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Cinema Câmeras em ação O cinema nacional em entrevista com Cacá Diegues, e análises da retomada cinematográfica que centra o Nordeste na busca do Brasil profundo
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Capa: Cacá Diegues, foto de Otávio Magalhães/AE. Fotos de divulgação dos filmes Eu, Tu, Eles, Bela Donna, Central do Brasil e Auto da Compadecida
Século 21
Marco zero
O que dizem os mortos
Bang Bang
Como a música e a arquitetura, cemitérios revelam suas culturas e evidenciam desigualdades sociais de nosso tempo
De como bandidos e mocinhos povoam os saloons da infância de sucessivas gerações
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Literatura
Lição de arte
Uma epopéia latino-americana
Guita Charifker
Marcus Accioly prepara-se para lançar Latinomérica, poema de 600 páginas, louvando os heróis destroçados de uma história sangrenta
Pintora fala sobre sua vida e sua obra, definida por Joaquim de Arruda Falcão e Giuseppe Baccaro como uma celebração da natureza
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Tradução
Crônica
Mudança de linguagem
Sartre rejeitado
Em entrevista exclusiva, Ivo Barroso comenta sua decisão de abandonar o ofício de tradutor para se dedicar à poesia e antecipa textos inéditos
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A passagem do filósofo francês pelo Recife, onde se entediou em bares, apaixonou-se por uma jovem jornalista e chateou intelectuais
Antologia
Antropologia
Novidade
Viver com os bichos
Seção é inaugurada com poemas de José Almino, poeta pernambucano radicado no Rio de Janeiro
Antropólogo espanhol defende um retorno a uma relação mais harmônica entre os homens e os animais
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Sabores pernambucanos
Conversa franca
Receita bíblica
Redescobrir o Brasil
Um breve histórico do cardápio da Páscoa, desde o tempo em que comer um cordeiro servia para escapar do Anjo Exterminador
Ministro Weffort acredita na necessidade de estabelecer relações positivas entre o cinema nacional e a TV, e de se repensar o país
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Mil palavras
Entremez
Um velho Chico
A outra escrita
Ensaio fotográfico de Hans von Manteuffel mostra gente e coisas de comunidades à margem do tempo e do rio São Francisco
O conhecimento humano reconstrói a história com fragmentos de leitura e peças da imaginação
HANS VON MANTEUFFEL
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60 64 78 80 87 92
Últimas palavras A dessemelhança das idéias Uma convocação aos jovens para que mudem a canção lenta do medo e descruzem os braços ante a eternidade Continente Multicultural 1
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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes
Cartas Brilho
A
presento meus cumprimentos pela inegável competência da CEPE com a brilhante edição da revista Continente. Jarbas Vasconcelos – Governador de Pernambuco
Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira Arte Luiz Arrais Editoração Eletrônica André Fellows Ilustrador Lin Colaboradores: Alexandre Figueirôa, Alberto da Cunha Melo, Amin Stepple Hiluey, Angel B. Espina Barrio, Bárbara Wagner, Carlos Garcia, Cristiano Ramos, Ernesto Barros, Evaldo Cabral de Mello, Ferreira Goulart, Flávio Lamenha, Fred Jordão (Imago), Giuseppe Baccaro, Hans von Manteuffel, Joaquim de Arruda Falcão, Kléber Mendonça Filho, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mascaro, Nelly Novaes Coelho, Otávio Magalhães (AE), Rita de Cássia, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Tarciana Portela, Tuca Siqueira Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanoel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira, Sílvio Mafra e Zenival Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE CEP 50100-140 Circulação e assinaturas Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 - fone/fax: (81) 3222.4130 e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Caixa Econômica Federal Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
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“Leuk”
Q
uero parabenizar a revista pelas excelentes reportagens sobre o tempo da colonização holandesa. Como pernambucana morando na Holanda há 10 anos, foi mesmo gratificante ler aqui essa edição da revista Continente Multicultural, com um conteúdo informativo tão interessante sobre nossa cultura e história. Um detalhe “leuk” (bonito) foi o trabalho conjunto de brasileiros e holandeses que fizeram dessa edição um número especial. Graça Oliveira – Holanda No ônibus
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or intermédio do acaso, conheci a revista, quando viajando de ônibus Campo Grande-Dourados encontrei com meu amigo professor José Pereira Lins. Ele folheando a revista, vi, fiquei curiosa e logo pedi para olhar. Gostei muito, pois é bem informativa da Arte. Eu e o professor Lins fazemos parte da Academia Douradense de letras, como fundadores. Parabéns! Esmeralda Borges – Dourados – MS Sem ufanismo
C
ontinente Multicultural me encheu ainda mais de orgulho de ser pernambucano. Pelos textos primorosos, pelo ótimo acabamento gráfico, por trazer ao nosso povo algo que anda tão destratado em nossas escolas: nossa história! Sem o ufanismo besta que atinge a outros “povos” nordestinos, a revista nos mostra como é possível enaltecer nosso estado sem esquecermos de nossos problemas. Vida longa! Sérgio Pereira – Recife-PE Plural
Q
uero parabenizar a toda a equipe responsável pela revista, uma agradável surpresa para mim. Li ávida e ávida estou por tudo de bom que vocês vão proporcionar a nós leitores (pernambucanos, brasileiros, latinos) que apreciam a cultura plural. Maria José C. Freitas – Recife-PE
EDITORIAL
O cinema
A
do Brasil
lém da música, o aspecto mais evidentemente exportável da cultura brasileira é o seu cinema. Antes mesmo que Glauber Rocha ganhasse o interesse senão das platéias ao menos dos intelectuais de várias partes do mundo, filmes que evocavam e enfocavam aspectos dos mais característicos da vida no Brasil ganhavam prêmios internacionais. O cinema brasileiro que ultrapassava as fronteiras do país era parceiro, por assim dizer, da literatura. Obras como Vidas Secas, O Pagador de Promessas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e as diversas de Jorge Amado que foram adaptadas para o cinema e televisão tinham o Nordeste não somente como cenário, iam fundo nas motivações de suas gentes, religiosidade e condições de vida. A lista de filmes brasileiros que se voltaram para o sertão é longa e inclui algumas das possíveis obrasprimas da cinematografia nacional. Para reencontrá-la basta ir às enciclopédias, revistas e publicações especializadas, ou a esta edição da Continente Multicultural. O que mais interessa no momento é a vitalidade dessa arte, além das suas referências já históricas. Depois do conhecido hiato de alguns anos em que quase não se produziu filmes no país, o cinema brasileiro parece dar mostras de força, embora não se possa dizer que haja uma efetiva indústria do gênero no país. Mais uma vez o Nordeste é cenário de algumas das melhores criações recentes. E ainda melhor: em cidades como o Recife, Fortaleza e Salvador florescem novos talentos de cineastas, diretores de vídeo e roteiristas. Nesta edição, destacamos o momento atual do cinema no Brasil, começando por uma entrevista de um dos mais importantes diretores – Cacá Diegues – e alcançando um balanço dos festivais e um retrospecto que inclui uma avaliação do chamado árido movie e um perfil do cineasta carioca (de raízes pernambucanas) Alberto Cavalcanti. Numa entrevista publicada no extinto Jornal da Cidade, em que criticava Glauber Rocha, ele dizia taxativo: “Eu não acho que há grandes possibilidades de criar uma indústria cinematográfica aqui no Nordeste.” Oxalá hoje não tenha mais sobre isso razão.
Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, 1963
Continente
Continente
CINEMA
CACÁ DIEGUES
A vocação cinematográfica do Brasil
Diretor de Bye Bye Brasil aponta percalços e perspectivas da indústria do cinema nacional
REPRODUÇÃO / AE
OTÁVIO MAGALHÃES / AE
Você diz que o Brasil tem uma vocação para o cinema. Como é isso? É indiscutível. A gente ficou sei lá quantos anos sem fazer filmes, depois da Embrafilmes, daquele pavoroso período Collor. Uma simples lei (a do audiovisual) fez com que a gente passasse, em quatro ou cinco anos, de dois ou três filmes por ano para 25 a 30 filmes por ano. De uma ocupação no mercado de 0,5%, em 1990, para oito e poucos por cento no ano passado. E mais importante, não só os veteranos voltaram a filmar, mas uma nova geração de cineastas surge, fazendo filmes no mínimo interessantes e alguns verdadeiras obras-primas. Eu acho que isso é o suficiente para mostrar que o Brasil é vocacionado. Se voltar ao passado você vai ver que o Brasil foi um dos primeiros países do mundo onde se filmou. Sete meses depois de ter tido a primeira sessão de cinema em Paris, estava se passando filme na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, e menos de três anos depois já estava se filmando no Brasil. Na primeira década do século 20 o Brasil foi um dos maiores produtores de cinema. Aí veio a 1ª Guerra Mundial, não tinha filme virgem no Brasil, e o cinema brasileiro acabou, foi reaparecer nos anos 20. Eu sou relativamente moço, comecei muito cedo, só eu assisti a ou participei de umas quatro ou cinco retomadas. Já era para o cinema no Brasil ter acabado para sempre, essa maluquice, é como querer ser astronauta no Paraguai. E, no entanto, é como uma erva daninha que quando você vai ver ela aparece novamente. Então eu só posso achar que existe uma extraordinária vocação para o cinema no Brasil, porque não existe isso no balé, não existe isso na ópera, não existe isso em tanta coisa, mas no cinema existe.
Eu acho que há uma tendência, não sei explicar direito, um retorno à paisagem nordestina no cinema brasileiro, que é evidente. Podemos falar em vários motivos secundários, como por exemplo, o sucesso de Central do Brasil que evidentemente atrai outras produções. A gente pode falar também que houve uma crise muito grande de auto-estima da população brasileira e de repente essa auto-estima está voltando e quando ela volta o Nordeste é talvez a região brasileira que mais marca o sentido de originalidade nacional. Há uma coisa também que me intriga, que eu não sei explicar direito, mas eu vou tentar resumir: Quando comecei a fazer cinema, no início dos anos 60, praticamente 80% da população brasileira viviam no campo e o resto na cidade. E, no entanto, nos nossos filmes daquela época havia um sentimento de que o campo era o inferno, o lugar da opressão, o lugar da miséria, enquanto que as cidades, apesar das suas dificuldades, são o lugar da esperança. Mesmo quando a gente está tratando da favela, que evidentemente é um lugar de miséria também, há uma possibilidade de mudança. Agora, 40 anos depois, para essa nova geração de cineastas, quando o censo mostra que 82% da população brasileira moram nas zonas urbanas e 18% estão no campo, há uma inversão: a cidade é o lugar da violência, da miséria, do fracasso social, o lugar da falta de perspectiva. A cidade agora é o inferno, enquanto o campo é a harmonia, é o reencontro com os valores familiares, com a Eu, Tu, Eles (Andrucha Waddington, 2000) – Em busca de antigos valores nas relações pessoais
Eu, Tu, Eles, Central do Brasil, Auto da Compadecida... todos filmes recentes, tendo o Nordeste como cenário. Está havendo uma retomada dessa tendência? Em sua opinião, o que isso significa? Continente Multicultural 5
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Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000) – O campo deixou de ser o inferno simbólico
moral, com a ética... Para mim isso é um certo mistério que eu não sei explicar direito. É claro que isso significa uma utopia qualquer que está no ar. É claro que a principal utopia nisso é um desejo que os jovens cineastas têm e que corresponde ao desejo nacional de purificação deste país. Parte das críticas feitas a Eu, Tu, Eles se referia a uma estética que de certa forma maquiava a realidade do Sertão. Como é que essa retomada de valores mais nobres do Nordeste pode evitar cair numa mistificação? Não estaria havendo uma espécie de ideologia de fuga dos problemas da cidade? Certamente existe uma idealização do campo. Mas não sei até que ponto essa idealização é um mascaramento das questões sociais ou se há um desejo de reconduzir o comportamento ético do país, de analisar isso sob o ponto de vista de certos valores. Eu acho que está havendo uma revalorização dessas relações humanas, que de certo modo vem um pouco em detrimento da denúncia social, mas não significa necessariamente um mascaramento da questão social. Em Eu, Tu, Eles escolheuse abordar relações humanas, numa paisagem física, social e geográfica muito clara, não vejo onde está obscurecido. Apenas ela não está em primeiro plano como em Vidas Secas. Acho que é uma opção. Qual o cronograma de seu novo filme – Deus É Brasileiro? O filme é baseado num conto de João Ubaldo Ribeiro – O Santo que não Acreditava em Deus. É um filme de estrada, começa no litoral e termina na 6 Continente Multicultural
floresta. Vou filmar no Tocantins e aqui em Pernambuco. Começo a filmar em setembro e devo terminar em março. A distribuidora do filme, a Colúmbia, quer lançar o filme internacionalmente no Festival de Cannes, em maio do ano que vem. Você tem elenco pensado? Só o personagem principal que é o Antônio Fagundes. Eu vou usar atores daqui também e parte da equipe técnica. Produção, distribuição... onde está o nó do cinema brasileiro hoje ? É uma evidência que o nó da economia cinematográfica é a distribuição. Tanto é verdade isso que eu posso dizer que a produção não gera necessariamente distribuição, mas a distribuição gera necessariamente produção. Então hoje o nó da cinematografia no mundo todo, não é só no Brasil, é a distribuição. Não adianta nada produzir 200 filmes por ano se não há distribuição. Você estará criando a maior indústria de filmes inéditos do mundo. Nós estamos publicando uma entrevista com o ministro Weffort em que ele reconhece que vai ser inevitável um tipo de relacionamento do cinema com a televisão. Você diz a mesma coisa. Qual seria o modelo mais adequado para o Brasil? Nós temos uma proposta em relação a isso. É uma proposta, não sei se unânime, mas eu acho que a maioria dos cineastas brasileiros está de acordo. Em primeiro lugar, é evidente que é ine-
vitável essa associação com a televisão. A televisão é a maior produtora de cinema no mundo todo e é indispensável que no Brasil também seja assim. Por um motivo muito simples: hoje, com todas essas mídias alternativas – TV aberta, por assinatura etc – somente 25% da renda de um filme vêm das salas de cinema, o resto vem tudo dessas mídias alternativas. A sala de cinema se transformou numa espécie de vitrine onde você expõe o seu produto.
leiro é de quinta importância para eles, enquanto que para nós o mercado brasileiro é prioritário. Então essa aquisição de direitos tem que ser feita por valores equivalentes à produção nacional televisiva. Se você compra duas horas de longa-metragem, você tem que pagar o que paga por duas horas de novela na televisão. São dois pontos fundamentais que nós estamos discutindo com as televisões e vamos ver a que ponto chega. Qual sua posição sobre a reserva de mercado? Existem muitos cineastas que são a favor da reserva de mercado, mas a minha posição pessoal é que eu desconfio muito da sua utilidade. A reserva de mercado é uma imposição e eu não conheço casamento feito na delegacia que tivesse dado certo. É preferível encontrar formas, sair dessa cultura de leis que proíbem, que punem, que impõem e ir para uma cultura de leis que premiem, que estimulem. Encontrar uma fórmula em que a televisão se beneficie também será mais prático do que uma simples imposição.
Como pode ocorrer essa associação, levando em conta a força econômica da TV? Não podemos aceitar passivamente que a televisão colonize o cinema brasileiro e passe a botar nos cinemas aquilo que ela está acostumada a botar nas telas. Ao mesmo tempo, é preciso também respeitar os interesses da televisão. Temos consciência de que o cinema brasileiro, para se transformar numa atividade permanente, precisa ser bom negócio para todo mundo, inclusive para a televisão, porque a televisão precisa de longa metragem. Com a globalização do audiovisual hoje, Qual sua posição sobre a obrigatoriedade de 60% do tempo das televisões do mundo são ocupado por longa-metragem. Então é evidente que as exibição de filmes nacionais? Essa lei existe, está em vigor, e ninguém a televisões brasileiras necessitam de longas-metragens brasileiros pra ser os cabeças de lotes dos seus aplica. Eu acho que é muito mais positivo você pacotes internacionais. Então, juntando esses inte- criar empresas distribuidoras nacionais fortes do resses todos, a nossa proposta é que a televisão par- que impor a presença dos filmes. Mas, voltando à ticipe do cinema na forma de associação na pro- questão da TV, não esqueçam que estamos às vésperas de uma lei que está dução e na forma de aquiabrindo o capital das emissição de direitos. Na forma soras de televisão para o de associação na produção investimento estrangeiro. ela terá que ser minoritária, Se nós agora, antes que esassociada a um produtor Não podemos sa lei passe, não garantirde cinema independente aceitar mos a presença do produpara injetar sangue e oxipassivamente que to nacional na nossa telegenar a produção indepenvisão, as televisões brasileidente. E na aquisição de a televisão ras vão virar repetidoras de direitos, a gente tem que colonize o cinema programação americana. combater um erro que brasileiro e passe a Eu não estou fazendo aqui acontece hoje no Brasil: as botar nos cinemas uma declaração política televisões compram filmes brasileiros pelo mesmo nem ideológica, eu estou aquilo que ela está preço que compram filmes fazendo aqui uma declaraacostumada a estrangeiros. Os filmes esção prática . Hoje, temos botar nas telas trangeiros chegam ao Brauma das programações de sil totalmente pagos, restelevisão mais nacionalizasarcidos, o mercado brasida do mundo. Então esta-
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A cidade agora é o inferno, enquanto o campo é a harmonia, o reencontro com os valores familiares,
com a moral, com a ética... Isso é um certo mistério, eu não sei como explicar direito. É claro que há uma utopia nisso
remos corrigir o erro fundamental da Lei do Audiovisual. Ela contempla apenas a produção. Isso não é suficiente. Então nós estamos tentando montar um plano estratégico que contemple todas as complexas partes da economia cinematográfica. A distribuição, a exibição em salas, o vídeo home, a televisão. Ou seja, ao mesmo tempo modernizar a economia do cinema no Brasil e fazer com que o cinema se transforme em atividade permanente. O nosso projeto principal é fazer com que o Brasil chegue no ano 2006, com uma produção anual média de 200 filmes e um crescimento do mercado de exibição que vá das 1.700 casas para 3.500 casas de exibição. Fora o acerto com a televisão e etc. Isso é um projeto que não se faz da noite para o dia. Esses filmes seriam coproduzidos com a televisão, outros tantos através de um fundo setorial que está sendo criado. Enfim, a idéia é que todos os filmes possam ser feitos, do mais experimental ao mais comercial, do jovem estreante até o Renato Aragão, todos podem fazer filmes e encontrar o seu balcão. Mas esse grupo não é deliberativo, é consultivo, está fazendo propostas que serão ou não aceitas.
cialmente um filme. Um filme ficar famoso porque ganhou o festival, isso é muito raro.
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Você esteve no lançamento de A Composição do Vazio, de Marcos Henrique, sobre o filósofo Evaldo Coutinho. Qual a importância de Coutinho? Evaldo Coutinho para mim era um mistério. Eu tinha ouvido falar e por coincidência meu pai conhecia ele, porque nós somos de Alagoas e meu pai estudou aqui no Recife. Meu pai tinha muitos amigos no Recife, inclusive Gilberto Freyre. Mas eu nunca tinha lido nada de Evaldo Coutinho. Quando vi o filme de Marquinhos lá no Rio, fiquei encantado. Aí eu li o Imagem Autônoma. Não sei se tenho capacidade para ler a obra filosófica dele porque é uma coisa muito profunda, mas li Imagem Autônoma e fiquei chocado, fiquei espantado como é que um livro daqueles, que foi publicado em 1972, não teve a repercussão que devia ter tido. Eu não entendi como é que aquele livro não foi divulgado nas universidades do Sul, como é que aquele livro não se transformou em tese na USP e aqui também...
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Paralelamente a essa questão do controle acionário da televisão está havendo a discussão da reforma da lei do audiovisual. Você, inclusive, é membro do grupo que está propondo as mudanças. Qual sua expectativa? Eu sou otimista. Eu acho que existe vontade política. Para dizer a verdade, eu comecei esse trabalho um pouco cético e, no entanto, percebi que existem realmente setores do governo que estão a fim de fazer mudanças. Estamos tratando de um plano estratégico, que precisa de decisões tanto na área do Executivo quanto do Legislativo. Nós que-
Você disse que não adiantava fazer filme só para exibir em festival. Qual é a importância dos festivais? Eu tenho uma visão extremamente prática de festival. Eu acho que o artista não vem ao mundo para ganhar prêmio. O prêmio é um acidente, você ganha ou não ganha. Claro que ninguém vai dizer que não quer. Mas eu acho que a grande vantagem do festival é o encontro entre as pessoas, é a atualização. Eu não acredito, sinceramente, que o festival brasileiro e mesmo o festival internacional, tirando o Oscar, é claro, que hoje tem um nível de difusão que é incomparável, um bilhão de pessoas no mundo todo vendo aquela festinha chata pra burro, eu não acredito que nada disso ajude comer-
mos nas vésperas de um momento em que isto pode estar ameaçado.
Qual o primeiro filme a que você assistiu? Não sei exatamente qual foi o primeiro filme que eu vi. Eu tenho uma lembrança que me apareceu recentemente, eu fiz 15 anos de psicanálise, intermitente, e nos últimos anos de psicanálise me apareceu uma lembrança que estava esquecida: eu muito pequeno, devia ter uns cinco anos de idade, entrando num cinema em Maceió, pela lateral, uma tela enorme e uma imagem que na minha cabeça se parece muito com a figura de Ivan, o Terrível, era alguma coisa histórica, e a minha babá, para evitar que eu saísse da cadeira, dizia “não vá para lá não, não bote a mão na tela que a sua mão fica presa”. A minha ficou... (risos). E essa é a imagem mais arcaica que eu tenho do cinema. Depois nós nos mudamos para o Rio. As minhas diversões básicas eram cinema e futebol. Então eu ia jogar no campo do Botafogo, que era ao lado da minha casa, ou ia aos dois cinemas que tinha ali. Eu tinha as minhas cadernetas, coisa que você acha que só você faz, mas acaba descobrindo que todo mundo fez isso na vida, caderneta com ficha técnica, cotação dos filmes, os artistas preferidos e coisa e tal. Um momento importante na minha vida é o encontro com o Davi Neves, um cineasta brasileiro falecido há pouco, que foi morar na mesma rua que eu, em
Botafogo, e ganhou do pai uma camarazinha de 16mm e a gente começou a fazer umas brincadeiras de filmes e coisa e tal. E foi nessa mesma época que eu vi Rio 40 Graus, que foi o filme que mudou a minha vida, eu devia ter 15, 16 e eu disse: Dá pra fazer no Brasil aqueles filmes que a gente gostaria de fazer e pronto! Rio 40 Graus, do Nelson Pereira dos Santos, foi um filme do Cinema Novo, o filme que inaugura o modernismo no cinema brasileiro. Eu acho que todo o movimento que minha geração fez nada mais é do que um modernismo tardio que finalmente chega ao cinema. Outro momento também fundamental na minha vida é quando eu entrei para a universidade, já com 18 anos, na PUC, onde meu pai ensinava. Então comecei a encontrar as pessoas da Universidade Federal, o pessoal de Filosofia, que era o grupo que mais tarde seria o Cinema Novo. Era a turma da UNE (União Nacional dos Estudantes)? Da UNE, do CPC (Centro Popular de Cultura), tudo isso. Fizemos o Cinco Vezes Favela, que foi o meu primeiro filme profissional. Ninguém ganhou nada para fazer aquele filme, mas... Meu primeiro dinheiro como profissional eu ga-
Central do Brasil (Walter Salles, 1998) – Mergulho no Brasil profundo em busca de purificação
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Bela Donna (Fábio Barreto, 1998) – Exemplo da multiplicidade da vocação cinematográfica brasileira
nhei como assistente de montagem do Rui Guerra. Ele tinha acabado de fazer Os Cafajestes e estava trabalhando na montagem de documentários de cinema, Jornal da Tela, essas coisas. Por que o futebol, de tanta importância social, é tão pouco retratado no cinema? É verdade. Acho que sei por quê. A coisa mais difícil de filmar no mundo é um jogo de futebol. Você pode encenar todos os esportes do mundo, menos o futebol. É impossível você encenar um drible, você encenar um gol. Eu estou esperando esse filme sobre a vida do Garrincha, porque eu quero ver como é que eles vão encenar aqueles dribles do Garrincha. O futebol se deu bem no documentário, o filme do Garrincha do Joaquim Pedro, o Rei Pelé. Veja Esta Canção tem um episódio, que eu sofri pra danado para fazer aquilo. Na época quem me ajudou muito foi o Renato Gaúcho. Eu fiz uma encenação no Maracanã, misturei encenação com um jogo de verdade – Flamengo e Coríntians. É muito difícil filmar futebol. Mas tem uns filmes em que aparece futebol e o Rio 40 Graus é um deles. Tem um jogador, mas não aparece jogada de futebol, só aparece jogador entrando em campo...Tem um filme do José Carlos Burle, O Craque, que é um filme dos anos 50, com roteiro do Millor Fernandes, mas não tem o futebol que tinha que ter... Recentemente, há Os Boleiros, que é muito bom, é sobre futebol, mas não mostra os jogos, a única tomada em campo é uma encenação cômica. Quais os grandes filmes da sua caderneta? As cenas inesquecíveis? 10 Continente Multicultural
Eu sou daqueles que vê tudo, vejo filme até o fim, nunca deixo filme no meio, acho sempre que vai ter uma cena boa, um plano bom. Tem cenas para mim inesquecíveis, como O Circo, com Lola Montez, que é o clímax do cinema barroco. Tem a cena da morte do Cidadão Kane, tem o beijo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que é um ícone do cinema brasileiro. A cena de Vidas Secas do menino dizendo “Inferno, inferno”... O Rastros de Ódio de John Ford, quando John Wayne pega a Natalie Wood no chão e leva ela para casa, a Bárbara Stanwick em Pacto de Sangue, inesquecível também. A cena do jardim de Ganga Bruta, de Humberto Mauro. Eu posso ficar aqui a noite toda, falando. O cinema é mesmo a arte do século 20? Eu acho mais do que isso, eu acho que o século 20 será compreendido através do cinema. Daqui a 50, 100 anos, o cinema vai ser a fonte de informação do século 20, porque o cinema não só reproduziu ou registrou o que estava acontecendo como criou um mundo novo. Hoje as pessoas em Hong Kong estão beijando sua namorada igual ao que viram no cinema na semana passada, se vestindo como no cinema. Eu acho que as guerras imitam o cinema, as guerras todas, modernas, plagiam o cinema. Hollywood vai estar para o século 20 como o teatro grego esteve para a Antigüidade, os pintores italianos para a Renascença, os escritores franceses realistas para o século 19. Eu tenho várias queixas de Hollywood, mas não tem a menor dúvida que vai ter essa importância. Entrevista concedida a Alexandre Bandeira, Homero Fonseca e Marco Polo
S E D R NO
A M E N I C TE NO
O resgate do Brasil profundo Não é de hoje que o Nordeste ilumina as telas do mundo. Nos anos 50, mais precisamente em 1953, O Cangaceiro, de Lima Barreto, produzido pela Vera Cruz, foi premiado no Festival de Cannes. O filme foi rodado no interior de São Paulo, mas a temática é de inspiração nordestina. Ele impressionou o crítico do Cahiers du Cinéma Jacques Doniol-Valcroze e foi também premiado pela crítica cinematográfica parisiense. No ano seguinte foi a vez de O Canto do Mar, de Alberto Cavalcanti, realizado no Recife, percorrer festivais europeus e ganhar prêmios. Em Karlovy-Vary na antiga Tchescolováquia, Cavalcanti levou prêmio de direção e foi elogiado pelo conceituado crítico e historiador Georges Sadoul. Em 1962, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, conquistou a Palma de Ouro em Cannes, chegou aos Estados Unidos e recebeu consagração internacional. A região, no entanto, ganhou projeção para valer com o Cinema Novo. Em três filmes – Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha; Os Fuzis, de Ruy Guerra, todos de 1963 – o Nordeste mais intestinal, o do polí- Alexandre
gono da seca, transformou-se em espaço símbolo do Brasil de então. Na França e Itália o impacto foi considerável. Consagrados em festivais e recebendo apoio unânime dos críticos de esquerda de revistas importantes como o Cahiers du Cinéma, Positif e Cinema Nuovo, o cinema brasileiro passou a representar o que havia de mais inovador na cinematografia mundial depois do Neo-realismo italiano e da Nouvelle Vague francesa. O sertão, a seca, a miséria e os conflitos sociais retratados nos filmes de uma forma crua e original e tendo como fonte de inspiração estes movimentos precedentes, fundamentaram a criação e difusão de um modelo de produção cinematográfica capaz de se confrontar com o modelo da indústria cinematográfica tradicional e da estética hollywoodiana. Passada a era do cinema engajado o Nordeste ficou meio esquecido, mas neste início de século 21 ele está de novo em moda. Central do Brasil, de Walter Salles Jr.; Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira; Eu, Tu, Eles, de Andrucha Waddington; Auto da Compadecida, de Guel Arraes, redescobriram a Figueirôa região e são bem recebidos na Continente Multicultural 11
Cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, de 1964, marco do cinema nacional
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uma aridez extenuante onde a dor estava quase colada à pele dos personagens. Essa paisagem é hoje captada pelas lentes e filtros dos diretores de fotografias em tons e nuances que vão do amarelo ao vermelho dando aos filmes, como observou o escritor e cineasta Fernando Monteiro em recente debate no Cineclube Revezes, um clima de road movie a la Wim Wenders. Os dramas flagrados pelos cineastas também deixaram de lado as mazelas sociais, o registro documental das emoções e foram buscar inspiração em motivos bem mais prosaicos. O nordestino deixa de ser um personagem inserido no seu tempo histórico vítima da opressão e da ignorância para ser uma criatura de composição psicológica modernizada capaz de perder a aura de mito e tornar-se uma representação apenas conveniente aos valores ocasionais e oportunistas concebidos pelos realizadores. Essas transformações são boas ou ruins? Para os diretores de alguns desses filmes e para um certo projeto de cinema brasileiro norteado pela necessidade de atingir metas financeiras para se sentirem legitimados, o caminho parece estar rendendo frutos. O Nordeste sempre é uma boa saída quando a meta é resgatar o Brasil profundo. Para o público ávido por entretenimento a receita também funciona, tanto nas estrepolias de João Grilo passando a perna em todo mundo, quanto na comovente redenção religiosa de Dora. Para o Nordeste real, todavia, podemos levantar algumas dúvidas. O Cinema Novo pode até ter cometido equívocos, mas pelo menos empreendia uma busca pela autenticidade. Evidentemente, querer repetir na mesma intensidade as propostas formais e temáticas da época soaria deslocado. Por outro lado, aceitar totalmente o olhar contemporâneo sobre a região – muitas vezes uma mera caricatura pitoresca do que somos realmente – implica em dizer sim a uma interpretação simplista de nossa própria imagem e mais uma vez contribuir para a idéia de que não passamos de um parque de excentricidades. REPRODUÇÃO
Europa, estréiam em cinemas dos Estados Unidos e ganham artigos favoráveis nas páginas da imprensa americana. Evidentemente, o que acontece hoje está muito distante dos politizados e rebeldes anos 60 e o Nordeste não é mais um provável fomentador de revoluções sociais transformadoras. Naquela época, com grande esforço, os cinéfilos tentavam expurgar o fascínio pelo exótico e pelo pitoresco para enfatizar um perfil ideológico para a apreciação dos filmes. Observando a nova safra de filmes onde o Nordeste reaparece como “personagem” é perceptível que alguma coisa mudou. Mas o quê, exatamente? Mudou a região ou mudou o olhar sobre ela? Geograficamente ela é quase a mesma, sobretudo o Nordeste compreendido pelos limites do sertão, o espaço mítico de nossa cinematografia, herdeira direta da literatura regionalista. Nessa área, com exceção das grandes barragens e dos projetos de irrigação do rio São Francisco, pouca coisa mudou. Se não chove a terra é seca, o sol escaldante, a vegetação um emaranhado de garranchos e cactos e o povo passa fome. Culturalmente a região também preserva valores ancestrais das manifestações originais nascidas da miscigenação das culturas ibérica, indígena e africana. Aqui anota-se apenas o acréscimo da contribuição de artistas jovens que introduziram novas formas de expressão estabelecendo ligações das raízes folclóricas com movimentos modernos. Social e economicamente, no entanto, tornou-se uma região muito mais complexa. Como era retratado nas obras do Cinema Novo, ela continua miserável, dominada por uma religiosidade exacerbada, mas ganhou outros elementos que a distanciam do universo rural que a consagrou, entre eles as grandes cidades cercadas de favelas e a disparidade ainda mais gritante entre ricos e pobres. O Nordeste cinematográfico, todavia, tem novidades. A paisagem da caatinga não é mais aquela de Luiz Carlos Barreto, Ricardo Aranovich, José Rocha e Waldemar Lima onde o contraste do preto e branco traduzia uma luminosidade capaz de provocar no espectador a sensação de
Alexandre Figueirôa é escritor e crítico de cinema
REPRODUÇÃO
Ciclo do Recife
Almeri Steve, estrela de Aitaré da Praia
Os primórdios de uma vocação O pioneirismo do cinema pernambucano começou em 1922, quando dois jovens, Edson Chagas, ourives, e Gentil Roiz, gravador, resolveram fazer filmes. Chagas tinha morado no Rio, onde participou de pequenas realizações cinematográficas aprendendo alguns conhecimentos técnicos, e Roiz já escrevia argumentos. Juntaram-se ao estudante de engenharia Ary Severo e fundaram a Aurora Filmes. O primeiro filme foi Retribuição, que misturava mocinhos e bandidos, à moda dos filmes americanos. Roiz foi autor do roteiro e diretor, Chagas cuidou da fotografia. No elenco, entre outros, Barreto Júnior e Almeri Steves. Exibido em 1925 no Cinema Royal, Retribuição foi um sucesso, mas, para compensar os gastos, a Aurora Filme produziu Um Ato de Humanidade, uma propaganda da Garrafada do Sertão, do Laboratório Maciel. Nesta fita, Jota Soares – que se tornaria um nome importante no Ciclo do Recife, como ficou conhecido este período – estreava como ator, representando um jovem sifilítico que se curava milagrosamente com a tal garrafada. Entusiasmados com o sucesso do primeiro filme, o grupo partiu para sua segunda produção. Jurando Vingar, com roteiro de Roiz, fotografia de Chagas e direção de Ary Severo. Novamente o modelo eram os filmes de farwest americanos. A reação do público, entretanto, não foi tão entusiasta quanto o esperado.
