CONTEÚDO
http://www.continentemulticultural.com.br
Capa: Affonso Romano de Sant’Anna por Agliberto Lima / AE; Lygia Fagundes Telles por Sérgio Amaral / AJB; Ariano Suassuna por Leo Caldas / Titular. Arte de Luiz Arrais
Literatura O ofício de escritor As dificuldades e possibilidades de quem escreve num País como o Brasil, na visão de 11 autores de gerações, estilos e gêneros diferentes
04
Humor
Enigma do encontro O centenário do poeta Murilo Mendes é oportunidade para lembrar uma obra densa e múltipla, que reflete o compromisso do artista
Tradição do riso
19
Festival Internacional do Humor Gráfico de Pernambuco traz Will Eisner e chama a atenção para a vitalidade do gênero
História
Sabores pernambucanos
Navegação
Cardápio à espanhola
Evaldo Cabral de Mello aponta relação entre a navegação de cabotagem e a hegemonia das cidades no Nordeste do século 17
A variedade é uma das marcas da comida espanhola, que incorporou as especiarias de árabes e judeus
24
Política
Espanha próxima Dossiê revela vários aspectos da cultura e da política espanhola na análise de intelectuais, professores e críticos
62
REPRODUÇÃO
32
Arte sacra O mais belo retábulo Jóia da arquitetura religiosa brasileira é salva dos cupins em Olinda e vai ser exposta nos museus Guggenheim
60
Especial
Legado de Bobbio Pensador político italiano especializou-se em transmitir aos mais jovens o legado das bases filosóficas que alicerçam a democracia
54
38
Mil palavras
Página 64
Múltiplas mulheres Equipe de fotógrafos flagra as faces singelas de mulheres do povo, da menina vaidosa à matriarca forte e sábia
42
Marco zero
48
Entremez
Século 21 Nova diplomacia Uma aliança cultural hispano-brasileira mostra o potencial e a necessidade de novas relações no decorrer do novo século
Cultura História de destruição O descaso com a memória, da derrubada dos Budas do Afeganistão à depredação de monumentos e sítios pernambucanos
50
Ecos líricos Violeiros-repentistas do Nordeste desvelam a influência da cultura árabe, a partir da Península Ibérica
74
Duelos importados As brigas por questões de honra e terra nos sertões do Ceará têm sangue ibérico diluído em gerações
94
Últimas palavras Dor esquecida Espanhóis e brasileiros unidos na ira e nas dores da tirania, em distintos episódios de suas histórias
96
Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel
Arte Cartas
Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manoel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira Editor de Arte Luiz Arrais Editoração Eletrônica André Fellows Ilustrador Lin Secretária Neuma Kelly Silva Colaboradores: Alberto da Cunha Melo, Alberto Santamaria Fernández, Alcione Ferreira, Alexandre Belém, Aline Feitosa, André Arruda, Angel B. Espina Barrio, Ari Gomes, Bernardo Soares, Beto Figueirôa, Camilo Soares, Carlos Henrique Cardim, Cristiano Ramos, Diego Jesús Pedrera Gómez, Edson Nery da Fonseca, Eduardo Cruz, Elpídio Suassuna, Emiliano González Diaz, Eufemio Lorenzo Sanz, Evaldo Cabral de Mello, Ferreira Gullar, Jean-C Claude Chapon, José Antonio Espina Barrio, JR Duran, Juan Andréz Blanco Rodriguez, Lailson, Leo Caldas, Leticia E. Casillas, Leugim, Luiz Alberto Vargas, Marcelo Perez, Marcia Zoet, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mascaro, Mateus Sá, RAL, Rivaldo Paiva, Rogério Reis, Ronaldo Correia de Brito, Schneider Carpeggiane, Sidney Rocha, Sérgio Amaral, Virginia Vázquez Orias, Will Eisner, Zuleide Duarte Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Elizabete Correia, Emmanoel Larré, Geraldo Santanna, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Mauro Lopes, Rafael Rocha, Roberto Bandeira, Sílvio Mafra e Zenival Webmasters Carlos Eduardo Glasner Douglas Rocha Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco (ISSN 1518-5095) Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 Assinaturas Carina Aguiar Leal Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 – fone/fax (81) 3222.4130 e-mail: cepecont@fisepe.pe.gov.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE e-mail: depinfo@fisepe.pe.gov.br Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Caixa Econômica Federal Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
Espaços Bravo! Só espero que continuem a manter os níveis – gráfico e de conteúdo. Talvez fosse bom manter espaços permanentes para resenhas de livros, teses etc, sobre assuntos nossos. Luzilá Gonçalves Ferreira – Recife – PE Visita Quero sugerir aos redatores desta revista que seja feita uma visita à minha cidade, pois teríamos uma excelente reportagem sobre os valores, as riquezas, as culturas do povo de Salgueiro. Josivan Saraiva – Salgueiro – PE Milésimo número Primeiramente, parabéns pela excelente revista. Ao que tudo indica, pela notável qualidade textual e gráfica, chegará ao milésimo número – este é nosso sincero desejo. Do primeiro ao último título, todas as matérias são de extraordinária importância. Jovelino Santos Silva – Recife – PE Tentações Gostaria de parabenizar a todos os que fazem a Continente pelo excelente nível. Sou leitor voraz de seus artigos, crônicas e entrevistas. Entendo que a cultura, história e gentes de Pernambuco devem continuar sendo privilegiados pela revista. Torço para que a mesma não sucumba às tentações do lucro e continue fiel à sua concepção original. Alexandre Braga – Recife – PE Sugestão Parabéns pela iniciativa. Gostaria de ver na revista matérias sobre a caprinocultura – sabendo não se tratar de uma revista voltada ao aspecto agropastoril – mas uma pesquisa do universo sociocultural que circunda essa atividade no Nordeste. Demócrito Elias – Riacho de Santo Antônio – PB Interesse humano Li quase tudo dos dois primeiros números desta revista com grande prazer. Fiquei impressionado pela excelente qualidade das fotografias e do design. Gostei não apenas dos artigos sobre o Brasil holandês, como aqueles sobre pinturas rupestres, arte moderna e outros de interesse humano. A equipe está de parabéns pela realização. Vocês têm os meus melhores votos para o futuro. Ernst van den Boogart – Holanda
EDITORIAL
VICENTE PEIRO ASENSIO
Para arriscar e melhorar a vida
E
scritores gostam de citar. Mesmo quando ocultam o que tiram de outrem sob o nome complicado de intertextualidade. Talvez em homenagem deles coubesse citar uma imagem. A de uma foto premiada com o primeiro lugar num concurso promovido já há sete anos pela biblioteca municipal de Salamanca: O prazer de ler. A foto é de Vicente Peiro Asensio. Bem adequada para ilustrá-la esta passagem do escritor espanhol Enrique Vila-Matas: “Nada menos agressivo do que um homem que baixa a cabeça para ler um livro que tem em suas mãos”. A frase foi tirada do texto Escrever é
deixar de ser escritor. Não há espaço aqui para maiores digressões sobre o artigo nem explicar o seu aparente paradoxo. Mas, sim para comentar que a escolha da frase do autor de História Abreviada da Literatura Portátil não se deu ao acaso. Sendo a Espanha o país homenageado este ano na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, nada melhor do que exemplificar o “ofício duro e paciente, um ofício em que se avança nas trevas, em que alguém se obriga a apostar a vida, a arriscar (como dizia Michel Leiris) a vida como o faz um toureiro.” Neste número, em que alguns dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade comentam o seu trabalho, também publicamos um especial sobre a Espanha, igualmente por alguns dos seus intelectuais mais destacados. Todo escritor é um pouco também bibliotecário, editor, livreiro e, de certa maneira, tem o seu rosto feito de livros como aquela figura fabulosa da pintura de Arcimboldo. Ou é um pássaro feito de pássaros, como no Avalovara de Osman Lins. Todo escritor que se preze aprende mais cedo ou mais tarde a sutil e brutal diferença entre “escrever bem e a arte verdadeira”, como Capote. Escrever é aventura, resume o espanhol. E elevação. Exige paciência e capacidade de reescrever, recomeçar sempre. O que às vezes, como em Wilde, equivale a recolocar uma vírgula à tarde que havia sido tirada pela manhã. Ou como diz de modo mais poético ainda Vila-Matas: “Escrever é corrigir a vida”. Idéia que talvez corresponda a esta passagem de uma utopia radical de Svevo por ele citada: “Quando todos compreenderem com clareza o que eu faço, todos escreverão. A vida será literaturizada. A metade da humanidade se dedicará a ler e estudar o que a outra metade terá escrito. E o recolhimento ocupará a maior parte do tempo que será arrebatado à horrível vida verdadeira. E se uma parte da humanidade se rebelar e se negar a ler as elucubrações dos demais, tanto melhor. Cada um lerá a si mesmo.”
Foto premiada com o primeiro lugar num concurso promovido já há sete anos pela biblioteca municiapal de Salamanca: O prazer de ler
LITERATURA
A
O ofício de escritor
literatura brasileira vai mal. A literatura brasileira vai bem. Em 1998, de 370 milhões de livros publicados, apenas 7% eram de literatura adulta. Em 99, o percentual caiu para 3% (e o volume total de livros também baixou para menos de 300 milhões). O grosso do que se publica no Brasil é de livros didáticos, seguidos dos de religião. Mas os escritores continuam escrevendo. Num país de pouca renda e poucas letras, o ofício de escritor atrai gente que acredita ter algo a dizer, poder contribuir para mudar o mundo, exorcizar seus fantasmas pessoais, expor as vísceras da sociedade. Motivações como dinheiro e prestígio não são assumidas. Talvez porque pouquíssimos conseguem viver exclusivamente de literatura. Quanto ao desejo de prestígio, parece não ser encarado como valor positivo em nossa sociedade, que, além do mais, nega o reconhecimento a uma atividade pouco compreendida. Os escritores, entretanto, vão em frente. Ariano Suassuna considera escrever mais que um ofício, uma missão, exercida com paixão, coragem e alegria, em que se assume um risco que vale a pena. Affonso Romano de Sant’Anna acredita na força da linguagem como forma de encantamento, consolo e transformação. Para Raimundo Carrero escrever é um prazer, que carrega suas dores, como um parto. Para Fernando Monteiro,
um dilaceramento total, exigido pelo papel de dilatar consciências. Entre essas definições abstratas, os escritores trabalham imersos nas profundas contradições da sociedade brasileira, em meio a transformações tecnológicas que afetam o próprio objeto de seu trabalho – o livro –, pressionados pelas vicissitudes de um mercado cada vez mais globalizado, confrontados pela influência avassaladora dos meios de comunicação de massa que formam gerações sucessivas numa cultura audiovisual. Como observa Ana Miranda, as novas realidades obrigam os escritores a enfrentar o difícil equilíbrio entre as exigências de uma profissionalização inevitável e a necessidade de expressão pessoal de uma verdade profunda. A literatura brasileira, vista sob esses vários ângulos, vai bem... e vai mal. Nas avaliações dos próprios envolvidos, há queixas sobre a qualidade da produção recente e entusiasmo quanto à diversidade, vitalidade e riqueza das letras nacionais. Nesta reportagem, escritores de gerações, visões e estilos diferentes expõem o que pensam sobre seu próprio ofício e os temas que o impactam, num painel das suas perplexidades, dificuldades e esperanças.
Homero Fonseca Com reportagem de Schneider Carpeggiane. Colaborou Marco Polo
ROGÉRIO REIS / TYBA
Encantamento, consolo e transformação Affonso Romano de Sant’Anna Felizmente, como já escrevi em crônica n’O Globo, estão aparecendo em Pernambuco e no Rio Grande do Sul revistas que mostram saudavelmente que muita gente boa existe fora do eixo Rio–São Paulo.
Prósperos x precários Não se confunda literatura com venda de livros. Dizer que o País produz 400 milhões de livros ao ano, sendo a maioria livros didáticos, não tem muito a ver com literatura enquanto forma de mobilizar o imaginário através da linguagem escrita. Também não se confunda prosperidade de editores com a situação geralmente precária dos escritores. Enfim, alguns escritores fazem o possível. Subprodutos Eu vivo para a literatura e não de literatura. Vivo de seus subprodutos: jornalismo, conferências, cursos (mesmo aposentado). Literatura sem coordenação Ponto fraco da nossa literatura: ela não se constitui como um sistema. A literatura francesa é um sistema, a literatura espanhola é um sistema, a literatura portuguesa, um sistema. Um sistema pressupõe coordenação, integração entre as partes. Aqui, a universidade vai para um lado, a maioria dos suplementos fica subservientemente dando 80% do espaço à literatura estrangeira, os pouquíssimos prêmios literários não garantem êxito de público ou financeiro aos vencedores, e assim por diante.
O livro é eterno Em relação ao futuro, não há nenhum problema quanto ao livro convencional. Continuará. Com ou sem e-book, que, aliás não está com essa bola toda. Foi a mesma coisa quando surgiu o CD-Rom. A Biblioteca do Congresso Americano chegou a botar 200 milhões de dólares para converter livros em CD-Rom. Hoje esse suporte perdeu o charme. Fabricar o leitor O movimento editorial brasileiro está pobre, atendendo ao mercado didático. Durante mais de seis anos dirigindo programas de leitura na Biblioteca Nacional, tentei vender, para a Câmara Brasileira do Livro e para o SNEL, uma obviedade: é importante formar, fabricar o leitor. O leitor antecede o livro. Mas eles têm dificuldade em entender isto. Royalties Se a globalização favorece ou desfavorece o mercado editorial brasileiro? É pagar para ver. Até agora, os exemplos não demonstram nenhuma mudança essencial, senão que estão levando royalties e dividendos. Epopéia da leitura Para conquistar novos leitores, o modelo estava no antigo Proler, que organizamos na
Biblioteca Nacional e que o atual ministro da Cultura estropiou e empobreceu. Foi uma experiência tão fascinante, com 33 mil voluntários em 300 municípios, que já surgiram várias teses universitárias estudando o que foi essa epopéia em favor da leitura, que mobilizou quartéis, hospitais, cadeias, praças públicas, sindicatos etc.
ANDRÉ ARRUDA / AJB
A força da linguagem Não sou pessimista nem otimista em relação a nada. Sou realista e acredito na lingua-
gem como forma de encantamento, consolo e transformação das pessoas. Affonso Romano de Sant’Anna, mineiro, é poeta, cronista e ensaísta. Ensinou literatura brasileira em universidades brasileiras e estrangeiras. Entre suas principais obras estão: A Catedral de Colônia e Outros Poemas (1987) e Textamentos (1999). Recebeu vários prêmios, entre os quais o Mário de Andrade e o PenClub. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 1990 a 1996.
Entre o ideal sagrado e o profano mercado Ana Miranda
O Brasil está vivendo um momento terrível. Noutro dia liguei a TV, era sábado, e fiquei com falta de ar e enjôo, tal a baixeza e grosseria do que se passava ali. Isso não é tudo, claro, há um monte de gente fazendo trabalhos sérios e de importância cultural, mesmo na própria TV, mas a sensação que dá é que o Brasil, hoje, não passa de um monte de gente gritando e rebolando, roubando e matando. A literatura se ressente, claro, de toda a situação brasileira, e, por ser um item cultural
de uma esfera que não é popular, ressente-se ainda da falta de estímulo, da falta de leitores, da falta de interesse e de sistemas de defesa e valorização da obra, do autor e do leitor. O momento me parece um pouco voltado demais para livros que tenham reportagens nos jornais e revistas, os escritores são pressionados a escrever de olho na caixa registradora, ou de olho numa adaptação para TV ou cinema. As coleções idealizadas pelos editores e encomendadas aos escritores são, por um lado, uma saída para haver maior movimento editorial e, por outro lado, a dessacralização do livro, um objeto de consumo tão necessário como o sabão em pó. Mas também são um perigo horroroso de banalização, de queda de qualidade, para atender a uma necessidade frenética de novos títulos e informação. Os livros encomendados, com prazo marcado para entrega, restringem a possibi-
lidade do escritor de fazer o melhor possível seu das, pendências, irresoluções, numa avalanche trabalho e tiram a expressão literária da esfera de novidades. Isso também cria problemas para de expressão pessoal de uma verdade profunda. a literatura, que é um dos meios mais aptos para Novos “filões literários” são perseguidos se vasculhar as questões da alma e do comportadia após dia. Um dos sucessos recentes de edi- mento humano, as partes mais íntimas do espírição são os chamados livros para-didáticos. En- to, os mundos interiores, oníricos, ontológicos. comendam-se livros sobre Aids, aborto, precon- Quem está interessado nisso? As novelas de TV ceito racial, homossexualismo, as livrarias e esco- fazem um pouco esse papel, numa escala mais las são inundadas por esse tipo de literatura, em ampla, porém muito superficial, esquemática e geral de qualidade muito baixa, que serve ape- acachapante, onde estão embutidos os interesses nas como base para a discussão de assuntos pú- subalternos do mercado de almas, carros, cerveblicos. Isso é maléfico, porque cria um gosto ge- jas, refrigerantes. É um momenral pelo malfeito. to de grande mudanPercebo uma tentativa dos editores Até há pouco tempo o escritor ça na visão que o escritor tem de si mesem melhorar a qualiera diletante e sagrado, mo e na visão que os dade, convidam os não podia se misturar com o outros têm do escritor, bons escritores, mas mundanismo nem com o uma mudança de as condições em geral dinheiro, era condenado à mentalidade. são precárias, tudo é vicissitude, ou obrigado a Até há pouco muito rápido, não há ganhar a vida no serviço tempo, o escritor era tempo a perder, há diletante e sagrado, muito mais gente público, no magistério, na dentro do sistema liImprensa, onde quer que fosse. não podia se misturar terário interessada na Hoje ele é chamado a se tornar com o mundanismo nem com o dinheiro, recompensa financei“escritor profissional” era condenado à vicisra do que nos benefísitude, ou obrigado a cios culturais. Isso acontece. Nos EUA é assim, o mercado edito- ganhar a vida no serviço público, no magistério, rial tem seu lado interessante, mas lá os escri- na Imprensa, onde quer que fosse. Hoje ele é tores que desejam se dedicar a um trabalho mais chamado a se tornar “escritor profissional”. É profundo e duradouro são protegidos e até esti- muito difícil encontrar o equilíbrio nesse promulados. Aqui, são todos jogados na fogueira cesso, especialmente numa sociedade tão desedas vaidades e das venalidades. Só os mais obs- quilibrada como a nossa. Tudo aqui é feito de forma muito violenta. Temos que passar por tinados não perecem. Outro dos problemas pelos quais pas- isso, e, apesar das aberrações que tudo isso cossamos, no momento, é que o país está voltado tuma causar, nada vai destruir a nossa literatura, para as discussões de temas públicos, o que é ela é uma das mais ricas e ousadas do mundo, muito bom, mas estamos nos esquecendo de que uma das mais livres e pulsantes. a alma existe, a nossa alma também precisa ser Ana Miranda, cearense, publicou dois livros de vista e conhecida. E as discussões não são aprofundadas, as discussões éticas se restringem às poesias: Anjos e Demônios e Celebrações do Outro, ambos denúncias e descobertas de fraudes, as sociais se com ilustrações da autora. De prosa, seus principais restringem ao calor dos acontecimentos, que são livros são os romances históricos Boca do Inferno (90), contínuos, e parece que um vai apagando o ou- O Retrato do Rei (91), Desmundo (96) e Amrik (97). tro. Estamos formando um palimpsesto de dívi- Também escreveu um livro de contos – Noturnos.
“
ALEXANDRE BELÉM / TITULAR
Escrever é missão e paixão Ariano Suassuna
Como vai a literatura brasileira? Espero que venha por aí uma nova geração que preencha o vazio criado pelo desaparecimento de poetas e romancistas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José Cândido de Carvalho e João Guimarães Rosa. O senhor vive de literatura? Quando jovem, tomei a decisão de manter a família como professor, a fim de só escrever o que quisesse e como quisesse, sem a preocupação de obter grandes êxitos de venda, fama ou prestígio. Quais os pontos fortes e pontos fracos da literatura brasileira? Os pontos fortes vêm do fato de que temos um grande País e um grande Povo. Os fracos surgem porque a elite política, econômica e intelectual quase sempre ignora o País e o Povo (quando não os despreza), preferindo apegar-se à imitação do que de pior existe fora. Por que temas de grande impacto social, como o futebol, são pouco explorados pela literatura brasileira? Sempre me interessei pelo futebol. Ultimamente, porém, ando meio desanimado, ao ver que o capitalismo neoliberal está transformando os clubes em simples empresas. Para verificar como é nefasta essa política basta ver
como anda o triste e pálido fantasma em que ela transformou a nobre seleção brasileira Qual o futuro do livro? O chamado ebook? O livro, cujo futuro me interessa, é do mesmo tipo e formato daqueles que foram escritos por Cervantes ou Dostoievski. Não sei, nem quero saber, o que é um e-book. Mas posso imaginá-lo, e tenho certeza de que ele não vai acabar com o outro, cujo futuro continua tão belo e forte à nossa frente. Escrever é um prazer ou dilaceramento? Para os outros, não sei. Para mim, é uma paixão que me ajuda não só a enfrentar os dilaceramentos e danações da vida como, às vezes, até a rir e zombar deles. Qual o papel do escritor? Como escritor, procuro seguir uma vocação que me apareceu quando era muito moço. Tento realizá-la tomando o exemplo de coragem e alegria de meu povo que, injustiçado, oprimido e explorado, consegue celebrar sua festa como numa busca do sol de Deus. Como encara a relação entre ideologia e literatura? Acho natural que as idéias religiosas, políticas ou filosóficas de um escritor apareçam em seus romances ou peças de teatro. O que é ruim é colocar a literatura a serviço da religião, da política ou da filosofia, considerados prioritários em relação à beleza. Quais os seus próximos projetos? Atualmente, meu sonho é concluir a primeira parte de um longo romance que venho tentando escrever desde 1981, sem que os outros me deixem sossegado para trabalhar nele.
ALEXANDRE BELÉM / TITULAR
Qual sua visão do mercado editorial brasileiro? Desde que começaram a transformar o antigo e fiel público de literatura num simples “mercado” igual a qualquer outro, ele, no mundo inteiro (e não somente no Brasil), começou a passar por um processo de vulgarização terrivelmente prejudicial à literatura. A globalização favorece ou desfavorece a literatura nacional? Do ponto de vista da criação, ela só afeta os escritores sem verdadeira personalidade, sem raça e sem garra. Do ponto de vista da comunicação, é uma das maiores causas da vulgarização a que acabo de me referir. A TV ajuda ou atrapalha a literatura? Da maneira como é feita comumente, atrapalha. Se mudasse para melhor poderia ajudar muito e ser, ela própria, uma arte maravilhosa. Como conquistar os jovens leitores, formados na cultura audiovisual? Infelizmente, acho que não seria bom, para a literatura, conquistar jovens leitores de
cabeça tão fraca que se deixam afetar e deformar pela baixa “cultura” audiovisual. O senhor é pessimista ou otimista? Nem uma coisa nem outra. Sou realista esperançoso. Que diria a um candidato ao ofício de escritor? Primeiro, que não se trata de um ofício, mas de uma missão. Depois, que ele está se arriscando muito, ao assumi-la. Mas, se a tentativa der certo, o risco vale a pena, porque (pelo menos em minha opinião), a literatura é uma das mais belas formas que o ser humano encontrou para enfrentar a terrível e fascinante tarefa de viver. Ariano Suassuna, paraibano, é autor de romances, poemas, peças de teatro e gravuras. Sua peça O Auto da Compadecida, recentemente adaptada para TV e cinema, é um marco na dramaturgia brasileira. Escreveu inúmeras peças, entre as quais Uma Mulher Vestida de Sol e Farsa da Boa Preguiça, além do Romance da Pedra do Reino e da novela Fernando e Isaura. É membro da Academia Brasileira de Letras.
Literatura ainda é destino Fernando Monteiro
Expor o pescoço A literatura brasileira anda morna, em banho-maria de imaginação, invenção e varie-
dade. Talvez porque, sem vida interior, sem mundos que habitem na mente, o escritor não oferece ao leitor senão um duplicado (menor) da realidade. Literatura não se faz sem expor o pescoço ou nas horas vagas dos Jô Soares. Literatura não é a encomenda de morte dos editores ou o piadismo encartado em forma de livros descartáveis. Literatura não se faz com o apelo de bordel do Prata, convidando o leitor a partilhar a cama interativa da Internet com cheiro de
privada. Literatura ainda é destino – e, no Brasil atual (do acaso e do Mercado), ela se desencontra de si própria. Neste contexto, claro que a literatura não pode ir “bem”. Fraturas da imaginação Nossa poesia é de ótima qualidade. Somos bons no varejo dos contos – e maus no atacado do romance, geralmente. No caso da ficção, repito, a fratura da imaginação se torna a fratura exposta de obras até bem escritas – sobre temas repisados e pobres de invenção etc. Se você não tem o que dizer, por favor, pode ir fazer o filho e plantar a tal árvore em qualquer quintal... mas deixe a literatura em paz (e, em Pernambuco, seja só médico! Os hospitais – e não as academias – é que estão necessitando de genéricos...) A 25ª hora O livro é o prazer final que ainda restará quando o último homem se levantar, fechando as páginas da última grande obra, para ir apagar a luz do último aeroporto aceso, na vigésima quinta hora. A pele da mente Escrever é um dilaceramento total. Escrever é expor a pele da mente, ressequida e espichada ao sol – para usar uma imagem de Lawrence. Quem associa literatura a uma espécie de divertimento exibido e vaidoso é um ingênuo que precisa da lição das coisas, do olhar sobre o abismo onde jaz o coração das trevas. O resto é silêncio – e livros de Sabrinas & Sabrinos que não sabem o que é o dilaceramento (a palavra é realmente essa) da literatura. Dilatando consciências O papel do escritor é o de dilatar consciências – e não saudades dos trens da Great Western e da sorveteria Gemba. O papel do escritor não é vendido nas principais papelarias da cidade – e só se incendeia quando se acende com o isqueiro da compaixão pelos erros e pelos acertos humanos. Nada do que é humano é estranho para os verdadeiros escritores.
Panfletos naufragados A ideologia encontra seu veículo ideal no panfleto. Idéias políticas – no sentido estrito da palavra – não têm e não podem ter lugar na obra rigorosamente artística (que reflete a vida íntima e social, micro e macrocósmica). Todas as vezes em que a literatura foi apertada na garrafa da ideologia – como no caso do “realismo socialista” de Stalin – naufragou até como panfleto raso... e produziu obras esquecidas logo ao nascer, marcadas pela circunstância (e pela pompa) do poder provisório. Por uma TV inteligente A televisão é somente um veículo. Ela seria de grande ajuda, no Brasil, se estivesse nas mãos de pessoas sensíveis e cultas. A TV estatal de alguns países europeus (RAI italiana, BBC etc.) é de alta qualidade, produz e co-produz filmes de indiscutível importância artística e se torna em vetor de cultura e não em esgoto de “piscinas do Gugu” e ratos de auditório. Mas é preciso investir para dotar a televisão de inteligência e responsabilidade. Fantasma desfocado Ser pessimista ou otimista? Com relação a quê? Ninguém pode ser um pessimista compulsivo (como Cioran) ou um otimista da Ilha da Fantasia (como FHC). Aliás, o meu pessimismo ou o meu otimismo, eventuais, não determinam em nada o meu trabalho; ele conecta – ou tenta conectar – com o fantasma desfocado da realidade, e o esforço de apurar sombras e claridades independe, em parte, dos dias radiosos de sol e das noites escuras da desesperança pessoal. Escreve-se sobre o que não se sabe – para ficar sabendo (já dizia o filósofo chinês Nun-chi-chabe). Fernando Monteiro, pernambucano, é poeta, romancista e ensaísta. Entre suas obras, estão Memória do Mar Sublevado (poesia), O Rei Póstumo (teatro), Aspades, Ets, Etc (romance, publicado primeiramente em Portugal) e A cabeça no fundo do entulho (romance).
ROGÉRIO REIS / TYBA
Necessidade de explicar-se a si próprio Ferreira Gullar
O senhor costuma acompanhar o que acontece na literatura brasileira? Não, eu não sou a pessoa mais indicada para falar sobre isso, porque não acompanho o que acontece. Prefiro falar sobre outros tópicos, não quero falar sobre mercado editorial, por exemplo, não acompanho. Além disso, não costumo ler novos autores, viajo muito. Para o senhor, escrever é mais um prazer ou um dilaceramento? Veja só, para mim, nem um nem outro. Não penso se é por prazer ou por dor. Sempre escrevi porque tenho necessidade de ter alguma coisa para dizer, porque eu preciso me explicar de alguma forma, e é escrevendo que eu consigo fazer isso. Essa é a minha principal motivação, desde o princípio foi essa mesmo. Atualmente, estou vazio, porque não estou escrevendo nada. O senhor, que já é um poeta estabelecido e até considerado o maior poeta brasileiro vivo, consegue viver de literatura? Não. É muito difícil conseguir viver de literatura. Só se você for um autor de best-seller, o que não sou. No meu caso, como poeta, é mais difícil, poesia sempre vende menos, não só no Brasil, mas no resto do mundo também, é a mesma coisa. Até mesmo para quem escreve
gêneros como romance, conto, a situação é mais fácil, porque não deixa de ser entretenimento. Poesia não é entretenimento. Não dá para viver como poeta, principalmente quando você tem família para sustentar, e eu tenho muitas pessoas para sustentar. Quer dizer que o senhor nunca conseguiu viver só de literatura e de jornalismo? Bem eu já fui crítico de arte da Veja, mas crítico de arte também não ganha muito bem. É bem pouco remunerado e, nessa altura da vida, não tenho mais condições de ser crítico de arte em lugar algum. Ganhei minha vida mesmo trabalhando em jornal, como copy-desk. E em relação aos prêmios literários brasileiros, como o Jabuti, qual sua opinião sobre eles? Os prêmios literários do Brasil, falando do Jabuti, que ganhei no ano passado, têm um valor irrisório, só simbólico, de R$ 1.000. É realmente muito pouco, uma vergonha. Não se pode falar em um prêmio literário de R$ 1.000. E no caso de prestígio, divulgação da obra, o Jabuti ajuda? Nessa altura da minha vida, estou cagando para prestígio. De fato, nem penso nisso, é um assunto que pouco me interessa. Ferreira Gullar, maranhense, é poeta, dramaturgo e ensaísta. Publicou 15 livros de poesia, entre os quais A luta corporal (1975), Dentro da Noite Veloz (1975), Poema Sujo (1976), Na vertigem do dia (1980), O Formigueiro (1991). Sua obra tem traduções em alemão, espanhol e inglês. Em 1992 foi diretor da Funarte e em 1999 ganhou os prêmios Jabuti e Alphonsus de Guimarães, na categoria poesia.
BERNARDO SOARES / DP
Escrever era a minha fuga Gilvan Lemos
Na sua opinião, como está a literatura brasileira? Olha, eu não tenho acompanhado muito o que está acontecendo atualmente na literatura brasileira. Não vejo muitos bons autores, pouca coisa me empolga. Os novos autores que a Imprensa fala acabam me interessando muito pouco. É preciso ressaltar que, com o tempo, vou ficando ainda mais exigente com o que separo para ler. Tenho de confessar que tenho lido mais a literatura americana, de autores judeus, como Saul Bellow. Há quanto tempo o senhor não se empolga com o trabalho de um novo autor? Faz muito tempo, tanto tempo que nem me lembro bem, não gosto de citar nomes. Acho que o Osman Lins foi o último que me impressionou. Seu último livro, Morcego Cego, foi de 98. Incomoda-llhe passar tanto tempo sem publicar? Incomoda a mim, sim, por causa do público, que fica esse tempo todo sem coisas novas. Quando digo que queria ficar famoso não é por conta do dinheiro, mas, sim, para publicar quando quiser, é isso que me preocupa. Acho que meu tempo de ficar famoso já passou. Entre 56 e 68, fiquei sem publicar nada, porque era muito inexperiente. Eu escrevia na esperança de que, um dia, um editor deparasse com
os meus escritos, gostasse e decidisse lançar um livro imediatamente. Não é assim que as coisas acontecem no Brasil. Qual foi o retorno financeiro que a literatura lhe trouxe? Nenhum. Muito pouco mesmo. No Brasil, é muito difícil para um escritor conseguir viver daquilo que ele escreve. Poucos autores conseguiram isso, como Gilberto Freyre, Érico Veríssimo. Isso é frustrante, mas, como disse, para mim, o importante sempre foi escrever. Mas essa dificuldade de viver de literatura não é só aqui no Brasil que ocorre. Na Europa, Estados Unidos, é tudo a mesma coisa. Para o senhor, escrever foi mais um problema ou um prazer? Olha, eu sempre fui muito tímido. Escrever era a minha fuga, onde melhor eu podia me esconder. Sempre fui tímido, tive dificuldades para fazer amigos, demorou muito para que travasse conhecimento com outros escritores. O primeiro foi o Osman Lins, que me dava muitos conselhos. É mais fácil ou difícil um escritor nordestino se projetar hoje em dia? Acho que é a mesma coisa, a mesma dificuldade. Osman Lins me dizia sempre que eu deveria deixar o Recife, se quisesse ser um escritor, porque aqui é o túmulo da literatura. Mas eu não saí. Gilvan Lemos, pernambucano, tem 18 livros publicados, entre eles os romances Noturno sem música, Emissários do Diabo, Os olhos da treva e O anjo do quarto dia, os livros de contos O defunto aventureiro e Os que se foram lutando e a novela A noite dos abraçados.
