutamente necessário que uma nova edição se desfaça de tais fantasmas, como o do judeu Antônio Díaz Paparrobalos. Quem foi esse “fantasma”? O Paparrobalos é um erro notório. Há uma tradição que fala da Quinta Coluna Judaica em Pernambuco, na época da invasão holandesa. Esses supostos traidores cristãos-novos queriam entregar o país aos holandeses para libertarem-se do jugo da Inquisição portuguesa. Era uma chamada Quinta Coluna. Hoje, o judeu Antônio Díaz Paparrobalos, que é o cavalo de parada daquela teoria, resulta ser um índio. O guia índio Antônio Paraupaba. Além Continente Multicultural 27


da enormidade do erro, é quase um erro freudianamente intencionado. Intencionado por quem? Duarte Coelho, talvez. [Nota: o primeiro registro do judeu Paparrobalos aparece no livro Memórias de la Guerra del Brasil, publicado em Madrid, 1654, de autoria de Duarte Coelho. Teensma explica que o autor escreveu seus apontamentos sob o impacto do pânico ocasionado pela invasão holandesa e que, décadas depois, serviu-se deles para escrever seu livro. As palavras rabiscadas por ele como “Guia: Índio Antonio Paraupaba” foram malinterpretadas como “Dias Judio Antonio Paparrobalos”. José Antonio Gonsalves de Mello apresenta esse fantasmagórico judeu em todas as três edições de Tempo dos Flamengos]

O Tempo dos Flamengos é considerado um clássico no Brasil. Como é visto na Holanda? O livro não se divulgou entre os holandeses, porque aqui pouco se fala ou se lê em português. De maneira que, poucos anos depois de lançado, publicou-se o livro de Charles Boxer, The Dutch in Brazil, que para nós é o livro clássico sobre o Brasil holandês. José Antonio, que nunca foi traduzido para nenhum outro idioma, é totalmente obscuro por aqui. Que comparação faz entre o livro de Boxer e o de José Antonio? Acho que seguem orientações diferentes. O livro de Boxer é mais analítico, enquanto o de José Antonio se atém mais a catalogar os documentos históricos. Mas tem a vantagem de ter sido o primeiro. Os outros já vieram depois, já podiam plantar em terra trabalhada.

José Antonio Gonsalves de Mello admite erros das fontes de Tempo dos Flamengos, mas diz que não lhe parecem de grande importância e que preferia ter seu livro traduzido para o inglês

J

osé Antonio Gonsalves de Mello ainda não conhece todas as correções propostas por Benjamin Teensma ao seu Tempo dos Flamengos e, por isso, prefere não opinar em definitivo. Se a princípio admite a possibilidade dos erros e considera a revisão uma vantagem para uma futura edição do livro, mostra-se incerto quanto ao traba28 Continente Multicultural

lho de Teensma. “Ele é, de fato, conhecedor do holandês da época, mas não sei se soube ler corretamente esses nomes que indica como variantes”, diz. O historiador conhece pessoalmente Teensma, que, na década de 60, foi seu aluno na Universidade de Utrecht, onde José Antonio dava aulas de história brasileira. Teensma era um dos raros estudantes que sabiam o português.

IVANA BORGES

A palavra do autor


Ao ouvir algumas das correções ao Tempo dos Flamengos, o autor disse estar de acordo, mas não as considerou de grande importância. “Parece-me que são pouca coisa”, disse, “pelo que eu vi, são alguns nomes próprios apenas”. Entre as corruptelas que lhe foram citadas pelo repórter, estão o judeu Antônio Paparrobalos e o major Sedeum van Points. José Antonio faz um diagnóstico semelhante ao de Teensma para a origem dos erros – seriam leituras incorretas da caligrafia gótica do século 17, reservada para documentos oficiais – embora acredite na qualificação dos amanuenses que realizaram o serviço: “Eles eram os próprios funcionários do Arquivo Geral do Estado de “Se os Haia, eram as pessoas mais competenholandeses tes”. (ver box) tivessem Quanto à primeiinteresse por ra tradução de Tempo dos Flamengos, o autor esta parte da não acredita que vehistória, teriam nha a ter grande repercussão. “Não estraduzido o pero muito dos homeu livro landeses, porque se antes” houvesse interesse deles por esta parte da história, alguém já teria produzido essa tradução”, considera. Ele diz que gostaria de ver seu livro traduzido para a língua inglesa, porque alcançaria “uma multidão de interessados”. Para José Antonio, já foi uma grata surpresa o fato de o Itamaraty ter contribuído financeiramente para a edição em neerlandês. “Que bom que tenham se mexido para os assuntos pernambucanos”, elogia o historiador. Ele se refere ao episódio vivido por José Hygínio Duarte Pereira, o responsável pelas cópias dos arquivos da Companhia das Índias Ocidentais, que fundamentaram Tempo dos Flamengos. Em missão oficial na Holanda, no século 19, José Hygínio teve seu trabalho interrompido quando lhe cortaram o ordenado, sob o argumento de que a documentação que vinha pesquisando não interessava ao Brasil, mas apenas a Pernambuco. Sobre a possibilidade de trabalhar numa quarta edição com a revisão proposta por Teensma, José Antonio contemporiza: “Teria muito gosto de recebê-lo, e a gente combinaria aqui nossas correções. Se é que, de fato, os nomes são importantes, não são de pessoas comuns, sem maior repercussão para a história de Pernambuco”. Alexandre Bandeira é jornalista

O que diz José Hygínio Enquanto Benjamin Teensma argumenta que as cópias dos documentos da Companhia das Índias Ocidentais foram feitas por “um ou mais amanuenses anônimos, contratados por via de anúncio público”, José Antonio Gonsalves de Mello acredita na capacidade dos copistas e diz que eram funcionários do próprio arquivo. O relatório de pesquisas do catedrático José Hygínio Duarte Pereira, que supervisionou as cópias, no capítulo A Palavra do Governo, assim apresenta a questão: “Essas cópias tinham de ser extrahidas somente por um dos amanuenses do archivo, e isto durante as horas de trabalho nesse estabelecimento – das 10 da manhã às 3 da tarde – sendo esse empregado freqüentemente interrompido para attender tambem a outras ocupações. ‘As pessoas que conheciam os velhos caracteres eram em número mui limitado e de ordinario empregados publicos, cujas funcções os impossibilitavam de ir trabalhar no archivo. Só depois de algum tempo e por meio de annuncios nos jornaes, consegui encontrar um copista particular que pudesse dedicar-se áquele serviço. ‘Por último, veio em meu auxílio o director do archivo [...] a ponto de permittir que eu tirasse as peças de que precisasse para fazel-as copias sob a minha guarda e responsabilidade. Desde então pude dobrar as horas de trabalho, e com o auxílio de varios empregados publicos que se prestaram a extrahir cópias nas suas horas vagas.” Fonte: home page do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano www.elogica.com.br/institutoarqueologico

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REPRODUÇÃO / MUSEU REAL DE BELAS-ARTES DE BRUXELAS

Detalhe de Cabeças de negro, Rubens. Livro de José Antonio é um magnífico estudo da influência holandesa sobre as raças formadoras de nossa nacionalidade

A atualidade de Tempo d os Flamengos O livro é um magnífico estudo sobre a importância dos holandeses na formação da nacionalidade brasileira

A

segunda fase da dominação holan- ção mais apurada, com notas de Capistrano de Abreu, desa no Brasil (1630-1654) fasci- quando de sua terceira edição. Por iniciativa do Instituto Arqueológico e Geonou os mais diversos autores que, a partir do século 19, vieram centra- gráfico Pernambucano, instituição fundada no Recife lizar nela os seus estudos e pesqui- em 1862, os estudos sobre o domínio holandês no sas. Assim surgiram os trabalhos Brasil passaram a ter um maior interesse a partir da de Pieter Marinus Netscher missão do pesquisador José Hyginio Duarte Pereira (1824-1903), onde pela primeira vez são utilizados (1846-1901) em arquivos dos Países Baixos, efetuada parte dos documentos brasileiros conservados nos Ar- entre os anos de 1885 e 1886, cujo relatório é publiquivos dos Estados Gerais, o que gerou a publicação cado na edição do Diario de Pernambuco de 2 de seem francês sob o título Les hollandais au Brésil: notice tembro de 1886. Trabalhou ele particularmente nos Arquivos dos Estados Gerais e no Arquivo da Comhistorique sur les Pays-Bas et le Brésil au XVII siècle. Anos mais tarde coube a um brasileiro, Francisco panhia das Índias Ocidentais, acervos incorporados Adolpho de Varnhagen (1816-1878), escrever sobre o ao Arquivo Geral do Reino dos Países Baixos de Haia mesmo assunto, quando da publicação de História das em 1856, resgatando documentação das mais prelutas com os Hollandezes no Brasil, desde 1624 a 1654, ciosas para o entendimento de tão importante período. que teve no ano seguinte uma "nova edição melhora- No dizer de José Honório Rodrigues, a Coleção José da e acrescentada", com 401 páginas, acrescida de ín- Hyginio "se constitui no maior acervo de documentos dices. Estas edições de Varnhagen, no entanto, são (sobre o Brasil Holandês) fora da Holanda", em sua superadas pelo seu próprio autor, quando da publica- grande parte desconhecida das pesquisas desenvolvição da segunda edição de sua História Geral do Brasil, das por Netscher e por Varnhagen que ali trabalharam antes de sua separação e independência de Portugal. Muito antes de 1856. No seu acervo encontra-se a documentação da Câmara da Zeaumentada e melhorada pelo autor. A obra recebeu uma edi- Leonardo Dantas Silva lândia, Brieven en Papieren uit 30 Continente Multicultural


BANCO DE IMAGEM / JC

Brazilie (13 volumes) e as Dagelijkse Notulen (12 volumes), afora quatro outros volumes encadernados e quatro maços manuscritos, perfazendo o total de cerca de 13.200 páginas. Graças a tão importante acervo documental, pôde Alfredo de Carvalho (1870-1916) e Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923) publicar, na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, algumas traduções de documentos preciosos, bem como vários ensaios sobre o Brasil Holandês sem a necessidade de sair do Brasil; o mesmo acontecendo nos anos quarenta do século passado, com José Antonio Gonsalves de Mello. Em sua colaboração ao Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros, organizado por Rubens Borba de Morais e William Berrien, José Honório Rodrigues aponta a obra de Hermann Wätjen, Das Holländische Kolonialreich in Brasilien: ein kapitel aus der kolonialgeschichte des 17, como "o melhor estudo até hoje realizado sobre o domínio holandês no Brasil. Bem planejado, bem pensado, este livro impõe-se como o mais completo sobre o assunto. Isso não importa em lhe reconhecer caráter decisivo ou indiscutível, como acreditam alguns. Muitas questões precisam ser reexaminadas, muitas pesquisas novas esclareceram dúvidas do autor e, principalmente, deve ser indicada a sua parcialidade na utilização das fontes. A irrestrita irritação pelos documentos e livros luso-brasileiros é fato indiscutível, que muito prejudica e invalida algumas conclusões". A obra de Hermann Wätjen foi traduzida para o português por Pedro Uchoa Cavalcanti, recebendo o título O domínio colonial holandês no Brasil. A lacuna reclamada por José Honório Rodrigues veio a ser preenchida por José Antonio Gonsalves de Mello, que, em 1947, vem revelar ao público interessado no tema o mais completo estudo sobre o período, quando do lançamento do seu livro Tempo dos Flamengos – Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. Com prefácio de Gilberto Freyre, o livro se transformou numa ampla análise sobre a influência da ocupação holandesa na vida urbana e na vida rural do Nordeste do Brasil naquela primeira metade do século 17. Um estudo apurado sobre a atitude dos holandeses para com os negros e a escravidão, para com os índios e a catequese e para com os portugueses e judeus, bem como para com as religiões católica e israelita, transformando-se, assim, em um dos marcos da moderna historiografia nacional. Tempo dos Flamengos veio a ter uma segunda edição de 5.000 volumes em 1978 e uma terceira a cargo da Editora Massangana, 3.000 volumes, em 1987.

O historiador Pereira da Costa, em bico-de-pena de Manuel Bandeira

Para a produção de Tempo dos Flamengos o seu autor, José Antonio Gonsalves de Mello, então com 30 anos incompletos, valeu-se da documentação reunida por José Hyginio Duarte Pereira (1885-86), conservada no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, bem como de uma extensa bibliografia, resultando assim no mais completo estudo sobre a importância de tal período de formação da nacionalidade brasileira, merecendo do mesmo José Honório Rodrigues o seguinte comentário: “Das fontes examinadas com tanto vagar e tanto cuidado pelo autor, nenhuma massa de fatos desconhecidos apareceu. Nos capítulos sobre a vida urbana e rural apenas minúcias, detalhes, fatos pequenos são novos. (...) Já não se pode dizer o mesmo dos três capítulos finais. Aí, ao lado das contribuições documentais novas, aparece um sentido, uma interpretação que alçam o livro às alturas realmente pouco atingidas. Traz então uma contribuição notável, pelo saber erudito, pela riqueza de documentação, pela novidade da matéria”. (O Jornal, Rio, 10 de agosto de 1947.) Agora, em sua edição holandesa, o tradutor Benjamin Teensma vem apontar alguns erros de leitura de alguns documentos conservados em arquivos holandeses, particularmente em nomes próprios copiados por José Hyginio Duarte Pereira e seus auxiliares entre 1885 e 1886, o que, ao meu ver, em nada comprometem o conteúdo da obra escrita com maestria nos anos quarenta do século que findou-se. A interpretação da vida social desta região, hoje integrante do Nordeste do Brasil, a influência da ocupação holandesa sobre as religiões e raças formadoras de nossa nacionalidade, isso, sim, foi magnificamente estudado de forma clara e sistemática, daí a importância de Tempo dos Flamengos, um livro sempre atual e de leitura apaixonante. Leonardo Dantas Silva é diretor da Editora Massangana, responsável pela segunda e terceira edições de Tempo dos Flamengos

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REPRODUÇÃO

Dirigentes da Hebrá Cadisá de Praga diante do túmulo de Yeyudá Loew no Cemitério Judeu de Praga – Museu Estatal Judeu de Praga

Cemitério de judeus Mapas do século 17 indicam a provável localização de um cemitério de judeus no Recife, até hoje inexplorado

N

a Caerte van de Haven van particularidades dele/ No Ano de 1639, que perPharnambocque met Stat Mou- tence ao Atlas de Vingboons, como é conhecido um ritia, ´t Dorp Reciffo en Byleg- conjunto de mapas pertencente ao Instituto Argende forten met alle gelengenhe- queológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, den van dien. In ´t Jaer Anno fora da cartela principal existe uma indicação do se1639, ou seja, Planta do Porto guinte teor: De Joden Begraef Plats, traduzível como de Pernambuco, com a cidade o cemitério dos judeus. Noutro mapa, de 1648, este Maurícia, a aldeia Recife e os fortes circunvizinhos e todas as José Luiz Mota Menezes de autoria de um cartógrafo dos 32 Continente Multicultural


margens do rio Capibaribe, mais notáveis, Golijath, que Não podemos assegurar sendo o lugar, no século 17, esteve realizando levantafortificado com uma boa mentos da costa do Nordeste que exista material paliçada. Nas proximidades na primeira metade do século remanescente daquele do cemitério, “por ordem 17, em cartela e sob o número 33, uma indicação nos inforcemitério, vez que o uso do Conde de Nassau, foi ma: ´t Joden kerckhoff, ou seja, da área, ao longo de mais construída em 1641 uma casa para abrigar uma pecemitério judeu. Finalmente, na Caerte de três séculos, em muito quena guarnição militar de van de Haven van Pharnammodificou o solo natural seis soldados, com um funcionário encarregado de boque, cujo original encontrainspecionar os barcos que se no Algemeen Rijksarchief, em Haia, na Holanda, aquela inscrição, De Joden passavam pelo rio, a fim de coibir contrabando”, Begraef Plats, existente no primeiro dos mapas cita- segundo nos informa o historiador José Antonio Gonsalves de Mello. dos, repete-se. No mapa de 1639 o cemitério está representado Os três mapas são de muita exatidão, e esta pode ser comprovada quando de pesquisas realizadas isolado; a ele chegava-se por um estreito caminho para a elaboração do Atlas Histórico e Cartográfico pela margem do rio. O acesso mais fácil seria então do Recife, coordenadas pelo arquiteto José Luiz por meio de barco. Nos mapas de 1648 e na Caerte, um casario está indicado à volta do cemitério. Mota Menezes, entre 1984-85. Através daquele processo de triangulação e meO segundo dos mapas, de 1648, e o último, didas proporcionais, chegamos assim a localizar o guardado na Haia, parecem de uma mesma mão, razão por que atribuímos também o último ao car- cemitério dos judeus em torno, ou mesmo no terreno do recolhimento de Nossa Senhora da Glória, tógrafo Golijath. Em Arqueologia de Reconhecimento, os resul- na rua da Glória, uma das primeiras do bairro da tados de pesquisas em fontes históricas e cartográ- Boa Vista. Hoje, no lugar, além do referido recolhificas podem em muito facilitar a tarefa dos espe- mento, encontram-se construídas, em direção ao rio, cialistas em trabalhos de campo. Eles podem in- as instalações da Parmalat. É necessário, no endicar prioridades e determinar melhores lugares tretanto, observar que a atual rua e cais do Dr. José Mariano, antes margem do rio Capibaribe, não se para futuras prospecções. Com relação ao cemitério dos judeus no Recife, encontra no seu alinhamento primitivo, que era mais existente quando da presença de inúmeros sefara- para detrás, conforme aquele referido Atlas Histódís na Capitania de Pernambuco, essencialmente rico e Cartográfico. Um mapa do engenheiro militar no Recife entre 1630-1654, não tinha ocorrido Cronenberger, pertencente ao antigo Arquivo Imuma merecida pesquisa cartográfica. Não ocorren- perial, hoje do Exército, datado de 1827, nos dá a do maiores buscas nos mapas conhecidos, tudo linha da margem do rio situada na altura do muro de fundo do terreno daquele recolhimento. Outras proficando no campo das hipóteses. Com o uso da Cartografia Histórica e de fontes priedades, todas na rua da Glória, faziam limites no fiéis e exatas, na medida da precisão do século 17, mesmo alinhamento e de forma extensiva definem um lugar possível para o cemitério dos judeus foi aquela margem desenhada no mapa de 1827. Em Arqueologia de Reconhecimento chegamos identificado pelo autor do presente texto. Isto se deu por conta do uso de um procedimento que per- a indicadores, somente a prospecção no campo pomite a sobreposição de informações de mapas ante- derá confirmá-los e oferecer dados mais precisos. riores sobre um mapa recente, este com medidas Também não podemos assegurar existir ainda aldecimais, com o emprego da Matemática e da gum material remanescente daquele cemitério, vez Geometria, além do desenho. Assim, certos dados que o uso da área, ao longo de mais de três séculos, referentes à situação cartográfica das representa- em muito modificou o solo natural. Nas páginas seguintes, o procedimento pelo ções do cemitério, relacionados com outros, pertinentes a construções e lugares que não se modifi- qual foram determinadas as possíveis localizações caram desde o momento da confecção daqueles para o cemitério dos judeus vem detalhado e ilustrado com mapas e indicadores gráficos.mapas, são comparados. Sabemos, por outro lado, que tal cemitério era José Luiz Mota Menezes é presidente do Instituto atingido por meio de barco, pois situava-se nas Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano Continente Multicultural 33


Como foi descoberta a

Mapa do Recife de 1639, do Atlas de Vingboons, com a triangulação

Mapa do Recife de 1639, do Atlas de Vingboons, com a triangulação

Caerte Vande Haven van Pharnambocque (1644), do Algemeen Rijksarchief, em Haia, com a triangulação

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Por adotarem um sistema métrico não-decimal, as escalas originais dos mapas do século 17 não serviriam para se fazer uma leitura correta da localização do cemitério. O método mais preciso é o da triangulação.

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O processo consiste na escolha de pontos que permaneceram fixos, desde a confecção dos mapas até hoje, para servirem como vértices de um triângulo, que se completa com a localização do cemitério em cada um dos mapas.

3

Desenhados pelo mesmo autor, o cartógrafo Golijath, o mapa de 1648 e a Caerte vande Haven van Pharnamboque resultam em triângulos semelhantes, que indicam um mesmo ponto como o cemitério dos judeus.

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provável localização do cemitério dos judeus

Mapa do Recife de 1932, com as duas triangulações sobrepostas

Mapa do Recife de 1906, por Douglas Fox e Whiteney, destacando as duas possíveis localizações do cemitério dos judeus

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Os dois triângulos obtidos são sobrepostos a um mapa mais recente, de 1932, e dois resultados dão as possíveis localizações do cemitério.