Foi aí que Ary sugeriu fazerem um filme sobre nossa realidade. Em 1925 começavam as filmagens de Aitaré da Praia, com direção de Roiz, fotografia de Chagas, argumento e direção de Ary, que também trabalhou como ator ao lado de Almeri Steves. A história de amor entre o pescador Aitaré e a jovem Cora, contrariada pela mãe da moça que apóia Traíra, inimigo do herói, explorava também a beleza das praias de Pernambuco e ambientes da alta sociedade do Recife. O êxito foi tal que o filme chegou a ser exibido em outras cidades. A notícia dessa efervescência chegou aos meios cinematográficos do Rio, despertando o interesse de outras pessoas em investir no negócio de fazer filmes. Novas produtoras surgiram. Ainda em 1925 são produzidos Filho sem Mãe, da Planeta Filme e História de uma Alma, da Vera Cruz Filme. O primeiro, uma história de amor em meio a políticos e cangaceiros, e o segundo, a biografia de Santa Teresa de Lisieux. Em 1927, a Aurora Filme parte para a filmagem mais ambiciosa do Ciclo do Recife, A Filha do Advogado. Com roteiro de Ary Severo e direção de Jota Soares, é um melodrama em torno de um triângulo amoroso. Chegou a ser exibido em 31 cinemas do Rio. A partir daí, entretanto, o Ciclo entrou em decadência, até que em 1930 a Liberdade Filme começaria a rodar No Cenário da Vida, que marcaria o fim do período. Fontes: Cinema Pernambucano: uma história em ciclos, de Alexandre Figuierôa, FCCR, Recife, 2000. Ciclo do Recife – 60 Anos, de Fernando Spencer, Editora Massangana, Recife, 1983.
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Alberto
Um pioneiro
REPRODUÇÃO
Alberto Cavalcanti dirigiu, em 1953/54 o filme O Canto do Mar, que, exibido no Recife, causou furor por mostrar a realidade nordestina
país. Realizado em Pernambuco, teve existência atribulada. Em entrevista à revista Écran (30.11.74, Paris), observou que “quando filmei O Canto do Mar, em 1953, fui vaiado, as pessoas me insultavam dizendo: Como você ousa mostrar essa miséria? Somos o país mais rico do mundo!” Cavalcanti narra uma estória de retirantes da seca que vieram para o litoral; e que aqui, encontram uma sina de loucura, miséria, traições e desesperança da qual o menino-protagonista deseja escapar. Com texto de Hermilo Borba Filho, o filme coloca pela primeira vez nas telas a cultura popular: o maracatu de D. Santa, o terreiro do Pai Adão, o bumba-meu-boi etc. O imaginário materno nordestino criado para suportar a alta mortalidade infantil é exposto: a mãe não pode chorar para não impedir a entrada do filho-tornado-anjo nos céus. E a causa da morte, também exposta: banalidade, qualquer febre. O lançamento do filme em uma manhã de sábado, no então tradicional Cinema São Luiz – inclusive com o assassinato, quase na porta, de um deputado, infeliz coincidência –, para um público que não estava acostumado nem interessado em ver a “realidade” ao redor nas telas causou furor... Um artista decadente, “documentarista”, uma fraude, foram algumas afirmações feitas sobre ele. Quase duas décadas depois, em passagem pelo Recife, observou: “Uma das coisas da qual sou muito orgulhoso é que nunca fiz, na minha carreira, nenhum filme que tivesse alguma coisa de antisocial e que fosse contra os princípios políticos que eu sigo.” (Jornal da Semana, 28/10 – 3/11/1973).
Cavalcanti O cineasta Alberto Cavalcanti (1897–1982), este enfant terrible é um ilustre quase-desconhecido no Brasil. Citação obrigatória em livros e artigos sobre Cinema em países mundo afora, sua obra, e por detrás dela, o homem, são nuances da própria história do Cinema. Um artista, mais que um artesão, Cavalcanti experimentou quase tudo: foi cenógrafo, engenheiro de som, roteirista, diretor e produtor. Participou de 118 filmes. No Brasil dirigiu apenas três filmes: Simão, o Caolho (1952), O Canto do Mar (1953/54) e Mulher de Verdade (1954). O Canto do Mar, versão nordestina de En Rade, é considerado o seu mais importante filme no
Tarciana Portela 14 Continente Multicultural
Para saber mais sobre Alberto Cavalcanti em Pernambuco: livro A Crônica do Cinema no Recife dos Anos 50, de Luciana Araújo, Fundarpe, 1997; vídeo Quem Viu O Canto do Mar?, de Ana Braga, UFPE/ Center, Recife, 1996. Tarciana Portela é jornalista e cineasta
Árido movie
REPRODUÇÃO
Uma marca sem futuro Reza a lenda das verdades e mentiras da passagem de Orson Welles pelo Brasil nos getulistas anos 40. Ao ouvir falar do Rio de Janeiro, já de volta aos Estados Unidos, o diretor de Cidadão Kane batia três vezes na madeira. Não era pra menos. No Rio, a lista de infortúnios de Welles perpassa quase todos os gêneros. Chanchada: a maldição de um vingativo despacho de um pai-desanto. E as inverossímeis trapalhadas dos arapongas do DIP de Lourival Fontes. A tragédia do afogamento do pescador cearense Jacaré antes de ro- para refundar o cinema pernambucano. That's a dar um plano na Baía da Guanabara. E o drama Lero-lero (Stepple/Lírio Ferreira) é uma atualidade de um filme inconcluso (It’s All True) e das portas reconstituída da passagem de Welles pelo Recife. fechadas dos grandes estúdios americanos. De Rodado durante sete noites em junho de 1994, é o bom, belas companhias e, blindado à ressaca, far- primeiro filme do Árido Movie, o mais curto dos ras atlânticas com Grande Otelo (“um dos homens ciclos do cinema pernambucano. Quando Welles chega, as coisas acontecem. mais inteligentes do Brasil”). No Recife, Welles se deu bem. Vinha do That's a Lero-lero foi precursor da retomada da proCeará, fez uma escala na capital pernambucana e dução cinematográfica pernambucana nos anos 90. decidiu ficar pra conhecer a cidade. Depois de uma A realização do filme coincide ainda com a ressursurrealista entrevista coletiva, foi beber nos cabarés gência do cinema nacional, pós-Collor. Um moda Rio Branco, com os lábios rachados pelo sol ca- mento especial, em que modos de produção, meios bralino de dois canos do Nordeste. À moda dos de financiamento, leis de incentivo e relações com bordéis, repousou uma réplica de Zsa Zsa Gabor o público eram exaustivamente debatidos por todos sobre o joelho e conversou horas sobre cinema. A os setores envolvidos com o renascimento do cinelonga, divertida e reveladora noite de Welles no ma brasileiro. Uma discussão chata, mas necessáRecife, em junho de 1942, foi registrada pelo jor- ria, depois de uma cumulativa política de terra arnalista Caio de Sousa Leão, presente à farra. É a rasada (e não apenas herança do período Collor). That's a Lero-lero é um filme experimental mais bonita reportagem já escrita sobre cinema pesobre a heresia do silêncio. Para Welles, o cinema la Imprensa pernambucana. Cinqüenta e dois anos depois daquela noite nunca foi mudo. Ele diz: “Quando não havia múboêmia e menos de dez de sua morte, Welles retor- sica na sala de projeção, havia o barulho do projenaria ao Recife. Voltou para se embriagar, para tor”. O barulho do projetor do lançamento de compartilhar a paixão pelos filmes e pelas mulhe- That's a Lero-lero” é contemporâneo ao barulho das caixas de guerra percussivas dos res, para ser um personagem de ficção interpretando ele próprio, Amin Stepple Hiluey primeiros CDs do Manguebeat.
Orson Welles, autor e personagem: a heresia do silêncio
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Lampião dandy dança na caatinga, sob a ótica do libanês Benjamin Abraão (Baile Perfumado, Lírio Ferreira – Paulo Caldas, 1996)
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a excelente trilha sonora original do filme. Por ironia, a confluência permitiu à logo Árido fazer a paga da usurpação indireta à logo Mangue. Quem comprou o bilhete, viu e compreendeu que as novíssimas imagens do sertão verdejante do Baile estavam ali para enaltecer e consolidar a mística do Mangue. Quites. FRED JORDÃO / IMAGO
Mais do que a música, o que interessou de imediato aos diretores de That's a Lero-lero foi o natural e espantoso apelo publicitário do Manguebeat. Finalmente, a cultura pernambucana ingressava na pragmática economia de marcas. A nova logo cinematográfica, Árido Movie, é criada ironicamente em laboratório, para, por assumido arrivismo, colar, feito adesivo, à bem-sucedida logo musical, Manguebeat. Portanto, Árido Movie é uma falsificação publicitária da marca Manguebeat. A secura (da gíria; e da revisita profana à paisagem aruanda-cinemanovista) do Árido em contraponto ao húmus lamacento do Mangue. Movie/Beat, o inglês de porto nosso de cada dia. Aliás, o mesmo falado por Welles em That's a Lerolero. As mitologias hoje são manufaturadas em áreas de serviço (apud Milton Santos). Welles sabia que os impostores apearam os deuses do Olimpo. A dúvida é se se deve sentir saudade. O inventário da linguagem cinematográfica do Árido Movie caberia em franciscanas linhas. A fortuna crítica do experimentalismo e o culto à falsificação (Welles). O revisionismo dos impasses do cinema de vanguarda dos anos 60/70 (Godard, Gláuber, Udigrudi). A transação de retratos e olhos do cinema doméstico (dos Lumière ao Super-8). Reverência e irreverência à história do cinema pernambucano (Ciclo do Recife, Spencer, Jomard). A devoção às boas histórias. A carpintaria dos labirintos dos roteiros (“o cinema americano informará”, Oswald de Andrade). O prazer semântico e dialético da charla. O choque de luminosidade em cada fotograma. Eis a sopa primordial e diluidora do Árido Movie. O longa Baile Perfumado (Lírio Ferreira/ Paulo Caldas, 96), o segundo e último filme do Árido Movie, representa um grande salto para o cinema de Pernambuco. O encontro de um Lampião e bando aburguesados, nunca vistos, com o inquieto fotógrafo-mascate libanês Benjamin Abraão reinventou a tradição dos filmes de cangaço. Mais do que isso: com impressionante sofisticação, o Baile exorbitava o pacto passional com o cinema já subscrito pelo cidadão Welles no That's a Lero-lero, o curta-matriz que o precedeu. O Baile contribuiu ainda para promover mais um encontro. O da estética do Árido Movie com a do Mangue Beat, cujos principais integrantes (Chico Science, Fred 04 e Siba) assinaram
No século 20, o cinema pernambucano teve três importantes ciclos. O do Recife, a longa noite muda de nitrato (anos 20). O do doméstico solarpardusco Super-8 (anos 70). E o da expressiva produção dos anos 90, da qual se recorta o Árido Movie. A originalidade do Árido se revela até na produção quase simbólica (apenas dois filmes) e em seu precoce desaparecimento. As causas naturais de sempre. Talvez falte ao cinema pernambucano “força de ambição”, característica da personalidade de Welles. Talvez precise de outra mística, de outra logomarca. Poderíamos recomeçar roubando a expressão de Oswald de Andrade: “cinema de negócios”. Que tal? Numa seqüência do That's a Lero-lero, Orson Welles fala: “Nunca diga: que silêncio! Diga: não ouço nada!”. Sábio provérbio árabe, bem adequado para epígrafe obrigatória de qualquer estudo sobre o cinema pernambucano. Afinal, a qualquer momento, os marcianos podem voltar a invadir a Terra. Ou um meteoro acabar com a espécie dos dinossauros com cérebro. Ou, ainda, os desvalidos do planeta poderão ser convidados a brilhar como estrelas de cinema num Texas Hotel. De qualquer forma, a heresia do silêncio na sala de projeção será ensurdecedora. Amin Stepple Hiluey é jornalista e cineasta
O cinema
independente de TUCA SIQUEIRA
Pernambuco Este não é um novo ciclo do cinema pernambucano. Falta uma característica comum às produções atuais, como nos anos 20 a forte influência de Hollywood definiu o ciclo do Recife. Falta um fator ideológico que alinhave os cineastas, como nos 70 foram os superoitistas representantes da contracultura do Estado. Hoje, vive-se um bom momento, sem movimentos. É verdade que, desde Baile Perfumado, só se viu outro longa-metragem: O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas. A profusão de curtasmetragens indica uma insuficiência dos meios de incentivo à produção audiovisual, mas também que uma nova leva de bons cineastas está aprendendo a fazer cinema como pode. Grande dificuldade é a falta de pessoal capacitado em Pernambuco, que ainda não formou uma escola de iluminadores, assistentes de câmeras, diretores de fotografia e técnicos suficientes para prescindir dos profissionais do Sudeste. Mas há quem identifique vantagens no cinema pernambucano. “Em comparação com o eixo Rio-São Paulo, cujos cineastas estão mais inseridos no esquemão de videoclipes e publicidades, aqui há mais disposição e vigor para o experimentalismo.” Quem fala é Camilo Cavalcante, premiado diretor de Os Dois Velhinhos e Ocaso, e do recente O Velho, o Mar e o Lago, curta de ficção que concorre no Festival de Cinema do Recife deste ano. São temas recorrentes de seus filmes a velhice, a solidão e a opressão do cotidiano sobre o homem comum. Está agora com dois projetos que batem na mesma tecla: Eu Vou de Volta (em parceria com Cláudio Assis), seu primeiro longametragem, documentário sobre os nordestinos que retornam frustrados de São Paulo, onde foram ganhar a vida; e Rap- Alexandre
sódia Para um Homem Comum, curta de ficção em que um funcionário público, casado e burocrata, se apaixona por uma mulher e uma música. “É uma história de amor e crime, da insatisfação do cidadão com a mediocridade e a rotina”, explica Camilo. Sócio de Camilo na produtora Parabólica Brasil, Cláudio Assis é outro que representa uma mudança de orientação do cinema pernambucano. O seu curta Texas Hotel foi elogiado pelo crítico Alexandre Figueirôa por “escapar da previsibilidade temática dos filmes da região, abrindo-se ao universo urbano que visa dotar a produção regional de uma nova universalidade”. O hotel do título abriga uma galeria de personagens marginais, como prostitutas, travestis e bêbados. A boa acolhida do filme rendeu uma seqüência em longa-metragem, Amarelo Manga, ainda em fase de pré-produção. A prostituta vivida por Conceição Camarotti e o judeu Isaac, interpretado por Jonas Bloch, estarão de volta. Também foge de qualquer regionalismo o curta Lugar Comum, de Leo Falcão, vencedor do concurso Ary Severo e Firmo Neto de roteiros, do ano passado. Apesar de gravado no Recife, Lugar Comum é qualquer lugar. Um jovem escritor passa a discutir a trama que está criando com seus próprios personagens, que não aceitam o destino que lhes é dado. Os personagens: um detetive, uma mulher misteriosa e um vilão. Falcão, que também assina o roteiro, abusa dos clichês – a começar pelo título – para criar uma história oriBandeira ginal e universal.
Vladimir Brichta, em cena de Lugar Comum, de Leo Falcão
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O ator Cosme Soares, em cena de O Velho, O Mar e O Lago, de Camilo Cavalcante Paulo Autran, em A Partida, de Sandra Ribeiro
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BÁRBARA WAGNER
vídeos como Zé Roberto, o Funcionário Público Telepata e Shift 3, que conseguiram projeção internacional. No filme, o escritor Ariano Suassuna é seqüestrado pelas Forças Rebeldes, e divide um cativeiro com um indiano praticante de rituais aborígenes e uma La Ursa. Quem interpreta Ariano? Os atores Onésimo Jerônimo e Queops Negão. Por que dois atores para interpretá-lo? Por nenhuma razão. Mas o grupo não admite o escracho. “Ariano não fez um Jesus negro? Por que não um Ariano africano?”, pergunta Grilo. No momento eles gravam Sinistro, no Rio de Janeiro, enquanto terminam de montar Resgate Cultural – O Filme. Recentemente, o Telephone Colorido cuidou da fotografia e do som do vídeo Tô Ligada, de Kátia Mesel. A cineasta é uma da egressas do super 8, e uma das mais respeitadas realizadoras de Pernambuco. O curta documentário Recife de Dentro pra Fora, junto com Baile Perfumado, chamou as atenções do país para o cinema pernambucano em 1997. A curta-metragista e documentarista convicta prepara-se agora para um longa de ficção ambicioso: O Rochedo e a Estrela reconstruirá a ocupação holandesa em Pernambuco, sob a ótica dos cristãosnovos. Com uma distribuição internacional na cabeça, Kátia espera poder realizar um filme falado em todos os idiomas envolvidos no episódio: o português, o holandês, o inglês e dialetos africanos. Será legendado. O financiamento já foi aceito pelo Ministério da Cultura. E não se pode esquecer de que Marcos Enrique Lopes já tem uma boa chance no festival É Tudo Verdade, com sua homenagem ao filósofo Evaldo Coutinho, A Composição do Vazio. No Festival de Cinema do Recife, Brennand – De Ovo Omnia, de Liz Donovan e Rodrigo Linck; Carnaval, Carnavais, de Ionaldo Araújo e Isa Cortez; Capiba – 96 Anos se Deus Quiser, de Francisco Amorim e Luciana Novaes; e A Visita, de Hilton Lacerda e Mônica Lapa, garantem a maior participação de Pernambuco registrada no festival. RITA DE CÁSSIA
“Vivemos no Recife uma coisa muito esquizofrênica: comemos no McDonald's, assistimos a inúmeros filmes americanos, mas quando produzimos cultura esperase que falemos de maracatu”, diz Martim Simões (ou msim, como assina os seus filmes), que fundou com Falcão e Leonardo Sette o grupo La Corja, de criação audiovisual. Ele é o responsável pelo primeiro filme digital de Pernambuco (o segundo é Lugar Comum), Morto-Vivo. A tecnologia foi o ás na man6ga da produtora para conseguir financiamento para os dois filmes, já que permite uma redução significativa dos custos de produção. Morto-Vivo se passa num ambiente rural brasileiro, “mas só por acaso”, diz msim, que não quer segurar a bandeira da nordestinidade. “Nosso objetivo é contar boas histórias, que não tenham amarras estéticas.” A boa história que ele tem para contar é a de um homem (o vivo) que encontra, por acaso, outro homem (o morto) com uma carta nas mãos. Na carta, o morto pede para ser enterrado. Coloca-se a questão: por que o vivo deve atender ao pedido de alguém que ele nunca vira antes? Mais do que isso, msim não adianta; leva ao túmulo as surpresas que diz guardar o filme. Até agora, tanto Morto-Vivo quanto Lugar Comum só existem em versão digital, esperando para ser kinescopados (passados para película). Outra que usou o Sertão pernambucano como locação foi Sandra Ribeiro, para o curta A Partida, que ainda precisa de financiamento para sua finalização. O Vale do Catimbau, em Buíque, serviu de cenário para a adaptação do conto homônimo de Osman Lins. No filme, o ator Paulo Autran interpreta o personagem Roberto, num momento de nostalgia, relembrando a época em que resolveu partir de Buíque para São Paulo, deixando sozinha a avó (Geninha da Rosa Borges). O jovem Roberto é interpretado pelo estreante Marcelo Lacerda. Dois atores também foram usados para interpretar o mesmo personagem na primeira experiência com película do grupo Telephone Colorido. Resgate Cultural – O Filme tem a mesma irreverência de
Alexandre Bandeira é jornalista
Festival do Recife cresce a cada ano
REPRODUÇÃO
Na posição de jornalista especializado na área de cinema, tenho acompanhado festivais em praticamente todo o Brasil e posso afirmar com segurança que existem poucos eventos nacionais na área cinematográfica hoje que funcionem tão bem quanto o Festival do Recife. Nenhum outro festival do porte junta tanta gente, em tão pouco tempo, num espaço físico tão grande. Na ala dos festivais novos, é de longe o mais bem-sucedido, mesmo estando apenas na sua quinta edição. Seu impacto é certamente forte, entre público, realizadores locais e de fora, mas seu papel como um todo merece também reflexão. Alguns dos novos festivais surgiram ao redor do país no grande boom dos anos 90, um re- Nenhum outro festival do flexo do entusiasmo que acompanhou a chamada porte junta tanta gente, em tão “retomada da produção” depois que o então pre- pouco tempo, num espaço sidente Fernando Collor acabou com a Embrafísico tão grande filme e zerou por completo o Cinema Nacional, em 1990. na história cinematográfica do Brasil com o ciclo de Com a recuperação da produção nos anos “cinema mudo” conhecido como “Ciclo do seguintes, novos festivais surgiram, de Curitiba a Recife”, nos anos 20, e destacou-se também nos Cuiabá, de Vitória a Miami, onde o Cinema Bra- anos 70 com o Movimento de Cinema Super 8. sileiro já tem vitrine reservada. Os novos juntaramNos anos 90, o Recife deu início a uma eferse aos mais antigos como os de Brasília, Gramado, vescência cultural através do Manguebeat que Guarnicê do Maranhão, Jornada da Bahia e Mos- dura até hoje. O Manguebeat extrapolou as frontra Internacional de Cinema de São Paulo, for- teiras musicais de bandas como Chico Science & mando uma espécie de rede de eventos do tipo. Foi Nação Zumbi e viu-se presente também na pronesse novo panorama que surgiu o Festival de Ci- dução audio visual pernambucana, multi premiada nema do Recife, que tem à frente o empresário Al- nacional e internacionalmente com filmes como fredo Bertini, através da empresa Kelner Empre- Simião Martiniano – O Camelô do Cinema e Recife de endimentos, onde é sócio. Dentro Pra Fora. O Festival do Recife é um caso especial de A chegada do I Festival de Cinema do Reevento que não apenas estava faltando na cidade, cife, em março de 1997, juntou vários desses elemas que também provou que a cidade, e a sua cena mentos num primeiro grande evento que teve como cultural, estavam à altura da cenário o espetacular Cinema idéia. Pernambuco foi pioneiro Kleber Mendonça Filho São Luiz, no Recife. O Festival Continente Multicultural 19
FRED JORDÃO / IMAGO
Cena de Baile Perfumado, longa que inaugurou o Festival de Cinema do Recife em 1997
lançou o primeiro longa pernambucano em 18 anos, Baile Perfumado, filme que parecia soletrar m-a-n-g-u-e-b-e-a-t para o Brasil inteiro escutar. Provou também que o público local estava interessado em ouvir filmes falados em brasileiro, durante uma semana inteira. Compareceu em peso. O sucesso foi confirmado na segunda edição, já realizada no espaço maior do Teatro Guararapes, Centro de Convenções de Pernambuco, uma vez que problemas de logística dificultaram a permanência do evento no São Luiz. A utilização do Guararapes expandiu as possibilidades de público rumo às 2.500 pessoas por sessão, como na première histórica de Central do Brasil. No mesmo festival, filmes menores tidos como de “pouco público” viram no Festival do Recife grandes lotações para suas sessões, algo atraente para realizadores, de longas ou curtas. Mas, e um Festival de Cinema, para que serve? Em termos gerais, festivais funcionam como circos que passam pela cidade uma vez ao ano. No caso do Festival do Recife, seu status de “vitrine” mostrou-se particularmente forte, uma vez que a cidade do Recife ainda não dispõe de um circuito exibidor que dê vazão à grande parte da produção nacional de cinema. O fator informativo do Festival investe em filmes que talvez permanecessem inéditos, por falta de espaço. Com a inauguração de um circuito “artplex” no Recife (oito salas previstas para 2002, no Bairro do Recife), esse papel “informativo” do Festival merece ser revisto. Com salas especiais, a cidade irá tirar o atraso de boa parte da produção nacional, restringindo a oferta de filmes inéditos na região. Um festival de cinema também estimula direta e indiretamente a produção de cinema local. Indiretamente, há forte movimentação de cineastas locais nos meses que antecedem o festival tentando 20 Continente Multicultural
finalizar filmes para que os mesmos estréiem perante público, imprensa e representantes de outros festivais nacionais, às vezes internacionais. Com a estréia de um filme bem recebido, cineastas podem levar suas obras para demais eventos, além de assegurarem vendas para a TV, especialmente para o Canal Brasil, que tem ficado de olho na produção com prêmios especiais de aquisição. Um pecado comum a festivais de cinema é exatamente visar apenas a semana de atividades. Muito do que se discute não tem uma continuidade ao longo do ano, geralmente não deixam frutos. Seria ideal que tivessem um efeito prolongado durante todo o ano, que suas ações e sub-produtos existissem antes e depois de cada edição. Na maior parte dos casos, festivais queimam rápida e ferozmente durante as semanas de realização, que incluem oficinas técnicas e mesas de discussão que, muitas vezes, são marcadas pela dispersão ou superficialidade. No caso do Festival do Recife, há um concurso para roteiros pernambucanos que já está na sua terceira edição. A iniciativa é excelente, muito embora o concurso em si (que acaba de ser batizado 'Alberto Cavalcante') mereça uma revisão na sua estrutura. Os dois projetos premiados nas duas primeiras edições nunca ficaram prontos. Observando o Festival de Cinema do Recife, não resta dúvida de que trata-se de um evento que cresce a cada ano, não apenas na sua capacidade de atrair público, mas também em reputação (já é considerado o terceiro do Brasil, depois dos tradicionais Gramado e Brasília). Resta pensá-lo, melhor menos como vento, e sim, como uma entidade que fomente o cinema também durante o ano. Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema do Jornal do Commercio. Informações sobre o Festival de Cinema do Recife no site http://festival.bmkonline.com.br
1925: Aitaré da Praia, de Gentil Roiz • Filho Sem Mãe, de Tancredo Seabra • História de uma Alma, de Eustórgio Vanderlei • Jurando Vingar, de Ari Severo • Retribuição, de Gentil Roiz – Este melodrama de aventuras é a primeira produção do Ciclo do Recife. A história, tipicamente hollywoodiana, mostra um casal que, à procura de um tesouro, luta contra um grupo de bandidos. Produção da Aurora Filmes, fundada por Edson Chagas e Gentil Roiz, Retribuição fez grande sucesso quando foi lançado no Cine Royal. 1926: A Filha do Advogado, de Jota Soares • Herói do Século XX, de Ari Severo • Terra das Alagoas, de Guilherme Rogato 1927: Dança, Amor e Ventura, de Ari Severo • Sangue de Irmão, de Jota Soares 1930: O Destino das Rosas, de Ari Severo 1931: Casamento é Negócio, de Guilherme Rogato e Etelvino Lima • No Cenário da Vida, de Luís Maranhão e Jota Soares • Um Bravo do Nordeste, de Edson Chagas 1934: Lampião, O Rei do Cangaço, de Abraão Benjamin 1937: O Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro 1942: O Coelho Sai, de Newton Paiva 1942/1994: Quatro Homens numa Jangada (episódio de It’s All True), de Orson Welles 1953: O Cangaceiro, de Lima Barreto – Primeiro filme brasileiro a fazer sucesso internacional. Ganhou prêmio e notoriedade no Festival de Cannes. Durante muitos anos foi o maior cartão de visitas do cinema nacional. E inaugurou um gênero – o filme de cangaceiros – que até hoje é revisitado. O fotógrafo Chick Fowle captou a paisagem nordestina como nunca tinha sido vista antes no cinema. • O Canto do Amor, de Alberto Cavalcanti 1954: Lampião, O Rei do Cangaço, de Fouad Anderaos 1955: O Primo do Cangaceiro, de Mário Brasini 1959: Redenção, de Roberto Pires 1960: A Morte Comanda o Cangaço, de Carlos Coimbra • A Primeira Missa, de Lima Barreto • Aruanda, de Linduarte Noronha – Documentário realizado na Paraíba. É considerado o maior precursor do Cinema Novo. A luz crua do sertão nordestino, captada com maestria por Rucker Vieira, definiu a estética de toda a fase inicial do movimento. O filme mostra a difícil sobrevivência de uma comunidade de negros, como o trabalho das mulheres com
Cartaz do filme O Cangaçeiro, de Lima Barreto, primeiro sucesso internacional da filmografia brasileira
REPRODUÇÃO
Filmografia do cinema nordestino
o barro e tentativa dos homens em tirar alguma coisa do solo árido. • Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto 1961: A Grande Feira, de Roberto Pires • Barravento, de Glauber Rocha • Mandacaru Vermelho, de Nelson Pereira dos Santos • Os Três Cangaceiros, de Victor Lima 1962: O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte • Tocaia no Asfalto, de Roberto Pires • Três Cabras de Lampião, de Aurélio Teixeira 1963: Ganga Zumba, de Carlos Diegues • Lampião, Rei do Cangaço, de Carlos Coimbra • Nordeste Sangrento, de Wilson Silva • O Cabeleira, de Milton Amaral • Os Fuzis, de Ruy Guerra • Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos 1964: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha – O Nordeste dos camponeses marginalizados, da mistificação religiosa e da narrativa oral é filtrado pelo gênio barroco de Glauber Rocha. Ao lado de Vidas Secas, retratou profundamente a realidade social da região. 1964: O Lamparina, de Glauco Mirko Laurelli 1964-1984: Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho 1965: Entre o Amor e o Cangaço, de Aurélio Teixeira • Memórias do Cangaço, de Paul Gil Soares • Menino de Engenho, de Walter Lima Jr. • Riacho de Sangue, de Fernando de Barros 1967: Cangaceiros de Lampião, de Carlos Coimbra 1967/1971: O País de São Saruê, de Vladimir de Carvalho 1968: Maria Bonita, Rainha do Cangaço, de Miguel Borges • Os Homens do Caranguejo, de Ipojuca Pontes 1969: A Compadecida, de George Jonas • Corisco, o Diabo Loiro, de Carlos Coimbra • Deu a Louca no Cangaço, de Nelson Teixeira Mendes • Meteorango Kid, o Herói Intergaláctico, de André Luís de Oliveira • Meu Nome é Lampião, de Mozael Silveira • O Cangaceiro Sanguinário, de Oswaldo de Oliveira • O Cangaceiro sem Deus, de Oswaldo de Oliveira • O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha • O Cangaceiro, de Giovanni Fago • Quelé do Pajeú, de Anselmo Duarte 1970: A Vingança dos 12, de Marcos Faria • Faustão, de Eduardo Coutinho • O Último Canga-
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REPRODUÇÃO
Cena de O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas, de Paulo Caldas e Marcelo Luna, filmado em 2000 na periferia do Recife
REPRODUÇÃO
Sônia Braga em Gabriela, de Bruno Barreto, filme de 1982, baseado na obra de Jorge Amado
ceiro, de Carlos Mergulhão • Salário da Morte, de Linduarte Noronha 1971: A Volta pela Estrada da Violência, de Aécio de Andrade • Capitães de Areia (The Wild Pack ou The Sandpit Generals), de Hall Bartlett • O Palavrão, de Cleto Mergulhão 1972: São Bernardo, de Leon Hirszman 1973: A Cabra na Região Semi-Árida, de Rucker Vieira • Joanna Francesa, de Carlos Diegues 1974: A Noite do Espantalho, de Sergio Ricardo 1974/5: Luciana, a Comerciária, de Mozart Cintra 1975: A Lenda de Ubirajara, de André Luís de Oliveira • Nordeste: Cordel, Repente e Canção, de Tânia Quaresma • O Homem de Papel, de Carlos Coimbra 1976: Canudos, de Ipojuca Pontes • Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto – Numa tentativa de se aproximar do público, este filme acerta em cheio no aproveitamento do universo do escritor Jorge Amado. O humor e a sensualidade de Sônia Braga marcaram época, levando milhares de brasileiros ao cinema. • Fogo Morto, de Marcos Farias • Morte e Vida Severina, de Zelito Viana • Os Pastores da Noite, de Marcel Camus 1977: Coronel Delmiro Gouveia, de Geraldo Sarno 1978: Iracema, A Virgem dos Lábios de Mel, de Carlos Coimbra
1978/83: Sargento Getúlio, de Hermano Penna 1979: A Volta do Filho Pródigo, de Ipojuca Pontes 1980: A Idade da Terra, de Glauber Rocha • Amor e Traição, de Pedro Camargo • Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues 1981: Abrigo Nuclear, de Roberto Pires • O Homem de Areia, de Vladimir de Carvalho 1981-1985: Boi-Aruá 1982: Gabriela, de Bruno Barreto • De Pernambuco Falando para o Mundo, de Micheline Bondi 1983: Quilombo, de Carlos Diegues 1985: Tigipió, Uma Questão de Amor, de Pedro Jorge de Castro 1987: O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, de Rosemberg Cariry • Luzia-Homem, de Fábio Barreto 1987/1995: A Árvore da Marcação, de Jussara Queirós. 1996: Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira – O cangaço ganha nova roupagem e recebe um olhar insuspeitado sobre a figura de Lampião. O filme, na verdade, faz uma síntese de todo o cinema produzido no e sobre o Nordeste ao propor uma abordagem estética moderna para o gênero. • Corisco e Dadá, de Rosemberg Carirry • Guerra de Canudos, de Sergio Rezende • Tieta do Agreste, de Carlos Diegues 1997: O Cangaceiro, de Aníbal Massaini Neto • O Sertão das Memórias, de José Araújo 1998: Bela Donna, de Fábio Barreto • Iremos a Beirute, de Marcos Moura • Central do Brasil, de Walter Salles 1999: Soluços e Soluções, de Edu Felistoque • Cipriano, de Douglas Machado • Milagre em Juazeiro, Wolney Oliveira 2000: 2000 Nordestes, de Vicente Amorim e David França Mendes • O Auto da Compadecida, de Guel Arraes • Eu, Tu, Eles, de Andrucha Waddington • O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, de Paulo Caldas e Marcelo Luna • Eu Não Conhecia Tururu, de Florinda Bolkan. Pesquisa e texto do crítico de cinema Ernesto Barros
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SÉCULO 21
Cemitérios Uma das construções que coloca o Brasil lado a lado com os países mais ricos do mundo são os cemitérios: ricos e pobres não morrem no mesmo lugar
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e os mortos fossem fisicamente eternos, como mármore, viveríamos em um mundo povoado por estátuas. Nossa primeira tarefa diária seria tirar?lhes o pó, passarmos uma cera como se faz com a carroceria de um carro, e falarmos com eles e os atualizar com as notícias do dia anterior. Vivemos em um planeta vivo coberto por cemitérios de animais, vegetais e restos de seres humanos. Entretanto, percebemos apenas aquilo que é associado à vida. Um acidente, uma morte, a idéia de não se poder ver mais alguém é recebida por sentimentos incomuns e desagradáveis sobre algo que aparentemente nos é estranho e impróprio a este mundo.