ARI GOMES / AJB
Recompensas reais ou imaginárias do escritor Lêdo Ivo
Na sua opinião, como vai a literatura brasileira atualmente? Acho que ela está boa, andando. A cada década, surgem novos autores, novos talentos. O que eu acho interessante é que, atualmente, os autores estão aparecendo sem precisar fazer parte dessa ou daquela geração. Eles não precisam mais ser enquadrados nessa ou naquela categoria. Quando comecei a escrever, logo quiseram classificar os meus poemas em alguma categoria literária, me juntar a um grupo de poetas. Hoje em dia, isso está mais difícil de acontecer. A literatura virou uma experiência, sem dúvida, mais solitária. O senhor consegue viver de literatura? Não, eu não consigo, eu me sustentei mesmo com a profissão de jornalista. Acho que em qualquer lugar do mundo é difícil para um escritor viver só de literatura. Manuel Bandeira dizia que a literatura não lhe trouxe dinheiro, mas lhe trouxe um prestígio, que ele devia tudo o que era à literatura. Escrever tem dessas recompensas, que são reais ou mesmo imaginárias, mas que também não deixam de ser recompensas. No seu caso, como poeta, é mais difícil ser bem recompensado por aquilo que escreve?
Sim, quando comecei a escrever, um livro de poesia tinha uma tiragem de 500 exemplares, hoje é de 3.000. Como se vê, não houve mudança alguma, porque a população cresceu muito desde o tempo em que eu comecei até aqui. Qual a sua opinião sobre os prêmios literários brasileiros? Bem, há o Jabuti, que eu ganhei uma vez e ganhei de novo este ano. Se eu estivesse na banca dos jurados, não me daria o prêmio, porque eu já o ganhei antes. Acho que ele deveria ir para gente que nunca o recebeu antes, é bem mais justo que seja assim. O prêmio Jabuti é um prêmio de livreiros, é interessante, dizem que dá prestígio, mas a recompensa financeira de R$ 1.000 para o primeiro lugar é apenas simbólica. Qual a sua relação com o mercado editorial brasileiro? Bem, como minha carreira é grande, já passei por diversas editoras. Meu último livro saiu pela Nova Fronteira. Atualmente, está ocorrendo um fenômeno interessante, que é a das editoras nanicas, que estão divulgando o trabalho de muita gente jovem. Engraçado é que, de acordo com uma pesquisa que fizeram, existem mais editoras no Brasil, hoje em dia, do que livrarias. O problema de um escritor não é mais publicar, mas, sim, fazer com que o livro seja distribuído. Lêdo Ivo, alagoano, tem extensa obra poética. Principais livros: As Imaginações, Acontecimento do Soneto, Um Brasileiro em Paris, Estação Central, Finisterra, Crepúsculo Civil. Escreveu também os romances As Alianças e Ninho de Cobras. É membro da Academia Brasileira de Letras.
SÉRGIO AMARAL / AJB
Um exercício de esperança e sedução Lygia Fagundes Telles
Escrever para mudar algo Eu acho a literatura brasileira da melhor qualidade. O escritor Juan Rulfo diz que temos a melhor literatura das américas, a mais livre, diversificada, profunda. Há nomes de excelente qualidade, como Jorge de Lima, Machado de Assis, Clarice Lispector, poetas como João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Cecília Meireles – veja só que eu estou citando apenas os mortos, para os vivos não reclamarem. Não se pode falar mal de uma literatura que tem nomes como Álvares de Azevedo, Fagundes Varella, que foram da escola do ‘morrer cedo’, como dizia Drummond. Agora, é uma contradição termos tantos nomes bons trabalhando em um País no qual a maioria da população não tem acesso à leitura, de nenhuma forma, não só literatura. O Brasil é muito contraditório. Mas o escritor tem de escrever com a esperança, e essa palavra para mim é fundamental, que vai ser lido, precisa ter sempre essa convicção. É por isso que eu digo que faço uma literatura engajada, no sentido que tenho sempre a esperança de que vou poder mudar alguma coisa com o que escrevo.
Desconfiando do futuro Se vivo do que escrevo? Absolutamente. Ainda bem que tirei o meu diploma de Direito; parece que, naquela época, eu já desconfiava do futuro. Só poucos nomes conseguem viver de literatura, como o Paulo Coelho e Jorge Amado. Ambos, tenho de dizer, respeito muito. O Jorge Amado é um amigo queridíssimo. Eles conseguiram viver daquilo que escrevem, é difícil isso acontecer. Os escritores são, em sua maioria, muito mal remunerados. Mas, como já disse antes, na hora da escrita a gente deve esquecer tudo isso e tentar usar a sedução. Essa é a função do escritor, tentar mudar alguma coisa com aquilo que escreve. No meu último livro, Invenção e Memória, há textos presentes nele muito engajados e o interessante é que esse livro é um dos meus trabalhos que mais tiveram sucesso, pelo qual as pessoas estão se interessando mais. Então, isso me dá muita esperança. Vísceras abertas Há pouco tempo, eu estava fazendo uma conferência em uma escola, e um menino, negro, veio me perguntar o porquê de eu e o Machado de Assis, vejam só com quem ele me juntou, um capeta ele, não falarmos da questão do negro. Eu rebati a pergunta, dizendo que poucos escritores fizeram tanto pela literatura quanto o Machado, poucos exploram de forma tão aberta as vísceras humanas. Em relação a mim, lhe perguntei se ele leu um conto meu, chamado A Medalha, do livro A Estrutura da Bolha de Sabão, que fala disso, de uma maneira bem forte. Não fico com um caderninho anotando os temas
Lygia Fagundes Telles, paulista, é autora de 15 livros de contos, entre eles O jardim selvagem, Antes
O papel do escritor é higiênico
do baile verde, Seminário dos ratos, A disciplina do amor e A estrutura da bolha de sabão. Arrebatou inúmeros prêmios literários nacionais. Também tem quatro romances, incluindo As meninas e As horas nuas. Tem obras adaptadas para o teatro e o cinema e traduzidas em alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, polonês, sueco e tcheco. JR. DURAN / DIVULGAÇÃO
que vou falar nos livros, porque aí ficaria chato. E, como disse, o escritor precisa saber seduzir com os seus textos, ele não pode ser muito direto, não pode ser muito óbvio.
Marcelino Freire Fôlego longo A literatura arrojada, sem pose na língua, sem firulas de butique, essa vai boa. Há uma turma de escritores que vem sacudindo o pedaço: Marcelo Mirisola, Evandro Affonso Ferreira, Luiz Ruffato, Nelson de Oliveira. Conheci há pouco uma bela contista do Rio Grande do Sul, a Cíntia Moscovich. Olha, se depender dessa gente, nosso fôlego chega longe. Palavra bonita, fôlego. Não quero aqui entrar em discussões de mercado, vendas, distribuição. Quero falar da qualidade Novidade. Circulação de sangue novo. Os pontos G Nossa literatura é forte. Cheira forte. É preciso acreditar nisso. Não acreditasse eu na força do que faço, ia fazer outra coisa. Ia fabricar gás pra geladeira, não sei. Nossa literatura precisa ser arrebatadora, demoníaca. Feita de raiva, de verdade raivosa. Os pontos fracos não nos pertencem, não podem nos pertencer. É coisa outra, de mercado. Distribuição capenga, poucos recursos, leitores. Isso não pertence à nossa literatura. Está fora dela. Depois do ponto, entende? Noutra. Vivemos atrás dos pontos G. Os pontos G da literatura, esses, sim, a gente tem que se permitir descobrir.
Janela para o deslumbramento Sou meio demente para falar de futuro. Não sei como vai ser o livro em 3001. Essa preocupação fica para a ficção científica. Gosto do eixo presente. Posso dizer que livro pra mim é deslumbramento. É uma janela que se acessa. O primeiro poema que li foi O Bicho, de Bandeira. Aquilo foi violento, mudou meu trajeto. Agora, se esse livro vai ser acessado num computador, vai virar combinação binária, infelizmente não estarei aqui para acompanhar. Já terei virado lixo nuclear, sei lá. Escrever não é um parto Há quem ache que escrever casa com sofrer. Acho isso um saco. Cristão demais. Um dia me falaram: você não tem cara de escritor. E escritor precisa ter cara? É um bicho morto? Merece ser tuberculoso? Vade! Escrever não é parto. Dilaceramento ou coisa que valha. Se para fazer meus 17 contos do Angu de Sangue eu tivesse que cagar 17 cocos, desistia da literatura. Curto o que faço. É música o que faço. Vou costurando sons, coisas, numa adrenalina tonta. Lógico que meus temas não são festivos, não são cheios de serpentina, não são macios como um marshmallow. O efeito cada leitor que dê, a seu bel-prazer.
Escrever para oxigenar O papel do escritor é escrever. O médico medica. O clínico clinica. A sinfônica sinfonica. Não é diferente com o escritor. Escritor escreve, olha, percebe, registra. Isso, sem nenhum valor de juízo. É uma antena do seu tempo, incorpora o seu tempo, discute, revela. Dá um instrumento ao leitor. Oxigena coisas. É uma porta aberta, sei lá. No meu caso, escrevo para me salvar. O homem não presta. O mundo não tem remendo. O mundo é uma merda. Nesse caso, o papel do escritor é higiênico. Entrega, intriga Não acredito em escritor alheio ao seu tempo, alienado. É preciso ter um olho bem esticado para o social. Não falo do social panfletário, discursivo. Inclusive, sempre me falam que minha literatura é da minoria. Minha literatura não é de nada. Atira para todos os lados. Mostra, traça perfil, estampa sem pudor, apresenta personagens. Não tomo partido. O leitor que compactue, que chafurde, que oriente-se. O leitor é co-autor nessa entrega, nessa intriga. Trabalho em comunhão, então. Vai ver que é isso. Trabalho em comunidade com o leitor, por acaso.
ALCIONE FERREIRA / DP
Antenas abertas A TV ajuda e atrapalha a literatura. Depende, não sei. Gosto de não ser escritor de ca-
sulo. Escritor embrenhado numa cápsula, isolado num arquipélago. Acho a TV um instrumento, um serviço. O leitor não só lê, vê também. Para divulgação do Angu de Sangue, dei entrevistas para a TV Cultura, TV Senac, GNT. Gosto de aparecer para falar algumas mentiras, discutir. Estão fazendo adaptações para TV de textos curtos, contos. Espero que as câmeras voltem-se para os novos contistas, apresentem versões das nossas coisas. Sem saídas Escritor otimista escreve livro de autoajuda, do tipo Como ser Alice no País das Maravilhas. Não acordo dando bom dia aos pombos. Os pombos foram expulsos do meu prédio. Estavam enferrujando as sacadas. Ser otimista é fácil, difícil é ver o mundo cinza, obscuro. O pessimista não se conforma, arranha, tem mais chances de melhorar as coisas exatamente por isso. O fato de não ver saídas já é uma chave para abrir cabeças e portas, não acha? Marcelino Freire, 33 anos, é natural de Sertânia, Pernambuco. Vive em São Paulo desde 1991. É autor dos livros AcRústico (contos, 1995) e eraOdito (aforismas, 98), independentes, e do Angu de Sangue (contos, Atelliê Editorial/SP, 2000). A mesma editora lançará uma nova edição do eraOdito – que virou vídeo premiado no Festival Mundial do Minuto – ainda este ano.
Consigo viver de literatura, de forma modesta Patrícia Melo Na sua opinião, como anda a literatura brasileira? Eu acho que ela anda em um momento muito rico, muito produtivo. As editoras estão abertas para o trabalho de novos escritores, algo
Você acha que o sucesso do seu trabalho, como no caso de O Matador, contribuiu para que as editoras apostassem em novos autores? Olha, se alguém me falar isso, vou achar muito bom, seria uma honra ter contribuído para ajudar novos escritores a publicarem suas obras. Mas, eu mesma, quando fui bater na porta da editora para publicar meu livro, já fui beneficiada com esse quadro de busca de novos talentos. Você consegue viver de literatura? Sim. Eu tenho quatro livros publicados, três deles lançados no Exterior, e Inferno está indo pelo mesmo caminho. Juntando a venda
Dizem que o escritor concorre com Deus
dos direitos em outros países, sim, eu posso dizer que consigo viver de literatura, de forma modesta, mas consigo. Mas eu não vivi só de literatura, também circulo por cinema, teatro. Dessa forma, consigo viver com o que escrevo, de maneira modesta, como já disse. Qual sua opinião sobre os prêmios literários brasileiros? Olha, eu já fui premiada na França, na Alemanha e, agora, no Brasil com o Jabuti. Isso é uma honra para mim ainda maior, porque é meu País. Não é só por conta de prestígio que um prêmio é importante para um autor, ele lhe dá força para não precisar escrever o que a editora manda, não precisa seguir as ondas do mercado. Como dizia Borges, literatura é sonho. Patrícia Melo é um dos novos talentos da literatura brasileira. Seu maior sucesso, O Matador, foi recentemente adaptado para o cinema por Rubem Fonseca. Ela também é autora da peça teatral Duas Mulheres e um Cadáver. Seu novo livro, Inferno, é um dos três ganhadores do Prêmio Jabuti deste ano.
ALCIONE FERREIRA / DP
que não acontecia há 20 anos, por exemplo. Não estou dizendo com isso que seja mais fácil publicar. Os novos autores ainda penam muito para conseguir chegar ao primeiro livro. Eles ainda têm de passar por uma verdadeira viacrucis para que isso aconteça. Mas, como eu disse, as editoras estão mais abertas ao trabalho de gente nova.
Raimundo Carrero Juntando palavras A literatura brasileira está em ponto morto. Até que saem alguns bons livros, aparecem alguns bons autores, mas nada de muito importante acontece. Nos anos 80 e 90, não surgiram autores realmente de nota, como um Osman Lins, uma Clarice Lispector. Os escritores não estão se arriscando mais a fazer grandes romances, que é um trabalho muito difícil. As pessoas
estão escrevendo contos, não romances. Romance exige um trabalho muito grande, uma elaboração enorme. As pessoas juntam uma, duas palavras e acham que estão fazendo literatura, o que não é o caso. Depois de mim, Fernando Monteiro, Gilvan Lemos, não há novos romancistas aqui em Pernambuco. Mesmo de contos, por exemplo, quem é que faz um livro de contos como Nove Novenas (Osman Lins),
que ainda não foi superado? Eu, por minha conta, tentei dar a minha contribuição com Maçã Agreste, As Sombrias Ruínas da Alma e até acho que consegui. Fora isso, a gente sofre uma concorrência grande com os meios de comunicação de massa, que colocam sempre a literatura de fora. Não existem grandes programas de literatura na Globo? O interessante é que aparecem revistas de cultura, como a Bravo, a Cult, a Continente, mas não grandes obras. Um objeto esotérico Sou totalmente pessimista sobre o futuro do livro. Não há como o livro lutar contra os grandes meios de comunicação. Acho que, no próximo século, o livro vai ser quase um objeto esotérico, que as pessoas só escutam falar que existe, mas que ninguém lê. Acho que o livro será um objeto só para os iniciados, não vai haver iniciantes. O papel do best-seller O mercado editorial brasileiro vai mal, porque os livros vendem pouco, o nível de leitura é baixíssimo, mesmo que sejam publicados muitos livros no Brasil. Acho que tem de haver o best-seller para que se paguem os livros melhores. Não tenho nada contra o best-seller. A dor do parto Escrever para mim é um prazer, nunca tive qualquer tipo de problema em escrever. Pelo contrário, acho que é o momento em que me sinto mais poderoso. Há pessoas que dizem até que o escritor é concorrente de Deus, porque ele também cria civilizações, vidas. Quando escrevo, é lógico que sofro também. Mas é como a dor do parto, há prazer na criação final. A retribuição A literatura não me retribuiu financeiramente, mas já me favoreceu a passar um ano estudando nos Estados Unidos. Quer coisa me-
lhor do que passar um ano escrevendo, bebendo e ainda por cima nos Estados Unidos? Sinônimo de preguiçoso Para dar um prêmio no valor de R$ 1 mil, o Jabuti não devia dar nada. É lógico que ele reverte em coisa boa, faz a gente ser amado, conhecido. Isso lá fora, aqui em Pernambuco isso não acontece, depois que eu ganhei o prêmio muita gente me fulminou com o olhar, me perguntou como é que se faz para ganhar um Jabuti, como se eu tivesse comprado o prêmio. Aqui em Pernambuco, não teve essa coisa de prestígio, não. E prestígio de escritor é uma coisa complicada no Brasil. Escritor virou meio que um sinônimo de preguiçoso, de gente que não faz nada. É como um cara falando lá “liga não para ele, fulaninho é preguiçoso, é escritor”. Como se não fosse um trabalho enorme escrever um livro. É muito difícil, faz a gente tirar o tempo que poderia dar à mulher, aos filhos, para ficar escrevendo. Agora, sem dúvida, se o prêmio do Jabuti fosse de R$ 50 mil, não seria para mim, com certeza, seria para os amigos de quem fez o prêmio, para os poderosos. Chá e bolinhos Quanto ao fato de não ter sido eleito para a Academia Pernambucana de Letras, digo o seguinte: quando fui pedir voto aos acadêmicos, eles não estavam preocupados com minha obra literária, mas, sim, se eu era bom ou não em convivência. A APL não se preocupa com literatura. Ela só se preocupa com chá, bolinho, guaraná, aquilo ali não é ambiente para mim, minha preocupação é com a cultura, com a erudição. Raimundo Carrero, pernambucano, é autor dos romances Bernarda Soledade, a tigre do Sertão, Os extremos do arco-íris, As sementes do sol e A dupla face do baralho, entre outros, e dos livros de contos Maçã Agreste e As sombrias ruínas da alma (Prêmio Jabuti/2000).
Murilo Mendes: vivendo o enigma do encontro Poeta mineiro deixou uma obra que denota a clareza do compromisso do artista com o material de sua arte
M
al despontava o século 20, hoje século passado, estranha forma de encarar o quase ontem, nascia, em Juiz de Fora, Murilo Monteiro Mendes, num 13 de maio em que comemoravam 13 anos da abolição da Escravatura no Brasil. Menino inquieto, inimigo da disciplina rígida, Murilo freqüentou vários colégios. Desde tenra idade sua vida foi marcada por grandes acontecimentos que o orientaram para a arte. Em 1910, a aparição do cometa Halley deslumbrou o menino juizforano e sua lembrança deixou marcas profundas: “...Nunca esqueci aquele corpo luminoso, com a sua enorme cauda resplandecente de estrelas, passeando pelo céu de minha cidade natal. Durante as três noites em que apareceu não dormi um minuto sequer e talvez tenha sido esse o primeiro instante em que me senti tocado pela Poesia.” Em 1917, um novo encontro abalava o agora aluno interno do Colégio Salesiano de Niterói: o espetáculo do Ballet Russo com o bailarino Nijinsky no papel principal.
Zuleide Duarte
Os limites de que fala num poema, dentre os quais destaca-se o medo – Murilo é o autor de A Poesia em Pânico (1936-1937) – não o impediram de fugir do colégio para assistir ao espetáculo que o fez refletir sobre o desconcerto que era sua vida de estudante. Percebemos a revelação dessa verdade no seu depoimento: “Tenho 16 anos, logo rejeito a dimensão comum do mundo. Precipita-se o carro do meu destino. Alço-me à faixa do relâmpago.” A providencial fuga do colégio rendeu-lhe um “castigo” que reforçou sua decisão de tornar-se poeta. Confinado em uma fazenda no interior de Minas Gerais, ler, escrever e andar a cavalo foi deleite daqueles meses. Impelido pela necessidade de “... insinuar-se nos outros cantos do mundo” (Mapa), Murilo fez de tudo, mas manteve-se poeta. De prático de dentista a professor, Murilo estava consciente da sua missão conforme revela em Começo de Autobiografia: Eu sou um pássaro diurno e noturno, O pássaro misto de carne e lenda, Encarregado de levar o alimento da poesia, da música Aos habitantes da estrada, do arranha-céu, da nuvem... Eu sou o pássaro homem que vive no meio de vós. Eu vos forneço o alimento da catástrofe, o ritmo puro Trago comigo a semente de Deus... e a visão do dilúvio. (As Metamorfoses, 1936-1937) Essa necessidade que o texto muriliano revela de ser o arauto da poesia e da música, ao contrário do que ocorre com muitos poetas, não o isola dos
problemas humanos, nem o fazem ater-se a uma visão individualizada, subjetiva, idiossincrática. É a clareza do compromisso do artista com o material de sua arte, como diz no Poema Espiritual: “A matéria é forte e absoluta/ sem ela não há poesia” (Poesia em Pânico, 1936-1937). Com essa “humanidade pregada na cruz”, que o leva a assumir o discurso não do eu enfeudado em delírios e viagens do entressonho, mas de um nós que é coletivo, consensual, responsável último por um estado de coisas anti-humano que assume, como no poema Os Pobres: .... Os pobres nus e famintos Nós os fizemos assim. (In Poesia Liberdade, 1943-1945) Católico progressista, voltado para as preocupações com a sociedade e leitor fiel de Teilhard de Chardin, entre outros, o estro muriliano não podia passar ao largo dos cruciais problemas de seu tempo. Murilo Mendes viveu o contexto da Segunda Guerra Mundial, e seu livro Poesia Liberdade retrata a atenção que dava aos cruciais problemas provenientes dela. Contra ditaduras e fascismos, Murilo Mendes usou sua arte para o combate profícuo, para a crítica severa como o faz através do poema As Lavadeiras, em cujos cinco últimos versos lemos: ............................ As lavadeiras no tanque branco Lavam o espectro da guerra. Os braços das lavadeiras No abismo noturno Vão e vêm. (Poesia Liberdade)
Em 1920, três anos após o encontro de Nijinski e a decisão de seguir o próprio destino, que sempre foi, para ele, a poesia, Murilo Mendes encontrou Ismael Nery. Católico fervoroso numa época em que ser católico não era ser conservador e ultrapassado, Nery não se deixou envolver pela avalanche modernista. A iconoclastia dos jovens de 1922 com seu ranço antipassadista não abalaram as convicções do jovem pintor. Murilo aprendia com Ismael não só a religião, mas, sobretudo, conceitos de filosofia e arte, que sedimentaram a formação intelectual do poeta. Os anos de convivência com Ismael Nery resultaram na conversão do poeta. Se crermos no testemunho de Nava, a conversão teve foros de investidura e o volume Tempo e Eternidade, em parceria com o poeta Jorge de Lima, revela a aliança entre o credo religioso abraçado e as concepções estéticas. A divisa do livro comprova esta afirmação: “Restauremos a poesia em Cristo”. No poema Meu Novo Olhar explicita a nova diretriz inspirada pelo catolicismo: ............. Meu novo olhar é o de quem assistiu à paixão e morte do Amigo, Poeta para toda a eternidade segundo a ordem de Jesus Cristo, E aquele que mudou a direção do meu olhar; É o de quem já vê se desenrolar sua própria paixão e morte, Esperando a integração do próprio ser definitivo Sob o olhar fixo e incompreensível de Deus. (Tempo e Eternidade, 1934) A firmeza com que Murilo Mendes assumiu a fé católica não o fez mais sereno, menos questionador. Ao contrário, sua obra está eivada de
questionamentos fortes, por vezes irreverentes, revelando a inquietação que sempre embasou sua forma de estar no mundo: a função de vate tão própria do poeta exacerbou-se. O visionarismo, o surrealismo aprendido primeiro com Ismael Nery e depois com o próprio André Breton, a cujo enterro o poeta brasileiro fez questão de assistir como quem cumpre um ritual, devoção à música de Mozart, as artes plásticas, a morte e a visão dualística do mundo são alguns dos muitos elementos do universo temático muriliano. Apesar do grande interesse despertado por esses temas, dedicaremos a última parte dessa breve abordagem ao livro História do Brasil. Publicado em 1933 pela Publicações Abril, História do Brasil conta nossa nem sempre bem contada história a partir de uma ótica satírica, em diálogo com os epigramas do Pau Brasil (1925) de Oswald de Andrade e de outros textos vindos à luz na efervescência nacionalista do Modernismo. Texto escrito em poemas-piadas mais ou menos longos, História do Brasil exigiu de Murilo Mendes uma longa incursão pelas fontes históricas desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, passando pelo Diário de Navegação – Pero Lopes de Souza, Tratado da Terra do Brasil de Gandavo, textos de Fernão Cardim, Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Souza, Diálogos das Grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandão, cartas dos missionários jesuítas, Diálogos sobre a conversão dos gentios do Padre Manuel da Nóbrega e a História do Brasil de Frei Vicente de Salvador. Pela extensa pesquisa, percebe-se a seriedade com que o escritor empreendeu a obra. Entretanto, não são poucas as vezes que se levantam contra a História do Brasil muriliana e até o próprio autor, quando em 1959 reuniu suas Poesias, deixou de fora o texto por achar que “destoava” do conjunto da obra.