O mapa constante no Atlas de Vingboons trata-se de um projeto do engenheiro militar Pieter Post, e não de um levantamento cartográfico. A falta de maior rigor técnico levou a uma localização do cemitério que as pesquisas recentes provam incorreta. De acordo com este mapa, o cemitério estaria situado dentro do rio Capibaribe. Continente Multicultural 35


REPRODUÇÃO

Frans Post, Prefectura Parayba et Rio Grande, em História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, de Gaspar Barlaeus

Vítimas ou

Mulheres em Pernambuco durante o domínio holandês

A

época do domínio holandês em cotidiana, no sempre possível encontro com soldaPernambuco marcou um período dos ou com civis a serviço da Companhia das Índias, excepcional para a vida das mulhe- pelas ruas, quando a caminho da missa, por exemres na Colônia, pertencessem elas plo, ou para as mais humildes, no ato de ir ao merà classe social mais elevada ou fos- cado, ou de buscar água nas fontes e poços. José sem mulheres do povo. Excepcio- Antonio Gonsalves de Mello, em Tempo dos flamennais, igualmente, as existências das gos, citando trechos das notas que os responsáveis holandesas e outras estrangeiras que aqui chegaram, enviavam à Holanda, conta detalhes daquele cotidiacompanhando os maridos e parentes, soldados ou ano, assinalando inclusive os casamentos realizados funcionários da Companhia das Índias Ocidentais, entre flamengos e brasileiras, fato normal considecomo daquelas que aqui aportavam para fazer co- rando-se a duração da permanência dos holandeses mércio do próprio corpo, esperançosas de ganhar em Pernambuco. De uma maneira geral, duas atitudes se impudinheiro ou talvez mesmo de mudar seu modo de se inserir na sociedade. Qualquer que fosse o motivo nham aos brasileiros, logo que se acreditou definitiva que as traziam, todas se defrontavam com condições a instalação do invasor no solo pátrio: conviver com de vida radicalmente diferentes daquelas que leva- ele, aceitando sua presença no trato diário, ou reagir, organizando-se em movimentos de oposição que vivam em seus países. Podemos imaginar como, desde os primeiros savam sustar o avanço dos inimigos, em guerrilhas momentos da instalação dos holandeses, a existência ou combates diversos. A documentação da época, os das mulheres brasileiras ou portuguesas aqui resi- relatórios ou relatos de cronistas, nos deixaram alguns nomes de personagens fedentes sofreu o impacto das mudanças, no trato da vida Luzilá Gonçalves Ferreira mininos que se notabilizaram 36 Continente Multicultural


A documentação da época, os relatórios ou relatos de cronistas nos deixaram alguns nomes de personagens femininos que se notabilizaram por atos de reação ao invasor, ou de vítimas de uma situação que entretanto elas enfrentaram com coragem por atos de reação ao invasor, ou de vítimas de uma situação que, entretanto, elas enfrentaram com coragem. Entre esses nomes encontramos os de Clara Camarão, das chamadas heroínas de Tijucopapo, de Maria de Souza e de Catharina Camello, Catharina Camelo Sobrinha, Catharina Barreto, Felipa de Mello e Albuquerque, Izabel de Moura, Mencia de Moura, Sebastiana de Albuquerque, entre outras. Todos conhecemos o desempenho, ao lado do marido, da Clara Camarão, que, com outras índias, se ocupou não só da intendência, da assistência aos

Gonçalo Velho e Estevão Velho. Mortos o genro e dois filhos, ela recebe, pouco tempo depois, a notícia da morte de Estevão Velho, que lutava ao lado de Mathias de Albuquerque, no combate da Villa Formosa de Serinhaém. Com lágrimas nos olhos e inflamada pelo amor da pátria, segundo as palavras de Henrique Capitolino, em seu Pernambucanas Illustres, ela chama os dois filhos restantes, Gil, de 14 anos e Luiz, de 12 anos, a prosseguir a luta. E Capitolino pergunta: que maior heroicidade se pode esperar de um coração de mãe?

homens feridos, mas que, segundo cronistas, se bateu com bravura ao lado da gente masculina, em combates vários, entre eles o das Tabocas, em Vitória de Santo Antão. A História registra, igualmente, a luta das mulheres de Tijucopapo, ajudando os homens a defender seu reduto, cortando madeira, construindo fortes cercas para impedir o avanço do inimigo e depois diretamente lutando contra ele. No que concerne a outros tipos de oposição, a História é mais reservada. Sabemos que algumas mulheres pagaram com a vida sua oposição aos holandeses, mas os nomes das mulheres que ofereceram uma resistência pacífica ao inimigo são menos conhecidos. Entre esses nomes, encontramos o de D. Maria de Souza. D. Maria era viúva e, segundo contam alguns historiadores, entre os quais Mendes Leal Junior no seu livro sobre Calabar, Britto Freire na Guerra Brasílica, o Conselheiro Balthazar da Silveira em suas Notas Biographicas, Joaquim Norberto em Brasileiras Célebres, ela encorajara a se engajar na luta o genro, o capitão Antonio Lopes Filgueiras e os três filhos Antonio Velho,

Quando se dá a derrocada da fortaleza da Villa Formosa de Serinhaém, Mathias de Albuquerque, que dirigia as operações, constatando a impossibilidade de ali permanecerem, aconselha a que todos emigrem, com suas respectivas famílias. É o que acontece. Comentando a narração que faz Varnhagen dessa longa marcha através de matas e florestas, atravessando rios e subindo colinas, afrontando o perigo de ataques de índios ou de animais bravios, Capi-

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heroínas

Albert Eckhout, Detalhe de Mameluca – Museu de Arte Histórica de Copenhague

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licados pés nos espinhos do tolino afirma que aquela D. Catharina Camello, caminho, tendo as faces de marcha de retirada militar quando foi preciso momento a momento açoitaera, bem mais antes, uma emigração do pátrio lar, dei- emigrar, não hesitou em das pelos ramos das árvores que se desprendiam, expostas xando abandonados bens, abandonar seu engenho, ao sol, à chuva e a inúmeros fazendas e parentes. perigos”. e com duas filhas Capitolino descreve com As mulheres que permadetalhes realistas o que ele marchou, “preferindo ser neceram em Pernambuco, chama de a “emigração terrível”, falando das veredas livre embora pobre, a ser enquanto os maridos se reuniam aos resistentes que se abertas nas matas por meio rica sendo escrava” organizavam na Bahia, ou do ferro e do fogo, dos rios que se vadeavam, dos liames que obstruíam a pas- aquelas que tinham seus esposos presos ou condenasagem, dos precipícios com os quais se defrontavam. dos por escaramuças havidas com soldados holanRelata a morte de centenas de pessoas que morriam deses também viram mudar a vida cotidiana, e por pelos caminhos, gastos pelo cansaço e sofrimento. vários meios tentaram obter o perdão ou a liberdade do consorte. É o caso de dona Isabel de Araújo, cujo Lembra a situação mais particular das mulheres: “Ali se via com os pés feridos a donzela, que ape- esposo, Julião, fora preso por uma briga com flamennas em sua vida passeara a distância de sua casa até a gos e porque se desconfiara que mantinha corresIgreja; acolá a jovem esposa, que vendo o momento pondência com soldados da Bahia, e estava prestes a de dar à luz o fruto de seu amor, tinha de misturar as ser degolado. Sabe-se que Isabel de Araújo, acomlágrimas das dores do parto com as de perder o filho, panhada por seus cinco filhos menores, recorreu a Anna Paes d’Altro, senhora do engenho da Casa ao exalar o primeiro suspiro.” E cita alguns dos nomes dessas mulheres, “már- Forte, e amiga pessoal de Maurício de Nassau, no tires de abnegação de patriotismo”, como de D. Ca- intuito de obter o perdão do marido, o que foi feito. tharina Camello, viúva de Pedro de Albuquerque, Não foi esta a única vez em que a bela Anna Paes, filho de Jerônimo de Albuquerque e da princesa que teve por padrinho de dois de seus filhos o próprio índia Maria do Espírito Santo Arcoverde, assinalan- Nassau, segundo consta em documentos da Igreja do o fato de que, quando foi preciso emigrar, ela não Reformada em Pernambuco, intercedeu em favor de hesitou em abandonar seu engenho, e com duas fi- mulheres cujos maridos haviam sido condenados lhas marchou, “preferindo ser livre embora pobre, a pelo Governo holandês. Uma dessas mulheres foi ser rica sendo escrava”. E relata a sorte igual de sete dona Jerônima de Almeida, esposa de Rodrigo de outras matronas, cujos nome mencionamos no co- Barros Almeida, que se havia retirado para a Bahia. meço deste artigo, que compartilharam as sortes de Dona Jerônima vivia chorosa, em sua residência de oito mil pessoas que emigravam, “sangrando os de- Porto Calvo, lamentando a separação e falta de notíFrans Post, Garasu, do livro de Gaspar Barlaeus

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cias do marido, pois Nassau havia proibido qualquer contato entre os residentes em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, com os da Bahia. Eis que um dia passou pela sua casa uma tropa de soldados portugueses. Os homens estavam famintos e cansados e se haviam detido na propriedade de dona Jerônima pedindo agasalho. Traziam, como argumento irrecusável, cartas de seu marido. Ao que se sabe, um escravo que ela mandara açoitar dias antes, a denunciou. E dona Jerônima, mãe de nove filhas moças e de mais três filhos, aguardava na prisão, o momento de ser degolada. Em sua História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, Gaspar Barlaeus conta como Anna Paes se tomara de compaixão por dona Jerônima e seus filhos, ao ouvir sua história. Reunira algumas mulheres e com elas fora ter com o Príncipe, que as recebera com delicadeza. Anna explicara que, abrigando aqueles que traziam notícias do marido, dona Jerônima agira tão somente levada pela alegria de receber as cartas do esposo. E dali a alguns dias Maurício de Nassau assinava um documento perdoando a dona Jerônima. No que concerne às mulheres sozinhas, vindas da Holanda, sabe-se que vários documentos holandeses notificam a presença de muitas prostitutas, algumas assinaladas pelo próprio nome ao qual, às vezes se acrescenta o apelido. Essas mulheres embarcavam muitas vezes sem o consentimento das autoridades holandesas e algumas se disfarçavam com trajes masculinos para fazer a travessia, da Holanda ao Brasil. Os pastores holandeses, entre os quais Vicente Soler, freqüentemente reclamavam medidas que sustassem a vinda dessas mulheres, lembrando como podiam desencaminhar pessoas honradas e causar desordens. O exemplo mais marcante do congraçamento entre holandeses e brasileiras é o de Anna Paes D’Altro. Anna descendia de dona Isabel Froes, que viera de Portugal recomendada pela própria rainha à Capitoa Brites de Albuquerque, que governava então a Capitania de Pernambuco. Herdara o Engenho da Casa Forte e desposara em primeiras núpcias um capitão português. Viúva por duas vezes, Anna se casara, segundo os ritos calvinistas, com Charles de Tourlon e em seguida com Gisbert de With, oficiais holandeses. Na Igreja Reformada se batizara, abjurando

Albert Eckhout, Mameluca – Museu de Arte Histórica de Copenhague

assim de sua antiga fé católica, e batizara seus filhos. A batalha do dia 17 de agosto tivera seu engenho por cenário: as tropas holandesas, engrossadas por muitos índios que se haviam colocado do seu lado, vindas, famintas e cansadas, de combates anteriores, se haviam detido ali, para recuperar as forças, quando foram surpreendidas pelos soldados comandados por Fernandes Vieira. Anna, que acreditara ser o domínio holandês de maior futuro para o Brasil que aquele dos portugueses ou dos espanhóis, tem então sua casa incendiada em parte. Presencia a derrota dos amigos, vê com horror o número de mortos deixados nas terras do Engenho da Casa Forte, após os combates, e a retirada dos vencedores como dos vencidos. Com a partida dos holandeses, não sabemos com certeza se a bela Anna Paes D’Altro acompanhou o marido na volta à Holanda ou se aqui ficou, afrontando a ira dos compatriotas, por ter colaborado com o inimigo, como se depreende das notas que sobre ela escreveu Frei Manuel Calado em O Valeroso Lucideno. Luzilá Golnçalves Ferreira é escritora e professora do curso de Letras da UFPE

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SÉCULO 21

Da privatização da cultura Algumas das maravilhas da arte universal colocam sérias dúvidas quanto ao dogma da privatização da cultura

A

empresa pública é boa, mas a privada é muito melhor. Eis a máxima dos ideólogos da chamada Terceira Via, o remédio para todos os males da sociedade global. O modelo público de financiamento da cultura jamais esteve tão ameaçado. Depois da privatização dos serviços de infra-estrutura, sonha-se com a educação apenas como negócio. Logo chegará a vez do sistema público de cultura: arte, museus, monumentos, tudo será competentemente administrado pelas elites esclarecidas e empresários conscientes de seu papel de vanguarda cultural. Em vez de prédios históricos em estado precário administrados por um número exagerado de funcionários públicos, em vez de museus sujos, sem recursos para promoções e aquisições e considerados apenas um cabide a mais de empregos pelos inumeráveis políticos corrutos do Brasil, a privatização será a solução. Afinal, os nossos cinemas não dão tanto lucro. Por que não incutir o interesse por outras formas de cultura na população? Quem se oporia a um empresário com uma visão aberta a ponto de comprar um forte antigo, um bairro histórico, ou uma casa grande e mantê-los como um importante centro turístico ge-

Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 40 Continente Multicultural


rando lucro e impostos para o Estado? Por que não fazer da História uma empresa? Os argumentos podem ser os mais convincentes, contudo a realidade pouco segue a lógica. Algumas das maravilhas da arte universal colocam sérias dúvidas quanto ao dogma da privatização da cultura. Primeiro, o Castelo Hever, em Kent, na Inglaterra, onde já estive várias vezes nos últimos onze anos e presenciei a mudança de sua gestão na direção a uma postura mais privatizada. O castelo sempre foi privado. Até meados do século 20 foi literalmente habitação de uma nobre família inglesa e manteve seu lado histórico semi-intacto. Ali, séculos atrás, Henrique VIII conheceu e se apaixonou por Ana Bolena e se passaram fatos cruciais da vida política inglesa. Dentro de suas modestas muralhas encontra-se o mais autêntico ambiente do início do renascimento inglês. Lindos ainda são o gramado e os jardins externos, de inspiração italiana, e pontuados por belos monumentos e um recém-construído jardim de flores e ervas que leva na direção de um teatro ao ar livre, onde no verão se podem ver espetáculos e música após um agradável piquenique na relva. O palco tem como pano de fundo uma bela lagoa margeada por pequena floresta, que nos fornece ainda uma estimulante caminhada. A última vez que o visitei percebi que a família americana, que atualmente é a proprietária, ampliou a coleção de suas fotos nos quartos do castelo. São fotos de seus antepassados recentes, dos atuais bilionários que estão à frente dos negócios, de encontros de membros da família com políticos, uma série de lembranças que teriam importância em um museu dedicado à família, mas que naquele castelo ganham um significado negativo: de que se quer criar uma identificação mercadológica entre os atuais proprietários e o passado histórico inglês. É inevitável a idéia de usurpação da memória histórica do castelo e sua gradual associação à história da família proprietária. Imagine um destes mi-

lionários comprando o Cristo Redentor e fazendo-o a logomarca de sua empresa, ou criando nas suas entranhas um museu dedicado aos seus avós. Se Paris fosse engolida pelo fogo e restasse o Palácio Garnier e o Louvre, toda a beleza poderia ainda ser reconstruída. Retrato da megalomania de Napoleão, a casa de ópera no coração da cidade não é apenas o mais belo prédio do mundo. Ela, como o Louvre e muitos outros espaços culturais na França, nos oferece um segundo exemplo. Mostra como deve ser a adequada combinação entre o bem público e a sua função de gerar renda. Ao lado do cuidado com a manutenção da História, existe a preocupação com o compromisso e a geração de renda. Nada é de graça. Paga-se para entrar, embora menos que nos museus em Londres. Na França, os espaços continuam públicos e administrados cada vez mais como privados. A necessidade de se autofinanciar está ainda combinada com o impacto que os monumentos exercem no fluxo turístico e na sobrevivência econômica da cidade. Um dia em cada mês do ano, o Museu do Louvre e todos os outros são gratuitos. Todos continuam com o direito à cultura. Pelo menos uma vez ao mês. No Brasil vivemos num paradoxo. Embora a manutenção da cultura seja considerada pública; como tudo que chamamos de público, neste país, ela é de fato privada. Onde a diferença entre o privado das elites e o público é pouco relevante. Incontáveis são os monumentos destruídos, contrabandeados, corrompidos por indivíduos que se aproveitam para literalmente se perpetuarem à frente de instituições mortas, apropriarem-se dos objetos ou simplesmente destruílos, criarem fundações para promover empresas às custas dos incentivos culturais. Longe dos modelos francês e inglês, nossa máxima é ainda modernizar, sem mudar. Marcos Guedes é ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco

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LIÇÃO DE ARTE

A acesa artede

Roberto Lúcio Camilo Soares


FLÁVIO LAMENHA

Por incrível que pareça foi o olfato – e não a visão – o sentido determinante da escolha de Roberto Lúcio pela pintura. Recém-chegado ao Recife, no início dos anos 60, com a intenção de cursar Arquitetura, o jovem paraibano terminou no curso de Belas Artes. E então aconteceu: “Quando entrei na sala e senti aquele cheiro de terebintina, eu disse – Meu lugar é aqui mesmo! Não vou mais fazer Arquitetura”. Na época, era grande a efervescência político-cultural na capital pernambucana e Roberto Lúcio mergulhou de cabeça naquele universo instigante. E emergiu com uma proposta absolutamente pessoal, em meio ao universo fortemente impregnado de tradição figurativa. Mas essa rutura não era uma mera manifestação de rebeldia de jovem, nem o desejo narcísico de criar um mundo próprio, isolado do contexto de sua época. Paradoxalmente, ao optar pelo abstracionismo, Roberto Lúcio estava retomando o veio de manifestações populares das mais genuínas do Nordeste e do Brasil: o geométrico abstrato dos parques de diversões e das culturas indígenas, das fachadas e dos tapumes. Da pintura para as artes gráficas, Roberto Lúcio experimentou vários suportes, sem qualquer preconceito (“Não é o suporte que define o valor da obra de arte”). Desenhando estamparias para uma fábrica têxtil, relacionou-se com Pierre Cardin, por quem foi autorizado a modificar tudo que quisesse para adaptar as cores dele às condições brasileiras. Em sua última exposição – A Casa Acesa – no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, Roberto Lúcio faz um entrelaçamento entre arte popular e arte construtivista, no qual as cores e o traçado geométrico das memórias de sua infância ressurgem, recriados, numa estética equilibrada entre a rusticidade e a sofisticação. Nesta entrevista, o artista fala da sua obra, de concepções estéticas e dos seus planos. Continente Multicultural 43


O que é arte para Roberto Lúcio? É mais fácil fazer do que teorizar. Frederico Morais escreveu um livro com depoimentos contraditórios de vários artistas. Entretanto, fico com o título do livro: Arte é o que eu e você chamamos de arte.

como a manipulação de espaços e, logicamente, isso teve influência em meu trabalho de artista plástico. A mudança para uma linha abstrata foi natural e não uma idéia preconcebida, tipo “eu vou mudar”. Tudo foi acontecendo naturalmente.

Você desenvolveu um estilo abstrato em contraposição a uma forte tradição figurativa do Recife. Como você vê essa ruptura e esse redimensionamento da arte local? Minha formação foi na Escola de Artes, antiga Escola de Belas Artes, ao redor de artistas figurativos. Havia uma forte tradição figurativa, mas uma coisa que nunca pensamos é que a arte abstrata sempre existiu em manifestações populares. Você pode ver isso em parques de diversões, em suas formas geométricas abstratas. A cultura indígena também é toda em cima do geométrico abstrato. Então, quando rompi com a figura e a tradição do Nordeste foi um processo natural. Passei a desenvolver outras formas de trabalhar, por exemplo, a arte gráfica.

Como é que você, tido como um dos artistas mais inquietos de sua geração, encara a utilização de novos suportes para a obra de arte? Acho que cada projeto de arte requer um tipo de suporte, cada trabalho pede um suporte adequado à sua proposta. Não se pode padronizar o suporte. Há artistas que executam um trabalho tradicional sobre um suporte novo. Não é o suporte que define o valor da obra de arte.