Tecemos nossas vidas andando sobre cemitérios. Pensamos que somos eternos na vida e na morte. Somos, contudo, filhos dos jazigos e covas rasas, e aqueles que repousam ali falam em nós sem sequer percebermos que a voz que emitimos fala de suas idéias. Uma das construções que coloca o Brasil lado a lado com os países mais ricos do mundo são os cemitérios. Os ricos, com lápides gigantes de mármore, dão à nossa aristocracia o conforto de que seus filhos terão um lugar belo após a morte e, graças à suntuosidade de seus túmulos, serão recordados pelos vivos por muito tempo. Os religiosos oferecem à burguesia e às classes médias altas o consolo de que seus queridos estarão guardados no solo sagrado das igrejas, que serão
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 24 Continente Multicultural
vivos
lembrados e louvados a cada missa, e que estarão na ante-sala dos céus. Os cemitérios pobres, em campos santos de beira de estradas e em morros, confortam os humildes ao verem que seus entes queridos contemplam dali as coisas que nunca tiveram quando vivos. Cemitérios falam da cultura como a música e as edificações. Através dos cemitérios os arqueólogos do futuro saberão o que comíamos, vestíamos. Saberão melhor que nós o tamanho das desigualdades sociais do nosso tempo. Se a humanidade sobreviver à humanidade e habitar outros planetas, a Terra será o maior cemitério vivo do sistema solar. Dois lados possui o cemitério de Highgate, em Londres. O rico, dos suntuosos túmulos nas colunas egípcias; o simples, onde encontra-se a família Marx. Highgate é famoso por repousar ali os restos de Karl Marx, Cristina Rossetti, Herbert Spencer. Foi construído no século 18 dentro do plano de criação de vários campos santos ao redor de Londres a fim de desafogar o cemitério central. Uma iniciativa privada, o cemitério de Highgate reflete as aspirações da aristocracia da época de repousar para sempre na atmosfera sombria, fria e encantada (ou assombrada) da floresta na Inglaterra. Na colina, com vistas para a cidade, Highgate é tão belo que certa vez um autor escreveu: "Em tal lugar a dor da morte é confortada". Highgate é um grande e lindo jardim vivo que no correr das quatro estações ensina a efemeridade cíclica da vida. Estava praticamente abandonado pelas autoridades de Londres, uma vez que não dava mais lucro. Mas é hoje bravamente administrado por uma sociedade sem fins lucrativos. Em Paris, pelo menos à primeira vista, não existe dois lados óbvios de um cemitério. Não foi sempre assim. Houve um tempo em que a cidade era um vasto depósito de cadáveres e uma vez bastou uma forte chuva para que sucumbissem os muros que separavam as residências do cemitério dos Inocentes, e fazer com que os cadáveres fossem jogados pela força das águas nos porões das residências. Após a revolução, contra a vontade da
Igreja, os ossos foram recolhidos para as atuais catacumbas e finalmente construídas necrópoles fora da cidade. Os cemitérios atuais, principalmente Pére Lachaise e Montparnasse, são pontos turísticos, onde repousam os restos de famosos artistas, e estão pontuados com verdadeiras obras de arte. Na Bahia, o cemitério de Ilhéus é talvez o maior símbolo da riqueza dos coronéis de outrora. Ao lado de uma igreja e confortavelmente acomodados em grandes túmulos, os coronéis certamente estarão entre os primeiros brasileiros a serem ressuscitados no dia do juízo final. Mas na Bahia, ao contrário do resto do mundo, repousar na colina mirando o mar não era privilégio dos ricos. Perto de Ilhéus, na vila Serra Grande, conheci um pequeno cemitério de pescadores. Sem muros e sem portão, suas covas se estiravam em um pequeno minifúndio sobre a montanha de onde se via o mar a poucos metros. Era quase impossível identificar um norte dentre aquelas cruzinhas tortas e mal alinhadas, quanto mais uma imagem do morto. A fragilidade daquele campo santo perante todas as forças da natureza humana era tanta que imaginava a chegada de um barão com seu trator atropelando aquele pedaço de terra para por sobre os ossos erigir uma casa de veraneio. Marcos Guedes é ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco
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LITERATURA
Força e fôlego marginais da América. Desde O mais ambicioso livro de as Folhas de Relva de poesia já escrito no Brasil Whitman e o Canto Geral de está sendo lançado pela Neruda, ninguém havia editora Topbooks. composto sobre o continente Latinomérica, de Marcus versos com fôlego tão Accioly, tem 620 páginas e extenso. Nesta entrevista consumiu pelo menos 20 exclusiva, o autor fala sobre anos dos 58 de vida do poeta. É uma epopéia como esse seu trabalho de Sísifo (ou de Hércules), analisa a Os Lusíadas e composto também em oitava-rima. Mas poesia no mundo atual, aposta num novo classicismo ao invés de cantos, está subdividido em rounds, e diz que gostaria de ter no lugar dos heróis, os Mário Hélio nascido Che Guevara.
Marcus Accioly em sua biblioteca, em Olinda
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Você começa a sua produção de poeta escrevendo sobre o Nordeste, estende essa produção a diversos aspectos da cultura ocidental, e termina por resolver cantar todo um continente. Quando foi que você elaborou a idéia e quando foi que você decidiu que a sua vocação era para a poesia épica, quando no Brasil todos os poetas são líricos. A poesia me ensinou a falar com a natureza. Então, de posse desta linguagem, tentei dilatar a fronteira do meu canto. Estendi o meu primeiro Nordeste, o dos Nordestinados, para um Nordeste maior, o Nordeste-grego, que cantei através da trilogia mitológica - Sísifo, Íxion e Narciso. Depois, como se houvesse um avanço e uma regressão dentro e fora de mim, o Nordeste se transformou no próprio continente. Já havia percebido, desde o começo, que nenhum desses Nordestes poderia ser cantado com poemas fragmentários, pois que não se pode cantar a América, nem um país continental como o Brasil, com poemas líricos. Uma coisa é cantar na América, outra é cantar a América O canto tem que ser inteiro, porque o continente é inteiro. E a única voz para cantar o todo é a voz épica. A minha tentativa foi a de narrar este continente, ou seja, dar uma história e uma identidade a este continente sem identidade e sem história, inventariar este continente sem inventários, testemunhar este continente sem testemunhas.
lirismo que não é libertação”. João Cabral de Melo Neto inventou o anti-lírico e dedicou ao próprio Bandeira a sua anti-lira: Educação pela pedra. As vanguardas brasileiras - a poesia concreta, a poesia práxis, o poema processo, o linossigno, o poemapostal - negaram ou tentaram negar o lirismo em si. Embora se diga que o Brasil é um país profundamente lírico ou extremamente sentimental, ele, na verdade, é épico, assim como a América é épica e é épica toda a nossa história e nossa geografia. Um rio como o Amazonas ou um personagem como o Conselheiro afasta qualquer possibilidade de dúvida. Porém, mesmo tendo um primeiro contato lírico com a poesia, nunca tratei do lírico propriamente dito (embora o lírico sobreviva no épico e o épico no dramático - conforme Staiger) nem do anti-lírico, que Cabral legitimou. Desde o meu primeiro livro - Cancioneiro - ao último - Latinomérica - que sempre escrevo o livro inteiro, com princípio, meio e fim. Até Érato, que é um livro de poemas eróticos, é inteiro. Tão grande é minha obsessão pelo todo que, às vezes, quando percebo a falta de uma palavra - “árvore”, por exemplo - resolvo Castro Alves (desenho de autor desconhecido): admirado por Marcus Accioly graças ao tom épico de alguns dos seus poemas
Mas seu primeiro contato com a poesia foi lírico. Sim, quase todo primeiro contato é lírico, pessoal, ligado ao “Eu”. Paradoxalmente, o lirismo moderno no Brasil começa a ser combatido com o próprio lirismo e pelo, talvez, mais lírico dos nossos poetas: Manuel Bandeira. Em 1930, através de um poema do livro Libertinagem - Poética - ele, após xingar o lirismo “político \ raquítico \ sifilítico”, desabafa: “Não quero mais saber do Continente Multicultural 27
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reescrever tudo só para plantar o que estava faltando àquele universo, pois, sem tal vocábulo, o livro estaria incompleto para mim. Assim, posso perder dinheiro, mas não perco palavra. Não faço vida literária. Uma vez terminado o livro, parto para outro e, às vezes, quando o assunto insiste, tento conectar o novo livro ao anterior, como se tudo fizesse parte de um grande plano que tento levar a cabo durante o tempo.
mbora se diga que o Brasil é um país profundamente lírico ou sentimental, ele é, na verdade, épico
Quando a gente fala em epopéia pensa imediatamente em duas coisas: No mito maravilhoso e no herói. Você canta todos os antiheróis, todos os marginais, todos os que não seriam nem vencedores, nem épicos no sentido tradicional. Ao mesmo tempo, embora o mito esteja presente na sua obra, você parece preferir sempre a realidade. Me parece que no seu projeto épico há também uma teoria do épico. Escrevi uma Poética - pré-manifesto ou anteprojeto do Realismo-Épico, que poderia ser resumida em uma frase: o mundo lírico morreu e o épico renasce do crepúsculo. Mas, além da discussão sobre os gêneros lírico, épico e dramático, há outro questionamento anterior, sobre a prosa e a poesia. Miguel Ángel Asturias, no seu discurso do Nobel, disse que “a literatura latino-americana irá renascer, mas não em versos”. Tal afirmação, mesmo que se considere o boom da literatura latino-americana, cai por terra quando se observa que, dos seis escritores que receberam o Prêmio Nobel na América-Latina, cinco, contando pela ordem e 28 Continente Multicultural
com o próprio Asturias, são poetas: Gabriela Mistral, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, Octavio Paz e Derek Walcott. A única exceção, que seria Gabriel García Márquez, é de um novelista que escreve feito um poeta, ou de um poeta que se expressa como novelista. É possível acrescer à idéia do “homem natural” de Rousseau, a idéia da “poesia natural”, pois todos sabem que, desde Adão, é a poesia - e não a prosa - a linguagem natural do homem, assim como sabem que, desde ou antes de Homero, essa linguagem é épica. A criança e o selvagem se expressam através de imagens e metáforas, como a lembrada por Cortázar - “O cervo é um vento escuro” - e a escrita por Martí - “Mi verso es un ciervo herido”. Epopéia significa narração, isto é, contar, cantar um história: “Era uma vez”. Quanto aos anti-heróis, que são os meus personagens, a América Latina é o hábitat deles Cuauhtémoc, Zumbi, Zapata, Tiradentes, Frei Caneca. Não temos heróis, possuímos antiheróis, heróis pelo avesso. Não se trata do herói brechtiano, mas do herói decaído e destroçado. O nosso herói está sempre na oposição, do outro lado, na outra margem. Na América Latina, o anti-herói luta contra o “herói” instituído. É o oposto dos Estados Unidos que, diante da guerra perdida no Vietnã tem inventado uma verdadeira mitologia de heróis cinematográficos, que continuam indo à Ásia e voltando, através da tela, para resgatar o que só pode ser resgatado pela ficção. Os papéis políticos foram desempenhados com tanta eficiência que o ator Ronald Reagan conseguiu ser eleito (1980) e reeleito (1984) presidente. Coincidência ou não, a “era Reagan” vinha sendo antecipada por alguns super-heróis do cinema que, sem falar de Ringo, traziam um R inicial no nome (êh, Silvester Stallone - como diria Cortázar): Rebel, Rockey, Rambo. George Bush, o pai,
Os poestas Lawrence Ferlinghetti, da beat generation, e Accioly na livraria City Lights Bookstore, em São Francisco, Estados Unidos
com menos carisma, suscitou a ressurreição de Batman e, como Batman trazia no seu encalço o R do personagem Robin, este foi “desaparecido” tão por encanto que, no Brasil, uma banda de rock se intitulou: Que fim levou Robin? A viagem do presidente Bill Clinton foi o único retorno que houve ao Vietnã. E o herói Lampião, os cangaceiros? Eles foram os meus primeiros anti-heróis. Povoaram minha infância com suas vidas e suas mortes, seus rifles e seus punhais, suas marias bonitas e suas cangas-de-aço. Tenho até, pelo lado materno, um parentesco com o cangaceiro Antônio Silvino, que se chamava João Batista de Moraes e era considerado uma espécie de Robin Hood. Um anti-herói como Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, narrado por Euclydes da Cunha e contado Mário Vargas Llosa, pertence a todo o continente. Ele é uma resistência. Venceu, com seus fanáticos, batalhões do exército brasileiro e restou destroçado, como os guerrilheiros do Araguaia. Os anti-heróis sempre resistem até o final. Na América Latina não há heróis sobreviventes, mas anti-heróis exterminados. Existem dois provérbios nordestinos que exemplificam o caso dos anti-heróis: “Não ficou ninguém para semente” e “Não ficou ninguém para contar história”. Assim é queimada a semente e apagada a história. E quando se deu essa transformação, quando você optou pelos anti-hheróis?
Fui menino-de-engenho e teria continuado todo aquele sistema de misérias se não sofresse, na adolescência, uma espécie de conversão - no sentido religioso do termo - e tomasse o partido do povo. Foi quando escrevi O roçado. Sob tal aspecto, a minha obra contesta a minha vida. O meu pai (que hoje tem 87 anos) não entendia, de início, o sentido da minha poesia e considerava que eu estava abalando a nossa já falida aristocracia canavieira, enquanto eu achava que estava acertando em cheio, principalmente porque começava dando o exemplo pela minha casa. Hoje, aos 58 anos, não posso dizer, sobre a Reforma Agrária, o que Nabuco disse sobre a Abolição, porque neste país não há Reforma Agrária. Tomamos a terra dos índios, dos camponeses, dos pescadores. Tomamos para ter e não para habitar. Agora, quando vivemos nessas caixas de cimento, estamos cercados daqueles que expulsamos dos seus paraísos e continuaram ao nosso derredor. De repente eles saem dos seus mocambos, descem das suas favelas, para nos cobrar espaço que usurpamos deles. O resultado é a vigência de uma frase esquecida do também esquecido Josué de Castro: “Metade da humanidade não come e a outra metade não dorme com medo dos que não comem”. Se você optasse por uma visão mais tradicional da história, cantaria heróis como Duque de Caxias, por exemplo? Não. A Guerra do Paraguai foi um genocídio. O Paraguai, um país pequeno e sem mar que, Continente Multicultural 29
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uanto aos anti-heróis, que são os meus personagens, a América Latino é o hábitat deles. Zumbi, Zapata, Tiradentes são heróis pelo avesso
do “Doutor Francia” a Stroessner, sempre viveu sitiado por ditadores, sofreu a agressão da Tríplice Aliança - Brasil, Uruguai e Argentina - que logrou dizimar mais da metade de sua população. Luís Alves de Lima e Silva conquistou Assunção em 1869, ano em que recebeu o título máximo de nobreza dado pelo Imperador a um brasileiro: o de Duque de Caxias. O heroísmo da Guerra do Paraguai não foi do Brasil nem do Uruguai nem da Argentina, mas do próprio Paraguai, que resistiu às três potências, ou dos paraguaios que foram estendidos sobre o Chaco, como sobre um mar de sangue. O heroísmo do Duque de Caxias é o mesmo dos Estados Unidos na Guerra do Golfo que, sobre a base da Arábia Saudita, com forças inglesas, francesas, egípcias, sírias e de países da coalizão anti-Iraque, bombardearam SadanHussein, conseguindo um censo de 100 mil soldados mortos. Tais “heroísmos” são crimes contra a humanidade e a coragem que deve ser cantada é a dos anônimos que defenderam o Paraguai. Em Latinomérica, tento resgatar os que desapareceram com a Atlântida e os que foram “desaparecidos” pela máquina da repressão. É a deslembrança da água e a desmemória do fogo.
Tiradentes (desenho de autor desconhecido): um dos heróis derrotados do Brasil
Então a sua é uma epopéia de agonia, de conflitos... E de dor e de busca. A identidade é o tema central - o leitmotiv - de Latinomérica. A grande procura que perpassa por suas folhas, é a do próprio pai. Carlos Fuentes escrevendo sobre o “mundo de la bastardía, de los hijos-de-puta” de La casa verde, cita o seu autor, Mario Vargas Llosa: “A las lavanderas que volven del río, a las criadas del barrio de Buenos Aires que van al Mercado, las atrapan entre vários, las tumban sobre la arena, las echan las faldas por
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la cara, les abren las piernas, uno tras outro se las tiran y huyen. Los piuranos llaman atropellada a la víctima, y a la operación fusilico, y al vástago resultante lo llaman hijo de atropellada, fusiloquito, siete leches”. Após a citação de Vargas Llosa, prossegue Fuentes: “Quién es mi padre?, pergunta sin cesar Juan Preciado en el Pedro Páramo de Rulfo; Quién es mi madre?, clama la Japonesita en outro burdel, el de José donoso en El lugar sin límites (...) Y sin embargo, el padre tenía un nombre: Pedro Páramo, Don Anselmo el arpista, Hernán Cortés, Francisco Pizarro. Y la madre era anônima. Pero los bastardos sólo conocen realmente a su madre, jamás su padre: son a-patridas. (...) La conquista de la América española fue un gigantesco atropello, um fusilico descomunal que pobló el continente de fusiloquitos, de siete leches, de hijos de la chingada”. A nossa realidade, pois, é um círculo vicioso: a mãe desconhece o pai do seu filho que, por sua vez, desconhece o próprio pai que, finalmente, também desconhece o filho. No entanto, conhecemos a nossa mãe, a pátria ou as pátrias. Mas o processo de Latinomérica, como explico nos Portulanos, vai um pouco além: o filho busca o pai e, como não é possível encontrá-lo, tenta voltar - após a viagem do seu descobrimento - à mãe, ao útero, ao ventre e, como cresceu, como já não cabe no lugar seguro de onde saiu, regressa, através do incesto, à vagina por onde entrou seu pai. Assim ele retorna à mãe, à origem, à raiz. E a pátria, violentada pelo pai, também é violentada pelo filho: é a cópula com a terra. Antes de você, poetas da estirpe de Walt Whitman, o próprio Castro Alves, Pablo Neruda, Rubém Darío etc, cantaram a América. No que é que se aproxima e no que é que se distingue a sua maneira de cantar a América já neste novo século e milênio?
No Brasil, como de resto em toda a América, estar no presente é, de certa forma, continuar no passado. Talvez o tempo seja o grande problema do Terceiro Mundo e, sem dúvida, a maior contradição do poeta, pois este se quer presente no futuro. A minha poesia é um amálgama entre o popular e o erudito, a vanguarda e a tradição, a lucidez e a loucura. Além do mais, estamos em uma época, a da pós-modernidade – como chamou Barth - em que podemos nos apoiar na tradição. Podemos revisitar o passado para cantar, no presente, o futuro. Podemos descer ou mergulhar nos mundos simulados, nos reinos da aparência, nos tártaros do passado, onde nada é morto e tudo é virtual, como em La invención de Morel - de Adolfo Bioy Casares. Grandes poetas como Darío, Castro Alves, Neruda e Whitman, vêm da tradição épica que remonta a Homero. Ela não se quebra. O poema lírico mudou tanto de faces, usou tantas máscaras que, por sua própria natureza, já não é reconhecível. Mas apesar de toda a sofisticação, de todas as cirurgias plásticas feitas no rosto épico, ele nunca mudou de cara. Costumo dizer que, ao redor da fogueira, o pajé já não é o mesmo, a tribo já não é a mesma, mas a narração épica continua sendo a mesma diante do fogo. A voz que atravessa o tempo é a que Octavio Paz chama de “a outra voz”. Se alguém, por exemplo, lê Homero e, em seguida, lê Vergílio, verifica, como no caso do ciclope Polifemo, que um confirma o outro. Dante, na sua descida ao Inferno, confirma os dois. É o que aqui, no Nordeste, nós chamamos de “o ajudante do mentiroso”. O mentiroso afirma: “Eu vim de tal cidade e vi um sujeito com sete braços”. O ajudante reafirma: “Eu também vim do mesmo lugar e avistei uma camisa com sete mangas”. O épico, através das sete mangas, confirma os sete braços.
Você falou de uma definição possível da sua poesia que uniria o popular ao erudito, e o tradicional ao moderno. É por causa do elemento de modernidade e de pós-m modernidade que você desistiu de ser Armorial? Vou aclarar aqui, de uma vez por todas, esse problema do Armorial. Na realidade, eu nunca entrei nem sai do Movimento Armorial. Logo, fui ou não fui, sou ou não sou Armorial - eis a questão. Ariano Suassuna, o criador do Armorial, que é meu amigo, verificou que havia uma tendência de se cantar, sob formas nordestinas, determinados temas do Nordeste e batizou essa tendência de Armorial. Isso aconteceu por volta de 1969 e eu já havia publicado o meu primeiro livro em 1968. Logo ele juntou poetas, prosadores, pintores, desenhistas, gravadores, escultores, músicos, dançadores, ceramistas, enfim - para cunhar uma expressão - todos os que tinham um compromisso com a pedra. Eu mesmo parodiei o primeiro verso d'Os Lusíadas, de Camões, para definir o Armorial: “As armas e os brasões assinalados”. O que aconteceu é que cada um continuou seguindo o seu caminho e, dependendo dos próprios passos, ora se afastou, ora se aproximou daquela vertente. Tal afastamento, nesses casos, que pode ser o encontro de outros caminhos, às vezes é considerado uma ruptura, uma desistência ou uma deserção. Na realidade e no meu caso, o Armorial foi uma passagem a qual - para citar a expressão de Nabuco - eu terei sempre que me cingir. Acredito que, no caso específico de Ariano Suassuna, o seu caminho seja exatamente o Armorial e que ele vá, na sua caminhada, despertando novos seguidores. No meu caso, quando comecei a cantar Sísifo, Íxion e Narciso, continuei cantando personagens do meu Nordeste-grego. A mudança pode significar, para alguns, que discrepei do padrão ou da estética estabelecida. Mas, na verdade, continuo cantando a
Capa dos livros Nordestinados e Guriatã
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pedra, a meu modo, mesmo que ela tenha virado montanha ou cordilheira.