Continente Multicultural 21
Felizmente, desta opinião não comunga a crítica literária italiana Luciana Stegagno Picchio, que organizou, anotou e fez publicar a História do Brasil em 1991, pela Editora Nova Fronteira. Na Introdução a essa segunda edição do livro, a crítica italiana, especialista em Literatura Brasileira e organizadora também da obra completa de Murilo Mendes, tece o seguinte comentário: ...“Como explicar este esquecimento, para não dizermos esta desafeição do poeta relativamente à sua gozadíssima História da juventude? Antes de mais nada suponho porque ela era divertida demais, mas de uma ironia toda local, brasileira, carioca. Uma ironia aos vinte anos, despreocupada, modernista, primeira fase. A fase dos poemas-piadas, das antropofagias, do ‘vamos descobrir o Brasil’. Era um humor anterior à crise dos anos trinta, ao mea-culpa regionalista e nordestino: e um humor que na altura era talvez inexportável”. O justo comentário de Luciana Stegagno Picchio toca uma questão crucial: o caráter local e datado do texto de Murilo Mendes. Naqueles anos de euforia xenófoba e antitradicionalista, as piadas da História do Brasil soariam irreverentes e de mau gosto lá fora, como aliás, o foram para muitos aqui. A alusão a Pinzón, tão moderno em tempos de “500 anos”, não tinha ainda os grupos de pesquisadores regiamente pagos para dar-lhe corpo. Mas o poeta soube captar a problemática com leveza e astúcia. Eis o prefácio: Quem descobriu a fazenda, Por San Tiago, fomos nós. Não pensem que sou garganta. Se quiserem calo a boca, Mando o amazonas falar. Mas como sempre acontece Nós tomamos na cabeça, Pois não tínhamos jornal. A colônia portuguesa Mandou para o jornalista Um saquinho de cruzados. Ele botou no jornal Que o Arquimedes da terra Foi um grande português. A explícita lusofobia que grassava no Brasil na década de 30 aplicava-se ao pitoresco, as questões fundamentais eram intocáveis. Daí o pouco 22 Continente Multicultural
caso atribuído ao tópico hoje tão discutido, do descobrimento do país. Outro poema que privilegia um tema hoje absolutamente up to date é o de que trata o poema III: O Farsista Quando o almirante Cabral Pôs as patas no Brasil O anjo da guarda dos índios Estava passeando em Paris. Quando ele voltou da viagem O holandês já está aqui. O anjo respira alegre: “Não faz mal, isto é boa gente, vou arejar outra vez.” O anjo transpôs a Barra, Diz adeus a Pernambuco, Faz barulho vuco-vuco, Tal e qual o zepelim Mas deu um vento no anjo, Ele perdeu a memória... E não voltou nunca mais. O Portugal chacoteado da História do Brasil, sabe-se lá se por interferência dos fados, instalou-se na vida do poeta, em 1947, quando ele se casou com a também poetisa Maria da Saudade Cortesão, filha do escritor português Jaime Cortesão, e passou a freqüentar Portugal. No verão de 1975, um ano após a Revolução dos Cravos, no dia 13 de agosto, Murilo Mendes despediu-se da vida e foi encontrar seus pares, no cemitério dos Prazeres de Lisboa. Neste centenário, invocamos Bandeira: ................................. Saudemos Murilo Antitotalitarista, antipassadista antiburocratista Antitudo que é pau ou que é pífio Saudemos Murilo Perenemente em pânico E em flor. (Manuel Bandeira in: Estrela da Vida Inteira) A extensa obra de Murilo Mendes conta com vinte e quatro títulos publicados em vida, três publicações póstumas e oito inéditos. Zuleide Duarte é doutora em Literatura Brasileira pela UFPB e professora da Funeso
AnĂşncio
Continente Multicultural 23
HISTÓRIA
A cabotagem no Nordeste Oriental Durante o período colonial, a complexa malha regional de transportes, em que prevalecia a navegação costeira, acompanhou as alterações na hegemonia comercial das cidades
A
REPRODUÇÃO
economia colonial brasileira or- constituída a ganizou-se sob a forma de um oeste, norte e sul arquipélago de mercados regio- pelas áreas colinnais vinculados aos portos prin- dantes, especialicipais, o Rio, Salvador, o Recife, zadas na pecuária São Luís e Belém, que deti- ou na agricultura nham sobre as respectivas hin- de subsistência. terlândias um monopólio comercial de fato exerciA primeira do por cima das divisões administrativas, capitanias área que o Recife da América portuguesa e, depois, províncias do submeteu à sua Império. O Recife deveu sua fortuna histórica à dominação foi a função de entreposto e à dominação comercial da Zona da Mata, área que se poderia designar por Nordeste recifen- cerne do Nordeste se, cujos limites geográficos coincidem grosso mo- recifense ainda em do com os do Nordeste chamado oriental pelo geó- começos do século grafos. Essa dominação, esboçada desde finais do 19, quando há século 16 e consolidada ao longo da centúria se- muito já se desenguinte, prolongou-se sob vários aspectos até os co- volvia a economia das capitanias subalternas na meços do 20, reproduzindo em escala local o mes- esteira da euforia algodoeira. Grosso modo, os limo esquema de relações que subordinava o Recife mites do Nordeste recifense iam do Ceará ao baixo à metrópole colonial, que, por sua vez, respondia São Francisco (Penedo). Limites, porém, permaaos centros da “economia-mundo” ocidental. Um nentemente postos em causa pelo equilíbrio instácentro urbano que domina uma região de fronteiras vel entre o Recife e os entrepostos vizinhos, o Marazoavelmente estáveis, que vão além ou ficam ranhão e a Bahia. Havia assim áreas de conflito, aquém das jurisdições formais políticas e adminis- mas também de interpenetração. Era o que ocorria trativas, mediante cidades transmissoras, sócias me- no norte do Ceará, que também sofria a atração do nores da cidade dominante, configurando-se uma porto de São Luís, ou, reciprocamente, no Piauí, hierarquia espacial, composta do núcleo represen- extremo a que podia chegar o influxo do Recife. tado pela mata pernambucana com seu grande pro- Fenômeno idêntico ocorria ao sul: se o comércio duto de exportação, o que na ‘mata seca’ e sobre- recifense podia esporadicamente alcançar Sergipe, tudo no Agreste pode ser tamenfeudado à praça de Salvador, bém o algodão; e da periferia Evaldo Cabral de Mello o entreposto baiano disputava
Gravura de Manoel Bandeira
REPRODUÇÃO
Mauritius – J. Vingboons, 1637
Continente Multicultural 25
REPRODUÇÃO
ativamente o comércio de Alagoas e o do sertão pernambucano, podendo excepcionalmente, como em meados do século 18, imiscuir-se no sanctum sanctorum do Recife, como em Sirinhaém, cujo porto era então freqüentado por embarcações da Bahia. Acossado a sul e a oeste pela concorrência da outra praça poderosa, o Recife compensou-se estendendo-se ao norte pelos ‘portos do sertão’, isto é, do Rio Grande do Norte e do Ceará, para transformar-se naquele “armazém geral” que gabava o autor anônimo das ‘Revoluções do Brasil’. Partilhando o comércio dos ‘sertões de dentro’, o Recife reservou-se a dominação mercantil dos ‘sertões de fora’. Destarte, a identificação das fronteiras do entreposto recifense entronca-se com a velha querela historiográfica relativa à atuação de Pernambuco no povoamento do interior do Nordeste. Na mata açucareira como na costa lesteoeste, o entreposto recifense foi mediatizado por uma rede de cúmplices, de sócios menores, centros locais que operavam como agentes comerciais do Recife. Eram portos de mar, como Fortaleza ou Maceió, ou então aquelas “cidades de fundo de estuário” da designação dos geógrafos, como a Granja no Camocim ou Sobral no Acaraú ou Rio Formoso, ou centros localizados à beira de rios navegáveis por embarcações de porte médio e pequeno: o Aracati, no Ceará, Mossoró e Macau, no Rio Grande, Mamanguape, e a própria cidade da Paraíba, Goiana ou Sirinhaém, em Pernambuco, Porto Calvo, São Miguel e Penedo, em Alagoas. Foi a pequena cabotagem que criou esta rede local de intermediários, assegurando relações regulares com o Recife, mercê da facilidade e barateza dos rios, assegurando relações regulares com o Recife, mercê da facilidade e barateza do transporte costeiro em séculos de comunicações terrestres difí-
26 Continente Multicultural
ceis ou simplesmente penosas – até que, transpostos os meados do século 19, os caminhos de ferro e as estradas de rodagem vieram interiorizar os circuitos e vincular o Recife a seu interior através de outros eixos, marginalizando os antigos parceiros em favor de novos sócios. Pode-se ter uma idéia aproximada da importância relativa da pequena cabotagem e do transporte terrestre no Nordeste recifense. Ao longo prazo, a tendência foi evidentemente no sentido de o transporte sobrepujar o marítimo, mas esta vitória constituiu acontecimento tardio. Ainda no segundo quartel do século 18, metade do açúcar fabricado na mata pernambucana era conduzido ao Recife em carros e a outra metade em barcos e sumacas; e em meados do século 19, estimava-se em ¾ o transporte por mar, para o Recife, do açúcar e de seus derivados produzidos na província. Caso se incluíssem as exportações da Paraíba, do Rio Grande e do Ceará através do Recife, a participação da pequena cabotagem no tráfego do entreposto teria sido superior. Para os anos finais do Segundo Reinado, dispõe-se de algarismos precisos relativos ao transporte de açúcar e de algodão. A pequena cabotagem ainda correspondia então a 41,5% do açúcar e a 43,7% do algodão. E, contudo, a esta altura, já se faziam sentir os efeitos do sistema de ferrovias, iniciado nos anos 50, e de estradas de rodagem, encetado nos anos quarenta; e mais, já repercutiam os efeitos do processo de provincialização do comércio regional, mediante o qual o Ceará, o Rio Grande, a Paraíba e Alagoas haviam começado a dispensar a tutela recifense em favor de relações diretas com o Exterior. Mesmo assim, a cabotagem ainda transportava mais de 2/5 do volume dos dois principais produtos de exportação. Por conseguinte, não seria exagerado supor que, até meados do século 19, esta participação tem sido da ordem de 2/3 ou ¾. A vitória do
Até a ocupação holandesa, as comunicações marítimas do Recife, mero anteporto de Olinda, com o litoral do Nordeste, dependeram de uma improvisação, o emprego em nossas águas dum tipo de barco, o caravelão, concebido não para a navegação de cabotagem, mas para as tarefas de ligação, em alto mar, entre os navios de uma frota
REPRODUÇÃO
Fribvrgvm, Frans Post, 1647
transporte terrestre só se verificou na metade do século 19 e começos do 20. Por volta de 1910, a pequena cabotagem ainda representava o segundo meio mais importante de transporte de açúcar em Pernambuco, muito embora sua participação houvesse declinado para cerca de 1/5. Esse papel da pequena cabotagem na história do Nordeste recifense contrastava com a modéstia do sistema hidrográfico da região, inclusive na Zona da Mata, o qual se compõe dos rios que o divisor da serra da Borborema encaminha para leste, sendo poucos os que, como o Paraíba, o Capibaribe e o Ipojuca, percorrem longas distâncias para desaguarem no Atlântico. A maioria, quer os afluentes do curso inferior destas bacias, quer os rios que desembocam diretamente no oceano, como o Mamanguape, o Goiana (Sistema Tracunhaém-Capibaribe Mirim), o Sirinhaém, o Una, o Manguaba, o Camaragibe, o São Miguel, para só mencionar os principais, apenas se adentram pela vertente oriental da Borborema, quando não nascem na própria Zona da Mata. Na sua maior parte, tal sistema possui condições físicas pouco favoráveis à navegação, seja devido à estreiteza da faixa litorânea e da Zona da Mata, situada entre o mar e os contrafortes da serra, seja devido aos desníveis gerados pelo relevo de tabuleiros sedimentares e de colinas cristalinas. Os rios da navegação mais fácil são, na realidade, vales inundados pela transgressão marítima, submetidos, portanto, à ditadura das marés. Daí o pessimismo do engenheiro L. L. Vauthier quando teve de formular, nos anos 40 do século 19, o plano de comunicações da província, em que deu prioridade
à construção de um sistema radioconcêntrico de estradas de rodagem baseado no Recife. Segundo sua avaliação, a regularização dos rios da Zona da Mata seria dez vezes mais dispendiosa do que a abertura de estradas. As condições hidrográficas não estimulavam a construção de canais, de vezes que apenas o rio Una conservava água no verão e que os cursos d’água eram freqüentemente interrompidos por cachoeiras. Previa Vauthier que o futuro dos transportes na província não passaria pela navegação fluvial, ao contrário do que muitos pretendiam então. Foi, portanto, malgrado a mediocridade dos seus meios, que navegação fluvial, ou antes fluviomarítima, teve um relevo desproporcionado na vida econômica do Nordeste recifense e, em especial, da mata açucareira. Ao tempo do domínio holandês, Nieuhof já acentuava: “Entre todos os portos e regiões das Índias Ocidentais nem um só existe que se possa comparar ao Brasil, quer na produção de açúcar, quer nas facilidades que oferece para o seu transporte. Todo o litoral (do Nordeste) brasileiro está literalmente tarjado de pequenos cursos d’água que se vêm lançar ao mar após terem banhado extensos vales. Por isso os engenhos de cana erigidos nas regiões ribeirinhas desfrutam grande economia tanto no transporte como na mão-de-obra. Além de moverem esses rios os engenhos instalados em suas margens, servem eles para o transporte do açúcar e constituem via fácil para o abastecimento das usinas. Condições assim tão vantajosas não se encontram em nenhum outro país das Índias Ocidentais”. Continente Multicultural 27
Duzentos anos depois, Henrique Augusto Millet descrevia nestes termos a importância do transporte marítimo na mata açucareira: “Cerca de 800 engenhos, cuja produção total pode ser avaliada em 4 milhões de arrobas de açúcar além do mel e da aguardente, ocupam nesta província (Pernambuco) uma zona paralela ao litoral e cujo largura varia entre 6 e 15 léguas. Esses engenhos constituem a mais abundante e quase única fonte de riquezas que por ora possui esta província (...) O transporte do açúcar e dos seus derivados, mel e aguardente, desde os engenhos onde são produzidos até esta praça (do Recife), onde são vendidos para a exportação ou o consumo, efetuase parte às costas de cavalos, parte por meio de barcaças que os vão procurar nos pequenos portos do litoral (...) A carne seca, o bacalhau, a farinha e mais gêneros necessários para o sustento das fábricas dos engenhos e dos povos que habitam à beira mar; as madeiras de construção e marcenaria que abundam nas matas ao sul da província; o milho, o feijão e outros gêneros dão igualmente lugar a consideráveis transportes marítimos”. A história da cabotagem no Nordeste recifense pode ser narrada sob a forma da sucessão de tipos de embarcação predominantes, mas não exclusivamente, utilizada: caravelão-sumaca-barcaça. As grandes mutações consistiram na transplantação da sumaca durante o período holandês e na generalização da barcaça nos anos 40 do século 19, substituições que responderam a mudanças específicas no sistema de relações entre o Recife e a área do seu entreposto e a circunstâncias de
28 Continente Multicultural
natureza ecológica. Por paradoxal que pareça, a navegação a vapor não teve o impacto outrora das sumacas e depois das barcaças, que resistiram galhardamente à concorrência dos pequenos vapores da Companhia Pernambucana, surgida nos anos 50. O grande rival da barcaça não foi ‘o vapor do mar’, mas ‘o vapor de terra’, vale dizer, o transporte ferroviário. Quando se examinam o volume de açúcar e o de algodão enviado por mar ao Recife, compendiados por Alfredo Lisboa na sua ‘Memória’ sobre o melhoramento do porto (1886), constata-se que as barcaças se talharam a parte do leão, acaparando praticamente a totalidade no caso do açúcar, 99,4% contra apenas 0,6%, transportado por vapores; e reservando-se, no tocante ao algodão, a fatia principal do bolo, 58,7%. Até a ocupação holandesa, as comunicações marítimas do Recife, mero anteporto de Olinda, com o litoral do Nordeste, dependeram de uma improvisação, o emprego em nossas águas dum tipo de barco, o caravelão, concebido não para a navegação de cabotagem, mas para as tarefas de ligação, em alto mar, entre os navios de uma frota. O aumentativo não deve desorientar o leitor. O caravelão não era uma caravela grande, mas sua miniaturização, dotada de dois ou três mastros de vela triangular e também de remos, deslocando entre 40 e 50 toneladas, de pequeno calado, coberta única e muitas vezes apenas nos castelos de popa. Graças a ele, esboçou-se no litoral brasileiro uma incipiente diferenciação entre a cabotagem e as comunicações transoceânicas, a cargo, estas últimas, de caravelas, naus, urcas, galeões. REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
Gravura de Manoel Bandeira
Por paradoxal que pareça, a navegação a vapor não teve o impacto outrora das sumacas e depois das barcaças, que resistiram galhardamente à concorrência dos pequenos vapores da Companhia Pernambucana. O grande rival da barcaça não foi ‘o vapor do mar’, mas ‘o vapor de terra’, vale dizer, o transporte ferroviário
REPRODUÇÃO
Especialização que já se consegue discernir através da obra de Gabriel Soares de Souza, que distingue, ao longo da costa, os pontos apenas acessíveis ao que designa por “navios da costa” ou “caravelões da costa”, expressão que utiliza sinonimicamente, e os pontos abordáveis pelas embarcações que faziam a navegação com o Reino, os “navios de honesto porte”, os barcos de “mais de 200 tonéis” ou mesmo de “cem tonéis” ou entre “cem tonéis até 200”. No caso do caravelão, ao invés do que ocorrerá com a sumaca ou a barcaça, a especialização foi antes espacial do que funcional. Ainda insuficiente para gerar um tráfego importante, a cabotagem recifense podia utilizar os serviços de um tipo de embarcação adequado a outras necessidades. As tarefas marítimas não eram apenas as prosaicas ou rotineiras de transporte de mercadorias, mas sobretudo as militares, oficiais, de povoamento e conquista; e a todas elas o caravelão se prestava imparcialmente. Nos anos quarenta do século 16, já era amplamente empregado no litoral pernambucano e o primeiro donatário aludia aos “caravelões dos moradores (que) andam a maior parte do ano por toda a minha costa”. Até o período holandês, o caravelão
continuou a ser empregado nos misteres mais díspares: expedições ao sertão do São Francisco, conquista da Paraíba e do Rio Grande do Norte, expulsão dos franceses do Maranhão, exploração e sondagem do litoral e dos seus rios, ajuda militar (soldados, munições e víveres) à Bahia ocupada pelos neerlandeses, transmissão de correspondência e transporte de numerário ou de tecidos para pagamentos de soldos e vencimentos. O caravelão estava longe, portanto, de oferecer serviços especializados. Mas não era apenas essa fatigante versatilidade que tendia a desencorajar o aparecimento de um barco exclusivamente voltado para as fainas da cabotagem. Ademais da concorrência que a caravela lhe podia eventualmente oferecer nos percursos litorâneos mais longos, como a navegação da costa leste-oeste, o caravelão da costa sofria a concorrência dos seus congêneres que, viajando do Reino de conserva com as frotas, eram despachados aos pequenos portos para recolher-lhes a carga, regressando para a jornada a Portugal, como ocorria, por exemplo, em começos do século 17, com o sal do Rio Grande do Norte, como se infere de frei Vicente Salvador: da Paraíba e de Pernambuco, as naus enviavam seus caravelões para carregarem o produto. Por conseguinte, o primeiro século de colonização foi de domínio da pequena cabotagem pelos caravelões. As ‘barcas’ citadas no relatório de Adriaan Verdonck eram deste tipo. Como já observou Carlos Francisco Moura, os holandeses não dispuseram de palavra com que distingui-los das caravelas, o termo ‘carveel’ cobrindo ambos. Via de regra, designavam os caravelões pela expressão desesperadoramente vaga de ‘barcas’ (‘barcken’), também aplicada às suas próprias embarcações de pequeno ou de médio porte, como a sumaca. Segundo Verdonck, estas ‘barcas’ ou caravelões, de capacidade máxima de 100 a 110 caixas de açúcar, transportavam ao Recife, além do açúcar, o pau-brasil de Itamaracá, o sal do Rio Grande e os víveres para consumo de Olinda e do Recife. Geralmente limitadas aos trajetos marítimos, elas faziam alguns percursos fluviais como o Sirinhaém, o Goiana, o Cunhaú, o exemplo mais conspícuo sendo o do rio Beberibe, navegado pelos caravelões que baldeavam do porto do Recife para o Varadouro de Olinda a carga das naus e das urcas do Reino.
Detalhe: S. Salvador/ Baya de Todos os Sanctos – gravura de Claes Jansz Visscher e Hessel Gerritsz, 1624
Evaldo Cabral de Mello é historiador
Continente Multicultural 29
Anúncio
Anúncio
O pensador italiano gostava de transmitir e ensinar, com clareza e profundidade, o que havia colhido com grandes autores do passado
O
contato inicial com a obra de que, mesmo à distância, isso não importa, gostava Bobbio, a partir de sugestão de ensinar, tinha verdadeira paixão de, com hudo professor Tércio Sampaio mildade, transmitir aquilo que prazerosamente, e Ferraz Júnior, no início da dé- às vezes com dificuldades, havia colhido em autocada de 80, pela apostila, em res como Platão, Maquiavel, Hobbes, Hume, italiano, do curso intitulado Kant, Hegel, Marx e Pareto. Comprometido com Teoria das Formas de Governo, a transmissão do legado da filosofia política, fazia editada por F. Giapichelli, revelou-me um autor uma ponte entre esses pensadores e estudantes unimuito diferente. Com entusiasmo, apesar das difi- versitários de Ciências Humanas. culdades em ler o italiano, encontrei um professor, Na visita que lhe fiz em Turim, nessa épono sentido pleno do termo, que ensinava com pro- ca, Bobbio apresentou-me F. Giapichelli, um verfundidade e clareza, em um dadeiro artesão do ofício, detom didático. Um professor Carlos Henrique Cardim dicado a publicar apostilas de 32 Continente Multicultural
REPRODUÇÃO / AE
Norberto Bobbio
POLÍTICA
A necessidade da política
notáveis professores para uso em cursos universitários na Itália. Naquela oportunidade, Bobbio recomendou-me, igualmente, apostila publicada por Giapichelli, um curso de seu amigo Alessandro Passerin D’Entréves, intitulado Teoria dello Stato. O primeiro livro de Bobbio traduzido no Brasil foi a obra publicada pela Editora da Universidade de Brasília Teoria das Formas de Governo, que já se encontra em sua décima edição. É o livro que mais edições alcançou até hoje na UnB. Recordo o forte impacto que esse título me causou por aliar profundidade e didatismo. Em obras desse tipo, como também o é Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Bobbio expressa uma faceta rica de seu perfil intelectual, qual seja a do grande professor. Destaque-se essa dimensão de Bobbio, tendo em conta que nas áreas das Ciências Humanas, têm predominado autores que, apesar de inspirados em notáveis pensadores, preferem exclusivamente difundir suas visões pessoais, muitas vezes elaboradas
sas, alemãs, norte-americanas e italianas, que tem nesse modalidade a sua linha mestra de publicações. No Brasil, ainda não se desenvolveu, plena e sistematicamente, nos editores privados e universitários essa relevante vertente, que inclusive é, também, um nicho mercadológico de peso. Bobbio é um mestre nessa arte da apresentação dos clássicos. Fiel, sério, humilde e entusiasta nesse labor generoso de compartilhar com milhares de alunos e professores os achados de seu paciente garimpo em obras que o tempo consagrou, mas que muitas vezes ficaram esquecidas ou se tornaram de difícil acesso, ou ainda que ficaram mais citadas, em interpretações, do que conhecidas em sua originalidade. Lembro-me que, em visita à sua casa em Turim, Bobbio levou-me, antes do almoço, à sua biblioteca e escritório. Falou-me naquela ocasião, entre outros temas, do trabalho que escrevera sobre Hobbes. Era como se estivesse me apresentando um estimado amigo. Em instantes a imagem seve-
Em sua obra, Bobbio tem aberto aos leitores essa “conversação da humanidade” através dos tempos, que é a política, convidando-nos não só a ouvir como também a falar, a opinar, e a nos integrar neste círculo que procura elevar os seres humanos de forma confusa. A adoção sistemática desse tipo de ensaística como textos nos cursos universitários, vai gerando, na academia, um empobrecedor distanciamento das fontes do pensamento clássico, moderno e mesmo contemporâneo. Tal prática, hoje tão difundida, acaba por criar o tipo do universitário, aluno ou professor, que “leu” de segunda ou terceira mão os pensadores fundamentais. Registre-se, a propósito, que essa relevante linha editorial – o didático de terceiro grau no Brasil tem merecido pouca atenção tanto dos professores, como dos editores e das autoridades educacionais. Há que se notar a necessidade de qualificadas e estimulantes introduções aos clássicos antigos e modernos. Tais textos, que poderiam ser denominados de didáticos de terceiro grau, constituem instrumentos indispensáveis para uma adequada e sólida formação acadêmica. Exemplo dessa oferta bibliográfica nos oferecem certas editoras francesas, ingle-
ra, e algo punitiva, que tinha de Hobbes foi se desfazendo para dar lugar a um ser humano angustiado com as agruras da guerra civil, e preocupado em resolver o problema da segurança dos cidadãos na vida social. Aquela figura hobbesiana distante foi se aproximando. Bobbio estava me acercando ao grupo de seus amigos. A biblioteca e escritório de Bobbio invocam a descrição que Maquiavel fazia, em carta a Francisco Vettori , de sua rotina diária, quando, ao final da tarde, retornava à casa: “A noite cai, volto para casa. Antes de entrar no escritório troco a vestimenta de todos os dias, suja e enlameada, para vestir as roupas da corte real e pontifical. E, vestido apropriadamente, penetro no círculo dos homens da Antiguidade. Recebido afavelmente, sirvo-me do alimento que por excelência me nutre e para o qual nasci. Não tenho vergonha de conversar com eles, de interrogá-los sobre as razões do seu comportamento. E com humanidade me respondem. Continente Multicultural 33
tações. Apesar de não haver unanimidade nas respostas, logra-se um terreno comum quanto às perguntas. Recusam-se visões maniqueístas e receitas a priori, colocando-se quer teorias como praxis políticas como objeto de indagações constantes e livres. Para participar nessa conversação de muitas vozes não se pode nutrir preconceitos com relação a pensadores quer sejam clássicos, modernos ou contemporâneos. Bobbio nos faz sentir a filosofia política como uma conversação em andamento. Extrai dos autores por ele estudados o pensamento profundo que nos é apresentado com clareza e, ao mesmo tempo, proporciona uma dose importante de estímulo para a leitura dos textos originais. Na semana que esteve na Universidade de Brasília, Bobbio veio acompanhado por sua alegre REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
Passo, então, quatro horas sem qualquer sombra de tédio, sem temer a pobreza, esquecido dos meus tormentos. A própria morte não me assusta”. É nesse ambiente de convívio com amigos que Bobbio mantém conversações, acima das barreiras do tempo, e nos faz partícipes desse convívio através de suas obras. É um ambiente que entusiasma pelos assuntos das conversas, mas que transmite igualmente serenidade pelo seu arranjo simples, no qual chamou minha atenção a máquina de escrever Ollivetti elétrica onde o mestre passa boa parte do tempo, transformando em ciência aquilo que colheu e reteve das conversações. Tem presente o ensinamento de Dante, assinalado por Maquiavel, na citada carta a Vettori: “E como Dante afirma que não há ciência se não se registra o que se compreendeu, anotei o que me pareceu essencial
Karl Marx e David Hume são dois dos pensadores estudados por Bobbio. De Isaac Newton, tomou a frase: “Sou um anão, se vi mais longe foi porque subi em ombros de gigantes”
dessas tertúlias e escrevi um livrinho intitulado De Principatibus...”. Bobbio é um mestre que não esconde suas fontes, não esconde seus amigos, nem tem ciúmes deles, pelo contrário, deseja apresentá-los. Quer, verdadeiramente, compartilhar aquilo que conheceu, e vai conhecendo, com ímpeto semelhante ao do habitante que saiu da caverna de Platão. Enriquece-se, também, nesse intercâmbio, pois como está naquele provérbio chinês: “A única forma de multiplicar meu conhecimento é dividindo-o”. A Política, com P maiúsculo como queria Joaquim Nabuco, identifica-se tanto como ciência, quanto como prática, com aquilo que Hobbes denominou de “conversação da humanidade”. É uma conversação, um diálogo, entre diferentes perspectivas e interpretações da realidade, e diversas orien34 Continente Multicultural
esposa, que, entre outras virtudes, era fã do montanhismo. O casal, segundo os dois me confidenciaram, tinha um gosto particular pelas longas caminhadas nos arredores de Turim, região que faz parte dos Alpes. Nas várias sessões do seminário Bobbio na UnB, cujos conteúdos são apresentados no presente volume, e nas entrevistas que concedeu e nas conversações, retive dois momentos do mestre que me tocaram fundo: uma frase de Isaac Newton, e o papel que Carlo Rosselli representou em sua vida. Em uma de suas exposições na UnB, Bobbio afirmou que “sou um anão, se vi mais longe foi porque subi em ombros de gigantes”, e sublinhou ser essa uma observação de Isaac Newton. A frase impactou-me pela humildade socrática exposta em público, atitude incomum nos intelectuais, em ge-
REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
ral, que normalmente se crêem gigantes, gênios, enfim, seres dotados de visões superiores aos demais indivíduos. Ao passar dos anos essa frase voltava-me com frequência à mente. Verifiquei que ela ficou impressa em mim pela sinceridade e naturalidade com que Bobbio a pronunciou. Em uma livraria em Madri, em 1994, tive a fortuna de encontrar o livro de Robert K. Merton A Hombros de Gigantes. Foi uma agradável surpresa verificar que a frase de Newton havia motivado o notável sociólogo norte-americano a escrever um livro sobre, como ele assinalou, essa frase que “diz muitas coisas com poucas palavras”. Merton, em meio a sua impressionante obra como teórico da Sociologia, onde se destacam contribuições como a noção de teorias de médio al-
cance, e a retomada do conceito de anomia, e como sociólogo da ciência e do conhecimento, dedica especial atenção a On The Shoulders of Giants, a quem chama de “meu filho intelectual pródigo”. Nele examinou “a permanente tensão entre tradição e originalidade na transmissão e no progresso do conhecimento”. Na busca das origens e evolução da frase tornada célebre por Newton, mas que deita raízes no século 12, Merton elabora um estimulante ensaio de sociologia da ciência. Nesse ensaio, Merton, um dos fundadores da moderna sociologia norte-americana, ao valorizar o aforisma, também lembrado por Bobbio, faz um erudito estudo sobre o tema, com variadas e provocadoras sugestões. É um impecável e animado exercício intelectual na busca das origens e significados do aforisma, que tem como foco o processo de
acumulação e ampliação do saber. O autor de Teoria e Estrutura Social, entre outras sugestões, destaca uma das formas adquiridas pelo provérbio, qual seja a de que “Um anão nos ombros de um gigante pode ver mais longe do que o próprio gigante”. Merton, na citada obra que ele considera como seu texto “reconhecidamente humanista”, evidencia sua profunda vocação de intelectual puro. Intelectual desde sempre. Intelectual acima das dificuldades materiais por que passou. Lembro-me que, em encontro que tive com Merton em Nova York, ele falou de sua infância: “Minha família era muito, mas muito pobre mesmo. Eu passava dias lendo tudo que havia na diminuta biblioteca de minha cidade natal”. Em sua adolescência, chegou a aprender prestidigitação com um amigo, e trabalhou como mágico para ajudar a pagar seus estu-
É no ambiente de convívio com amigos que Bobbio mantém conversações, acima das barreiras do tempo, e nos faz partícipes desse convívio através de suas obras. É um ambiente que transmite entusiasmo, mas também serenidade dos na faculdade. (Em seu cartão de visitas para possíveis clientes, sobre um fundo com o desenho de uma cartola com uma bengala, estava escrito Robert K. Merton – Mistérios do Mundo da Magia, e o endereço). Entre as muitas reflexões que o aforisma provoca, está o conselho da necessidade de se ter sentido histórico, ou seja, saber utilizar a história de forma inteligente para o conhecimento. Advertência útil em países como o Brasil, onde o tema da cultura costuma ser colocado contra o passado, e contra a idéia de que se possa aprender alguma coisa dele. Ao falar de Newton e do conteúdo de humildade intelectual do aforisma por ele usado, e lembrado por Bobbio, vem à mente, também, a confissão autobiográfica do pai da Física moderna, pouco antes de sua morte:
Os filósofos alemães Emanuel Kant e Friedrich Hegel também foram estudados por Norberto Bobbio
Continente Multicultural 35
Norberto Bobbio, por Zenival
“Não sei que opinião possa eu vir a merecer do mundo, mas para mim mesmo tenho a sensação de não haver sido mais que uma criança que brincava na praia, e que se divertia encontrando certa pedra, especialmente, polida, aqui, alguma concha, mais bonita que outras, ali, enquanto isso o grande oceano da verdade permanecia ante meus olhos sem que eu o descobrisse”. Dos nomes que marcaram o itinerário intelectual e pessoal de Bobbio, figura com destaque o de Carlo Rosselli que, em seus 38 breves, intensos e trágicos anos de vida, abriu caminhos políticos, semeou férteis idéias filosóficas, e inspirou relevantes movimentos partidários. Carlo Rosselli (1899 – 1937) foi um dos mais influentes e carismáticos pensadores europeus na década de 1930, no campo da luta antifascista. Nascido em Roma, no dia 16 de novembro de 1899, em próspera família judia, com fortes tradições liberais, abandonou uma segura carreira como professor de Economia Política, para se dedicar por inteiro, inclusive destinando recursos financeiros próprios, à luta antifascista. Em 1925, funda o primeiro jornal clandestino contra o regime fascista. Preso, escreveu no cárcere sua obra mais conhecida, Socialismo Liberal, que por razões da censura fascista, teve a primeira edição, em 1930, em Paris. Após escapar da prisão, em 1929, Carlo Rosselli encaminhou-se à capital francesa, e iniciou o movimento Justiça e Liberdade, o maior e mais influente grupo antifascista não-marxista, na Itália e no Exterior, do qual foi um dos líderes. Rosselli também combateu na Guerra Civil espanhola, onde comandou uma coluna em defesa da República. Os dirigentes fascistas encetaram forte perseguição declarando-o como o mais perigoso inimigo, tendo-o capturado, junto com seu irmão, o historiador Nello Rosselli, na Normandia,
36 Continente Multicultural
e ordenado o assassinato de ambos, de forma brutal, em 9 de junho de 1937. As idéias de Rosselli continuaram a modelar, após sua morte, tantos os rumos teóricos como práticos da luta antifascista, com a criação do Partido da Ação e das Brigadas Rosselli, no período da Resistência armada. Depois da guerra, o socialismo liberal seguiu como uma influente corrente na vida intelectual e política italiana, principalmente, através da atuação do Circulo di Cultura Fratelli Rosselli. Bobbio costuma sublinhar que a “discussão sobre o futuro do socialismo liberal está apenas começando”. Ao ser um dos seus mais ilustres defensores, Bobbio indica, com essa afirmação, que o socialismo liberal, que “não foi uma elocubração de gabinete”, porque “nasceu de uma reflexão sobre acontecimentos dramáticos vividos por Rosselli”, ainda, é “uma idéia doutrinária abstrata, em fase de elaboração teórica, e de difícil tradução em prática institucional”. Na Introdução que escreveu para a edição de “Socialismo Liberal” , Bobbio destaca alguns parâmetros do pensamento de Carlo Rosselli: a) “O Socialismo Liberal consiste em uma parte crítica do marxismo e das várias formas de revisionismo que pretendem corrigi-lo sem traí-lo – e uma parte construtiva: a proposição de um socialismo não marxista, liberal, e portanto antimarxista. É portanto obra teórica e proposta política, proposta que nasce de uma elaboração teórica”. b) “Teoricamente, a relação entre liberalismo e socialismo pode ser colocada nos seguintes termos...: o liberalismo é sobretudo um método, o socialismo um ideal”. c) “O nexo entre os dois consiste no fato de que, para Rosselli, só esse método pode atingir aquele ideal”.
REPRODUÇÃO
d) “Por método liberal Rosselli se refere ao que hoje se conhece corretamente como método democrático. e) “O socialismo é um ideal... esforço progressivo visando assegurar a todos os homens igual possibilidade de viver a única vida digna desse nome”. As teses de Carlo Rosselli têm despertado, nos últimos anos, crescente interesse nos meios acadêmico e político, dando continuidade ao diálogo entre o socialismo e o liberalismo. Há um período fundacional, onde além do nome de Rosselli, poderiam ser lembrados pensadores como John Stuart Mill, com seu liberalismo radical, Hobhouse com seu ensaio sobre os caminhos liberais em nosso tempo e Charles Renouvier com a diferenciação entre socialismo liberal e socialismo coletivista. Agreguem-se, ainda, os aportes de John Dewey, Karl Mannheim, Bertrand Russell, e os latino-americanos San Tiago Dantas, Miguel Reale e Raul Prebisch. A partir de 1970, registrem-se contribuições importantes como as de Maurice Duverger, de Willy Brandt, em sua autobiografia política, do grupo italiano liderado por Norberto Bobbio, e mais, recentemente, a de John Rawls, quem com as obras Teoria da Justiça e Liberalismo Político, colocou em cena a discussão sobre o conceito de “sociedade justa”. Nesse contexto, cabe destacar que a obra de Rosselli tem merecido traduções e estudos relevantes em outros países, além da Itália. No Brasil, o Instituto Teotônio Vilela, em 1997, incluiu o livro Socialismo Liberal em sua Coleção Pensamento Social Democrata. Nos Estados Unidos da América, a Harvard University Press publicou, em 1999, a obra de Stanislao G. Pugliese Carlo Rosselli – Socialist Heretic and Antifascist Exile, e a Princenton University Press editou, em 1994, a versão em inglês de Socialismo Liberal. A democracia, em nosso tempo e, particularmente, no Brasil, como dizia Otávio Mangabeira, ao falar na Constituinte, em 1946, “não é ainda uma árvore que dê abrigo e sombra; é uma
planta ainda tenra, que exige todo cuidado para medrar e crescer”. Dos perigos que se apresentam a esse crescimento está o charme das novidades, ou seja a aparente e fascinante vantagem com que se aparecem tendências hostis à democracia. Assim foram o fascismo, o nazismo e o marxismo-leninista. Júlio César dizia dos antigos gauleses que eles eram rerum novarum cupidi, altamente sensíveis à cupidez das coisas novas, ansiosos por novidades. Essa lúcida observação pode ser aplicada à humanidade como um todo, especialmente na atualidade. Para fazer face a essas ameaças da demagogia de algumas novidades, e separar as inovações bem vindas das destrutivas, há que se cultivar a política, e a própria democracia, redescobrindo, constantemente, seu valor, que pode nos dar um charme igual, ou maior do que das novidades de cunho antihumanístico. Recordo que Bobbio comentou, certa vez, que na história política, muitas vezes “somente se dá valor a algo, quando Você o perde; assim foi com alguns socialistas italianos que tanto criticavam a democracia burguesa, foram valorizá-la quando veio o fascismo”. Bobbio em sua obra, entre outras contribuições, tem aberto aos leitores a essa “conversação da humanidade” através dos tempos, que é a política, convidandonos não somente a ouvir como também a falar, a opinar, e a nos integrar nesse círculo que procura elevar o convívio entre os seres humanos pela teoria e prática da política, e, por conseqüência, pela via da democracia.