O quarto dos meus sonhos, 2000, madeira e cetim, 0,5 x 0,54m

FRITZ SIMMONS / REPRODUÇÃO

Fale mais dessa experiência. Minha formação é de artista gráfico, trabalhei muito tempo nisso. Eu usava diversos recursos

Você, como João Câmara, entre outros, veio da Paraíba para se firmar como um grande nome nas artes plásticas de Pernambuco. Conte um pouco dessa história. Minha infância e juventude foi o normal de pequena cidade do Nordeste. Estudei no Marista, em João Pessoa. Como sempre gostei de desenhar, fui fazer arquitetura no Recife quando terminei o curso secundário, já que não havia arquitetura em


FLÁVIO LAMENHA

“Não se pode padronizar o suporte. Há artistas que exercitam um trabalho tradicional sobre um suporte novo. Não é o suporte que define o valor da obra de arte”

João Pessoa naquela época. Não passei no vestibular e terminei entrando na Escola de Belas Artes. Quando eu entrei na sala e senti aquele cheiro de terebintina, eu disse: “Meu lugar é aqui mesmo! Não vou fazer arquitetura”.

Como foi essa vivência na Escola de Belas Artes? Na década de 60 havia um movimento muito bom de arte aqui no Recife. Era uma grande efervescência. Na Escola de Belas Artes havia um movimento político-cultural que congregava diversas áreas, como teatro, música e artes plásticas, proporcionando um grande intercâmbio. Tive grandes professores como Vicente do Rêgo Monteiro, que tinha uma visão maior de mundo. Era um cara que tinha morado em Paris e que tinha uma participação grande nos movimentos de arte na Europa e também no Brasil, já que participou da Semana de Arte de 22. Era uma pessoa que tinha uma cultura muito vasta – tive muita sorte de ter aulas com ele. Mas tive professores de perfis completamente diferentes. Estudei também com Acácio Gil Borsoi, o arquiteto. Com Gastão de Holanda fiz curso de arte gráfica. Acho que foi esse somatório de pessoas que me levou a ler mais sobre arte e me integrar naqueles movimentos.

Como seu professor Vicente do Rêgo Monteiro, você também viveu muita coisa fora do Brasil. Minhas experiências fora do Brasil sempre foram muito esporádicas. Nunca fui de ficar longe por muito tempo. Como tinha estudado artes gráficas com Gastão de Holanda, abri com (a hoje cineasta) Kátia Mesel um dos primeiros escritórios do gênero aqui no Recife. Começamos então a trabalhar e eu me entusiasmei muito pelo design. Iniciei uma experiência com uma fábrica de tecidos, para a qual eu desenhava estamparias. Quando cheguei na fábrica, todos os desenhos eram produzidos no Exterior. Com o tempo eu modifiquei esse perfil, montando uma equipe de desenhistas que passou a criar todos os desenhos utilizados pela fábrica. A partir daí, tive contato com a Europa, pois a fábrica fazia toalhas de mesas e lençóis de Pierre Cardin, que era o boom do momento, já que era considerado como o mais arrojado e cheio de propostas diferentes capazes de mudar o perfil do mercado. Eu conheci alguns designers que trabalhavam com ele que me fizeram essa ponte com a Europa e ele, Pierre Cardin, me autorizou a modificar tudo que eu quisesse para adaptar as cores dele às condições brasileiras. Foi a partir de então que começou meu contato com a Europa. Além de trabalhar com estamparias, há algum outro trabalho seu com a área industrial? Também trabalhei na fábrica de azulejo Iasa, pertencente à família Brennand. Era a mesma coisa: os desenhos vinham todos da Europa. Então, eu passei a produzir essa linha de azulejo. Foi uma experiência muito rica, pois era a primeira interferência de um designer dentro das fábricas do Recife. O uso da modulação em seu trabalho artístico não seria uma influência desse processo gráficoindustrial? Continente Multicultural 45


FRITZ SIMMONS / REPRODUÇÃO

Série Fachadas III, 1999, técnica mista sobre tela, 1,40 x 2,00m

Talvez essa vivência com design e com arte industrial de modo geral tenha um significado na minha arte. Além da modulação, uso e apresentação diretos dos materiais, ausência de ornamentação, estabelecem um ponto de partida para esses novos trabalhos (A Casa Acesa). Apesar dessas experiências industriais, há uma grande urgência regional em sua arte, uma busca às raízes tanto pelo material quanto pela simbologia. Como é essa relação entre tecnologia e retorno à origem? Acho que a tecnologia é apenas um instrumento de trabalho. É como um pincel. A técnica é algo muito pessoal. Na medida em que se tem necessidade de usar tal técnica, você a usa. É como o material – não tenho preconceito de usar nenhum material. Eu uso qualquer material em prol do resultado do trabalho. Acho que para produzir vale a experiência de saber que material usar. E em relação à temática regional? O que me interessa é uma solução plástica. Na série Tapumes, por exemplo, meu ato de apropriação é puramente conceptual, a transformação é radical; ao mesmo tempo em que mantém uma relação com o original. Vemos na sua arte aspectos construtivistas, quando ela toma emprestado conceitos do processo industrial, como padronização e modulação; mas há também a questão do cru, da textura da matéria em contraste com o liso industrial. Como você vê a junção de características tão contrárias? 46 Continente Multicultural

O que me interessa bastante é o hiato entre os elementos anárquicos e construtivistas. A série Tapumes foi fundamentada em cima disso. Onde você vai buscar sua inspiração? Eu não acredito muito em inspiração, eu acredito mais no exercício da coisa. Estou sempre me exercitando no dia-a-dia. Eu vou juntando todo o material ao meu redor até a hora em que possa dar uma ordem nele. Aí trabalho e manipulo esse material até surgirem soluções plásticas. Você teve algumas experiências de ateliês coletivos. Como foi isso? Minha experiência com ateliês coletivos nunca foi muito boa. Houve uma necessidade de me juntar com outros na época em que eu era estudante pois não tinha espaço físico, mas nunca gostei de trabalhar em conjunto. Inclusive, eu nunca tive participação no Ateliê Coletivo. Conheço e me dou bem com todos, mas meu trabalho foi sempre muito independente disso. É um isolamento artístico? “Roberto Lúcio nunca pretendeu responder qualquer situação além das intrínsecas à sua pintura. Não é um teórico, nem um ativista, nem um líder de escola, e sim um artista-artesão engajado integralmente no fazer.” Essa é uma frase de Olívio Tavares de Araújo sobre meu trabalho que eu tomo emprestada para responder a pergunta. Isso se reflete no seu estilo abstrato, apesar de todo um ambiente contrário?


Na década de 80, comecei a responder sempre com uma proposta pessoal que é de síntese, inclusão e não exclusão, e na qual o elemento brasileiro permanece como substrato para soluções formais supranacionais e em sintonia com o entorno e o momento.

A sua disposição de horizontais e verticais, criando cadência, ritmo e equilíbrio, lembra o estilo de Piet Mondrian. Há uma influência? Talvez essa limpeza ao usar poucos elementos seja uma solução do aprendizado da arte gráfica. Mas cada obra é uma proposta diferente.

Para fazer a série A Casa Acesa, você voltou para a casa de sua infância em João Pessoa e a fotografou. A partir daí, você criou uma representação visual de sua memória. Esse método de pesquisa utilizando a fotografia como referência é uma constante em seu processo criativo? Eu acho que cada momento é um momento diferente de pensar, de viver, de olhar. Acho que uma das coisas mais importantes para o artista plástico é aprender a olhar. Eu olho e vejo as coisas que me interessam. Antes de fazer a série Tapumes, por exemplo, eu passava na avenida Agamenom Magalhães e, na época, lá tinha um monte de tapumes, quando o povo da favela tinha sido transferido para lá devido a obras na favela de Santo Amaro. Cada dia em que eu passava tinha uma transformação: eles arrancavam, colavam coisas em cima, tinha grafitagem, tinha uma madeira que quebrava e o cara pregava outra nova em cima – uma sobreexposição –, além da ação da chuva e do sol. Então eu me disse: “Puxa vida, vou ter que registrar isso”. Fiz mais de cem fotos. Então, comecei a perceber a grande riqueza daquilo e, a partir dessas fotos, eu desenvolvi a série Tapumes, não com uma pretensão de contar uma história ou registrar sociologicamente. Era o comportamento estético que me interessava.

Você trabalha tanto com o lado pobre e rústico, quanto com o lado rico e industrial, um contraste que tem tudo a ver com o Brasil, não apenas pelo fator social mas também por nossa formação visual. Acho que o artista tem que produzir o que ele vive, senão seria falsear a existência. O artista está ligado diretamente ao lugar onde vive. Tudo que o rodeia tem influência sobre ele.

Então, Roberto Lúcio é um reciclador? Na medida em que se faz necessário, sou também. Mas eu reciclo e posso dar um novo comportamento para aquele objeto. Eu transformo esse objeto. Eu o tiro do anonimato e o coloco dentro de uma visão estética.

A instalação que você expôs n’A Casa Acesa, por exemplo, é algo fácil de vender? Quando realizei a série A Casa Acesa, pensei em executar uma idéia, um trabalho de resgate da memória. A instalação A Mesa Está Posta que faz parte d’A Casa Acesa foi concebida no final da montagem da exposição no Mamam. Foi quase uma imposição, uma necessidade de complementação, uma conclusão da proposta. Já em 2001, começo uma exposição itinerante por vários museus do Brasil e do Exterior. No final dessas apresentações, se surgir uma proposta de aquisição da série completa A Casa Acesa, não será uma finalidade, mas uma conseqüência de um trabalho com qualidade reconhecida. Camilo Soares é jornalista FRITZ SIMMONS / REPRODUÇÃO

Então, a fotografia está sempre presente no processo criativo? Nem sempre. Às vezes, pego o próprio material, um pedaço de madeira velha, um brinquedo no mercado de São José, uma cor que ache interessante, um papel, um pedaço de tecido. Eu junto sempre. Eu vou guardando, pois sei que um dia aquilo vai me ser útil. Eu tenho, por exemplo, mais de 200 fôrmas de sapato e acho que um dia vou fazer um trabalho com elas, embora talvez nem faça. Mas está tudo aqui guardado.

Como você trabalha com diversos meios de expressão (pintura, objetos, instalações etc.) você tem uma experiência bem completa com a absorção do mercado. Qual a arte mais aceita? Mercado de arte é um sistema muito complicado, pois envolve vários segmentos tais como artista, o crítico, o galerista, o marchand, o colecionador, o museu, a mass media e o público.

Articulação em cetim, 2000, madeira, cetim e latão, 0,80 x 0,03 x 0,02m [cada módulo]


Questões incisivas

U

Roberto Lúcio vem sendo experimentador mas favorece a capacidade expressiva da pintura através de escolhas e de recusas

ma das linhas de força, sutis, da exposição Fachadas, de Roberto Lúcio, certamente que vem da especial sensibilidade desenvolvida – nessa décima individual do artista – para com o desenho “quase como uma incisão” (segundo o próprio Roberto) nos quadros de grandes dimensões da série “inesperada” mesmo para um crítico que já viu de tudo, como Olívio Tavares de Araújo. Teria sido um dos aspectos a destacar no catálogo da mostra inaugurada no Centro de Artes Hélio Oiticica (1999), mas Olívio reparou menos nos traços que se aprofundam – ampliados das texturas e da arquitetura – do que no traçado da carreira de Roberto Lúcio, em texto que referencia todas as suas sucessivas experiências, ao longo de três décadas, até chegar à exposição atual como algo que o crítico se esforça em conectar com as sínteses, anteriores, do artista ainda se dividindo entre “o nacional (fachadas e cortes de casinhas de duas águas) e o internacional (construções geométricas simples), o figurativo e o abstrato.” Será? A leitura correta de Fachadas – complementada pelo segmento de objetos articuláveis (e instalação) que é A Casa Acesa – veio a se dar, no entanto, somente em dezembro passado, quando pudemos visitá-la, em montagem no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, agora em dois planos que, a meu ver, teriam levado Olívio a extrapolar, quem sabe, da lembrança de casinhas de duas ou mais águas e, principalmente, daquelas outras “águas” internacio- Fernando 48 Continente Multicultural

nais cuja atração vem a ser “fatal”, em muitos casos, para artistas atentos apenas aos modismos. Roberto Lúcio vem sendo um experimentador, sim, mas sua adesão final sempre se deu em torno daquilo que mais favorecesse as capacidades expressivas da pintura, recolhendo a lição das escolhas que fez e daquilo que recusou no curso de uma trajetória que, já agora, parece se encaminhar para o rio mais secreto da memória, naquele degrau do cais íntimo em que, passada a metade da vida, todo artista busca ancorar a expressão essencial do seu trabalho (como resultado, mais limpo e depurado, das linguagens que exercitou, por inquietação ou por curiosidade). A aderência aos signos construtivos – em Fachadas – se fez, parece-me, pela aproximação, muito lenta, do espaço íntimo, vindo da realidade objetiva para remontar aos lugares que nos habitam, ou, para usar da expressão lapidar de Evaldo Coutinho (nessa hermenêutica solitária na história do pensamento brasileiro que é A Ordem Fisionômica), ao “lugar de todos os lugares”. O que acontece com esta série – como já se anunciava em Tapumes, vista por Maarteen van de Guchte (em texto reproduzido nesta revista) – é, portanto, de um lado a recuperação do desenho como matriz, e, de outro, esse caminho interior que certamente dispensa o mero acolher, por empréstimo, de certas tendências valoradas pela contemporaneidade. No seu percurso, de inegável coerência artística, da exterioridade para o intramuros, do raso para o fundo, Roberto Lúcio passa a navegar em águas não tanto dos “portos” internaMonteiro cionais da arte, mas no remanso


dessa laguna paraibana, mais intimista, de onde emergem, agora, as formas riscadas, incisivamente, contra a superfície da memória. O que ele propõe, repito, parece-me ser um depurar dos traços – e do vivido –, em decantação que destila e torna a forma afigurativa (atenção: tem um prefixo de negação na palavra provisória que aqui se usa), razão porque o dissecar das Fachadas deveria estar mais próximo da verdade, axiomática, de que tudo é forma – do que de questões, vencidas, sobre o “abstracionismo” e a “figuração”. Nesses velhos sulcos, tais questões tendem apenas a repetir equívocos, como um disco de vinil emperrado sob agulha que não avança, ou que não quer avançar, do “debate” (ainda?) sobre se, em Pernambuco, de fato vigoraria uma tradição pictórica figurativa...

Quanto a mim, dou tais questões como falsas questões – filosófica e geograficamente – e recuso prosseguir num esquematismo de visão que separa Figura e Abstração, respectivamente como o “cordão azul” e o “cordão encarnado” da pintura, num pastoril já aposentado por nossos “abstratos” também significativos. Tudo é forma, plasticamente, e “tudo é biografia” – no dizer de Jorge de Lima – como discurso de fundo que assume o modus gestáltico, à maneira da representação das coisas que busca ser a Coisa (e não o contrário – agora mais do que nunca, no mundo da física fractal em que nos é dado vislumbrar a plena compreensão do todo contido na mínima parte etc). Isso, parece-me, é o que se evidencia das intenções do pintor que, nas Fachadas, faz da quase “incisão” essa zona riscada de sombra no meio de uma luz

FRITZ

SIMMO

NS / R

EPROD

UÇÃO

A mesa está posta, instalação, 2000

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ROBERTO LÚCIO

conseguida pelo uso da “cor de parede”, da cal que recebe a linha definidora de planos, triângulos, quadrados e escadas em ascese pelo puro branco. Logrando um efeito matérico de alta qualidade, o que Roberto constrói é um cenário construtivo que projeta o escuro no claro (e vice-versa), e que alcança, em quatro ou cinco quadros, quase aquela tridimensionalidade “fora do espaço” que se tornou a obsessão de mestres como Brancusi e de diluidores (de talento) como De Kooning. Em dezembro passado, a montagem de Fachadas no MAMAM teve a complementação de “exterioridades”, naquele segmento que chamamos de A Casa Acesa – campo de interioridade propriamente “iluminado”, que revela o artista seduzido pela materialidade das coisas recordadas (de tal modo se dava, aqui, a passagem do “de fora” para o “de dentro”, que o ideal seria não se ter os dois segmentos montados com intersecção de escadas – única quebra que o espaço do museu recifense impôs à mostra, involuntariamente – pois o público então se deslocaria num mesmo pavimento, do plano de entrada para o de saída, do desenho-pintura para o ambiente das esculturas articuláveis), propostas a partir do “descanso de mesa” bem-conhecido e bem-concebido – talvez bérbere, na origem, ou talvez franco-marroquino – e adotado como objeto de uso na cozinha da casa brasileira de antes da fórmica, anterior ao acrílico e aos materiais sem passado, projetando-se num futuro indistinto de usos & costumes da “globalização”. Na exposição interna, que dialoga com as fachadas (e cujo título veio do poema La Casa Encendida, do espanhol Luis Rosales) não só esses “descansos” se ampliam, conjugando-se novas em formas etc, mas aparece, ainda, o ele-

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FRITZ SIMMONS / REPRODUÇÃO

Articulação em cetim, 2000, madeira, cetim e latão, 0,80 x 0,03 x 0,02m [cada módulo]

mento da terra, dos pisos, dos antigos tacos das casas permeadas de silêncios e de ruídos – que se incorpora, de maneira quase imaterial (por oposição), ao todo dos onze quadros, da instalação e até da recitação de trechos em que Rosales retorna ao território da infância, ao campo imantado dos cenários de uma “casa acesa” na mente de todos, lar gravitacional de tudo que é biografia e memória, sentimental e psicologicamente. Com tais acoplamentos de forma e significado, estamos no cerne da modernidade – difícil – que não pode ser confundida com a facilidade dos modismos, e, permitam-me, definitivamente fora da visão dicotômica que ainda separa conteúdo e forma, figurativismo e abstração, como termos de antigos maniqueísmos estéticos. Numa idade culturalmente perigosa – na qual a arte corre o sério risco de se tornar em ramo daqueles bens “brilhantemente” inúteis (com a cumplicidade de muitos artistas – e uma certa “ajudazinha” da crítica), as duas exposições, juntas, cumprem um caminho de rigor, do desenho à pintura, da pintura à matéria e da matéria aos objetos articulados como indutores de um espaço de “descanso” final (quando se supõe o visitante já entregue à memória própria, ao percurso que não pode ser feito pelo outro). Desse modo é que vejo Fachadas e A Casa Acesa como duas exposições como que embutidas numa única proposta artística que visa à interação, temática e formal, de um espaço de meditação surpreendente mesmo para quem talvez espere dos artistas (durante um bom tempo ainda) não mais que a monotonia da arte de um século cansado de truques. Fernando Monteiro é escritor e crítico de artes plásticas


O espírito da época

Série Tapumes, 1992, acrílica sobre tela, 2,00 x 9,30m

O artista captou a beleza dos tapumes e a transformou em linguagem autônoma e universal

H

Por razões por demais complexas para serem esá cerca de trinta anos o crítico de arte francês Michel Seu- clarecidas aqui, a arte brasileira raramente tem sido phor afirmava em seu Dicio- mostrada nos Estados Unidos. Assim, ao ser connário de Pintura Abstrata que vidado a ir à casa de Roberto Lúcio de Oliveira e “em se tratando de arte o espí- ver seu trabalho, aceitei com prazer. Naquela tarde, rito da época tem firmemente Roberto me mostrou suas pinturas da série Tapuse fixado em abstrações”. Ele mes. Telas fortemente construtivas que iluminavam vai além ao dizer que todo trabalho de arte, antigo o céu cinza de Illinois com suas cores sugestivas. ou moderno, é atualmente abordado e interpretado Afinidades pictóricas com o trabalho de outros arem consonância com dados e princípios abstratos. tistas, tais como Flávio Shiró e Franck Stella são reSua afirmação ainda permanece verdadeira, embo- conhecidas, mas as fontes e estratégias de Roberto ra a arte abstrata seja apenas uma das possibilida- Lúcio são diferentes. No processo da criação surge des estilísticas no aspecto das expressões visuais, um momento governado por um paradoxo que tem sendo sua mais recente hegemonia revelada em ins- que ser confrontado por todo artista. O desafio é talações, multimídias e imagens de desenho anima- fazer com que a arte seja singularmente pessoal e do. Parece que o espírito da época está situado em autônoma, mas ao mesmo tempo permita uma cooutro lugar e pode ser detectado mais precisamente municação com os outros. O artista tem que buscar uma linguagem própria, gona CNN e MTV do que na abstração. Maarteen van de Guchte vernada por regras da sua Continente Multicultural 51