Capa dos livros Narciso e Érato
Você escreve um poema como Latinomérica mas ao mesmo tempo também escreve para crianças. Como é escrever uma epopéia tão complexa e extensa, e ao mesmo tempo se preocupar com a infância e escrever para crianças? À semelhança de Drummond, “Eu preparo uma canção / que faça acordar os homens / e adormecer as crianças”. Por isso, quando me canso da mão direita, escrevo com a esquerda. É o único caso em que sou ambidestro. Mas comecei escrevendo para crianças, ou melhor, para meninos, um cordel: Guriatã - um cordel para menino. O que é um cordel senão uma gesta, um épico popular, a narração do cantador que, via de regra, começa invocando a musa (os deuses) e narra a sua história, estória ou - como costumo grafar - hestória, com princípio, meio e fim, como fariam os clássicos? Escrevendo para adultos ou para crianças, prossigo insistindo no poema inteiro, na hestória única. Guriatã, contando com as ilustrações, tem 200 páginas. Muitos podem considerá-lo uma espécie de (êh, Evtuchenko - como diria Cortázar) “autobiografia precoce”, contudo, como observou Nelly Novaes Coelho no seu Dicionário crítico da literatura infantil/juvenil brasileira, “Guriatã redescobre e recupera a 'infância do Brasil' que ali também se transfigurou para permanecer para sempre 'encantada', isto é transformada em mito”. Faço tal citação, em meu favor, para chegar mais perto da sua pergunta, porém, o que eu tentei com Guriatã foi, de fato, recuperar a infância do Nordeste ou, menos do que isso, restaurar o menino, a criança, principalmente em um país jovem como o Brasil, pátria ainda infantil, que também não sabe andar com os próprios pés, ainda é primitiva e selvagem, mas já tem todos os vícios do adulto. Os livros de
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crianças, hoje, trazem, antecipados, problemas que as crianças ainda não têm. Neste ponto, a criança do Brasil ou da América, confunde-se com esse outro menino que é o primitivo. A criança ainda não foi educada, o primitivo ainda não foi civilizado. Se o adulto anda tão esquisito que tem se postado 24 horas por dia diante de um computador para, em plena solidão, conseguir uma possível comunicação via Internet, imagine a criança. Por outro lado, mesmo sabendo que o menino gosta da hestória inteira, quando os poetas escrevem para eles, ora cantam poemas avulsos, ora preferem a prosa para contar. Os poetas perderam o poder da narração. Eles querem apenas jogar, como as próprias crianças. Escrevi três livros para meninos e tenho um quarto, ainda inédito, que retoma um aspecto de Latinomérica: a infância de Adão. Adão não teve infância, ele perdeu a parte mais feliz da vida, porém Deus não é injusto. Adão não teve infância, mas teve o Paraíso e o nosso Paraíso é a infância perdida de Adão. Você fala de identidade e fala também de Nordeste. O poeta municipal que discute com o poeta estadual quem pode bater o poeta federal. Enquanto isso o poeta federal “tira ouro do nariz”, segundo um poema blague de Drummond. Parece que toda a sua trajetória foi no sentido não de ser um poeta regional, um poeta local, um poeta ligado a uma cidade, de certo modo, como Carlos Pena, ou um poeta ligado a um Estado, mesmo um estado de espírito, mas de qualquer forma um poeta situado, para usar a expressão de Gilberto. Parece que toda a sua trajetória foi não se preocupando apenas em ser um poeta nacional, mas de certa maneira de ser um poeta latino-aamericano. Então você acha que a vocação da sua poesia é ter esse alcance mais amplo, sair de um território tão particular e provinciano? A sua poesia é anti-
provinciana ou a sua postura é antiprovinciana? Embora você seja do engenho Laureano, de Aliança, no interior de Pernambuco, há uma vocação das pessoas do interior de Pernambuco para não serem provincianas? Invertendo a frase de Tolstoi, que até já virou chavão – “Pinta a tua aldeia e pintarás o mundo” - eu diria ao contrário: pinto o mundo para pintar a minha aldeia. A minha viagem é em outro sentido. Eu não vejo, da minha província, o mundo, mas do mundo vejo a minha província. Você citou Drummond e há um belo verso dele que diz: “Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração”. Fazendo com Drummond o mesmo que fiz com Tolstoi e até sobrepondo, à sua Itabira, a América do seu poema, eu diria: a América começa no meu coração, que vai dar em uma rua. Tal rua, sem dúvida, pode ser uma ruela de Itabira, um beco de Aliança, ou uma viela de Macondo. Ainda sobre Drummond, você fez uma observação muito interessante acerca do seu poema – Política literária – que fala poeta municipal, estadual e do federal, que “tira ouro do nariz”. Hoje, no Brasil, depois da morte de Cabral, não é fácil distinguir quem é poeta federal, estadual ou municipal. Nem mesmo quem é ou o que é poeta, pois, neste início e fim de século e de milênio, tudo está passando por uma transformação tão vertiginosa que, oposto à teoria de Darwin, o poeta parece ser uma espécie em extinção. Nós tivemos a felicidade de coexistir com grandes nomes, como o de Bandeira e de Cecília e de Jorge e de Murilo e de Drummond e de Cabral. Tivemos a contemporaneidade: um lugar para olhar, uma trilha para seguir, uma estética, uma poética. Agora vivemos co-
E
stamos cercados daqueles que expulsamos dos seus paraísos e continuaram ao nosso derredor. Eles saem dos seus mocambos e favelas
Frei Caneca (detalhe do painel Revolução de 1817, de Cícero Dias): herói pernambucano cantado em Latinomérica
mo a natureza através da Lei de Lavoisier, onde “nada se perde, nada se cria; tudo se transforma”. O futuro da poesia, sob este ângulo, me preocupa um pouco, principalmente no Brasil, onde uma boa parte da poesia tem virado prosa e da prosa jornalismo. Há uma contradição na sua fala, não nessa agora, mas na anterior, quando parece indicar quanto ao futuro mesmo para a poesia. Você é um poeta que publicou bastante, todos os seus livros venderam e, ao mesmo tempo você está publicando um livro de mais de quinhentas páginas. Ora, toda a sua obra não é uma absoluta afirmação da fé na poesia e da fé na sua poesia em particular? Sem dúvida, mas não sou um paradigma. Acredito na poesia como acredito em Deus. Também acredito no futuro e creio no poeta, mas o poeta tem perdido a fé em si mesmo. O penúltimo leitor de poesia morreu e o último está enfermo. O poeta precisa restaurar a sua própria saúde, a saúde do seu leitor e a saúde do mundo, para sobreviver. Ele precisa voltar a ser, biblicamente, o sal e a luz da terra. Passei vinte anos escrevendo Latinomérica e, por conta dele, faz onze anos que não publico nem republico. Descurei da minha obra, saí da mídia, virei um poeta inédito ou póstumo. Tem livro meu que não encontro em sebo, o que pode ser um bom sinal, pois os leitores não o devolveram. No Brasil só se publica o livro novo. Nenhuma editora quer republicar. Somente quando o poeta começa a ficar famoso, ou um livro seu a ficar conhecido, é que se fala em republicação. Apenas dois livros meus Continente Multicultural 33
Manuel Bandeira (Óleo de Cândido Portinari): mestre do lirismo a que Accioly contrapõe a poesia épica
Nordestinados e Guriatã - alcançaram uma 3ª edição e somente dois - Guriatã e Érato não estão esgotados. O maior erro da minha geração foi o ter ficado na província. Falo da geração-60, no sentido nacional, bem como da geração-65, no sentido estadual. Vivemos insulados feito Robinson Crusoé. Como o grego Demóstenes, que botava seixos na boca e falava diante do mar, para gritar mais alto e abafar as vaias da multidão, nós precisamos botar paralelepípedos na boca para abafar toda essa onda que vem do Sul. Creio que esse novo milênio será o do retorno da poesia clássica, da poesia inteira, do homem inteiro. Deveríamos pichar as palavras de John Donne - “a morte de qualquer homem me diminui, porque eu faço parte do gênero humano” - em todos os muros, grafitálas em todos os banheiros, para sair do fragmentarismo lírico que se arrastou até o final do século próximo passado. Sou um homem dos anos 60. A minha geração nasceu durante o blecaute da Segunda Grande Guerra e, só tendo as guerras por herança, conseguiu uma espécie de luz que mudou o mundo ou, pelo menos, a maneira de ver o mundo. O protesto foi o primeiro movimento político dessa geração e, se ele - à Allen Ginsberg - teve de início a conotação do protest que, em inglês, também significa “testemunhar a favor”, depressa tomou o seu sentido habitual de “insatisfação”. Com o paradoxo da desobediência civil contra a obediência armada, da agressividade contra a violência, da guerrilha contra a guerra, tal geração reagiu frente aos Sistemas Arbitrários e aos Regimes Autoritários, até ser destroçada, física, moral e ideologicamente, pelas ditaduras verdes e brancas da América Latina. No final do seu livro - Xambioá: guerrilha no Araguaia - o coronel da reserva, Pedro Corrêa Cabral (capitão-aviador e piloto de helicóptero à época) sobrevoando a Serra das Andorinhas, desafoga-se do seu remorso, reconhecendo: “Ali estão os restos mortais de uma meia centena de jovens que um dia sonharam um Brasil melhor”.
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Na época em que você surge e começa a publicar seus textos, a poesia foi banida de todos os meios de comunicação e ao mesmo tempo você está publicando um livro ousado porque ele toma uma forma clássica e ao mesmo tempo se propõe a fazer quase que uma enciclopédia poética da América Latina. Parodiando a música de Caetano Veloso, podemos perguntar: Quem lê tanta poesia? Essa poesia, banida da mídia, de que maneira isso afeta você como poeta e afeta a poesia como um todo? Sigo uma frase atribuída a Guilherme de Almeida: “O livro que não fica em pé na estante, não fica em pé no tempo”. Como o meu Sísifo tem 408 páginas, Narciso, 300, Nordestinados, 226 etc sei que eles poderão, pelo menos, ficar em pé na estante. Também alimento a idéia de que um dia viverei só dos meus livros, mesmo que tenha que comê-los, como o apóstolo João, no Apocalipse. Portanto, que se tranqüilize o meu editor, José Mário Pereira, pois já não corro o risco de ser o meu único leitor. Latinomérica já foi lido, no original, por Pedro Lyra, Eduardo Portella, Nelly Novaes Coelho, Antônio Portela, Luiz Carlos Monteiro e por ele mesmo. Hoje um autor é muito mais conhecido se publicar uma foto em uma revista do que um poema em um jornal. Alguns escritores vivem e se mantêm cretinamente na mídia, publicando fotografias e dando entrevistas, como modelos fotográficos. Eles sabem que, na falta de leitores, dispõem de adoradores, dos idólatras que servem ao falso deus da mídia. Há escritores que não escrevem nem publicam nada e todos os dias aparecem e desaparecem da mídia, como os fantasmas. Jorge Luis Borges observou a possibilidade de existência da obra literária sem autor, como um produto da humanidade. Porém está acontecendo um fenômeno reverso: o do autor sem a obra. Quando eu cuidava mais assiduamente de música, viajava muito ao Ceará para ver o meu amigo e parceiro, César Barreto. Nesse tempo, andava pelos bares de Fortaleza um poeta ou, pelo
menos, um que se anunciava como tal, declamando frases desconexas e fazendo mesuras. Habitueime àquela figura excêntrica que, às vezes, quebrava a monotonia das mesas. Depois, passei uma época sem viajar e, quando voltei a Fortaleza, senti a ausência daquele poeta que arrastava as cadeiras (nos dois sentidos). Perguntei a César Barreto: “Cadê o poeta?” César, que é muito irônico, respondeu: “Ele não é mais poeta, publicou um livro”. Você, tanto por ser poeta quanto por dominar as teorias poéticas e ao mesmo tempo tendo sido juiz de tantos concursos, como é que faz para identificar quem é poeta e quem não é poeta? Dizem que o primeiro poeta que viu uma mulher chorando e comparou as suas lágrimas com pérolas, foi um gênio. O segundo que viu uma mulher chorando e comparou as suas lágrimas com pérolas, foi um plagiador. O terceiro que viu uma mulher chorando e comparou as suas lágrimas com pérolas, foi um imbecil. Então, vivemos entre imbecis, plagiadores e gênios, embora este último seja bem mais difícil de encontrar. Lembro de uma bela e estranha carta que recebi da escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luis. Ela me escreveu: “Encontrar um poeta é uma espécie de festa, uma alucinação tão discreta que julgam que estamos a medir açúcar para bolinhos”. Nunca
H
oje quem quer publicar poesia? Qual a revista ou jornal brasileiro que anda publicando poesia? Nenhum, não há mias espaço para a poesia consegui interpretar esta frase inteiramente, assim como não consigo - quem o conseguiria? - identificar quem é poeta ou não. Porém sei, como Agustina, quando o encontro. Aliás, sobre o assunto, ocorre-me um exemplo vivo, ou ao vivo. Certa vez, entre uma pilha de originais de um concurso literário, eu encontrei um livro sem seu nome, Mário Hélio - Livrório/opus zero. Faz uns 18 anos e aquele foi o primeiro prêmio de poesia que, por haver colocado a medida certa de açúcar nas palavras, você recebeu. Creio que é assim que se encontra um poeta. Então o seu discurso, que parece pessimista, na realidade não é nem pessimista nem realista, está antenado... “O poeta - escreveu Pound - é a antena da raça”. Tal antena, em vez de lugar de pouso às andorinhas, deve servir de transmissor e receptor dos sinais do tempo. Vivemos entre paradoxos. A nossa realidade é tão pessimista, quanto é otimista o nosso sonho. Constrangido a assumir um papel agressivo, violento às vezes, dentro das sociedades consumistas e consumidoras, tendo que transformar a sua voz em algo capaz de esclarecer, denunciar e revidar, tendo que se engajar à disciplina dos que tentam fazer, do mundo pior, um mundo melhor ou, pelo menos, possível ou razoável, talvez o poeta deixe de ser o amigo que se queria, para ser o inimigo que se precisa.
Marcus Accioly, por Leugim
A sua poesia é uma poesia em voz alta. A poesia é o meu instrumento, o único de que disponho. Logo, sou o meu próprio instrumento. Vale lembrar a flauta-vértebra de Maiakovski: “Hoje executarei meus versos \ na flauta das minhas próprias vértebras”. A poesia é uma arte fonética e temporal, uma arte auditiva. A poesia é uma voz e a voz é uma companhia. A poesia é voz e a voz é poder. Os animais selvagens não Continente Multicultural 35
tórias”. Se me perguntassem por que sou poeta na América, responderia: “porque não posso ser o 'Che', não sei fazer guerrilhas”. Na sua lista de admirações você inclui Fidel Castro? Sem dúvida alguma. Fidel Castro Ruz é o último mito vivo da minha adolescência. Ele é a única revolução feita na América nesses últimos anos e, conforme a profecia do seu próprio discurso, será absolvido pela história. Capa de João Câmara para Latinomérica
suportam a voz humana: ela denuncia muito mais o homem do que a sua presença física. Ouvir é mais terrível do que ver. A poesia em voz baixa requer uma boa acústica para escutá-la, porque o mundo atual possui muitos ruídos. Camões, o maior poeta da língua portuguesa, pediu às Tágides “uma tuba canora e belicosa” para soprar. O poeta na América é mais do que uma voz, é um grito, um uivo - à Ginsberg - um berro, pois ele precisa ser som e arma de fogo ao mesmo tempo”. De todos os personagens que você cantou na sua epopéia, qual aquele com o qual você mais se identifica? Manuel Scorza escreveu: “Luchar es más hermoso que cantar”. Escrevi em Latinomérica, cuja estrutura é a de uma luta de boxe, inúmeros versos com a conotação de luta, tais como: tem o verso um poder bem maior que o das armas (...) o poder de fazer do fuzil a canção (...) quero lutar o canto do meu povo etc. Há ainda um verso que diz: guerrilheiro eu quis ser na juventude. Ora, que guerrilheiro eu quis ou queria ser senão Ernesto “Che” Guevara de La Serna. Ele é a própria América. Toda vez que alguém se levanta contra a injustiça, a desigualdade, a tirania, a opressão, o seu nome ou seu apelido é invocado. Ninguém foi tão idealista e tão aventureiro, tão manso e tão feroz quanto o “Che”. Perguntaram - segundo Joyce Carol Oates - ao campeão irlandês de peso pluma, Barry MucGuigan, por que ele era pugilista. Respondeu: “Não posso ser poeta. Não sei contar his36 Continente Multicultural
É esse sentido de humanismo que faz com que você se identifique, dentro dessa mesma América, com a geração beat? A beat generation, da mesma forma que foi uma reação dentro dos Estados Unidos, foi uma aproximação com a América Latina. Essa geração dos anos 50, foi tão importante como a Contracultura dos anos 60 e a Sociedade Alternativa dos anos 70. Talvez por isso, o grau do meu ódio ao governo imperialista norte-americano, seja o mesmo da minha admiração à cultura e ao povo daquele país. O que não consigo admitir dos neocolonialistas são as constantes invasões - ao Vietnã, ao Panamá, à Granada - as interferências políticas, as descaracterizações culturais, enfim, a petulância do Pentágono em querer ser - à Coreta Scott King - “a polícia do mundo”. Da geração beat eu só conheci pessoalmente Lawrence Ferlinghetti, em São Francisco, na sua City Lights Bookstore. Ele estava chegando da Nicarágua, onde esteve com Daniel Ortega e Ernesto Cardenal. Conversamos na livraria e fomos a um café. Lawrence me falou que a sua geração continuava pontificando, porque os novos ainda não quiseram tomar o seu lugar. Não lhe ofereci nenhum livro meu, mas deixei com ele o que estava lendo - Alma beat - organizado por Claúdio Willer. Ele me autografou os seus dois últimos livros - Endless life: selected poems e Sete dias na Nicarágua livre - e também me deu outro que havia publicado - Vólcan - com poetas de El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Pareceume muito empenhado em divulgar a poesia dos “chicanos” como a nova poesia da América. Recordo que, à certa altura, ele me disse com um gesto: “Como não temos uma guerra, a nossa guerra é a da América Latina”. Respondi-lhe incontinenti: “Então a sua guerra é a minha guerrilha”.
Nova epopéia para a velha América
“M
arcus Accioly, né à Pernambouc en 1943, appartient au groupe de juenes poètes, enommé Génération 65 aprés Cancioneiro (1976), Nordestinados (1971) et Xilografia (1974) il a publié Sísifo (1976), poème en dix chants, nouvelle et plus et ambieuse Légende des Siécles, oú les mythes, l'histoire, la littérature, la pensée philosophique et scientifique sont evoques et revécus d'une façon personelle, dans une forme que, comme chez Apollinaire, accueille, à côte de la tradition la plus rigoreuse, les innovations les plus audacieuses” Este texto da Revista Europe, Paris, 1982, confirmava, na França, a dimensão épica da poesia de Marcus Accioly, que já havíamos percebido nas primeiras publicações do poeta, conforme assinalamos na orelha de Sísifo (1976), “poema do novo épico, Sísifo talvez esteja destinado a ser a epopéia do nosso tempo, em língua portuguesa” e no posfácio da 2a. edição de Nordestinados (1978): “Foi, pois, essa intenção épica que descobrimos então em Cancioneiro e Nordestinados e se confirmou com a produção posterior do poeta – Sísifo –, verdadeira epopéia do Homem do Século 20 (...)” Presente entre o passado e o futuro, este novo épico de Marcus Accioly – Latinomérica – interpreta e reinterpreta uma América-maior, singular e plural, ora perdida na infância, ora ligada à África e à Atlântida, desde o tempo pré-colombiano até este final e/ou início de século. Mitos e monstros, heróis e anti-heróis, enfrentam-se no ringue e se pode encontrar, como dissonância ou contraponto, Zumbi e Nelson Mandela, Tiradentes e “Che” Guevara, Victor Jara e Chico Buarque, Pablo Neruda e João Cabral de Melo Neto, Cuauhtémoc e Frei Tito de Alencar Lima, José Martí a José Genoíno, Hebe de Bonafini e Margareth Tatcher, Pinochet e
Nelly Novaes Coelho
Reagan, “Tio Sam” e “Tio” Sam Slick, Rubén Darío e Lawrence Ferlinghetti, Don Jordan e Dan Mitrioni, e, assim, até onde o imenso fôlego do autor consegue conduzir o leitor através do projeto audacioso das seiscentas e vinte páginas que consumiram vinte anos de sua vida. Homens e mulheres da América desfilam neste vasto painel, estão pintados neste mural, com as cores fortes de um Orozco ou de um Brennand, de um João Câmara ou de um Siqueiros, em que nada parece escapar, da história à geografia, da filosofia à religião, da alegria à dor, do canto à luta, da democracia à ditadura, da liberdade à tortura, da flora à fauna, do mar à terra. Todos os países, todas as possessões, arquipélagos e ilhas, cordilheiras e vulcões, gelos e sóis, estão arrolados neste extenso inventário da América ou das Américas. O autor conta, canta, grita, denuncia, reivindica, conclama, exorciza, procura reconhecer todos os nomes, resgatar todos os desaparecidos, e se às vezes mostra a face do homem cordial e os olhos do menino ou do primitivo, também exibe o rosto do homem indignado e levanta os punhos do selvagem. Latinomérica não é um livro de poemas, é um livro único, um poema inteiro – a poesia que estava faltando à história, a obra que estava faltando aos dois quinhentos anos, a epopéia que estava faltando à América. O ponto mais alto de Latinomérica é a busca da identidade do homem americano, que funciona como uma espécie de círculo vicioso: o filho (o personagem/autor) procura o pai (o descobridor/conquistador) e, como não o encontra, regressa à mãe (a América) através do incesto. Violentada duas vezes, pelo pai do seu filho e pelo próprio filho, pelo que nunca a amou e pelo que sempre a ama, a América cumpre a sua épica fatalidade latina e homérica.
Ernesto “Che” Guevara simboliza o herói máximo para Marcus Accioly em Latinomérica
Nelly Novaes Coelho é crítica literária. Trecho da apresentação do livro Latinomérica, Topbooks, 2001
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Trechos inéditos de Latinomérica
A
RELAÇÃO BRUTAL
B
OLÍVIA
ó minha mãe (América-Latina) paixão maldita (incestuosa) tu que me deitavas no teu colo e em cima do teu ventre eu cresci (menino nu que ao útero voltou pela vagina de onde saiu) em ti o meu estupro foi mais natural que o de Pizarro e o de Cortés (sou filho do teu barro)
golpe dentro do golpe: contragolpe (Bolívia) ninguém sabe mais o nome de quem desmonta ou monta no galope do teu governo (militar) e come da pátria viva o seu pedaço (golpe) poder tomado à força até que o tome a força do poder com (novamente) um ditador de costas e um de frente
como deixar de amar os teus cabelos e teus olhos de luz cheios de água? (doce arrepio me eriçou os pêlos e alisei o teu sexo de ampalágua) nossos encontros (múltiplos e belos como os orgasmos) foram riso e lágrima (tu foste a amante que dormiu com o filho sem que o sangue servisse de empecilho)
(guerra em La Paz) guerrilha (o guerrilheiro mais alto que as montanhas) “Che-Ramón” (“Ra-món/Ra-món/Ra-món”) o dia inteiro e a noite inteira um sino tange o som da Cordilheira (no despenhadeiro) pois foi ferido (a “dois mil metros”) com o cano da M-2 nas mãos (antara partida pelAmérica) Guevara
porém (antes de mim) tiveste um coito com meu pai (foi Colombo ou foi Cabral?) um almirante ou um fidalgo afoito teve contigo a relação brutal de quem conquista pela força o corpo e goza o gozo virgem (bestial como quem usa a espada em vez do membro) ah preciso esquecer do que me lembro
(Higuera) és maldição ao Mundo Novo (“Ramón” ergueu o olhar e a voz) “covarde, você só vai matar um homem” (logo Félix Rodríguez a 1:10 da tarde contou 9 disparos) “'Che' é morto!” (range os dentes dos Rangers) o alarme de Barrientos gela o sol (Bolívia) pede a Mario Terán uma camisa
(de qual violação eu vim?) se acaso meu proibido amor fosse impossível por teu sangue já ter banhado o ocaso quando meu pai violentou teu hímen (ó América-mãe) seria o caso de comprimir a dor (que se comprime no coração) sem outra alternativa que senti-la (na carne) em carne-viva
(uma camisa que te cinja à força como uma louca dentro do seu crime) mais alta do que os Andes tua forca (o trem de um helicóptero) comprime um corpo que no espaço ainda se esforça em te romper (com o membro) o próprio hímen complacente (com a dor) pois fecha e abre (entre semens e sangue) a liberdade Textos do poeta pernambucano Marcus Accioly, constantes do livro Latinomérica, Topbooks – 2001
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A descoberta de um poema Jornalista narra como um poema o ajudou quando desterrado em Fernando de Noronha pela ditadura militar
É
o primeiro jornal que vejo em Fernando de Noronha. Por inspiração divina, levanto-me e vou olhá-lo. E nessa página meio rasgada de um jornal do Recife, cujo nome não sei, pois estava precisamente na parte rasgada, encontro um dos mais bonitos poemas da língua portuguesa. Não resisto e copio o poema, que é este, na íntegra: “Tece, tece, tece, tece,/ Bem tecida essa canção. / Uma a um, fio por fio,/ Como faz o tecelão/ Que fabrica o seu tecido/ De cambraia de algodão./ Prende os fios coloridos/ No labor da tua mão,/ Tece, tece, tece, tece/ Bem tecida essa canção,/ Com carinho, com cuidado,/ com silêncio e solidão. / Tece, tece, que tecendo/ Cresce, cresce a fiação,/ Urde as formas das estampas,/ Firma as cores do padrão,/ Roda a roda, tece, tece,/ Bem tecida essa canção./ Noite e noite, sempre e sempre,/ Nunca inútil, nunca em vão,/ Dia a dia te aproximas/ Mais e mais da perfeição./ Não te falte uma esperança,/ Nem te falte uma razão/ Que tecida por ti mesmo/ Faz nascer essa canção./ Tece, tece, muito e muito,/ Por dever e obrigação,/ (Pois tecer é teu ofício/ De poeta e te-
Helio Fernandes Bibliografia de Marcus Accioly Cancioneiro. Recife: Editora Universitária, 1968. Separata da Revista Estudos Universitários. Nordestinados. Recife: Editora Universitária, 1971. Prêmio Recife de Humanidades/72. 2a) ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/INL, 1978. 3a) ed. Rio de Janeiro: José Olympio/Fundarpe, 1986. Xilografia – Poesia gravada por José Costa Leite. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1974. Sísifo. São Paulo: Quíron. Brasília: INL, 1976. Poética: Pré-Manifesto ou Anteprojeto do RealismoÉpico. Recife: Editora Universitária, 1977.
celão)/ Tece como se tecesses/ tua morte ou redenção,/ Com amor e sacrifício,/ Rapidez e lentidão,/ Muito embora ninguém saiba/ Que teceste esta canção/ com os fios do teu pranto/ No tear do coração”. Como provavelmente eu ainda não gastei Deus com a mesma intensidade do Carlos Heitor Cony, tive a felicidade de encontrar na página dilacerada o nome do autor do poema tão genial. É o pernambucano Marcus Accioly, que eu jamais vi, que eu não conheço, que não sei quantos anos tem, se é moço ou velho, mas a quem fico devendo favor que jamais poderei pagar. É que esse poema ficou sendo o meu companheiro de todas as noites, das horas de cansaço, do intervalo das leituras, quando enjoava das teclas da máquina de escrever, quando o silêncio e a solidão me assaltavam com vontade mesmo de me destruir. (...) E não sei porque, na distante solidão de Fernando de Noronha, fiquei pensando que esse poema poderia ser o hino oficial da luta pela libertação econômica nacional. Tem tudo para isso: emoção, lucidez, sentimento, ritmo, objetivo, a vida vibrando em cada uma de suas frases. (...) Marcus Accioly, poeta genial que eu não conheço, eu te saúdo e te agradeço pelo poema que tanta companhia me fez em Fernando de Noronha.
Vista do porto de Fernando de Noronha
Trecho do livro Recordações de um Desterrado em Fernando de Noronha – Editora Tribuna da Imprensa, 1967
Íxion. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1978. Ó(de)Itabira. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1980. Prêmio Luiza Cláudio de Souza/80. Pen Club do Brasil Rio de Janeiro. Guriatã: um cordel para menino. Rio de Janeiro: Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, FNLIJ. Rio de Janeiro: Brasil América, 1980. Prêmio Fernando Chinaglia/79 Rio de Janeiro Ano Internacional da criança, e Láurea Altamente Recomendável para o Jovem/80.. 2a) ed. São Paulo: Melhoramentos, 1987. Narciso. Rio de Janeiro: Francisco Alves/ Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1984.
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A mais completa
Ivo
Traduzir ou não traduzir? Há os que afirmam que nada é traduzível. E os que defendem ser a tradução uma reescrita de um momento estilístico numa língua, perfeitamente passível de encontrar sua forma equivalente em outro idioma, apesar das imensas dificuldades da tarefa. Ivo Barroso, poeta e tradutor de Shakespeare, Rimbaud, T.S. Eliot, aborda tais impasses e revela os fascinantes desafios do ofício 40 Continente Multicultural
Inglês, francês e italiano. Dessas línguas você vem traduzindo alguns dos autores mais destacados. É possível tanta versatilidade e domínio de linguagens? Ninguém se torna poeta ou tradutor de um dia para o outro. É preciso uma longa ascese de dedicação e estudos, e, creio mesmo, um certo jeito para a coisa, algo que não se aprende nos livros, mas que habita, como um sexto sentido, o nosso interior. Uma série de circunstâncias felizes permitiram, no meu caso, o convívio direto com algumas línguas estrangeiras, o que facilitou bastante meu trabalho, mas sou dos primeiros a afirmar que o tradutor não tem necessariamente que falar as línguas que traduz. Deve, sim, conhecer em profundidade a estrutura delas, domar-lhes a semântica, aprender a identificar seus truques e peculiaridades. Há inúmeros exemplos de excelentes tradutores que eram incapazes de se exprimir em outras línguas. Na verdade, o grande instrumento do tradutor é o seu próprio idioma, que ele deverá dominar a ponto de saber adequá-lo aos vários registros vocabulares e fraseológicos dos textos que traduz. Requer-se ainda uma boa formação humanística que lhe permita situar-se por dentro dos assuntos versados. É claro que há mais coisas: a questão do estilo, por exemplo. Mas a resposta ficaria muito longa.
tradução
Barroso
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Quando, como e por que você decidiu tornar-sse tradutor? Há sempre alguém que nos ajudou de uma forma ou de outra, voluntária ou involuntariamente. O gosto pela poesia, que em mim nasceu muito cedo, creio que me foi despertado por um tio, autodidata, que me ensinou a metrificar e me dava livros de poesia para ler. Quando peguei no primeiro livro em língua estrangeira (em espanhol), eu mal entrava no ginásio, mas senti a imediata compulsão de traduzi-lo. Lia-o em voz alta sem saber ainda como se pronunciavam as palavras e cometia os mais absurdos erros de transposição. Mais tarde, já no ginásio, comecei a estudar francês e inglês e cismei, na minha presunção, de traduzir Shakespeare e Baudelaire. Copiava livros nas bibliotecas e levava os textos para casa, onde, catando as palavras no dicionário, produzia verdadeiros monstros literários. Das várias tentativas que fiz nessa época para traduzir um livro, só uma chegou a termo, Le Retour de l´Enfant Prodigue, de André Gide, texto que me tocara de tal forma a ponto de ser para mim impositivo traduzi-lo. Mas havia trechos que me enchiam de perplexidade. Certa vez li que o Otto Maria Carpeaux não deixava carta sem resposta e resolvi escrever-lhe sobre as dúvidas que o texto de Gide me suscitava. Carpeaux cumpriu a promessa e fiquei sabendo que determinada palavra era um expletivo estilístico, que outra entrava como reforço da negação, que outra ainda tinha um sentido que escapava aos dicionários etc. Enfim, aprendi que uma língua era uma coisa viva, que cada autor tinha a sua maneira de escrever, o seu estilo, absolutamente imprescindível de se conservar na tradução. Mais tarde, na universidade, cursando neolatinas, tive o incentivo de meus professores José Carlos Lisboa e Luce Ciancio a que continuasse no estudo de línguas e no exercício de traduções que então fazia como deveres de classe. 42 Continente Multicultural
Foi com a tradução de um soneto de Rilke que entrei para a redação do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, onde pontificavam Mário Faustino, Reynaldo Jardim e Ferreira Gullar, com os quais muito aprendi. Pouco depois, trabalhei em enciclopédias com Antônio Houaiss e Carlos Lacerda, pertenci ao grupo inicial da revista Senhor, onde encontrei o Paulo Francis, que concretamente me encaminhou para o metier incumbindo-me de traduzir as novelas e contos estrangeiros que apareciam na revista. De todas essas pessoas recebi alguma ajuda que contribuiu para a minha formação, para que eu me conscientizasse de que a tradução é um terreno minado, cheio de armadilhas, e que fatalmente cairemos em algumas delas antes de podermos caminhar com segurança. Lembro-me que, numa tradução de verbetes para uma enciclopédia judaica em que colaborei, traduzi por engano a palavra cloak (casacão) como se fosse clock (relógio), resultando daí um texto hilário. Vendo meu embaraço diante do engano, Dr. Elias Davidovitch, tradutor das obras de Freud e Zweig, me disse: “Podemos escrever um livro com os escorregões a que todos nós, tradutores, estamos sujeitos. Um dia você contará este caso a alguém, sorrindo, mas certo também de estar passando adiante uma advertência e um exemplo”. A maioria dos tradutores tem uma espécie de teoria, ou pelo menos os ingredientes do bom traduzir. Senão a receita, pelo menos, quais as dicas e os truques que você mais utiliza no seu ofício de tradutor? Considero-me um tradutor profissional altamente diletante. Não posso negar que as traduções em certas oportunidades me renderam alguma coisa, embora seja praticamente impossível, entre nós, viver só de traduzir. Mas sempre tive o prazer de trabalhar sobre textos que admirava, indicados
por mim aos editores, como o Demian, de Her- que o nosso gue, que contribui assim para diluir o mann Hesse, por exemplo, que constituiu um divi- impacto verbal do vocábulo. Assim sendo, uma sor de águas em minha vida. Esse desligamento do tradução seria sempre uma traição por não consefator econômico ou da urgência de entrega dos tra- guir corresponder na íntegra aos valores do origibalhos me permitia um mergulho maior nas obras nal. Já no segundo argumento tem-se que toda trado autor, o cotejo com outras traduções, a pesquisa dução é uma tentativa de reescrita de um momene consulta sobre qualquer palavra ou frase que to estilístico ocorrido originalmente em outra línescapasse à minha interpretação imediata. Meu gua, passível portanto de encontrar sua forma ou método consistia em colocar-me na posição de uma forma equivalente ou aproximada no idioma leitor privilegiado capaz de perceber os recursos do tradutor. Sob essa óptica, textos de extrema difiestilísticos de cada autor, sem deixar passar nenhu- culdade, como o Ulisses, de Joyce, por exemplo, são ma palavra, referência ou citação que não fosse perfeitamente traduzíveis, porque o bom tradutor absolutamente clara para mim. O que sempre conseguirá sempre uma equivalência capaz de rebusquei numa tradução foi transmitir ao leitor produzir em seu idioma a estrutura e os efeitos estibrasileiro, além obviamente do significado do lísticos do original. Os livros de Guimarães Rosa, texto, também a maneira, a forma como tal signifi- criador de uma linguagem toda sua, que transcado foi expresso, valendo-me para isso dos corres- cende o linguajar habitual, que se sobrepõe mesmo à nossa própria língua portuguesa, como quase forpondentes recursos estilísticos em português. Não me sinto capacitado a dizer como se mando um dialeto, encontraram em seu tradutor alemão um fiel intérdeve traduzir ou o que prete, capaz de recriar é necessário para se traAconselho aos jovens em sua língua a linduzir bem. Claro que poetas que poetem, que guagem artificial, inos bons livros de refefaçam suas imbecilidades, ventiva e inovadora de rência (enciclopédias, dicionários, falsos amique incidam em todos os Rosa. Mas quando se fala habitualmente em gos etc) são ferramentas de trabalho sem as equívocos, pois pode estar traição tradutória, lemquais não se pode opeaí a linguagem do futuro brando o surrado provérbio italiano Tradutrar. Os livros sobre teoria da tradução não irão acrescentar muito à habili- tore, traditore (nascido talvez da facilidade do trodade ou pendor de quem se dedica a essa tarefa, cadilho), o que se quer assinalar são as “mancadas” mas há um livro que li há muitos anos, hoje certa- que os tradutores cometem em seu trabalho. Houmente esgotado, que me infundiu um profundo ve uma época em que o erudito poliglota Agenor respeito pelos textos que traduzia: A Arte de Tradu- Soares de Moura fazia semanalmente no Diário de zir, de Brenno Silveira, editado pela Melhoramen- Notícias, com serena isenção, a crítica de traduções. tos. Outros manuais de conscientização tradutória Creio que foi a partir dessa época que se passou a são os livros do saudoso professor Paulo Rónai, ter entre nós uma consciência do dever do tradutor, que os leitores passaram a valorizar aqueles profisque considero imprescindíveis. sionais eficientes que eram até então desconhecidos Como e por que tradutor é e não é traidor? e anônimos. O problema da tradução está colocado em Além de tradutor, ou melhor, acima da tratermos antagônicos: ou nada é traduzível ou se pode traduzir tudo. Segundo o primeiro argumento, dução que você faz, há o poeta que você é. Como mesmo de uma língua muito próxima da nossa co- conciliar a sua própria voz com as tantas vozes que mo o espanhol, a tradução perfeita é impossível: você verte para o português? Confesso que a tradução de obras de gransangre, por exemplo, não seria traduzível por sangue, pois a palavra espanhola tem um background de valor literário acabou por desenvolver meu senemocional que transcende sua correspondente por- so crítico ao ponto de inibir minha própria produtuguesa. Além disso, a sílaba gre é mais agressiva ção literária. Até hoje só publiquei, de mim mesContinente Multicultural 43
O e-book tem futuro: as novas gerações, acostumadas à técnica, ao apertar de botões, ao clicar e deletar, irão curtir o livro eletrônico, assim como as outras gerações curtiram o livro de papel. Não vejo conflito entre os dois, ambos caminharão juntos, supletivamente mo, dois livrinhos de versos, ambos editados em Portugal, onde morei por dez anos; e, mais recentemente, um ensaio, O Corvo e suas traduções, que saiu pela Lacerda Editores. Meus poemas reunidos estavam envelhecendo na gaveta e só agora decidi publicá-los juntamente com os mais novos. Na adolescência, fui um poeta prolífico; com o tempo tornei-me bissexto. Mas espero publicar brevemente a antologia para não passar afinal como poeta póstumo. É curioso notar que, embora eu tenha convivido durante largos anos com a poesia e a prosa de vários escritores de grande poder de influência, como Rimbaud por exemplo, não encontro vestígios nem da temática nem da estilística de nenhum deles em meus trabalhos originais. Parece que o eu-poeta e o eu-tradutor viveram em mim vidas independentes embora paralelas. Dá pra viver só de tradução no Brasil? Suponho que haja um reduzido número de pessoas que possam viver exclusivamente de traduzir. Não se pode falar ainda, entre nós, de uma profissão organizada e rentável, embora haja órgãos que estejam procurando disciplinar a atividade, como o Sinatra (Sindicato Nacional de Tradutores – Rua da Quitanda, 194 – salas 1206/7 – tel 2531616, no Rio, com site na Internet www.sintra.ong.org) e a Abrates (Associação Brasileira de Tradutores – mesmo endereço e telefone, e-mail abrates@sintra.ong.org) que estão procurando fixar um sistema de credenciamento a nível nacional mediante concurso a que são submetidos os seus associados. A televisão abriu de repente um fabuloso mercado para essa atividade: são centenas de filmes, documentários, entrevistas, programas seriados, que têm de ser legendados ou dublados todos os dias. Há várias empresas que contratam tradutores para formar suas equipes. O mal é que, ao abrir esse mercado, espetacularmente amplo, elas 44 Continente Multicultural
acabaram por transformar a atividade num bico passível de ser desempenhado por qualquer um que tenha um rudimentar conhecimento lingüístico aliado a uma deplorável ignorância humanística, sem falar no deprimente manejo de seu próprio idioma. Daí vermos todos os dias, nas legendas e diálogos da televisão, absurdos como o desaparecimento dos verbos transitivos diretos (agora parece que o único pronome disponível é o lhe), a utilização aleatória da crase (à pagar, à todo vapor etc), a referência ao filósofo Plato e às florestas de Burma, sem mencionar os descalabros vocabulares cometidos em nome de uma “atualização” da linguagem, que serve para mascarar a precária formação cultural de seus executores. O pior de tudo é que a mídia atribui ao público um nível cultural cada vez mais baixo para poder justificar a baixeza do produto que ela obtém com seus miseráveis pagamentos. Com isso se deseduca o povo e se permite que um bando de ignorantes se arvorem em mentores da língua. Por sorte, a par desse estímulo à violentação da linguagem promovido pela televisão, alguns editores estão procurando lançar no mercado traduções de qualidade, valorizadas por profissionais de mérito, infelizmente cada vez mais raros, pois as próprias editoras praticam preços nada estimulantes para quem se dedica verdadeiramente a essa tarefa cheia de percalços. Há algum texto ou livro que você considera especialmente difícil ou impossível de traduzir? Acho que foi Vida, modo de usar, de Georges Perec, livro que traz o sintomático subtítulo de Romances, no plural. Trata-se de um verdadeiro exhibit estilístico, em que o autor navega por quase todos os gêneros literários, desde a narrativa clássica até a novela policial, com um número astronômico de referências que se não forem devidamente
decodificadas pelo tradutor podem levá-lo a insanáveis enganos na tradução. O livro tem acrósticos, oxímoros, trocadilhos, citações truncadas, palíndromos e quantos outros palavrões se possa imaginar. Depois de passar por essa selva selvaggia, traduzir O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco, foi quase um passeio, muito embora o referencial cultural seja ali quase asfixiante e requeira boa familiaridade com a chamada literatura esotérica. Em se tratando de poesia, convivi largos anos com Shakespeare e Rimbaud antes de traduzi-los e levei muito tempo durante os trabalhos de tradução, no primeiro para me familiarizar com o vocabulário elisabetano, no segundo para conseguir atingir o pique do incrível moleque de Charleville. Porque Rimbaud é um caso à parte da literatura mundial. Cresce de verso a verso, avança para o Impossível de poema a poema; tem a palavra exata, que ele guardou da província ou que forjou na hora, e suas imagens são sempre ousadas e frenéticas. Traduzi-lo como se fosse um poeta parnasiano qualquer ou mesmo um simbolista avançado, ou, o que é ainda pior, traduzi-lo sem nenhum critério ou conceito formado, sem ter estudado em minúcia a sua dicção, é traí-lo inapelavelmente. Não é à toa que se contam os já milhares de livros (a Biblioteca de Charleville tem 3.817) escritos sobre ele, dos quais só pude ler e adquirir cerca de 150. Muito trabalhosa, pois requeria a substituição de versos de minha própria autoria pelos versos do original quando os mesmos não funcionavam literalmente em português, foi a tradução de Os Gatos, de T. S. Eliot, que fiz com imensa alegria e excitação, estimulado por José Guilherme Merquior, quando ambos morávamos em Londres. Um texto que considero um desafio, embora ultrapassável, é O Corvo, de Poe. Desde que conheci a tradução de Milton Amado achei que seria inútil e mesmo impossível conseguir um resultado melhor que o dele; preferi escrever um livrinho para di-
zer e provar isso. Nunca tentei, mas acho que me sentiria “derrotado” se tentasse traduzir Le Cimetière Marin, de Valéry. É um poema sobre nada, feito talvez para provar que era possível fazerse decassílabos perfeitos apesar da tradição alexandrina da poesia francesa. Cada verso é um estudo de combinações sonoras, de claves, de variações rímicas e rítmicas, culminando por frases de grande impacto, como o “Zenão, cruel Zenão, Zenão de Eléia”, com sua flecha que vibre, vole et qui ne vole pas. Impossível de se obter uma tradução métrica e rimada, e ao mesmo tempo manter a mestria da confecção desses decassílabos. Como você vê hoje a situação da poesia? Os poetas atuais têm mais ou menos oportunidades que os poetas antigos? Admito que a poesia esteja atualmente em alta, contando com inúmeros meios de divulgação além do livro: os suplementos, as revistas, as antologias, as cooperativas de poetas e principalmente a Internet. Essa facilidade de chegar ao público dá ensejo naturalmente a uma enxurrada de subpoesia, de equívocos poéticos de todas as espécies. Mas desse lixo todo sobra sempre alguma coisa capaz de amadurecer e perdurar. E o seu livro, como será? Morei em Portugal dez anos, de 1973 a 83, onde fui editor da revista Seleções do Reader’s Digest e subgerente da agência local do Banco do Brasil. Em 1980 escrevi um longo poema intitulado Papel & Chão, uma espécie de réplica moderna ao Babel & Sião, de Camões, cujo quarto centenário da morte então se comemorava. Juntei os meus inéditos a ele e publiquei Nau dos Náufragos, no ano seguinte, pela Editora Minerva, de Lisboa, numa tiragem de apenas 500 exemplares para distribuir entre os meus amigos portugueses e brasileiros. O título do livro sugeria que os poemas ali reunidos eram os salvados de uma seleção rigorosa que fiz a tudo o que havia escrito até então. Durante os cinco últimos anos que morei em Lisboa, residi no Palácio Fronteira, em São Domingos de Benfica, que hoje abriga um centro cultural. O atual marquês de Fronteira, D. Fernando Mascarenhas, é tetraneto da marquesa d’Alorna, a famosa poetisa portuguesa mais conhecida pelo nome árcade de Alcipe. Em meu escritório no palácio havia um quadro repre-
Traduzindo Rimbaud: ele cresce de verso a verso, avança para o Impossível
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QUATRO POEMAS DE IVO BARROSO do livro a sair A CAÇA VIRTUAL E OUTROS POEMAS
MANIFESTO A música sutil das interrupções e dos silêncios o espaço em branco dos poemas os que não saíram nas fotografias vésperas crástinos lusco-fuscos todas as marginalizações inclusive as sociais a solidão a desesperança o asco o tédio o desencanto da vida e o não obstante repúdio à morte
O CÉU DOS VELHOS No céu dos velhos o conforto predomina: algodões de nuvens doces ou salgadas que se desfazem no céu da boca já sem dentes colchões de nimbos que se amoldam à lembrança do corpo nádegas de cúmulos alimentando a nostalgia do sexo Os velhos se espreguiçam nas varandas do céu espiam lá em baixo suas vidas pregressas a memória é curta e não há rostos conhecidos ou as faces se transverberam recortadas contra a luz Mais que em vida o seu tempo desbaratam na inércia e no abandono dos músculos e da mente esperam distraídos ou conformados uma segunda morte que lhes apague para sempre a sensação de absoluta inutilidade.
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PÃO NOSSO Amanhã nosso pão terá pedra - e o comeremos. Ao parti-lo, amanhã, nosso pão será de pedra e o comeremos. Ao se partir em dois, o pão que a nossa fome espera, será pedra, e o comeremos. Pois aceitar é o que estamos fazendo neste dia, pois aceitar é o que viemos fazendo nos dias que antecederam mais um, que é este dia; pois aceitar é o que vamos fazendo sem sentir como quem come a pedra em vez do pão pensando o pão. Partindo-o, partiremos um seixo apenas, um seixo, afinal, que em vez de atirá-lo - comeremos.
VIDA Crianças tagarelam no play-ground uma formiga escala o himalaia de um vaso a espinheira espalha a perplexidade de suas folhas bífidas o mármore da janela espera outro milhão de anos eu escrevo.
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sentando o Conde de Oeyenhausen, marido de Alcipe e pintado por ela. Tudo evocava a sua imagem e durante todo o tempo em que ali morei pensava escrever um poema sobre o palácio, seus fantásticos azulejos, seus jardins, onde havia a estátua de um guerreiro derrubado, a cabeça enterrada na grama e as costas vazadas pelo suporte de ferro que havia em seu interior. Mas só muitos anos depois, já morando em Paris, o poema explodiu em mim, de um momento para outro, e escrevi, quase de um jato, As Quatro Visitações de Alcipe, que foram editadas pela Fundação das Casas de Fronteira e Alorna em 1991. Estes dois livros e mais os poemas que escrevi posteriormente estão sendo reunidos em livro a que denominei A Caça Virtual e outros poemas, que deverá ser publicado ainda este ano, possivelmente pela Imago, do Rio de Janeiro. A publicação está sendo continuamente protelada por mim por achar que o poema título não está de todo realizado e aguardo com paciência a sua conclusão. E virão novas traduções? Considero encerrada a minha carreira de tradutor de poesia com o Diário Póstumo, de Eugênio Montale, que a Record acaba de lançar. Durante muitos anos me preparei para traduzir Ossos de Sépia, mas do projeto só chegaram a bom termo os cinco poemas que incluí na minha antologia de traduções O Torso e o Gato. Não gostaria de encerrar minhas atividades literárias sem ter publicado o terceiro e último volume das Obras Completas de Rimbaud, que reúne a sua correspondência. É bem verdade que sempre me senti realizado fazendo traduções de poesia, e tenho dito que talvez a minha melhor poesia esteja em minha traduções, mas agora é tempo de mostrar as minhas próprias, tanto as mais recentes quanto as bem antigas, al-
guns poemas de amor da juventude que ainda hoje considero válidos. Quais são suas relações com os chamados livros virtuais? Confesso que não sou fã do e-book. Não consigo ler um poema na tela do computador. Deve ser uma idiossincrasia ou saudosismo talvez. Amo o livro de papel, que cheira a tinta, que você agarra na mão, abre e como que mergulha num abismo onde pode haver de tudo. A tela, plana, jamais consegue me dar essa sensação de mergulho, de penetração. O passar de página é a testemunha temporal desse avançar nas profundezas insuspeitadas da leitura. Mas tenho certeza de que o e-book tem um
Lembro-me que, numa tradução de verbetes para uma enciclopédia judaica em que colaborei, traduzi por engano a palavra cloak (casacão) como se fosse clock (relógio), resultando daí um texto hilário
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futuro: as novas gerações, acostumadas à técnica, ao apertar de botões, ao clicar e ao deletar, irão curtir o livro eletrônico assim como as outras gerações curtiram o livro de papel. Mas ambos caminharão juntos, supletivamente, não vejo conflito entre os dois, nem a destruição de qualquer deles. Você teria dito num programa de tevê do Pedro Bial que “poesia é coisa para jovem”. Foi uma tirada humorística ou você realmente pensa assim? Fora do contexto, a frase pode parecer especiosa. Quis dizer que os poetas maduros, por sua experiência literária, sua vivência, a cultura adquirida, a busca de caminhos e a sedimentação final são capazes de produzir grandes obras, mas todas previsíveis: serão, no máximo, a estratificação do que já vinham fazendo. Enquanto o jovem, incul-
Algumas traduções de Ivo Barroso EDITORA RECORD Antologia Poética – O Torso e o Gato (1991) Eugenio Montale – Diário Póstumo (2001) André Malraux – A Condição Humana (1998) Hermann Hesse – O Lobo da Estepe (26ª ED. 2000) – Demian (30ª Ed. 1999) Nikos Kazantzakis – Ascese (1973) Umberto Eco – O Pêndulo de Foucault (1989) TOPBOOKS EDITORA Arthur Rimbaud – Poesia Completa (2ª ed. 1995) – Prosa Poética (1998) Italo Svevo – A Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha (1997) NOVA FRONTEIRA William Shakespeare – 30 sonetos (3ª ed. 1991 – 4ª a sair em maio-2001) André Gide – A Volta do Filho Pródigo (1984)
to, irresponsável, absolutamente virgem em termos de experiência vital e mais ainda de conhecimento literário, mas ingênuo suficientemente para se acreditar um inovador, um prospector, um descobridor de mundos, embora se deslumbre com tudo aquilo que para nós é o déja-vu – esse talvez seja capaz de produzir, por acaso, essa faísca, esse “frêmito novo” com que todos nós sonhamos. A ironia, como vê, encerra alguma coisa de verdade. E aconselho aos jovens poetas que poetem, que façam suas imbecilidades, suas letras de música sem pé nem cabeça, que incidam em todos os inevitáveis equívocos, pois pode estar aí a linguagem do futuro. E o que você aconselha aos poetas de setenta anos? Ginástica.
August Strindberg – Inferno (1989) Italo Svevo – A Consciência de Zeno (1980) – Senilidade (1982) Jane Austen – Razão e Sentimento (2ª Ed. 1996) – Emma (1996) Marguerite Yourcenar – Golpe de Misericórdia (1992) – O Denário do Sonho (1994) – O Tempo, Esse Grande Escultor (1996) COMPANHIA DAS LETRAS Georges Perec – A Vida, Modo de Usar (1991) Italo Calvino – Seis Propostas para o Próximo Milênio (1990) – O Castelo dos Destinos Cruzados (1991) – As Cosmicômicas (1992) – Palomar (1994) EDITORA DELTA Erik-Axel Karfeldt – Poesias (esg.) Romain Rolland – Colas Breugnon (esg.) EDITORIAL NÓRDICA T. S. Eliot – O livro dos Gatos (1991) IMAGO EDITORA André Breton – Nadja (1999) LACERDA EDITORES – O Corvo e suas traduções (2ª ed. 2000) Continente Multicultural 49
ANTOLOGIA
J o s é P o e m a sde Almino A Gávea Pequena
Sôbola Gávea pífias saudades vagam vereda [meninas esparsas algazarras longe dessa sina espaços à sombra do ipê roxo à [beira do abismo ao vezo das saúvas ao abrigo das tolas calçadas das chuvas desabadas [em tépidas paixões não sou de nervos de aço chupam-me a vida [como a um qualquer desço à Gávea pequena. Desço à Gávea enxuta, os olhos verão o perfil da pedra, calada, imensa, o frio lajedo. Calada da noite não me dê ouvido eu falo o que falo porque não consigo falar com os amigos e o chumbo do dia matou minha alma. Boca da noite, não fala comigo, acorda para certas palavras os Inhamuns, o Piancó, os Afogados da Ingazeira, o cimo do seco dentro do mundo sumo deserto d’águas, o andar dos andores, o cantar dos louvores o fanho ranger das alpercatas, cheiro de caminhões. Na copa das árvores roda o ofício reimoso do ócio a língua presa, teu jeito nato. José Almino é sociólogo e escritor, graduado (license e maitrise) pela Faculté des Lettres et Siences Humaines de Nanterre, Université de Paris, França, Master of Arts em Economia pela Vanderbilt University e Ph.D em Sociologia, pela University of Chicago, com a tese The Emergence of Controlled Immigration in France. Durante sete anos foi economic affairs officer do Secretariado da Organização das Nações Unidas (Nova York, EUA). De volta ao Brasil, ocupou, de 1985 a 1989, cargo de Secretário-Geral Adjunto do Ministério de Ciência e Tecnologia e de Secretário de Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social. Integrou a equipe do Laboratório de Nacional de Computação Científica de 50 Continente Multicultural
Prosopopéia
À memória de Jorge Vanderley
Morto é o caminho onde o terral se leva Na alva da manhã dessa terra velhaca Que come o corpo do meu amigo morto E há de comer o meu. A inhaca dos pobres ao sol quente do nordeste, A cor cinza das carnes pobres do nordeste, Uma luz de carne e fogo frio na boca da gente (que é a doce luz dos cajus) Fazem doer o calor do ar. Um vento virá, soprando do mar O oiro fino do mar E o remanso da brisa que alisará o corpo Trará vivas as lembranças do amigo morto, Lembrará o sopro da morte e da morte [o conforto. Há um quê de solene nessa manhã de oiro, Uma saudade de pedra jaz no fundo do poço. Há um madeiro frio que nos ameaça, Pau de dar em doido, um pau d’alho perdido No meio do caminho, No meio do caminho do amigo morto, Que a terra devorou como me devorará.
1985 a 1995, quando passou a dirigir, até 1999, o Centro de Pesquisas da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde atualmente é pesquisador. Enquanto no LNCC, publicou, entre outros artigos, “O uso de contraceptivos no Brasil: uma análise da prevalência da esterilização”, em colaboração com Edgar de Andrade. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 36, nº 3, 1993, p. 419-39; “Alcoolismo e diferenças sociais no Brasil”, em colaboração com Nelson do Valle Silva. Rio de Janeiro, LNCC nº 16/94, 1994; “Esterilização no Brasil: o que revelam os números”. Monitor Público, Rio de Janeiro, nº 2, junho, julho, agosto. p. 15-20, 1995. Desde 1985, ele vem colaborando com artigos, contos e poemas nos prin-
Olinda 2001
Evocação da Avenida Norte
No meu tempo, meu Deus, firmava-se o mundo, no verbo duro, na rotina da paisagem, se é que eu possa ver: o meu tempo, meu Deus, é um tanto vago.
Não tenho pais, nem irmãos, parentes ou amigos: estou só na Avenida Norte. Me encanta a Avenida Norte.
Ou seria uma fera ensimesmada. no seu próprio pêlo submersa, e que sufoca, neste instante, retesada? Fica a cismar sobre o tempo e ninharias e a remoer o que deve e lhe é devido e a sonhar com a vida e o que é velado a invocar esse Deus, na minha boca, e na memória de homem assustado; esse Deus tão inerte e que não serve. No meu tempo, havia uma Estrada dos Remédios e a palavra arrebol me encantava como essa chuva que desaba, enxágua e passa.
Me encanta o seu nome cardinal, a minúscula Assembléia de Deus, o homem cotó, a gente feiinha, a gente feiazinha. Irei para o Arruda, para Beberibe, ou ficarei na Encruzilhada. Estarei sempre na Avenida Norte Eu quero a Avenida Norte, como a mulher [que passa. Para trás os ingleses cobertos de tapuru, na sombra das palmeiras do cemitério [dos ingleses; Abreu e Lima morto e enterrado. Não quero. Não quero: As jaqueiras de Casa Forte, o remanso do rio no Poço da Panela, tampouco. Eu quero a Avenida Norte. Tenho a pedra de Zalagh Mais a argila do Saïs: Breve serei muito menos. Terei a Avenida Norte.
cipais jornais e revistas do país; publicou livros de poesia, De viva voz (Recife, 1985) e Maneira de dizer, indicado para o prêmio Jabuti 1991, Bolsa Vitae de Literatura 1992 (Ed. Brasiliense, S. Paulo, 1991); duas novelas curtas, O motor da luz (Ed. 34, São Paulo, 1994) e O Baixo Gávea, diário de um morador (Ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1996) e, em colaboração com Ana Pessoa, o estudo Meu caro Rui, meu caro Nabuco. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999.José Almino tam-
bém vem colaborando no teatro e no cinema. Para o teatro, ele traduziu Le bourgeois gentilhomme and l'impromptu de Versailles, de Molière, Closer, de Patrick Marber, Who is afraid of Virginia Woolf?, de Edward Albee e Wit, peça de Margaret Edson, e compôs, com Caetano Veloso, a música-tema da peça Lisbela e o prisioneiro, dirigida por Guel Arraes. Para o cinema, ele colaborou na adaptação de Bella Donna, dirigido por Fábio Barreto. – Poesia, ficção, colaboração no teatro; – O Burguês Ridículo: introdução; – Meu caro Rui, meu caro Nabuco; – Uma mulher vestida de cinema ou isso presta pra moça ver?; – Manuel Bandeira & Ribeiro Couto – correspondência dos anos 20; – Jorge Wanderley: O motor da luz e outros motores. Continente Multicultural 51
SABORES PERNAMBUCANOS Colagem: Criação do homem, de Michelangelo: O batismo de Cristo. de El Greco: e Ressurreição, de Piero della Francesca
A Páscoa do Cordeiro de Deus Festa de muitos símbolos, a Páscoa dá à primavera gosto de chocolate, carneiro e bacalhau Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Senhor, protege-me e ampara-me. dá-me que eu me sinta teu. Livra-me de mim Fernando Pessoa (Prece)
C
ada família judia sacrificava um cordeiro, no equinócio da primavera do hemisfério norte, marcando a porta da casa com seu sangue – segundo o Antigo Testamento. À noite se reunia em volta do cordeiro assado. Enquanto, pelas ruas, um anjo exterminador dizimava a população, poupando apenas os ocupantes das casas assinaladas. Era a noite da passagem – em hebraico, Pesach (donde o nome Páscoa). Essa ceia, o “seder”, obedecia a cardápio obrigatório – cordeiro macho, de um ano e sem defeito (“absque macula, masculus, anniculus” – Êxodo, XII, 5), assado inteiro, sem que-
brar os ossos, acompanhado de ervas amargas e pão ázimo. Mais caldo de maçãs, amêndoas, figos e outras frutas cozidas no vinho. Tudo comido de pé, como quem tem pressa. O carneiro bíblico ainda resiste, na Páscoa pernambucana. Hoje misturado a camarão, lagosta e peixes de todos os tipos. Especialmente bacalhau. De preferência no coco, acompanhado de feijão, também de coco. Com bredo – erva só usada nesse período da Semana Santa. E quibebe, purê de jerimum parecido ao de Angola, só que lá acrescido de azeite de dendê e guisado de peixe, algumas vezes substituído o jerimum por batata-doce. Por fim, na sobremesa, bolo de frutas e ovos de chocolate. Em Portugal também come-se carneiro. Além de borrego, carne de boi, pão-de-ló, bolo-rei e amêndoas (confeitadas e coloridas). E mais folar, que pode ser doce ou salgado e ter diferentes formas, dependendo do lugar. No domingo, um pouco de tudo. Menos peixe – porque o jejum da quaresma, segundo a tradição, já era farto deles. Sendo depois, esse jejum, aos poucos, e por razões práticas, se reduzindo à Quarta-feira de Cinzas e à Sexta-feira Santa. A difusão do uso do bacalhau, em Portugal, se deu no tempo das grandes navegações,
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 52 Continente Multicultural
contemporaneamente ao Descobrimento do Brasil. Porque tem sustança, é alimento capaz de resistir aos meses (até três ou quatro) em que navegavam as naus sem ver terra. Entre nós, esteve presente desde as primeiras décadas da colonização portuguesa. Com receitas mais elaboradas a partir de 1808, quando D. João VI, fugindo de Napoleão, instalou no Rio de Janeiro a sede do seu reino. Vem basicamente do mar frio da Noruega. Sendo vendidos, com o nome genérico de bacalhau, quatro peixes – o Saithe, o Ling, o Zarbo e, sobretudo, o Cód – deles, o mais nobre, o mais suculento, o mais largo, o mais alto e, infelizmente, também o mais caro. Símbolos, na Páscoa, não faltam. Vindos de vários países. O coelho vem da antiga Alsácia, representando fecundidade. Enquanto o ovo – então de galinha, trocado entre amigos – remonta à antiga Pérsia, evocando a regeneração da vida ao final do inverno. Tudo com fortes influências na tradição judaica-cristã. Quando Luís VII retornou da segunda Cruzada, em 1176, foi recebido com festa, vinho, mel, doces e ovos coloridos. Mais tarde, no século 19, começou-se a substituir os ovos verdadeiros pelos de chocolate. Chegando ao Brasil ainda mais tarde, por volta de 1920, diretamente de Paris.
No fundo, as mais expressivas tradições da Páscoa são religiosas. Quaresma é período de 40 dias que separa a Quarta-feira de Cinzas do domingo de Páscoa. Repetindo, simbolicamente, os 40 dias do jejum de Cristo e os 40 anos em que, liberto da escravidão no Egito, e guiado por Moisés, vagou no deserto o povo de Deus. É período de penitência, preparação da festa da Páscoa; em que judeus celebram o êxodo à terra prometida, enquanto os cristãos, a ressurreição de Jesus, três dias depois de sua crucificação. No período da Páscoa, mesmo antes de Moisés, já os pastores nômades comemoravam a chegada da primavera. Com celebrações que têm em comum, inclusive, a maneira de festejar – em volta de mesa farta, com comidas cheias de simbolismo e tradição, reunião de família e amigos. O cristianismo recebeu do judaísmo essa maneira de celebrar a Páscoa. O próprio Cristo reuniu à mesa seus apóstolos, na Santa Ceia. E morreu oferecendo-se como o Cordeiro de Deus, aquele que veio para tirar o pecado do mundo e ter piedade de nós.
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
BACALHAU DE COCO ACOMPANHADO DE FEIJÃO DE COCO, QUIBEBE E BREDO Ingredientes: 2 kg de bacalhau 2 cocos ralados Azeite,1 cebola,1 pimentão vermelho, 2 dentes de alho, 3 tomates, cheiro verde Pimenta do reino e sal Batatas cozidas
Preparo: – Na véspera, ponha o bacalhau de molho na geladeira. Troque a água várias vezes. Retire pele e espinhas. Corte em pedaços grandes, enxugue, passe no trigo, frite ligeiramente e reserve. – Prepare o molho de coco: na panela, azeite, cebola, alho, pimentão, tomate e cheiro verde. Refogue ligeiramente. Junte o leite de coco e deixe ferver, mexendo de vez em quando. Retire o cheiro verde, passe no liquidificador, coe e volte ao fogo. – Junte o bacalhau, deixe ferver novamente. Junte as batatas cozidas. – Tempere com pimenta e sal se necessário.
PARA O FEIJÃO DE COCO
PARA O QUIBEBE
1 kg de feijão mulatinho 2 cocos Azeite,cebola, tomate, cheiro-verde, sal e pimenta a gosto
– Refogue no azeite cebola e alho. Junte 1 kg de jerimum descascado e cortado em pedaços. Tempere com sal e pimenta. – Deixe no fogo até que o jerimum esteja bem cozido. Junte o leite de 1 coco puro. Passe no liquidificador e volte para o fogo até ferver. Sirva quente.