Em Diário de um Século – Autobiografia, Norberto Bobbio repensa e relata sua vida, iniciada quase no princípio do século 20
1 Maquiavel, Nicolo. O Príncipe e Dez Cartas. Brasília: Editora UnB, Tradução Sérgio Bath, 1999. 2 Merton, Robert K. A Hombros de Gigantes. Barcelona: Ediciones Península, 1990. Merton, Robert K. On The Shoulders of Giants. New York: The Free Press, a Division of Macmillan Publishers, 1965. 3 Bobbio, Norberto. Liberalism and Democracy. London: Verso, 1990. 4 Rosselli, Carlo. Socialismo Liberal. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1997. Carlos Henrique Cardim é professor do Instituto de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade de Brasília – UnB
Continente Multicultural 37
ARTE SACRA
O mais belo retábulo do Brasil
Considerado obra-prima para alguns críticos de arte, o retábulo da capela-mor da basílica de São Bento de Olinda é salvo dos cupins para representar a arquitetura religiosa brasileira nos museus Guggenheim
1
ELPÍDIO SUASSUNA
Fases da restauração do retábulo: 1 – Imunização por injeção de K-OTEC diluído em aguarrás 2 – Faceamento que impedirá a queda da camada dourada nas áreas sensíveis
bulos em estilo neoclássico, predominantes em templos modernos. O retábulo da capela-mor da basílica de São Bento de Olinda é tipicamente rococó. Foi executado, com a construção da nova capela, de 1780 a 1786, quando era abade Frei Miguel Arcanjo da Anunciação. Natural de São Paulo, esse grande abade escreveu a Crônica do Mosteiro de São Bento de Olinda até 1763 e foi incluído por José Antonio Gonsalves de Mello “entre os grandes nomes da historiografia brasileira do século 18”. Como o retábulo olindense é muito semelhante ao da capelamor da abadia portuguesa de Tibães, perto de Braga, é muito provável que seu projeto seja de autoria do beneditino português Frei José de Santo Antonio Ferreira Vilaça, o arquiteto de Tibães biografado por Robert Smith em livro publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1972. Mas quem o executou, introduzindo-lhe o que Germain Bazin chamou “alguns prenúncios de neoclassicismo”, foi o entalhador pernambucano José Gomes de Figueiredo, também estudado pelo incansável e competente Robert Smith em artigo publicado pela revista inglesa The Connoiseur de abril do mesmo ano (págida Fonseca nas 248-256). 2
ELPÍDIO SUASSUNA
R
etábulo – para quem não sabe – é uma construção de madeira ou pedra, em forma de painel e com lavores, que se coloca na parte posterior dos altares, sendo geralmente decorada com temas de história sagrada ou imagens. Os retábulos podem ser classificados de acordo com o estilo de cada época. O grande historiador da arte luso-brasileira Robert Chester Smith classificou os retábulos das primeiras igrejas construídas no Brasil como de “estilo nacional português”: estilo correspondente à primeira fase do barroco (até cerca de 1730). Em sua segunda fase (cerca de 1730 a 1760) o barroco dos retábulos é conhecido como estilo Dom João V e apresenta, entre outras características, um coroamento ou remate em dossel e a substituição de ornatos fitomórficos e zoomórficos por anjos e santos. A terceira fase dos retábulos (iniciada, mais ou menos, em 1760) é em estilo rococó, que surgiu na França durante o reinado de Luís XV e se caracteriza pelo excesso de ornatos em forma de conchas e guirlandas (flores e folhagens), curvas caprichosas e formas assimétricas. A partir do século 19 apareceram os retá- Edson Nery
ELPÍDIO SUASSUNA
O retábulo olindense, portanto, foi concebido em Portugal, mas em sua execução o entalhador incluiu “elementos de ornato calçados na arte de Pernambuco”, como escreveu Germain Bazin, acrescentando: “A beleza do retábulo de São Bento talvez esteja no fato de que o espírito arquitetônico, precursor do neoclassicismo, traz à impetuosidade da rocalha um momento de equilíbrio” (cf. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, Editora Record, 1983 – a edição francesa é de 1956 – v. 1, p. 319). Isto quer dizer que o retábulo da capela-mor da basílica de São Bento de Olinda tem, além de sua beleza e monumentalidade, a importância de ser, na história da arte, um exemplo de disciplina neoclássica aplicada à impetuosidade rococó. Está explicado porque tão expressiva peça foi escolhida para representar a arquitetura religiosa brasileira na grande exposição que os museus Guggenheim – o de Nova York e o de Bilbao – vão realizar brevemente: “Brazil: Body and Soul”.
Imagino que o corpo seja o território nacional com suas belezas naturais e arquitetônicas; e a alma, a fé do nosso povo, representada pelo retábulo olindense. Que maravilha! A escolha foi feita pelo banqueiro santista Edemar Cid Ferreira, um homem que mostra não ser tão difícil para um rico entrar no reino dos céus, como foi dito por Jesus Cristo a um que não queria ajudar os pobres. Esse insigne cidadão brasileiro vem sendo criticado por pesquisadores mineiros e baianos por haver preferido o retábulo olindense. Trata-se de uma discriminação injustificável porque preconceitos regionais não devem interferir na apreciação estética. A arte religiosa brasileira é tanto mais bela quanto variada em suas expressões ecológicas. Exemplares do barroco mineiro e baiano também certamente aparecerão em Nova York e Bilbao. Inadmissíveis e até ridículos, em história da arte, são os exclusivismos regionais. Acabo de ver o imenso retábulo olindense desmontado e submetido a uma recuperação cien-
3
4
ELPÍDIO SUASSUNA
ELPÍDIO SUASSUNA
Altar-mor da igreja abacial do Mosteiro de São Bento de Olinda
3 – Aplicação da camada de acabamento sobre a área obturada 4 – Enxerto de madeira de cedro para reconstituição da área perdida na talha
ELPÍDIO SUASSUNA
Obturação e consolidação do suporte nas áreas perdidas e fragilizadas
tificamente orientada por uma equipe da Fundação Joaquim Nabuco, sob a direção da Sra. Pérside Omena. Espalhadas pelo claustro e sacristia, as grandes e pesadas peças que o compõem parecem doentes numa unidade de terapia intensiva. Não faltam sequer os tubos suspensos com K-OTEC diluído em aguarrás mineral injetada nas madeiras. Nas galerias abertas pelos térmites está sendo enxertada a resina Paraloide B 72 com microesfera de vidro. Nenhuma das peças do retábulo – do embasamento (soco, cripta, peanha da imagem de São Bento) –, da base de sustentação (predela, renda da tribuna) –, do pé direito (consoles, colunas, nichos das imagens de São Gregório Magno e Santa Escolástica, sanefas, fustes, pilastras, arremates) –, do entablamento (arquitrave, frisos, cornijas) – e do coroamento (frontão de cartela, volutas, dossel) – escapou à fúria dos cupins. Antes do desmonte, o retábulo foi detalhadamente fotografado e esquematizado com o registro alfa-numérico de cada peça. Uma das preocupações dos restauradores foi a de preservar o douramento original, reintegrandose o novo apenas nas lacunas ou áreas de perda. Um trabalho que honra a museologia brasileira, feito sob a supervisão do nosso nunca suficientemente louvado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Depois de recuperadas, as peças serão devidamente acondicionadas por técnicos do próprio Museu Guggenheim e embarcadas para a grande viagem Recife-Nova York, tudo sob a garantia de uma companhia seguradora de reputação internacional. Pode-se imaginar o impacto que vai causar o retábulo olindense no audaciosamente moderno edifício do Guggenheim, projetado pelo genial Frank Lloyd Wright, em plena Quinta Avenida. Imagino-o montado no imenso saguão que tem o pé direito equivalente aos cinco andares do edifício. Depois de seis meses em Nova York, será novamente desmontado e viajará para ser exposto no
40 Continente Multicultural
mais audacioso e belo edifício da arquitetura contemporânea, que é o Guggenheim de Bilbao. A volta do retábulo a Olinda está prevista para setembro ou outubro do próximo ano. Ao ser nomeado abade do Mosteiro de São Bento de Olinda, em 1961, Dom Basílio Penido foi visitar, no IPHAN, seu insigne fundador e diretor, Rodrigo Mello Franco de Andrade, que lhe disse o seguinte: “A capela-mor de seu mosteiro possui o mais belo retábulo do Brasil”. Apenas repetia o julgamento de Robert Chester Smith, Germain Bazin e outros estudiosos da arte sacra brasileira. Depois de Smith e Bazin esteve no Brasil o grande crítico de arte inglês Secheverell Sitwell, homem fino, especialista no barroco meridional e irmão da grande poetisa Edith Sitwell e do memorialista Osbert Sitwell. Secheverell achou o Recife “more to my taste than any other town in Brazil”. Ele foi do Recife a Olinda numa tarde radiosa que lhe deu a impressão de estar numa cidade do Mediterrâneo. Havia missa vespertina na igreja de São Bento. A luz crepuscular penetrava pelas lunetas da capela-mor, dando tons violetas ao grande retábulo. O inglês discreto não se conteve e escreveu em seu livro Southern Baroque Revisited, publicado em Londres (Weinfeld & Nicholson, 1967): “It was there, had one the choice, that one would wish to live in Brazil” (cito a edição norte-americana do mesmo ano – New York: G.P. Putnam’s Sons – que se intitula Baroque and Rococó, páginas 221-222). Coube ao atual abade, Dom Beda Pereira de Holanda, a histórica resolução de, ouvida a comunidade, permitir o empréstimo do retábulo aos museus Guggenheim: empréstimo idealizado e financiado pelo mecenas Edemar Cid Ferreira e condicionado a uma restauração para a qual nem o mosteiro nem o IPHAN dispunham de recursos suficientes. A gigantesca e bem orientada operação de desmonte veio a calhar, porque os terríveis cupins estavam fazendo com que o tão justamente louvado retábulo não tardasse em ruir. Conta Dom Beda que olhava para os já visíveis estragos dos cupins no retábulo pedindo ao bom Deus que encontrasse uma solução. Esta chegou através da Fundação Solomon R. Guggenheim. Como escreve São João em seu Evangelho, “a salvação vem dos judeus” (João 4, 22). Edson Nery da Fonseca é professor emérito da Universidade de Brasília – UnB
AnĂşncio
Continente Multicultural 41
MIL PALAVRAS
MATEUS SÁ
Equipe de fotógrafos capta faces e fases de mulheres do povo, de todas as idades, como um exercício de um olhar participante
Faces singelas
BETO FIGUEIRÔA
ALINE FEITOSA
MATEUS SÁ ALINE FEITOSA
ALINE FEITOSA
“Aproximando nossos olhos aos olhos delas, sentimos n’alma mais do que deslumbramento. Desvelamos a sensação de múltiplas belezas. Nas mulheres de nossa terra, um caminhar em várias fases e faces de figuras singelas. Encontramos na menina, escondida em meio à vaidade, a certeza do trilhar da vida. Na matriarca, o punho forte de nossa cultura, dos saberes de toda essa gente.” Equipe Canal 03
BETO FIGUEIRÔA
ALINE FEITOSA MATEUS SÁ
Canal 03 O registro do tempo em imagens que mostram realidades étnicas e sociais do povo brasileiro, em especial do Nordeste, é a proposta do grupo de imagens Canal 03. São componentes da equipe e autores deste ensaio os fotógrafos Mateus Sá, Aline Feitosa, Beto Figueiroa, Luca Barreto, Elenilson Soares e Chico Porto. Entre seus trabalhos, estão publicações em jornais e revistas, documenta-
ção de pesquisas científicas na Universidade Católica de Pernambuco, inúmeras produções para ONGs e entidades governamentais e participação em exposições, como a coletiva Retratos de Pernambuco (Museu da Abolição, outubro de 2000), exposição Nós somos, ninguém é – Miscigenação (Associação Paraibana de Imprensa, agosto de 2000), além de projeção audiovisual Temporalidade, em comunidades e em dezenas de eventos culturais do Recife e Olinda. Continente Multicultural 47
SÉCULO 21
Bases para uma aliança cultural hispano-brasileira no século 21 Diplomacia cultural pode render crescimento econômico e projeção política a Brasil e Espanha
N
inguém imaginaria, 15 anos atrás, que no ano de 2000 a Espanha seria o maior investidor externo no Brasil, superando o todo poderoso Estados Unidos. Em apenas cinco anos sua modesta participação de 0,2% no total de investimentos diretos no Brasil passou para a espantosa média de mais de 20%. Os US$ 251 milhões que vieram da Espanha em 1995 pularam para US$18,9 bilhões em 2000, ano em que o banco Santander pagou US$ 15 bilhões pela aquisição do gigante Banespa. Surpresa porque o século 20 foi amargo e doloroso para a Espanha. Vitimada por uma das mais brutais guerras civis da história da humanidade, os espanhóis viram seus sonhos de democracia e
igualdade demolidos pela brutalidade da guerra civil apoiada pelo nazi-fascismo na Europa. Enquanto a Inglaterra e França lavavam as mãos, a república espanhola e a utopia de uma Europa livre e em paz eram esmagadas. Sob o regime do generalíssimo Franco, a cultura foi cerceada, grandes nomes das letras mortos, e a genialidade espanhola exilada. A guerra civil produziu cerca de dois milhões de prisioneiros, 183 cidades devastadas, 500 mil exilados políticos e mais de 500 mil mortos. Na economia, a Espanha perdeu 60% a 70% de seus rebanhos e cerca de 40% de suas colheitas. A produção industrial e de matérias-primas caiu drasticamente. A paz dos mortos passou a reinar.
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 48 Continente Multicultural
Meio século depois, como parte do gigantesco processo de reconstruir a Europa com instituições que produzissem a integração do continente sob as bases da democracia moderna, a Espanha deu início à mais importante experiência de democratização e ainda de maior sucesso. Graças a uma transição política plena e aos mecanismos de desenvolvimento da União Européia, de um Produto Interno Bruto de apenas US$292 bilhões em 1985, a Espanha chegou a US$600 bilhões em 2000. Do lado do Brasil a história percorreu outras trilhas. Desde os anos de 1930 que se luta com a política de substituição de importações para se construir uma economia industrial e desenvolver tecnologia própria. Do conflito entre os interesses dos Estados Unidos e Alemanha, o Brasil conseguiu sua primeira indústria siderúrgica. Nos anos de 1950 e 1970 o país passou por um período de acelerado crescimento baseado na associação da empresa estatal com a empresa nacional e multinacional. Desde então tem vivido um processo de democratização e reformas que, apesar de moroso, está lentamente consolidando a nova posição do país no contexto global. Por a Espanha ter estado fechada para o mundo que criou; por o Brasil ter estado de costas para seus irmãos de língua espanhola, estávamos todos divididos e nos era dado assento apenas no chamado Terceiro Mundo. Hoje tudo mudou. A importância que a Espanha possui na União Européia é semelhante à que o Brasil deve ter na futura Área de Livre Comércio das Américas. As conseqüências da aliança entre estas duas forças são incalculáveis. Qual o objetivo central deste espaço de cooperação entre Espanha e Brasil? Certamente não é econômico, pois os mecanismos atualmente existentes neste setor são mais que suficientes para ampliação dos interesses de ambos os lados. Também não o é a história passada, pois a formação ibérica e lusitana são de raízes diversas. A cultura é o eixo potencial da aliança hispano-brasileira. Os futuros das culturas ibero-americanas e luso-brasileira estão fortemente associados. Nos
últimos anos, o crescimento do interesse internacional por elas não possui paralelo. Tanto nos países de língua portuguesa e espanhola quanto no resto do mundo. Quem imaginaria que o português se tornaria a segunda língua na Argentina? Quem suporia que o espanhol se tornaria a segunda língua nos Estados Unidos, enquanto o interesse pelo português do Brasil volta a crescer por toda a América do Norte? Contrapondo-se à idéia de recolonização européia ou de imposição cultural norte-americana, a aliança cultural ibero-luso-americana poderá mostrar a viabilidade de um mundo verdadeiramente multicultural e relembrar a grande lição da Grécia clássica: de que poder econômico e militar não implica poder cultural. As artes plásticas, a literatura, o teatro e o cinema, a arquitetura, a culinária, a música, não como folclore, mas como instrumento de conquista de corações, mentes e mercados, mas como meio de projeção global, como os dois países já fizeram no futebol, no tênis e na literatura. Em um mundo hipnotizado pelo discurso da diplomacia econômica e presidencial, as vantagens competitivas dependerão de novas abordagens. Nada melhor que a volta triunfal da diplomacia cultural mostrando o potencial e a necessidade de novas formas de alianças para o século 21. Marcos Guedes é ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco
Continente Multicultural 49
cultura A maior estátua de Buda em pé do mundo, na província de Bamiyan, no Afeganistão, destruída pelo movimento Talibã
VANDALISMO Uma história de destruição
Movida por interesses comerciais, ação religiosa ou institucional ou, ainda, simples ignorância, a destruição de bens culturais compõe uma longa tradição de descaso com a memória coletiva. Monumentos, obras de arte, pinturas rupestres pré-históricas, prédios e igrejas sofrem as agressões da inconsciência, do preconceito e da ganância Cristiano Ramos 50 Continente Multicultural
REPRODUÇÃO / NEA
JEAN-CLAUDE CHAPON / AFP
ido lá exatamente quando a pedreira estava prestes a causar um estrago bem maior”, observou a professora Ana Nascimento, integrante do NEA, que no último mês de dezembro voltou ao local e verificou que o trabalho continuava, embora apenas nas rochas em torno do sítio pré-histórico. Se essas marcas deixadas pelos ancestrais do homem brasileiro em diversas áreas do Nordeste já têm a preservação dificultada pelo clima da região, imagine-se com uma fissura que deixa aberto o caminho para as infiltrações – ressalta a professora. Após conversar com o dono da Fazenda Oliveira, propriedade na qual está encravado o sítio, os arqueólogos do NEA conseguiram a promessa de que os blocos com pinturas rupestres não serão mais danificados. Contudo, a área circundante está sendo totalmente desfigurada. A professora Suely Luna destaca que “manter os traços naturais do local é algo fundamental para análise dos sítios pré-históricos”. Quando a Gruta do Padre, com registros de cerca de 7.000 anos, foi inundada pelas águas do lago Itaparica para alimentar a hidrelétrica do mesmo nome, conseguiuse retirar antes o seu acervo. Mas isso limita os estudos sobre o material. ARQUIVO DP
H
á algumas semanas, o mundo inteiro assistiu, via redes de TV, à destruição de imagens gigantes do Buda, pelo movimento islâmico radical Talibã, no Afeganistão. Uma onda de indignação varreu o mundo, diante do flagrante de ataque a um patrimônio artístico, histórico e religioso mundial. O acontecimento serviu para chamar a atenção para a necessidade de preservação dos bens culturais de todo tipo, testemunhas do caminhar da civilização humana. Entretanto, atos de vandalismo desse tipo, institucional ou partindo de indivíduos, são praticados desde épocas remotas, por motivações religiosas, políticas, econômicas ou por simples ignorância. E não se precisa ir tão longe para encontrar exemplos de vandalismo. O descaso ronda as nossas portas. Há dois anos, um grupo de estudiosos do NEA (Núcleo de Estudos Arqueológicos da UFPE) foi ao município pernambucano de Venturosa, na região do Agreste, a 249 km da capital. Tratava-se de uma rotineira coleta de dados sobre os sítios pré-históricos do local. Lá encontraram homens e máquinas a trabalhar blocos de rocha, retirando granito, indiferentes à legislação e ao patrimônio sobre o qual despejavam golpes de martelos e brocas. Resultou, rachado por inteiro, um painel com pinturas rupestres de 2.000 anos (vale lembrar que as estátuas destruídas pelo Talibã tinham cerca de 1.500 anos). “E foi muita sorte nossa equipe ter
Igreja dos Martírios, no bairro de São José, do Recife, demolida quando da abertura da Avenida Dantas Barreto, nos anos 70
Painel de pinturas rupestres em Venturosa (PE), danificado pela atuação de uma pedreira que ainda funciona no local
Dois pontos agravam o incidente ocorrido em Venturosa: primeiro, trata-se de sítio definido pelos especialistas como de grande importância. O painel danificado faz parte das matações (fragmentos de rocha) de Peri-Peri, há muito registradas entre as mais importantes de Pernambuco. Em segundo, o processo burocrático parece não ter sido cumprido como devido. “Para que se realizem trabalhos em áreas desta natureza seriam necessárias a correta fiscalização e a aprovação do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), órgão responsável por conceder o alvará para esse tipo de obra. Esse levantamento evitaria o ‘vandalismo exploratório’ das pedreiras”, argumentou Ana Nascimento. Esse tipo de depredação é raro. Geralmente, o grande obstáculo à preservação dos sítios arqueológicos é o turismo predatório, em que grupos com mais de cinqüenta pessoas circulam nessas áreas, mesmo sem a orientação de guias. As pessoas costumam pôr as mãos, danificar e até retocar as pinturas. “Já cheguei a ver um carro estacionado à sombra de uma gruta pré-histórica” – conta a arqueóloga. Apesar de raro, não é a primeira vez que este tipo de coisa acontece. Na década de 50, parte dos grafismos da célebre Pedra do Ingá foi destruída por uma pedreira para fabricação de lajes. Os pesquisadores do NEA, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), têm projetos para realização de cursos de educação e orientação sobre preservação do patrimônio histórico. O objetivo é conscientizar os estudantes dos municípios, trabalhando com material arqueológico. Já existe um trabalho sendo feito em Buíque. O que não ajuda são os maus exemplos – argumenta Suely, lembrando o caso
envolvendo uma diretora de renomada escola do Recife, que comprou nove peças arqueológicas provenientes de Carnaúba dos Dantas, cidade do Sertão do Seridó, para formar um museu escolar. A tradição do descaso – Nos anos 70, o jornalista e historiador Leonardo Dantas Silva e o arquiteto José Luiz Mota Menezes foram dos poucos a brigar contra a abertura da Dantas Barreto, avenida responsável pela desfiguração de vários quarteirões do Bairro de São José. Caso mais emblemático desse episódio foi a derrubada da Igreja dos Martírios, prédio barroco de fins do século 18, tombado pelo Iphan. Em nome do progresso, desapareceram ruas como a Augusta, a das Florentinas, do Cabugá, das Laranjeiras, da Horta e de Santa Teresa, e com elas, templos religiosos, logradouros e monumentos históricos. “Nós, os defensores do ‘velho’, somos sempre minoria. Aqueles que apoiaram e ajudaram a rasgar o bairro, entre eles o Gilberto Freyre, praticamente não encontraram resistência”, enfatiza José Luiz. Leonardo Dantas lamenta as perdas da época: “Isso não aconteceria nos dias de hoje. Pela vaidade pessoal de alguns políticos em realizar obras, construiu-se uma avenida que liga nada a coisa alguma. E o pior é que, excetuando-se alguns poucos, ninguém fez nada contra”. Uma outra igreja, a Sé de Olinda, antiga Matriz do Salvador, é um dos exemplos mais referenciais do descaso com a memória. Construída em 1540, ela sofreu modificações importantes, decorrentes de um incêndio, e foi elevada a catedral em fins do século 17. Mas foi em 1911, durante a realização de novas reformas, que o arcebispo Dom Luiz Rai-
A cultura do vandalismo – Atentados em grande ou pequena escala à preservação da memória cultural são, hoje, corriqueiros. Em final
de março passado, concluiu-se a restauração da igreja da Boa Hora, em Olinda, inclusive com a contribuição de 106 jovens carentes, em um projeto de capacitação do Fundo de Amparo ao Trabalhador, em parceria com a Cruzada de Ação Social, o Iphan e os governos municipal e estadual. Na reinauguração, as “tribos” de pichadores mal esperaram que fossem retirados os tapumes e deixaram marcadas suas conhecidas assinaturas na parede lateral do edifício, um templo construído no século 18. A mais recente ação dos vândalos atingiu a obra do artista plástico Francisco Brennand, num episódio que, ao contrário dos narrados anteriormente, mereceu ampla divulgação pela mídia, por conta da enorme visibilidade do conjunto de suas esculturas expostas no parque Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, em pleno porto do Recife. Foram duas investidas. Primeiro, os vândalos destruíram duas peças, logo no dia 1º de janeiro. Foram depredadas uma escultura de 70 cm e o Ovo Cósmico, peça instalada no teto da Coluna de Cristal, a 2,3 m de altura. Provavelmente, os criminosos se penduraram na obra e a lançaram de encontro à parede. Dois meses depois, foram cinematograficamente roubados 18 ovos de bronze, alguns pesando até 50 quilos. Os ladrões entraram no parque, arrancaram as esculturas que ficavam presas ao chão. Após alguns dias de intensa repercussão, as criações de Brennand foram encontradas num terreno baldio da Capital. São exemplos de uma cultura do descaso que consegue ligar acontecimentos tão distintos quanto a destruição dos Budas do Afeganistão e igrejas e esculturas do Nordeste do Brasil, num ruidoso processo de destruição que, não importa a latitude, ameaça constantemente a própria memória humana. Cristiano Ramos é jornalista
LEO CALDAS / TITULAR
mundo da Silva Britto teve a suprema inspiração de “modernizar” o prédio. Com projeto de Rodolfo Lima, um deslumbrado pela arquitetura francesa, dom Luiz empreendeu modificações que, terminadas em 1919, entregaram aos fiéis de Olinda uma igreja neogótica. Um outro arcebispo, Dom Miguel de Lima Valverde, que jamais concordou com a aparência sombria da nova Sé, iniciou uma remodelagem para restituir a catedral seu aspecto original. O trabalho findou em um neobarroco de ares alemães, bem distante do estilo renascentista-maneirista do prédio. Os olindenses precisaram esperar até 1967, quando, sob a iniciativa do padre Marcelo Cavalheira, nova restauração devolveu à Sé de Olinda suas linhas primitivas. As obras ficaram sob encargo da Fundarpe, com projeto de José Luiz Mota Menezes, e duraram 16 anos.
Panorâmica do parque Eu Vi o Mundo... Ele começava no Recife, de Francisco Brennand, instalado no dique do Porto do Recife
HUMOR GRÁFICO Desenho do pernambucano Ral, considerado um dos melhores cartunistas do País
O
A tradição de fazer rir
festival de humor que acontece no Recife (ver matéria a seguir) é herdeiro de uma tradição que começa com uma xilogravura, publicada em 1831, pelo jornal alternativo recifense, O Carcundão. Foi a primeira charge da Imprensa brasileira. Representava um homem com cara de cavalo cujas mãos sustentam uma coluna quebrada. Pernambuco ainda contaria com o segundo caso de ilustrações em jornais: foi no O Carapuceiro, do beneditino Miguel do Sacramento Lopes Gama, em 1832. Somente em 1837, seria impressa no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, a primeira charge assinada no Brasil, pelo jornalista Manuel Araújo Porto Alegre. As publicações ilustradas no Recife só iriam engrenar em 1859, com a chegada do gravurista francês Alphonse Bensson e do impressor alemão 54 Continente Multicultural
Franz Heinrich Carls. Na oficina litográfica de Felipe Nery Colaço, imprimiam O Monitor das Famílias, que marcou época com a seqüência de seis edições retratando a visita da Família Imperial a Pernambuco. Surge depois A América Ilustrada – Jornal Humorístico, impresso pela Tipografia Americana. Publicado entre 1871 e 1886, trouxe charges do romancista Carneiro Villela, que usava os pseudônimos Quinquim das Moças e Juca das Mercês. Outro ilustrador da AI, o mulato Crispim do Amaral, tornar-se-ia famoso ao ser contratado pelo periódico Rise, de Paris. No entanto, a revista ilustrada que daria maior contribuição para o desenvolvimento da caricatura naquele final de século foi O Diabo a Quatro – Revista Infernal. Nela, já havia cuidado na correspondência dos textos com os desenhos e no esmero técnico destes. Outra importante publicação
Chet, o qual conquistou tamanho sucesso que ganhou os mercados da França e do México. Mas aquela geração que começou a trabalhar sob a sombra da ditadura nascida em 64 se concentraria fundamentalmente na charge política. Várias revistas surgiram tentando seguir os moldes de O Pasquim, que contou com pernambucanos como Ral. Ele iria fundar, junto com Paulo Santos e Bione, em 76, a publicação mais anárquica de Pernambuco: O Papa-Figo. Em 79, outro cartunista pernambucano, Lailson, criaria o Folhetim Humorial, em referência ao Movimento Armorial. Já na transição para a democracia, em 85, mais uma tentativa de publicação alternativa no Recife, o jornal O Rei da Notícia, editado pelo jornalista e cartunista Clériston. Lailson e Clériston ainda lançariam a revista Zona Tropical. Na virada do milênio, uma revista editada por dois cartunistas da nova geração vem entrando no mercado com excelente qualidade gráfica. A trimestral Ragú, de Lin e Mascaro, acaba de lançar seu quarto exemplar (do 0 ao 3), sendo distribuída em quase todo o Brasil. “Existe mercado para as publicações gráficas nordestinas”, salienta Lin. “O que falta é empreendimento. Quando nos inscrevemos na Lei de Incentivo à Cultura, fomos logo aprovados, pois ninguém tinha inscrito um projeto desse tipo antes.” A linha editorial mostra mais uma inovação da revista. Rompendo com a tradição de charge política, a Ragú é uma miscelânea poética de delírios e porrada; é transcendental e social ao mesmo tempo. A renovação já tem a benção de grandes cartunistas da geração passada, que sempre são convidados a colaborar. O nome foi inventado para ser algo que não significasse coisa alguma, mas acabaram descobrindo depois que também designa um tipo de molho à bolonhesa, “um tempero simples demais para a feijoada que fazemos”, brinca Lin. REPRODUÇÃO
foi a Lanterna Mágica – Periódico Livre e Humorístico, que documentou a abolição da escravatura no Brasil. Mas o grande impulso da ilustração impressa pernambucana para o humor foi dado pelos jornais de grande escala. Desses, o Recife tem o primeiro da América Latina, o Diario de Pernambuco, que teve como primeira charge, em 1914, uma caricatura do presidente Hermes da Fonseca. O autor, um jovem de apenas 15 anos, não ficaria célebre pelos seus desenhos, mas sim por sua poesia: Joaquim Cardozo. Contemporâneo seu, Abelardo Pontes da Maia, ou Crayon, iria contribuir para a evolução da caricatura local, aliando às figuras ilustres de suas charges uma interpretação subjetiva, ressaltando a personalidade da pessoa retratada. Foi quando chegaram as charges estrangeiras, que praticamente aniquilaram as locais. Era época da I Guerra Mundial. No Estado Novo, mesmo sob repressão, Pernambuco conseguiu gerar ilustres desenhistas, como Péricles Maranhão, criador de um dos personagens mais populares do Brasil – o Amigo da Onça – e Carlos Estêvão, continuador do personagem, após o suicídio do autor, nas páginas da mais importante revista brasileira da época: O Cruzeiro. Aproximava-se, então, a II Grande Guerra, o que trouxe nova leva de charges estrangeiras. Já próximo do final do conflito, voltaram à cena os artistas pernambucanos, com destaque para Augusto Rodrigues, com suas estilizações gráficas. Em 1958, surge a página de humor de maior duração no Diário, o Melokisses, criada pelo radialista Melo Júnior, que se autodenominava Melokeiro, um trocadilho com “maloqueiro”. Na década de 70, os quadrinhos pernambucanos ganhariam força principalmente nas mãos de Watson e Wilde Portela. Em 76, criaram o cowboy
Capa do número 3 da revista Ragú, de humor gráfico, editada em Pernambuco por Lin e Mascaro
Continente Multicultural 55
ARQUIVO LAILSON
O norte-americano Will Eisner, criador do Spirit, e Lailson, coordenador do 3º FIHQ-PE
Festival se consolida
E
m sua terceira edição, que acontece entre 29 de maio e 25 de junho, no Observatório Cultural Malakoff (Torre Malakoff, Recife Antigo), o Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco se consolida como um dos maiores eventos brasileiros do gênero, agregando artistas de todo o mundo. Prova de que o humor gráfico está em alta. O 3º FIHQ-PE é fruto de uma evolução inaugurada com o I Salão Nacional de Humor de Pernambuco, organizado pelo chargista Lailson, 1983. De lá até o primeiro FIHQ-PE, em 99, Lailson desenvolveu outros salões semelhantes, como o Salão de Humor na Imprensa, em 91, além de ter se empenhado em outros que divulgassem o humor gráfico, entre os quais se destaca o Riso na Rua, em 95, quando obras de cartunistas de todo Brasil foram expostos em outdoors no Recife. A preocupação primeira foi com a organização de chargistas, cartunistas (cartum possui uma mensagem atemporal, enquanto charge está ligada a fatos atuais) e quadrinistas para unirem esforços a fim de viabilização de suas profissões no Brasil. O grande inimigo era o material que chegava do estrangeiro a preços irrisórios e desempregava artistas locais. Um exemplo do fruto dessa colaboração aconteceu no difícil momento da extinção da Funarte pelo então presidente Fernando Collor, deixando os artistas gráficos sem meios para difundir seus trabalhos. Foi quando surgiu a Pacatatu, distribuidora independente responsável 56 Continente Multicultural
pela resistência de alguns títulos brasileiros na seção de tiras dos jornais. Esforços isolados como o da Pacatatu, no entanto, não solucionam a questão de introduzir no mercado produtos de boa qualidade gráfica a preços competitivos. Outro agravante do problema, era a economia irregular do País e o baixo poder aquisitivo do brasileiro. A revista Chiclete com Banana, de Angeli, é um bom exemplo disso: chegou a vender oito mil exemplares mensais, mas veio a crise de papel nos anos 90 e, com a alta dos preços, as vendas despencaram para dois mil. Uma tiragem ainda respeitável, mas não o suficiente para convencer a editora a continuar com a publicação. A importância da distribuição, para Lailson, vai além do retorno financeiro, coloca em cheque a própria natureza dessa arte gráfica. “O cartum e a charge formam o que chamamos de arte comunicativa – uma arte de massas não restrita a uma parede, mas que só funciona em perfeição em larga escala”, esclarece. Plugado nas novas alternativas de viabilização no mercado, o Festival traz em seus concursos a categoria de humor virtual (prêmio Augusto Rodrigues). “O espaço da Internet abriu possibilidades para os artistas se libertarem de seus limites geográficos e permite uma visão imediata do que se está produzindo em outros lugares”, acrescenta o organizador. O Recife ampliou as relações de cooperações entre os artistas do traço. Com a agilidade na troca de informações, grupos mundiais de desenhistas de quadrinhos e humor estão aparecendo para promover a divulgação mútua, além de
formar bases para a defesa dos direitos, e garantir a liberdade de expressão e a segurança de humoristas gráficos. Um exemplo é a atual campanha que o Organización de las Naciones Unidas por el Humor (ONUH) vem desenvolvendo para ajudar o chargista panamenho Julio Briceño, que está correndo o risco de receber uma multa de US$ 1 milhão e cumprir uma pena de prisão por dois anos como represália a uma charge publicada no último dia 20 de dezembro no jornal La Prensa. A caricatura retrata o ex-vice-presidente Arias Calderón de mãos dadas com uma figura da morte que se assemelhava ao general Manuel Antonio Noriega, nome associado às arbitrariedades cometidas pelo regime militar. O 3º FIHQ-PE homenageia grandes nomes do humor gráfico de Pernambuco com nomes de prêmios. São eles, prêmio Péricles Maranhão (criador do famoso O Amigo da Onça), na categoria cartum; Joaquim Cardozo (poeta e primeiro char-
A
estrela do 3º FIHQ-PE deverá ser o inventor do Spirit (1940) e da novela gráfica para adultos (78), Will Eisner. Seus textos, em que se destaca a qualidade literária, misturando sutilmente humor, ironia e tons amargos, fizeram com que os críticos o comparassem a Tchekov. Já no traço, sempre inovador e quebrando regras clássicas quanto à perspectiva, chama atenção a técnica expressionista da luz, do enquadramento, do uso de travelling, cortes e close ups, e dos “efeitos sonoros”, que o tornam tão importante para os quadrinhos como Orson Welles para o cinema. Em entrevista por e-mail, Eisner fala sobre seu trabalho como artista e professor.