Sem título, 1992, acrílica sobre tela 1,80 x 3,60m

estética pessoal, porém, suficientemente universal para que seja compartilhada pelos outros. Roberto Lúcio conseguiu esse difícil objetivo, observando as casas das populações urbanas pobres e transformando a sua etnoestética em seu próprio código de abstrações pictóricas. No seu estúdio na rua do Amparo, na Olinda antiga, e em um lugar de trabalho diferente, na rua Bliss, em Urbana-Champaign, Illinois, Roberto Lúcio pintou uma série de telas que são variações tonais dentro de uma extensa coda musical. Seu caráter seriado a eleva a afirmações programáticas a serem interpretadas como blocos de construção na elaboração do espaço pictórico do artista brasileiro. Suas criações são precedidas por esboços de composição similar. Na tarde da minha visita, eu vi como Roberto Lúcio havia usado entre 7 a 9 listras de tinta fortemente coloridas sobre um fundo de cores primárias. Essas listras verticais, irregularmente traçadas, ocupam o campo pictórico. As extremidades são manchadas e desbotadas, um efeito que completa a textura eminentemente tátil dessas telas. Pode-se ver que Roberto mascara parte dos campos a serem pintados, atingindo uma linearidade que é habitualmente operacional. Esta limpeza construtivista é negada pela remoção das fitas adesivas que dão o efeito dissimulado às telas. Esse ato antimáscara revela como a acrílica penetrou nas áreas anteriormente invisíveis, manifestando aos olhos as operações randômicas da pintura emergente. Ao conhecer mais sobre o background de Roberto Lúcio, vim a saber que ele havia sido treinado na

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tradição fortemente figurativa da pintura do Nordeste do Brasil. Nos fins dos anos 70 sua pintura começa a tornar-se abstrata, mas uma abstração que sugeria uma narrativa surrealista. Em 1988 ele iniciou a série intitulada Tapumes. O processo de criação dessas pinturas é metódico e bem concebido. A percepção das casas das populações pobres das favelas foi o ponto de partida para Roberto Lúcio. Tapume é o nome dado aos muros que circundam os canteiros de obras no Brasil. Após o término das obras essas pranchas de madeira são usualmente levadas pelas populações urbanas pobres e usadas em diferentes tipos de construção: casas e barracos. Durante o tempo em que são usadas como tapumes as pranchas de madeira recebem uma cobertura de diferentes cores e formas. Algumas são pintadas, outras são grafitadas, ao mesmo tempo em que propagandas políticas e cartazes de shows e eventos sociais são pregados nos tapumes. Ao serem levadas pelo povo e usadas como material de construção nas suas casas, emergem novos padrões em função da justaposição aparentemente randômica daquelas pranchas da madeira. Então, uma nova camada de tinta pode ser acrescentada, podem ser escritas palavras sobre essas novas paredes, resultando em uma complexa sobreposição de tinta e madeira. Esse tipo de reciclagem de materiais, cores e formas fascina o artista Roberto Lúcio. Roberto fotografa essas cercas, estuda suas composições e propriedades de cor, e as introduz no seu código pictórico. Seu ato de apropriação é puramente conceptual, a transformação é radical; ao mesmo


ROBERTO LÚCIO

não com os moradores das favelas. Mentalmente Roberto fala com Flávio Shiró e com Frank Stella, pensa em Piet Mondrian e o grupo Abstraction-Création. O caráter seriado dos tapumes é significativo. A ordem de observação é deixada em aberto. A esse respeito é interessante fazer uma relação com os hábitos de leitura de Roberto. Ele oscila entre o O Amante de Marguerite Duras e Aleph de Jorge Luis Borges, dizendo que devem-se ler esses autores com freqüência, mas em pequenas doses. É sugestivo comparar o aspecto dos tapumes originais a esta descrição de uma face de mulher feita por Marguetite Duras em O Amante. “Eu a conheço há anos. Todos dizem que você era bonita quando jovem, mas eu acho você mais bonita agora do que então. Mais do que seu rosto de jovem mulher eu prefiro o seu rosto como é agora. Envelhecido pelo tempo”. Esse efeito do tempo é o traço distintivo dos tapumes transformados como são pelos elementos e, sobretudo, pela ação humana. A substância dessas telas é quase física, o que causa surpresa, se considerada a origem dessas pinturas. tempo em que mantém uma relação com o original. Ele cria o seu próprio espaço artístico, confinado A economia dos meios, exercida por Roberto, replica por tapumes resultantes do seu próprio fazer. Den- a economia das populações urbanas pobres, as quais tro daquele espaço e no seu exterior é inventada usam e reciclam os tapumes. Ao pintar esses tapumes uma linguagem. O efeito dessa nova linguagem de- Roberto recria a linguagem pictórica dos moradores pende em larga medida do nível de identificação do das favelas, absorvendo esse acervo da estética poespectador. Para alguns a dinâmica dos dípticos e pular. O resultado é, determinado em larga medida trípticos de Roberto pode evocar imagens baseadas pela disponibilidade de materiais, mas também por em uma realidade social. Outros podem admirar os um elemento de escolha: “Dê-me aquela prancha, a aspectos puramente mentais desses trabalhos. Essa azul, não, a verde fica melhor aqui; dê-me aquela prancha larga, a branca, com polivalência lingüística demonstra uma afinidade com a A substância das telas é manhas pretas” Essa qualidade mosaica, uma bricolagem, no linguagem crioula concebida e quase física, o que sentido Lévi-Straussiano, compropagada pelo pintor argencausa surpresa, se plica o resultado. Há muitas tino Alejandro Xul Solar. considerada a origem possibilidades, montagens, reSegundo Jorge Luis Borges, montagens, desmontagens, toamigo de Xul Solar, aquela dessas pinturas. A essas diferentes cores e forlinguagem foi criada a partir economia dos meios das mas. Piet Mondrian escreveu do espanhol, enriquecido por neologismos e monossílabos replica a economia das em 1917, na revista De Stijl: “Como a pura representação do ingleses, usados como advérpopulações pobres espírito humano, a arte se exbios. Uma língua usada pelo homem comum. Xul Solar continuou a enriquecê-la pressará em uma forma estética purificada, i.e. em e a mudar muitas das regras gramaticais anterior- uma forma abstrata. (...) Um sentimento pela beleza mente usadas. Algumas diferenças deveriam ser é cósmico e universal”. Em um tempo e espaço difenotadas com relação à linguagem de Roberto Lúcio. rentes Roberto Lúcio captou a beleza dos tapumes “Nomes, verbos, partes de adjetivos, simples traços” criada pela população pobre e transformou aquela arte que aparecem no dicionário-tapumes original não popular em uma linguagem autônoma e universal de foram transferidas para as telas. Cores e formas falam harmonia e significado. O espírito da sua época está suas próprias línguas, no sentido Saussuriano, manifestado nessas abstrações. enquanto a fala usada pelo povo foi omitida. O diálo- Maarteen van de Gucht é curador do Krannert Art go estabelecido por Roberto é com outros artistas, Museum, USA Continente Multicultural 53


CAMILO SOARES

Cronologia Roberto Lúcio de Oliveira Nasceu em João Pessoa, PB, 1941. Vive e trabalha em Olinda. Cursos de Desenho, Pintura e Artes Gráficas, UFPE. De 1969 a 1973 ensina pintura na UFPB. Em 1978, conclui o curso de Estilismo, ministrado por Marie Rucky, do Instituto Berçot de Paris. Exposições Individuais 1982 – Realidade Galeria de Arte, Rio de Janeiro. 1986 – Artespaço Galeria de Arte, Recife. 1990 – Galerie Noé, Berlin. – Galeria Montesanti Roesler, São Paulo. 1991 – Artespaço Galeria de Arte, Recife. 1992 – Galerie Gebr. Lehmann, Dresden, Alemanha. 1993 – Krannert Art Museum, Illinois, Estados Unidos. 1995 – Galeria Espaço Vivo, Recife. 1998 – Escritório de Arquitetura Humberta Farias, Maceió. 1999 – Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro. 2000 – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, MAMAM, Recife. Exposições Coletivas 1968 – XXVII Salão de Artes de PE. Prêmio Aquisição de Desenho. 1969 – XXVIII Salão de Artes de PE. 1º Prêmio de Pintura. 1970 – XIX Salão Nacional de Arte Moderna. Rio de Janeiro. 1971 – XX Salão Nacional de Arte Moderna. Rio de Janeiro. 1972 – Arte Brasil Hoje. Galeria Collectio, São Paulo. 1973 – XXII Salão Nacional de Arte Moderna. Rio de Janeiro. 1974 – Bienal Nacional 74. São Paulo. – I Salão Global de Pernambuco. Prêmio Aquisição de Desenho. 1975 – 2º Salão Global de Pernambuco. Prêmio Aquisição de Desenho. 1976 – Arte agora I Brasil 70/75. Prêmio Aquisição JB. MAM RJ. 1981 – 34º Salão de Artes Plásticas de PE. Prêmio Aquisição de Pintura. 54 Continente Multicultural

1982 – Muestra Internacional de Arte Gráfica. Bilbao, Espanha. – 7º Salão Nacional de Artes Plásticas do Ceará. Prêmio Aquisição de Desenho. – XXXV Salão de Artes Plásticas de PE. Prêmio Funarte. 1983 – Panorama de Arte Atual Brasileira. MAM, São Paulo. 1984 – Artistas de Pernambuco. Museu de Arte Brasileira, São Paulo. 1986 – Brazilian Contemporany Prints. Ottawa, Canadá. 1988 – Werkstatt Berlin / São Paulo. MASP, São Paulo. – Werkstatt Berlin / São Paulo. Saatliche Kunsthalle Berlin. 1989 – Fiac Edition SAGA 89. Grand Palais, Paris. 1990 – Querschnitt I e II. Galerie Noé, Berlin. 1992 – 5 aus Brasilien. Die Pumpe, Berlin. – St. David’s Hall, Cardiff, Walles. – Marseille-Nord-est Bresilien. Marseille, França. – Pernambuco, Estética da Resistência. Galeria Roesler, SP. 1993 – Smith’s Galeries, Covent Garden, Londres. – Panorama de Arte Atual Brasileira. MAM, São Paulo. – Centro Unesco de Arte. Porto. Portugal. 1994 – Arte Brasil Heute. Munique, Alemanha. 1996 – Artistas Contemporâneos Brasileiros. – Neuhoff Gallery, New York. 1997 – Art Miami, Miami. – Ver e Verso, MAMAM, Recife. – Kunst aus Brasilien. Greifswald, Alemanha. – Galerie Barsinkow, Berlin, Alemanha. 1998 – Brasilianische Kunst. Künstler Haus Berlin, Alemanha. 1999 – Galerie Barsinkow. Berlin, Alemanha. Atelier Rua do Amparo, 293 – Olinda – PE – 53020-190 – Brasil Tel. / Fax 55.81.3429.2141 / 55.81.9978.5059 roberto-lucio@bol.com.br



SABORES PERNAMBUCANOS

Carn festa Hoje, a culinária de Carnaval depende da disposição das pessoas. Os que não brincam preferem pratos fortes. Para os foliões a comida é sempre ligeira, para não se perder tempo Meu Carnaval, tão longe, tão distante, mas tão perto de mim pela recordação... Que é feito de ti? Tiveste um destino de lança-perfume, viraste alcanfor... viraste alcanfor... Ascenso Ferreira (Meu Carnaval)

N

a mesa, o Carnaval português segue tradições apropriadas ao inverno do Hemisfério Norte, com pratos sempre consistentes e muito gordos. O porco é preferência nacional. Também galo com arroz (ou outro tipo de acompanhamento). Além de galinha, base da sopa de entrudo de Elvas. Peixes, só os mais encorpados, como bacalhau. E frutos do mar. As sobremesas são quase todas fritas, como os filhoses – que, por se comerem no sábado, levaram esse dia a ser por lá conhecido como sábado

da carne filhoeiro; além de azevias, boleimas, coscorões e nógados, no Alentejo; bolinhóis, no Algarve; e malassadas, nos Açores. O Carnaval de Pernambuco recebeu parte dessa herança portuguesa, sobretudo na culinária – na nossa mesa, porco, bacalhau, filhoses. Mas, também, na maneira de brincar, jogando água com farinha, uns nos outros, até meados do século 19 – costume depois convertido em mela-mela, sem escolha de ingredientes. Além de laranjinhas-de-cheiro e borrachas com água perfumada – precursores dos nossos lança-perfumes. Mas as influências no nosso Carnaval são múltiplas. De Veneza, por exemplo, nos veio o costume de usar máscaras, em meados do séc. 19. Um uso que remonta ao séc. 13, quando Marco Polo voltou de sua primeira viagem à África. Usar máscaras era então um ato de igualdade entre as classes sociais. Só que esse hábito vem de mais longe. Há registro delas em grutas do paleolítico. No Egito, lâminas de ouro cobriam o rosto das múmias dos faraós. Nos teatros, de Roma e da Grécia, se chamavam persona. Também os índios brasileiros usavam máscaras, em suas danças – mas esse hábito não foi mantido, com a colonização portuguesa. De Veneza nos veio, mais, o costume de festejar o Carnaval em quatro dias. Até o séc. 17 ele ocupava os quatro domingos anteriores à Quarta-Feira de Cinzas, com as festas se estendendo, no último deles, até o martedi grasso (terça-feira gorda). E, também, o Arlequim – com origem na Commedia dell’Arte, gênero de teatro medieval italiano, com 10 personagens. Ao mesmo tempo palhaço e escravo, era homem pobre, vestindo-se com roupa remendada. Foi incorporado a

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 56 Continente Multicultural


aval, nossas festas, no séc. 19, de maneira diferente – como brigão e provocador. Acabou moço de recados do cavalo-marinho, no bumba-meu-boi. Pior sorte tiveram o Pierrô, apaixonado e sentimental; e a Colombina, namoradeira e bela – presentes, entre nós, apenas em músicas e fantasias. As origens do Carnaval vêm ainda de mais longe, remontando aos ritos pagãos de celebração da fertilidade. Sendo só depois convertido em festa típica dos países cristãos, sobretudo católicos. Deve o nome à expressão latina carnem levare (abstinência de carne), referência às vésperas da Quarta-Feira de Cinzas, quando começava o jejum recomendado pela Igreja Católica. Com o tempo passou a ser só festa da carne, no sentido de que todos se fartavam de comidas fortes – especialmente assados e frituras – nos dias que antecediam o longo período da Quaresma. Assim é, até hoje, com descon-

tração e alegria influenciando a culinária. Come-se e bebe-se com fartura, sem restrições. Como diz o provérbio português, “no entrudo, come-se tudo”. O Carnaval não tem data certa no calendário. Sendo marcado, a cada ano, em função da primeira lua cheia da primavera européia – que começa em 21 de março. O domingo depois é o de Páscoa. 40 dias antes, a Quarta-Feira de Cinzas. E já que o tema é Carnaval, não esquecer que o frevo nasceu da polca-marcha, por volta de 1909, pelas mãos do Capitão José Lourenço da Silva (Zuzinha), ensaiador da Brigada Militar. Segundo Mário Melo, apareceu nos salões somente em 1917 e ainda hoje se diz como antigamente, “fazer o passo”. Depois foi para as ruas, multidões a ferver – o povo dizia “frever” – dando nome ao ritmo. Hoje, a culinária de Carnaval depende da disposição das pessoas. Para os que preferem não brincar, o melhor é reunir amigos em volta de pratos fortes e completos – como feijoadas, cozidos, sarapatéis, buchadas, churrascos. Em muitos casos, mantendo ainda a tradição portuguesa de comer porco, bacalhau e filhoses. Mas, para os que brincam, a comida é sempre ligeira, sanduíches ou qualquer outra coisa comprada em barracas, para não se perder tempo. E sobretudo cerveja, batidas e outras bebidas, todas, de todo tipo. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

FILHOSES DO CONVENTO DE SANTA CLARA DE SANTARÉM (PORTUGAL) “Num tacho ponha água e ferva as cascas de 4 limões. Nessa água deite um quilo de farinha, um pau de canela e 100 gramas de manteiga de vaca. Amasse bem e estenda a massa fina. Corte com a carretilha dando-lhe uns golpes no meio. Frite em azeite bem quente. Leve 125 gramas de açúcar a ponto de pasta e deite-lhe o sumo e as cascas de dois limões. Quando atingir o ponto retire do lume e passe os filhoses por esta calda.”

FILHOSES PERNAMBUCANOS Ingredientes:

1 copo de farinha de trigo 1 colher de sopa de fermento em pó 1 copo de água Casca de 1 limão 1 colher de chá de açúcar 1 colher de chá de sal 2 colheres de sopa de manteiga 4 ovos batidos (como para pão-de-ló) ½ lata de azeite ou óleo PARA A CALDA: 1 ½ copo de água 1 ½ copo de açúcar Canela em pau

Preparo:

Ponha água para ferver com casca de limão, açúcar e sal. Quando ferver, tire do fogo e junte a manteiga, a farinha de trigo e o fermento, previamente peneirados. Volte ao fogo e bata bem até soltar do fundo da panela. Deixe esfriar. Acrescente aos poucos os ovos batidos, batendo sempre, até ter uma massa fofa. Em outra panela coloque o azeite (ou óleo) e deixe ferver. Faça colheradas da massa e frite no óleo quente. Os filhoses crescem muito. Depois de fritos, ponha-os na calda fria, preparada anteriormente com água, açúcar e canela em pau (sem mexer).

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MIL PALAVRAS

A corte

dos 58 Continente Multicultural

an么nimos


LUIZ SANTOS

Carnaval. Os ricos apropriam-se de máscaras dos pobres – palhaços, índias, carlitos. Os pobres fantasiam-se de ricos – reis, rainhas, princesas. Festa da inversão, por excelência. Dois fotógrafos – Luiz Santos e Celso Oliveira – capturam a alma de uma festa que é uma melancolia feérica. E lançam um livro – A Corte Vai Passar – Um Olhar sobre o Carnaval de Pernambuco – com flagrantes e retratos da multidão de Eus anônimos, a Corte de mascarados que constrói, cada um, a sua efêmera pasárgada particular. Continente Multicultural 59



CELSO OLIVEIRA

LUIZ SANTOS

LUIZ SANTOS

odos no Carnaval s達o turistas. T Todos est達o somente passando. Todos est達o chegando e indo embora

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LUIZ SANTOS

rincar o Carnaval é exercer o B sagrado (profano) direito de escapar da prisão do idêntico


CELSO OLIVEIRA

64 Continente Multicultural


LUIZ SANTOS

CELSO OLIVEIRA

O LIVRO A Corte Vai Passar – Um Olhar sobre o Carnaval de Pernambuco Ensaio fotográfico, oferecendo um painel de imagens do Carnaval – cerca de 70 fotografias – onde o foco é a pessoa humana, em composição com os elementos por ela criados e/ou portados. Edição de luxo, com textos em português, inglês, espanhol e francês, 144 páginas, 3 mil exemplares, R$ 40,00. Parte da arrecadação da venda será destinada ao Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo. Textos: Mário Hélio e Raul Lody. Editora: Tempo d’Imagem. Apoio Cultural: Embratel. Lançamento: 12 de março de 2001. Maiores informações: 3227.7798 e 9961.9961 E-mail: acerv@elogica.com.br

stas imagens homenageiam E os passeantes desse teatro de cores que é a festa do Carnaval e a sua overdose de rictus

em multidão não há Carnaval, Sverdadeira mas é na solidão que a sua densidade se define Mário Hélio – Fragmentos do texto de apresentação do livro A Corte Vai Passar

OS FOTÓGRAFOS Celso Oliveira, carioca, 43 anos, começou no Rio de Janeiro, como fotojornalista e documentarista. Foi fotógrafo da Agência Central de Fotojornalismo, em São Paulo. Atualmente morando em Fortaleza, é sóciofundador do fotoarquivo e editora Tempo d’Imagem, desde 1994. Desenvolve trabalho pessoal de documentação das manifestações culturais e populares do Brasil. Selecionado para participar da Coleção Masp-Pirelli de Fotografia (São Paulo, 1996). Editor do livro Brasil Bom de Bola (Tempo d’Imagem, 1998). Coordenador do Projeto Fronteiras. Luiz Santos, recifense, 41 anos, é fotógrafo profissional desde 1985. Atualmente, free-lancer nas áreas de fotojornalismo, documentação e publicidade. Participou de exposições no Brasil e exterior (Portugal e Moçambique), tendo sido classificado em importantes salões nacionais de arte. Participou dos livros Brasil – Território + Povo + Trabalho + Cultura, Artesanato Brasileiro e Brasil Bom de Bola. Realiza trabalho autoral sobre as festas populares de Pernambuco. Fez a coordenação editorial do livro A Corte Vai Passar – Um Olhar sobre o Carnaval de Pernambuco. Continente Multicultural 65


CARNAVAL

Tudo vale

a pena

se a folia não é pequena

Com raízes sacroprofanas, o Carnaval é uma catarse coletiva onde os papéis trocados muitas vezes representam uma vingança histórica dos oprimidos

A

festa é um espaço necessário ao autoconhecimento da própria cultura. Aí as pessoas viram personagens, potencializando emoções, desejos, conflitos das relações sociais, das hierarquias, dos papéis estabelecidos de homens e mulheres. É também uma narrativa das aventuras humanas, em que dançar, cantar, representar, falar, comer, fazer sexo, trazem memórias e identidades que certamente apóiam a inclusão dos indivíduos Raul nas suas comunidades. 66 Continente Multicultural