Preparo: – Cozinhe o feijão em água e sal, reserve. – Raspe os cocos e passe no liquidificador com 2 xícaras do caldo onde foi cozido o feijão. – Refogue todos os temperos no azeite. Passe o feijão no liquidificador e depois peneire. – Junte o refogado ao creme de feijão, o leite de coco, e leve ao fogo mexendo sempre até engrossar. Tempere com sal e pimenta.
PARA O BREDO
– Retire os talos de 2 molhos de bredo. Lave e escalde. – Faça um refogado com azeite, cebola, tomate e cheiro verde. Junte o bredo e o leite de coco. Deixe ferver. Tempere com sal e pimenta. Se necessário, acrescente 1 colher de chá de trigo.
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A luz do sol cria climas poéticos nas águas do rio, nos casarios, na paisagem, Em meio ao avanço da tecnologia, a permanência de um mundo lento e primitivo 54 Continente Multicultural
O
maior rio nordestino começa na Serra da Canastra, planalto mineiro, mas ganha corpo ao atravessar a Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. E aí que toma as características de um imenso rio-mar, cruzando as terras do sertão. E é aí que - ao lado de poderosas hidrelétricas em Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingo, e ao lado de sofisticados sistemas de irrigação no plantio de vindimas de exportação - permanece intocada a cultura do sertanejo, com sua vida lenta, seus carros de boi, suas
Fotos de Hans von Manteuffel canoas a remos, suas crenças místicas, refletidas no artesanato que esculpe democraticamente carrancas e São Franciscos em madeiras nobres. É um mundo arcaico que se formou na mestiçagem de índios, negros e portugueses, e que se fortaleceu num apurado senso de honra, num profundo amor pela terra e numa total integração com o rio. Este ensaio fotográfico sobre o Rio São Francisco documenta parte desse universo paralelo que, em meio à avalanche globalizante, mantém-se imóvel e intacto, como que cristalizado numa eternidade em suspensão. Continente Multicultural 55
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Nas cidades entre as grutas do sertão e o rio que mais parece um mar, o sertanejo tenta pegar o sol com a mão. Tudo sob a bênção de São Francisco, tema eterno do artesanato local
Hans von Manteuffel nasceu em Walsrode, Alemanha, em 23 de janeiro de 1962. Reside no Recife desde 1990. Trabalhou como fotógrafo autônomo de 1991 a 1997 para a Fundação de Cultura Cidade do Recife, Empetur e agências de publicidade. Foi repórter fotográfico da revista Math Point (SP) por um ano e, desde 1998, trabalha no Jornal do Commercio (Recife). É detentor dos prêmios 1º lugar no Caderno de TurismoJC (1993); 1º lugar no Concurso da Prefeitura de Camaragibe (1995); 1º e 3º lugares no Concurso da Semana da Asa (1995); 3º lugar no Concurso ManausFumtur/Fujifilm (1997); 3º lugar no Prêmio Cidade do Recife de jornalismo (1998); 1º lugar no Prêmio Cidade do Recife de Jornalismo (1999); menção honrosa do Prêmio Sinduscon de jornalismo (1999); 2º lugar no Concurso Recife e sua Gente; 2º lugar e menção honrosa do Prêmio Nordeste 2000; menção honrosa do Prêmio Cristina Tavares (2001). Realizou as exposições individuais: Carnaval de Olinda (Espaço Cultural Fruta Pão, Olinda, 1990); Retratos do momento da vida (Mercado Eufrásio Barbosa, Ofinda, 1991); A cara do Brasil (Shopping Center Recife, 1992); Olimpíadas 92 e Fórmula 1 (Shopping Center Recife, 1992); O homem e o mar (Shopping Center Recife, 1992); Chegada da Seleção Campeã no Recife (Shopping Center Recife, 1994); O Rio São Francisco da nascente à foz (Shopping Tacaruna, 2001).
MARCO ZERO
Aí, mocinho! Minhas aulas de faroeste De quando eu ainda não perguntava por que o bandido teimava em amarrar “o artista” nos trilhos ao invés de apagá-lo
E
ra coisa de brasileiro chamar de matinées (manhãs) as sessões vespertinas e infantis de cinema. Acabaram-se elas e seus filmes de farwest, que incutiram em minha geração a mitologia norte-americana do desbravamento territorial que nossas “Entradas e Bandeiras” não nos deram.
Naquele cinema, as matinées dominicais, além do longa, projetavam um seriado. Como outros meninos da década de 50, eu chegava com antecedência com meus “gibis” para o troca-troca, na calçada do cinema. Pirralhada pobre, raramente podíamos comprar revistas novas. Lá dentro, algazarra e calor intensos, pois eram fechadas as portas laterais. Eu saía com dor de cabeça, mas satisfeito e altivo, com os braços arqueados, como se acabasse
Alberto da Cunha Melo 60 Continente Multicultural
de abater Billy the Kid. Chamávamos de “artista” o mocinho, de “mocinha” a atriz principal, e de “doidinho” aquela figura cômica que não faltava nos westerns B (talvez influência de J. Ford). Que Merquior me perdoe, mas que seria de nós, meninos pobres daquela época, sem tais filmes kitsch, simulacros de arte? Meu artista maior era Durango Kid, com roupa e máscara (lenço) pretas e cavalo branco. Depois vinham Bill Elliott, Gene Autry e Tex Ritter. Quanto a Roy Rogers, humm... muito bordado e muita canção. Os outros mocinhos desapareceram atrás das montanhas. Não víamos detalhes nem perguntávamos por que os bandidos, ao invés de apagar o “artista”, tinham o trabalho de amarrá-lo nos trilhos. Lembro-me de que uma vez Roy Rogers salvou-se porque, assoviando, seu cavalo veio desamarrá-lo com os dentes. Detalhes só aparecem quando começamos a dividir a realidade para analisá-la. Paulo Perdigão, no ensaio Western Clássico (Gênese e Estrutura de Shane) confessou-se tão obcecado pelo filme, que terminou percebendo o reflexo do vidro traseiro de um carro (em 1889), logo na abertura, e foi aos Estados Unidos visitar a locação para constatar que, na verdade, ali passava uma rodovia. Quando me deparo com homens como Perdigão e Fernando Monteiro, dou-me conta da existência de dois tipos de cinéfilos: aquele que pertence ao mundo do cinema, como um iniciado; e o outro, como eu, que tem uma paixão desajeitada e, como toda paixão, acrítica. Cinéfilos de minha linhagem gostam tanto de Luchino Visconti quanto de John Woo. Mas, meu caso de amor é mesmo com o western. Paixão infantil, inacabada no ancião, e agora reacendida pelo meu amigo e cineasta Fernando Monteiro, que a vida inteira me falou sobre o que considera o único épico dos tempos modernos. Lá um dia, Fernando resolveu criar uma didática original e começou a emprestar-me suas fitas de westerns, de duas em duas, de três em três, e à medida que eu as assistia, trocávamos impressões. Dessas aulas, ficou-me como lembrança uma lista, elaborada por ele, dos principais westerns. Ela é uma espécie de taxonomia do gênero, e eu a partilho com os leitores desta revista.
Domingo, na matinée Alberto da Cunha Melo
Não, não sou o cowboy solitário, mas aquela nuvem de poeira atravessando a planície: me falta coragem de entrar em Abilene, pedir um trago no balcão e perguntar grosso pelo facínora, bebo aqui mesmo e sinto medo da noite; não tenho revólver com marcas na coronha, nem cavalo ensinado que me desamarra com os dentes, sou o índio sem rosto, que só sabe cair; não sou o cowboy solitário: não salvo Susan da quadrilha de Jesse, nem do mau casamento, mas brigo com os espinhos para espiá-la no banho.
Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
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LIÇÃO DE ARTE Foto de Guita no jardim, em montagem sobre Viva Olinda, aquarela, 1991, 60 x 80 cm
Guita Charifker
A sagração da natureza
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FOTOS FLÁVIO LAMENHA
A aquarelista, desenhista e pintora de Olinda celebra a vida e a natureza, como uma sacerdotisa dos pincéis Ronaldo Correia de Brito
C
onheci Guita Charifker no Atelier Coletivo, na Rua de São Bento, em Olinda, numa tarde em que os artistas do grupo se reuniram para uma matéria com a Imprensa. Baccaro se agitava de um lado para o outro e Samico, como sempre, se mantinha calado. Não lembro o que faziam Luciano Pinheiro e José de Barros. Guita dava acabamento numa gravura em metal, tomando uma cachaça preparada por ela mesma, com rótulo da garrafa desenhado por Zé Cláudio: “Pau Dentro”. Gil Vicente não tinha vindo ao encontro e Eduardo Araújo estava viajando. Havia uma certa euforia nas pessoas, um esforço em manter funcionando o Atelier, que não andava bem das pernas. A senha da amizade com Guita foi dada por Baccaro, quando me apresentou como romeiro de Juazeiro do Norte. Em pouco tempo eu estava adentrado no coração da desenhista, pintora, gravadora e aquarelista. O Ceará tinha a mesma luz do México, a praia de Taiba dera uma série de aquarelas, ela amava os cearenses. Melhor para mim. Três dias depois eu batia a aldrava da porta da casa de Guita, no Amparo, com um ramalhete de flores amarelas, cor do orixá de quem ela se diz filha: Oxum. Nesses anos em que partilhamos alegrias e angústias comuns, como o judeu Spinosa que polia as suas lentes e o seu pensamento de filósofo, demos polimento na nossa amizade, esta que considero a mais elevada das artes. Ao mesmo tempo iniciei-me como estudioso e apreciador do desenho e da aquarela de Guita, impressionado com a independência da sua criação, com o seu modo de ver o mundo e a natureza que tanto ama. Guita prometeu-me dar a entrevista que nunca havia dado a ninguém. Não sei se é esta. É bom que o artista nunca se desfaça dos seus mistérios. Que esteja sempre por revelar-se. Surpreendente a cada criação, como na arte de Guita, onde os mesmos símbolos se repetem originais, como o sol que nasce diferente todos os dias. É falando dessa vontade de criar, que ela principia a sua conversa comigo. Continente Multicultural 65
FLÁVIO LAMENHA
Olinda, aquarela, 1982, 50 x 71 cm
Como tudo começou? Quando criança, já gostava de desenhar. Eu devia ter sete anos e estava numa mesa desenhando, quando um primo me olhou e disse: essa menina tem talento. Hoje sei que toda criança tem talento. Quando dou um atelier de aquarela explico que o desenho é como a nossa letra. Para os chineses isto é um fato consagrado. Um “m” é um arabesco. Escrevê-lo é como desenhar um animal, o tronco de uma árvore ou uma flor. Levei muitos anos desenhando sozinha. Um dia, andava pela rua Velha, na Boa Vista, vi uma janela aberta, e através dela pessoas desenhando. Eu tinha dezesseis anos. Se não fosse esse momento, não sei o que teria sido a minha vida. Descobri que aquele era o Atelier da Sociedade de Arte Moderna do Recife, dirigido por Abelardo da Hora, freqüentado por Samico, Zé Cláudio, Wellington Virgolino, Ivonaldo Marins e outros. Fui aceita como aluna e fiquei vários anos. Ali comecei a minha vida e compreendi o que é arte: a troca com outros artistas, a vida coletiva. Você teve excelentes mestres, como Aloísio Magalhães, e foi companheira da melhor geração de artistas plásticos de Pernambuco. O Atelier de Arte Moderna era um mundo só de homens? Não, tinha Celina Lima Verde, Maria de Jesus Costa e eu. Mas ainda éramos minoria. Representava um milagre, naqueles idos de 54, poder freqüentar um atelier onde predominavam homens. Abelardo da Hora era um professor generoso, que percebia o caminho de cada aluno. Meu irmão até desenhava melhor do que eu. Mas desenho é paixão. Eu tinha essa paixão, coisa que ele não tinha. Quando não estava desenhando, eu sen-
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tia saudade. Comecei esculpindo. Amassei muito barro. Quando esculpia e voltava para casa, é como se tivesse deixado uma pessoa esperando por mim no atelier. Retornava no dia seguinte na maior alegria. Ao mesmo tempo que descobria a minha arte, me apaixonei por um rapaz, Júlio Charifker.
Da forma como você lembra é como se houvesse uma incompatibilidade entre amar um homem e gostar do próprio trabalho. A quem você estava mais apegada? Não dava pra saber. Aos dois. Mais adiante, ao meu trabalho. Porém, muito mais adiante. Depois de três anos de namoro, Julio Charifker me pediu em casamento. Pensei: se tenho de ser uma artista medíocre, é melhor casar. Eu tinha muita vontade de ter filhos. Casamos em 1957 e um ano depois nasceu minha filha Rosali e dois anos depois o meu filho Saulo. Um dia, quando me penteava diante de um espelho, me perguntei: o que estou fazendo da minha vida? Eu devo fazer alguma coisa além de cuidar de filhos e casa. Voltei a ter aulas com Abelardo da Hora, dessa vez na Associação Cristã Feminina. Pintava a óleo, principalmente figuras. Improvisei um atelier para mim, na garagem da minha casa, na rua do Sossego. Dividia o espaço com a lavadeira. Enquanto ela passava roupa, dava opiniões sobre os meus quadros. Em 67, fiz minha primeira viagem à Europa e a Israel. Meu marido não quis me acompanhar e eu viajei sozinha. Cheguei em Roma à noite e de manhã cedo fui à Capela Sistina. Quando me vi no interior da Capela fiquei tão emocionada que botei pra chorar. Vendo a produção italiana, senti vergonha do que fizera e percebi quanto faltava para eu ser artista. O escritor português, Miguel Torga, teve essa mesma sensação de pequenez diante da grandeza da arte italiana. Enquanto me sentia perplexa no meio de tanta maravilha, vi uma vitrinezinha com desenhos, uma arte aparentemente modesta no meio de tanta exuberância. Decidi voltar a desenhar. De
Roma fui a Israel. Lá, a primeira coisa que fiz foi comprar o material necessário para o meu trabalho. Visitei o Mar Morto, a Galiléia, desenhando o que via da janela do ônibus. As pessoas me cediam o lugar, o motorista parava a viagem para eu concluir algum detalhe. Nessa viagem em que procurava as minhas origens, redescobri o prazer do desenho.
ADERBAL BRANDÃO / REPRODUÇÃO
Aqui na sua casa, olhando uma de suas mesas de trabalho, verifico que os símbolos de muitas religiões estão presentes, compondo um verdadeiro altar. Fica difícil supor que você é judia. Isto sou. Vivi a minha infância integrada à comunidade judaica. Meus pais vieram da Europa Central por volta de 1914. Primeiro veio o meu pai. Um dia ele foi ao porto do Recife, acompanhando um tio materno, que ia buscar minha avó e minha mãe. Mamãe tinha apenas quinze anos. Quando ele a viu descendo do navio, apaixonou-se por ela. Logo se casaram e nascemos eu e meu irmão Fernando Greiber. A minha família praticava as tradições judaicas e na infância vivi intensamente essas tradições. Hoje, sei que o ecumenismo é a única saída para as intolerâncias religiosas. Deus é um só e é nele que creio. As religiões são meras linguagens para falar de um mesmo Deus. Sou uma pessoa mística, mas não freqüento sinagogas. Nas minhas aquarelas posso me dar à liberdade de pintar
um menorah, um espelho de Oxum ou uma Santa Luzia com os olhinhos na mão. Importa-me apenas o deleite artístico e espiritual. Existe um conto árabe do homem que morava em Bássora e vai a Bagdá atrás de um tesouro que todas as noites ele via em sonho. Ao chegar lá, ele descobre que o tesouro estava escondido no fundo de um poço, no meio de seu jardim. Comigo aconteceu a mesma coisa. O encontro com Israel e as minhas raízes fez que eu me sentisse uma semente bem plantada no Nordeste e me descobrisse uma desenhista. Abandonei os modelos vivos e passei a desenhar de imaginação. Trabalhava dez horas, diariamente. Durante o dia cuidava da família. Às oito da noite, quando os meninos dormiam e o marido ia para a televisão, eu me recolhia no meu novo atelier, até as seis da manhã. Desenhava, lia, ouvia música, a noite inteira. Júlio era muito bom, um homem especial. Cuidava das crianças, levava para a escola, me deixava dormir até as 11 horas. E como é que tudo sendo tão bom, um dia você deixa a casa e vai embora? Porque ser artista é bem mais complicado. Você assume compromissos além do casamento. O casamento é uma vocação e arte é uma vocação, também. Não dá para ter duas vocações. Ou você Taíba, Ceará, detalhe, aquarela, 1988, 0,60 x 1,60 m
FLÁVIO LAMENHA
Viva Olinda, aquarela, 1984, 60 x 80 cm
tem uma, ou outra. Chega uma hora que você tem que escolher. Joseph Campbell fala que os filósofos vivem absortos no pensamento e por isso não casam. Não sabia que isto também acontecia com os pintores. Você não está idealizando o artista? Estava tudo maravilhoso, mas a arte foi mais forte e me chamou. Sou artista até hoje, aos 64 anos, e espero ser até os 80. E não casei nunca mais, porque casamento é uma única vez na vida, não precisa se repetir. Atualmente, quase todas as mulheres pintam. Naquela época poucas eram as mulheres que pintavam e tinham a coragem de assumir as posturas que assumi. Ao me entregarem o Troféu Cultural Cidade do Recife – 2000, é como se tivessem premiado as fantasias de uma menina que um dia sonhou ser artista e conseguiu.
portante viajar, ver o mundo e ser vista, conviver com artistas como Anna Letycia, Scliar, Marília Rodrigues e Roberto Pontual. Um dia voltei e estou aqui na minha terra, de novo. Eu saí com uma pasta de desenhos e uma mala de roupas. Deixei tudo na minha casa, porque deixei os meus filhos. Levava muito sofrimento. Largava minha vida para trás, um mundo que nunca mais seria meu, porque eu escolhera outro mundo. Quando cheguei no Rio de Janeiro, fui recebida de braços abertos pelas pessoas e pelo Cristo Redentor. Fui morar na Urca, um lugar especial como Olinda, onde só moravam artistas. Meu primeiro apartamento foi o atelier de Anna Letycia. Da minha janela eu via o bondinho, subindo e descendo. Com pouco tempo estava integrada ao Rio, participando de oficinas e salões. Nos anos setenta, apesar de vivermos uma ditadura, tínhamos um senso de liberdade e uma grande alegria.
Nas histórias de fadas chega o dia em que o herói deixa a casa e vai à procura do seu destino. Para a gente ser um artista universal tem de conhecer o mundo e voltar. Se não der esta saída fica muito limitado ao regional e isso não é bom. Foi im-
Olhando as suas aquarelas encontramos muitas paisagens e cores. Fico imaginando o momento em que você decidiu largar o desenho em nanquim e experimentar as cores no papel. Onde aconteceu isto?
68 Continente Multicultural
Criar não é um sofrimento para mim, é uma alegria. Há artistas que sofrem para criar e outros que extraem a alegria da criação. Estou no segundo grupo. Nunca me dilacerei. Sofrer, para mim, é não criar. Criar é amar e o amor não é uma enfermidade. Preciso me sentir prenhe de amor para criar Eu não fiquei apenas no Rio. Fui a Portugal, Argentina, França e Alemanha. Fiz exposições pelo mundo inteiro. Vivi em muitos lugares. Fui ao México para uma exposição íbero-americana de desenhos e gravuras e a cor daquele país me deslumbrou de tal maneira que comprei papel, pincéis, uma caixa de aquarelas e tornei-me aquarelista sem precisar fazer nenhum curso. Aqui em Pernambuco nós éramos muito ligados aos artistas mexicanos. Rivera, Orosco e outros pintores faziam parte da nossa formação em arte. Cheguei no México para passar uma semana e terminei passando seis meses. Fiquei morando num sítio, próximo à capital. Lá eu encontrei a poesia e o carinho que procurava. Nunca vou esquecer o casal de camponeses que me acolheu, Dona Ângela e D. Sabino. Eles queriam que eu mandasse buscar os meus filhos no Brasil e ficasse morando com eles. O meu trabalho com aquarela começou no México, naquele sítio. É uma técnica delicada, que não admite erros. Quando se erra, tem-se de rasgar o papel e começar de novo. A pintura a óleo pode ser refeita, corrigida, retocada. A aquarela não. Mas ela tem a vantagem de poder ser praticada em qualquer lugar. Se você viaja, não tem de carregar telas e tinta a óleo. Basta uma caixinha de aquarelas, papel, luz e imaginação. Tento recompor a sua trajetória de artista: o desenho, a pintura a óleo, o desenho, a aquarela... E a gravura, quando começa? Eu desejava praticar a gravura em metal, que na verdade é um desenho em cima de uma chapa de cobre, muito antes de ter começado com a aquarela. Ana Letycia, minha mestra em gravura, dizia: Para que fazer gravura? Com o desenho que você tem, você tem mais é que desenhar. Só que o desenho é uma peça única e eu levava um mês fazendo um trabalho. A gravura tem a grande vantagem de ser um múltiplo. Insisti em aprender a gravar e pratico essa técnica até hoje. Sempre que vou ao Rio, retomo o meu trabalho de gravadora, lá no atelier da minha mestra.
Conversar com você é girar em torno de alguns temas obsessivos, que se repetem sempre: família, casa, cores, luz, amizade... Minha vida tem sido um exercício constante da amizade. Primeiro teve o atelier da Ribeira: Roberto Amorim, que já está no céu; Tavares, que misteriosamente sumiu; João Câmara, José Barbosa, Adão Pinheiro, Ipiranga Filho e eu. O Mercado da Ribeira, naquela época, era apenas um decadente mercado de carne. Nós o transformamos num mercado de arte. Eu dava aulas de desenho, Adão Pinheiro de história da arte... Cada exposição era uma festa, com toda a população jovem de Olinda participando. Um dia resolveram fechar a Ribeira e nós nos transferimos para um atelier menor, chamado 154, na Rua de São Bento. Defendíamos as mesmas idéias, mas com o tempo o grupo foi se dissolvendo. Meu último atelier foi feito no campo, ao ar livre, em mais um desses movimentos surgidos em Olinda, eu diria que uma retomada do gosto pelo paisagismo. Nós nos dividíamos em dois grupos: um com Samico, Célida, Luciano Pinheiro e Gil Vicente. Outro com Zé Cláudio e Eduardo Araújo. Num eu pintava aquarela, noutro pintava a óleo, porque Zé Cláudio achava que eu já tinha gasto papel demais. Viajávamos para Itapissuma, Itamaracá, Ipojuca... Saíamos às sete da manhã e retornávamos às cinco da tarde. Esse grupo terminou formando o Atelier Coletivo. Giuseppe Baccaro ofereceu um espaço na Rua de São Bento, onde ele morava. Eu viajei para o Sítio Santa Clara, no Rio, onde criei uma série de novas aquarelas, e perdi o contato com o grupo. Fiz muitos amigos nas viagens. Em Nova Viçosa, na Bahia, junto de Krajcberg, comecei a apreciar os seres vegetais e a observar a natureza. Nós dois estamos aqui sentados, nesse fim de tarde, olhando esse quintal olindense que mais parece uma floresta tropical. Vez por outra você me aponta uma flor, ou uma folha, ou um passarinho. Imediatamente reconheço as suas aquarelas. Continente Multicultural 69
Sinto essa alegria no seu trabalho, um quase júbilo. Todo o tempo você celebra a vida, como Panorama visto do Atelier de Anna Letycia, Urca, Rio de Janeiro, aquarela, 1990, 60 x 80 cm
uma sacerdotisa. Seus desenhos e aquarelas estão repletos de “amo” e “viva”. Criar não é um sofrimento para mim, é uma alegria. Há artistas que sofrem para criar e outros que extraem a alegria da criação. Estou no segundo grupo. Nunca me dilacerei. Sofrer, para mim, é não criar. Criar é amar e o amor não é uma enfermidade. Preciso me sentir prenhe de amor para criar. Amor é um estado de graça. Não falo do amor de um homem por uma mulher. Falo de um sentimento mais pleno e universal. Ágape é o nome dado a esse amor, no Banquete de Platão. Sim, ágape. O ato de criação é a plenitude desse amor. Sigo a minha intuição, o meu instinto e sem nenhuma pretensão intelectual, faço. Deixome guiar pela emoção, pela música e principalmente pela luz. Não há sofrimento na minha criação. Nada de sofrimento. Eu não me violento para criar. Só crio quando estou em paz comigo. Quando não estou em paz faço outras coisas: arrumo casa, cuido de plantas, lavo louça... Quando a minha plenitude retorna, eu crio. Sempre com muito prazer e alegria. A arte não precisa ser maldita ou danada para ser uma grande arte. A arte é divina. Amo! Viva a arte! Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico ADERBAL BRANDÃO / REPRODUÇÃO
Aqui, tenho o que mais necessito para a minha criação: tranqüilidade, modelos, muita luz e cor. Sem luz não existe aquarela. Tenho água, tintas e papel de boa qualidade. A solidão não me assusta. Nunca me sinto só, pois tenho os meus sonhos, fantasias e fantasmas. Amo a solidão e o silêncio. Mas essa solidão é relativa, pois estou sempre cercada de seres vivos, sobretudo os vegetais, os seres que mais compreendo e amo. Eles são o meu modelo. Observo a natureza e crio. Mas a minha aquarela é bem diferente de uma aquarela de Margaret Mee, por quem tenho o mais alto respeito. Eu pinto numa perspectiva artística e a ela interessa o registro naturalista, chegar o mais próximo do real. Capto uma sensualidade emanada da própria natureza. Se olho uma árvore vejo homens, mulheres e bichos, nos troncos, nos galhos, nas folhas... Não é mérito meu vê-los, é pura observação. Quem olha a natureza, vê tudo que precisa para criar uma obra de arte. Basta sensibilidade para ver. Apesar dos seres humanos serem mais imperfeitos que os vegetais, eu os amo, pois sou humana. Os vegetais dão sombra, frutos, flores e não cometem atrocidades. Quando misturo figuras humanas com seres vegetais, proponho uma melhora para a nossa espécie. É como se dissesse: olhem os seres vegetais e tentem melhorar.
FLÁVIO LAMENHA
Viva Olinda, aquarela, 1991, 60 x 80 cm
Guita, o papel, a aquarela e a globalização da arte Num tempo em que todas as artes seguem os ditames do mercado global, Guita Charifker escolheu a aquarela, como forma de pagar seu tributo à natureza
O
papel é o suporte de muitos artistas do passado, dos chineses, que o inventaram há 1900 anos atrás, dos egípcios, dos árabes e, por fim, em 1.300, dos europeus. O próprio nome “papyrus”, que recebemos dos latinos e que vem da famosa planta egípcia, se transformou em paper, papier, papel... Sem ele não teria chegado até nós, do século 14 em diante, essa civilização que popularizou a grande literatura do passado, de todas as latitudes, que supriu a História de imagens, que a fez visível. Albrecht Dürer foi extraordinário na aquarela, cujo suporte é o branco do próprio papel, sendo a única técnica que não usa essa cor de pigmento. Encantado Giuseppe
por Veneza e com as paisagens alpinas do Trentino, Dürer achava que só a aquarela podia transmitir suas luminosidades e transparências, enriquecendo o mundo com obras como “Vista de Arco”, de 1491, e “Riacho na Floresta” de 1496. Guita Charifker escolheu a aquarela, entre as outras artes que sabe, por razões que tento compreender. Talvez como forma de pagar seu tributo à natureza, ou por morar em Olinda, onde cultiva um fascinante quintal. Com a mesma precisão que os artistas citados, ela transmite a beleza tropical, a olindense em primeiro lugar, transferindo para o papel, com aguadas e traços seguros, “alla prima”, as inimitáveis transparências dos nossos últimos quintais. Digo “alla prima” para lembrar que entre as artes, apenas a aquarela e alBaccaro gum tipo de gravura, como a Continente Multicultural 71
FLÁVIO LAMENHA
Viva a vida, viva Santa Luzia, aquarela, 1997, 60 x 80 cm
“ponta seca”, possui Guita continua inabalável na sua com seus Pollocks, essa qualidade dos gesMotherwells, Rothkos, utopia de nos mostrar tos definitivos e irrepeGottliebs, Klines, Too cajueiro, a mangueira, tíveis. Aqui, quem sabe beys, Rauschenbergs, faz; quem não sabe re- o coqueiro, como criaturas que Warhols, et simília. Tocorre a outras técnicas dos eles produtos de são, com seus amores, que permitam arreexportação, de linha suas flores, seus filhos, sua alma pendimentos, desfaUSA, com sede em zendo ou encobrindo Nova York, cidade com erros. E é justamente esse milagre do gesto único trezentas galerias, para conquistar o mundo com que encantou Dürer e apaixonou Guita a vida in- suas imagens de vanguarda, a peso de dólar, floriteira, assim como um Rembrandt, com suas admi- da ramificação da economia global. ráveis “pontas secas”. Foi assim que todas as artes se transformaOs artistas ingleses foram os que mais se ram em artimanhas, para o olhar imbecilizado dos dedicaram à aquarela, da segunda metade do sécu- moradores das metrópoles, Babilônias de hoje, colo 18 à primeira do século 19. mo São Paulo. As receitas mais “à la mode” são Também nos Estados Unidos, talvez por in- yankees, como falamos, mas não faltam molhos fluência inglesa, essa arte teve cultores como Ea- franceses “faisandès” à la Mathieu; ou, mais longe, kins e Wislow Homer, na segunda metade do 800, dietas e geometrias de 1º grau à la Mondrian. Prae mais tarde, na primeira metade do 900, artistas tos caríssimos, se considerarmos a pobreza dos incomo Hopper e Bem Shahn. O que veio depois gredientes, mas feitos valiosos pela semelhança foram ondas de abstratos, expressionistas e com a culinária do Primeiro Mundo, para a decogeométricos, pop-artists (popular? que absurdo!) etc ração maravilha de livings do Segundo ou Terceiro. Yes, temos nós também nossas versões pop, super, maxi, minimals, pospós... Temos até nossas instalações! Yes!!! Diante desse quadro pessimista, o que poderíamos dizer a Guita é que não é mais tempo de brincar com papel, e menos ainda com aquarela. Isso é coisa de passado remoto. Hoje, a obra de arte não é mais o objeto indefinível, de que tratam os cada vez mais raros manuais de estética, disciplina em desuso, especialmente como disciplina. Mas isso não impede que a farsa da sensibilidade das elites continue. Aprisionaram nos livings dos capitalistas os operários de Portinari, as figuras do povo e as paisagens de Guignard e Pancetti, esqueceram Goeldi e Grassmann (quem vai querer papel?). Agora, os decoradores têm que encontrar espaço para instalações e correlatos, sob pena de serem excluídos dos meios de comunicação. Enquanto isso, Guita continua inabalável na sua utopia de nos mostrar o cajueiro, a mangueira, o coqueiro, como criaturas que são, com seus amores, suas flores, seus filhos, sua alma... Insiste em mostrar a nossos olhos distraídos de freqüentadores de shoppings o verde sumo sangue que atravessa as artérias das folhas, a oitava maravilha dos frutos, a arquitetura da planta, a aquarela sublime da flor...
Alemanha. Hoje, a perseguição é outra: artistas desse naipe não venderiam obra nenhuma. É evidente que esse caos visual não poderia se sustentar sem uma categoria própria de marchands de vanguarda, os internacionais na frente, com sede em Londres, Paris e Nova York, cuja influência em bienais e salões nunca interessou a ninguém estudar. Atrás da imposição e supervalorização de nomes novos nesse labirinto, existem interesses econômicos, os mesmo do café, da soja, da carne de boi. Tudo isso é também uma resposta a quem se pergunta o porquê do espaço exagerado que essa tal arte ocupa nos meios de comunicação; espaço negado a fenômenos como imperialismo econômico, servidão humana e fome. REPRODUÇÃO
Parece claro que essa desfiguração universal, seja arquitetônica, seja das artes chamadas plásticas, nada tem de casual: é apenas o efeito da globalização, que por sua vez é o último e mais poderoso dos imperialismos ao qual nada, absolutamente, pode escapar. Falar de liberdade da Arte, hoje, é ingenuidade. A perda da origem, o corte de qualquer raiz é a primeira condição de sobrevivência. Querem uma prova? Levemos uma turma de críticos de arte a um dos salões e bienais que acontecem às centenas mundo afora, sem esquecer de antes misturar todas as obras, apagando os nomes dos autores e a procedência. Nenhum deles vai ser capaz de adivinhar se a obra chegou de Bruxelas, Sidney, Leningrado, Milão, Calcutá, Londres, Nova York, São Paulo ou, porque não?, Recife. De qual terra brotaram esses artistas? Qual sua forma, sua luz, sua natureza? Ninguém vai saber. No entanto, tudo o que sabemos das civilizações do homem nos foi transmitido pelas formas próprias e insubstituíveis da arte. E isso foi verdade até ontem, até o começo do século que acabou de passar, quando ainda havia essa verdade “natural” da arte, apesar das revoluções estéticas, deixando transparecer dentro e através dela a terra de onde nascia, em cores, luzes e formas. Hoje a globalização reduz a terra que o homem habita a milhares de Torres de Babel, todas iguais, como iguais são as obras que chama de arte. Nossa arte deve ser defendida tanto como a nossa língua (pobre língua, também), que Carlos Drummond chamava de “minha pátria”. Qualquer um que queira salvar algo de original na Terra se põe contra esse fenômeno geral de globalização, mas parece-me que nada faz contra essa estúpida homogeneização da Arte. A pergunta: o que define uma arte brasileira de hoje?, não encontra resposta honesta. Fora poucos artistas que não se rendem, entre os quais destaca-se Guita Charifker, o resto é composto de brincalhões que só criam títulos pomposos. Criar uma representação da vida, com suas belezas e misérias, sublimada pela arte, é para poucos eleitos. Uma arte que entre a fundo na realidade dramática deste País, não interessa ao sistema que criou, durante 500 anos, todas suas misérias. Hoje, um Goya, um Daumier, até um Ensor ou um Grosz, seriam incômodos demais. Grosz, perseguido pelos nazistas, teve que fugir da
E Guita? Guita Charifker está nisso como antítese de tudo que não presta na arte de hoje. A natureza com a qual só pássaros e borboletas criaram uma aliança sagrada, é a mesma que Guita escolheu para a vida e para a arte. Tem isso a ver com suas longínquas origens? Ou com o fato dela ter passado sua infância em Carpina, uma cidade que ainda hoje se conserva agreste, e que deveria ser bem mais bela há cinqüenta anos atrás? Ou com sua escolha de Olinda, como moradia e paisagem? Tenho saudade do tempo em que eu pintava na frente dessa maravilha que é o quintal de Guita e ela na frente do meu, quando ainda era vivo o Atelier Coletivo.
Ouro Preto, desenho, 1978, 60 x 80 cm
Giuseppe Baccaro é pintor e colecionador de arte
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ADERBAL BRANDÃO / REPRODUÇÃO
Guita: a arte-celebração
Guita dança em seu atelier
À
s vésperas do Natal de 1984, Guita mos. O que aconteceu com o Brasil? O que acontefazia uma exposição na galeria Fu- ceu com a arte de Guita? Estas perguntas são inseturo 25, de Tereza Dourado, no Re- paráveis. Não só porque a arte de Guita é uma arte cife. Convidado para fazer a apre- enraizada, literalmente plena de raízes. Mas tamsentação no catálogo, escrevi um bém porque o que confere significado a uma obra texto com o título Guita Charifker: a de arte é sobretudo suas relações com o que lhe capacidade de ver o Brasil. Naque- cerca. Com seu tempo, com sua geração, com sua les dias o Brasil fervia, como se diz em Pernam- cidade, com seu público, com seu povo, com seu buco. O Brasil ia às ruas, se impacientara com os país, com seu mundo. Escrevi, então, o seguinte anos de autoritarismo e se preparava para eleger (será ainda hoje pertinente?): Tancredo Neves. Que“Rara é a mosríamos reconstruir e ins- A arte não sobrevive apenas do tra sobre a arte brasititucionalizar a democrade hoje (1984), monumental, do excepcional e leira cia, elaborar a nova em que não se percedo dilacerante. Ao contrário, ba quase de imediato Constituição. Estávamos vive e convive no cotidiano, no a dominância da urnos criativos anos de redescobrimento do Brasil. banização conturbacomum e no ameno Queríamos voltar a resda, da tecnicação pospirar. Defendi, então, no catálogo, uma tese. A tese sessiva e do mimetismo dependente. É obvio: estes de que o Brasil precisava reencontrar o Brasil. O padrões são adequados (feliz ou infelizmente, pouBrasil precisava rever, ou melhor, ver o Brasil. E as co importa) a grande número de brasileiros. São reaquarelas de Guita eram uma lição de como ver um presentativos da cultura artística, sobretudo das Brasil real, possível e livre. classes médias dos grandes centros urbanos – não De lá para cá passaram-se mais de 15 anos. há como negar –, das grandes cidades do Centro O Brasil, a política, a econoSul a definirem a arte e a nãomia, a arte, todos nós muda- Joaquim Arruda Falcão arte nacional. Mas há que se 74 Continente Multicultural
O Brasil autoritariamente imaginado de fábricas sem empregos, de praças sem povo, de eleitores sem votos e de monumentos sem cotidiano não deu certo. Precisamos reencontrar o Brasil. A arte de Guita ajuda e recomeça. Por motivo simples. O pressuposto do reencontro é nossa capacidade de ver. De ver diretamente. O conjunto destas aquarelas é um magnífico exemplo da capacidade criadora de Guita ver Casa Forte, Olinda, Pernambuco e Brasil. “Ver, realmente visto.” Busquei, especificamente na adequação entre as aquarelas e o Brasil, a lição que Guita nos ensinava: “A partir daí, surge adequação fundamental entre Guita, suas aquarelas e sua cidade: Olinda. Pois a importância patrimonial de Olinda não está apenas em seu casario com seus telhados, em sua localização terra-mar tropical. Em seu traçado urbano secular. Ou mesmo em seus quintais, exuberantemente recônditos. Em Olinda, seus moradores e visitados partilham de privilégio vital: o privilégio de ver o Brasil de ontem e de amanhã. Nada necessariamente mais moderno do que esta capacidade de Olinda acordar em cada um a necessidade de um futuro Brasil: pleno, amplo e irrestrito”. A arte de Guita resulta deste privilégio permanente. É ecologicamente olindense. Nem por isto menos nacional ou até mesmo menos universal. Pois o universal não é o igual. Como dizia Aloísio Magalhães: “É preciso ter-se o cuidado de não confundir o que é universal com o apenas igual: o universal é o que emerge do regional por qualidades que transcendem o uso específico de uma cultura”. Suas árvores, suas folhagens, seus caules e seus frutos existem. Estão aqui ao lado. Revelam uma Olinda-Brasil inesperadamente palpável e viável. Mas revelam também, numa competência técnica de nível internacional, mensagens e concepções que transcendem o regional. Como, por exemplo, a concepção de que a arte não sobrevive apenas do monumental, do excepcional e do dilacerante. Ao contrário, vive e convive no cotidiano, no comum e no ameno. Vive na anônima folhagem revelada. Revelada por quem soube ver: Guita. Ou ainda, a conADERBAL BRANDÃO / REPRODUÇÃO
notar que reduzir a arte brasileira – a arte moderna brasileira – a apenas estes padrões é tomar como todo o que é apenas parte. É ter como representante da maioria o que é apenas experiência da minoria. É, sobretudo, traduzir como adesão silenciada o que seria apenas ausência discriminada. Ser dominante não é ser exclusivo.” Na verdade, o que eu queria dizer era que um conceito moderno, tecnológico, urbano e sulista de arte queria se impor como o único válido, como o conceito exclusivo. Fora dele, inexistiria arte, inexistiria arte moderna. Defendi então uma atitude mais pluralista na arte. Tal como defendi, por anos na Folha de São Paulo, a pluralidade democrática para a política. Buscávamos um Brasil mais solidário com nossos muitos Brasis. Aquele exclusivismo artístico, como de resto qualquer exclusivismo, no fundo nos reduzia e nos empobrecia. Neste contexto, as aquarelas de Guita detinham um fundamental significado transartístico e transcultural, como poderia muito bem ter dito Gilberto Freyre, tão amante dos não-limites, dos trans-significados. Relacionei então o clima político cultural do Brasil com as aquarelas de Guita. “[Devemos,] em vez de reduzir, ampliar o Brasil. Em vez de discriminar, conviver. Em vez de esconder, revelar. Em vez de ausentar, reencontrar. Este caminho, Guita Charifker percorre.” Desde sempre Guita mantém um diálogo intenso com a natureza brasileira. No desenho, na gravura, na lito e na aquarela. Em Nova Viçosa, Alcântara, Rio, Olinda, Brasília ou Vila Velha. Antes com os pássaros, os lagartos e os peixes. Depois com os jasmins, os pés de fruta-pão e os coqueiros. Com a água e com a terra. Hoje com os cajueiros, jaqueiras, mangueiras e bananeiras. Nunca com a natureza monumental ou excepcional. Sempre com a natureza tanto desapercebida quanto cotidiana de nossos quintais. Este permanente encontro de Guita com nossas flora e fauna assume hoje novo significado. É um chamamento a favor da ampliação do Brasil. Do reencontro do Brasil com os brasileiros. Com suas árvores, flores e frutos obscurecidos.
Vila Velha, Itamaracá, óleo sobre tela, 1987, 65 x 85 cm
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Viva Olinda, aquarela, 1991, 60 x 80 cm
cepção de que o novo consiste muita vez na ousadia de preservar o presente. Preservar na inspiração do artista os elementos ecologicamente definidores de sua cultura. E terminava com uma enfática afirmação de política cultural: “A reconstrução do Brasil necessita de uma arte que não se estruture a partir do individualismo possessivo ou do segredo público. Não necessita, porém, daquela arte mecanicista, documental ou fotografista, que dispensa a invenção, a imaginação e a liberdade artística. Invenção, imaginação e liberdade que unem o artista à sua cultura, ao seu povo, ao seu meio ambiente e garante-lhe a identidade profissional. Não. Não se trata disto. Não é esta a proposta de Guita. Sua proposta é mais complexa, sutil e moderna. É a seguinte: nada mais necessário ao Brasil de hoje do que a possibilidade de se imaginar o real, o possível e o livre. Estas mangueiras, estes cajueiros, estas bananeiras... é Guita, artisticamente imaginando um Brasil real, possível e livre. Viva!” De l984 para cá, Guita continuou a incrementar seu diálogo com a natureza. Suas aquarelas ganharam em pluralidade temática, em maturidade técnica, sem perder a sensibilidade de então e de amanhã também. Foi a Buenos Aires e voltou a Olinda. Foi a Portugal e voltou a Olinda. Foi a Gravatá e voltou a Olinda. Foi ao Sítio Santa Clara em Vassouras, e voltou sempre a Olinda. Explorou e adensou paisagens, jardins e quintais. Acrescen-
tando em todas as suas aquarelas, ou em quase todas, um Adão e Eva, a imagem da santa ou do santo, humanos e divinos a celebrar a natureza. Suas cores, como o dia, podem tanto estar mais suaves quanto mais intensas. Mais verdes ou mais amarelas. Mais flores ou mais folhas. Sua luz sempre clara, não há noites em sua arte. E nestes mais de 15 anos a adequação entre a arte de Guita e o Brasil se consolidou. Pois, existe algo mais atual do que a defesa de nossa natureza, como defesa do Brasil? A defesa da natureza como a defesa de nossa identidade física e cultural? De nosso corpo e de nossa alma? No caso da Amazônia, é inclusive a defesa de nosso chão, de nosso território. Neste começo de século onde o mundo já se depara com o fantasma da falta de água no futuro, existe algo mais importante do que defender o planeta? E para defendê-lo, existe algo mais atual do que defender o local? Pintar Olinda para defender o Brasil? Sobretudo neste contexto, onde o global ameaça nos fazer iguais? A arte de Guita nos faz gostar do Brasil. Gostar de nós mesmos. Traz a paz que procuramos. Abre as janelas. Convida a luz. Tem jardim no fim do túnel. É uma arte-celebração. Celebração do Brasil e da vida. Viva!
Joaquim de Arruda Falcão é ensaísta e advogado, vice-presidente da Fundação Roberto Marinho
1936 – Nasce no Recife, no dia 10 de setembro, filha de Salomão Greiber e Rosa Greiber, judeus vindos da Romênia. Recebe o nome de Guiza Greiber. Passa a infância em Carpina e Natal, RN. Os pais morrem muito jovens, deixando-a aos cuidados dos tios. 1953 – Torna-se aluna de Abelardo da Hora, no Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife, tendo por companheiros Gilvan Samico, José Cláudio e outros. 1964 – É uma das criadoras do Ateliê da Ribeira, no antigo Mercado de Escravos de Olinda, ao lado de José Barbosa, João Câmara e Adão Pinheiro. Participa também da fundação da Oficina 154, na mesma cidade. 1966/68 – Idealiza e dirige a Galeria do Teatro Popular do Nordeste (TPN), para o qual cria figurinos e objetos de cenas. 1967 – Viaja para a Europa e Israel. 1970 – Muda-se para o Rio de Janeiro, onde pesquisa gravura em metal, sobretudo o buril. 1974 – Decide morar em Olinda. 1977 – Em companhia de Gilvan Samico, José de Barros, Delano, José Barbosa e outros, trabalha no ateliê de litografia de João Câmara. 1980 – Convidada a participar da Bienal Ibero-Americana de Desenho, reside seis meses no México. Ao retornar ao Brasil, vai para Nova Viçosa trabalhar no atelier de Frans Krajcberg. 1985/92 – Organiza o Atelier Coletivo, em Olinda, trabalhando ao lado de Giuseppe Baccaro, Gilvan Samico, José Cláudio, José de Barros, Gil Vicente, Luciano Pinheiro e Eduardo Araújo. Pintam ao ar livre, nos arredores do Recife e Olinda, e expõem os trabalhos no Brasi1 e no Exterior. 1992 – Passa a pintar regularmente no Sítio Santa Clara, em Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro. 1994 – Dirige durante um mês uma oficina de aquarelas para jovens, na cidade de Guimarães, Portugal, expondo os seus trabalhos no antigo castelo dos Duques de Bragança. 1995 – Identifica uma nova paisagem para as suas aquarelas: o Sítio Vertentes da Serra, em Chã Grande, região agreste de Pernambuco. 1997 – Desde esse ano vem realizando atelier semanal na casa do pintor Luciano Pinheiro. Muitas aquarelas suas mostram Olinda e Recife, olhados através das janelas do amigo. Exposições Individuais 1962/63 – Recife – PE – Desenhos – Galeria de Arte do Recife
ÁLBUM PESOAL / REPRODUÇÃO
Cronologia
1970 – Rio de Janeiro – RJ – Desenhos – Sala Goeldi 1972 – Rio de Janeiro – RJ – Guita Charifker e Pedro Dominguez – Studios Galeria de Artes e Antiguidades 1974 – Recife – PE – Guita Charifker e José de Barros – Galeria Lótus 1981 – Recife – PE – Viva Olinda, Viva o México – Aquarelas – Galeria Futuro 25 1988 – Kassel, Alemanha – Encontro com a pintura brasileira. Paisagens do Brasil. Aquarelas – Galeria M. Kassel. 1991 – Recife – PE e SP – Aquarelas. Galeria Artespaço e Galeria Montessanti- Roesle. 1993 – Buenos Aires – Argentina – Aquarelas – Embaixada do Brasil e Centro de Estudos Brasileños. 1994 – Guimarães – Portugal – Aquarelas – Paço dos Duques de Bragança. 2000 – Recife – PE – Aquarelas – Restaurante Porto Ferreiro. Vídeo Especial para o Globo Ecologia, da TV Globo
Guita com a família, aos 7 anos de idade
Capa do catálogo de exposição na Artespaço, Recife, 1987
Livros Está no prelo Viva a Vida!, sobre o seu trabalho de aquarelista, produzido por Carla Valença, com apoio da Celpe Prêmios: 2000 – Troféu Cultural Cidade do Recife – Outorgado pela Fundação de Cultura Cidade do Recife 2001 – Prêmio Tacaruna Mulher 2000 – Destaque Artes Plásticas
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CRÔNICA
Numa cidade de poetas e paletós, o papa do Existencialismo sucumbe ao tédio, apaixona-se por uma jovem jornalista e padece de incomunicabilidade -
Sartre
apaixonado
N
os anos 50 do século passado, o Recife era uma cidade pacata, provinciana. Os intelectuais, artistas, jornalistas... encontravam-se à noite no Bar Savoy, aquele “dos trinta copos de chopp,/ trinta homens sentados,/ trezentos desejos presos,/ trinta mil sonhos frustrados”/ do poema de Carlos Pena Filho. Os jornais mantinham suplementos literários semanais de grande aceitação do público leitor e nenhuma dos anunciantes. Poucos anos depois, no início da década de 60, o Recife era outro. Juscelino empolgava o Brasil com seus planos desenvolvimentistas, Cid Sampaio pregava a industrialização de Pernambuco e a Sudene planificava o desenvolvimento do Nordeste. Coisas que até então ninguém havia pensado. O jornalista e poeta Felix Athayde definiu bem essa mudança. De volta ao Recife nessa época, depois de alguns anos de andanças pela Europa, observou que antes de viajar, quando sentava no Savoy logo aparecia alguém para meter a mão no bolso e puxar um poema e que agora o que se puxava era um projeto econômico. O recifense tinha trocado a poesia pelo desenvolvimento.
Carlos Garcia 78 Continente Multicultural
Nos anos cinqüenta todos usávamos paletó e gravata, até porque para entrar, por exemplo, no cinema São Luíz era necessário tal indumentária, quanto mais no Teatro de Santa Isabel! Foi nessa cidade de poetas e paletós, onde ser escritor famoso era o que todos desejavam, que desembarcou para uma visita o famoso casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Vinham talvez em busca dos “tristes trópicos”. Sartre era a figura mais impor-
Sartre, cheio de amantes em Paris, há muitos dias não tinha mulher. Estava no Brasil desde algumas semanas e visitara outras cidades antes de escalar no Recife. Daí, talvez, ter se apaixonado pela jovem Cristina e lhe feito insistente assédio, chegando até a brandir uma proposta de casamento. A diferença de idade entre Sartre e Cristina era grande e ele, apesar de toda a aura de intelectual mundialmente famoso, não impressionou a futura de-
HENRI CARTIER-BRESSON / REPRODUÇÃO
O bar Savoy era o ponto de encontro diário dos intelectuais pernambucanos e Sartre, que passou boa parte de sua vida nos cafés parisienses, começou a freqüentá-lo em suas noites solitárias no Recife. Nos primeiros dias era envaidecedor para os clientes do bar usufruir de tão ilustre companhia tante da intelectualidade francesa do pós-guerra. Filósofo, criador do Existencialismo, esquerdista, viria mais tarde a prestar grandes serviços à causa da democracia brasileira, por denunciar ao mundo os crimes cometidos pela ditadura militar. Não eram, entretanto, um casal convencional, como soubemos mais tarde. Apenas amigos, se hospedaram no mesmo quarto de hotel por comodidade e para sair mais barato. No Recife, ficaram no Grande Hotel, onde hoje é o fórum não sei o quê, ali na margem do Capibaribe, já bem próximo do ponto onde nosso rio se entrega ao mar. Fizeram palestras, conferências, deram entrevistas publicadas com grande destaque pelos jornais da cidade e se preparavam para partir de regresso a Paris, quando Simone de Beauvoir adoeceu com febre tifo. Foi hospitalizada e ao ter alta o médico recomendou que ficasse alguns dias em convalescência no Recife, antes de regressar à França nos ronceiros aviões de 50 anos atrás. A professora de espanhol Lúcia Tavares, irmã da jornalista Cristina Tavares, havia sido cicerone dos dois escritores e se tornado amiga de Simone. Por isso, convidou-a para ficar em sua casa enquanto convalescia. Durante o dia Sartre fazia companhia a Simone e à noite voltava ao hotel.
putada federal e brava combatente da ditadura. A “história de amor” de Sartre e Cristina ficou nisso e foi narrada com bom humor por Simone de Beauvoir em suas memórias. Mas o folclore da passagem do filósofo pelo Recife foi muito além. O Savoy, como já foi dito, era o ponto de encontro diário dos intelectuais pernambucanos e Sartre, que passou boa parte de sua vida nos cafés parisienses, começou a freqüentá-lo em suas noites solitárias no Recife. Nos primeiros dias era envaidecedor para os clientes do bar usufruir de tão ilustre companhia. Mas Sartre somente falava francês e a comunicação não era fácil. No fim da noite, estavam todos cansados do esforço para entender o que dizia o filósofo e de tentar lhe transmitir algumas idéias, embora alguns falassem um pouco da língua. Mas é que Sartre falava um francês erudito, formulando frases de difícil entendimento. Daí, aos poucos, os freqüentadores foram evitando Sartre. Até que uma noite, ele apontou na esquina e foi avistado pelos que estavam numa mesa onde ele vez por outra se sentava. Foi quando um de nós não agüentou e disse o que todos tinham vontade de falar: – Vamos mudar de bar, lá vem aquele chato! Carlos Garcia é jornalista
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ANTROPOLOGIA
Empregados pelo homem como objeto de culto ou meio de transporte, os animais, agora usados apenas como alimento, merecem mais atenção
D
esde o Neolítico, a vida do homem está unida à de um setor dos seres vivos com quem convive estreitamente e a quem também deve cuidados. Os animais e as plantas – domesticadas no Velho Mundo faz cerca de seis mil anos e na América um pouco mais tarde – acarretaram uma melhora insuspeitada nos seres humanos, que deixaram de ser exclusivamente caçadores-recoletadores para ser agropecuários. Ainda que considerando-se
Angel B. Espina Barrio essencialmente superior aos animais, o homem teve que conhecê-los, e não somente adaptá-los aos seus interesses, mas, em muitos aspectos, teve de adaptar-se a eles. Também em diversos lugares tomou o ser humano, em suas próprias divisões sociais, o modelo da natureza e suas divisões em espécies. Tal é a explicação que se tem dado para a organização mais característica da etapa neolítica: o totemismo. Não podemos considerar esta organização como universal, nem tampouco defender as concepções evolucionistas ingênuas que nos apresentam o totemismo associado ao matriarcado e ao nascimento da exogamia, mas, sim, dizer que nas diversas regiões onde se desenvolveu (Austrália, América do Norte), supôs uma divisão social muito efetiva que associava cada setor a uma das características psicofísicas pró-
REPRODUÇÃO
Ilustração de Gustave Doré, para Dom Quixote: “O ideário da cavalaria se forja no final da Idade Média; e a despeito da sátira de Cervantes, o prestígio dos cavaleiros permaneceu intacto”
Uma cultura em perigo
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REPRODUÇÃO
prias do animal antecessor (urso, a força; águia, a perspicácia; raposa, astúcia etc). O homem era consciente de seu parentesco com os animais e estava inserido numa mesma aventura vital com eles. Isto talvez em nossa época se haja perdido, ao considerar-se outras espécies como meros objetos utilizáveis de qualquer maneira e a qualquer custo; custo que, às vezes, como veremos, costuma ser muito elevado. Nas culturas tradicionais o tratamento dado aos animais é mais humano e ritualizado. A algum deles se elege senão para totem, para algo emblemático associado direta ou indiretamente a sua própria sobrevivência. Desse modo, entre os povos ibéricos proliferaram os pré-históricos touros de granito, que às vezes são touros e em outras ocasiões porcos (“verracos”) e que fazem referência aos dois animais mais significativos da Península Ibérica, de que adiante falaremos, o porco e o vacuno. Em outros casos, como nas culturas minóicas, o touro é fundamental; em Tróia, é o cavalo o animal emblemático; no Egito nós encontramos figuras mistas zooantropomorfas (Anúbis, Apis); na Índia, as vacas; na China, os míticos dragões; no México, a águia e o jaguar; nos Andes, as lhamas. Os animais vêm sendo empregados pelo homem não só como fonte de trabalho, mas como objetos de culto, como instrumentos de guerra, como insígnia social, como forma de transporte, como diversão. O “homo urbano” atual, não obstante, está praticamente isolado destes “irmãos mais novos”, aos quais só conhece diretamente em forma de filé.
Mas isto é algo novo na história, pois, desde que o homem dividiu os animais em duas grandes categorias – os selvagens e os domesticados – sempre permaneceu próximo destes últimos, especialmente aos que não lhe serviam como alimento, aos quais costumou dar nome e lugar no grupo familiar. É certo que estes nomes próprios costumam ser diferentes dos que são dados aos seres humanos, mas indicam uma proximidade destacável. Assim mesmo, foram feitas distinções referentes aos animais puros e impuros, estabelecendo-se uma série de proibições, melhor diríamos, tabus, a respeito de algumas espécies que não podiam servir de comida (muçulmanos, o porco; hindus, a vaca etc). Essas proibições, parece, têm a ver mais com fatores de ecologia alimentícia ou de higiene do que com normas religiosas. Mas, em todo caso, são exemplos da simbolização que se há investido sempre às relações com os animais. Também desde a Antiguidade, a fauna ensinou ao homem através das fábulas, serviu de “bode expiatório”, de símbolo de força (touro), de orgulho (galo), de sabedoria (coruja) etc. Na atualidade, nas zonas rurais ibéricas, podemos constatar o horror que suscita a figura do “lobo”, que desde sempre esteve presente em contos, romances e histórias orais. Considera-se que a capacidade de expansão de muitos impérios da Antiguidade se deveu aos animais empregados. Tal se afirma do império do “Grande Khan”, que se estendia desde o Sudeste Asiático até os limites orientais da Europa e cujos guerreiros montavam os pequenos, porém fortes, cavalos mongóis. O mesmo sucedeu na conquista Deus cria os animais, Lorenzo Maitani: “Ainda que superior aos animais, o homem teve não só que adaptá-los aos seus interesses, como se adaptar a eles”
O bando de Lampião: “Os pioneiros de Arizona, Jalisco, o Pampa e o Cangaço, são ícones de culturas que amalgamam liberdade, individualismo, força e isolamento do homem em aplíssimas geografias”
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feram de norte a sul em todos os países americanos e que fazem parte de sua história e de sua lenda, contribuindo para criar identidades novas. Têm diversos nomes, mas seu espírito de liberdade, sua força viril, seu caráter indomável são tão invariáveis como o amor pelo seu cavalo, verdadeiro complemento de sua personalidade e de sua vida. Mitificados como “llaneros solitários”, sejam ou não, representam os pioneiros de Arizona, Jalisco, os llanos de Arauca, o Cangaço, o Pampa; são símbolos icônicos destas novas culturas que amalgamam liberdade, individualismo, força, isolamento do homem em amplíssimas geografias. São muito mais antigos e genuínos do que o arquiconhecido cowboy, que se costuma vender como a essência do norte-americano. Na verdade, esta é uma característica geral de quase todos os traços que se pretendem genuinamente norte-americanos. Costumam ser meros arremedos das altas culturas sulinas. Assim, o hambúrguer é uma torta mexicana ou cubana a que se subtrai a pimenta em troca de suaves picles, a coca-cola é uma derivação da zarzaparrilla, e até o famoso Superman, por menos que pensemos, é o “Zorro” modernizado. Também justiceiro, com vida dupla, rápido e adorado pelas mulheres, ainda que, isso sim, já não vá a cavalo. Merece menção à parte o ginete charro jalisciense (charro é termo que pode designar tanto o REPRODUÇÃO
americana cuja rapidez se deveu em parte ao emprego militar dos cavalos importados, emprego que pouco a pouco derivaria até o transporte e se generalizaria em todo o continente americano, dando lugar a um tipo de ginete que em seu polimorfismo e por sua importância comentaremos com detalhes mais adiante. Antes disso, porém, observemos que, nos finais da Idade Média na Europa, se forja a figura e o espírito da “cavalaria”, ideal de todo o homem destacado, seja em forma de “cruzado” guerreiro e, especialmente, como cavaleiro andante. A despeito de o Quixote realizar, entre outras coisas, uma sátira sagaz a esse tipo de ideais, o prestígio dos cavaleiros permaneceu intacto, sendo em muitos casos um sinal de proeminência social. E parte desse espírito medieval se transpassa à América com os conquistadores que, não por casualidade, elegeram o Santiago eqüestre (entre os castelhanos) ou São Jorge (entre os potugueses) como figuras sacras de identificação. Na América muito cedo associado à pecuária, especialmente vacuna, se destaca a figura do “llanero” (habitante das planícies), herdeiro do capataz (“mayoral”) hispânico, que vai tomando diversas práticas, aparatos e costumes, segundo o clima e a orografia, mas que conserva muitos traços de sua origem. Ginetes hábeis e esforçados que proli-
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cavaleiro mexicano que veste certo traje especial composto de jaqueta com bordados, calça justa, camisa branca e chapéu de aba cheia e alta copa em forma de cone, quanto o camponês quando muito garboso e adornado da província de Salamanca) que em suas formas atuais e como representação do mexicano é muito recente, não antes da revolução de 1910, mas que associado aos feitores del porfiriato anteriormente às fazendas coloniais, tem suas raízes nos próprios cavaleiros cortesãos. Poucos mexicanos sabem que termos como “charro” e “ginete charro” se empregam desde muito tempo atrás em Salamanca (Espanha), sendo inclusive o gentílico popular desta cidade. Nesta zona eminentemente ibérica também se costuma enfeitar com elegantes charrerias, barrocos adornos de prata e ouro, idênticos aos que hoje vemos nos “charros” e marriachis mexicanos. Mas, isto não deve estranhar-nos, pois os próprios salmantinos, por sua vez, desconhecem que suas queridas charrerías procedem e continuam sendo usadas na cultura berbere de Marrocos. Este exemplo, que pode parecer muito particular, é ilustrativo e paradigmático de como a cultura hispânica, fortemente mestiça e mudéjar, é que sobreviverá na América misturada com as tradições autóctones. Na Colômbia e na Venezuela encontramos também os llaneros desenvolvendo sua subsistência ao redor de prolífica pecuária e transformando-
se em bravos lanceros quando os avatares da guerra assim o exigiram. Na paz o llanero mostra um folclore e uns estilos de vida peculiares mas semelhantes aos descritos, e, como em outras ocasiões, com o tempo se perfilarão estes traços como uma cultura autóctone, como o “alma llanera” emblemático de toda a Venezuela. Pelo contrário, nas zonas altas e abruptas norandinas, surge uma figura bastante diferente, também mítica para algumas regiões colombianas, como Antioquia. Refiro-me ao arriero, esforçado caminhante de pés descalços, e suas mulas que transportam a valiosa mercadoria por veredas impossíveis. Suas façanhas, suas estalagens, seus surrões, seus enfeites e suas histórias estão no inconsciente coletivo dos antioquenses, como o estiveram entre os asturianos ou leoneses. E o que dizer dos mais modernos, mas não menos arquetípicos cangaceiros do Nordeste brasileiro, que estão entre obstinados guerrilheiros e bandoleiros de Serra Morena, também como “zorros” pernambucanos, roubando os ricos para dar aos pobres? Sua sedutora figura perdura até a atualidade, quem sabe como recordação ou nostalgia de uma rebeldia malograda. Por outro lado, fazendo referência a estas distinções que outorga a cavalaria em Pernambuco, se sabe perfeitamente que, ou se é um “Cavalcanti” ou se é um “cavalgado”. Entre os tipos humanos que existem na América em simbiose com seus animais e arreios destaca-se o gaúcho, ginete mestiço, conhecedor dos pampas do Sul. Recebe do indígena não só sangue, mas técnicas de caça e costumes. Diz-nos Emilio Corbière, falando da etimologia do termo gaúcho, que procede da linguagem indígena, concretamente “da palavra huaso, foneticamente guascho, e que servia para distinguir um indivíduo que se bastava a si mesmo, carente de pai conhecido”. Naturalmente que a esta designação acrescenta-
Bisão da gruta de Altamira, Espanha: “Nas culturas tradicionais o tratamento dado aos animais é ritualizado. Algum deles se elege para algo emblemático associado à sobrevivência do homem”
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Tourada numa aldeia, F. Goya: “As relações dos homens com os animais sempre se hão investido de simbolização. O touro representa a força, assim como a coruja, a sabedoria”
ram-se características cada vez mais positivas, de independência, arrojo e valentia principalmente, para que chegasse a ser uma das representações mais prístinas da “alma Argentina”. Na figura do ginete temos também uma incipiente dicotomizaçao de sua imagologia entre a do cavaleiro, andante ou não, mas que se associa à defesa do bem, os pobres ou da pátria em perigo, e a do ginete malvado, bandido, salteador e assassino. Certamente, em muitos casos se mesclam as características ou se produzem evoluções vitais de uma posição a outra. Mas quase nunca o destacado ginete é estrito defensor da legalidade ou da ordem estabelecida. Encontramos a imagem do bom cavaleiro em “El Cid”, modelo de guerreiro castelhano, que, no entanto, terá liderança entre os mouros. Por certo que para ser cavaleiro, ou bandido, tanto faz se a montaria seja um cavalo ou um camelo, pois as conseqüências e os traços serão muito semelhantes. Na Espanha temos antecedentes dos famosos e românticos bandidos de Sierra Morena aos bandoleiros monfis (termo usado para os mouros bandoleiros em quadrilhas depois da Reconquista) de Serra Nevada e a Alpujarra. Os extremos do bom cavaleiro vão desde o Cid até D. Quixote, dos ícones mais significativos da história e cultura espanholas, sem nos esquecermos do multifacético Santiago. Entre as evoluções dos maus ginetes destacam-se muitas histórias de bandoleiros que se rebelaram por injustiças prévias sofridas e que, no entanto, guardam algum tipo de moral ou de estética em sua atividade criminosa. Também o caso de ladrões que depois da invasão 84 Continente Multicultural
napoleônica se convertem em eficazes guerrilheiros contra os exércitos da França. Muitos exemplos poderiam ser citados de conhecidos e famosos guerrilheiros. “El charro”, “Espoz y Mina” etc. Curioso o caso de “El Empecinado”, que foi partidário a favor do rei Fernando VII, o mesmo que depois o recompensaria e posteriormente lhe mandaria executá-lo, por liberal. Mas não fiquemos somente com o cavalo nem sequer só com o touro brabo, pois muitos pensam que a Península Ibérica deveria ter como insígnia não o touro, mas o porco. Já dissemos que as figuras líticas celtibéricas às vezes são touros, mas muitas outras são porcos (verracos). A Espanha é o país do mundo proporcionalmente com maior rebanho porcino por habitante. Fazendo uma distribuição eqüitativa, quase caberia uma pata de porco (jamón) por espanhol. O consumo de sua carne nas mais variadas formas (embutidos variadíssimos, filé, pele, focinho, presunto, sangue etc) é excepcionalmente alto e em algumas zonas quase exaustivo. Existe uma raça autóctone de porco, com pele mais escura, que se assemelha com o javali, de alimentação natural e que, apesar de poder só viver em algumas partes do Sudoeste da Espanha (representa apenas um quarto do rebanho porcino total), é muito valorizada e apreciada. Trata-se do porco denominado ibérico, ou de pata negra, ponto culminante da gastronomia peninsular. Mas este tipo de animal não parece que seja a explicação para esse consumo desmesurado de porco. Para explicá-lo somos mais partidários de uma componente histórica que tem que ver mais com a proi-
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bição que durante séculos existiu sobre este animal por parte da cultura muçulmana. Quando chega a chamada Reconquista e especialmente o fim da mesma, o comer carne deste animal se converte num traço visível e distintivo de caráter sócio-religioso. Os cristãos comem porco e os mouros o repudiam. Uma pessoa ou família podia reafirmar sua ascendência como cristão-velho mediante o consumo demasiado do porco. É aqui uma típica reação “fronteiriça”, com o exagero artificial de traços diferenciais. O curioso é a sobrevivência desses costumes alimentares ao longo dos séculos, mas sabemos que tudo o que está relacionado com a gastronomia, muito associado também a fatores ecológicos, muda lentamente; e é bom que assim aconteça, senão podem dar-se situações perigosas como a que explicaremos em seguida. As formas tradicionais do uso do gado variaram radicalmente na Europa durante a segunda metade do século 20. A exploração intensa dos animais fora do seu ambiente natural, em granjas massificadas e com alimentação pré-fabricada, apesar de ser muito rentável e parecer resolver o problema de alimentação, não podia a longo prazo ser uma coisa positiva. A falta de escrúpulos não só no maltrato dos animais, em seu transporte, desenvolvimento etc, mas também em seu cuidado não podiam tardar em ter conseqüências nefastas. Logo se observou que determinadas drogas, como o “clembuterol”, aceleravam a engorda e por isso
se empregaram massivamente, sem ter em conta suas conseqüências à saúde humana, ou que a carne assim tratada perdia propriedades e sabor. Quando somente as regras de benefício do mercado se impõem ao homem, pode-se cometer erros irreparáveis. Seguindo esse caminho se generalizaram na alimentação dos gados herbívoros umas farinhas elaboradas à base de restos ósseos cárnicos procedentes de outros animais, incluídos os de sua mesma espécie. Esta prática implicava um gênero de “canibalismo” intraespecífico que já muitos estudiosos e cientistas haviam, anos atrás, desaconselhado por perigoso, porque pode propagar com grande facilidade enfermidades, especialmente através das proteínas. Tal é o caso, conhecido pelos antropólogos, médicos e outros estudiosos, dos costumes canibais dos “fore”. Os “fore” são um grupo humano de pouco mais de dez mil indivíduos que habitam as selvas das zonas altas do Leste da Nova Guiné, na Melanésia. Nos anos 60 despertaram o interesse dos especialistas mencionados por apresentarem uma rara enfermidade, que se estendeu à década anterior especialmente entre os fore do sul, e que se chamou o “kuru”, ou mais popularmente o “riso mortal” O doente ia perdendo lentamente todas as suas faculdades físicas e apresentava tremores, até que irremediavelmente morria. Poucas famílias escapavam de ter algum caso em seu seio. Logo se observou a associação desta enfermidade com o costume fore do O porco, Rembrandt: “Com a Reconquista, comer a carne deste animal se converte num traço distintivo de caráter sócio-religioso”
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canibalismo ritual. De fato, com a deaparição do tal canibalismo nos anos 60, desapareceu também a fatal epidemia. Hoje sabemos que existem proteínas que produzem malformações em outras semelhantes e que, estendendo-se, causam disfunções letais. São os priones, que embora não possam transmitir-se facilmente, só incorporando-se-lhes diretamente, também são praticamente indestrutíveis. Parece que era assim o “kuru”, e tal é a origem da enfermidade chamada de “Creutzfeldt-Jakob”, encefalopatia espongiforme ou o mal das “vacas loucas”. Sua transmissão interespecífica é difícil e lenta, mas dentro da mesma espécie parece muito mais fácil e freqüente. Para alguns esta é a explicação para a proibição generalizada de incorporar proteínas (carne) da própria espécie (canibalismo): aumentar as possibilidades de sobrevivência dos grupos humanos. E tal deveria haver sido a cautela que deveríamos ter aplicado aos animais. De fato, as vacas e outros animais são submetidos pelo homem à força, a práticas canibais, que, na natureza, nunca o fizeram. Estamos repetindo com elas artificialmente o “kuru” dos melanésios, e agora isso se volta contra nós. O mal das “vacas loucas” procede de uma exploração desenfreada e de procedimentos inadequados que também se estão dando no emprego abusivo em animais de certos fármacos, antibióticos etc. Os cuidados e práticas da veterinária anterior e a alimentação tradicional não acarretavam tais riscos. No momento presente, com esta profunda crise da criação de gado, deveriam ser adotadas novas estratégias que, em algum caso, irão contribuir para corrigir condutas errôneas de antes: a qualidade é
O boi esquartejado, Rembrandt: “O ‘homo urbano’ atual está praticamente isolado de seus ‘irmãos mais novos’, aos quais só conhece diretamente em forma de filé”
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mais importante que a quantidade, que se dê sempre respeito à ecobiologia. E esta crise não é só européia, mesmo que neste momento seja só neste continente onde se estejam adotando medidas antiepidêmicas. Desgraçadamente o mal se exportou com as farinhas de carne, como sempre pelo afã desmesurado de lucro de alguns empresários, neste caso os ingleses. Talvez na Índia, na África, no Texas surjam novos casos. Os argentinos por fim tiraram algo positivo da guerra das Malvinas, a suspensão total pós-conflito de importações da Inglaterra; isso põe a salvo de qualquer contaminação por estes motivos, que não da aftosa, o seu amplíssimo rebanho de gado. Mas o que acontecerá em outros lugares? A solução a tudo isso não é, desde já, que se adotem dietas vegetarianas. Somente que se redobrem o cuidado e a atenção com os animais que tanto nos ajudam. Há um costume entre os mineiros e bodegueiros que consiste em levar consigo uma gaiola com um passarinho. Se este animal chegar a morrer, o trabalhador sabe que tem que sair urgentemente do lugar. Mas não só neste exemplo, porém sempre, a vida das espécies animais está conectada com a nossa. Não podemos pretender sobreviver enquanto os animais sucumbem. O planeta hoje em dia se assemelha a uma grande mina em que muitas espécies morrem e se extinguem; devemos reagir imediatamente se não quisermos ter o mesmo destino. Angel B. Espina Barrio é antropólogo. Diretor do Doutorado em Antropologia da Universidade de Salamanca e organizador, entre outros, do livro Culturas Ganaderas de Castilla y León, que descreve as formas de vida autóctones desta região espanhola associadas à atividade da criação de gado
ministro da Cultura
É hora de redescobrir o Brasil Em entrevista exclusiva, o ministro Weffort defende uma maior interação entre economia e cultura, o diálogo erudito-popular como chave para identidade nacional e uma auto-regulamentação mais rigorosa das emissoras de televisão. Considerando a cultura como o cimento da unidade nacional, ele proclama que é hora de redescobrir o Brasil. Cristiano Ramos Continente Multicultural 87
CONVERSA FRANCA
LINDAURO GOMES / AE
Francisco Weffort
Q
ual o papel da cultura no desenvolvimento do País? A questão central neste debate é que desenvolvimento supõe mais do que crescimento. Desenvolver-se significa ter a capacidade de dirigir o seu próprio rumo – e isso depende basicamente da cultura. Na situação do mundo contemporâneo, com todas as mudanças decorrentes do processo globalizante, os valores culturais passaram a ser fundamentais na manutenção da nossa identidade enquanto nação. As fronteiras físicas agora representam muito pouco. Já no final do seu livro O populismo na política brasileira, que é de 1978, o senhor levantava a discussão sobre o significado dos valores nacionais nas lutas de classe, nas transformações do poder... Sobretudo o diálogo entre esses valores. Um aspecto característico de nossa formação é que ela vinculou de maneira muito forte o erudito e o popular. E esta relação traz consigo a chave para o entendimento de nossas complexas indagações sociais. No meu livro sobre o populismo eu me referia à manipulação que determinados grupos da política brasileira exerciam sobre a massa da população, sugerindo a ilusão de uma comunidade nacional que não existia.
Além do papel na manutenção da identidade nacional, o senhor costuma ressaltar o poder gerador de empregos da cultura. É possível dizer que o Brasil já possui uma política cultural condizente com suas potencialidades? Estamos caminhando para isto. Na verdade, nós temos no Brasil uma capacidade de captar recursos ainda pouco explorada, principalmente na área da cultura. Não há dúvida de que as leis de incentivo têm dado resultados, mas eu dou um exemplo bem próximo de vocês: os espetáculos de Fazenda Nova, que têm uma importância econômica extraordinária para o povo daquela região. O mesmo acontece com as obras do Mestre Vitalino, com as festividades de Parintins, com as escolas de samba do Rio de Janeiro, o carnaval do Recife e de Olinda... Estas atividades possuem um grande potencial econômico. Não pretendo deixar de lado o valor intrínseco da cultura para qualquer sociedade, apenas acho que precisamos ter uma visão abrangente do assunto. O Ministério está trabalhando para levar esta consciência aos setores econômicos do País, inclusive no Governo. Queremos que eles entendam que empregar dinheiro em cultura gera três vezes mais empregos do que na indústria, por exemplo. Portanto não é gasto, mas sim investimento. Por que é tão difícil provocar este reconhecimento? É muito difícil mudar esse quadro. Quando o sujeito pensa em música, visualiza logo o artista, esquece que a nossa indústria fonográfica é extraordinária, um dos maiores mercados do mundo. Quando o sujeito pensa em Literatura, ele pensa somente no livro, e não no mercado editorial como um todo (que também é uma indústria). Ou seja, eu quero sustentar a idéia do vigoroso potencial gerador de recursos da cultura, a ponto de acreditar que o próprio mercado artístico e intelectual pode garantir o retorno financeiro e sua sustentação. Acho que as verbas do Estado devem ser utilizadas sobretudo para as atividades culturais menos privilegiadas, as manifestações de menor repercussão e marketing. O problema nosso é que o cidadão que trabalha na cultura costuma desligarse dos temas econômicos, e vice-versa. O “xis” da questão está em preencher a lacuna existente entre os dois setores.
Ao ser confirmado no Ministério para uma segunda gestão, o senhor se dizia preocupado com a centralização dos recursos no Sudeste. Que avanços têm ocorrido no sentido de amenizar o desequilíbrio? A nossa principal alternativa é o Fundo Nacional de Cultura, cujos recursos são orçamentários, não dependendo de qualquer decisão do empresariado para investir nas regiões onde as possibilidades de inclusão no mercado são menores. Outro caminho é flexibilizar as leis de incentivo à cultura, de modo que a empresa que empregar dinheiro numa atividade fora do eixo Rio-São Paulo receba um plus de vantagens fiscais. E a preferência da iniciativa privada pelos eventos que resultam em um marketing mais eficiente? Um exemplo é o teatro realizado no Rio e
presidente da República um projeto concreto de implantação da indústria do cinema no Brasil. Várias idéias surgiram, entretanto, leva tempo analisar e viabilizá-las, pois isso não depende só do Ministério da Cultura, também estão envolvidos os Ministérios da Fazenda, do Desenvolvimento e diversos outros órgãos. Entre as propostas apresentadas, o que o senhor acha da possibilidade de taxar aparelhos de TV, videocassetes e DVD? Ou seja, o que o senhor acha de o consumidor pagar parte da conta pelo fomento ao cinema? Particularmente, prefiro os projetos que tornam mais ágeis e eficientes os meios de captação de recursos no mercado, através dos benefícios fiscais. Há também propostas para facilitar a criação de linhas de crédito para que pequenas empresas cine-
O Ministério está trabalhando para levar esta consciência aos setores econômicos do País, inclusive no governo. Queremos que eles entendam que empregar dinheiro em cultura gera três vezes mais empregos do que na indústria, por exemplo. Portanto, não é gasto, mas sim investimento em São Paulo, onde quase todos os recursos vão para as peças que apresentam atores globais. Novamente a solução acaba vindo das verbas orçamentárias. No caso específico do teatro e da dança, através do Fundo Nacional de Cultura, estamos desenvolvendo o projeto EnCena Brasil, que deve beneficiar inicialmente 130 grupos de todo País. O que precisamos é ter sensibilidade para perceber as distorções e buscar meios de corrigi-las. O governo havia anunciado para este ano novidades na política de fomento à indústria cinematográfica. Alguma decisão já foi tomada? Desde setembro do ano passado foi criado o Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (Gedic), com o objetivo de apresentar ao
matográficas tenham acesso aos empréstimos bancários. O fundamental é que se dê prioridade às idéias aprovadas a partir do consenso entre aqueles que fazem o cinema nacional, desde os produtores e diretores até os distribuidores. Importantíssimo tem sido este início de debate sobre os aspectos econômicos do cinema, da música, da Literatura... E as parcerias entre cinema e TV? O Ministério apoiará estes projetos, mesmo com o risco de haver uma centralização ainda maior dos recursos? Olha!, se você quer ampliar o mercado, se você quer viabilizar uma indústria cinematográfica no Brasil, nas condições atuais, não dá para dispensar as parcerias com a TV. O que se deve discutir são os critérios. Continente Multicultural 89
E pode ser uma solução rápida para popularizar o cinema. Não é verdade? A parceria viabiliza economicamente e atrai o público. Este fenômeno que você citou, das peças teatrais que apresentam atores da Rede Globo receberem mais apoio, precisa ser observado com atenção. É um sinal de que a TV consegue levar seu público para outras modalidades de comunicação. Uma prova de que essa parceria pode dar certo é o sucesso do filme baseado na obra do Ariano Suassuna, o Auto da Compadecida. Interessante destacar que é um texto que trabalha fortemente a relação citada pelo senhor, erudito x popular. Exatamente. Essa mistura dá resultados com o povo porque é o próprio reflexo de sua formação. Estamos falando de observar espelhos de reconhecimento de nossa realidade, pois no fundo é isso que somos, o produto da relação entre erudito e popular, entre o tradicional e o novo. Herdamos esta dualidade através da cultura ibérica, de nosso passado medieval. Você tem no Auto da Compadecida o exemplo de um texto que deu certo no teatro, na TV e também no cinema. Devemos estudar e compreender melhor o povo brasileiro, saber o que ele quer, o que ele espera. Falando em TV, o que o senhor acha da polêmica sobre as programações televisivas? Elas devem sofrer algum controle? Autocontrole. As emissoras devem pensar com mais seriedade sobre a auto-regulamentação, porque alguma coisa precisa ser feita. Os canais de TV aberta não podem continuar com essa propensão à violência, ao brutalismo, ao exibicionismo sexual... Claro, reconhecendo as exceções, pois nem todas as emissoras seguem esta linha. O que acontece também é que, nos últimos anos, temos assistido a um novo boom na venda de aparelhos de TV. Mais pessoas estão deixando de 90 Continente Multicultural
sair para ficar em casa, em frente à TV, e os canais estão preocupados em conquistar esses novos telespectadores. Então, estamos acompanhando o momento do “liberou geral”, uma forma de atrair este público através da apelação. Acho que esse modelo tende a cansar, e no futuro haverá alguma modificação. E o compromisso educativo e cultural da TV? Há empresários do setor que defendem a idéia de televisão como simples meio de entretenimento. De modo algum. A televisão tem sim um importante papel cultural e educativo a desempenhar. A questão válida é se ela cumpre ou não este papel. O que eu não compreendo é essa separação de coisas: qualidade ou mercado, lazer ou educação. Até porque, quando você passa uma informação, você já está educando de alguma forma, bem ou mal, pois educação subtende isso, a transmissão de informações. Mas volto a dizer que devemos esperar pela diminuição no ritmo de expansão do público televisivo. Quando isso ocorrer, quem souber conciliar melhor o entretenimento com a educação e a cultura vai ficar com fatias maiores do mercado, e isso é que vai impulsionar uma real melhora nas programações da TV aberta. O debate mercado x qualidade também é de responsabilidade do Governo, ou o Ministério não deve entrar na discussão? Devemos criar sim um cenário cultural de alta qualidade, sem dúvida. Porém, repito, não entendo que aumentar a qualidade resulte necessariamente em perda do mercado ou no incentivo à elitização da cultura. Agora, acontece que é preciso analisar o conceito de qualidade com uma visão generosa, sob todas as perspectivas sociais. Não se pode ter critérios idênticos para julgar as qualidades de uma orquestra sinfônica e as de uma manifestação popular. Trata-se de uma questão complexa, mas que devemos realizar. O senhor citou algumas vezes a Literatura, mas ainda se investe muito pouco nesta área. Apesar de o mercado editorial estar vivendo um dos seus melhores momentos, é muito difícil um autor inédito conseguir publicação. Por que não se investe mais nos concursos literários, que ainda são o melhor caminho para os jovens escritores?
Como propagar esta visão mais generosa, se ela depende em muito das academias? As universidades continuam tendo como principal matériaprima obras européias e americanas. Essa indagação é fundamental. O nosso principal problema hoje não é produzir cultura, é difundi-la. E isso vale tanto para as camadas mais populares, quanto para os segmentos mais ricos e intelectualizados, aquelas coteries mais fechadas; ricos e pobres precisam se compreender melhor, até como modo de diminuir nossas desigualdades e entraves ao desenvolvimento. Os intelectuais de nosso stablishment necessitam de ter a vivência de um Mário de Andrade, que percorreu este país
Esta pergunta é bastante válida e oportuna. Nós já temos feito um esforço significativo no gênero ensaio, através da Biblioteca Nacional, publicando diversos textos de autores consagrados e também de autores novos. Mas realmente podemos dar mais atenção à poesia e aos romances e contos. Esta é uma preocupação nossa, incentivar a Literatura nacional. Falando em Literatura, como o senhor tem acompanhado os debates sobre o futuro do livro? O livro não vai deixar de existir. O que podemos discutir é sobre a sua convivência com tecnologias. É bem verdade que os suportes eletrônicos,
Se você quer ampliar o mercado, se você quer viabilizar uma indústria cinematográfica no Brasil, nas condições atuais, não dá para dispensar as parcerias com a TV. O que se deve discutir são os critérios os e-books, estão cada vez mais parecidos com o livro, mas não acredito na extinção deste. Cada meio tem suas vantagens. O que acho extremamente interessante nas bibliotecas virtuais é a capacidade de manter uma razoável biblioteca dentro de um simples microcomputador, e a possibilidade de encontrar nos acervos virtuais obras que não estão à disposição nas livrarias, títulos menos comerciais. É que temos sempre uma dificuldade de aceitar a convivência entre as formas clássicas e as inovadoras.
Cristiano Ramos é jornalista LINDAURO GOMES / AE
O modo de o cientista político Francisco Weffort ver o Brasil mudou muito? Ah, bastante. O olhar mais voltado para cultura me deu novos parâmetros para análise. Sem falar que se não fosse o trabalho no Ministério eu nunca teria conhecido tantas cidades e costumes do Brasil. Foi nesses últimos seis anos que eu me convenci de que a cultura tem sido o cimento da unidade nacional de nosso país, ela é anterior à nossa condição de nação independente. De maneira que eu mudei muito meu modo de ver nosso povo, nossas tradições, passei a dar mais importância aos nossos valores culturais – o que leva também a refazer as perspectivas no tratamento das questões políticas. Certas coisas que eu via antes com uma visão mais classista, mais paulista e europeizante, observo hoje com uma lente muito mais ampla e generosa.
quando ainda era uma aventura viajar em território nacional. Posso citar também o Guimarães Rosa, o Gilberto Freyre... Essa gente toda trabalhou duro para compreender as raízes culturais que já estavam neles, porém, eles não conheciam. Compreende? Por isso temos incentivado a produção de um novo ensaísmo sobre o Brasil. Chegou o momento de redescobrirmos o Brasil, com menos pessimismo e com mais interesse em aceitar os nossos próprios valores.
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ENTREMEZ
Sobre livros e traças
H
Os livros são portadores de uma rede de conhecimentos fragmentária, que conta a história do próprio homem
egel afirma que o desejo do homem é o desejo do outro, pano pras mangas dos psicanalistas lacanianos. Levando a sério o “lacanês” sou obrigado a concluir que o meu amor pelos livros vem do meu pai. E isso é verdade, pois foi com ele que aprendi a ler, de uma forma um tanto heterodoxa e cruel, destruindo figuras de uma velha história sagrada, da nossa minúscula biblioteca. À luz de um candeeiro, no perdido sertão dos Inhamuns, no Ceará, folheava o livro ilustrado com litografias, enquanto meu pai costurava suas roupas de couro. A cada estampa do martírio de Cristo, eu apontava um possível algoz e meu pai confirmava: Esse é ruim. Dado o veredicto, molhava o meu dedo com cuspe e esfregava a figura do malvado até destruí-la completamente. Métodos mais modernos de alfabetização através de livros com cheiro, textura e sons nunca serão tão eficientes. Meu pai lia noites inteiras, sentado ao meu lado, enquanto eu dormia. Nossa história predileta era a de José do Egito, do Gênesis. Um dia ele pediu que eu a lesse sozinho e, ao final, falou que eu não precisava mais dele como meu intermediador com os livros. A figura de meu pai está tão fortemente ligada a esse objeto de desejo que fan-
tasiei-o com um escrínio de couro, feito por ele mesmo, onde guardava o seu romance predileto: A História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Puro deslizamento psicanalítico, esse papo de sair de uma história para outra, pois quem tinha um escrínio de ouro era Alexandre da Macedônia, onde guardava a Ilíada de Homero, nunca se separando dele. Alexandre também amava os livros, os filósofos, os poetas, a ponto de salvar a casa de Píndaro, quando ordenou a destruição de Tebas. Ora amado, ora odiado, o livro traça a trajetória do homem. Só por ele conhecemos o herói Guilgamesh, da cidade de Uruk, na Suméria. Em escrita cuneiforme, o poema registrado em blocos de argila faz o primeiro relato do dilúvio. Cobiçado na Idade Média pelo clero beneditino, representa o poder do conhecimento, devendo ser oculto, pois o saber é explosivo, único meio de libertar o homem da tirania política e religiosa. São Francisco de Assis o proscreve, temendo-o como ao próprio Diabo. Receia o contágio do conhecimento, doença que corrompe o espírito, tornando a mente complexa, oposto da simplicidade que pregava. Os muçulmanos odeiam as mentiras dos livros – o Corão é a única verdade – queimando-os em Alexandria, onde, por razões opostas, havia sido criada a mais importante biblioteca da Antiguidade. O romance policial de Umberto Eco, O
Ronaldo Correia de Brito 98 Continente Multicultural
Nome da Rosa, tão incompreensivelmente popular, tem a trama construída em torno de uma biblioteca e a luta pelo saber. É igualmente cheia de tramas a forma como alguns livros chegaram até nós. O Panchatranta, coleção de setenta contos, compilada por volta do século 6 aC, atribuída a Bidpai, um lendário sábio brâmane, é encontrado por Jean de La Fontaine, na década de 1660, e torna-se uma das fontes de inspiração das suas fábulas. Boccacio descobre O Asno de Ouro, de Apuleio, romance metafísico do século 2, e graças a ele tomamos conhecimento da fábula helênica de “Eros e Psique”. Não menos fabulosa é a versão de que Lao Tsé recolheu-se à floresta, dos 40 aos 80 anos, e que um dia atravessou um posto florestal e sem maiores recomendações entregou a um guarda os originais do Tao Te King, gesto bem de acordo com o taoismo que pregava. Para Borges, o fato central da sua vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia. Penso os livros como uma fragmentária rede de conhecimentos, que tecemos em novos livros. Não podia ser de outro modo, para mim. Durante a adolescência, li na biblioteca de um primo livros parcialmente comidos pelas traças. Faltavam páginas inteiras, inícios, finais, meios. Nunca soube como terminava Eugênia Grandet, de Balzac, nem como principiava As Minas de Prata, de José de Alencar. Ficava a meu critério inventar os pedaços que compunham essa falta. Novamente psicanálise. O que colocar no lugar da falta? Outra escrita. Mas qual é o lugar do livro na sociedade contemporânea? Todos fazemos a mesma pergunta diante do crescente poder da imagem. Espero que a oferta de filmes em que a realidade é falsificada, de parques de diversões que prometem realizar nossas fantasias infantis, de uma arte sob controle dos meios de produção comercial nos façam sentir saudades de ler um livro. Ou escrevê-lo, da forma mais convencional, juntando palavras em frases. Mesmo uma escrita fragmentária, como a própria história do homem, em que é preciso recompor pedaços, num delicado trabalho arqueológico. A escrita dos livros não é diferente da inscrição do homem na história. Partimos do que já foi feito por outros, antes de nós, preenchendo os buracos vazios deixados pelas traças. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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é muito tempo
A
longevidade das coisas, a magnitude das opiniões, a expansão dos costumes, a excessiva luta pela sobrevivência intelectual e a amplitude do conhecimento, custa por demais ao limite da capacidade humana. O mergulho na dessemelhança das idéias, por mais paradoxal que a existência do ideal de cada um dê o risco vital de conflito, gera o que de mais positivo se apresenta para a vida. Parece que estamos anfigurizando o querer algo, no entanto, o pessimismo toma conta do comportamento do brasileiro, mormente em se tratando da educação e da cultura básica e essencial para a maioria da nossa sociedade marginalizada. Já está praticamente caindo em desuso a aflição com a violência e a corrupção que ronda nosso país. Seja através da fatia da suína elitização da política, do desencanto social, do apadrinhamento do patriciado ou patronato ainda mandante. Até quando teremos de acreditar que somos emergentes no contexto internacional, que um dia mudaremos regimes, que seremos as barafundas de oitava economia mundial? Houve época em que gritávamos contra a tortura física dos calabouços tirânicos; dispensávamos a democracia pura por uma de razoável aceitação de liberdade; discutíamos Sartre, seu existencialismo, seu humanismo. Pregava-se a socialização, a Rerum Novarum, o fim das guerras santas e profanas – ridículas pelejas imperialistas, comunistas e xiitas – nas ruas, campos e nas barras intercontinentais. Lucubrava-se a ficção de Huxley, o gênio que fez sua deusa ter sentido demais. Entendia-se a principal faceta da mulher e temia-se o fim dos tempos; o fim prosaico que anima o vate – vaticinador romântico de luas esmeradas de amor, de rimas, da contemplação ao belo – distanciado de malignas predições.
será.
Não existe duração para a eternidade – o óbvio ululante da esperança. Então, que partamos para mudar a canção lenta do medo, a dança lépida para o inferno de Dante e dos outros. Assim é, se lhe parece, como Pirandello. Nada é mais reconfortante que sabermos o destino dos jovens com o fertilizante otimismo dos sábios. Melhor ainda, sentirmos que é necessário estarmos sempre e sempre mais perto dos nossos deveres do que, simplesmente, dos direitos impostos pelas ilações dos fracos. Indigna-me a presunção dos poderosos materialistas, a alienação dos pobres de espírito, a falta de interesse das classes dominantes, dos ateus – que nem imaginações têm para provar o desdém pelo dogmatismo, fio da cultura e da história pela associação do bemquerer tomista. Preza-me saber a insistência dos que militam os caminhos do prazer de ler e que se importam em divulgar a revolução do saber – a verdadeira opção dos que mandam com a opinião dos janízaros, não com as baionetas, dizia Talleyrand a Napoleão, pois dessa forma pode-se fazer tudo, menos uma coisa: sentar-se sobre elas. É o que nos resta para se ter uma Nação. Nunca a fraqueza dos que pensam em nunca mais.
Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural
Tudo era longe demais. Nunca foi. Jamais