gista do Diario de Pernambuco, e fundador da Escola de Belas Artes do Recife), charge; Crispim do Amaral (caricaturista do Recife Ilustrado, publicação do começo do século 20), caricatura; Carlos Estêvão (célebre ilustrador da revista O Cruzeiro), quadrinhos; e Augusto Rodrigues (artista renomado), humor virtual. Todos no valor de R$ 3 mil, menos o último, que é de R$ 2 mil. O Festival já contou com a presença de grandes nomes da HQ, como Jerry Robinson (o criador do Coringa), que trazem prestígio para o evento. Esse ano, está confirmada a presença de Will Eisner, criador do Spirit, que dará palestra e fará exposição individual numa tenda ao lado da Torre Malakoff. Haverá ainda mostras coletivas de trabalhos de 200 concorrentes selecionados, e de convidados, como Otávio Carielo (brasileiro com passagem pela editora Marvel e DC), Fernando Gonzales (autor de Níquel Náusea) e os irmãos Martin e Kazo.
O senhor criou o conceito de graphic novel. A novela gráfica, hoje, é um gênero em pleno desenvolvimento? Quais os principais autores deste gênero no mundo, na sua opinião? A maturidade do gênero novela gráfica está acontecendo tanto aqui nos Estados Unidos quanto internacionalmente. Agora, nós já vemos resenhas literárias críticas e sérias de trabalhos feitos por jovens inovadores como Chris Ware, Ben Katchor etc. É difícil para mim isolar “autores individuais” porque eu teria que estabelecer padrões pelos quais avaliá-los. Eu prefiro deixar este tipo de seleção para os críticos literários. Por fim, a melhor evidência da maturidade à qual me refiro pode ser encontrada no conteúdo adulto dos assuntos abordados nelas.
Spirit, desenhado por Eisner, anunciando sua vinda ao Recife
Continente Multicultural 57
Humorista gráfico e autor de livros infantis, Ziraldo revela, seus próximos projetos como editor e suas expectativas com relação ao 3º FIHQ-PE, destacando o pernambucano Ral como um dos três melhores cartunistas do País.
Ziraldo diz que quer vir assistir à palestra de Will Eisner
Qual é o valor de um evento como o FIHQ-P PE? A iniciativa do Recife é perfeita. Este ano tem um aspecto importante porque traz um dos artistas que mais influenciou o cartunista e o quadrinista brasileiro que é o Will Eisner, um renovador dos quadrinhos. É um grande amigo nosso e espero estar aqui para ver sua palestra. Você tem vasta experiência em publicar revistas de humor gráfico no Brasil. Quais são as dificuldades? Acho que fiz uma revista errada, a Bundas. Era para ser uma revista anti-Caras, criticando o espírito daquela revista, essa coisa fáctua e consumista. A gente não conseguiu levar para aí, pois todo mundo que foi trabalhar na revista estava mais preocupado com política. Então ficou meio sem sentido uma revista política com o nome de Bundas. Mas devo voltar com uma revista nos moldes do Pasquim, de contestação política Como vai ser fazer um Pasquim num contexto histórico diferente daquele da ditadura? Por isso é que não é um novo Pasquim, mas um jornal com a mesma intenção. Ou seja, é um
58 Continente Multicultural
Em que novela gráfica o senhor está trabalhando no momento? Pode nos dar um resumo do enredo? É verdade que o Recife é mencionado na história? Estou trabalhando numa novela séria que lida com o fenômeno social do casamento. Nela, estou fazendo a crônica do impacto de duas famílias que se juntam através do casamento, revelando o que elas esperam desta filiação. O Recife é mencionado no princípio do texto, quando conta a história de como os primeiros judeus vieram desta cidade para a América do Norte colonial.
MARCIA ZOET / AE
O senhor ensinou quadrinhos numa universidade de Nova York. Algum aluno seu tornou-sse um bom quadrinista? É possível aprender a fazer quadrinhos na escola? A função de uma escola é prover o aluno de uma compreensão da tecnologia utilizada. Coisas viscerais como estilo e técnica são “adquiridas” através da prática. O estímulo de idéias e do “pensar” é a função de um professor inspirado. Um dos meus alunos que, atualmente, é bastante bem-sucedido é Ray Billingsley, que é o autor da tira quadrinizada Curtis, distribuída internacionalmente.
jornal indignado, um jornal de protesto, de fundo político, quase didático, um jornal que quer discutir os assuntos que a grande Imprensa não está discutindo. Por exemplo, você repara que a grande Imprensa só faz isentar Fernando Henrique de qualquer culpa. Quando apareceu o negócio do Eduardo Jorge, o que disseram? O presidente tem que ser preservado. No Pasquim, você trabalhou com Ral. É verdade que você o considera um dos melhores cartunistas do Brasil? Os melhores desenhos de humor no Brasil são o Wag, que já morreu, o Viana e o Ral. O desenho do Ral é primoroso – ele é um artista plástico. Ele tem um traço fino, leve, meio trágico, doloroso, dolorido, muito agressivo. Ele usa uma linha fina e tem sempre uns pontinhos pretos na inserção de suas linhas. Sempre um desenho muito cruel. Camilo Soares é jornalista. Entrevista de Eisner a Lin e Marco Polo. Colaborou Lailson.
AnĂşncio
Continente Multicultural 59
SABORES PERNAMBUCANOS
Lentilhas às sextas-feiras A cozinha espanhola tem o jeito do seu povo. É forte, farta, rica e sobretudo variada “Cada época da história modifica o fogão e cada povo come segundo seu caráter e sua alma. Antes, talvez, que seu estômago. Há pratos de nossa variada cozinha que não são menos importantes nem menos históricos que uma medalha, uma arma ou um sepulcro.” Condessa de Pardo Bazan
‘’
P
assadio, ôlha seu tanto mais de vaca do que de carneiro, as mais das ceias restos da carne picados com sua cebola e vinagre, aos sábados outros sobejos ainda somenos, lentilhas às sextas-feiras, algum pombito de crescença aos domingos...” Assim começa a comovente história de Dom Quixote de la Mancha, do gênio espanhol, ex-escravo, “jamais vencido”, “velho soldado, fidalgo e pobre”, Miguel de Cervantes Saavedra. E sabores não faltam a esse romance épico. Sancho Pança, por exemplo, se espantou quando, ainda governador da ilha de Barataria, viu “um novilho inteiro enfiado – como se fosse um espeto – num tronco de álamo” e esse novilho “tinha no amplo ventre, de recheio, dois leitõezinhos que serviam para o fazer tenro e dar-lhe gosto”. E ainda mais admirado ficou quando, em volta da fogueira, viu galinhas e lebres, panelões de cozido, além de pães, filhoses e vinhos. A cozinha espanhola tem o jeito do seu povo. É forte, farta, rica e sobretudo variada. Em parte por conta da presença de judeus (sefardins) e árabes (mouros) que, durante quase mil anos, habitaram a Península Ibérica. Com eles vieram as especiarias – pimenta, açafrão, noz-moscada, salsi-
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 60 Continente Multicultural
nha, cebola, cebolinha, erva-doce, erva-cidreira, alho, azeite, alcachofra, grão de bico, repolho, abobrinha, berinjela, canela, espinafre, laranja e limão. Além das lentilhas, claro. E amêndoas, mel, damasco, tâmaras e figos secos, base de muitas sobremesas espanholas. À mesa, peixe e também lula, caranguejo, sardinha, bacalhau – sempre com alho e bastante azeite. Mais cordeiro, vitela, frango e pato. E também porco, lá chegando só depois de terem judeus e árabes deixado a Península Ibérica, por mãos dos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, e de D. Manuel I, de Portugal, depois conhecido como “o Venturoso”. Do porco vindo jamon, chorizo, salsichones, morcillas e butifarras. São muitos os pratos tipicamente espanhóis: como a paella ou fabada valenciana; o gazpacho e o pescaito frito andaluz; o pulpo, as empanadas e o lacón con grelos a la gallega; os pescados e mariscos cantábricos; o pollo a la chilindrón aragonês; a trucha a la navarra; os fideos a la cazuela de Barcelona; habas a la catalana; calçóts a la terragona; sopa de ajo castellana; galianos e pisto manchego. Destaque para o cozido, indiferentemente chamado de cocido, puchero, olla podrida, pote ou escudella – com versões próprias em cada região. Mas sempre obedecendo à fórmula universal de manter ao fogo três distintos elementos: carnes, legumes e verduras (no caso, as próprias de cada região). Além de tortilla de patatas, à base de ovos, batatas e cebolas (diferentes das mexicanas, que levam milho). De sobremesa, churros, servidos com café e chocolate; alfajores (bolo de mel), mazapane (marzipã) e mantecadas (doce feito com manteiga, farinha e açúcar).
Mas nenhum prato representa melhor a Espanha que a paella, largamente difundida entre camponeses que saíam ao trabalho levando arroz, óleo de oliva e sal; mais a própria paella, panela rasa de grande diâmetro, originária da patella romana – usada em oferenda aos deuses, nos rituais de fecundidade. O prato era então enriquecido, no próprio campo, com ingredientes da estação – legumes e caça, sobretudo lebres e patos. Depois essa paella foi para o litoral; recebendo então, como complemento, frutos do mar. É cozinhada no fogo de lenha, com pessoas em volta, fiel à tradição árabe. Lembrando nosso jeito de comer churrasco. Ao Brasil chegou no começo do século passado, trazida pelos primeiros imigrantes espanhóis. O arroz tem raízes na China e na Índia. Daí sendo levado pelos árabes, que o denominavam arruz, primeiro à Espanha e bem depois a Portugal. Até 1300 era usado fundamentalmente como sobremesa, com leite, açúcar e canela, à maneira do arroz doce português. Depois também o salgado, que no Brasil ganhou muitos modos de preparar: o arroz-de-carreteiro gaúcho, o arroz-de-suã goiano, o arroz-de-hauçá baiano, o arroz-de-cuxá maranhense e o arroz-de-coco pernambucano. Nos veio ainda molhos, como o escabeche – que nasceu do procedimento antigo de eliminar a cabeça do pescado antes da sua preparação, usando vinagre, cebola, alho, louro, tomate, pimentões e especiarias, para conservar de um dia para o outro o resto do peixe. Por fim, e com perdão dos franceses, a maionese – original de Maó, capital da ilha Menorca. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
PEIXE FRITO AO MOLHO DE ESCABECHE Ingredientes:
Molho:
Preparo:
2 kg de peixe em posta (cavala, garoupa ou camurim) Suco de 1 limão Sal e pimenta Farinha de trigo Óleo
½ xícara de azeite de oliva 2 dentes de alho socados 1 folha de louro 2 cebolas em rodelas 4 tomates, sem pele e sem sementes, em rodelas 1 pimentão em rodelas 1 ramo de salsa 1 colher de sopa de páprica ½ xícara de vinagre de vinho
Lave as postas de peixe e tempere com sal, pimenta e limão. Enxugue e passe na farinha de trigo. Frite em óleo quente. Em outra panela prepare o molho: com azeite, alho, cebola, tomate, pimentão, louro e salsa. Deixe refogar um pouco. Tempere com sal e pimenta. Acrescente a páprica e o vinagre. Junte o peixe ao molho, tampe a panela e deixe ferver. Sirva com batatas cozidas.
Continente Multicultural 61
ESPECIAL
ESPANHA sob medida
que uma vez disse em verso que a cidade de Sevilha veste o homem sob medida. Nos últimos anos, as relações espanholas e brasileiras têm crescido. Sendo uma revista assumidamente ibérica, Continente desde o seu número inaugural vem contribuindo modestamente para essa aproximação. Com este especial, que contém uma pequena mostra do pensamento espanhol da atualidade sobre aspectos culturais, políticos e históricos do país, é dado mais um passo no sentido da cooperação e do intercâmbio internacional.
As relações entre Brasil e Espanha são uma realidade rica e dinâmica desde a época dos descobrimentos. Há aqueles até hoje fascinados com a possibilidade de que antes mesmo dos portugueses, um dos irmãos Pinzón, Vicente, teria visto o “rostro hermozo” do Cabo de Santo Agostinho (ou de Santa Maria da Consolação). A própria literatura brasileira vem sendo nutrida de bons contatos com a Espanha desde o seu melhor poeta da época da colonização, Gregório de Matos, até o maior do século 20, João Cabral de Melo Neto,
As idades do homem: uma viagem ao sagrado
REPRODUÇÃO
Museu Nacional de Escultura, em Valladolid, Espanha. Ornamentação e fachada de Gil de Siloe, expoente da escola de Burgos
Em Castela e Leão, se encontram 80% do patrimônio artístico da Espanha, como afirmava com ardor e paixão nosso amigo, recentemente falecido, D. Emílio Zapatero Villalonga, Senador e Conselheiro de Cultura de Castela e Leão. Urgia mudar o tipo de visitante e mostrar a beleza da Espanha interior já que a imensa maioria dos assíduos da praia, espanhóis inclusive, desconhecia e menosprezava. Além disso, o litoral estava sobressaturado e a construção vertical enfeiava a paisagem. A meta seguinte era elevar o poder aquisitivo do público visitante e a oferta não podia ser apenas praieira. Impunha-se a cultura, mas esta não necessariamente se encontra junto ao mar. José Velicia Berzosa, também recentemente falecido, foi o ideólogo da Fundação As Idades Do Homem, e textualmente escrevia: “Em abril de 1986, os senhores bispos de Castela e Leão deram
José Antonio Espina Barrio e Virginia Vázquez Arias
REPRODUÇÃO
luz verde a um projeto que se propunha, servindose do rico patrimônio histórico-artístico, que a Igreja tem conservado nesta região, lembrar as raízes cristãs de nossa melhor cultura; mostrar, sobretudo aos mais jovens, carentes na sua maioria de memória histórica, que tem de se contar com o passado se queremos construir um futuro sobre bases sólidas; ressaltar que Castela e Leão são, como alguém disse, ‘um luxo estético’ desconhecido, quando não desprezado, por seus mesmos habitantes”. O projeto se configurou no começo em três exposições. Esta idéia inicial vai a caminho da nona exposição, uma fundação e uma sede permanente de exposições, atualmente em restauração no mosteiro de Santa Maria de Valbuena (Valladolid), de estilo cistercience com restos de pintura tardio-góticas, localizadas muito perto do castelo Penafiel, Arca de Noé varada no monte arrodeada de um mar de vinhedos e trigais, na terra dos afamados Tintos de la Ribeira de Duero. Estas boas intenções dos bispos não teriam podido se materializar sem o apoio econômico dos bancos (Caja Duero e agora Caja Espanha) e da Junta de Castela e Leão (Governo Autônomo). Alguns poderão pensar que não se trata mais que de propaganda cristã, porém, este pensamento é muito pequeno se comparado com os objetivos de seus criadores: “O protagonista das mostras não foi nem os autores nem as épocas nem os estilos artísticos, senão o homem (daí o título As Idades do Homem), e ao seu redor as grandes perguntas que desde sempre têm constituído o peso da cultura: Quem é o homem? Qual é o seu destino? Que sentido tem a vida? Há um olho “até o invisível”? Quem é o Senhor da História? etc.” Nós incrementamos algo mais e é que o Protagonista foi o Encontro do Homem com sua Criação, num diálogo próprio de Martin Buber, quer dizer entre Eu e Tu, sem coisificações e muito humano. Como assinala o Hassidismo, “Onde dois homens se encontram lá está Deus”. As quatro primeiras exposições permaneceram abertas durante 30 meses e foram visitadas por mais de três milhões e oitocentas mil pessoas, segundo os organizadores. Não é de se estranhar a continuidade de difusão do projeto até a atualidade. Estas lembranças do caderno de viagens – sede, exposição, monumentos e gastronomia – dos autores, pretendem adentrar o leitor no mundo da cultura e da arte em Castela e Leão, cujas ramificações veremos, finalmente, se estendem a toda Espanha:
A arte na igreja de Castela e Leão, Valladolid, 1998 – É nossa cidade de nascença e capital da região. Sabe-se em silêncio que a catedral tem se fechado durante dois meses para abrigar as maravilhosas esculturas e pinturas dispersas em catedrais, igrejas e capelas da região. A catedral é uma obra inconclusa de Juan de Herrera. O projeto grandioso, que ia destruir, pelo menos, duas igrejas românicas, acabou abruptamente quando Felipe II se transladou a Madri e encomendou sua obra-prima: o Escorial, uma das sete maravilhas do mundo. Uma semi-torre, arrematada por um horroroso Coração de Jesus de cimento, e uma nave sem finalizar é a ruína desta capital destronada. Sua mole de pedra branca, em estilo neoclássico, tem o interior marcado pela grossura das colunas quadradas e um acertado jogo de volumes, no que se destacam as abóbadas. Durante os meses que durou a exposição, nos fins de semana não se podia comer nos restaurantes e o ambiente mudou para se converter numa cidade turística. Valladolid é uma cidade de 350 mil habitantes, industrial, com uma universidade e que só atraía turistas na Semana Santa pela espetacularidade dos Passos (esculturas em madeira policromada dos diferentes momentos da Paixão) e a seriedade e silêncio das suas procissões.
Castelo de Mombeltran, em Ávila, construído entre 1462 e 1464, por ordem de Beltrán de Cueva, duque de Albuquerque. É talve projeto de Juan Guas, o mesmo arquiteto da Catedral de Toledo
Livros e documentos na Igreja de Castela e Leão, Burgos, 1990 – A catedral gótica é o primeiro monumento que se vê à distância. Seus capitéis em forma de pirâmide que coroam as torres e a cúpula de Juan de Colônia são inspiração de um bispo, judeu converso, que erigiu estes faróis, autêntico encaixe de pedra. Estas flechas indicam a localização de um belíssimo exemplar do gótico que arrematou em florido. Estátuas, gárgulas e anjos adornam o conjunto, não carente de simetria e uso profuso do oito, enervaduras, capitéis, cúpula etc. Seu interior de uma elegante verticalidade não vai ser o lugar da exposição. Continente Multicultural 63
Sineta do século 17 no Museu Diocesano e Catedralício, em Leão
A música na Igreja de Castela e Leão, Leão, 1991– A pureza do gótico da sua catedral e a luz e beleza dos seus vitrais fazem da catedral o continente perfeito para se escutar o feitiço da música. O coro renascentista se integra com a divisão das naves com muros que permitem sua integração e uma visão direta do antigo e do novo. As esferas de cristal são como cosmovisões que permitem contemplar o ar e os pássaros. A escrita dos sons parte do canto dos frades ermitãos e da beleza do gregoriano que se visualiza nas miniaturas dos cantorais. A alegoria da matéria se aprecia num Virginal das Clariças de Tordesilhas, século 16. A celebração barroca é um coro de anjos, anjinhos, querubins e todos a uma ressoam suas vozes nas abóbadas do monumento. A música calada dos relógios finaliza com o jardim da música, repleto de tapetes que colorem de verdor e frescura os eflúvios da música, que se ouve, se vê e se sente nesta montagem. O contraponto e sua morada, Salamanca, 1993 – Nas duas catedrais adjuntas, a velha (românica) com sua célebre torre do Gallo e sua forte influência francesa, e a nova, do século 16 (gótico-renascentista), realizou-se esta exposição iconográfica, onde a modo de contraponto, foram expostas obras dos artistas de todas as épocas – desde o Românico até nossos dias – combinadas com elementos audiovisuais e eletrônicos que narravam a 64 Continente Multicultural
peripécia humana. As pessoas se trasladavam de um lugar a outro por rampas. A mistura deliberada de estilo nos pareceu correta, mas a iluminação eletrônica do retábulo de Nicolas Florentino nos deixou frios. O passeio, porém, foi impressionante. Esta cidade dourada pelo sol do entardecer é patrimônio da humanidade e tudo que não seja de ver nela é pouco. Possui duas universidades monumentais, a Civil e a Pontifícia, e a Praça Maior, mais bela e harmônica do mundo. A Igreja de San Esteban, o Claustro de las Dueñas, A Casa das Conchas, o Palácio de Monterrey e o Museu ArteDecó na Casa Lys são alguns dos lugares imprescindíveis à visitação. REPRODUÇÃO
O continente mais apropriado são os dois claustros, alto e baixo que, unidos por uma rampa, converter-se-ão num Escriptório do Medievo. O Canto da Sibila e Gregoriano, do Monastério das Freiras das Huelgas, constituem o fundo musical mais apropriado para entrar no recolhimento da ciência e do conhecimento. Todos os livros são um palimpsesto, mas o Códice de la Lex Romanas Wisigothorum de Leão, século 7, 8 e 9, é uma jóia paleográfica. Se na Idade Média não sabiam ler, nada melhor que uma Bíblia para os olhos. A de Cardeña e a Visigótica de Leão são do século 10; sua beleza e ingenuidade nos encantam.
A cidade de seis andares, Burgo de Osma (Sória), 1997 – Deste promotório onde se encontram as ruínas da cidade romana de Uxama, se vêem as muralhas medievais do burgo e sua catedral, cujo bispado celebra os mil e quatrocentos anos de existência. Do romano, que remete também às ruínas de Termancia, até a época romântica, a cidade se edifica uma sobre a outra. O românico do Beato alcança seu zênite no gótico do túmulo do bispo cluniacense, Pedro de Osma. Seu encaixe em pedra e a riqueza do seu enxoval funerário permitem este acesso pela reescrita contínua de uma cidade que se edifica sobre as ruínas de outra, até sua configuração atual. O mesmo acontece ao homem, à ciência, à música e à arte. Em poucas horas, ascendemos pelo contínuo construir-se a si mesmo de uma cidade, que em seu nome leva seu nascimento e sua morte: El Burgo. Memórias e esplendores, Palencia, 1999 – A entrada subterrânea até a cripta parecia o canal do parto para ceder a luz. A arte visigótica da mesma lembra a Basílica de San Juan de Baños que está por perto, mas Palencia se destaca pela arte românica e esta é a parte mais certa da exposição. Pelo centro da província, se abre o caminho de Santiago, Carrion de los Condes, Fromista. No norte, se encontra Aguilar de Campo, onde existem duas estra-
das do românico impressionantes: uma em Palencia, com portais esplêndidos e grande beleza em sua arte e o Mosteiro de San Andres do Arroyo e o seu claustro; a outra em Cantabria, com a beleza de suas cabeças de viga, muitas delas eróticas, como em Cervatos, e a harmonia de proporções das suas construções, com algumas igrejas rupestres recoletas. Mesmo que as reminiscências antigas sejam impressionantes, sentimos falta de referências precisas à magnificência romana e aos extensos e artísticos mosaicos da vila romana de la Olmeda, ali próxima, talvez seja por seu caráter profano; mas que merecia uma ampla lembrança no nascimento da memória e seus esplendores. Do gótico ao Renascimento, finalizando no barroco, todos os estilos encontram lugar apropriado nesta catedral, que os abrigam entre seus muros como um tesouro.
JOSÉ ANTONIO ESPINA BARRIO
Encruzilhadas, Astorga, 2000 – A última versão teve lugar na província de Leão. Aqui vamos nos deslocar do Romano ao Barroco, passando pelo Mudéjar. As encruzilhadas de caminho fazem referência ao ano zero e mil, mas também ao advento do Século das Luzes. Este é o entrecruzamento do homem e a ele vamos nos referir. No coral da catedral e sobre suas cadeiras foram expostos os livros dessa época. Sob uma edição d’O Príncipe, de Maquiavel, se encontrava uma Misericórdia, que é uma escultura em madeira embaixo do silhão do coro, onde um casal sorve mutuamente os sucos um do outro. Como acontecerá em Zamora, no coro o canto divino se inspira no encontro e prazer humano, e desta encruzilhada surge o homem. A exposição audiovisual do Altarmor, renascentista, de Gaspar Bezerra, resultou muito amena e um ponto de descanso neste encontro de caminhos e culturas, do divino ao humano, e viceversa. Relembrança, Zamora, de maio a outubro de 2001 (1100 anos da sua diocese) – O futuro próximo está na nona exposição em
Zamora. Sua catedral românica, com uma cúpula bizantina muito elegante e situada nos extremos de uma cidade amuralhada, que não se conquista no espaço de uma hora, será sua sede. Este continente se encontra rodeado de um entorno quase medieval e com umas igrejas românicas dignas de serem visitadas. Deve-se dormir num parador dos Condes de Alba e Aliste e comer em La Posada, que integra a cozinha castelhana com as novas tendências, com destaque especial para suas saborosas mil-folhas. Com vista ao Duero, a cidade é conhecida pelos seus vinhos tintos em processo de modernização e seus saborosos queijos de ovelha. Este projeto cultural tem-se estendido a outras comunidades da Espanha. Algumas que temos visitado como Galícia no Tempo, Mosteiros de San Martino Pinario, Santiago de Compostela, 1991 e Al-Andalus – As Artes Islâmicas na Espanha, La Alhambla, Granada, 1992, esta última em combinação com o Metroplitan Museum of Art de Nova York (Met); ambas foram muito completas, mas nenhuma tem-se estendido num projeto estável, rigoroso e continuador como o que acabamos de comentar. No âmbito internacional tampouco se encontra tamanha coerência, nem sequer nas mundiais e faustosas exposições do Palácio Grassi de Veneza. Temos visitado a dos fenícios, celtas e maias. Agora são os etruscos, dos que vimos uma exposição semelhante, em 1993, nos Museus do Estado de Berlim, que no ano interior se realizou no Grand Palais de Paris. Estas exposições sobre as culturas desaparecidas requerem um grande esforço econômico e cultural, reúnem peças maravilhosas que despojam temporalmente os museus. Isto nos aconteceu no México, pelo qual, para acabar de ver a cultura maia, depois de Yucatan e Guatemala, precisamos nos deslocar a Veneza, o que não representou nenhum esforço, porém, não é uma agrupação coerente, se não por idades e culturas, do que representa ser Homem no mundo.
Cena do Luto, na Semana Santa em Valladolid, 2001
Continente Multicultural 65
Discussão do Tratado de Tordesilhas, óleo de J. Menéndez, do acervo do Museu da Marinha de Lisboa
José Antonio Espina Barrio é psiquiatra e Virginia Vázquez Arias é professora da Universidade de Valladolid
66 Continente Multicultural
Antecedentes m Tratado de T REPRODUÇÃO
A visita à exposição obriga a, pelo menos, uma refeição e uma noite de hotel, quando não um fim de semana cultural. Se temos como certas as estimativas de produções turísticas que se fizeram nas sucessivas exposições, e que alcançariam uma soma de 60 bilhões e setecentos milhões de pesetas (o que representa umas 15 mil pesetas por visitantes), cada peseta de custo da exposição teria gerado 63 pesetas. Estes últimos dados dão uma idéia da importância do desenvolvimento turístico, cultural e econômico que As Idades do Homem catalisa. Além da sede estável no mosteiro de São Bernardo, está prevista uma saída exterior a Nova York. Esta é uma cidade muito querida e visitada por nós. Cosmopolita e amante de todas as artes, não é apenas um centro de arte moderna, senão também da cultura. Na entrada do Met pode-se apreciar a grade da catedral de Valladolid, além de muitas estátuas e retábulos espanhóis, também o Pátio renascentista de Vélez Blanco. No extremo alto de Manhattan se encontra The Cloisters, um conjunto de abcides românicos espanhóis e franceses “unidos” ao redor de um pátio que alojam maravilhosas obras de arte da Idade Média, que os Rotschild pacientemente amealharam. Quando visitamos as margens do Hudson, sentimos uma mistura de dor e vergonha, pela ignorância de nossos ancestrais, e de orgulho e satisfação pela nossa capacidade criativa. Não sabemos onde se projetará a falada edição. Se não é no Met, o lugar mais apropriado poderia ser a Igreja de San Patrício, neogótico entre arranha-céus; muito melhor que a catedral, em estilo neo-românico bizantino, cêntrica, mas muito escura. Em qualquer entorno comentado, as obras de arte descritas se sentirão como em casa. Pela primeira vez cruzarão o Atlântico com a idéia de voltar, sendo sua viagem fruto de um intercâmbio de beleza e não do espólio colonizador do poder ou do dinheiro. Talvez algumas áreas do Brasil se beneficiem de projetos semelhantes que resgatem a cultura e a arte de ignotas regiões, algumas delas longe das superlotadas praias do sul.