A festa é um novo tempo, e, assim, para conhecer o Carnaval, a festa mais permissiva de todas, uma viagem pela vida dos carnavais regionais mostra como o brasileiro encontrou nos seus próprios repertórios elementos para traduzir a liberdade/liberação que Momo, o rei irresponsável, oferece aos seus súditos. Oficialmente, são três dias de folias, contudo, outros calendários mostram carnavais de uma semana, 15 dias e até de um mês de festas, para saciar de alegria o rei da folia. Na Europa Medieval, o Carnaval já começava no dia da Natividade, 25 de dezembro, englobando Natal, Ano Novo e Epifania, ou seja, o Dia de Reis, dos Reis Magos. Mais tarde, o ciclo do Carnaval foi organizado em novo calendário a partir da data da Páscoa dos católicos, sendo que o domingo de Carnaval é o sétimo que antecede o domingo de Páscoa. O período que anuncia o tempo do Carnaval no Brasil chama-se entrudo, e famoso foi o Zé Pereira. Desde meados do século 19 que o Zé Lody Pereira – grupo musical acompanhado de


bombo ou zabumba – dizia da folia e dos feriados santificados. O Zé Pereira é uma tradição do Norte de Portugal, que mobilizava, nas ruas, grupos que brincavam de jogar, uns nos outros, água e farinha. Outra versão diz que o Zé Pereira começou com um sapateiro português chamado José Nogueira de Azevedo Paredes, saindo às ruas, repetindo o costume já bem conhecido em Portugal. Os cortejos aconteciam na cidade do Rio de Janeiro e, depois, seguidos por muitos outros grupos, fizeram assim acontecer as primeiras manifestações carnavalescas. A adesão africana foi fundamental para o enriquecimento de ritmos, danças, personagens, cortejos, mascarados, muitos chegados das irmandades e confrarias de homens negros, mulatos e pardos. Desde o século 18 proliferaram, do Norte ao Sul, muitas irmandades e confrarias para reunir, pela Igreja, a grande massa de africanos e de filhos de africanos, crioulos, no Brasil. As datas principais homenageiam os oragos, padroeira como Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia, Santo Elesbão, entre outros, proporcionando nos feriados santificados, especialmente no Sábado de Aleluia, oportunidade para manifestar os chamados Reinados. Todas as festas das irmandades e confrarias eram controladas pela política da catequese, da conversão ao catolicismo, bem como o funcionamento das Nações – grupamentos étnicos com idiomas comuns – que se reuniam comandados por rei e rainha, formando cortes, sendo também espaços privilegiados de policiamento por parte da Igreja e do Estado. As irmandades e confrarias foram organizadas, inicialmente, para reunir africanos de Angola e do Congo, depois os africanos da costa ocidental, do Golfo de Benin, inclusive os Yorubás ou Nagôs. Os calendários das irmandades e confrarias mudaram, e muitas festas migraram para o Carnaval. Os maracatus de Pernambuco e os afoxés da Bahia são importantes exemplos do nosso Carnaval afrodescendente. Outras manifestações como Congada, Ticumbi, Cucumbi, Banda de Congo, Taieira, Moçambique, Terno de Congo, entre outras, incluem-se no ciclo natalino ou nas datas de santos em diferentes calendários regionais. São centenas de grupos, envolvendo e comovendo milhões de brasileiros em festas de profunda religiosidade, relativizando os tão convencionais conceitos de sacro e de profano.

Categorizar tudo que não é cristão como profano é estabelecer fronteiras limitadas em um país como o Brasil, que é de formação multirracial, que professa diferentes religiões. Todas as religiões são importantes e, por isso, devem ser respeitadas nas suas singularidades, nas suas diferenças de crer e de manifestar seus rituais internos e públicos. O afoxé, por exemplo, é também chamado e conhecido como candomblé de rua. É longa a tradição dos afoxés na Bahia, especialmente na cidade de São Salvador. Os afoxés Africanos em Pândega, Congos de África, Papai da Folia, Otun Obá de África mobilizavam multidões no início do século 20, segundo jornais da época, reunindo mais de quatro mil participantes fantasiados em alas, carros alegóricos e charanga – com um instrumental formado de atabaques, ilus, agogôs, cabaças ou afoxés. Os maracatus africanos ou de baque-virado desfilam com suas calungas, esculturas antropomorfas que são orixás, geralmente Iansã, Oxum e Xangô, levadas cerimonialmente nos desfiles pela dama-do-passo; ainda nos afoxés, outra escultura sagrada, o babalotim, que é sempre conduzido por uma criança. Os maracatus do Recife são também chamados de Nações: Nação Elefante, Nação Leão Coroado, Nação Porto Rico do Oriente, mantendo fortes tradições com os terreiros de Xangô, designação para o culto dos orixás e antepassados em área que compreende de Sergipe ao Ceará. Nem sagrado e nem profano, ou diferentemente sagrado, o Carnaval é o espaço permitido à catarse coletiva. Não quero afirmar que o Carnaval é pura zorra, ou uma grande zona; tem lá esses componentes, senão seria infiel aos princípios mais generosos dos festivais gregos e romanos, locais das orgias de vinho, das danças dos bacantes. Baco, esse senhor sem pudor, ou então Dionísio, o que dá no mesmo, são os grandes ancestrais festeiros do verdadeiro Carnaval. Festeiros sensuais, pois, para os deuses, tudo é permitido e possível. Por aqui, nós, mortais, aproveitamos um pouco dessa taça transbordante do vinho doce e embriagador da folia. Continente Multicultural 67


da Europa que, nos festivais Os carnavais do Recife e agrários, ainda desfilam por de Olinda alguns cidades, marcando o Multidões! Galo da Mainício da primavera, da ferdrugada! O bloco que destilidade do solo, dos rituais filava de madrugada, ou do plantio e da colheita. Sem melhor, lá pelas sete horas da dúvida, o Carnaval é um rimanhã. Aí as bandas iam tual coletivo de fertilidade, tocando e desfilando, sem os lembrando e expondo corcarros de som, no chão. pos, corpos suados, muitos Hoje, ou melhor, há aldesnudos, outros sensualguns anos, o Galo da Mamente provocadores, tradrugada vem reunindo mais zendo valores de sexualidade um milhão de foliões, e os de e, conseqüente, continuimúsicos, as bandas vão gadade da espécie. nhando os trios, os grandes palcos móveis que são os Quando todos são reis carros, dezenas, para fazer Os papéis trocados no ferver a multidão. Carnaval muitas vezes assuFrevo de rua, frevo de mem uma vingança históribloco, frevo canção. Contuca dos oprimidos, que se do, todos fervem. O de rua fantasiam dos opressores: senhores, nobres, reis, raiexplode nos metais – tuba, saxofone, trompete –, que anunciam o fogo da terra coletivo. Os de bloco nhas, formando verdadeiras cortes que desfilam nos e canção são sensualmente suaves – banzo, ban- salões espelhados dos sonhos, nas passarelas dos dolim, violão – e os passos são diferentes, há mais famosos desfiles das escolas de samba. Aqui destaco a ordem das escolas de samba, cocontemplação da festa. Não posso ser injusto com Olinda, Marim dos mo diz o nome: escolas, locais para ensinar e aprenCaetés. É um tal de subir ladeira, engarrafa ladeira, der, praticar e difundir o samba. Mas que samba é é tanto bloco, tanta troça, boi de Carnaval, mara- este? É o samba dos desfiles, os sambas-enredo que catu rural, la ursa, que nem há como lembrar do hoje são mais marcha do que samba. Marchas corridas, quase um galope, em busca dos segundos premela-mela. É uma brincadeira que remonta aos românticos ciosos das regras do Carnaval oficial. Ah! Carnaval de samba sem pressa, de ruas sem limões de cheiro – bolas de cera contendo água perarquibancadas, dolarizadas, de samba que tem senfumada –, contudo, hoje os materiais são outros – tinta, mel de engenho e outras águas e líquidos timento integrador, que é brincadeira, que tem criamenos educados. O uso de talco e de perfume bara- tividade e tradição. Os desfiles ainda expõem uma corte de Versalhes to, jogado nos corpos, é como um tipo de acolhida em procissão, trazendo seus nobres negros de peà festa. É comum, em outras tradições fora do Carnaval, tais como cortejos, festas de largo, procissões, rucas brancas, de túnicas de veludo bordado, damas como o ato carinhoso de boas-vindas, quando o elegantes, todos sambistas que pontuam o momento convidado exibe o branco do talco e exalta o cheiro bem comportado da festa delírio. Cuidado! Um juiz atento pode perceber uma do perfume. É o corpo marcado, sinalizado para o Categorizar tudo que não peruca despenteada e aí, bem, aí é quase morte para a tempo da festa. é cristão como profano escola de samba. Ainda em Olinda, os Para melhor entender esfamosos bonecões ou os boé estabelecer fronteiras se processo do reinado da fonecos de Olinda. Seres gilimitadas em um país lia, Pierre Verger, mais cogantes, personagens que docomo o Brasil, nhecido como etnofotógrafo, minam grupos. O Homem artista das imagens, escreveu da Meia-Noite, a Mulher que é de formação sobre alguns dos seus temas do Dia, o Menino da Tarde, multirracial e professa de preferência, inclusive soentre muitos outros, tambre o Carnaval. bém lembram os bonecões diferentes religiões 68 Continente Multicultural


"Em primeiro lugar vem a comissão de frente, grupo de uma dezena de mulatos ou negros, vestidos de ternos ou casacos do mais perfeito corte, verdadeiros lordes ingleses, chapéus-coco ou cartolas, com bengalas nas mãos enluvadas, saudando a multidão de vez em quando com muita elegância, com grandes movimentos circulares dos chapéus, acompanhados de sorrisos deslumbrantes e isso com o mesmo desembaraço dos grupos de negros mascarados descritos por Jean-Baptiste Debret. São seguidos pelas fantasias de destaque, que são pessoas fantasiadas com originalidade e luxo, para maior glória da escola; depois vêm os carros alegóricos e painéis decorados cuidadosamente; são seguidos por grupos de baianas, semelhantes às que acompanhavam os maracatus, por pastoras, pastoras de biombos, gladiadores romanos, mosqueteiros, formando todos grupos bem numerosos, vestidos uniformemente; depois, precedendo a orquestra copiada das batucadas, dançam os passistas, que executam passos ágeis de um samba acrobático e 'chamam a atenção' dos espectadores; e, enfim, aparecem os dois personagens mais importantes da escola de samba: um casal de vedetes, onde a mulher tem o papel principal. (...) Os membros da escola ensaiaram cuidadosamente as diversas partes do desfile. Fizeram, individualmente, um esforço financeiro considerável em relação às suas disponibilidades. O momento é sério e solene. O Carnaval não é para eles a bela desordem indisciplinada, a ocasião de se entregarem livremente em pequenos grupos à alegria, à possibilidade de se livrarem das inibições e repressões acumuladas durante o resto do ano. Fazem parte de um cortejo longo, muito longo, muito

bem organizado, que desfila cerimoniosamente nas ruas, com calma, ordem e pompa. O conjunto lembra uma procissão na qual as estátuas dos santos seriam os carros alegóricos, e os penitentes, membros das confrarias, seriam os diversos grupos de pessoas uniformemente vestidas de roupas... de marqueses de Luís XV, de baianas e de camponesas. Podemos pensar que, se no Brasil de antigamente as procissões tinham um alegre ar carnavalesco, ao contrário, o Carnaval de rua das escolas de samba de hoje tornou-se uma sorte de pomposa procissão." (pg. 12. Verger, Pierre. Procissões e carnavais no Brasil in Ensaios e Pesquisas nº 5, Centro de Estudos Afro-orientais. Salvador, UFBA, 1980.) Mas o Carnaval é realmente a festa de todos. Feita de humanos, deuses, reis e rainhas por um dia; de homem que vira bicho, de bicho que vira mulher. É uma nova e delirante ordem/desordem. O tempo do Carnaval é um tempo circular e retoma-se esse tempo a qualquer momento, pois folia, folie, significa loucura, loucura pelo que de transformador e transgressor é a essência histórica da festa. O folião solitário dialoga com outros foliões, transmitindo humor, irreverência, sátira, brincando, pois tudo acontece nesse tempo circular do Carnaval. O Carnaval invade sem piedade o corpo que é só carne/coração. Como ninguém é de ferro, após a folia segue-se a Quaresma, quarenta dias para pensar no espírito, pois o corpo saciado entrega-se agora ao possível perdão. Raul Lody é antropólogo. Este artigo é uma condensação do texto do livro A Corte Vai Passar


CRÔNICA

Vexames,

desencontros,

confusões:

O repórter sofre na perseguição ao superpoeta João Cabral de Melo Neto

A

s massas (meus dois leitores fiéis) despacha para o aeroporto. Missão: cobrir a chegaexigem. Querem um novo relato da do mais ilustre dos poetas pernambucanos. O sobre o que acontece nos bastidores diplomata João Cabral vivia no Exterior, na época. das reportagens. Aos que têm me- Lá fomos nós, em busca da celebridade. O único mória curta, lembro que, no núme- problema é que o fotógrafo não sabia que João Caro zero desta brava revista, descrevi bral era pernambucano. Assim que o poeta desemo incidente ocorrido entre este re- barca, o fotógrafo o convoca a posar em frente a um pórter e Dom Gilberto Freyre, no já remotíssimo painel turístico que mostrava uma imensa foto do ano de 1977. Um pequeno erro cometido na trans- Recife. A pose em frente ao painel provaria que o crição de uma entrevista acendeu a ira do Mestre de poeta esteve na cidade... Pouco à vontade, o poeta Apipucos. Resolvo, então, atender aos insistentes concorda em posar. Lá pelas tantas, o fotógrafo quer pedidos: faço uma nova incursão pelos bastidores saber se o poeta por acaso já conhecia a capital. João Cabral responde com algum som inaudível. do jornalismo. Vexame 2. João Cabral aceita receber o repórter Já se disse que o melhor jornal é aquele que jamais chega ao conhecimento do leitor. O que acon- na casa do irmão, à beira-mar, em Olinda. Horário tece nos bastidores de uma reportagem pode ser tão da entrevista: onze da manhã. O repórter chega interessante quanto o que sai nas páginas dos jor- vinte minutos atrasado. Formalíssimo, João Cabral nais. Se os jornais publicassem tudo o que se fala nem parece estar de férias. Aparece no portão metinuma redação (ou, pelo menos, tudo o que os re- do numa impecável camisa de manga comprida pórteres vêem, mas não escrevem), nossa imprensa abotoada até a gola. Primeira frase que pronuncia: certamente não mereceria o julgamento que um dia “Você chegou com uma pontualidade nada britânica...”. O repórter quase estreante procura, em vão, Paulo Francis fez: – “Nossa imprensa: acadêmica, empolada, pre- um buraco no chão para se esconder. Não encontra. Entre mortos e feridos, todos se salvam: a entrevista visível, chata. Meu Deus, como é chata”. segue adiante. Ponto. Parágrafo. Vexame 3. De volta ao Brasil depois de se apoMinha pequena coleção de entrevistas com o superpoeta João Cabral de Melo Neto foi marcada por sentar da carreira diplomática, João Cabral escolhe o desencontros, vexames, incidentes e mal-entendidos Rio de Janeiro como endereço. O repórter que, anos – sem maior gravidade, mas suficientes para fazer antes, cometera o pecado de chegar com uma “pontualidade nada britânica”, telefona em busca de uma ruborizar qualquer tímido que se preze. Vexame 1. Cenário: saguão do Aeroporto Inter- nova entrevista. Quem sabe, agora consiga fazer nacional dos Guararapes. Ano: 1973. Dou meus uma entrevista sem incidentes. João Cabral se desculpa: “Vamos marcar outra primeiros passos como repórter. O chefe de reportagem me Geneton Moraes Neto hora... Minha mulher morreu 70 Continente Multicultural


ontem”. Já não tão estreante, o repórter procura de novo um buraco no chão para se esconder – em vão. Um silêncio que parece durar uma eternidade se instala nos dois lados da linha telefônica. O que dizer numa situação dessas? Nada. Meus pêsames. Desculpe. Eu sinto muito. Socorro! Vexame 4. O homem marca a entrevista: vai receber o repórter em casa – um apartamento na praia do Flamengo. Por coincidência, o jornal O Globo marca, para a mesmíssima hora, uma sessão de fotos de João Cabral com Ferreira Gullar. Os dois poetas aguardam a chegada do fotógrafo do jornal. Aperto a campainha. “Pode entrar”. Cabral e Gullar vão para a janela do apartamento. A vista, ao fundo, é bela. Fazem pose. Ficam olhando para as minhas mãos, à espera de que eu saque a máquina fotográfica. Pensam que eu sou o fotógrafo que estavam esperando. Mas não tenho máquina nenhuma. Carrego apenas meu gravador. “Não quer fazer a foto agora?” Dois dos maiores poetas brasileiros estão ali, diante de mim, à espera de que eu faça a impossível foto. Não, não quero, não sei, não posso fazer. Deve ter havido algum engano. Nunca fui fotógrafo em minha vida. Um buraco no chão, pelo

amor de Deus! Desfeito o equívoco, os dois desistem de esperar pelo clique de minha máquina inexistente. Cinco minutos depois, o fotógrafo (o verdadeiro) desembarca no apartamento. Os dois voltam a posar na janela. Livre da tarefa, João Cabral finalmente dá a entrevista pedida pelo locutor-que-vos-fala. Lá pelas tantas, diz: “A coisa simples que quero fazer com minha poesia não é uma coisa boba. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. É difícil traduzir as coisas de que falo de uma maneira acessível a todo mundo. Minha luta é esta: tentar exprimir uma coisa mais complexa na linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”. O poeta – um dos maiores que o Brasil já teve – confessava que o gosto do fracasso não lhe era estranho. Devo ter pensado, com meus botões: fracasso? Se depender do meu histórico de fracassos nos bastidores das entrevistas com João Cabral, sou mestre nesse assunto. Geneton Moraes Neto é jornalista e chefe de redação do programa Fantástico, da Tv Globo

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MARCO ZERO

Joaq em bo

C

Poeta preferia Platão a Aristóteles, acompanhava diariamente a floração de uma mangueira e recomendava: “É preciso ler muito!”

omprei recentemente, num sebo de Natal, um dos mais valiosos livros sobre teoria literária já escritos no Brasil, Crítica e Poética, de Afrânio Coutinho. O grande crítico havia falecido há poucos dias e eu ainda não conhecia esse conjunto de ensaios, dois motivos que me fizeram pagar o preço salgado que me cobrou o livreiro. Nele, o ensaísta mostra magistralmente o embate, através dos séculos, entre as duas vertentes da teoria literária, a aristotélica, que considera a obra literária em “suas características internas, como um valor em si mesma” e a platônica, que a vê como “veículo de outros valores”, filosóficos, científicos, religiosos etc. Por coincidência, eu estava lendo os Poemas Selecionados, de

Joaquim Cardozo, uma antologia organizada pelo mestre César Leal. Dei-me conta de que a obra do autor de Signo Estrelado representava as duas correntes, a estético-aristotélica e a didático-platônica, esta última encarnada em Horácio, com seu princípio “docere cum delectare”, ensinar com deleite ou, para ser mais terra-a-terra, unir o útil ao agradável. Embora eu tenha por Horácio absoluta veneração, driblo seu platonismo para ficar com Aristóteles, que tinha a literatura como “um valor em si mesma”. Por isso, hoje gosto demais de uma parte da poesia de Joaquim Cardozo, onde sinto presente uma concepção eminentemente estética da literatura, como Congresso dos Ventos, Elegia para Maria Alves ou Prelúdio e Elegia de uma Despedida, com sua “Água, água de chuva / – presença unânime da Queda – / Aura da esperança;

Alberto da Cunha Melo 72 Continente Multicultural


uim Cardozo

a prosa

sombra do castigo; / água pesada, água de chincho / – Água da chuva –”, e não gosto daquela parte (aliás, mínima), onde sinto presente uma concepção didático-platônico-horaciana, como Poema para uma Voz e Quatro Microfones, Visão do Último Trem Subindo ao Céu, e outros cheios de signos não verbais. Hoje, se eu me interessasse por Matemática tentaria ler diretamente Bertrand Russell, e se por Física, procuraria as obras de W.K. Heisenberg. Sob esse assunto, é bom nos lembrarmos das palavras de T.S. Elliot: “(...) nem devemos, como fizeram os romanos, escrever tratados de astrologia e cosmologia em versos. O poema, cuja finalidade ostensiva era veicular informações, foi suplantado pela prosa” (grifo nosso). Mas, como disse, os poemas de Joaquim Cardozo que procuram ostentar conhecimentos de Matemática, Física e outras ciências são muito poucos. As ciências, assim como tudo no mundo, podem ser tema, mero estrato secundário da obra literária ou artística de um modo geral, o que não me agrada é a invasão terminológica ou sígnica de outras formas de conhecimento com objetivo didático, transformando a arte em mero veículo ou instrumento científico, religioso, político e de tantos outros valores. Ao reler Joaquim Cardozo, lembrei-me também que o poeta confessou-se um platônico apaixonado, quando eu o entrevistei para o Jornal do Commercio, em 26.08.1972. Entre pedaços de papéis quase ilegíveis, recortes do jornal com parte da entrevista e re-

cordações, reengendrei o inesquecível encontro, como mais um preito de reconhecimento pela grandiosa poesia que legou a todos nós: O poeta e o repórter Naquela entrevista de 1972, vinha-me clara a lembrança do jornalista Lazlo Kovacs que foi conversar com o poeta Ezra Pound, em Veneza, e entrevistou o silêncio. Pound, um dos maiores expoentes da poesia moderna mundial, recusou-se a falar de literatura. Aos 86 anos, 13 dos quais passou encarcerado como traidor de sua pátria, os Estados Unidos, o autor do famoso poema inacabado Cantos desencantou-se com a palavra (após ter feito com ela o que bem quis e através dela ter alcançado um extraordinário prestígio no Ocidente). Outro poeta, outra Veneza Sabedor desse fato, em outra Veneza, a brasileira, aproximei-me com certa timidez da velha casa do Espinheiro, residência do poeta que possuía inúmeros pontos de coincidência com Pound: poliglota, vanguardista, descobridor de talentos e, principalmente, grande poeta. Cardozo, que completava, naquele dia, 75 anos, estava vestido com um leve pijama azulado e conversava com uma pessoa de sua família. A minha chegada transtornou o ambiente, obrigando as gentis irmãs do poeta, as “três Marias”, como ele dizia carinhosamente, a se deslocarem com o televisor portátil para outro aposento. Continente Multicultural 73


A jovial acolhida do autor de Signo Estrelado e co-autor de Brasília deixoume um tanto afoito e pronto para aborrecer o próprio Santo de Assis. A imagem amarga e silenciosa de Pound vai desaparecendo da cabeça do jornalista e dando lugar a outra, a de um “tio tranqüilo”, como diria o poeta Geraldino Brasil. Diante de mim estava um homem magro, encanecido, mas cheio daquela paciência conquistada a custo de muito desespero triturado, de muita angústia vencida na própria foz. Apesar de não ter passado pelas agruras por que passou Pound, o poeta brasileiro foi alvo de algumas ciladas perversas, de muito mal-entendido consciente e esquecimento por parte de alguns críticos e historiadores da literatura. Mas, ao contrário de Pound, sua voz continuou límpida e pródiga, como convém a um grande artista da palavra, seguro de suas dimensões e desígnios. Da manga ao caju De início, após ter desistido de trocar o pijama por outras roupas menos amigas, para espanto do fotógrafo, acostumado com tanta pose, Cardozo falou sobre aquela pequena mangueira defronte ao casarão e informou que estava acompanhado a sua floração, todas as manhãs, um regalo que lhe faltava no Rio. Da manga ao caju foi um passo. Aproveitei a oportunidade para perguntar sobre o poema Chuva de Caju e o poeta contou as circunstâncias que o determinaram: – Eu estava lendo quando, de repente, ouvi ruídos de passos, como se alguém acabasse de entrar na sala. Logo percebi que era a chuva, uma chuva de grossos pingos, que pulava pela janela e invadia o aposento. E lembrou que morava nessa época no Beco do Caju, o que explica o título da pequena obra-prima. Daí em diante, após ter falado sobre os amigos do Recife, entre os quais citou várias vezes o nome de Altamiro Cunha, a conversa foi ficando animada e uma pergunta surgiu sobre como se estava sentindo no regresso à capital pernambucana. Cardozo respondeu que, apesar de ter passado 32 anos no Rio de Janeiro, sentia-se “como se nunca tivesse saído daqui”. Aristóteles menor que Platão Tendo recebido a incumbência de fazer uma reportagem sobre literatura, quando dei conta de mim estava seguindo o poeta pelas ruas e bairros antigos do Recife, participando através da recordação de fatos ligados ao processo de urbanização do Recife e de Brasília: 74 Continente Multicultural

uma, a cidade que o viu nascer e, outra, a que foi quantificada em sua prancheta de engenheiro calculista. Só por dever profissional o assunto literário teve que ser retomado. Voltei a fazer perguntas de interrupção para retomar um pingo perdido da Chuva de Caju. O assunto, agora, era livros, território de Joaquim Cardozo por excelência, por direito de conquista. O nome de Aristóteles, não sei por que, cai na sala de repente. Cardozo faz confrontações entre Aristóteles e Platão, com sérios prejuízos para o primeiro. A Física aristotélica recebe fundamentadas restrições. Depois, enchem a sala os autores medievais e são apresentados por Cardozo como velhos conhecidos. Após a saída deles, o tempo vai se encurtando e já estamos chegando à Montanha Mágica, de Thomas Mann, uma das grandes admirações de Joaquim Cardozo. Depois de contar o enredo do romance com palavras recheadas de gestos, de significação, o poeta começa a se queixar da falta que lhe está fazendo a sua vasta biblioteca, deixada temporariamente no Rio. Procura pescar no ar o nome de uma editora, a data de uma edição e desiste – Terei de trazê-la com urgência para cá – declara um pouco magoado. É preciso ler muito Achando que perguntara pouco sobre a própria obra do entrevistado, em certo momento, pedi-lhe uma explicação sobre alguns trechos do seu grande poema Visão do Último Trem Subindo ao Céu, particularmente sobre aquelas passagens em que o poeta utiliza símbolos e sugestões das Ciências Exatas. Após esboçar uma tentativa de esclarecimento, Cardozo compreende que não pode ser acompanhado em seu raciocínio e diz simplesmente: “É preciso ler muito”. A frase, que pode ser dita por qualquer mestre-escola, ganha um peso especial quando pronunciada por um “imenso” poeta e teve um efeito duradouro e forte na minha consciência, repercutindo, alastrando-se: é preciso ler muito, é preciso ler muito. Abaixo McLuhan! Era noite e o poeta do Signo Estrelado, precisava recolher-se aos seus livros, às suas lembranças, aos novos e revolucionários poemas. Como qualquer vendedor de livros embaraçado, saí mais humilde do que entrei. Despedi-me de Joaquim Cardozo e de suas três irmãs e voltei para o planeta das urgências rasas, onde fui engolido pela escuridão e o esquecimento, nessa bela hora em que “as estrelas passam sobre Olinda”. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo



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VIDA LITERÁRIA William Buttler Yeats

Escritores fora do lugar Expatriados enfrentam os fantasmas da irrealidade e do estranhamento

A

história da literatura está plena de exemplos de outsiders, de autores que saíram de suas terras ou de si mesmos e buscaram desesperadamente, algumas vezes, reencontrar-se, conforme assinala Colin Wilson. Não é à toa que o autor ilustra essa sensação com o desabafo lapidar de John Keats (1795-1821), antes de morrer, que dizia sentir-se “coZuleide 76 Continente Multicultural

mo se já tivesse morrido e vivesse agora uma existência póstuma”. Há, segundo ele, um outsider romântico, “sonhador de outros mundos”, cuja inquietação está bem expressa nos versos de William Buttler Yeats (1865-1939), que afirma: “aquilo que buscam milhões de lábios no mundo, / deve estar substancialmente em algum lugar ...” Duas palavras servem para caracterizar a figura do outsider: estranhamento e irrealidade. Nos autores estudados por Colin Wilson, como Ernest Hemingway (1898 – 1961), Franz Kafka (1883 – 1924), Keats, Albert Camus (1913 – 1960), Fiódor Dostoievski (1821 – 1881), percebemos que os termos acima (estranhamento e irrealidade) aparecem em suas obras, encarnados em personagens e sentimentos nem sempre claros para o Duarte leitor, mas que, analiticamente, re-


A palavra desenraizamento, do latim radice, como o próprio nome indica, traz implícito o termo rizoma (do grego, rhizoma) que remete à idéia de formação, gênese, raiz. Ter suas raízes, fincar raízes, remete imediatamente a ter a pátria dentro de si, perto, sem nostalgia. Não seria o caso de um melancólico ou do enlutado, para quem a perda do objeto pode ser identificada com a falta, ausência imediata do torrão natal e também com a imagem materna. Nas palavras exemplares de Fernando Pessoa (1888 – 1935), através de seu semi-heterônimo Bernardo Soares, poderíamos entender melhor a problemática daqueles que se sentem nostálgicos com a perda da raiz/ rizoma natal. O verso “minha pátria é a língua portuguesa” poderia ser lido como a forma particular que Fernando Pessoa tinha de entender a pátria: desenraizado ainda criança, o poeta deixou o cenário da terra natal, adotando uma nova geografia (Durban, África) e até falando e escrevendo em uma segunda língua, o inglês. REPRODUÇÃO

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forçam aquela sensação de não estar presente de forma inteira, de que nos fala Friedrich Hölderlin (1770 – 1843) em Hyperion (1799). A criação literária contemporânea passa por esse duplo crivo. A literatura do exílio ou da emigração constitui um dos filões mais interessantes de análise pois emigra-se, primeiramente, da pátria, dos familiares, dos amigos e, em seguida, da sua própria língua. O personagem outsider analisado por Colin Wilson é um fora-de-lugar, um deslocado ou, em situações mais radicais, um rejeitado. Segundo ele, “o outsider não tem certeza de quem ele é. Ele encontrou um eu, mas este não é o seu verdadeiro eu. Sua maior preocupação é a de encontrar o caminho de volta”. E esse caminho passa necessariamente pela linguagem; escreve-se para inscrever-se de maneira irrefutável na lembrança daqueles que são nossos contemporâneos; escreve-se para não se cair no esquecimento e para se fugir da solidão. A literatura (ou a linguagem) é a tábua de salvação contra a marginalização do indivíduo, seja ele ficcional ou real. Analisando a posição ocupada por autores como Kafka, James Joyce (1882 – 1941) e Samuel Beckett (1906 – 1989) em relação às suas culturas de origem e à maneira como eles utilizam a linguagem (por movimentos centrípetos de territorialização e desterritorialização), Gilles Deleuze (1969) nos diz de maneira enfática: “Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a delas? Ou então nem mesmo conhecem mais a delas, ou ainda não a conhecem, e conhecem mal a língua maior da qual são obrigadas a se servir? Problema dos imigrados, e sobretudo de seus filhos. Problema das minorias. Problemas de uma literatura menor, capaz de escavar a linguagem e de fazê-la seguir por uma linha revolucionária sóbria? Como tornar-se o nômade e o imigrado e o cigano de sua própria língua? Kafka diz: roubar a criança no berço, dançar na corda bamba.” Evidentemente, há muito mais que a questão da língua no tocante à emigração. O indivíduo abandona suas mais arraigadas referências e lança-se no desconhecido, cuja estranheza se apresenta em primeiro plano na dificuldade com uma nova língua. No caso dos emigrados portugueses para o Brasil, o problema é aparentemente menor por causa da língua comum; entretanto, as diferenças bastante acentuadas entre as duas formas de falar o português estabelecem o desconforto característico de quem chega ao estrangeiro. Assim, torna-se imperiosa a necessidade de “alfabetizar-se” (na própria língua) para sobreviver. Desenraizar-se para suplantar a dor da perda.

No alto, Franz Kafka. Ao lado, Joseph Conrad

Ausente do país, é através da posse de outro objeto amado – a linguagem – que o indivíduo se relaciona com o mundo. Parece ser essa a problemática que está por trás da palavra exílio, duplamente entendida como a impossibilidade de se voltar ao ponto de origem, a não ser pela memória (caso dos emigrados de países tomados por convulsões ou regimes totalitaristas ou ainda dos exilados políticos por opção própria) ou pela manutenção da língua materna como idioma de expressão afetiva, mesmo que se fale/ escreva em uma outra língua majoritária. Nesse sentido, a literatura de um Kafka, tal como explicitada por Deleuze & Guattari (1977 – Kafka Continente Multicultural 77


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por uma Literatura Menor), ilustraria o que o filósofo chama de tentativa de reterritorialização/ desterritorialização: a capacidade de articularse em uma língua que não é a sua, fazendo-a vibrar com intensidade sob o ângulo que sua visão de estrangeiro permite e enriquecendo-a com usos simbólicos ou utilizando essa linguagem com sobriedade. Nessa última perspectiva, situar-se-iam Joseph Conrad (1857 – 1924), James Joyce e Samuel Beckett. O primeiro, sendo polonês e tendo como segunda língua o francês, aprendeu tardiamente a língua inglesa, que utilizou para escrever os livros que o fizeram conhecido, como Lord Jim e Nostromo, por exemplo. Joyce, irlandês, tornou-se poliglota nas suas várias mudanças, experiência que o subsidiou na criação de uma “língua” que é a mescla do inglês arcaico, latim, finlandês, italiano, entremeado de jogos vocabulares que usou para escrever Finnegans Wake, livro considerado intraduzível até para o inglês. Para se expressar literariamente, o também irlandês Samuel Beckett empregou alternativamente o inglês e o francês. Esse sentimento de nostalgia experimentado pelos escritores acima mencionados, em relação simultânea com a língua e a pátria, parece obter a “cura” através da criação literária. Quanto mais distante dessas referências fundamentais, mais o autor procura superar esse exílio através do desabafo da escritura, seja ela prosa ou poesia. A sensação de desenraizamento é fundada num certo desejo: o de exprimir para si e para os outros, o de se deixar falar por uma língua que já não é a sua, constatando-se quão distante se está dela e, paradoxalmente, tão perto, uma vez que esta não foi nunca esquecida. Esse movimento de busca tem um caráter circular pois, por mais voltas que o homem dê, encontrará sempre a imagem da pátria a acenar-lhe com o convite da volta. Manuel Alegre, poeta português exilado na época da guerra Portugal/ África, diz nos seguintes versos: “Eu que fiz Portugal e que o perdi/ em cada porto onde plantei o meu sinal./ Eu que fui descoberto nunca descobri/ que o porto por achar ficava em Portugal.// (...) A tua glória foi teu mal/ não te percas buscando o que perdeste/ procura Portugal em Portugal.” 78 Continente Multicultural

Esta verdade plasmada em versos pelo autor de O Canto e as Armas foi vivida pelo escritor e político português Jaime Cortesão, exilado político que morou no Brasil e que, ao tentar regressar clandestinamente à pátria, por duas vezes, foi recolhido à prisão. Assim como ele, muitos outros experimentaram o desejo de regressar e o fizeram efetivamente, deixando no Brasil, ou em outros países, muitas vezes, uma situação economicamente superior à que tinham em Portugal. Os registros literários da experiência do retorno são, também, inúmeros, de emigrados tanto para o Brasil, como Jorge de Sena, Miguel Torga e o próprio Jaime Cortesão, quanto para outras partes do mundo, caso de José Rodrigues Miguéis, Eduardo Lourenço, Maria Gabriela Llansol, Lídia Jorge e muitos outros. Ferreira de Castro, por exemplo, emigrou ainda criança para o Brasil e, baseado em sua experiência no trópico, escreveu vários romances, dentre os quais destacam-se Emigrantes e A Selva, textos referenciais sobre o tópico da emigração portuguesa. Na sua ficção, os personagens que tanto quiseram emigrar desejam retornar à aldeia. É como se o ciclo vital do homem só se pudesse fechar voltando ele ao ponto de origem. REPRODUÇÃO


A escritora portuguesa contemporânea Agustina Bessa-Luís ilustra o conceito de emigrante, registrando a experiência do próprio pai. É de sua autoria o seguinte relato: “Meu pai era um emigrante; e não sei se o era, porque aos doze anos, embarcado com fraca tutela de parentes e pouca recomendação para o seu destino, não se é um emigrante, porque a vontade não participa, a razão não comanda, o espírito não contribui. É-se qualquer coisa como um órfão de mãe viva, como se diz. Eu sempre entendi que meu pai, um homem realista, reunia num só sentimento a idéia de pátria, de mãe e de glória. Ao ouvir as notas do hino nacional, as lágrimas subiamlhe aos olhos; a sugestão dum feito histórico comovia-o extraordinariamente; e ele, tão benévolo com os filhos, como o são os homens experientes do mundo, mostrava-se severo se nos descobria um sorriso de incredulidade. Muitos anos depois de ter regressado do Brasil, ainda sentia como se a distância aprofundasse nele o orgulho de português. O primeiro livro que comprou na vida foi Os Lusíadas, e leu-o gravemente, não para se instruir, mas para entrar na História ao lado daqueles bravos, daqueles homens que não se submetem à idéia do passado, que criam o passado mas não se situam nele.” A concepção de emigrante para a autora de A Sibila privilegia um elemento primordial: a vontade. Segundo ela, emigrar é um ato do qual, necessariamente, participa a decisão pessoal; assim, o seu pai foi muito mais um exilado que se agregou a parentes, ainda adolescente, tendo que enfrentar a orfandade em um país estranho. Sua aquisição de Os Lusíadas e o propósito com que o “leu para entrar na História” mostram de que forma aquele menino construiu e acalentou sua identidade portuguesa. A obra de Maria de Lourdes Hortas também pode ser enquadrada dentro dessa perspectiva do exilado. Seus personagens experimentam o drama do “ser de fora”, vivendo uma dicotomia que de um lado apela para as referências culturais da aldeia, e por outro sofrem a influência cultural, ideológica e psíquica da pátria no exílio, criando um movimento de báscula em que pesa mais o prato que contém a memória da aldeia além-mar. É como se representasse o Complexo de Édipo, em que a aldeia fosse a mãe (pátria) e a pátria do exílio o pai, contra quem a criança direcionaria sua hostilidade. O parricídio freudiano se realizaria então com a volta à aldeia como lugar de origem, espécie de útero primordial.

Esse sentimento de nostalgia experimentado pelos escritores, em relação simultânea à língua e à pátria, parece obter a “cura” através da criação literária. Quanto mais distante dessas referências fundamentais, mais o autor procura superar esse exílio através do desabafo da escritura REPRODUÇÃO

Na outra página, no alto, Ernest Hemingway. Abaixo, Samuel Beckett. Ao lado, Albert Camus

Zuleide Duarte é doutora em Literatura Brasileira pela UFPB e professora da FUNESO

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ENTREMEZ

Sobre memória e bytes

Os registros materiais (ou virtuais) do conhecimento eternizaram o instante e baniram a morte da vida do homem moderno

N

o meio de uma conversa sobre poesia, coisa rara nos tempos de hoje, tentei lembrar um poema de Tu Fu, poeta chinês da dinastia Thang (“naquela época cada homem era um poeta”), corajosamente traduzido por Cecília Meireles: “Vinde! Em redor da minha casa canta um riacho alegre como a primavera. Vereis talvez gaivotas, se o vento se levantar”. Não consegui ir além. A memória traiu-me. Prometi ao meu interlocutor que mandaria o poema completo pelo correio eletrônico. Para um grego clássico, eu acabara de cometer um sacrilégio, falhando no que era uma das mais importantes qualidades do homem: a memória. Entre a

data da realização do Banquete e a sua narrativa por Apolodoro, passaram-se muitos anos, mas não existem dúvidas quanto à exatidão do que é narrado. É difícil para um homem contemporâneo conceber um tempo em que os registros do saber se faziam por outros meios que não fossem os símbolos da escrita ou das imagens. Esse tempo está absurdamente distante de nós. Há tantos recursos para substituir nossa armazenagem de conhecimento, que já não se soma dois mais dois sem o uso de uma calculadora. A presença de armas e sacrifícios animais, em túmulos do Neandertal, indicam que aquele homem distante já pensava sobre a morte. Só com os primeiros registros escritos, temos a certeza desse pensamento. Mas podemos arriscar um palpite de que os feitos da tribo eram guardados na memória e transmitidos de