O Tratado de Tordesilhas constitui o eixo da expansão atlântica de Castela e Portugal. Decidiu a partilha do território africano e, o que é mais significativo, a divisão do Oceano Atlântico entre portugueses e castelhanos, mediante uma linha situada a 370 léguas a oeste das ilhas do Cabo. No entanto, não é ele o primeiro fato histórico pelo qual um grupo de países estabelece a divisão ou o monopólio de terras e mares, ou pactuam a partilha de zonas de influência no seu exclusivo proveito, já que esta situação existiu desde a mais remota antiguidade. De fato, quando os fenícios fundam Gadir (Cádiz) no século 11 a.C. e posicionam uma esquadra nas Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), estão obstruindo o passo de outros povos para o Atlântico, tentando monopolizar, de forma unilateral, o comércio atlântico. Mais tarde, Cartago e Roma estabelecem na Espanha suas respectivas zonas de influência, o que na prática determina que no ano de 348, Roma e seus aliados, os massaliotas, tenham como limite meridional de suas navegações o porto de Cartagena (Mastia).
Eufemio Lorenzo Sanz
medievais do Tordesilhas
REPRODUÇÃO
Tordesilhas determina o futuro domínio nos territórios ainda não ocupados e povoados por pagãos. Na realidade, esta prática remontava a meados do século 12, mediante a qual os reis peninsulares acordavam a partilha dos territórios de AlAndalus, que esperavam conquistar no futuro. Os tratados de partilha da Península Ibérica na Reconquista (séculos 12-14) são o precedente imediato do Tratado de Tordesilhas. Pelo Tratado de Tudellén (1151), firmado nas proximidades de Fitero (Navarra) entre o imperador castelhano-leonês Alfonso VII e o conde de Barcelona e príncipe de Aragão Ramon Berenguer IV, se acordou a divisão e partilha das terras e reinos que estavam em poder dos mouros. Um quarto de século depois (1179), Alfonso VIII de Castela e Alfonso II de Aragão decidem a partilha de Navarra e Al-Andaluz em Cazorla, próximo de Ariza. Os limites da futura expansão de ambos os reinos se estendiam ao
longo de uma linha divisória que ia do Porto de Biar até as proximidades de Caspe. O Reino de Murcia, aragonês em Tudellén, passa agora a Castela. O terceiro Convênio, o de Almizra (1244), firmado entre Jaime I de Aragão e o futuro Alfonso X, ainda que só estabelecesse pequenas retificações fronteiriças, consagrou a exclusão de Aragão da Reconquista. O quarto tratado, o de Monteagudo ou Sória (1291), que reparte futuras zonas de influência entre Aragão e Castela, é de significativa importância, dado que afeta terras ultramarinas, África concretamente. Neste acordo, o rio Muluya constituiu a fronteira entre as futuras expansões dos castelhanos e aragoneses a oeste e leste daquela linha, respectivamente. O último tratado, o de Alcalá de Henares (1308), entre os dois monarcas peninsulares, supunha a partilha do reino mouro de Granada, ainda que outorgasse somente a Aragão a sexta parte do mesmo ou Almeria. A liderança portuguesa nas explorações africanas – As explorações no Atlântico se intensificaram ante as demandas cada vez mais crescentes do comércio internacional. Começou-se pelo domínio de certos pontos africanos que se conectavam com as caravanas comerciais e tratou-se de encontrar uma rota para o Oriente Médio através da África. A intensificação destas explorações atlânticas se viu favorecida pela colonização dos arquipélagos do dito oceano, o desejo de estabelecer alianças com o mítico Preste Juan e os anéis expansivos de Portugal e Castela. Várias etapas marcam a expansão atlânticoibérica. A primeira, de navegações isoladas, está representada pelos périplos de genoveses, os Vivaldi, L. Malocello (1291 e 1340). A etapa dos tateios organizados se estendem desde meados do século 14 a começos do 15, e foi protagonizada pelos maiorquinos, catalães, andaluzes, lusitanos, Luis de la Cerda e Juan de Bethencourth. A terceira etapa se inicia com a conquista de Ceuta pelos lusitanos e se caracteriza pelas rivalidades políticas entre Castela e Portugal, o estabelecimento científico das explorações com D. Henrique, o Navegante em Portugal, enquanto os castelhanos vivem uma agonia permanente (1434-1475) da qual são tirados pelos reis católicos.
Documento de Dom João II, datado de Setúbal, 5 de setembro de 1494, ratifica o Tratado de Tordesilhas
Continente Multicultural 67
O Tratado de Alcaçovas-Toledo – O Tratado de Alcaçovas, assinado entre Castela e Portugal em 1479 e ratificado em Toledo no ano seguinte, supõe o fim de uma guerra dinástica, na que Alfonso V de Portugal apoiava os direitos da sua sobrinha Juana, a Beltraneja, filha do rei castelhano Henrique IV (mesmo que quem achava ser seu verdadeiro pai fosse o nobre português Dom Beltran de la Cueva) frente às aspirações da irmã deste, Isabel, casada com Fernando de Aragão. O Acordo de Alcaçovas tinha como antecedentes os Tratados de Tudellén, Cazorla, Almizra, Monteagudo ou Sória e Alcalá de Henares, estabelecidos entre os reinos peninsulares, pelos que se delimitavam suas esferas de ação na Reconquista. O ideal de Cruzada dominava essas divisões medievais frente ao inimigo muçulmano. Os cristãos baseavam estes acordos nas prerrogativas de reconquista dos territórios que consideravam usurpados. Do direito de reconquista destes territórios nasceu o direito de partilha que aplicavam. Nestes tratados, o reino castelhano assumiu o papel de direção frente a Aragão e ele será quem protagonizará o final da Reconquista e as brigas com Portugal nas costas atlânticas. O Tratado de Alcaçovas, firmado por Isabel I de Castela em Trujillo, de 27 de setembro de 1479, foi ratificado em Toledo e Évora em 1480. O Tratado de Alcaçovas estabelece paz perpétua entre Portugal e Castela e incorpora e ratifica o Tratado de Medina del Campo (1430) pelo qual Portugal reserva para si Madeira, Açores, Guiné, Cabo Verde e outras ilhas que se localizem navegando de Canárias para o Sul. Para Castela, reserva as Ilhas Canárias, Santa Cruz do Mar Pequena e “todas as outras ilhas Canárias ganhas e por ganhar”. Neste momento, ainda não tinham sido conquistadas Tenerife, La Palma e Grand Canária. Além disso, Castela se compromete a que nenhum súdito seu navegue nas águas reservadas aos portugueses. A partir do Paralelo das Canárias, o Oceano Atlântico seria para os castelhanos um mare clausum. O Tratado de Alcaçovas supunha um triunfo enorme para Portugal e resultava tremendamente danoso para Castela. Talvez a inexperiência dos primeiros anos de reinado dos reis católicos levouos a confiar a paz a um preço excessivo. Eufemio Lorenzo Sanz é professor da Universidade de Zamora e historiador
68 Continente Multicultural
A comida espanhola no México O que os mexicanos comem hoje é produto da mestiçagem entre várias cozinhas. Sem dúvida, as primeiras foram as dos indígenas que chegaram do Velho Mundo em tempos remotos, se assentaram em nosso território e criaram complexas culturas, conhecendo sempre profundamente os recursos oferecidos pelo entorno. Foi assim que, em ambientes diferentes, foram pouco a pouco se diferenciando cozinhas com matizes próprias, tão diferentes com a do Altiplano Central, a da península Yucateca, ou a das inóspitas regiões da baixa Califórnia. Porém, as civilizações meso-americanas conseguiram imprimir sua marca. E têm a maior parte delas elementos comuns, entre os quais, um fundamental: a presença do milho como seu alimento básico e sua associação com feijão, bredo, abóbora e pimentões entre seus alimentos primários. Isto que é válido não só para o território que ocupou a meso-américa, é também para as regiões ao norte dos rios Lerma e Panuco, onde as condições ecológicas nem sempre permitiram o consumo dos alimentos citados. Coisa semelhante pode-se afirmar a respeito das técnicas culinárias que permitem preparar as variedades de molhos conhecidos como moles, as bebidas não fermentadas de milho, chamadas atoles, as várias bebidas fermentadas de milho ou do suco das agaves (el pulque), e as pastas de milho moído, recheadas de vários produtos e embrulhadas em folha de milho, bananeira ou outras plantas, conhecidas como tamales[1]. Em 1519, quando os primeiros oriundos do Velho Mundo[2], europeus e africanos, pisaram pela primeira vez as brancas areias do caribe mexicano, este território contava com ricas e desenvolvi-
Luis Alberto Vargas e Leticia E. Casillas
REPRODUÇÃO
Alegoria da união de Hernán Cortés e a índia Malinche, ou Marina, para os espanhóis
das cozinhas locais, nas que se aproveitavam produtos como os já mencionados, a que incrementaremos as carnes de coelho, guajolet (peru americano), cachorro, peixes, mariscos, insetos, crustáceos, jias, cobras e outros animais silvestres. Os produtos vegetais eram também variados e abundantes e, entre eles, vale a pena mencionar as frutas, as ervas silvestres, as plantas do deserto (por exemplo, os nopales ou chumberas[3], e outras que contribuíam com seus sabores e nutrientes. Os primeiros oriundos do Velho Mundo traziam já produtos estranhos a estas terras. Entre eles se destacavam a carne dos porcos (europeus) e a torta de tapioca caribenha, que acompanhara os conquistadores desde as primeiras viagens, seguidos dos produtos bem arraigados na Espanha, como trigo, arroz, azeitona, carne bovina, ovina, canade-açúcar, uva, cebola, alho, laranja, cevada, junto com utensílios e técnicas culinárias desconhecidas no México, como as panelas de cobre, as frigideiras de ferro, a fritura e a técnica do forneado. Isto causou uma rápida revolução nas cozinhas mexicanas. Alguns anedotas ilustram bem a rápida adoção dos produtos espanhóis. A primeira é relatada por Bernal Diaz de Castillo, um dos primeiros soldados chegados no México, e que mais tarde seria companheiro de armas de Hernán Cortés. Relata ele que estando de guarda em algum lugar do atual Estado de Tabasco, encontrou em suas roupas umas sementes de laranja que resolveu semear. Anos depois, voltou ao mesmo lugar e descobriu que os habitantes locais tinham cuidado das plantas e iniciado sua reprodução. Para finais do século 16 o atual estado de Vera Cruz já era conhecido pela alta qualidade e abundância de suas frutas cítricas todas elas provenientes da Espanha. A segunda história tem como protagonista o próprio conquistador Hernán Cortés, homem inteligente e com clara visão empresarial. Já paci-
ficado o território, e aproveitando as terras que lhe tinham sido doadas pelo rei da Espanha, dedicouse ao cultivo da cana e à construção de engenhos para produzir e refinar o açúcar. Seu sucesso foi tal que, no final do século 16, já se tinha informação sobre a grande variedade de doces que produziam os artesãos mexicanos empregados nas festas espanholas. Além disso, nos registros arqueológicos, aumenta de maneira súbita e explosiva a quantidade de cárie presentes nos dentes dos indígenas, o que constitui um testemunho claro da aceitação do doce, que antes obtinha-se somente do mel vegetal e de alguns insetos. O terceiro acontecido fala de como num saco de arroz trazido pelo exército de Cortés foram encontrados três grãos de trigo, que foram semeados e reproduzidos. Pouco tempo depois, o abastecimento de pão foi suficiente para afrontar a demanda do crescente número de europeus que chegavam nesta região. Os porcos são protagonistas de outros fatos históricos. Pelo seu tamanho, eram trazidos de Cuba com facilidade nos barcos europeus. À ilha caribenha tinham sido levados da Espanha e se reproduziram rapidamente. Conta-se que quando uma expedição espanhola avançava por terras mexicanas, uma jornada de marcha mais atrás avançava o outro exército, o da manada de porcos, que haveria de alimentar a tropa ao chegar ao destino. Estes animais foram aceitos de imediato pelos indígenas, já que encontraram neles não somente a abundância de sua carne, senão outro recurso de que careciam: gordura em abundância, que permitiu a fritura, e é o antecedente necessário do grande gosto que os mexicanos têm hoje por tudo que é fritura, o que tem servido para a criação de novos guizados. No México, criaram-se guizados diferentes dos espanhóis: à base da carne de porco,como são as variedades locais das chamadas carnitas e o chicharón[4]. Continente Multicultural 69
O cozido, um dos suculentos pratos da riquíssima cozinha hispânica
70 Continente Multicultural
guizados de cordeiro, ou de porco muito jovem. Quem procura estes pratos certamente os encontrará nos restaurantes espanhóis abundantes no México, cuja fama se deve à fartura da comida e a ausência do picante dos chiles. Outra falta importante até faz poucos anos é o vinho. Hoje é habitual nos restaurantes ou nas casas de classe média para cima, mas muito raro como hábito cotidiano. Encontra-se mais arraigado o consumo de cerveja e nosso país a produz de excelente qualidade. Os espanhóis sentirão saudades no México, de algumas das comidas de rua como os churros ou as castanhas torradas. Mas encontrarão, em troca, uma rica oferta de produtos mestiços. Mais de quinhentos anos de história ficaram firmemente refletidos em nossas cozinhas. No México, o espanhol e meso-americano andam de mãos dadas e, procurando bem, se encontram também algumas raízes africanas, mas tudo isso completado com as influências do resto do mundo, incluindo a pouco imaginativa fast food dos tempos que correm. REPRODUÇÃO
Outra contribuição espanhola para o México e para a América Latina em geral foram os lugares públicos para comer sob um teto, como as tavernas ou tascas, que mais tarde se transformariam em restaurantes. No território americano, estes sítios públicos para comprar e consumir comida preparada, encontrava-se basicamente nos mercados e feiras ao ar livre. Observando as cozinhas mexicanas atuais, a influência espanhola é muito clara pela profunda adoção de alguns ingredientes. Por exemplo, o chamado molho mexicano em que se reproduzem as cores de nossa bandeira, compostas pelo verde da salsinha do Velho Mundo, o branco da cebola de mesma origem e o vermelho do mexicaníssimo jitomate. Note-se que lhe chamamos jitomate e não tomate. No México, o fruto vermelho, que em todo o mundo se conhece como tomate, palavra de origem náhuatl, e o jitomate é o tomate de umbigo, pela forma como fica o local de onde é retirado o caule. Consideramos, muito mexicanos, os chiles en nogada[5], e são a iguaria emblemática da cozinha mestiça da colônia, são a combinação do chile mexicano com a noz chegada da Espanha, e um recheio onde se misturam o mexicano e europeu em agradável harmonia, tudo isso ornamentado com sementes de granada[6] européia, para novamente plasmar as cores da nossa bandeira. Outro caso singular é o arroz, claramente chegado das mãos espanholas, mas que tomou outros caminhos no México. Aqui ele é frito antes de cozinhá-lo e misturado com produtos que na Espanha achariam estranho. É raro encontrar, por exemplo, uma paella verdadeiramente feita nos cânones mediterrâneos. Já o arroz com leite daqui e de lá são semelhantes. Basta folhear os livros de receitas mexicanas para que Espanha salte a cada momento, por exemplo, nos pratos à viscaína[7] ou à galega[8], assim como as versões mexicanas das ollas[9]. Mas também chamam a atenção as ausências. Por exemplo, nestas altitudes não conhecemos as migas[10]. E não formam parte de nossa cozinha tradicional os
[01] Nota do tradutor: espécie de pamonha. [02] Certamente, um equívoco na construção da frase, visto que os próprios autores assinalam, em parágrafo anterior, que os primeiros a chegar foram os “ ... indígenas que chegaram do Velho Mundo em tempos remotos, se assentaram em nosso território e criaram complexas culturas...” [03] Opúncias, como a palma. [04] Torresmo [05] Molho feito de nozes, pimentas e especiarias, especialmente para acompanhar peixes. [06] Romã [07] Relativo à Viscaja, país basco [08] Relativo à Galícia [09] Cozido, comida típica espanhola feita de grão-debico, carne e outras coisas. [10] Guizado feito a partir de pão dormido em migalhas, e frito. Luiz Alberto Vargas e Letícia E. Casillas são antropólogos e professores da Universidade Nacional Autônoma do México
REPRODUÇÃO
Os recentes vinte e cinco cabo, além de qualquer sutileza dogmática, é uma anos da monarquia parlamentar monarquia com toda sua carga simbólica, conceie espanhola simbolizada na tual e institucional, num bom resultado de síntese coroa de S. M. Dom Juan da prerrogativa pessoal e da soberania nacional. Carlos I tem proporcionado um Esta validação soberana da nação espanhola motivo jubilar para rememorar a esta forma política do Estado tem representado, a vigência do modelo ins- para a história do reino de Espanha, uma Segunda titucional que tem conseguido reunir, equilibra- Restauração, além de gostos ou convicções pessoais damente, a legitimidade dinástica com a legalidade de legistas positivistas ou partidárias de turno, de democrática, numa operação de profundidade po- desejos e paixões, legítimos todos eles, sobre o malítica muito calculada de serenidade e prudência na niqueísmo dialético Monarquia x República. Não é que tem se conjugado, numa transição pacífica e questão de procurar no arquivo da atualidade madura, a lealdade histórica com o referendo popu- exemplos de vergonhosas repúblicas monárquicas lar, mediante o respaldo positivo que a cidadania africanas, nem de render cultos a monarquias repuoutorgou à Constituição de 1978. blicanas disfarçadas e auto-denominadas neo-diToda esta narração de fatos supõe uma grata nastias despóticas, que exteriorizam os atributos novidade, sobretudo se levarmos em conta a decla- mais ignóbeis e surreais da antiquada instituição ração do Título I da recente Carta Magna, onde se para censurar o modelo. restabelece uma monarquia democrática e parlaEste infeliz exercício, por forçado, não é rementar, submetida a regras constitucionais, limitada presentativo das qualidades que devem enfeitar no seu exercício à legaliqualquer Casa Real moEmiliano González Diez derna reinante e, além disdade mas que, ao fim e ao
Detalhe de uma Cédula de Privilégio com a imagem dos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela
A monarquia da Espanha Continente Multicultural 71
72 Continente Multicultural
por direito a exclusão das mulheres da titularidade do exercício por razão de gênero, além da pura comunicação do poder ao varão. Desta maneira, a Coroa, símbolo da realidade monárquica conseguiu, depois de superar a face de uma organização político-feudal amalgamar gentes, terras, direito e poderes numa unidade que preludia a emergência do futuro Estado. Sem dúvida, a instituição respondeu com a renúncia de uma monarquia teocrática e estamental, muito limitada de fato, para avançar numa concentração e reforçar o governo do Príncipe frente aos corpos internos ou estamentos particulares internos, de modo a poder efetuar sua política e fazer efetivo um novo conceito político de plenitude qual foi o da soberania. Corriam os anos finais do século 15 e princípios do 16 quando se formalizou a submissão de um bocado de reinos e territórios, no que diz respeito à sua peculiaridade jurídico-institucional, a uma nova fórmula de união pessoal e dinástica a que se somarão juristas, teólogos e conselheiros para subministrar construções racionais e argumentos doutrinários. São tempos de Bodino, Maquiavel e, mais tarde, Hobbes que afiançam a idéia da soberania como poder absoluto e perpétuo, que não encontra mais limites que as leis de Deus e a da natureza. Um rei e uma coroa que exteriorizam sua plenitude de potestado com relação ao sistema político e se separam do resto dos mortais com as roupagens de um ritual e de um cerimonial majestoso e solene que deseja acentuar esta distância revalidada com a concessão pontifícia do título de majestade católica da Espanha. Os monarcas da Casa de Áustria haviam criado um espaço político exclusivo do Príncipe, cuja vontade transformada em lei obtém a vigência territorial de toda a monarquia para alcançar não só a manutenção do Estado, como também seu fortalecimento. É a consecução e administração de seus domínios nesse imperium mundi que Tomás Campanella acumula nas três causas do Hado: Deus, prudência e ocasião. Está nascendo no seio da monarquia uma REPRODUÇÃO
Felipe II (1527-1598), Rei da Espanha, governou também Napóles, Sicília e Portugal. É do seu nome que deriva o do arquipélago das Filipinas
so, por ser inevitável, nos deve conduzir quanto menos à melancolia. Mas se voltarmos nosso olhar e refletirmos sobre a experiência desse organismo vivo da Espanha e das tarefas de seus povos numa constante cooperação e contraposição dos mundos interno e externo, teremos que sublinhar o importante serviço de integração da comunidade política que a instituição monárquica tem rendido, tradicionalmente, como imagem de permanência e unidade de suas terras e povos. A monarquia é uma instituição com presente e futuro, porque teve uma sólida funcionalidade e creditado uma prestigiosa história de serviços. Mas tudo isso não pode nos esconder a consideração herdada da monarquia como uma força refulgente, profunda e resplandecente. Desta carga simbólica e emocional, cuja figura esplendorosa transcendia as categorias políticas para se oferecer como exemplo e paradigma moral ao inconsciente coletivo. De tal sorte, uma instituição desta natureza não se fabrica geneticamente da noite para o dia. Há uma razão histórica e uma dimensão espiritual que a germina, protagoniza e explica, e depois evoluciona e se adapta, soltando os lastros anacrônicos que os tempos políticos e sociais determinam. E sobre essas raízes ontológicas se implantou a monarquia, lá no largo caminho percorrido do tempo, desde que a memória espanhola lembra sua origem. Desde os primeiros ensaios duma monarquia pré-estatal da monarquia goda do século 6, que causou efeito mais transcendente do desenvolvimento autônomo da tradição jurídica-romana na península ibérica, até aquela de temperamento e circunstância definida na etapa medieval, que faz a reserva expressa aos membros de uma família do poder do título régio com o abandono do princípio eletivo (muito pouco seguro e conflitivo), pela novidade e certeza da regra pacífica e biológica do dinástico e hereditário, tem transcorrido uma sólida etapa de consolidação, aliás, marcada pela prevalência interna dentro da prole legítima das fórmulas de masculinidade e primogenitura. Aquilo não supôs
das circunstâncias. Além disso, submeter uma instituição personalista baseada em critérios de sangue aos ventos democratizadores que ventilam os Estados contemporâneos não deixa de ser uma atitude tão fácil quanto simplista, que não esconde outra coisa senão o decidido propósito de desestabilizar a monarquia e relegá-la a uma vida sem futuro. Eu estimo que a matéria de forma de Estado, além de discurso de tribuna e especulações em papel, de racionalidade contida e de fundamento filosófico, devemos nos colocar do lado da vontade soberana da Nação, no que ela infere, percebe e manifesta. E se do conjunto majoritário se invoca a conveniência e oportunidade do serviço positivo ao conjunto da comunidade política, aceitemos a coerência de tal forma sem adjetivar naturezas estéticas, éticas ou doutrinais. E na experiência política espanhola tem-se demonstrado um respeito ao princípio democrático da monarquia de S.M. Juan Carlos I, sem necessidade de acudir ao fácil e inócuo expediente do carisma, da estirpe régia, do direito histórico, do privilégio sangüíneo. A instituição real tem oferecido provas materiais de sua indubitável condição democrática, de sua vontade de galvanizar os homens e territórios da Nação, de exercer sua função moderadora e arbitral entre os diversos poderes do Estado. Portanto, a conclusão deve ser positiva e a boa nota vem corroborada pela alta consideração social em que, sem simulações, a maioria da população espanhola tem da Coroa. Seu papel de rigor e serviço à comunidade política exemplifica o prestígio e a garantia do seu porvir. Devemos acatar o resultado na função institucional da mais alta magistratura do Estado que pertence ao nosso patrimônio histórico. REPRODUÇÃO
consciência de unidade de problemas e de fins que facilita a consolidação das instituições de governo, que aglutinam os interesses dos reinos na pessoa do soberano. Assim observado, não pode ser considerado como um castigo a entronização da Casa dos Bourbons em solio régio. Os súditos da Espanha chegaram a entender que a monarquia governava sobre as condições de retidão e justiça e, portanto, não obstaculizaram a cristalização do absolutismo real. A Revolução Francesa assumiu como herança a soberania como poder, e a existência de um sistema de valores e direitos políticos dos súditos. O homem, quando se incorpora ao Estado, não perde nem limita seus direitos inatos que são anteriores à sociedade civil. Neste novo cenário, a monarquia faz valer sua constituição histórica não escrita sistematicamente, porém interiorizada pelo povo, temperando sua posição numa versão mais dúctil com a abdicação de suas prerrogativas para compartilhar seu poder com a Nação. O princípio monárquico é capaz de assentar sua presença com a concessão de limitações parlamentares, com o objetivo de manter os fundamentos tradicionais que a definem e a identificam no chamado liberalismo doutrinário. É o momento da renovação para manter sua funcionalidade. A monarquia tem dado um exemplo de eficácia ao mudar o acidental da sua significação mítico-religiosa, desprendendo-se de cortesãos de ofício e etiquetas de moda, para encarnar o valor moral social de uma proximidade e compromisso com a comunidade política; para dar lugar ao valor do princípio democrático com o afastamento do resto dos órgãos do Estado sem abjurar da encarnadura do estatuto jurídico da instituição, na condição hereditária do cargo real. Apesar da aparente contradição que possa despertar na nossa época a discriminação subjetiva natural que pressupõe a monarquia e a conciliação com os princípios e valores da democracia, esta síntese harmônica tem permitido àquela sua permanência e missão. Sem dúvida, um balanço muito fecundo. A monarquia teve e tem um sentido institucional e político para o Estado, e seu encaixe técnico não pode ficar ao acaso da interpretação de cruzadas tecnocráticas e igualitárias nem à falsa neutralidade da linguagem administrativa. Isto significa não se colocar à altura nem da história nem
Célebre retrato eqüestre de Felipe IV, por Velásquez (Museu do Prado, Madri)
Emiliano González Diez é catedrático de História do Direito da Universidade de Burgos
Continente Multicultural 73
MARCO ZERO
A oficina de Almanzor
(Ecos do canto árabe na lírica ibero-ocidental) Arabistas e antiarabistas brigam há séculos para determinar a influência da poética muçulmana sobre a lírica ibérica
C
onta-se que, durante o domínio árabe na Europa, um certo Almanzor, ministro do califa Hixe II, não só criou na Espanha uma oficina poética sob a direção de um crítico literário, onde os poetas eram pagos segundo o mérito de suas composições, como também costumava
74 Continente Multicultural
levar em suas expedições guerreiras uma penca de 40 poetas para registrar seus feitos. Isso foi entre os fins do século 10 e princípios do século 11. Em seu magnífico Curso de Literatura Portuguesa (Lisboa, 1875), José Maria d’Andrade Ferreira procura descrever a influência da cultura árabe sobre a Europa, especialmente na Espanha, onde “floresceram com mais vívido esplendor os frutos de
Alberto da Cunha Melo
sua civilização prodigiosa: Córdoba, a científica; Granada, a poética; Sevilha, a monumental”. As teorias contrárias ou a favor da influência da poética árabe na Europa se vêm digladiando há séculos. Eu não tenho tempo nem formação para entrar nessa briga. Mas sempre simpatizei com a teoria arabista, que afirma ser todo o trovadorismo medieval, o imprecisamente dito provençal e o galaico-português, esteticamente moldado pela poética muçulmana. E Andrade Ferreira vai mais além, ao afirmar que “o estilo oriental difundiu-se em todas as línguas romanas”. Enquanto isso, os antiarabistas sempre filiaram os trovadores medievais à poesia romana da Antigüidade, à secularização da poesia religiosa do medievo ou a eles próprios, os poetas. M. Rodrigues Lapa, antiarabista possesso, no seu Das Origens da Poesia Lírica de Lisboa (Lisboa, 1929), acha que só deve ser creditada aos árabes “a transmissão de certos motivos poéticos e musicais da civilização greco-latina”. Cita ele o erudito alemão Konrad Burdach, para quem o conceito do amor cortês, o culto à mulher e a vassalagem amorosa, na poesia trovadoresca, são uma mera “resultante da arabização da cultura greco-latina”. Arabizar tal cultura não seria influenciá-la? Rodrigues Lapa encerra o assunto dizendo simplesmente que “o fundo visível da poesia românica, dita popular, é a poesia litúrgica”. Uma invasão de quase 800 anos tende a cegar de ressentimento os historiadores europeus. As duas teorias também divergem sobre a origem da rima na poesia medieval. Não só os antiarabistas ressentidos atribuem o seu uso pelos trovadores à influência dos cânticos religiosos, a partir do século 4. O carrancudo crítico alemão Walang Kayser diz: “A rima final penetrou nas literaturas européias procedente da lírica latina dos princípios da Idade Média”. Discordando, Andrade Ferreira lembra que a rima na poesia latina é encontrada “como circunstância puramente ocasional”, enquanto “a poesia árabe aparece quase toda rimada”, embora a rima “não passe às vezes de assonâncias, (...) as assonantes, como ainda hoje usam os espanhóis”. O livro de Andrade Ferreira fez-me lembrar de Luis Soler, outro arabista que passou desperce-
bido por Pernambuco e deixou-nos seu precioso As Raízes Árabes na Tradição Poético-Musical do Sertão Nordestino, onde magistralmente descobre nos violeiros-repentistas do Nordeste uma forte sobrevivência da cultura árabe peninsular, especialmente no desafio poético. Soler bate forte nos historiadores antiarabistas, que fazem coro com a tradição oficial de “fazer de conta que tudo começou na Europa”, e passam por cima de uma influência que se estende “à tençó (tensão ou tenson) e aos jeux-partis provençais, às desgarradas e desafios portugueses, aos contrasti italianos e às palhadas ou payadas de vários países hispano-americanos”. Impregnado de tais teorias, eis que me chega o poeta Alberto de Oliveira, com seu megaprojeto Pelas Trilhas do Repente e do Improviso, que terá como abertura o subprojeto Noitada Brasil-Espanha, com a participação de glosadores espanhóis, violeiros-repentistas nordestinos e declamadores dos dois países, que dirão poemas de João Cabral de Melo Neto e Federico García Lorca. Então me lembro que a poesia árabe ibérica se expressava não só em formas populares, mas parte dela apresentava uma dicção palaciana e erudita. Os ecos dessa poética nas formas cultas da poesia ocidental (tão orgulhosa de sua ascendência horaciano-aristotélica), eis mais um bom tema para pesquisa. Pergunto-me até que ponto há vestígios árabes em Lorca e Cabral. “O embrujo (feitiço) mouro, que persiste na Espanha Meridional”, segundo Oscar Mendes, “não podia deixar de fascinar esse poeta (Lorca)” e “a forma simplesmente modelada, simétrica, artística”, que Andrade Ferreira admirava na poesia árabe, certamente está presente nos poetas espanhóis que influenciaram Cabral, principalmente porque, como me disse Mário Hélio, ele foi mais atingido pelos poetas espanhóis “da tradição medieval”. O megaprojeto de Alberto de Oliveira envolverá várias artes, não se limitando, portanto, aos violeiros-repentistas, e já conta com o apoio do Centro Cultural Brasil-Espanha. Só espera, agora, contar com a colaboração de empresários com alma de Almanzor. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
Continente Multicultural 75
REPRODUÇÃO
Palácio Episcopal de Salamanca, quartel general de Franco nos primeiros meses da Guerra Civil
A transição democrática na Espanha O interessante do modelo espanhol de democratização, dentro do que o polítologo norte-americano S. Hauntington tem chamado de “Terceira Onda” de democratizações contemporâneas, é o seu caráter consensuado, não como resultado de um conflito prévio, não acompanhado de violência. O que aconteceu na Espanha não é de modo algum “atípico” nem menos ainda “surpreendente” , como tem se dito, mesmo representando uma novidade na história espanhola no seu próprio desenvolvimento. O decisivo agora é que o ano de 1975 não representou só o final de um período e de um regime que tinha apartado claramente a trajetória espanhola daquela dos países da sua esfera, senão o fato de que a abertura de uma nova época tenha se realizado de uma forma especial a qual tem sido batizada com o nome de Transição Democrática. Entre as transições da história espanhola contemporânea, esta é a que tem se desenvolvido de forma menos traumática e com mais amplo apoio o que, entre outras coisas, mostra a profunda mudança operada no país.