Ronaldo Correia de Brito 80 Continente Multicultural


geração em geração. As inscrições rústicas encontradas nas cavernas são as primeiras tentativas de firmar essa memória. A poesia chinesa da dinastia Thang descende de uma velhíssima poesia de tradição oral, compilada e fixada por Confúcio no Che keng. O Ramayana, livro clássico da tradição hindu, que narra a epopéia de Rama, foi guardado de memória durante séculos, até ser fixado de forma escrita pelos sacerdotes brâmanes. Antes, gerações de jovens se dedicavam, desde cedo, ao duro exercício de guardar algumas das suas muitas partes de cor, exercitandose durante toda a vida. Para isto, perambulavam pelas aldeias e cidades, declamando as peripécias do Deus e, no tempo preciso da velhice, iniciando novos jovens no mesmo ofício. Falhei na memorização de umas poucas estrofes. Para redimir-me, transcrevi no correio eletrônico o poema que fala de coisas sem muito significado nos nossos tempos: casa, aléias, regato, ninho de andorinhas. Enviei-o e o amigo não recebeu. Houve uma desconexão na hora da remessa e o poema extraviou-se. Fiz duas novas tentativas e misteriosamente a mensagem não chegou ao destino. Desisti frustrado, querendo a todo custo saber em que memória se guardaram os versos de Tu Fu. Sou um narrador sedentário, segundo a classificação de Walter Benjamin. Os outros narradores, quando existiam narradores, eram os viajantes, os que percorriam o mundo em perigos e aventuras e ouviam as histórias de outros homens como eles. Envelhecidos e cansados retornavam às suas pátrias, narrando seus feitos e aprendizados. Estes se incorporavam à crônica local e enriqueciam o repertório dos sedentários, aqueles que, no fundo de uma oficina – ferreiros, sapateiros, ourives –, tinham tempo e paciência para remoer o que fora ouvido, e acrescentá-lo ao que aprenderam da tradição. O ócio é uma das condições para o aprimoramento da narrativa. E a memória do narrador se depura no ócio. Havia uma outra medida de tempo que se perdeu. Nessa medida não se procurava negar a existência da morte. Através da memória o homem afirmava um princípio e um fim, e todo o espaço que permeia

esses dois extremos. Não se buscava eternizar o instante, através do registro da imagem, como o faz o homem contemporâneo, na tentativa de negar a morte. Tudo fluía como no rio de Heráclito, que nunca é atravessado duas vezes. A reflexão sobre a morte é uma das condições inerentes à narrativa e ao narrador. Refletir sobre a morte é ter dela uma memória onipresente. A morte foi banida da vida do homem moderno, que tenta de todas as maneiras escamoteá-la. Não existem mais rituais que ensinem o homem a nascer e a morrer. Quando uma pessoa envelhece e adoece, a família a entrega aos cuidados dos médicos e dos hospitais. Se ela fica muito grave, vai para uma UTI, onde a família tem pouco acesso. E quando morre, é encaminhada dentro de um caixão para um velório, onde rapidamente se providencia o seu funeral. O sentido de eternidade, inerente à narrativa, existe no universo virtual? Nele, lida-se com a idéia de que a memória é exterior a nós, podendo ser reativada ou apagada, ao simples toque de botões. O homem contemporâneo negligencia a sua responsabilidade com a memória pessoal e coletiva. No mundo virtual a memória deixa de ser privada e passa a ser compartilhada, já que todos podem ter acesso a ela. Desaparecem o mistério, os tortuosos labirintos, as possibilidades do narrador preencher os vazios da falta com sua invenção e arte. A memória do computador é rígida, fixa, por mais avançado que ele seja. E faltam à máquina as qualidades de um contador de histórias: o olhar complacente, a boa voz, o bom sentimento. Desisti de enviar o poema pelo correio eletrônico. Temi uma nova cilada, no estilo dos contos de Poe. Numa tarde de ócio, memorizei os versos de Tu Fu. Quando, num dia qualquer, reencontrar o meu amigo Marcio Dias, poderei declamar as estrofes restantes: “Como jamais recebo visitas, não mando varrer as aléias do meu jardim. Pisareis num tapete de folhas. Tereis de desculpar-me pelo modesto almoço que vos ofereço...” Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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UM LUGAR


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Pátio de São Pedro, visto do alto da igreja de São Pedro dos Clérigos

São José, meu bairro

As ruas do bairro de São José descritas a partir de uma caminhada repleta de romantismo, nostalgia e apelo por sua preservação

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em, meu amigo, percorrer, ao mais exista, para ampliação de largas avenidas projemeu lado, um bairro recifense tadas com o objetivo de descongestionar o tráfego. que ainda conserva aspectos resi- Objetivo que de resto não é atingido, porque as duais da velha capital pernambu- causas do congestionamento do trânsito no Recife cana. Não adiemos este passeio, são a falta de pontes e, sobretudo, a construção de porque talvez amanhã encon- edifícios elevados, com numerosas salas e apartatremos mais algumas casas típi- mentos, sem que sejam considerados os problemas cas do passado, de porta e janela, parede-meia, com decorrentes de estacionamento e da progressiva as fachadas conspurcadas por linhas modernosas, matrícula de novos veículos. Na realidade, a abertumarquises, portas de metal e outros tantos elementos ra de tais avenidas atendem melhor à cupidez dos que as descaracterizam e as tornam irreconhecíveis. empreendimentos imobiliários. Vem logo, meu amigo, porque talvez amanhã Vem depressa, meu amigo, porque possivelmente não existam mais as poucas igreamanhã uma velha rua desse bairjas que ainda restam – relíquias ro, com seus sobradinhos, já não Berguedoff Elliot Continente Multicultural 83


seculares ainda impregnadas da atmosfera do velho burgo. Nosso percurso deve ser feito a pé, porque qualquer viatura motorizada teria o seu caminho, de quando em vez, interceptado pelas placas do Detran, dando a impressão de um labirinto de Dédalo. Indagar-me-ás, amigo, a razão de meu interesse em mostrar esse bairro. Responderei que nenhum outro bairro recifense reúne tantos sítios históricos e evocativos, nenhum outro resistiu tanto às alterações de sua velha fisionomia, com as suas edificações típicas. Direi ainda que nesse bairro eu nasci, em um sobrado na esquina da rua Tobias Barreto com a praça da Estação Central, e nele vivi momentos inesquecíveis de minha adolescência. É o bairro de São José. Os principais fatos históricos que iluminam o seu passado ocorreram quando esse bairro se achava incorporado ao bairro de Santo Antônio, mas essa circunstância não o desmerece porque o seu chão é o mesmo, digno de nossa melhor reverência. Somente com a lei provincial nº 133, de 2 de maio de 1844, a freguesia de São José foi desmembrada da de Santo Antônio, tendo originalmente os seguintes limites: ao norte, a freguesia de Santo Antônio, pelo largo do Mercado ou Penha, rua da Assunção, travessa do Carvalho e do Serigado, rua Direita; pelo lado ocidental, aquela travessa até encontrar a rua Tobias Barreto (antigo beco dos Sete Pecados Mortais), por esta toda seguindo até a praça da Estação Central (hoje Visconde de Mauá) sendo da freguesia todos os pontos dessa linha; a leste o mar; ao sul, a freguesia de Afogados, da qual se separa pelo rio Capibaribe; e a oeste, com a freguesia da Boa Vista, pelo mesmo rio Capibaribe. Em atenção à tua sensibilidade e à tua cultura, preparei este itinerário. Releva-me o aspecto sentimental inseparável de seu contexto. Iniciaremos nosso passeio pela praça do Mercado (hoje D. Vital), onde poderás ver o secular Mercado Público de São José, construído no centro da antiga praça onde outrora existiram os velhos

terreiros da Ribeira de São José. Todo de ferro e cantaria, é o único mercado do mundo que recorda o Mercado Central de Paris, já demolido, no qual se inspirou o seu arquiteto. Sua inauguração data de setembro de 1875. Foi o Barão de Lucena, quando Presidente da Província, que autorizou a sua construção. Nele, grande parte da população do Recife se abastece de carnes, peixes, crustáceos, cereais, frutas, legumes e hortaliças. Mas o que existe de mais genuíno são os seus compartimentos para a venda de objetos de artesanato, urupemas, colheres de pau, vasilhas de barro, artigos de couro e o seu fabuloso ervanário onde se vendem raízes, entrecascos, folhas e flores secas de plantas medicinais destinadas aos mais variados tipos de enfermidade. E também defumadores e essências para banhos recomendados pelos terreiros de Umbanda e

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Seqüência de imagens do bairro de São José, nos séculos 19 e 20

Pátio do Terço


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A noite atual no pátio de São Pedro

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de Macumba. Entre as plantas medicinais, as mais vendidas são quixaba, aroeira, capeba, angico, alcachofra, boldo, quebra-pedra, ipecacuanha, jurubeba e catuaba. Figuram ainda os colares com dentes de animais e caroços de mucunã para preto velho, figas e patuás. Os defumadores apresentam designações sugestivas: “abre caminho”, “vence tudo”, “tira mandinga”, “olho grande”, “comigo ninguém pode”. Como conseqüência do sincretismo afro-brasileiro, ali se encontram imagens que correspondem a divindades dos cultos africanos: Nossa Senhora do Carmo – Oxum; Santa Bárbara – Iansã; Nossa Senhora da Conceição – Iemanjá. Como a demonstrar que o espaço útil do mercado já está exíguo para esse gênero de comércio popular, erguem-se na praça D. Vital tendas para

venda de confecções, sapatos, sandálias, artigos de couro, peças de ferro, discos. Mulheres fritam peixes, assam milho e fazem tapioca. Cantadores com suas violas, repentistas, exibem-se para pequenos grupos de populares. Camelôs completam o quadro com uma cobra inofensiva. Encontram-se aí bons exemplares da literatura de cordel. Nessa mesma praça, teremos à nossa frente a basílica de Nossa Senhora da Penha, que pertence à Ordem dos Capuchinhos. Construída com inspiração no modelo de Santa Maria Maior, em Roma, obedece ao estilo coríntio com a configuração de uma cruz latina. Contém três naves com um zimbório, cuja clarabóia filtra uma luz suave que impregna o templo de uma ambiência mística. Na parte posterior, erguem-se duas esbeltas e elegantes torres octogonais. Os primeiros frades capuchinhos eram franceses e chegaram ao Recife numa galé de escravos que fora atacada por piratas holandeses. O príncipe Nassau os acolheu com generosidade e os distribuiu separadamente nos conventos abandonados de São Bento, São Francisco e do Carmo, em Olinda. A esse tempo, eles iniciaram a sua obra missionária levando uma mensagem de esperança aos nativos e portugueses que se achavam sob o jugo holandês. Não tardaram em colaborar com os pernambucanos na resistência ao flamengo. Crônicas da época registram que um frade leigo capuchinho, entendido na arte militar, dirigiu com êxito um assalto ao último reduto dos holandeses entrincheirados na casa grande do engenho de D. Ana Paes. Com a restauração, o general governador Francisco Barreto de Menezes doou-lhes uma casa de sobrado no bairro de Santo Antônio do Recife, até o momento em que eles ergueram a sua igreja com um hospício no local em que se encontra a basílica. No século 18, em virtude de estremecimento nas relações entre França e Portugal, ordens do reino determinaram o banimento e o regresso dos capuchinhos ao país natal. Essa ordem foi revogada, mas o

Travessa do Mercado


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seriados. Por último, em atenção ao seu público, vem exibindo filmes de cowboy ou chanchadas. Sua freqüência abrange os clientes do mercado e as mundanas residentes nas proximidades, que ali encontram os habituais fregueses. Ao lado direito da basílica existem duas estreitas ruas: a de Santa Rita Nova ou Muniz e a de Santa Rita Velha, onde ainda resiste ao tempo e às picaretas do progresso a velha igreja de Santa Rita de Cássia. Ao lado esquerdo está a rua das Calçadas, que é o melhor caminho para atingir a parte histórica e monumental do bairro. De um lado pode-se ir pela travessa de São José ao pátio da igreja de São José de Ribamar, uma das mais antigas do Recife. No século 17, era modesta capelinha, construída por carpinteiros. A fachada dessa igreja domina o pátio com sua imponência, constituindo valiosa contribuição para o estudo da evolução dos frontispícios dos templos na segunda metade do século 18. Destaca-se no frontão

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Afresco de Murillo La Greca na Basílica da Penha, no bairro de São José

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provincial do Convento de Borgonha exigiu, de qualquer forma, o retorno dos frades à França. A pedido de frei Jerônimo de Gênova, Superior da Ordem em Portugal, El Rei Dom João V determinou que fossem entregues aos capuchinhos italianos a primitiva igreja e o hospício. Em 1831, um decreto do governo da Regência proibiu a permanência da chamada Associação Religiosa dos Missionários Capuchinhos. Nove anos depois, foram os frades da Penha reinvestidos na posse de seu patrimônio. D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, cuja estátua se vê no centro da praça, foi um bispo capuchinho que mandou expulsar os maçons das irmandades católicas e, em conseqüência, entrou em luta com o Governo Imperial por não querer cumprir a ordem de sustar aquela interdição. Essa atitude custou-lhe a pena de prisão na Ilha das Cobras, juntamente com D. Macedo Costa, do Pará. Sem pretender discutir aqui o erro em que teria incorrido aquele ilustre prelado com a expulsão dos maçons e a desobediência à ordem do Governo, não se lhe pode negar a coragem e a disposição heróica com que se manteve fiel à posição assumida. A basílica da Penha é um dos templos mais freqüentados do Recife. Aí os fiéis vão receber a chamada bênção de São Félix, às sextas-feiras, e a imposição das cinzas na quarta-feira seguinte ao tríduo carnavalesco. Os perseguidos pela má sorte procuram os frades para submeterem-se a um tipo ameno de exorcismo: uma surra simbólica com os cordões de São Francisco. No templo estão sepultados os restos mortais do poeta Gregório de Matos e de D. Vital, cujo corpo foi trasladado de Paris. Do outro lado da praça, oposto ao do mercado, está o Cine Glória, o mais popular de todos os cinemas, que já completou cinqüenta anos de existência. Ainda pertence à firma que o instalou – A. C. Leite, da qual é titular Dona Maria José Ferreira Leite. Nos primeiros dias de funcionamento, exibia filmes

Estação Ferroviária Central


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Vida no Pátio de São Pedro

da noite, depois do expediente no Jornal do Recife, com Eugênio Coimbra Júnior a declamar versos de sua autoria. Fazia-o nas proximidades da casa de uma garota que eu pretendia namorar, mas a menina se revelava indiferente ou não percebia as minhas intenções. Isso porque os versos de amor não eram declamados por mim, mas, por Coimbra. Pelo lado direito da rua das Calçadas, entrando na rua Antônio Henrique, chegaremos à rua Padre Floriano. Na convergência desta com a rua Cristóvão Colombo encontra-se um marco que assinala o suposto local em que o comandante holandês Van Loo entregou a cidade ao General Barreto de Menezes, em 26 de janeiro de 1654. Quanto à exatidão do local, há controvérsia, pois não se sabe ao certo se ali existiu a porta sul da cidade. Seguindo a rua do Jardim já poderemos divisar o forte de Cinco Pontas construído originalmente pelos holandeses com a designação de Frederico Henrique, e reconstruído pelos portugueses com quatro

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sua decoração rocaille esculpida em arenito ou moldada em massa. A igreja, como se apresenta atualmente, foi erigida por iniciativa de D. Tomaz José de Melo e aberta ao culto em 1797. No seu interior são dignos de referência os seus ornamentos, suas talhas douradas sobre fundo branco e o painel do teto, com a imagem do padroeiro – obra de um artista anônimo. As imagens existentes pertencem aos séculos 18 e 19. O pátio, circundado de casas de porta e janela, com os seus moradores habituados a sentarem-se, à noite, em cadeiras dispostas nas calçadas para se livrar do calor, reveste-se de uma beleza poética incomparável. Em tempos idos, ainda se ouvia um ou outro piano. Era alguém que lembrava velhos amores do passado através de valsas dolentes. E o velho pátio, com as silhuetas de seus namorados que se distanciavam da luz dos lampiões, se transformava assim em um mundo mágico de poesia e de ternura. Sentei-me muitas vezes em suas calçadas, altas horas

Mercado de São José


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Fachada de mercearia no bairro de São José

basteões em vez dos cinco que lhe deram a designação. Depois de baterem os flamengos em uma fortificação na Cabanga, os insurretos comandados por Vidal de Negreiros partiram para o assalto final àquela fortaleza, quando o inimigo pediu suspensão das armas para fazer as negociações da capitulação, na Campina do Taborda. A 13 de fevereiro de 1825, serviu o largo do forte de Cinco Pontas de cenário a outro fato de inolvidável significação histórica. Era ali fuzilado, atado a um poste, frei Joaquim do Amor Divino Caneca – apontado como um dos conspiradores da Confederação do Equador, – por não haver carrasco que se prestasse a enforcá-lo. Daí passaremos à rua Vidal de Negreiros para atingir a igreja Matriz de São José. Os entendidos em arte depreciam as linhas arquitetônicas desse templo, mas o seu interior parece sempre impregnado do incenso queimado nas noites do mês mariano, com a presença dos jovens do bairro, as moçoilas de véu branco à cabeça murmurando a Ave Maria, e os rapazes de longe a disputar-lhes um sorriso ou um olhar tímido. São José já foi muito milagroso. Ou melhor, ainda é. O que falta é gente que acredite nele com a mesma fé ou que mereça os seus milagres. O templo foi aberto ao culto em dezembro de 1864, reconstruído e novamente sagrado em junho 88 Continente Multicultural

de 1908. Diz-se que o seu sino é o maior do Recife, com 24 arrobas. O som – acrescentam – chega até Tejipió. Foi um velho Vilaça que mandou fundi-lo em pagamento de uma promessa. Ante a Matriz, a extensa rua Imperial que se alonga até Afogados. Deveremos voltar pela rua Vidal de Negreiros para reverenciar outro sítio histórico: é o pátio do Terço com sua igreja. A princípio era um nicho singelo de Nossa Senhora, onde os visitantes vinham rezar o terço quando chegavam à vila. Depois, transformou-se em uma capelinha já existente em 1710 e a seguir, numa igreja. Reconstruída em 1873, foi sagrada em janeiro do ano seguinte por D. Vital. A estrutura do templo, pela sua proximidade do mar, sugere uma nau que vigia o oceano do alto de sua torre azul e branca. O cavername da embarcação é representado pelos arcos da esguia nave. O campanário tem seu coruchéu rodeado por um conjunto de faianças portuguesas, de raro interesse artístico, inexistentes em qualquer outra igreja do Recife. O pórtico da entrada e as portas laterais são revestidos de cantarias de liós português, trabalhadas no estilo clássico. No interior, o altar-mor é representado por um retábulo pintado a branco com efeitos dourados. Há duas colunas engrinaldadas a ouro. Antes da reforma de 1873, a porta do templo foi o cenário escolhido para a exautoração ou degradação das ordens sacras de frei Caneca. Ali ele deveria ser enforcado, mas não houve carrasco que se prestasse à execução dessa pena iníqua. Por isso, o grande mártir da liberdade teve de seguir a pé até o largo das Cinco Pontas, onde foi fuzilado. As procissões da padroeira e de São Sebastião que saíam da igreja do Terço tinham grande afluência. Ainda hoje os maracatus do Recife promovem no seu pátio, uma vez por ano, a Noite dos Tambores Silenciosos. A secular igreja fica na confluência da rua das Águas Verdes com a rua Direita. Sua torre esguia em louça portuguesa mereceu do jurista e poeta Odilon Nestor estes versos: “Viste cobrir de beijos muito berço De cravos brancos muitos noivos E de boninas e goivos Mil caixões a enfeitar” No pátio do Terço ainda existe o edifício em que funcionava o Cine Ideal, freqüentado pelas famílias do bairro de São José. Ali, muitos namorados se encontravam para trocar carícias e de lá saíam sem condições de recordar o enredo do filme.


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A empresa proprietária que o fechou pretende restaurá-lo com uma fachada de aspecto antigo que se harmonize com o estilo do casario do pátio. Nele será instalado um cinema de arte com alguns dias reservados para os grandes filmes do passado, em ambiente aconchegante, mas servido pelos indispensáveis requisitos de conforto, inclusive ar refrigerado. Ali, os recifenses de cinco ou quatro décadas atrás serão motivados para um encontro nostálgico. Seguiremos depois pela rua Direita, talvez a mais torta de todas as ruas recifenses. De comércio barato, ao alcance da classe média de menor renda, possui sobrados típicos, alguns já mutilados, imperdoavelmente mutilados. Nessa rua, Antonino José de Miranda Falcão montou uma tipografia e fundou, em novembro de 1825, o Diario de Pernambuco, que é hoje o jornal mais antigo em circulação na América Latina. Atingiremos, em seguida, a rua Tobias Barreto. Em sua origem era o beco dos Sete Pecados Mortais porque nele havia sete casas habitadas por mulheres fadistas. Estende-se até a praça da Estação Central, hoje Visconde de Mauá, com o sobradinho de esquina em que nasci. Antes, porém, de nos aproximarmos da rua da Concórdia, teremos cruzado com risco de vida, ante a velocidade dos veículos, uma ampla, moderna e extensa avenida que, sem prejuízo de seu tráfego intenso, em dois sentidos, serve para estacionamento de carros particulares. Ela vem da praça da República até a praça Sérgio Loreto. Houve um “terremoto” não registrado pelo sismógrafo que fendeu a terra bem ao meio do coração do bairro. Arrasou vários quarteirões de São José, inclusive a saudosa rua Augusta. Fez pior: destruiu a igreja dos Martírios, que tinha um dos frontões mais belos do Recife. E assim, abriu-se a nova avenida. Prometeram que o frontão da igreja seria reconstruído, somente ele, noutro local, como uma compensação aos recifenses não interessados na especulação imobiliária da moderna avenida, mas traumatizados pela calamidade que demoliu o templo. Foi melhor que essa idéia ficasse esquecida. O frontão reconstruído serviria de mictório público. A igreja dos Martírios, sim, jamais será esquecida. Sua recordação será um estigma permanente para os iconoclastas do urbanismo. Chegaremos depois à secular rua da Concórdia com suas casas de porta e janela, parede-meia, em quase toda sua extensão. No passado, muitas de suas fachadas ostentavam azulejos portugueses e franceses. Seu nome primitivo era rua do Fernandes, em homenagem ao ourives José Fernandes, que cons-

Pátio de São Pedro, visto de dentro da igreja de São Pedro dos Clérigos

truiu as primeiras casas. Depois, o carpinteiro Manoel José edificou novas casas e sentiu-se com o direito a ter o seu nome na rua. Houve uma querela que se refletiu na Câmara Municipal, dividindo as opiniões em clima de intransigência. Nessa ocasião, o presidente do órgão, Maciel Monteiro, propôs solução conciliatória: rua da Concórdia. Este nome ficou, a despeito de um certo período em que lhe deram a designação de Marquês de Herval. Já foi a rua mais alegre do Recife. Raro era o sábado em que não havia um ou dois saraus familiares: reuniões dançantes, ao som de piano, interrompidas pelas chamadas horas de arte em que se declamavam versos com acordes da Dalila em surdina. Não se pode separar o nome do maestro Nelson Ferreira da rua da Concórdia. Ele sempre era solicitado para exibir-se ao piano com suas valsas inesquecíveis, suas e de Alfredo Gama. Nas calçadas, comprimia-se a turma que compunha o “sereno”, integrada pelos curiosos e não convidados que disputavam junto ao dono da casa uma oportunidade de ter acesso à festa. Pelo carnaval, era a rua mais festiva, onde os folguedos populares adquiriam maior autenticidade. Por ela passavam todos os blocos e clubes com as belas fantasias de seus componentes e suas excelentes orquestras (Bloco das Flores, Pirilampos, Apois Fum, Clube Vassourinhas, Pás, Lenhadores e, por Continente Multicultural 89


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último, o bloco Batutas de São José, campeoníssimo de vários carnavais). Nem por isso se desviava o corso constituído pelos carros ornamentados, repletos de jovens exuberantemente alegres que promoviam batalhas de confete e lança-perfume. O prestígio da rua da Concórdia começou a cair quando deixou em grande parte de ser residencial. O comércio descaracterizou-a, expulsando seus velhos moradores. Chegaremos, por fim, à praça Sérgio Loreto, antiga Campina do Bodé, mutilada em grande parte pela avenida que surgiu do “terremoto” já referido. Teve a fama do mais belo jardim do Recife, com sua Ilha dos Amores e seu coreto em que bandas de música, públicas e particulares, faziam retretas com repertórios selecionados que despertavam no povo o bom gosto musical. Havia ainda o quem-me-quer – calçada do jardim em que os rapazes se fixavam a dirigir galanteios às moçoilas que contornaram o logradouro. Nesse local tiveram início muitas histórias de amor. Meu amigo: este é o roteiro inicial do passado para o qual te convidei. Outro dia, visitaremos algumas ruas e travessas de São José que não foram incluídas no itinerário descrito: ruas do Nogueira, dos Pescadores, do Forte, Barão de Vitória, Santa Cecília, passo da Pátria, Floriano Peixoto, do Mu90 Continente Multicultural

niz e travessas do Macedo, dos Martírios, do Gasômetro, etc. Nosso percurso será mais uma vez a pé, devagar, para que possamos ver essas ruas e travessas com a ternura que merecem, sentindo o seu odor que nos lembra os arruados de cidades orientais. O que poderia salvar esse bairro, preservando o que ainda resta do Recife antigo, na sua zona urbana, naquilo em que ele é mais típico, como bem cultural e paisagem histórica, seria uma medida corajosa e heróica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – uma das mais sérias instituições do país. Bastaria que esse órgão fixasse um polígono sob sua proteção, como fez em Olinda, abrangendo ao sul o forte de Cinco Pontas e ao norte o pátio de São Pedro que, embora não pertença ao bairro de São José, ficaria a este ligado para integrar a área monumental da cidade. A leste, os limites seriam a avenida Sul e o cais de Santa Rita e a oeste, a nova avenida Dantas Barreto. Dita área seria considerada intocável, e vários arruados com o seu casario seriam recuperados através de obras de restauração, como se fez no Pelourinho, em Salvador, para expungir os atentados já praticados ao seu aspecto original. A limitação dessa área protegida não significaria que outros monumentos do Recife deixassem de ser preservados em sua ambiência. O IPHAN poderia

PIO FIGUEROA / LUMIAR

Fachada de casario no bairro de São José


cometer essa grandiosa tarefa ao chefe do 1º Distrito, Ayrton de Almeida Carvalho, o romântico espadachim de tantas lutas em defesa de nosso acervo histórico e artístico, com o auxílio da Fundarpe que conta com as verbas da Secretaria de Planejamento para a defesa das cidades históricas. Foi precisamente isso que os suecos fizeram para preservar os bairros antigos de Estocolmo. Foi assim que se fez em Varsóvia onde os bairros destruídos pelas bombas nazistas foram reconstruídos em sua pureza original. Meu amigo, a esta altura, percebo que estou a sonhar. Eis um sonho que eu gostaria de ver transformado em realidade. A ambição desvairada dos empreendimentos imobiliários, à vista da celeridade com que estes se expandem e devastam a cidade, não me permite acreditar muito na viabilidade desse sonho. Por isso, meu amigo, insisto desesperadamente no convite que te fiz e agora renovo. Vem logo ouvir

a voz do poeta no pátio da Ribamar. Ele conhece “o mistério da noite que se fez mulher para ser amada”. Há duendes que passeiam pelas calçadas. Eles entram no templo e dele saem com as portas fechadas. Vigiam-no com o propósito de resistirem a qualquer tentativa de destruição. Mas, vem depressa, meu amigo, porque senão, quando chegares em busca do bairro de São José alguém dirá – sumiu. O tempo é fugaz e o poeta exclamará num só lamento: “Hoje foi ontem. Amanhã será hoje”. Isto parece não ter sentido, mas nos oferece uma imagem cruel de nossa realidade, de nosso tempo. Nota bem: se não vieres logo, ouvirás apenas o latido nostálgico de um cão frente a um depósito de picaretas. Texto publicado pela primeira vez na revista Arquivos, em 1976. Berguedoff Elliot (1912-1987) foi advogado, membro da Academia Pernambucana de Letras e vice-presidente da Escolinha de Arte do Recife

Galo da Madrugada, ícone recente do bairro de São José


UM PERSONAGEM


ELPÍDIO SUASSUNA

Um museu

em minha memória Melquisedec Pastor do Nascimento conta a sua história e o que o levou a se tornar livreiro

S

ou de origem social muito desvalida. os chinelos e botar meia-sola nos sapatos. Não me Filho de pai e de mãe proletários, deu nem um vintém... Ela, Laura Francisca dos pobres de Jó. Ele, Joaquim Pastor do Santos, cantando, costurava para fora, em cima de Nascimento, fazia chinelos para uma velha pé-de-aranha. Era bonita e cantava divimandar vendê-los de porta em porta, namente. Costurando, criava os filhos de dois pais, e fazia anéis de chifres de boi, de separada que era. Quando comecei a registrar na metal e de aço, contra o vento mau, memória meus fatos existenciais, morávamos eu e para vendê-los nas feiras e nas festas de igrejas. E meus irmãos com minha mãe... (Onde andará a velha Lalu, que não me deu apeconsertava sapatos, relógios, guarda-sol e sombrinhas. Consertava quase tudo em seu muquiço do nas a vida física, meu irmão e minhas irmãs, onde anCaranguejo, nos Remédios. Não consertou sua vida. darão? Tonho, que vendeu a coroa de ouro da boca Também trabalhava cantando. Mas, só cantava Pé para comprar “figo” de alemão pra gente comer? de Anjo, Vitalina e Meu Boi Morreu: “A mulher e a Com ele quase aprendi a tocar violão. Não aprendi, galinha/ São dois bicho interesseiro/ A galinha pelo porque ele não passou do lá menor: quem quer que, milho/ E a mulher pelo dinheiro”; “Bota pó vitalina, quem quer que, quem quer que... Troquem os que... bota pó/ Que moça véia não sai mais do caritó”. “O Nem, que me carregava para o mangue pra pegar ameu boi morreu...” Era artista, conforme declarou ratu, caranguejo, siri de loca e guaiamum, e para a no cartório, ao fazer o registro do meu nascimento. maré pescar, e para pegar camarão vila franca e siri Não me batizou. Nasci no Bongi, na rua da Bacia, corredor. E para a crôa para tirar marisco, sussuru e por trás do chafariz, no lado esquerdo da estrada dos unha-de-véio. Nininha. Eu e ela, Tomé e Bebé, Remédios, dentro da lama dos mangues. Desem- porque só andávamos juntos. E Manel de Dária? O penado, dava gosto vê-lo caminhar pela estrada dos Jean Valjean, que trazia carne de Ceará da rua das Remédios com o guarda-sol aberto, a modo de pálio. Florentinas para a gente comer. Às vezes, chegava lá Uma vez, voltando do trabalho, vi ele descendo a em casa. Não tinha nem sal, na cumbuca... Vou agir, ponte de Afogados. Eu vinha de bonde, ele vinha a ele dizia. E voltava da rua das Florentinas. Disse-me pé, caminhando contente, alegre e satisfeito. Desci anos depois. Sem saber, a gente também comia rouno Colégio Moderno e o acompanhei até lá em casa bados... Onde andará Mané Abinadabe?) Morávamos na vila de São Miguel, no bairro no beco do Quiabo, logo adiante. Ele vinha da rua recifense dos AfogaDireita onde foi comprar cabedal para fazer Melquisedec Pastor do Nascimento dos, a imensa pocilga

Melquisedec, sentado no pequeno espaço de sua loja, na Praça do Sebo, na Rua da Roda, centro do Recife

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de Dr. Ladislau. Ali mãe adquiriu um lote, pagando mensalmente 2$000 pelo chão, onde fez o mucambo onde a gente morava. Do rio Tejipió, e dos mangues adjacentes, muitas vezes, tirávamos o de-comer. Eram nossa dispensa. Para me desasnar, mãe me matriculou na Escola Particular Mista de dona Julieta Baptista, na terceira rua. Lá, pelas mãos bondosas de dona Julieta, aprendi o bê-a-bá, decorando a Carta de ABC de Landelino Rocha – “A preguiça é a chave da pobreza”; “É dado aos pobres o sagrado direito de importunar os ricos”... – a ler, escrever, pelos Cadernos de Caligrafia Vertical, e contar, pela taboada de Landelino, ajudado pela minha boa memória – comi muito: peixes, moluscos e crustáceos daquele rio-maré. Fosfatizei-me. Chamavam-me “Cabeça-de-Rui Barbosa”. (Onde andará minha professora, que me abriu os olhos para a vida? Onde andará o inspetor de ensino, que me pôs na blusa a fitinha verde e amarela, quando me passou com “distinção e louvor?” Solenidade arranjada para que eu também pudesse participar. Os meus colegas de classe, Maria Isabel, minha primeira namorada – “Eu tenho n’alma um jardim cheio de flores/ Imagem dos meus amores/ Só com nomes de mulher” – Alcides, seu irmão, Mário, encapetado: “Julieta fugiu, Julieta fugiu”, Arnaldo Canuto, onde estarão? E tantos outros que até de minha memória fugiram? Fiquei para contar a história.) Minha mãe, analfabeta, tirava sua sabedoria de vida dos ditados populares: “Fazes o bem, não cates a quem”; “Junta-te a um bom, serás igual a ele. Junta-te a um mau, serás pior do que ele”; “Mente desocupada é oficina de Satanás”. Dela, herdei o bom gosto. Era bonita e se enfeitava todinha, da cabeça aos pés: “Quem não se enfeita, por si se enjeita”, dizia ela. E o estoicismo: “Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Dos mangues, cheios de estrepes, a prudência. Da semifome e da sede de saber, a solidariedade aos desvalidos, carentes de justiça, e para com os sequiosos de aprender. Por isso, sou livreiro. Não sei se o velho Quinca Pastor teve escola. No seu cochicholo do Caranguejo, vi exemplares da revista O Pensamento, do Almanaque do Pensamento e um da novela espiritualista A Predestinada, de Pedrina Lima, da Empresa Editora O Pensamento. Tenho um da 3ª edição, ano em que ele morreu. 23 de junho de 1938. Lia a Bíblia. Meu nome... Ali vi uma edição protestante da versão de Antônio Pereira de Figueiredo, “edição aprovada em 1842 pela Rainha D. Maria II com a consulta do Patriarcha Arcebispo eleito de Lisboa”. Creio ser a de 1919. Foram os primeiros livros inteiros que conheci. Antes, na vila, vira pedaços da edição católica ilustrada por Gustavo 94 Continente Multicultural

Comi muito: peixes, moluscos e crustáceos daquele rio-maré. Fosfatizei-me. Chamavam-me “Cabeça-de-Rui Barbosa” Doré. Lembro-me de quatro gravuras: dois homens carregando, num pau, ombro a ombro, um cacho de uvas da terra onde mana leite e mel; Sansão carregando a porta de Gaza; a morte de Sansão, destruindo o templo dos filisteus: “Morra eu e todos os filisteus” e Daniel na cova dos leões. Valorizam a Galeria Iconográfica do velho Pastor, uma parede na sala de frente apenas rebocada, figuras da revolução brasileira: os 18 de Copacabana, os tenentes, Cleto Campelo morto e, destacada, a do Cavaleiro da Esperança um tanto desbotada. Eram recortes de jornais. Não sei se Luiz Carlos Prestes, depois, teve a imagem esmaecida na admiração do meu pai. Dele herdei o sentimento anti-religioso: “Deus não precisa de intermediários”. Mt 5.5-6. E, por causa dele, ver na Bíblia monumento literário: a tradução de João Ferreira de Figueiredo, revista e corrigida.


De um caixão de querosene, fiz a minha estante. Eu tinha 17 anos. Disse à minha mãe que ele um dia iria para um museu em minha memória... Desconjuntou-o o tempo (Onde andará meu pai? Contente, alegre e satisfeito, quando doente, me viu pela última vez. Meu pai era materialista.) Com sete meses de estudo, aprovado com distinção e louvor, saí da escola de dona Julieta para a Escola da Vida. Dizer-lhe presente era necessário. Aumentar a renda familiar era preciso. Só, acostumeime a ler lendo folhetos, almanaques de farmácias, jornais e, depois, livros. Eu era a criança, o menino, o rapaz. Ser o Homem era necessário. Dizia-me o ambiente, diziam-me as circunstâncias, diziam-me as leituras. Disseram-me os livros. Os livros levaram-me ao caga-sebo do negro Manoel Belarmino da Silva, Livraria Rangel, rua do Rangel, 132, pé-de-escada. Antes, já o conhecera na feira de Afogados, negociando, na calçada da igreja de N. S. da Paz, folhetos, revistas usadas, recortes de revistas

de cinema, álbuns de cobói e quadrinhos de fitas de cinema. Era o negro Mané Art Accord, um Cowboy negro... Quando fechava o estabelecimento, dizia: “Voltem na próxima semana...” Reencontrei, em 1934, vendendo o mesmo e também livros usados, num estrado na calçada do mercado de São José, onde me vendeu, fiado, O Conde de Monte-Cristo. Foi o primeiro livro que li. A ele comprei os meus primeiros livros. Obras infantis de Monteiro Lobato, de José de Alencar, romances de aventuras e livros de auto-ajuda, então obras educativas. Marden, “fazer da vida uma obra prima”; Samuel Smiles e Edward Earle Purinton, “a desgraça da humanidade é a quantidade enorme de homens semicrescidos”. De um caixão de querosene, fiz a minha estante. Eu tinha 17 anos. Disse a minha mãe que ele um dia iria para um museu em minha memória... Desconjuntou-o o tempo. Comprando e lendo, tornei-me candidato a ser seu empregado: “a primeira vaga é sua”. Que veio no dia 7 de dezembro de 1937. Véspera de festa de N. S. da Conceição, a festa do Morro. Ele não perdia uma. Comecei ganhando 60$000 por mês. Na véspera de Natal, fui aumentando para 80 e ganhei de presente um relógio de algibeira Nice Watch. Comecei bem. Antes de trabalhar para ele, já conhecia todo o seu acervo. Mas não servia a ele. Servia a mim mesmo. Belarmino era semi-analfabeto. Lia, entretanto. Foi o primeiro intelectual que conheci. Também gostava de livros. Lastimou-se quando vendeu A Vida de D. Fr. Bartholomeu dos Mártires. Primeira edição, 1619. De leituras pessimistas: Nietszche, Schopenhauer, Albino Forjaz de Sampaio, Augusto dos Anjos; e contestadoras: Não Creio em Deus, Cristo Nunca Existiu, Jesus Cristo É Um Mito, A Razão Contra a Fé. Lia, bebia e recitava: “Vida, sorriso que passa/ Desventura, desgraça/ Um grande paradoxo universal/ A derrota do bem, a vitória do mal”. Bebia muito – “ou acabo com ela, ou ela acaba comigo”. Também dizia. Perdeu a parada. As leituras de Manoel Belarmino influenciaram o meu pensamento. O senhor Manoel Belarmino da Silva me deu a oportunidade de ser livreiro. De trabalhar em “defesa e à promoção do livro antigo, do livro esquecido, do livro raro”. Gilberto Freyre. Estou consciente de que “a profissão de livreiro não é mais profissão comercial. Mas, sim, uma tarefa de alcance intelectual em que se pode observar uma enorme proliferação de graus”. Se eu concordasse com Praxiteles, seria hoje tirador de caranguejos ou botador de meia-sola. Melquisedec Pastor do Nascimento é livreiro e sebista

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Um país singular

N

uma ensolarada e poética tarde pelos idos finais dos anos 40, no Rio de Janeiro, gastando hora para comparecer ao famoso "chá das cinco" de toda quinta-feira na Casa de Machado de Assis, o acadêmico Affonso Taunay, escritor e também presidente do IBC – Instituto Brasileiro do Café (depois diretor do Museu Paulista), resolve fazer uma visita de cortesia ao seu amigo e colega da ABL, Augusto Meyer, então presidente do INL – Instituto Nacional do Livro. Em lá chegando, é recebido com augúrio pelo literato gaúcho, que logo se apressa em lamentações por estar à frente de um órgão, cuja matéria-prima lhe faltava – o livro – alegando escassez de verba e apoio federal. – Pois é, meu caro Taunay, uma administração dura de ler... Empertigou-se, triste, Meyer, poeta e crítico literário, justificando-se com mesuras, mas oferecendo ao visitante um bem quente cafezinho para esfriar o calor e adocicar uma boa prosa sobre os últimos lançamentos literários. – Como não temos livros, bebamos nosso orgulho maior... – complementou, com sutil ironia, o anfitrião, tomando, ambos, a bebida preferida dos brasileiros. E de lá se mandaram para a "reunião das cinco" na Academia. Dias depois, noutra quinta, num gesto peculiar às pessoas de boa casta e educação, que nunca perdem as boas maneiras, o respeitável intelectual, Meyer, retribui a gentileza do companheiro Taunay, visitando-o, de sur-

presa, em seu gabinete no Instituto Brasileiro do Café. Abraços esfuziantes pra cá, saudações acadêmicas pra lá, sentam-se a muitas falas sobre o assunto diletante e vitamínico dos mesmos: livros. A certa altura, Taunay se levanta e busca, nas prateleiras de sua estante, uma bela coleção composta de dez volumes: "História do Café" – para presentear ao amigo. – Eis, prezado Meyer, uma boa leitura para um brilhante crítico das letras... – regozija-se o dirigente maior do órgão. – Que maravilha!... Agora, brindemos com aquele cafezinho da mais fina colheita... Embaraçado, o esguio mestre dos pampas se espalma de curiosa inquietação. – Você não vai acreditar no que vou lhe dizer... Mas, infelizmente, hoje, estamos sem café, pois a nossa encomenda mensal ainda não nos foi entregue... Todavia, uma água geladinha tomaremos, com certeza. Após se refrescarem, sorriram. E, juntos, partiram para a Casa de Machado de Assis e assanharam os trabalhos daquela tarde, fazendo um discurso "Al Alimon", tal Neruda e García Lorca, imitando os toureiros espanhóis, quando homenagearam Rubén Darío. Meyer: Um país realmente singular é o nosso Brasil. Na semana passada, Taunay foi ao meu Instituto, onde não havia livros, no entanto tomou um gostoso café... Taunay: Hoje, fui ao Instituto de Meyer, que não tinha café para tomar, mas ganhei livros... Pois é. Salvemos o Brasil das incoerências e das indecências.

Rivaldo Paiva 96 Continente Multicultural




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