mundo nas década de 60 a 90, entre eles a Espanha, tem-se convertido numa categoria de análise relacionada com certo tipo de modelo de mudança política. Assim, transição pode ser vista como uma categoria histórico-política alinhada junto às de revolução, evolução, ruptura etc. Por transição política, em termos estritos, entende-se o processo, que se opera em certas sociedades numa determinada conjuntura histórica de passagem controlada de um sistema político para outro, sem que exista um momento identificável de ruptura entre o regime precedente e o conseqüente, produzindo-se uma mudança paulatina no curso, do qual se alteram as regras do jogo para o acesso e conservação do poder, sem que durante o processo mesmo mude o titular do poder de fato existente. As transições são processos inteiramente assimétricos: vão desde o regime de poder autoritário a outros de poder compartilhado, contrapesado e de regime aberto, ou seja, de democracia. Também é necessário se ter em conta que a transição à democracia realizada pelos reformistas não é possível sem uma interação com as forças da oposição que pretendem mudanças mais profundas e definitivas. O caso espanhol de transição à democracia Significado da transição democráti- não foi, na verdade, uma situação única na Europa ca espanhola – As transições à democracia, além nem no mundo dos anos 70 e 80 do século 20. Asdo seu conteúdo como processos históricos, con- sim, nessas décadas na América do Sul e no Sudescretos, que aconteceram te da Europa e, posteriorem diversos lugares do Juan Andrés Blanco Rodriguez mente e de uma maneira 76 Continente Multicultural
REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
um pouco diferente, na Europa Central e Oriental se produzem um conjunto de “trânsitos à democracia”. No caso da Europa centro-oriental, no fim da década de 80 e 90, o modelo tem, sem dúvida, notáveis diferenças e uma delas é o contexto internacional em que acontece. Uma grande mudança começa a produzirse em 1974. Desde então, até finais do século 20, mais de cinqüenta países que suportavam algum tipo de regime autocrático realizaram processo de transição à democracia, bem que alguns não têm superado a fase de mera liberalização política. Tão importante onda democratizadora gerou-se em três nações situadas na Europa ocidental, Portugal, Grécia e Espanha. Posteriormente, a maré democrática se deslocou à América Latina e a vários lugares da Ásia e África e, em 1989 derruba o bloco comunista europeu. Em 1991, a União Soviética se dissolve e desaparece o monopólio do partido único. É verdade que em muitos destes países, tal regresso tem acontecido através da força
das armas, incruentas lutas e com pactos difíceis. Em outras, pode-se falar de “transições à democracia”. Na Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, os países chamados do Cone Sul, que sofreram na década do 70 ferozes ditaduras militares fundadas na doutrina que promulgava o credo da “segurança nacional”, o que equivalia dizer a segurança das suas oligarquias, de suas classes tradicionalmente dominantes. Entre todos estes processos de transição, tem-se conseguido individualizar um “Modelo Espanhol” que às vezes tem sido proposto como exemplo para outros casos. É verdade que a transição política pós-franquista espanhola foi um espetáculo, e acreditou-se que poderia ser um modelo para o mundo. Isto não quer dizer que fosse exportável ou que daria no mesmo, que seu desen-
volvimento pudesse ser imitado sem mais noutros sítios ainda que existissem muitas características comuns. É verdade que as chegadas das liberdades à Espanha após a morte de Franco, em novembro de 1975, serviram de alavanca para impulsionar novos processos na direção de regimes pluralistas, sobretudo na América Latina. O fato de que a Espanha – um país de mediano peso no conceito mundial – tivesse podido deixar para trás quase quatro décadas de ditadura, estimulou poderosamente muitas nações a transitar o caminho da democratização. A Espanha não teve, porém, uma influência generalizada na forma em que aconteceram as transições políticas que ocorreram posteriormente à sua. Essa influência, sim, foi significativa naqueles casos. A transição política espanhola, caracterizada por combinar a reforma legal de cima para baixo e a ruptura democrática de baixo para cima, configurou-se como um modelo novo, eficaz e com amplo respaldo da opinião pública. Curiosamente, os poucos países dispostos a percorrer a via espanhola à democracia situaram-se entre os que a priori contaram com os maiores obstáculos para se
Acima, rei Juan Carlos I e a rainha Sofia. Ao lado, Franco, em Burgos, 1 de outubro de 1936, quando foi proclamado “chefe do Governo do Estado espanhol e generalíssimo das forças nacionais de Terra, Mar e Ar”
Continente Multicultural 77
78 Continente Multicultural
REPRODUÇÃO
O presidente Adolfo Suáres deposita seu voto, nas primeiras eleições espanholas, depois da ditadura, em 15 de junho de 1977
desfazer das suas respectivas ditaduras. E finalmente resultaram ser os que mais êxitos coletaram: Brasil, Chile, Polônia, Hungria e Sul da África. Foi dito e repetido muitas vezes que o fato de que o desaparecimento do regime de general Franco, uma vez morto, acontecesse no processo de transição política, e não de maneira mais traumática, é o que o faz espetacular, surpreendente, inesperada, a história espanhola da trama final do século 20. A transição à democracia deve ser considerada já, obviamente, por um processo, por sua própria personalidade histórica. Dada a própria forma em que o regime de Franco nasceu, como produto da maior guerra civil, do enfrentamento social mais profundo que a Espanha tenha sofrido, não só na Idade Contemporânea, senão em toda sua história, é compreensível a suposição de que no final de tal regime tivesse provocado, de novo, de alguma forma, um trauma social e político, uma tremenda convulsão como a de sua origem. Em todo caso, o que tem marcado um modelo de passagem de um regime para o outro na Espanha tem sido esta eliminação do Estado que existia, mediante uma transição política de forma evolutiva e sem profundos traumas, e não através de um desenvolvimento rupturista ou constituinte, ou através de algum tipo de processo revolucionário. Nem a transição foi, certamente, o resultado de ações e pressões “populares”, nem tampouco estritamente um pacto ou negociação obscura entre dirigentes políticos e grupos de poder. Daí, sua singularidade. Mas o que resulta absolutamente indiscutível é que toda transição, por definição, significa um “pacto”, por isto, é precisamente uma transição e não outra coisa. No modelo de transição que se impôs na Espanha, as elites políticas assumiram um protagonismo muito acurado em detrimento da ação mobilizadora das massas. Na transição espanhola à democracia quem levou a iniciativa foi o conjunto de reformistas, mais ou menos avançados, que tinha se desenvolvido dentro do próprio regime depois dos anos 60 e, sobretudo, na sua fase de declínio e de aumento espetacular dos movimentos de oposição. O funda-
mental é que este tipo de dirigentes é o que desenvolve as ações essenciais, mas só sua vontade não era suficiente. Havia que contar com o povo maduro e a Coroa, na pessoa do rei Juan Carlos e alguns dos seus mentores mais próximos – mais o próprio pai do rei, Juan de Bourbon –, teve também um papel fundamental ao impulsionar com cautela, mas com constância, uma saída não traumática do Estado franquista e para isto, apoiou-se especialmente neste extrato reformista, porém, nunca rejeitou os contatos, ainda que fossem subterrâneos, com elementos-chaves da oposição. Convém assinalar que a transição não se pôs em marcha por mudança alguma “na distribuição social do poder”. Tanto as camadas que detinham o poder no franquismo, as novas elites financeiras e empresariais, as instituições básicas e o grosso da população, com a única possível decepção do exército e algumas centenas de sobreviventes da “velha guarda”, eram conscientes de que o anterior regime era insustentável sem a figura de Franco, e fechava à Espanha qualquer possibilidade de mudança na sua situação no concerto europeu. A oposição antifranquista estava convencida, em princípio, de que a mudança não era possível se se respeitavam as previsões sucessórias de Franco. Por isto, não acreditavam na possibilidade de que uma monarquia com Juan Carlos se separasse do regime anterior. As coisas foram diferentes e o começo da mudança se produziu com a crise do regime franquista no seu último período de existência. Etapas do Processo de Transição na Espanha – A transição pós-franquista espanhola foi um amplo itinerário político de governo e de ações de oposição, percorrido no seu auge por três importantes anos (1975-1978), que não foi simplesmente uma operação política de personalidades importantes e de políticos ou da Coroa. Existia uma sociedade que respondeu de maneiras diversas, porém de forma majoritariamente a favor da mudança, do abandono da situação política anterior, que os políticos tiveram que levar em conta. Em linhas gerais, pode-se dizer que o ritmo histórico
REPRODUÇÃO
orientou-se para manutenção de umas “continuidades de base” mais que as “rupturas políticas e sociais,” mas com uma vontade decidida de se estabelecer novo jogo político de liberdades. O período básico da transição, em sentido estrito, está compreendido entre a morte do general Franco (1975) e março de 1979, data esta em que se celebram as primeiras eleições gerais com o sistema democrático já normalizado. Este período tem uma unidade e intelegibilidade políticas indubitáveis. A partir deste momento terá começado a etapa da consolidação democrática, não menos importante que a anterior, sem dúvida, que se estende até 1982. É possível estabelecer uma etapa central do processo de transição, que transcorreria entre 1976 e 1978, quer dizer, o momento de máxima mudança, de maior densidade histórica, no qual se muda o regime ditatorial para o constitucional, passando pela elaboração e aprovação de duas leis de excepcional importância, porém, de diferentes signos e origem: a Lei para Reforma Política, de 1976, e a Constituição de 1978. Convém pormenorizar um pouco mais estas várias e complicadas etapas. Nos seis meses que vão de dezembro de 1975 a julho de 1976, alguns políticos e grupos tentaram consolidar uma “monarquia franquista” com uns retoques mínimos das velhas leis fundamentais. Foi uma espécie de fase preparatória que acabou com uma frustração. O presidente do governo neste período, um franquista irreformável como Carlos Arias Navarro, tentou impor uma pseudo-democracia, sem verdadeiro conteúdo novo, modelada dentro dos limites do regime anterior. A pretensão de Arias de abrir um processo político que não se afastasse da lógica do aperfeiçoamento do regime franquista, expressada com coerência no Projeto de Lei de Reforma das Leis Fundamentais, não resistiu à contestação dos grupos mais imobilistas da ditadura, nem sobretudo à rejeição frontal da oposição democrática. A oposição, desde a muito moderada, que tinha se gerado dentro do próprio regime até a anti-franquista mais
radical, desde a direita à extrema esquerda, começou a efetuar suas definitivas manobras de pressão de baixo para cima, sobretudo as organizações de esquerda de tradição obreira. A Coroa era também simpatizante de uma mudança inequívoca na direção de um regime plenamente democrático. Num segundo momento, a partir do verão de 1976, o reformismo gerado no próprio aparato do franquismo decidiu-se a tomar as rédeas para mudar o regime, mas sem romper a legalidade vigente em nenhum momento, indo, como se disse, “da lei à lei”. Isto é o que apresentou como solução o governo de Adolfo Soares. Veio então o momento mais difícil da dialética entre os transicionistas, de um lado, o imobilismo franquismo, de outro, e a oposição anti-franquista rupturista de fora do sistema. Foi o momento de confrontação oscilante entre as posições que propunham a reforma com a anterior frente e os que desejavam uma reforma permanecendo em segundo plano, por enquanto, a possibilidade de arbitrar uma solução pactuada. O velho aparato ideológico do franquismo não estava disposto a mudança verdadeira alguma. As circunstâncias foram mudando progressivamente no curso desse ano decisivo, de julho de 1976 a junho de 1977. O novo governo, presidido por Adolfo Soares, se constituiu em 7 de julho de 1976 e mostrou-se disposto de imediato a não repetir a fracassada experiência do anterior. Propôs rapidamente alcançar o objetivo de devolver a soberania e as liberdades ao povo espanhol através de uma reforma política. O conteúdo desta última se foi perfilando paulatinamente à medida que o governo tomava uma série de decisões de abertura e de sentido democratizador, que tiraram das mãos da oposição a iniciativa política de que fôra dona nos meses anteriores. O governo de Adolfo Soares, empurrado pela oposição, dirigiu a reforma política utilizando as molas anteriores do poder, inseridos ainda nos aparatos do próprio Estado. Este tinha conhecido, durante o franquismo, uma grande expansão, um notável fortalecimento e um
Cena de rua em Madri, na época da Guerra Civil
Continente Multicultural 79
80 Continente Multicultural
igualmente que os sucessos de fevereiro de 1981 e todos os acontecimentos que o prepararam, parecem indicar que esta consolidação se atrasou significativamente, sobretudo pela falta de estabilidade do recém-criado sistema de partidos, onde se particulariza o caso da União de Centro Democrático (UCD), que nunca foi verdadeiro partido consolidado, e pela falta de normalização de novas instituições capazes de superar definitivamente as antigas, uma substituição que levaria anos ainda, já sob o “governo longo” do partido socialista (PSOE) desde 1982, para ser concluída. A superação da crise de 1981 fortaleceu o sistema, porém, a médio prazo, mesmo tendo determinado a crise final e praticamente a desaparição da UCD como partido político. Quando ascendeu ao poder o novo partido, o PSOE, após um espetacular triunfo eleitoral, o processo de consolidação não estava com certeza terminado ainda. Mas a democracia tinha feito o possível e superado uma conjuntura decisiva: alternância no poder entre dois partidos. Concluindo: o que freqüentemente atrai especialmente a atenção dos observadores, analistas e historiadores da transição espanhola é como pôde consumar-se esta saída pacífica de uma ditadura imposta após uma guerra civil e que tinha todo o disposto para se perpetuar sem mais que se substituir à figura do caudilho Franco por um rei. Devese constatar, porém, se é verdade que os planos de sucessão ditatorial não se cumpriram, não é menos verdade que a ordem social, o jogo das preeminências, da hegemonia de certos grupos não se alterou tampouco em nada. Seguramente é esta a dimensão da transição mais negativa, junto ao fato que jamais se pedisse conta a ninguém por uma guerra civil ilegitimamente provocada e por quarenta anos de repressão. Como muitas vezes tem se repetido, o custo desta transição por consenso inclui um “pacto sobre o passado”, onde a negociação tem REPRODUÇÃO
Detalhe de Guernica, de Pablo Picasso, que retrata os horrores da Guerra Civil espanhola
importante processo de racionalização de suas estruturas burocrático-administrativas. Tudo isso fez possível que o Estado adquirisse uma considerável autonomia, o que permite explicar, em grande medida, o papel tão destacado que o mesmo pode jogar na passagem de um regime que desaparecia a outro que emergia, enquanto se consumava sua própria transformação democrática através da legalidade então vigente. Até que se produz a desvinculação do regime franquista mediante a Lei para a Reforma Política, o governo de Soares negociou o processo de transição com as famílias políticas da ditadura, e o peso do Estado velho foi muito estimável. Mais tarde, o avanço da mudança política necessitou da progressiva incorporação das forças democráticas e da criação de novas instituições. O desenvolvimento da transição, em sentido estrito, fica concluído nas suas linhas essenciais quando se celebra o referendo popular que apóia a nova Constituição, quer dizer, em dezembro de 1978, três anos depois de começado o processo. De junho de 1977 a 1979 o período teve um caráter realmente constituinte e, para reforçar este caráter, o governo Soares procedeu a dissolver as cortes em 1979, uma vez que foi aprovada, referendada e promulgada a Constituição Espanhola de 1978. Desde as eleições de 1979, se inicia a etapa de consolidação do sistema democrático. A prova de que o período de consolidação de um regime democrático é de tanta importância e comporta quase os mesmos riscos e problemas que o momento da implantação de tal regime, é o fato de que na Espanha, ao longo de pouco mais de dois anos de ter aprovado e referendado uma constituição, se produziam uma ou várias conspirações entrelaçadas que desembocariam numa tentativa de golpe de Estado com o objetivo de alterar profundamente as instituições e o funcionamento da monarquia parlamentar. Mas tem que se considerar
favorecido muito mais as elites reformistas saídas do próprio sistema franquista, ao que tinha que mudar, que a oposição tanto histórica como recente. Foi uma negociação entre reformismo nascida do franquismo e a oposição da qual, por princípio, se excluíram algumas coisas “não negociáveis”: entre elas a monarquia, as preeminências sociais e econômicas que tinham imposto o regime à própria implantação de um sistema liberal e uma economia capitalista sem maiores correções. A ordem social não haveria de ser discutida. Praticamente o único que os reformistas concederam foi “a presença geral no processo de todas as forças concorrentes”. Estes pactos, implícitos ou explícitos, versaram, en-
tão, sobre três questões fundamentais: o estabelecimento de uma monarquia, a elaboração de uma constituição liberal onde coubessem todas as forças políticas e o arranjo da difícil situação econômica e social, através de um grande acordo, os Pactos da Moncloa. Em outubro de 1982, os socialistas, triunfantes nas eleições, herdariam um sistema político que já estava realmente em funcionamento. Com o chamado “governo longo” de Felipe Gonzalez, a partir de 1982, a consolidação democrática da Espanha quedará firmemente estabelecida. Juan Andrés Blanco Rodríguez é professor titular de História Contemporânea da Universidade de Salamanca
Movimento operário e anarquista no Brasil: a influência espanhola O processo de migração nos meados do século dezenove é o grande responsável para a solidificação do conceito de trabalho assalariado no país. Os imigrantes que aqui chegavam, vinham embebidos de esperança de uma terra farta, livre e justa, porém, mais que isso, acossados pelos patrões e as estruturas feudais que teimavam em limitar seu acesso à terra e às estruturas de produção. As revoltas já haviam eclodido em vários níveis e em diversos países. O sindicalismo fustigava a burguesia e os sindicalistas tinham formação basicamente anarquista. Vieram austríacos, alemães, poloneses. Ainda por cá vinham dar os costados mais levas de portugueses. Eram muitos os italianos e por aqui chegavam com decisão os espanhóis. Muitos iam para os campos e outros tantos ficavam nas cidades para alimentar a ainda incipiente indústria. Os que tinham conhecimento de me-
Eduardo Cruz
cânica engajaram-se nas companhias de estrada de ferro, as mulheres do exército urbano rumavam para a indústria têxtil. De influência , traziam na algibeira os escritos de autores anarquistas e principalmente do russo Mikhail Bakunin. E era através dos espanhóis que seus discursos rasgados e de enfrentamento até a Marx iam semeando o que podemos hoje conhecer como movimento operário organizado, um movimento anarquista de múltiplas facetas e forte conteúdo de instituição de uma nova cultura. Em 1868, Bakunim rejeitara a visão de Marx por considerá-la um projeto que continha a “negação da liberdade”. E nada era tão prezado
Mostravam simpatia e solidariedade ao movimento revolucionário russo e se denominavam comunistasanarquistas revolucionários. Nada adiantou a nova injeção de ânimo e uma semana depois era fundado no Rio de Janeiro o Partido Comunista do Brasil pelos espanhóis como a liberdade. Os escritos anarquistas de Bakunin logo encontraram grande ressonância na Itália, Portugal e Espanha. Segundo John W. Foster Dulles em seu Anarquistas e Comunistas no Brasil, à época, “Barcelona, a maior cidade industrial da Espanha, era conhecida como a capital ou o “viveiro” do anarquismo” . Os atentados à bomba, a ação direta, trancafiava cada vez mais os combatentes na Europa. Muitos fugiram, outros eram deportados. Era o movimento que espalhava-se na luta. Muitos italianos por aqui chegavam via Argentina. Já os espanhóis desembarcaram como migrantes. Dois dos mais famosos líderes vieram da Espanha ainda crianças. Eram eles Everardo Dias e Florentino de Carvalho, nascido Primitivo Raimundo Soares. O chamamento pela anarquia ecoava por cá com brados de heróis como Francisco Ferrer y Guardia, que em 1909 através das muralhas do Castelo de Montjuich em Barcelona gritava “Viva a escola Moderna!” , uma mensagem libertadora às vítimas de todas as opressões, dita ao ser crivado de balas da reação clérico-militar-capitalista. É bom que se saliente que o anarquismo não era uma unanimidade no movimento operá82 Continente Multicultural
rio. As idéias de Karl Marx, por exemplo, segundo registros, aparecem na imprensa em português, pela primeira vez no jornal republicano recifense O Seis de Março de março de 1872. O periódico era dirigido pelos liberais radicais Afonso D’Albuquerque e José Maria, o curioso é que o artigo era na verdade uma tradução de uma reportagem sobre a vida de Marx, traduzida da revista “Ilustração Espanhola.” Março de 1922 é a data mítica do movimento anarquista brasileiro. No dia 18 os anarquistas publicavam um manifesto assinado por Edgard Leuenroth, Antonio Domingues, Antonio Cordon Filho, Emilio Martins, João Peres, José Rodrigues, João Penteado, Rodolfo Felippe e Ricardo Cippola, onde reconheciam que as atividades libertárias desenvolvidas não apresentavam “um resultado correspondente à enorme soma de esforços e sacrifícios” e que isso era devido a faltas de uma ação metódica, sistemática no trabalho de propaganda e de organização. Mostravam simpatia e solidariedade ao movimento revolucionário russo e se denominavam comunistas-anarquistas revolucionários. Nada adiantou a nova injeção de ânimo e uma semana depois era fundado no Rio de Janeiro o Partido Comunista do Brasil. As Carteiras de Trabalho transformaram-se em novo ponto de discórdia. No ano de 32, já sem seus principais jornais e valendose de panfletos avulsos, os anarquistas protestavam com as Carteiras de Trabalho e apostavam na greve que estava sendo organizada pela Federação Operária. A greve fracassou e Oiticica ao lado de Leuenroth declarava que a greve teria sido vitoriosa se os comunistas tivessem cooperado. Acusou-os de traírem a campanha aceitando as referidas carteiras somente para derrotar a reivindicação dos anarquistas. A cisão era total. A Guerra Civil espanhola chegou a dar novo alento para o movimento, engajando jovens na brigada internacional. As boas notícias da experiência na Catalunha e do movimento coletivista de Aragão, Levante Andaluzia, Extremadura, Castela foram inspiradoras e motivos de longos artigos em “A Plebe”. Os ventos anarquizantes vem e vão, e o Anarquismo não morre, nos primeiros de maio, com grupos punks ou nos confrontos durante as reuniões dos lideres dos países mais industrializados. As bandeiras negras tremulam em Seattle ou Porto Alegre. Eduardo Cruz é jornalista e produtor de vídeo em São Paulo
REPRODUÇÃO
Santiago, um santo de fronteiras
Santiago peregrino, por Lorenzo de Ávila, 1534, óleo e têmpera sobre madeira – (75 x 89cm), Colegiata da Santamaria La Mayor, em Toro
Do ponto de vista da • A de Santiago Peregrino, normalmente a Antropologia simbólica, as fi- pé (às vezes também a cavalo) com chapéu de asa, guras míticas de líderes, heróis cajado, a concha e a cabaça. ou santos do passado, têm ex• A do Apóstolo Guerreiro, montado em cepcional importância também corcel branco, portando um emblema da concha, no presente, e desempenham mas brandindo também sua espada com a que um papel destacado não só no ameaça a inimigos derrubados, decapitados ou imaginário popular senão em muitos outros aspec- moribundos. É a de Santiago Mata-Mouros, que tos da vida social e cultural dos povos. Algumas na América se transformará, como veremos, em dessas referências coletivas, as mais importantes, Santiago Mata-Índios. têm mobilizado e arrastam atualmente, multidão de afetos, símbolos e rituais, mas também interVamos nos centrar nestas últimas versões do câmbios econômicos, viagens, inclusive enfrenta- santo que têm sido as mais difundidas. No que toca mentos e guerra. à figura de Santiago Peregrino, é óbvio que se dá Neste sentido não existe na cultura hispâni- uma mimetização da representação que a faz coinca figura sacra masculina mais importante, depois cidir em aspecto com a das próprias pessoas que de Jesus Cristo, que a do, com todo mérito patrono empreendem e seguem a rota jacobéia. É como se da Espanha, senhor Santiago Apóstolo. os fiéis quisessem se ver eles mesmos nos pórticos e Geralmente são consideradas três figuras altares ou também como se o santo passasse a ser icônicas de Santiago, que fazem referência a três in- companheiro e protetor dos ousados viajantes. Esta terpretações do seu simbolismo. Nós incremen- identificação icônica vai se acentuando com o passar taremos, no final, alguma variante a mais. No seu do tempo e o santo portará não só a concha e o cajaestado puro e por ordem cronológica, estas repre- do (em princípio, inicialmente, em forma de “t”, desentações são: pois com extremo de ferro) senão também vesti• As primitivas de Santiago como apóstolo, mentas curtas, bornais, cabaças etc. em pé, hierático, com um livro na mão, ou com Tal visão da coisa jacobéia, pacífica e amável, uma espada, talvez em referência ao seu martírio como a de um turista religioso, é a que melhor acontecido no ano 43, aproxiresultados tem dado à cultura madamente. Angel B. Espina Barrio hispânica. É a que estimulou a Continente Multicultural 83
84 Continente Multicultural
REPRODUÇÃO
Cruz no caminho de Santiago, nas proximidades de Roncesvalles, na França
visita a nossas terras de muitíssimos europeus ávidos de sensações e conhecimentos novos e a que levou Compostela a ser um dos focos mais importantes do Cristianismo, junto com Roma e Jerusalém. Compostela, a utopia ocidental de viajantes e caminhantes que seguiam a rota das estrelas até os confins do mundo, para ganhar a vida imortal celeste através do sofrimento e penalidades da viagem terrestre. Essa rota e esse ânimo trouxeram à Ibéria pessoas e dinheiros, mas também idéias, arte... não vou me deter na influência do Caminho na difusão da arte e arquitetura, primeiro românica e depois gótica, mas isto é algo muito evidente e sabido; o que assinalaremos, sim, é que, como em todo caso, as influências culturais se estabelecem em mão-dupla, sempre se produz uma interação que pode, às vezes, não ser paritária, mas nunca unilateral. A Espanha passa a ser uma terra de periferias e de utopias, fronteira perigosa com o Islã, lugar que hoje chamaríamos de “turismo de aventura”. (Neste sentido, não faltam relatos de assaltos de bandidos, de violações, de estelionatos etc. que foram se tornando lamentavelmente freqüentes em tão dilatada rota.) Mas a Europa começa a sentir sua influência e sua mestiçagem. Através do culto a Santiago se difundem notícias, relatos, obras literárias... Prova da importância do mesmo é a grande proliferação na Europa do nome do apóstolo e de seus derivados: Santiago, Diago, Diego, Jacobo, Jácomo, Jacques, Jaume, Jaime etc. Durante algum tempo é a onomástica mais popular.
Na sua imagem de peregrino, de apóstolo que leva a boa nova a terras extremas e afastadas, é quando a figura de Santiago aporta seus melhores frutos à identidade espanhola mas, lamentavelmente, existe uma manipulação progressiva do santo ora pescador, ora apóstolo, ora mártir e peregrino em guerreiro eficaz e eficiente, em aliado contundente na luta contra o infiel. Tal metamorfose simbólica pode nos aparecer inadequada ou abusiva, mas sem dúvida não é arbitrária. É lógico pensar que o santo que expandia a fé no Norte da Espanha e que servia de referência aos cristãos, os ajudasse depois, quando a Reconquista estava mais avançada. Mas isto ocorre bastante tarde, (de fato esta iconografia se difunde de maneira importante nos fins do século 15) e deve ser entendida num contexto geral de proliferação de santos militares: São Jorge, para ingleses, catalães e portugueses; São Dionísio, para franceses; São Ivo, bretões; etc. Esta metamorfose não obstante pode ser rastreada nos finais do século 11 e princípios do 12, quando por causa do Sítio de Coimbra um peregrino grego estranha as súplicas que se dirigem a Santiago nessas terras, dando como certo que é um aguerrido combatente a cavalo. A lenda, já sabemos, situa sua primeira intervenção na Batalha de Clavijo, no século 9, mas isto é bastante improvável. Mesmo assim, a história do tributo de cem donzelas e a sublevação de Ramiro I, sim, pode ter um fundo de verdade e, em todo caso, serviriam para explicar os votos e tributos que os fiéis começaram a pagar prematuramente ao apóstolo Santiago.
REPRODUÇÃO
Apesar de termos falado desta especial advocação do santo, temos que insistir que a mesma não é exclusiva da Espanha, não está absolutamente predeterminada pelas circunstâncias da Idade Média neste país, antes bem, é no final da mesma quando isto acontece. E, sempre, a soada invocação pedindo intercessão antes das batalhas, mais freqüentes entre castelhanos, vai acompanhada de outras dirigidas a Deus, à Virgem e outros santos. De todo o modo, os cavaleiros castelhanos, terminada completamente a Reconquista, com a ocupação de Granada, cometeram façanhas similares em outras terras muito longínquas, mas com estratégias semelhantes. A divisão dos inimigos mouros em reinos de Taifas foi a maior debilidade destes, e os cristãos souberam se servir muito bem, na prática, do famoso adágio “divide e vencerás”, que deslocariam agora às terras americanas recémdescobertas. Cortés, como Pizarro, se considerando o novo cavaleiro cruzado, fomentara a divisão nos povos índios conseguindo, com isso, surpreendentes vitórias. Não é de se estranhar que transladassem também com fervor o culto a Santiago na sua faceta de guerreiro, cavaleiro auxiliador nas batalhas. Rapidamente, povos, igrejas e gentes levariam seu nome, e suas aparições não tardariam muito em favorecer aos espanhóis. Existem mais de duzentos topônimos que guardam relação com Santiago na América e muitos referem-se a cidades mais destacadas, fundadas no começo da colonização. Lembremos só algumas: Santiago dos Cavaleiros, na República Dominicana, fundada em 1504; Santiago de Cuba, fundada por Diego de
Vilasquez, em 1514; Santiago de Quito, no Equador, fundada por Almagro, em 1534; Santiago do Novo Extremo, ou Santiago do Chile, fundada por Pedro Valdivia, em 1541; Santiago dos Cavaleiros de Guatemala (hoje, Antigua), fundada por Pedro de Alvarado, em 1524; Santiago de Leon e Santiago de Manágua, em Nicarágua; Santiago de Desterro, fundada em 1553, por Francisco de Alguirre. (Heliodoro Valle, 1945, 8-13). Sua presença também podia ser vista em muitíssimas igrejas que bem recebiam o nome do santo ou o situavam em privilegiada posição. Para destacar algumas delas, basta dizer umas palavras sobre a Igreja de Santiago de Tlatelolco, na capital mexicana. Assim mesmo, contabilizam-se classicamente umas quatorze aparições destacadas do apóstolo, no México, as primeiras, algumas, a Pedro de Alvarado, que parecia muito devoto do santo; depois, no Peru, no Chile e algumas, inclusive, em época pós-colonial a insurgentes mexicanos em Janitzio, a tropas também do México em luta contra os franceses e em fazenda de espanhóis. Já falaremos nessa dificultosa permanência em épocas republicanas que, em todo caso, indica uma progressiva identificação dos crioulos e dos mestiços com o santo, claro que depois de alguma modificação. Mas em todas as aparições, a figura que se revela é a do santo guerreiro que antes ou durante a batalha aparece, seja no céu ou na terra, com o seu cavalo branco. Vejamos o caso da primeira aparição, mas que poderia servir de comentário para qualquer outra. Segundo nos refere Lopes de Gómara, quando Hernán Cortés chega às costas de Tabasco
São Pedro, Santiago o Maior e São João Evangelista. Lorenzo de Ávila, década de 1530, têmpera e óleo sobre linho – (180 x 167,5 cm), no Real Monastério de Sancti Spiritus (Dominicano), em Toro
Continente Multicultural 85
REPRODUÇÃO
teve uma decisiva e sangrenta batalha, na que jogou importante e heróico papel um desconhecido ginete que não conseguiram identificar no começo e que, depois, foi adjudicado ao patrono Santiago, mesmo que Cortés acreditasse mais que fosse São Pedro. O certo é que Bernal Díaz de Castillo comenta o texto de Gómara e, ironicamente, diz que ele estando lá, não viu nada disto, mas que talvez, como pecador, não fosse digno de vê-lo. Depois desta aparição, virão muitas mais em diversas batalhas e sítios, o que explicaria facilmente a proliferação de toponímias e templos de agradecimento. Aqui também se produz uma particular mimese entre os conquistadores e a figura sacra. Algo assim como se estes cavaleiros tirassem uma cópia de si mesmos e as colocassem nos altares. O processo é tão claro que muitas representações dos mouros mortos ou derrubados foram substituídas pelos índios, recebendo, neste caso, o religioso degolamento. A mera invocação deste santo infundia medo nos mencionados indígenas. Santiago passa de MataMouros a Mata-Índios no seu deslocamento às Américas. (Pela sua afinidade com o trovão, e por ser invocado na hora de disparar os arcabouços, também foi associado com o deus índio Hillapa, o raio). Estas aparições e este novo uso ou, melhor dizendo: abuso do símbolo, foi denunciado por algumas plumas em épocas coloniais, bem como um tanto posteriores, tal é o caso do cronista franciscano de Jalisco, Francisco Frejes. Felizmente, não foi esta a última interpretação que se fez do patrono em terras íbero-americanas. Justamente, seu declínio em favor de outros santos da terra, coincide com o fim das conquistas, faz que já no século 17 a figura de Santiago perca muito de seus atributos mais pavorosos. Começa a se humanizar, a participar nas festas populares de mouros e cristãos, nos bailes... Seu simbolismo se associou à Cavalaria, mas não necessariamente militar, e já sabemos quão fundamental resultou para a vida americana a utilização dos eqüinos. Obviamente, era um santo tipicamente espanhol, mas aceito no panteão e no imaginário indígena, e a queda da sua devoção 86 Continente Multicultural
não deveria ser tão grande quando, já na etapa republicana, em muitos países seu culto é limitado e, quando não, perseguido. Na época da chamada reforma, no México, muitas imagens, especialmente deste santo, são retiradas (por exemplo, a do altarmor de Santiago de Tlatelolco) e com a proibição do culto externo, se inauguravam novos ritos em vários povos – como é o de mostrar só o cavalo do patrono na procissão. Parece que a origem dessa prática iniciou-se frente à proibição do prefeito à saída do santo eqüestre. A imaginação popular presumiu que a proibição não incluiria o seu cavalo. Desmontaram o santo e passearam com seu cavalo por todo o povoado. O certo é que as tradições vão mudando segundos os tempos. Podemos ver, neste sentido, como a procissão que antigamente se fazia no dia de Santiago, saindo da igreja de Clolula, integrada por numerosos ginetes, é hoje substituída por uma multitudinária procissão de bicicletas seguindo ao santo. Concluindo, e para resumir a posição mais pessoal e essencial sobre esta imponente figura que merece o patronato da hispanidade: creio que estamos ante um santo associado às fronteiras, aos confins, aos limites, ao contato entre os povos. Esta liminaridade do santo pode ser e tem sido expressada de duas maneiras, uma delas pacífica e, acredito, muito positiva. A do peregrino, viajante incansável, cavaleiro experiente, que leva a palavra cristã aos mais afastados rincões, que pula fronteiras e mares para dar cultura, evangelizar e conhecer. Mas há outra forma de expressão da fronteira também neste santo, que sublinha o enfrentamento, a imposição militar e a guerra; é a do armado matamouros, mata-índios ou mata inimigos. Este é um abuso do ícone que colabora com uma visão fechada e negra da Espanha. Creio ainda que devemos resgatar e difundir essa primeira interpretação do nosso patrono, em primeiro lugar porque é a mais antiga e genuína (se é que há alguma genuína) e, fundamentalmente, porque exporta uma imagem aberta, dialogante, cavaleiresca e aventureira, internacionalista e universalista do nosso rico acervo hispânico. Angel B. Espina Barrio é antropólogo e diretor do Doutorado em Antropologia da Universidade de Salamanca
Penúltimas notas sobre a nova poesia espanhola
A poesia na Espanha do numa releitura à altura do nosso tempo, justo vive hoje um momento de no marco da reedição daqueles poemas. tensão ou ambigüidade, e este Justamente nos últimos anos da década de 20, é precisamente o núcleo do quando surgem novas antologias que pretendiam qual se nutre, e desde o qual marcar terrenos. Em alguns casos¸ prescrever nasce com força. Portanto, caminhos dissolvendo outros. Aparecem antolotentar estabelecer um olhar gias como 10 Menos Trinta (Luis Antonio de certeiro sobre o que se faz hoje no âmbito da cri- Villena), Feroces (Isla Corrayero), Aldea Poética ação poética, seria uma tarefa torpe e amarga ao (Opera Prima) ou Generación Del 99 (García mesmo tempo, pois se trata de um horizonte Martín), onde a partir de diferentes ângulos preamplíssimo, onde se exercitam de modos muito tendem evidenciar uma nova sensibilidade que se diversos, vozes com sotaques muito diferentes, faz patente neste momento de trânsito. De um mas talvez – e isto é importante – com temáticas modo mais o menos radical, se pretende evidenem muitos casos similares. A proposta é tentar ciar o caráter de uma nova poesia. mostrar uma trilha – dentro das muitas que podeAssim, se olharmos na poesia hoje (digariam ser mostradas – pela qual parece caminhar a mos em certo tipo de poesia), no começo de um poesia. novo século, se trata de um tipo de criação que, Após a irrupção, nos anos 70, dos novíssi- talvez de um modo inconsciente, situa-se nesse mos, da mão de Castellet (uma antologia que a não-lugar ao que tem sido destinada. Trata-se efeprincípios deste novo século volta a ser editada), a tivamente de uma poesia, situada entre dois sécupoesia espanhola tem procurado permanecer los, uma poesia nova que tem vivido num século e nesse vai-e-vem que supõe a necessidade de haverá de inaugurar um novo. Pode ser esse, romper com toda uma tradição e, ao mesmo quiçá, o peso da poesia nova. É por isso que, antes tempo, a pressão por encontrar novos caminhos. de falarmos de ambigüidade ou tensão, já que se A edição daquela antologia foi mais uma necessi- trata de uma criação situada entre um século (o dade cultural do que uma tentativa de delimitar vinte) que provavelmente tenha nos deixado a novos terrenos, e isto melhor poesia de toda a talvez fique demonstra- Alberto Santamaria Fernández nossa historia e outro (o Continente Multicultural 87
que começa) que tenta se abrir caminho, precisamente, tentando se livrar, em maior ou menor medida, do lastro da criação passada. Não obstante, não se trata de uma ruptura, mas antes bem de uma revisão e releitura, tratando de recuperar certos caminhos abertos, mas que podem não ter sido explorados, como o exemplo de certa poesia norteamericana. Todas estas tradições são refundidas na escritura atual junto com uma visão profunda e irônica do presente. Há uma consciência do passado, mas também a necessidade de reler o presente, e nesse “espaço” se situa a criação, um espaço de incertezas e intensidades, onde se captam os instantes de modo fotográfico. É por isso que certo tipo de poesia vê hoje seu lugar justo ali onde se mostra que já não tem lugar, resgata espaços comuns, às vezes esquecidos ou relegados ao óbvio pela sua excessiva proximidade: estações, táxis, olhares furtivos etc. Hoje em dia, a poesia tem descido ao terreno do instante, do ponto fechado, intenso e esquecido. Assim, a poesia que aqui assinalamos está entretecida em seu núcleo como uma espécie de diário o de simples anotação num guardanapo. Quiçá, como afirmou Blanchot, se referindo ao recurso do diário, “...o que ali se escreve já não seja mais do que insinceridade, talvez esteja dito sem preocupação pelo verdadeiro, mas está dito sob a salvaguarda do acontecimento; isso pertence aos assuntos, aos incidentes, ao comércio do mundo, a um presente ativo, a uma duração talvez absolutamente nula ou in88 Continente Multicultural
significante, mas pelo menos sem retorno, trabalho de uma coisa que se adianta, vai à direção do amanhã e vai definitivamente”. Esse é talvez o caminho do que aqui temos chamado poesia nova, uma poesia que, em definitivo, tenta reescrever o presente como uma anotação, seja ela realidade ou ficção, experienciado ou imaginado. Trata-se de mostrar possibilidades existenciais, caminhos às vezes não percorridos ainda. É ali, nessa tentativa de reescrita de onde brota o humor duro, frio e grosso desta poesia, face a qual ficamos com esse meio sorriso (trágico) do gato de Chesire. A imagem e o cotidiano são hoje elementos que se entrecruzam e se mostram como eixos-chaves desta criação, que admite não ter mais lugar que a proximidade desse cotidiano. Trata-se de uma poesia cuja intenção não é outra senão a de poder reescrever o presente de uma forma intensa e cotidiana. E aqui temos autores como Pablo García Casado, Paul Herrera Ceballos, Juan Carlos Reche o Carmelo Iribarren. Podem se estabelecer diferenças na maneira de estabelecer essa leitura do presente, mas que em qualquer dos casos, tentam pô-lo em cena através da palavra direta, onde se relacionam emoção e imagem. É uma poesia que, apesar das suas diferenças, todo seu interesse está centrado em desentranhar, em profanar o insincero mistério do vital; em habitá-lo com novos e reconhecíveis fantasmas. Alberto Santamaría Fernandez é poeta e redator-chefe da revista Factótum
Unamuno
REPRODUÇÃO
ou a estética do trágico
Estudo para retrato de Miguel de Unamuno, por Daniel Vázquez Diaz
O instante mortal foi ra Édipo assumir um curso inevitável de acontecaquele em que Édipo segurou imentos, ao fim dos quais só era possível vislumo olhar congelado da efígie. Na brar a miséria de um acabamento definitivo. Antes efêmera presença desse mo- do que com a besta, o herói deveria se enfrentar, mento, percebeu com clareza o naquele só e desnudo instante, cara a cara, consigo sentido necessário e inevitável mesmo, com seu próprio passado e futuro, e sode todos os momentos passa- bretudo, com sua própria morte. Só então, estaria dos que até ali o tinham conduzido e o conduzi- capacitado para superar o seu combate com a efíriam sempre, assim como de todos aqueles que gie, isto é, seguir vivendo. estavam por vir e que, finalmente, viriam para proOs escritos de Miguel de Unamuno são o piciar a sua aniquilação. Os olhos da efígie guardiã reflexo do sustentado esforço para responder a uma eram a elementar e sinistra armação do fatal olhar batalha semelhante, precisamente a que cada um de que, como um fio quase invisível, mas dotado de nós mantém, nas suas mais recônditas entranhas, resistência quase infinita, tensionava-se no arco com a consciência da finitude e a incerteza estabelecujos extremos vinham determinados pelo nasci- cida pela presença da morte. A obra inteira do penmento e a morte. Resolver sador basco está articulada aquele olhar significava pa- Diego Jesús Pedrera Gómez pela mesma necessidade que Continente Multicultural 89
90 Continente Multicultural
tos íntimos que o afligem. Com efeito, para Unamuno, a totalidade viva e dinâmica que é o indivíduo se define antes que nada por um permanente esforço, orientado com o motor da vontade, à permanência no ser. Igual a Spinoza, que situava no cognatus por sobreviver, na tendência à autoconservação, a essência do homem, do mesmo modo, a antropologia unamuniana entende que o centro da vida humana se encontra no desejo de si mesma, e de mais e mais de si mesma cada vez. A diferença reside em que Unamuno considera que este desejo infatigável de conservar o próprio ser implica um tempo infinito, de tal forma que cada homem estaria essencialmente atravessado não só por uma insaciável “sede de ser”, senão, antes de tudo, por uma sede de “ser sempre”, por uma ânsia irremediável de eternidade, de que a morte não seja mais do que um contratempo passageiro no infinito transcorrer do tempo. Isto é o que dinamiza a vida, o que a impulsiona sem descanso à criação, o que em última instancia dota de sentido a todas e cada uma de suas ações e aos produtos que delas puderem emanar. Em Unamuno, a transcendência não é nem mais nem menos que a condição da possibilidade do sentido da vida, sem que aparentemente sejam possíveis outras saídas que não resultem finalmente, senão elaboradas mistificações tranqüilizadoras, os simples encobrimentos da questão. Se a totalidade que somos, se a nossa própria identidade consciente e pessoal não pode realizar o seu desejo íntimo de transcender a morte, então parece que um negro abismo se abre ante ela e sobre todas as suas ações e produtos. Nada faria sentido então. Porém, o verdadeiro conflito surge se repararmos que Unamuno não esquece a razão como uma das instâncias constituintes do ser humano. Se este se encontra vertebrado pelo impulso irredutível à autoconservação, REPRODUÇÃO
O filósofo Miguel de Unamuno. Foto do Archivo Moreno, do Instituto de Conservação e Restauração de Bens Culturais do Ministério da Cultura da Espanha
inunda Édipo – a do enfrentamento consigo mesmo e com um destino que parece estar inevitavelmente empenhado na aniquilação sem remédio. Trata-se de uma questão suscitada nos mais intransferíveis âmagos da existência pessoal, que, não obstante, procura conceitualizá-la, e ainda solucioná-la, se cabível for, mediante o discurso filosófico. O conflito vivido na carne do homem Unamuno translada-se assim ao espaço escrito, ao texto filosófico que generaliza com os seus conceitos a temática até fazêla concernente a todo homem em geral. Mas Unamuno não reflete tomando como ponto de partida um sujeito abstrato, reduzido a consciência puramente cognitiva, incorpórea e sem sentimento, no estilo de Descartes ou Kant, posto que a indagação que articula sua obra, a da possibilidade de explicitar de um modo racionalmente legítimo algum tipo de sobrevivência após a morte, exige uma constante referência ao homem concreto, ao homem “de carne e osso”, que é não só conhecimento, senão também vontade, sentimento, vida orgânica e, portanto, desejo, esperança, temor, necessidade. Trata-se de um homem dotado de identidade pessoal, em cuja conformação intervêm uma totalidade de elementos entre os que não deixam de estar presentes o corpo e uma determinada rede de circunstâncias. Um homem que existe primeiro, e só porque existe, pensa depois, e não só pensa, ou não pensa sem sentir e querer ao mesmo tempo. Esta é a única forma de falar em geral da coisa íntima, daquilo que subjaz às múltiplas vicissitudes pelas quais transcorre a vida de cada um. Porém, na ótica unamuniana, o sentimento e a vontade adquirem um papel determinante, na medida em que são principalmente estes os que veiculam tanto a definição menos abstrata e unilateral possível do homem como os esboços de solução dos confli-
REPRODUÇÃO
inclusive por sobre o aparente obstáculo da morte, a razão que o habita lhe descobre que o dito obstáculo não é uma aparência que coubesse apagar sem mais, como as ondas apagam o desenho traçado na areia da praia, senão que é a justamente a beira por cima da qual jamais pode pular a existência. A razão, que Unamuno entende “naturalmente” monística e materialista nos seus resultados, acata somente aquilo que lhe é dado na experiência sensível, portanto, não pode conceitualizar sem cair na impostura tudo o referente a uma confirmação da vida além da morte do corpo. O veredicto kantiano relativo à impossibilidade de conhecer o supra-sensível é então assumido sem ambages, só que como ponto de partida e não de chegada, como acontece no pensador de Königsberg. E este passo inicial da caminhada, a cobre de um véu trágico desde o momento em que o impulso de racionalização, de conceitualização que preste algum tipo de inteligibilidade à fé e esperança na supervivência transmortal, é aceita enquanto peculiaridade necessariamente intrínseca ao viver humano. Este se desenvolve assim no sangrento e nunca pacificado campo de batalha onde os impulsos, de um lado, o de querer viver para sempre, e do outro, o que procura outorgar luz racional a este querer, se enfrentam sem possibilidade de negociações conciliadoras. O coração exige que o tempo não dificulte o ritmo dos seus batimentos, enquanto a cabeça exige ao coração que se resigne a aceitar a inviabilidade de satisfazer os seus pedidos. E aqui está a luta e o combate permanentes, ou, por dizê-lo em palavras do próprio Unamuno, a constante e nunca superada agonia, a tragédia sentida como o mesmo núcleo da existência e o ponto de referência do qual recebem significação todas suas criações: o sentimento trágico da vida. Com esta concepção trágica do homem e de sua vida no mundo, Unamuno for-
mula em outros termos a oposição entre razão e vida, que havia começado a constituir-se numa temática recorrente desde as datas posteriores à morte de Hegel. Nos finais do século 19, determinados pensadores como Nietzsche se encarregaram de radicalizar a crítica de um peculiar uso moderno da razão que fazia impossível o pensamento da vida, e de todo o concreto, múltiplo e heterogêneo que aquela tinha de mais característica. A dita crítica procurava desbravar atalhos alternativos às do pensamento sujeito ao modelo científico-matemático, e sobretudo às do seu discípulo mais avantajado, o positivismo. Unamuno se faz eco de todas estas visões da razão enquanto mecanismo antivital, enquanto tenta dar voltas ao redor delas, tematizando-as desde o ponto de vista especial que lhes confere a problemática da imortalidade, mas sem adotar em nenhum caso uma solução conclusiva. Poderíamos dizer, portanto, que o pensamento de Unamuno supõe uma determinada recepção e o reflexo de certas linhas da Modernidade filosófica. Situado no sentimento agônico ou trágico da vida, que é antes de tudo o seu próprio sentimento, os esforços intelectuais do pensador basco também estarão orientados à procura de um tipo de escritura na qual a razão possa se movimentar adequadamente, fornecendo inteligibilidade, mas sem ter que ir necessariamente contra as expectativas da vontade ou as intensidades do sentimento. Um discurso onde possam se refletir, se exprimir e se conhecer os movimentos íntimos da personalidade, e no qual, em conseqüência, deva se pôr em jogo um tipo diferente de clarificação racional. É o que Unamuno, em O Sentimento Trágico da Vida, sem dúvida a obra que serve de eficiente prontuário de suas reflexões, chama de “sabedoria”, cuja mais excelente figura estaria representada pela expressão poética. Este seria, em conseqüência, o espelho onde encon-
Unamuno, caricatura de Begaria
Continente Multicultural 91
trar uma palavra capaz de explicitar, da maneira mais harmônica possível, tanto a objetividade que procura a razão, quanto a subjetividade que alinhavam o sentimento e a vontade. Essa razão poética de Unamuno tem na imaginação o seu conteúdo e motor fundamental, o que não implica cair necessariamente na arbitrariedade ou na mitologia supersticiosa e grosseira. Inventa-se, sim, porém, de acordo à razão, uma vez que esta se tem liberado da pesada e fastidiosa canga do modelo científico-matemático. É uma espécie de mitologia da razão, semelhante à que queriam os primeiros românticos, o que surge da escrita unamuniana; uma mitologia que tem Deus como primeiro e único ícone, um Deus “biótico ou cordial”, que fala diretamente às entranhas afetivas de cada individuo, em contraposição àquele Deus “lógico e racional”, o Deus dos argumentos e das demonstrações, o Deus da teologia mais escolástica. Com essa formulação da divindade, de nítidas raízes protestantes, Unamuno vislumbra uma saída ao confli-
to agônico que aflige o homem em relação à sua possível imortalidade, dado que, em efeito, esse Deus tem sido imaginativamente construído antes de tudo para dar algum tipo de consistência à idéia de uma sobrevivência do homem após a morte. Não se trata, claro, da solução definitiva: a incerteza continua existindo se reparamos no muito de ficção que esta nova escritura possui, já que se encontra amarrada à potência da imaginação. Lendo Unamuno não se pode evitar a sensação de que tudo o dito possui uma esquisita fragilidade, que tudo desabará ao fechar a última página. Mas, afinal de contas, talvez não possa ser outra a esperança que a de que esta quixotesca ficção de uma vida vencedora da morte, ficção cuja realidade deve ser medida pela sua formidável capacidade de produzir efeitos na nossa existência. E que maior efeito que o de lhe proporcionar um sentido! Diego Jesús Pedrera Gomez é doutorando em Filosofia pela Universidade de Salamanca
Todo brasileiro bem informado já leu ou pelo menos ouviu falar nos livros A Desumanizaçao da Arte e A Rebelião das Massas. O autor é o espanhol José Ortega y Gasset, um dos nomes fundamentais para compreender o século 20, que está sendo revalorizado e atualizado. Há seis meses, houve, em Madri, o congresso internacional Arte, educação e sociedade em Ortega y Gasset, que festejava o aniversário de lança-
Mário Hélio 92 Continente Multicultural
REPRODUÇÃO
A atualidade de Ortega y Gasset
mento de suas obras principais e de outra menos conhecida: Missão da Universidade. O encontro foi comandado pelo filósofo José Luis Molinuevo. Ele também é o diretor da revista de estudos orteguianos, de periodicidade semestral. “Um lugar de encontro e de trabalho de todos os que se interessem pela obra de José Ortega y Gasset”, ele explica no editorial. Professor catedrático da Universidade de Salamanca, Molinuevo é autor de livros importantes de estética, como O Espaço Político da Arte, A Experiência Estética Moderna e A Estética do Originário em Jünger. Molinuevo faz parte de uma Espanha integrada com o melhor do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo em que mantém sobre autores europeus uma visão crítica, ele propõe alternativas para que, junto a uma teoria elaborada com rigor, haja também uma práxis conseqüente e útil. Ele está empenhado em dinamizar na Universidade as comemorações de Salamanca 2002 capital cultural da Europa.Uma das iniciativas mais aguardadas é a criação do Centro Cultural Fonseca, que reunirá para debates e conferências de pensadores de destaque de diversos países. Temas como nacionalismo e direitos humanos já encontram no centro um fórum adequado para a discussão em profundidade. O trabalho que propõe e realiza Molinuevo é o que talvez seja a vocação da filosofia e da universidade no século 21: a comunicação plena entre os saberes. Uma espécie de outro renascimento em que floresça um novo humanismo e individualismo, ambos destituídos de qualquer pathos romântico. Mas, ainda associados à modernidade de que Molinuevo é um sagaz intérprete. A filosofia no seu sentido mais puro e mais prático é aquela em que se empenha. A alta cultura que não tem pudor de assim se definir. A alta cultura que volta forte e renovada depois de haver sido subestimada no século 20 em benefício de uma cultura de massa que vulgarizou (no sentido pior do termo) as sensibilidades, sem conseguir vulgarizar (no sentido original) o pensamento. No que arregimenta Molinuevo, cultura deve ser entendida não como o lugar-comum das “atividades culturais”, mas na sua melhor especificidade universitária: pesquisa e enriquecimento dos sa-
beres. Mas, com uma visão nada esotérica, em que campos, mesmo os mais difíceis como a Física, podem ser abordados de modo a encontrarem acolhida num público mais amplo que o da academia. Molinuevo defende uma idéia que certamente agradaria a um antropólogo como Gilberto Freyre (até agora o mais sagaz leitor da filosofia espanhola no Brasil). Há dois tipos de modernidade. Um, anglo-saxão, outro, latino. “O futuro da Europa é a Iberoamérica”, ele diz. Com essa visão da filosofia como prática, compromisso, longe das torres de marfim, Molinuevo se aproxima outra vez de Ortega y Gasset cujas idéias trata de difundir. Apesar do grande prestígio que têm na sociedade obras como A Rebelião das Massas, ainda é pouco valorizado no meio universitário. “Ainda há pouco apego dos espanhóis por seus clássicos”. Se todo autor tem uma frase a que seu nome será sempre ligado, esta é a de Ortega: “o homem e suas circunstâncias”. Nenhum filósofo melhor do que ele para compreender diversos aspectos da contemporaneidade. Talvez venha a ser também o mais adequado para cimentar a modernidade da Europa alimentada da América Latina, onde ele esteve por 13 vezes. Molinuevo, como Ortega, afirma o poder emancipador da cultura. Neste século, é provável que o pensamento cada vez mais se empenhe em realizar uma espécie de humanismo tecnológico. Se isto se confirma, favorecerá uma tese orteguiana de que a tecnologia é uma nova natureza. Tudo já muito longe das bases românticas do pensamento. A Espanha sempre teve uma visão do tempo muito original e própria. Era o que pensava Gilberto Freyre. Era o que fazia Ortega y Gasset quando, diferentemente de conjugar como Heidegger (vide Ser e Tempo), “somos tempo”, diria “somos nosso tempo”. O tempo de uma modernidade entranhada no presente, inseparável do seu momento. Textos em espanhol traduzidos por Marcelo Pérez e Sidney Rocha e condensados pela Redação
Continente Multicultural 93
ENTREMEZ
Brigam Espanha e Portugal no sertão do Ceará
O
O velho sangue ibérico, diluído em gerações, é sempre o de espanhóis e portugueses, disputando pedaços de terra
historiador cearense Capistrano de Abreu sugere um estudo mais aprofundado da colonização dos sertões brasileiros. Ressente-se que a maior parte da nossa historiografia não vai além do litoral. Isto é compreensível porque foi no litoral que cresceram as grandes cidades e escolas, ficando os sertões num isolamento que só diminuiu com o avanço das estradas e dos meios de comunicação. Esse desterro em que viveram populações inteiras justifica a permanência de hábitos alimentares, narrativas orais, cantos e danças. Jorge Luis Borges afirmava não ter encontrado o Oriente em Israel, encontrando-o na Espanha. Da mesma forma podemos
afirmar que é possível encontrar um Portugal e uma Espanha que não mais existem, em sertões nordestinos esquecidos no tempo, vivendo medievalmente à margem da história. A literatura brasileira mais fiel a uma épica sertaneja é o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Ou será Os Sertões, de Euclides da Cunha? Em ambos, o tema da guerra é o motivo da narrativa. No primeiro, um romance, uma disputa entre bem e mal, os bandos de jagunços de Joca Ramiro e do Hermógenes; no segundo, um livro de sociologia e história, a mesma disputa entre bem e mal, representada no povo pobre de Canudos e nas forças policiais da riqueza e do poder instituído. A Guerra de Canudos significou mais para Euclides da Cunha que para a história
Ronaldo Correia de Brito 94 Continente Multicultural
política do Brasil. Euclides criou uma grande obra e os políticos e poderosos continuam indiferentes aos humilhados e ofendidos. Três livros sem maior repercussão na vida literária do país, nem mesmo nas cidades onde foram criados, ilustram como vivemos à margem da nossa história: O Clã dos Inhamuns, do cearense Nertan Macedo; O Tratado Genealógico da Família Feitosa, do também cearense Leonardo Feitosa; e Os Feitosa e o Sertão dos Inhamuns, do brasilianista Billy Jaynes Chandler. Neles, conhecemos um pouco da colonização do Ceará, ocorrida a partir do final do século 17, e constatamos o que afirma o poeta Mário Hélio, que as histórias sertanejas em nada ficam a dever à épica e à tragédia gregas. Duas famílias, os Monte e os Feitosa, durante anos guerreiam entre si, disputando terras e poder, nos sertões dos Inhamuns, Cariri e Icó, aliadas às tribos indígenas locais. O território da guerra é maior que o de muitos países europeus. O curioso da narrativa é que um pedaço da história de alémmar é transposto para as bandas de cá do Nordeste. Os Monte eram cinco irmãos, dois homens e três mulheres, de origem espanhola, que vieram da Europa, fugindo do rigor das perseguições da Inquisição. Dois deles, Geraldo do Monte e sua irmã Isabel, internaram-se nos sertões de Pernambuco e vieram ter ao Ceará. No engenho Currais de Serinhaém, em Pernambuco, residiam os Feitosa, de origem portuguesa, que se comprometeram gravemente no levante dos Mascates do Recife. Para evitar a perseguição que se fez aos brasileiros que entraram nesta sedição, fugiram para o interior do Ceará, onde se fixaram nas proximidades de Icó. O relato é dos historiadores citados. O destino faz com que essas duas famílias se encontrem e se cruzem. Isabel, irmã viúva de Geraldo do Monte, casa com Francisco Feitosa, da família de Serinhaém. A trama está armada. Questões de honra e disputas pela terra colocam os Monte e os Feitosa
em palcos diferentes. A Ibéria se transpõe para as terras secas dos sertões cearenses. A Espanha representada por perjuros e Portugal, por insurrectos. Guerras e rivalidades seculares podem se continuar na paisagem de angicos, aroeiras, imbuzeiros, jucás e pereiros; e no leito seco de rios que só correm no inverno. Ao invés de castelos de ameias, casas de taipa de cumeeiras altas, só mais tarde substituídas por casarões alpendrados de tijolo, alguns com pedestais de mármore vindos da Itália. No lugar de armaduras e brasões de metal reluzente, roupas de couro rude, dos rebanhos apascentados no planalto. Os luxos de ouros e veludos só irão aparecer depois. No início, só existem a dureza da terra, a lei bárbara, a solidão. Matanças infindáveis para garantir o poder. A união proposta pelo casamento degenera em guerra. O velho sangue ibérico, diluído em gerações, é sempre o de espanhóis e portugueses, disputando pedaços de terra. É também possível que a guerra entre Tróia e Grécia tenha significado mais para Homero, que para os gregos. Homero escreveu o seu poema, que fixa o idioma clássico, organiza a mitologia, arruma os deuses no Olimpo. Os bravos aqueus ou morreram nos combates ou em casa, velhos e nostálgicos. Sem Homero, eles não teriam existência, cobertos pela poeira do esquecimento. A guerra sertaneja entre Montes e Feitosas já rendeu alguns livros. Poderá render muitos outros, pois sobram enredo e mistério. Falta o olhar sobre a nossa história, para que não aconteça o que canta Gerardo Melo Mourão: “Iam caindo: à esquerda e à direita iam caindo; ...primeiro os que já eram lenda na memória dos velhos, depois os avós de meus avós, porque antes tombavam hierárquicos e cronológicos”. Caindo todos no esquecimento da nossa pobre história de Nação. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
Continente Multicultural 95
ÚLTIMAS PALAVRAS
Apenas uma
dor esquecida
N
ão sintamos mais as dores da tirania, do embargo da liberdade. Fome e fascismo, a morte e nunca esperança. Lembremos apenas dos resultados provocados pela ira sensitiva de homens que buscaram no pensamento e vontade os direitos de seus povos, de seus países. ‘A Espanha me dói – troava o pensador e filósofo ibérico Miguel de Unamuno, quando, saído da geração de 1898, brilhante contestador do franquismo (desde a ascensão do ditador Francisco Franco), declamava conferência para a estudantada da Universidade de Salamanca, em constante processo de avidez pelos ventos da libertação tirânica de seu povo na força da convicção pela luta democrática. Eram tempos de quixotismos políticos no mundo europeu. Eras de erros de juízo, senão de moral. Certamente foram os exemplos que Maquiavel propôs aos príncipes, malfeitorias que lhe não devem ser perdoadas. Pois, em vez de pretender fazer-lhes apenas soldados, fizeram-nos completos Dons Quixotes, com a imaginação cheia de campos de batalha, de entrincheiramentos, de poliorcética, de dispositivos táticos, de passos e de fortificações. Espanta-me e a todos como Frederico II, o mais colérico anti-Maquiavel, não tivesse o mesmo influído, com seus conselhos, aquele regime absolutista espanhol, não o determinando a se auto-alimentar mais de sopas de avant-faces, de pastéis de bombas, e de tortas em ouvrage à corne, e de que o não tenha feito atacar moinhos de vento, carneiros e avestruzes, como o amável extravagante que foi Miguel de Cervantes. Unamuno chorou sua dor com discretos lampejos de otimismo, então concitando jovens que sonhavam com sua gente livre, em pequenos rasgos de esperança. Depois, pôde descansar em
paz sob os próprios louros de lições que dedicara à História, acatando o silêncio como sopa no mel, exaltado por Quixote ao aconselhar seu fiel companheiro Sancho Pança: – Pois lá essa, Sancho, não és tu, não és o silêncio acertado, mas és a palração e a teima disparadas. E, por tudo isso, o grande filósofo guardou aquele seu famoso rifão que acudiu sua idéia, de tão proposital porque dele não mais lembraria. Bem se aplicava essa fase política com a do nosso Brasil. À luz da queda do Estado Novo em 1945, plena vivacidade eleitoral a incitar os valores da liberdade, Gilberto Freyre, tanto quanto o mestre espanhol, bradou do alto do palanque do candidato à presidência da República, brigadeiro Eduardo Gomes, lembrando o velho pensador e citando-o com sua famosa frase em praça pública, abrindo sua oratória diante de milhares de pessoas, arrematando que o Brasil também lhe doía. Evidente que o esquecimento daquela dor episódica não desmancharia a morte de uma geração, contudo, gerou o mestre brasileiro a compor um enlevo à esperança em Salamanca. A atualidade nos mostra quão valiosas foram as discrepâncias políticas dos dois países de origem latina no século passado, dando provas ao mundo que não mais reservam lugares para quixotismos ideológicos a unirem qualquer regime ao poder do desastre. A monarquia, que seduziu Nabuco um dia, renasceu no solo espanhol – esplendorosa cor de democracia – e a liberdade republicana parece ter raiado de vez no horizonte brasileiro! Viva o meu Brasil! Viva a Espanha!... Como me gusta España!
Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural