Continente #006 - Brennand nu

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CONTEÚDO

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Especial Confissões de Brennand Artista define-se sobretudo como um pintor, faz revelações íntimas, cede textos inéditos e dá um roteiro de como visitar a Oficina da Várzea

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Capa: foto Breno Laprovitera

Século 21

Memória

A metáfora do muro

História e permanência

Muralha virtual na fronteira México-EUA aponta os limites da integração econômica entre as Américas do Norte e do Sul

Obra do historiador Amaro Quintas, que faria 90 anos, examina os valores fundamentais do homem dentro de critérios científicos

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Narrativa

Marco Zero

Um homem comum

São João estilizado

No centenário do nascimento de José Lins do Rego, um perfil humano do vigoroso ficcionista, que foi péssimo aluno e torcedor fanático

Quadrilhas matutas estilizadas, que já eram 300 em 1993, estão incorporando até o “funk” em seu repertório

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Contos

Personagens

Sangue novo

Segredos do coração

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Filosofia Obra esquecida Mulato e pobre, Tobias Barreto pode ter sido discriminado no Brasil por suas tendências germanófilas, mas foi enaltecido por revista alemã

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Conversa franca Visão do Paraíso O filósofo espanhol Eduardo Subirats desanca a Europa, resgata o Antropofagismo e diz que o Paraíso existe na América Latina

A correspondência entre o escritor belga Georges Simenon e o cineasta italiano Federico Fellini revela buscas e inseguranças dos criadores

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Dossiê

Poesia 90

O Rei do Baião

Heloisa Buarque de Hollanda detecta uma inédita diversidade de vozes que se expressa na forma de um irresistível multiculturalismo

Especial enfoca fatos curiosos da trajetória de Luiz Gonzaga, sua influência na música atual e traz CD com gravações raras

Sabores pernambucanos

Entremez

Milho e canjica

Ligações profundas

Festa junina tem seu ponto alto na comida, do milho assado na fogueira à canjica esparramada sobre as mesas

Entre a família Bach e a família de José Aniceto, do Cariri, há em comum o sentido do sagrado, a arte incorporada ao comum das coisas

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Sociologia

Últimas palavras

Raça e exclusão

Realezas

Marco Maciel advoga combate à perversa espiral da exclusão social e discriminação racial, especialmente no campo econômico

Todos querem ser reis, inclusive os políticos e os jovens, mas que jovens reis são esses que não cultivam sonhos e flores?

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Página 74

Crítica da cultura

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REPRODUÇÃO / ACERVO SAMUEL VALENTE

Trechos inéditos de quatro novos contistas brasileiros, inclusive um que admite a genialidade: "Tenho um gênio forte!”

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel

Arte Cartas

Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manoel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira Editor de Arte Luiz Arrais Editoração Eletrônica André Fellows Ilustrador Lin Secretária Neuma Kelly Silva Colaboradores: Alberto da Cunha Melo, Alexandre Belém, Álvaro Motta, Carlos Sinésio, Célio Jr, Breno Laprovitera, Cristiano Ramos, Débora Nascimento, Edson Nery da Fonseca, Érika Moribe, Evaldo Cabral de Mello, Fernando Freyre, Ferreira Gullar, Francisco Brennand, Fred Jordão, Geyson Magno, Heloísa Buarque de Hollanda, Lalo de Almeida, Leo Caldas, Luiz Carlos Monteiro, Marcelino Freire, Marco Maciel, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Marcos Cirano, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mascaro, Renata Mello, Rivaldo Paiva, Roberta Guimarães, Roberto Rômulo, Ronaldo Brito, Samuel Valente, Weydson Barros Leal Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Elizabete Correia, Emmanoel Larré, Geraldo Santanna, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Mauro Lopes, Rafael Rocha, Roberto Bandeira, Sílvio Mafra e Zenival Webmasters Carlos Eduardo Glasner Douglas Rocha Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco (ISSN 1518-5095) Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 Assinaturas Carina Aguiar Leal Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 – fone/fax (81) 3222.4130 e-mail: cepecont@fisepe.pe.gov.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE e-mail: depinfo@fisepe.pe.gov.br Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Caixa Econômica Federal Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Vai fundo Continente é sem dúvida uma das melhores coisas que já surgiu na imprensa pernambucana. Do aspecto gráfico ao conteúdo editorial, passando pelos bem elaborados textos, a revista merece vida longa, pois vai fundo numa cobertura cultural que há muito se afastou dos veículos do dia-a-dia. Patricia Raposo – Recife – PE Picuinhas Estou encantada com a revista. Parabenizo Geneton Moraes Neto pelas entrevistas com Oscar Niemeyer e Caetano Veloso. O primeiro é um ser humano realmente belo, diretamente proporcional ao artista; do segundo, de quem sou fã e possuo quase toda a obra, percebi que a relação é absolutamente inversa: o “grande artista” é uma pessoa cheia de picuinhas e sentimentos de vingança. Num país com tantas injustiças e desigualdades, não dá para desvincular a figura dos nossos ídolos com o compromisso social, a coerência de idéias e a maneira de ver as pessoas no mundo. Salve Niemeyer! Márcia Moura – Arcoverde – PE Pré-História Não conhecia ainda a revista até que me chamou a atenção a matéria de capa da edição de fevereiro (Pré-História do Nordeste), principalmente porque não é toda revista que enfoca as riquezas pré-históricas do Brasil. Gostaria muito que outros temas sobre Pré-História fossem abordados, como, por exemplo, o trabalho da Arqueologia e as civilizações antigas. Maria Carolina Wanderley – Recife – PE Vida longa Despertaram-me grande entusiasmo os exemplares de Continente Multicultural que me foram enviados. Parabenizo seus editores pela belíssima revista. Faço votos de que tenha vida longa e todo o sucesso de que é merecedora. Yolanda Gadelha Theophilo – Fortaleza – CE Canibalismo Gostaria de ver abordada na revista a questão do canibalismo ou antropofagia: existiu ou não? Acho que foi uma lenda útil aos dominadores. Marcus Odilon Coutinho – Recife – PE Cobrança Considero boa a revista em todos os aspectos e espero que continue abordando assuntos históricos. Sugiro que se faça a cobrança de assinaturas via cartão Visa. Clarisse Thomazi – Lajeado – RS


EDITORIAL

BRENO LAPROVITERA

O tempo Gonzaga, o espaço Brennand

Fileira de Pássaros Rocca, figuras totêmicas que guardam o templo central da oficina de Brennand

A

Bíblia fala de um deus ceramista que fabricou o homem de barro e sopro, com a sua imagem e semelhança. A versão da Mesopotâmia é mais nua: os homens foram criados com lama e sangue; para aliviar a carga de trabalho dos deuses. A biologia se esmera em reescrever essas e outras metáforas. No bairro da Várzea, escondida num retalho de floresta, nos arredores do Recife, um pintor e escultor reinventa tudo isso. A sua história já é bem conhecida: Brennand transformou uma velha fábrica em oficina de cerâmica e ateliê de pintura. Talvez seja a sua vocação fundamental: metamorfosear. Transformar as coisas em outras. Associá-las, fundi-las, com capricho. Como resumir o significado da sua oficina? Um festim alegórico e despudorado, para tornar idéias visíveis e palpáveis. Lá verbos se fazem carne de barro e tinta. Um olhar cínico diria: são formas que aspiram à monstruosidade. Mas, “de nada serve ser um monstro se não se é também um teórico do monstruoso”, disse o filósofo Emil Cioran (1911-1995). Talvez seja assim com Brennand, que não gosta somente de fazer, delicia-se em explicar as suas produções. É homem das imagens e palavras que fez da misantropia uma espécie de casa. Tudo o que no silêncio recordar hierática solidão e tudo o que nas palavras lembrar um povoamento de sombras será um dos seus retratos mais exatos. O olhar menos inocente que existiu é esse de Brennand. Como o poeta puro imaginado por Fernando Pessoa, ele “vê como um danado”, porque toma as coisas com a intimidade dos sentidos. Uns versos de Octavio Paz, de La vista, el tacto, falaram da arte de Balthus nestes termos: “es una mano que se inventa/ um ojo que se mira en sus inventos./ La luz es tiempo que se piensa.” O mesmo Balthus que um dia falou da pintura como encarnação: “Dá vida e corpo à visão que a suporta.” Definiu sem saber a arte de Brennand. Também de sopro, mas de outro tipo, é a arte de Luiz Gonzaga. Virtuoso de um instrumento chamado sanfona ou acordeão, ele respirou música desde muito jovem. Nascido em Exu, cidade do interior de Pernambuco onde a morte havia esquecido do tempo e agia como na Idade Média, ele tratou de ganhar o mundo. Conseguiu dinheiro, fama e algo ainda melhor: a nobreza dada pelos que compravam os seus discos e cantavam a sua música. Luiz Gonzaga é um dos mais importantes nomes da música brasileira, diria um autor de dicionários ou fiel discípulo do Conselheiro Acácio. O seu significado ultrapassa, naturalmente, tudo isso. Além do êxito que obteve como cantor e compositor, conseguiu o máximo a que pode aspirar um artista inseparável das tradições populares: permanecer na memória de sua gente. Atenta a tudo isso, a Companhia Editora de Pernambuco encarta neste número um CD especial. Um presente de São João para os leitores: o som do Rei do Baião, as cores e palavras do deus pagão da Várzea. Continente Multicultural 3


ESPECIAL

Brennand devassa a forma


BRENO LAPROVITERA

A grande arte é sempre inesgotável. E o artista que a engendra pode sêlo também. De Brennand há catálogos, livros, filmes, reportagens e entrevistas, um diário escrito ao longo de 50 anos, sem falar dos painéis, esculturas e quadros espalhados pelo Brasil e pelo mundo, e do magnífico templo que ergueu na Várzea. Brennand está preparando uma exposição no Porto, Norte de Portugal, no último quadrimestre deste ano, a convite da Fundação Júlio Rezende. Lá, vai expor principalmente desenhos e pinturas sobre papel. É sobre esse aspecto de sua obra – um pouco obscurecido pela exuberância do seu trabalho como ceramista e escultor –, que ele fala para Continente Multicultural, discorrendo, ainda, sobre o início de sua vida como artista, quando descobriu o pintor Balthus antes mesmo que os franceses, e quando teve a chance – perdida – de adquirir 60 quadros de Francis Picabia. Revela suas opiniões sobre assuntos controversos, como pornografia, e o processo de elaboração de uma de suas peças mais emblemáticas, o Pássaro Rocca. Traça, também, um mapa de sua formação cultural, feita de escritores e pintores; presenteia-nos com um texto inédito sobre Darel Valença; dá um roteiro de visitação do seu Museu/Oficina; e revela-se poeta. Aliás, um bom poeta.

Marco Polo

Colaborou Weydson Barros Leal


O desejo de rep Nunca deixei de pintar e desenhar. Nesta exposição que estamos programando para o fim do ano, na cidade do Porto, eu gostaria, para enlarguecer o espectro da mostra, ao invés de expor só desenhos, como propôs Júlio Rezende – se é que se considere desenho só aquilo que se faz em preto e branco, o que não é verdade – ampliar para uma exposição de papéis: pintura ou desenho sobre papel. Seria um suporte leve. O Júlio Rezende ficaria muito contente se pudesse levar algumas cerâmicas, mas a Fundação Júlio Rezende não teria como bancar o transporte. Mas aí entrou no meio uma pessoa que é um verdadeiro elo de ligação entre Portugal e Brasil, que é Zeferino Ferreira da Costa (empresário da construção civil). Ele disse: “Que isso não seja dificuldade”. Então as cerâmicas deverão ser expostas nos jardins da Fundação, que sabiamente se chama Lugar do Desenho! Ninguém pode passar por ne6 Continente Multicultural

nhuma arte sem passar pelo desenho. Esses artistas que fazem instalações, no momento em que colocam garrafas de coca-cola vazias no chão, eles arrumam – e esta ação já é desenho.

A paixão do papel Ao pintar sobre papel me sinto mais à vontade, é como se não houvesse compromisso. Não é o quadro realizado, o “quadro”, que é um verdadeiro fantasma para todos os artistas. É como se o fracasso não significasse nada, por ser uma coisa descompromissada. Tenho notado que reajo melhor diante do papel do que diante da tela ou da madeira. Toda vez que vou pintar um quadro tenho que ficar diante das minhas expectativas e promessas de ser um pintor. E quando estou trabalhando sobre papel sei que isso é um estudo. Durante o período dos salões acadêmicos, cultivava-se muito a paixão pelos estudos. Era quase fa-


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tal você ver um grande colecionador dizer: “Eu tenho os seus melhores quadros! Eu tenho o original, que comprei no salão, por uma fortuna, mas tenho os esboços, os estudos preparatórios, que são muito superiores ao quadro definitivo”. Quase sempre era verdade. Porque o quadro definitivo era excessivamente rebuscado.

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roduzir as coisas No alto, esculturas de Adão e Eva, no Museu/Oficina de Brennand, na Várzea. Ao lado, menina com chapéu, um dos temas da pintura atual do artista

Um caju com dez metros Hoje em dia, meditando sobre minha fase floral, tenho observado que ela era toda uma preparação para murais. Ela nunca foi propriamente pintura a óleo. Ou era cartão para tapeçaria ou preparação para grandes murais cerâmicos. Era uma coisa que ocorria com grande felicidade, porque um dos problemas dos murais era a ampliação. Nem todas as formas permitem bem a ampliação e uma delas é a forma humana. Não passa a ser gigantesca ou colossal, mas alguma coisa grotesca. Mesmo a esContinente Multicultural 7


Como nas o Pássaro R

cultura egípcia que amplia a forma, não desmesuradamente, mas bem mais que os gregos, termina com cabeça de bicho. Isso absolve a escala fora do humano. Já a forma floral – flores, frutos, sementes, caules, folhas, raízes – permitia a ampliação desmesurada, não só plasticamente falando. Eu fazia um caju com dez metros e ninguém achava ruim.

Propostas da natureza

Detalhe de desenho com motivo floral. Fase importante na carreira do artista

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Eu fiquei conhecido como pintor de cajus, eu deformava os cajus o quanto podia. Alongavaos, inchava-os, fazia castanhas diminutas... Mas, quando eu vi um livro – acho que de Mauro Mota – com ilustrações em cores de Manoel Bandeira, o desenhista, sobre todas as espécies de cajus que existem no Nordeste, eu verifiquei que jamais poderia ultrapassar as propostas da natureza. Todas aquelas supostas deformações – com a liberdade de um desenho que nunca tem que se parecer exatamente com a natureza – já existiam. Veja bem, a natureza não deforma, propõe formas. É muito difícil, para não dizer impossível, um artista criar uma forma nova. Pode criar variantes, porque tem uma linguagem singular.

O ato da criação é sempre muito complexo. É nutrido não só de elementos poderosos, existenciais, marcantes, mas também de influências fortuitas e espúrias. Essa coisa do ovo e do Pássaro Rocca, o defensor, o abutre, vem de duas vertentes. Vem da leitura de Simbad, o Marinheiro, uma das histórias das Mil e Uma Noites, onde tem o encontro da ilha rochosa, dos gigantescos ovos, a reação dos pássaros que jogam pedras nas naus, que naufragam. Isso me impressionou muito. O pássaro que defende a cria e defende a vida. No processo em que eu estava pensando no que iria colocar aqui, no Templo, em torno do que isso tudo iria girar, comecei a pensar no ovo e depois no guardião, na sentinela. Nessa época li um livro que tinha trazido de Paris, mas que não tinha lido ainda. Eram os Cadernos de Infância, de Leonardo da Vinci. Há um quadro de Leonardo que está no Louvre – Sant’Ana, a Virgem Maria e o Menino Jesus – no qual Freud teria visto a silhueta de um abutre perfeitamente desenhada no manto da Virgem, com cabeça, bico, pescoço, corpo, asas, patas e cauda. E que ele teria se aprofundado neste estudo, tendo visto os desenhos preparatórios da pintura, e chegando aos Cadernos de Infância, de Leonardo. Ele descobriu que Leonardo, quando tinha dois anos de idade, estava chorando de fome, quando um abutre entrou pela janela, aproximou-se do berço e lhe deu de mamar com a cauda. Isso impressionou enormemente Freud. Ele desenvolveu toda uma teoria sobre isso. Foi buscar nos egípcios um deus-abutre, que se deixava fecundar pelo vento. Esse deus chamava-se Mut. E Freud, que escrevia em alemão, interpretava este nome como mutter, mãe. Com o tempo, verificou-se que Freud cometeu um gravíssimo equívoco, porque na tradução do italiano para o alemão, alguém teria confundido a palavra milhafre, que é um pequeno pássaro de rapina que existe em toda a Europa, com abutre. O que fez Freud pensar que era um abutre no livro de Leonardo, mas era um


sceu Rocca

As esculturas secretas

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milhafre. Há pessoas que são especialistas em querer desmoralizar um gênio. Mas, por mais que eles estejam errados, deram sua contribuição poderosa. Independente disso, essa coisa me impressionou muito, e toda a simbologia que existe em torno do ovo, como emblema de eternidade, o ovo cósmico, forma primordial na qual todas as formas podem caber, isso foi organizando meu pensamento em torno da reprodução. A reprodução como forma e essência da eternidade, que não tem antes nem depois. Os desenhos dos Pássaros Rocca (abutres) nasceram de uma visão de algumas faixas de tinta branca, pintadas sobre o asfalto negro, dispersadas na madrugada pelas rodas de um caminhão em volutas e espirais, num grafismo que lembrava retorcidos troncos de vértebras, encimados por uma cabeça de abutre. Do alto de um edifício verifiquei esta cena e fiz um simples desenho a lápis, logo em seguida jogado numa gaveta e só recuperado dez anos depois, servindo para edificar as figuras totêmicas dos guardiões do templo. O dardo da chama sobre a argila modelada concedeu à sua textura o brilho luzidio da carapaça dos besouros cor de coral. Foram necessários trinta anos para que a mais nova dessas sentinelas, que hoje reside no eixo do grande parque, tomasse, finalmente, a cor branca agora resplendente ao sol.

Curioso é que ninguém via que aquela pintura floral já era uma preparação para a minha escultura. Eu me recordo de uma exposição em 1949, na Galeria das Folhas, em São Paulo, com monotipos. Eu fazia a impressão e desenhava sobre ela para que as duas coisas se interpenetrassem. Já nessa época eu tinha verificado o quanto as flores e frutas tinham uma semelhança com a anatomia do homem e da mulher. E tirava partido disso. Curiosamente, ninguém nunca se apercebeu. Achavam que eu era um pintor decorativo. Ninguém nunca observou que ali estavam as formas nascentes da minha escultura. Nas esculturas ficaram muito mais explícitas. Mas estavam ali, de uma maneira velada, secreta, às vezes até inconscientemente, em todos os desenhos. Eu não posso, hoje, olhar um desenho dessa fase floral que eu não veja exatamente isso. Uma coisa que me agrada fazer hoje é pegar uma quantidade enorme desses desenhos florais, que têm essas formas veladamente eróticas, sexuais, e desenhá-las ou pintá-las da maneira como faço atualmente. Porque aquele mundo subterrâneo vai me fornecer fios condutores para eu acertar o que estou fazendo agora, e que não seria propriamente uma pintura ou desenho realista. A beleza da mulher adolescente tem sido sistematicamente explorada por Brennand nos seus quadros mais recentes

(Depoimento de Francisco Brennand) Continente Multicultural 9


Título satisfaz curiosidade Na pintura de gênero chegava-se ao absurdo de colocar o título: Mulher coçando, por debaixo da camisola, a mordida de uma pulga. Aí, as pessoas que apreciavam diziam: “Que realismo! Olha a dobra dos panos, parece mesmo que ela está se coçando!” Havia esses exageros, então quando o artista denominava sua obra de Sem Título, tinha suas razões. Mas veja a coragem dos pré-rafaelitas. Num momento em que a pintura francesa se agigantava no neoclassicismo, e já começavam alguns sintomas da Escola de Paris, a chamada pintura moderna, os ingleses insistiam na pintura romanesca, com títulos

etc. William Moris, Dante Gabriel Rossetti – que também era um excelente poeta – faziam parte desta turma. Recordo-me de uma pintura chamada A cega. Uma mocinha cega está num campo e, se não me engano, atrás dela há uma paisagem com um belíssimo arco-íris. Eles se pensavam pintores realistas, mas jamais desdenharam o título. Ofélia é um quadro magnífico. A modelo posou numa banheira. Mas o pintor se esqueceu dela e a água foi esfriando. A mulher pegou uma bruta pneumonia, só faltou morrer. Por causa da busca do pintor pelo realismo. Acho que o título satisfaz a curiosidade das pessoas e mostra a coragem do pintor ao intitular suas obras.


A realidade multiplicada

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É evidente que a fotografia revolucionou a pintura porque, de uma certa forma, fez com que os pintores começassem a prestar atenção à multiplicidade da realidade, que não é só a realidade fotográfica. A fotografia preencheu um vazio, um velho desejo do homem, que queria reproduzir a natureza com uma precisão realista. Coisa que era conseguida pelos grandes pintores através de um desenho tão rápido quanto um relâmpago. Como conseguir desenhar uma figura que se projetasse de um quarto andar antes que chegasse embaixo. Entretanto, hoje se verifica que todos os pintores

renascentistas erraram neste sentido de realismo, mas era de tal forma certo no sentido da pintura (porque um cavalo deixava de ser um cavalo para tornar-se uma pintura) que ninguém observava isso. Numa das batalhas de Paolo Uccello, um dos grandes pintores renascentistas de batalhas, há um cavalo cujas patas do mesmo lado estão suspensas. O que seria impossível, porque ele tombaria. Mas ninguém notava isso. Cézanne era um pintor que, por timidez, não se sentia bem diante do modelo, a não ser de sua própria mulher, da qual ele exigia a imobilidade de uma maçã. Então ele usava fotografias. Foi encontrada uma fotografia que ele utilizou na feitura de um banhista. Ele também usava manequins móveis. Você nota nas pinturas de Cézzane um desleixo em relação a esta realidade chamada de luxuriosa ou lasciva do modelo. Os banhistas dele não têm sexo, você não sabe se são mulheres ou homens.

Painel cerâmico em que Brennand utiliza motivos florais e figura

Não existe quadro terminado Ninguém conhece o Van Gogh do ano que ele passou em Paris, quando mudou sua paleta. O Van Gogh da Holanda é quase marrom, escuro, mas o desenho é o mesmo. Aqueles cortes, em que ele feria a tela com o pincel, cortavam a tinta e davam aqueles gomos duplos, o que já funcionava como desenho. Quando ele pintava um trigal, não precisava dar traços para imitar o trigal. O trigal já estava todo ali, hachurado no próprio desenho. Seu desenho parece tosco, grotesco, mas ele desenhava prodigiosamente bem. E tem uma frase notável: “Graças a Deus, de uma certa maneira, eu nunca aprendi a pintar”. Uma frase paradoxal para um pintor que foi um gênio. Presumo que ele quer dizer que a pintura não se resume em aprender a pintar. Picasso parafraseia isso, dizendo: “O que me salva é que cada vez eu faço pior”. Isto é, não é fazer bem o que é melhor. As maiores conquistas de um pintor representam o maior perigo para a sua natureza de artista. É preciso abandonálas. Quando você descobre isso, vai encarar a tela como se fosse a primeira vez. E vai descobrir que não sabe pintar. Esta deve ser a sensação do pintor, do escultor: eterna frustração. Que leve até o fim, que suponha que seu quadro está terminado. Para Balthus não existe quadro terminado. Existe quadro abandonado. Continente Multicultural 11


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Bárbaros e mágicos são os deuses da pintura Se de um lado Gauguin reina como uma espécie de deus bárbaro, cujos ensinamentos não podem ser descuidados – quase como uma força religiosa (jamais les grecques), numa outra vertente do meu espírito situa-se toda tradição européia ocidental (a qual Gauguin também não ignorou), justificando certos aspectos mais sofisticados e artificiais de minhas escolhas. Às vezes, diante de um quadro de Gauguin, eu fico inibido, sem saber como olhá-lo, porque me vem sempre à lembrança o momento em que, naquelas ilhas, cada vez mais distantes, ele pegava a sua tela, o seu cavalete e os escassos tubos de tintas que ainda possuía, para dar início a um novo quadro, que para ele se assemelhava ao próprio ato da criação do mundo. O seu enorme isolamento ao pintar, sem um futuro plausível (porque ele deveria ir até o fim, mesmo não havendo um olhar sequer para dizer que o quadro havia sido concluído e que era belo), não estava na força de um homem comum, e sim, na de um santo ou de um profeta. Que vigor admirável para persistir nesta solitária certeza – que um dia acabaria por fazê-lo fraquejar e tentar voltar à Europa, chegando a escrever ao seu amigo Daniel e esperar meses por esta resposta: “Você não pode trair a sua legenda e não deve voltar”, foi tudo o que disse o seu fiel amigo. Ainda falando desse mestre da pintura moderna, inclusive por sua atitude desdenhosa em relação à Europa, eu diria que até sob o ponto de vista geopolítico, ele prefigurou a existência do “terceiro mundo”. Quanto ao seu controvertido desentendimento com Strindberg, sem diminuição alguma do escritor, eu ousaria fazer um ligeiro comentário depois da leitura de O Inferno. Por várias razões não

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mou, porque nunca se interessou pela figura humana. Por outro lado, se Picasso se projeta mais do que Braque, que foi um pintor tão grande ou maior que ele, é porque Picasso se interessava por assuntos humanos. Ele vivia a vida. Amava as mulheres e as pintava, tinha filhos com elas e os pintava todos, recebia um cachorro ou uma cabra de presente, pintava o cachorro e a cabra. Ele não era um sujeito isolado da vida, ao contrário, vivia seus momentos. Pintava touros, amava as touradas como bom espanhol. Me parece que Braque era bem francês, um indivíduo de meditação

fica difícil concluir a natureza da “recusa” ao pedido de Gauguin. Essa recusa não corresponde apenas ao “não posso”, ou mais brutalmente ainda ao “não quero”, ela é de uma natureza diversa e muito mais grave. No caso, a insistência de Gauguin é que foi descabida. Onde é que o mestre estava com a cabeça quando não se apercebeu que o amigo escritor não era a pessoa ideal para escrever apresentações de catálogos... Talvez mesmo tenha sido por esta razão que o endiabrado Gauguin se viu tentado a insistir como se fosse possível arrancar daquela criatura não um simples depoimento, mas seus mais que secretos pensamentos, sempre voltados para aqueles que pintam ou escrevem “com alma de crente”. Nessa e em tantas outras situações, estes dois grandes artistas cresceram consideravelmente aos meus olhos. Como Jacó, eles lutaram contra o Anjo e perderam. Todos nós perdemos nessa luta, embora dela não tomemos consciência. Eles não, lutaram conscientes até o fim e isso me arrebata.

Em El Greco a cor constrói a forma Há uma anedota sobre El Greco – que teria sido aluno de Tintoreto, se é que alguém poderia ter sido professor de El Greco. Dizem que antes de tomar o caminho de Madri, onde estava a corte real, e depois Toledo, ele teria ido a Roma e visitado a Capela Sistina, onde teria visto os afrescos de Michelangelo. Eram afrescos praticamente recém-pintados, não estavam enegrecidos pelo tempo, e, depois, “limpados”, tendo ficado com cor de bombom, com violetas claros e verdinhos etc. Bem, Michelangelo era um colosso da forma. Então El Greco teria comentado: “Que esplêndido esboço para se pintar em cima!” Quer dizer, ele era realmente um pintor, no sentido veneziano. Nele, o que funcionava era a cor, que construía a forma. Não o desenho, à maneira de Michelangelo ou à maneira ingresca. É a velha fórmula de Cézzane: Quando a cor está na sua riqueza a forma está na sua plenitude. É a teoria veneziana, de Tintoreto, de quem El Greco a tinha aprendido. Na pincelada exuberante de El Greco, a tinta ultrapassa o desenho.

Olhando a nudez de uma figura idealizada, me dou conta do quanto Goya significava de diverso, de brutal, mesmo de impudente ao pintar as suas poucas figuras nuas. Refiro-me às Majas, quando toda e qualquer aproximação com as representações anteriores, vestidas ou nuas, parecem vãs. Uma visão cínica e terrível da nudez feminina que se distancia de toda a tradição tácita em que a beleza apenas sacraliza o tema do amor. Goya, ao que parece, vira a página da beleza idealizada no mundo antigo e nos propõe tal como o século 19 a concebeu, de Stendhal a Baudelaire, de Barbey D’Aurevilly a Schopenhaeur. Sabemos que o nu é extremamente raro na arte espanhola e que não se conhece, de todo, nenhum equivalente em quadros europeus, mostrando o mesmo modelo nu e vestido. É justamente neste testemunho da realidade sem disfarces que se caracteriza e impõe a revolução do nu em todo século 19.

Picasso, Braque e o humano Uma das razões de Picasso até hoje ser invectivado e incompreendido, por uma grande parte de pessoas, deve-se à liberdade que ele tomou com a figura humana. Liberdade que Braque nunca to-

REPRODUÇÃO

Goya: cínico, brutal, impudente

Na página anterior, a escultura em cerâmica O Feiticeiro, exposta no Museu/Oficina Ao lado, auto-retrato de Goya na velhice. O pintor espanhol dessacraliza o nu feminino, na opinião de Brennand


DAREL

O Cinto Vermelho “A arte acontece.” Whistler Pareceu-me oportuno lembrar o destino de algumas obras de arte, sobretudo daquelas que “as gerações vindouras não se resignam a esquecer”. Na realidade nenhuma herança cultural escapa dessa estranha destinação, contaminada sempre pela voracidade do tempo e pela reiterada nostalgia das interpretações. Por volta de 1971, surgiu numa revista francesa uma coletânea de opiniões sobre a Mona Lisa, reunidas por Jean Suyeux, que, segundo seus próprios termos, interessava diretamente a sociólogos e psicólogos que estivessem atraídos pela dita Gioconda e pelos mitos que até hoje ela suscita. Embora o intuito do autor fosse uma espécie de zombaria, não deixam de ser perturbadoras as asneiras e impropriedades ditas durante tanto tempo sobre uma só pintura e um só pintor. Ao lado de críticas e observações de um valor inegável como as de Stendhal e Walter Pater, sendo que o primeiro confundia a Mona Lisa com Herodíade, atribuindo o seu sorriso como endereçado à cabeça de João Batista, a maior parte dos comentários é contaminada das mais estapafúrdias alegorias. Napoleão, que conviveu com o quadro na sua própria alcova durante quatro anos, chamava-o de “Madame Lise”. Michelet advertiu os incautos contra os seus sortilégios e George Sand achava a Mona Lisa tão perigosa quanto a Medusa. Diga-se de passagem que a princípio sempre fui seduzido por estas atribuições errôneas – mesmo quando deliberadas –, encontrando nelas muito mais consistência e imaginação do que naquela sempre pretensa (mas nunca provada) realidade dos fatos. E, 14 Continente Multicultural

ainda por conta desses aparentes exageros (ou descuidos), é que não me canso de afirmar: coitada da obra de arte que não desperte de imediato equívocos, quimeras, mitos ou alegorias! Recordo-me de dois episódios ligados a diferentes situações que ilustram com perfeição estes “propósitos”. O primeiro deles aconteceu em Paris, no dia 4 de dezembro de 1982, e teve como conseqüência inevitável um hediondo crime de morte. Quatro meses antes do crime, numa mesa redonda em Tóquio, cujo assunto preponderante versava sobre erotismo, um jovem estudante japonês de nome Sagawa, disse que considerava a tela O Sonho, pintada por Gustave Courbet em 1853, um apelo ao canibalismo. E acrescentou: “O pintor, com ares de canibal, via os corpos femininos fortemente enlaçados como se fossem pedaços de carne comestível”. No depoimento à polícia francesa, depois do assassinato, o rapaz confessou sua “incontrolável paixão” que o levou em seguida à antropofagia exercida na pessoa de uma colega de estudos. O segundo episódio, narrado por um amigo escritor, aconteceu na nossa cidade, envolvendo também uma obra de arte, muito embora tendo como desenlace algo bem menos trágico, e por que não afirmar, um final quase feliz. Transcrevo, portanto, trechos dessa carta que me foi autorizado divulgar: “(...) Era uma noite incomum, pois não estava de forma alguma propenso a encontrar quem quer que fosse, muito menos ir ao encalço dessa jovem que eu havia amado no passado. Como não ignoras, eu completava 46 anos naquela semana e pouco ou nada esperava de novas relações. Contudo, pelas circunstâncias, estávamos de repente os dois, face a face, naquele ridículo quarto de hotel onde ficamos várias horas, na tentativa mais grotesca de um possível entendimento. ‘No último arroubo de reconciliação, ela disse: O nosso tempo não passou. Ele está aqui e agora. Como não respondi a esse apelo timbrado de desespero e insensatez, passando em seguida a olhá-la grave e fixamente, sem procurar manter qualquer tipo de conversação, ela refugiou-se na bebida, o que evidentemente levou-a ao sono e ao abandono definitivos. Quanto a mim, constrangido e insone, deixei o quarto penumbroso e me encaminhei para uma pequena saleta contígua, que permanecia iluminada, à procura de repouso. Ainda de pé, olhando para uma das paredes fronteiras, me apercebi de duas gravuras


REPRODUÇÃO

Gravura de Darel Valença, artista pernambucano radicado no Rio de Janeiro

penduradas e sobretudo uma delas me prendeu a atenção. De repente, verifiquei que não estava só, pois havia bem no centro deste quadro uma moça envolta apenas por um largo cinto de couro vermelho a me espreitar lá do alto de sua deleitosa e pouco cândida brancura. Examinando com mais cuidado a moça do cinto vermelho, logo descobri na sua nudez muito mais do que um simples apelo erótico. Toda ela encerrava uma armadilha de significados alucinantes e aquele pequeno espaço do desenho transformava-se, aos meus olhos, num cenário diabólico: ‘(...) A moça rompe a cortina do desenho e se apóia agora na moldura do quadro e sem esforço algum, num gesto despudorado, escancara as pernas pulando na saleta bem na minha frente, tremulante e dadivosa. ‘A sua catastrófica nudez me fazia recordar os voluptuosos delírios diante de uma desaparecida amante judia, e foi sem estertores que acabei entregue aos seus braços: Feições de Odalisca na escuridão luxuriante. Olhos que bebiam meus pensamentos, e na escura, cálida, úmida e acolhedora feminilidade que se entrega, minha alma, dissolvendo-se, fluiu e derramou e inundou uma semente líquida e abundante... Agora tome-a quem quiser... Depois, ela fala com uma voz fraca de além dos espaços frios. Voz de uma Medusa sonolenta. Fale! Oh, fale de novo, fazendo-me sábio! Esta voz jamais ouvi. (...) ‘Voltei a olhar a parede inexpressiva, e eis que de novo a moça estava emoldurada, mas desta feita sem o cinto vermelho.

‘Sobressaltado senti algo flexível cair de minhas mãos: era o cinto vermelho. Sem delongas, apanhei-o e retornei ao quarto onde minha companheira dormia. Não acordou quando cingi-lhe os flancos com o cinto, e ainda permaneceu adormecida por longo tempo. Aos seus primeiros movimentos, retirei-lhe o cinto vermelho devolvendo-o à sua legítima dona. Contudo, ao despertar, a minha amiga com as suas inopinadas carícias, os seus largos e compassivos sorrisos, não me deixou dúvidas de que estávamos, enfim, reconciliados. Saímos do hotel e, três semanas depois, voamos para Argélia. ‘Escrevo-te hoje um tanto nostálgico, mas em plena primavera de Tipasa, nesta terra ainda impregnada de mitos. Quanto a Lizia, pareceu-me perfeitamente feliz, embora vez ou outra não deixe de lastimar a perda de um cinto de couro vermelho que, segundo ela, desapareceu de sua bolsa naquela mesma noite de nosso encontro no hotel. Achei melhor nada comentar sobre o assunto, mas não deixei de indagar por que não usava o tal cinto, mantendoo inexplicavelmente escondido na bolsa. Talvez porque fosse inadequado para aquela ocasião, ela disse. ‘A propósito, apenas mais uma pergunta: Será que no decorrer desta carta, aprofundando-me na visão de uma inconfundível gravura, tu descobriste de imediato o seu autor? Acredito que sim, desde que não distingo, no momento, um outro artista capaz de uma igual façanha, senão Darel Valença.” (FB)

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Brennand visita o seu parque Eu Vi O Mundo... Ele Começa No Recife

Um mundo tão vasto qua Na minha primeira viagem à Europa, em 1949, carreguei comigo dois alentados volumes de Leon Tolstoi. Tratava-se de Guerra e Paz, uma velha edição da Livraria Globo, Porto Alegre, 1945. Foi meu companheiro inevitável, de todos os dias no trajeto entre o Rio de Janeiro e a cidade de Cherbourg, na França. A minha iniciação na literatura russa, francesa e inglesa, evidentemente através de traduções, foi muito anterior ao meu conhecimento dos escritores

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brasileiros: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e mais tarde Raduan Nassar. Não precisou que Romain Rolland dissesse que “Guerra e Paz é a mais vasta epopéia dos nossos tempos, uma Ilíada moderna”. Logo nas primeiras páginas verifiquei que o príncipe Vassili “exprimiase num francês precioso, no qual nossos avós não só falavam, como pensavam com entonações macias e protetoras, próprias de um homem importante, envelhecido na sociedade e na Corte”. Na corte russa falava-se em francês, a língua russa era utilizada


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quanto o Oceano Atlântico que nos rodeava. Vez ou outra repetia, mas agora já para mim mesmo: “usava uma casaca verde-garrafa, calça cor de cuisse de nymphe effrayée (coxa de ninfa amedrontada)”. Para todos os lados encontrávamos o adjetivo charmant. Falava-se francês na corte russa e eu começava a aprender esta língua antes de pisar em território da França. Pode parecer a alguns que o aspecto analítico, às vezes até um pouco rude nas suas obstinadas conclusões, dessa obra-prima que é a Sonata Kreutzer, se afaste do espírito de Guerra e Paz, faltandolhe piedade. O mesmo poder-se-ia dizer de uma outra obra-prima que é o conto A Morte de Ivan Ilitch. Na realidade tudo já estava contido nos meandros de Guerra e Paz, e não deixa de ser apenas um dos valiosos mosaicos que compõem a grande cena de um dos mais ilustrativos romances da história da humanidade.

Balzac não foi compreendido por Machado de Assis

anto o oceano apenas para expressões coloquiais. Depois, de novo em voz alta, fingindo ser o príncipe Vassili, franzindo levemente a testa eu declamava: “Que quer que eu faça? A senhora sabe que fiz tudo o que um pai pode para educá-los, e ambos são des imbéciles...” Eu comentava estas coisas e sorria muito à procura da cumplicidade de Deborah, mas ela mantinha-se quieta e imperturbável no seu perfil de grega, agora frio e macilento pelo terrível enjôo marítimo. E foi assim que, silenciosa e sorrateiramente, penetrei neste mundo tão vasto e profundo

Não me parece que Machado de Assis, tampouco Paulo Rónai, tenham se apercebido do sentido maior da Obra-Prima Ignorada, de Balzac, excluído qualquer sentido oculto, pois não há nada de oculto neste conto, a não ser o próprio mistério da criação no campo da pintura e, curiosamente, também da literatura. Espantou-me sobretudo o comentário de Machado quanto à permanente e inexplicável insatisfação dos pintores com os seus quadros. Por acaso os escritores não se comportam do mesmo modo? A meu ver os dois escritores brasileiros sequer adivinharam o que pretendia Balzac. Só os pintores verdadeiros avaliam o significado da última pincelada. E o velho mestre Frenhofer era um deles: “Porbus deu cem pinceladas. Eu dou uma somente. Ninguém nos agradece o que está embaixo. Fique sabendo isto bem!” É verdadeiramente espantosa a sensibilidade de Balzac em se aperceber das sutilezas que afligiriam os grandes pintores de nossa época, quando ele fala que Rafael “parecia querer despedaçar a forma”. Esta observação não seria por acaso o equivalente daquilo que Ingres diria alguns séculos depois? “Toda deformação é uma homenagem à forma”. O que quis dizer Balzac em a Obra-Prima Ignorada, quando indaga: “Há então um mistério?” Continente Multicultural 17


Poemas inédit de Francisco

Frenhofer (um idealizado discípulo de Mabuse), fazendo pouco do seu colega Porbus, disse: “Você deu cem pinceladas, o que pouco importa; importa, sim, a última pincelada, essa que irei dar agora e resolver toda a questão...” Eu ouvia todas essas digressões, mas não arredei o pé de meu cavalete. Com o pequeno pincel na mão parecia relutar em dar a última pincelada, possivelmente dei a penúltima, o que equivale a dizer como Machado: “Pintores que pintam sem acabar de pintar”. Contudo, eu sabia que não teria ânimo para chegar nos limites do fatal. REPRODUÇÃO

Dostoievski, um dos maiores escritores russos

O Brasão Ele pediu que o retrato fosse assim: no meio de caixotes brancos, com faixas de cor azul, seu rosto triste. Como em Getsêmani, os outros dormiam. Tantas caixas, uma única palavra: “Frágil”, gravada como legenda. Poema de Feliz Desaniversário

Dostoievski, como os santos, não se ocupou da pintura A pergunta se impõe mas, certamente, não terá resposta. Por que um dos maiores escritores russos jamais abordou o assunto da pintura em quaisquer de seus romances, novelas ou contos, agindo de uma forma tão estranha, talvez só encontrando semelhança com a notória indiferença dos santos pela arte em geral? Entretanto, num dos seus principais romances, O Idiota, ele se ocupa com um certo empenho em falar do Cristo Morto, de Hans Holbein. 18 Continente Multicultural

Deus avisa sempre Antes de castigar. Já não há sacramentos Nem destino. Perdemos o sinal. Agora, Só resta o grande macaco negro, Verde como a floresta escura, Vindo do coração das trevas Sem cor – dominando a cena. Oh, o horror... o horror!... Tudo embola no extravio Do pecado. Como quem esqueceu os trapos de uma branca Túnica que nos cobriu Na saída dos dourados portões do paraíso. Nada escapará Desse oráculo contrariado: Nenhum só dos homens, Nenhum só dos anjos, Nem mesmo os deuses que se afastam Em silêncio.


tos o Brennand

Marcel Proust tinha uma sutileza quase demente Jamais esqueci os processos literários de Proust, cujas sutilezas excessivas chegavam à demência. No trecho de A Prisioneira, que se ocupa da morte do pintor Bergotte, a obsessiva e ao mesmo tempo desenvolta descrição da Vista de Delft, de Vermeer, me marcou para sempre: “Tela que ele adorava e acreditava reconhecer à perfeição, num pequeno fragmento de muro amarelo, tão bem pintado que, olhado solitariamente, mais parecia uma delicadíssima obra de arte chinesa, de uma beleza que bastava a si própria”. Eis aqui um notável exemplo daquele mundo europeu, quase demente de finura, que tanto me esforcei – na medida das minhas forças – em conhecer e descrever. Não foi Marcel Proust quem denunciou os seus últimos livros como demasiadamente secos, sendo preciso passar várias camadas de tinta para tornar a sua frase preciosa em si mesma, como a matéria deste pedacinho de muro amarelo pintado pelo genial artista holandês? Essas necessárias e indispensáveis “camadas de tinta” que tornam uma pintura não só visível, como vivente e, da mesma forma, uma frase que, devidamente trabalhada, transforma-se em algo raro, ardente e profundo. Esse é o mundo secreto de Proust, assim como o de Leonardo, de Piero De Cosimo, de Pisanello e de tantos outros. Seríamos injustos se não lembrássemos que também é o universo dos românticos e dos modernos, os quais, compreendendo as grandes lições, ainda se afligem em continuá-las, como um Böcklin, um Ingres.

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Certeza Degrada-se o mel. Melaço. Degrada-se o melaço. Ácido. Paraíso Perdido

Sexta-F Feira da Paixão É tão frágil aquele que tem razão! A fragilidade de Pôncio Pilatos lavando as mãos. Frágeis os fariseus, frágil a turba vociferante. Mais frágil ainda que um galho de figueira, A predestinada razão de Judas, aquele Cujo beijo propiciou o Grande Sacrifício. O bom e o mau ladrão – dois frágeis justiceiros. Os três cantos do galo: A frágil razão de Pedro. Frágil o pranto de Maria. Só não é frágil o Imolado Cordeiro de Deus. Nenhuma razão: Só “o amor que move o sol e as outras estrelas”.

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Envilecidos na lúgubre caminhada Sem retorno, Traímos pensamento, palavras e obras, O sagrado e o profano, O amor pronunciado em desespero Ignorando a flor, o terremoto e o vulcão.

Quadro de Brennand com adolescente lendo Sade. A relação entre literatura e pornografia enquanto tipos de linguagem

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Visão panorâmica do Museu/Oficina, com o recém-criado Jardim Burle Marx, à direita

A Várzea,o universo, Paris Meu pai era tão fascinado pela matéria cerâmica que contratava escultores e modeladores só para ver eles trabalharem. E contratou Abelardo da Hora, em 42. Assim comecei a conviver com ele. Na mesma época, meu pai comprara a coleção de João Peretti, o pai de Mariana. Alguns quadros necessitavam restauração e foram entregues a Álvaro Amorim, um dos fundadores da Escola de Belas Artes. E meu pai me escolheu para acompanhar a restauração. Todo esse meu envolvimento foi decisivo. Era 1945 e eu já tinha começado a pintar. Em 47, no Salão do Museu do Estado, tirei o primeiro lugar. Aconteceu, então, de Cícero Dias vir fazer uma exposição no Recife. Ele teve uma importância enorme na confirmação da minha profissão. Disse a meu pai: “Ricardo, ele vai viajar em caráter experimental. Ele vai só ver as suas possibilidades em Paris”. E papai cedeu. Havia um problema. Deborah estava no segundo ano de Direito e era o sonho do pai dela ver

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uma filha formada. Então cometi a ignomínia de oferecer a ela uma viagem a Paris e um pedido de casamento. E a futura poetisa acedeu. Em 49 tomamos um navio para a França. Levávamos uma bagagem que era para passar o resto da vida em Paris. Era uma mala tão grande que não podia entrar no quarto, nem subir pelo elevador, nem pelas escadas, ficou no porão do hotel. Tinha tudo: café, panela, era uma bagagem de pau-de-arara.

Tempo de trabalho Voltamos a Paris desta vez sem romantismo. Cícero Dias sempre nos ajudando. Fiquei num ateliê de pintor, rodeado de quadros, e a minha vida tornou-se uma realidade: homem já casado, com obrigações. Eu trabalhava intensamente, vivia dentro dos museus. Me vestia quase como um clochard. Eu andava pela rua Washington e as prostitutas me tratavam de igual pra igual: “Bonjour, monsieur Brennand”. Jamais me deram uma cantada, porque ninguém iria dar uma cantada num clochard, um men-


Entre primitivos Eu passei pela Bienal de 59 com três quadros. O Brasil de vez em quando descobre a pólvora. Como na Semana de Arte Moderna, em que os pintores foram dormir medíocres e acordaram geniais. São Paulo tinha descoberto que o Brasil não tinha pintores. A vocação brasileira era a gravura, o preto e branco, e aí vinha toda uma filosofia, o excesso de luz e um bando de teorias estapafúrdias. Então a Bienal se fazia com quilômetros de gravuras. André Malraux, escritor e crítico de arte francês, estava visitando a Bienal. Quando viram aquela minha pintura de frutos enormes, exuberantes, uma espécie de Gauguin do Recife, não souberam o que fazer e me botaram junto dos primitivos. E Malraux ia passando por aquele universo em preto e branco, quando lá no fundo encontrou aquela luz dos primitivos. Então ele dirigiu-se para a cor, que era o que ele esperava encontrar nos trópicos e, diz Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa, do Rio, que ele foi direto aos quadros do pernambucano Brennand, e ali disse: “Magníficos e puros!” Agora, se Malraux também engoliu a pintura de Brennand como a pintura de um primitivo, eu não sei.

“Acadêmia” e homenagem a Burle Marx Sempre que vinha aqui, Roberto Burle Marx dizia que gostaria de desenhar alguma coisa para este espaço. Eu pensava que ele dizia isso só

Até reencontrar a divindade Tenho 74 anos. Há uma série de coisas que pra mim não têm mais importância. Eu me defino como feudal, supersticioso e pornográfico. E digo mais: quando não existem surperstições catalogadas, eu invento. E sempre estou tentando relacionar as coisas como se fossem um fio que não se parte. É um fio condutor que me leva a um resultado qualquer, como se fosse uma predestinação. Até reencontrar a divindade, alguma coisa que rege isso tudo. BRENO LAPROVITERA

BRENO LAPROVITERA

por cortesia, mas aí ele mandou o projeto. Tem como eixo o grande Pássaro Rocca branco. No lado direito vai ter uma galeria onde pela primeira vez eu vou poder expor os meus quadros, que estão virados contra a parede como se fossem uma atividade secreta, senão proibida, e à qual eu vou chamar, em homenagem à magnífica galeria que existe em Veneza, vou chamar de Accademia, “acadêmia”, como os italianos pronunciam. Com o intuito de reafirmar o rigoroso ofício de pintar, modelar e esculpir. E que os que são favoráveis às instalações e outras formas de arte, que as façam, mas sem utilizar estes nomes: pintura e escultura. Isto se circunscreve àquilo que se faz desde a pré-história e nunca foi modificado. Quanto mais apareçam computadores, máquinas de fazer coisas, a mão sempre terá o toque milagroso. Nada vai superar a mão humana, comandada pelo espírito do homem.

digo, mesmo jovem. Minha única roupa era meu terno de casamento, que era de lã. Durante um ano inteiro não mudei de roupa. No ateliê de Picabia, onde eu vivia, banheiro e cozinha eram uma coisa só, já imaginou? Deborah chegou a marcar hora no médico porque estava cheia de pontinhos vermelhos na pele. Por sorte, na hora em que ela estava mudando de roupa, eu vi uma pulga, pulando. Madame Picabia tinha cerca de quarenta gatos. Quando alugou o ateliê ela não levou os gatos. Eles não entravam no inverno, mas no verão as janelas que davam para o pátio ficavam abertas e eles entravam. E encheram o ambiente de pulgas. Quando eu vi a pulga ela já estava com hora marcada e nós iríamos morrer de vergonha, porque iríamos chegar lá cheios de pulgas e o médico ia dizer: “Minha senhora, o remédio pra pulga é detefon”.

Brennand vê a reprodução como uma forma de eternidade


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Como Balthus, Brennand tem no erotismo da mulher jovem uma permanente fonte de inspiração

Balthus foi um enigma durante a sua vida e me parece que permanecerá assim depois de morto. Ele não dava bola pra ninguém e por isso juntou um grande número de inimigos. Ele defendia com ferocidade sua solidão para poder trabalhar. E trabalhar, em geral, com modelos muito jovens. Por isso foi acusado de pedofilia, uma das palavras mais feias que eu conheço. Dá a impressão de uma doença muito grave. Mas a preferência de Balthus por meninas de pouca idade não era o exagero moderno, que chega ao crime. As meninas de 12 a 17 anos já estão preparadas pela própria Mãe Natureza para serem mulheres. Embora culturalmente não prontas para o casamento, já estão para o acasalamento e para serem apreciadas. As grandes paixões são despertadas na juventude. Depois você tem alguns arremedos de paixão. Mas a lembrança que você retém da mulher é a da mulher muito jovem. O primeiro deslumbramento. Vocês dois jovens. Balthus insistiu nisso do começo ao fim da vida. Em 1946, em Paris, me orgulho de ter descoberto Balthus antes dos franceses, através de um livro de De Chirico, que falava num extremamente jovem pintor francês, Balthus, que gostaria de fazer surrealismo d’aprés Coubert. Os críticos achavam isso impossível, porque Coubert era um pintor que se autodenominava realista. Ele pintava operários quebrando pedras, mas imprimia uma luz e uma forma que os transformava numa coisa poética e surreal. E Balthus pôde observar que Coubert seria um grande modelo para se fazer uma arte supostamente realista e ao mesmo tempo surrealista. Eu procurava

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“Descobri

Balthus antes dos franceses” Balthus nas galerias de Paris, em 49, e me diziam que ali se expunham pintores e não alunos! Só em 51 é que Deborah chegou dizendo que tinha descoberto uma galeria, em cuja vitrine havia dois Balthus. Corri pra ver esses quadros. Em 52, encontrei com Mariana Peretti, a vitralista, que conseguiu marcar um encontro nosso com Balthus. “Uma ex-amante dele é filha de uma grande amiga de minha mãe.” Dois dias depois ela telefonou confirmando o encontro. Chegamos à hora combinada, mas ele só entreabriu a porta e botou a cabeça de fora. O cabelo projetava-se para a frente, e o nariz era adunco, muito acentuado. E um ar de espanto. Quando finalmente abriu a porta vimos no cavalete uma tela, com uma mulher deitada num divã, a cabeça virada pra trás, como se tivesse sido degolada. Uma luz banhava violentamente aquele corpo desnudo. A modelo estava sentada numa janela do ateliê, fumando. E ninguém pronunciava nenhuma palavra. Diante daquele silêncio, a timidez me tornou um tagarela. “Declamei” todas as exposições que ele já tinha feito no mundo. E fazia comentários eruditos. “Essa sua figura com a cabeça pendida pra trás me lembra a Santa Lúcia Degolada, de Caravaggio.” Ele, boquiaberto. Então, me mostrou três quadros que estavam virados pra parede. Tenho a impressão de que esta entrevista foi mais um dos grandes equívocos da minha vida. Soube depois que nessa época ele estava passando por uma penúria financeira terrível. Mais uma vez frustrei-me por não ser o milionário sul-americano que se esperava. Em 51, madame Gabriele Picabia, ex-mulher de Francis Picabia, tinha no ateliê dele, que ela me alugou, cerca de 60 telas do líder do movimento dadaísta. E me ofereceu esta coleção inteira. Escrevi uma carta ao meu pai, mas não tive resposta. Presumi que tinha sido meu excesso de entusiasmo, porque eu tinha escrito: Se comprarmos esta coleção, talvez daqui a uns anos ela valha mais que uma usina. (FB)


A única língua universal O pensamento de Brennand sobre erotismo, sedução, reprodução, castidade e pecado Quantas vezes pensei em loucuras que não ousaria confessar a ninguém? Ah! se algum dia as mulheres tivessem um pouco que fosse de imaginação! Parece que este dom lhes é vedado, prudentemente, pela Mãe Natureza. Os homens propõem o jogo extremo às suas companheiras e elas não aceitam jamais, embora, de sua parte, elas também devem pensar que sugerem os seus jogos e, nós, igualmente, não chegamos a percebê-los. Nesta disputa de ilusões acabamos por chegar a um final desastroso.

Octavio Paz chega a chamar o erotismo de “poética corporal”. Mas eu diria que, no fundo, não é mais do que uma servidão diante de instintos extraviados, que não encontram, jamais, nem o seu verdadeiro nome, nem qualquer possibilidade de repouso. Danação e tolice é o nosso destino.

A meu ver, o Pecado Original foi comum aos dois sexos, mas compreendido de maneira diversa por cada um desses incomunicáveis parceiros. Talvez tenha sido esta uma das conseqüências mais dolorosas da queda: homens e mulheres estigmatizados por uma saudade louca do seu perdido companheiro e sem possibilidade alguma de resgatá-lo. O erotismo é a única arma ou desafio que os humanos utilizam para reagir aos desígnios da Mãe Natureza. Todo erotismo é transgressor, mas é o único alimento que pode nutrir os nossos combalidos instintos reprodutivos. O homem desafiou o seu Criador e pronunciou as primeiras palavras de sua própria condenação. E assim, foi lançada a nossa sina, ou seja, seguir docilmente o deus Eros que não faz senão nos enganar com as suas artimanhas e o seu vocabulário sedutor.

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Comprovará, quem sobreviver, que a nossa sexualidade encontra-se num beco sem saída. Dentro de algum tempo, ser moderno é ser casto. Somos o único animal do planeta que não pode exercer livremente a sua sexualidade, não mais por conta da idéia do pecado, e sim, como uma Continuo a lembrar e maldizer aquela que ameaça de morte, uma condenação fatal. nunca me foi dado o direito de ver. Reconheceria o seu formato único que me foi proposto em mil parA pornografia é a mais completa distorção de celas diferentes e, no entanto, sempre fugidias e es- nossa primitiva sexualidade. Seguramente um dos tranhas... em sonhos, na vigília, ou de olhos muito elementos mais protéicos da ânsia incurável de transabertos. Melhor assim. A sua simples presença ou gressão. Linha auxiliar de toda sexualidade humana, ao seu menor toque eu seria o seu escravo submisso sem a qual não mais existiria sexo algum. Não se faz para todo o sempre. E, então, já não haveria história necessário ensinar o Esperanto. A pornografia é a alguma, tampouco por quem esperar eternamente. única linguagem universal que conheço. Para Brennand, “todo erotismo é transgressor, mas é o único alimento que pode nutrir os nossos combalidos instintos reprodutivos”


Percurso do labirinto

Em texto exclusivo, o artista mostra como o visitante deve se orientar no seu labirinto

Atravessando o rio em balsas de madeira ou vindo pela sombreada mata atlântica, todos os caminhos levam ao grande portão de ferro. Uma vez no pátio, não há como evitar o olhar e o sorriso jocosos de um Quarteto de Comediantes, que ali postado, faz as vezes de um recepcionista. Condescendentes, essas quatro figuras deixam o visitante passar, sem indicar o caminho. Poder-se-ia, tomando como referência o lado direito de todo o conjunto, prestar atenção a um mural de bom porte, cujo título escrito em letras brancas – Mãe Terra –, contribui para acentuar seu interesse, o que não exclui um desvio à esquerda com o fito de penetrar no templo pela porta principal, tendo como referência imediata o grande símbolo de Oxóssi. Logo em seguida, por um longo corredor ou por duas grandes salas repletas de esculturas, prossegue-se à procura dos lugares mais sombrios de outras naves, onde algumas pessoas afirmam existir duas cavernas ou criptas repletas de mistérios. O caminho conduz ao anfiteatro, cujo piso é pintado em forma de Mandala. A sobriedade das cores (marrom, preto e branco) faz lembrar um banho romano.

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Sem pressa, o visitante deve procurar, no exterior de uma dessas criptas, um mural cujo nome fala dos Sete Dias da Criação: uma tartaruga central como símbolo cósmico, sugere a lentidão e eficácia da natureza. Depois, no meio da grande nave, vê-se um obelisco com inscrições arcaicas, e mais uma vez o símbolo de Oxóssi (o arco e a flecha). A enorme complexidade do madeirame que sustenta o telhado chama a atenção dos que apreciam o local, mais parecendo uma gravura de Piranesi, quando ilustrou Minhas Prisões, do escritor Silvio Pellico. O tempo de cada um ou o interesse despertado pelas esculturas, e até mesmo a própria atmosfera do ambiente, é que vai determinar a maneira como escapar deste sortilégio. Através de portões gradeados pode-se observar alguns artesãos na faina diária. Mas basta seguir em direção à luz, às partes mais claras do recinto, e logo se encontrará o caminho do grande pátio, dominado por um enorme paredão em arcos, repleto de inscrições e de pequenos murais. No correr da Muralha, na linha do seu horizonte, percebe-se a silhueta dos Pássaros Rocca, que de longe faz com que as pessoas descubram a cons-


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tância dessas figuras totêmicas que guardam o Templo central, cuja cúpula azul turquesa é encimada por um galo de cata-vento. No centro dessa cúpula está o Ovo Primordial como emblema de eternidade, misturado com animais de toda espécie, alguns ainda à procura de sair das águas lodosas de uma piscina. Ao lado, Vênus nascidas dos períodos paleolítico e mesolítico, triângulos pubianos, e carnudas deusas-mães. Enfim, um conjunto de representações escultóricas ao nível do Ovo – a forma primeva. O Ovo Cósmico nascido das águas primordiais. O Ovo da Serpente, céltico. A pedra que não é uma pedra... Neste conjunto, todas as formas se tornam possíveis. E o artista reclama dizendo que “esta deliberada diversidade é a sua força”. Ultrapassado o grande pátio, chega-se a um jardim edênico, cujo traçado é de Roberto Burle Marx. Duas inscrições são de grande importância para orientação dos visitantes, relativas a este excesso de propostas. Uma, de Plotino, tem de ser lida através de verdes papiros que oscilam ao vento. Outra, de Ludwig Wittgenstein, lembra que não pode haver arquitetura onde não há nada a glorificar. Neste momento, a vista procura na longínqua floresta uma trégua que não lhe é dada, por conta da presença de um enorme Pássaro Rocca

branco, reluzente ao sol, que convida a visitar um novo jardim... Numa das paredes, aproveitada da antiga ruína, há um mural dedicado a Thomas Edison, cujas formas lembram lâmpadas que poderiam ser frutos, frutos selváticos, ou nossas lâmpadas de cada noite. “Esse homem deveria ser canonizado”, dizia o poeta Tomás Seixas. De volta, seguindo em direção à saída, do lado esquerdo lê-se uma bela inscrição de Ariano Suassuna, intitulada Primórdia. O visitante está novamente muito próximo a sair do labirinto, quando é atraído por uma fonte central, onde a escultura denominada Seqüestro (Vênus Seqüestrada) domina toda a praça. A Vênus deve retornar ao mar onde nasceu, para ressurgir, ninguém sabe quando, gloriosamente, embora conduzida pelos espíritos de Ártemis e Selena, que a um só tempo levam aos caminhos da castidade e da volúpia. (FB) Museu/Oficina Francisco Brennand Várzea s/n. (No final da Av. Caxangá, após a ponte do mesmo nome, primeira à esquerda.) Aberto de segunda a sexta, de 8:00 às 17:00h Visitas, com a presença do artista, agendadas com antecedência: Fone: 81-3271-2466 Fax: 81-3271-4814 E-m mail: brennand@brennand.com.br Ingressos na portaria: R$ 2,00 por pessoa. Escolas e universidades: R$ 1,00 por estudante, desde que acompanhados por professores/responsáveis ou guias turísticos. Lanchonete: Cantina dos Deuses. Loja: Bibliopolion, com livros sobre o artista, peças cerâmicas, cartões postais, serigrafias, etc. Amplo estacionamento. Continente Multicultural 25


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SÉCULO 21

Muros de Berlim virtuais Uma metáfora sobre as formas de organização social humana, e uma palavrinha sobre a inclusão do México na ALCA

V

iver a vida é caminhar em um labirinto por entre muros que nos guardam de ousar ir lá fora e guardam os de fora de ousarem nos invadir. Muitos entendem felicidade como resoluta escravidão aos seus muros. Vez ou outra algumas paredes se desmoronam; outras caem devido a nossas ações. Nossos medos erigem novos muros sem perceber que são mais fortes que os que herdamos. E mesmo assim voltamos a destruí-los. Na Antigüidade e Idade Média, os muros do castelo serviam para proteger a vida social organizada dos reinos de um mundo exterior considerado selvagem. O castelo era como uma nave espacial pousada em um planeta hostil, onde a brutalidade da natureza e de povos estranhos conspiravam sempre a sua destruição. A muralha da China foi o maior e mais ousado empreendimento humano para garantir a ordem do reino contra os invasores bárbaros. A China existe graças a persistência de suas primeiras dinastias em manter a muralha. Ela garantia a paz e o comércio da rota da seda. Quando, nos séculos 19

e 20, a China passou a ser dominada pelas muralhas financeiras invisíveis das potências mundiais, Mao e sua revolução camponesa refez as “muralhas” para reconstruir o país. Só agora, quando a China se sente capaz de disputar com as grandes potências, é que as defesas começam lentamente a serem desfeitas. A escravidão e o racismo erigiram outros tipos de muralha. Mais de cem anos depois de sua abolição, as suas pesadas paredes continuam oprimindo em Los Angeles, Cincinatti, Rio, Pretória. Algumas muralhas são religiosas e exigem o sacrifício constante de vidas para manter a firmeza de suas paredes. Muitas são erigidas apenas pela inveja. O muro de Berlim foi o primeiro dos muros modernos. Seu objetivo principal não era a defesa, mas evitar a migração em massa de alemães do Leste para Berlim e daí para a antiga Alemanha ocidental. Durante décadas, a propaganda anticomunista fez do muro o símbolo da luta pelos direitos

Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 28 Continente Multicultural


humanos, da liberdade de ir para onde se quiser. O muro simbolizava o isolamento compulsório dos indivíduos do lado comunista, de um cotidiano controlado pelo Estado. Ele não proibia a entrada dos de fora. Oposto à muralha da China, suas paredes eram para controlar os de dentro. O fim do comunismo foi comemorado com eufóricas celebrações acerca da globalização da liberdade e da democracia. Os ideólogos do neoliberalismo afirmavam ter chegado a hora de um mundo sem fronteiras. Não durou muito para que a União Européia começasse a ampliar o controle sobre migração. Quanto mais crescia o desemprego, maior o controle. Primeiro eram os estrangeiros. Depois o ódio se voltou aos nacionais de cor que migraram no passado e seus descendentes. Uma muralha se ergueu na Europa para protegê-la das hordas de desesperados da África e Ásia que perseguem um sonho igual ao dos que pulavam o muro de Berlim. Estima-se que apenas os chineses gastam por ano três bilhões de dólares para entrarem ilegalmente na Europa. Para a grande imprensa, a última grande tragédia com migrantes ilegais – por sinal, de 58 chineses mortos por sufocação em sua jornada para Londres – não passou de apenas mais uma tragédia da máfia da migração ilegal; nada mais. Existe um muro de Berlim ainda maior nas Américas. Não é o muro entre brancos e negros nos EUA; não é o muro entre ricos e pobres na América Latina; entre índios e não índios, entre mulheres negras e pobres e mulheres brancas e ricas, entre crianças abandonadas e crianças mimadas no Brasil. Seguindo a ideologia do mundo sem fronteiras, o México se tornou o primeiro membro do antigo mundo subdesenvolvido a fazer parte de

uma zona de livre comércio com os EUA e Canadá. Um dos objetivos econômicos principais que esta união provocaria seria a afluência daquele país e sua integração no mundo dos ricos. Cento e cinqüenta anos depois de o México ter se dividido e sua metade norte se integrado aos EUA, e uma década após a criação da zona de livre comércio, o México se dividiu uma vez mais entre um Norte afluente e um Sul miserável sob a marca da guerrilha. Apesar do inegável crescimento da região norte do país, a fronteira entre o México e os EUA mostra uma grave conseqüência destas mudanças. O aumento do número de mexicanos que procura atravessar a fronteira ilegalmente e a crescente repressão dos Estados Unidos revelam os limites da afluência econômica do modelo que produziu o supermuro de Berlim econômico nas Américas. Milhões querem entrar, mas lhes são negados o direito de ir e vir. Em vez dos 50 quilômetros de arame farpado, 100 quilômetros de concreto e 200 torres de observação de Berlim, as cercas de metal se alongam por centenas de quilômetros da fronteira norte do México, monitorada por uma bem organizada e equipada patrulha de fronteira. A prisão e repatriação de mais de um milhão de mexicanos que já tentaram cruzar para o norte simboliza a dimensão da muralha virtual erigida pelos EUA. Os muros podem ser de papel ou de concreto; eles podem ser pequenos e dentro de nós; podem ser visíveis como o de Berlim, ou do tamanho da fronteira dos EUA com o México. Estão lá para serem substituídos por outros mais fortes ou demolidos para sempre. Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com

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NARRATIVA

Um homem como os outros José Lins do Rego sofria como um pobre diabo pelo seu clube, foi péssimo aluno, agitador da Faculdade de Direito e se dizia soldado raso de Pernambuco

G

Edson Nery da Fonseca 30 Continente Multicultural

medo de morrer. Não gosto de trabalhar, não fumo, durmo com muitos sonos, e já escrevi 11 romances. Se chove, tenho saudades do sol, se faz calor, tenho saudades da chuva. Vou ao foot-ball, e sofro como um pobre diabo. Jogo tênis, pessimamente, e daria tudo para ver o meu clube campeão de tudo. Sou homem de paixões violentas. Temo os poderes de Deus, e fui devoto de Nossa Senhora da Conceição. Enfim, literato da cabeça aos pés, amigo dos meus amigos e capaz de tudo se me pisam nos calos. Perco então a cabeça e fico ridículo. Não sou mau pagador. Se tenho, pago, mas se não tenho não pago, e não perco o sono, por isso. Afinal de contas sou um homem como os outros. E Deus queira que assim continue.” REPRODUÇÃO

O escritor José Lins do Rego, que completaria 100 anos em junho deste ano

ilberto Freyre tratou exaustiva e magistralmente do assunto em epígrafe no ensaio Em Torno da Recifensização de José Lins do Rego, escrito para o número especial da revista Ciência & Trópico dedicado aos oitenta anos que o escritor paraibano não chegou a completar, pois morreu, como é sabido, em 1957, antes mesmo de seu sexagésimo aniversário. Vou tentar a ousadia de abordá-lo sem citar aquele belo ensaio de quem mais contribuiu para a recifensização de José Lins do Rego. De José Lins do Rego e de todos nós porque, mesmo tendo nascido no Recife, somente com a pregação regionalista de Gilberto Freyre é que passamos a ter consciência de nossa recifensidade. Assim como Shakespeare, no abalizado conceito de Harold Bloom, inventou o humano, Gilberto Freyre inventou a recifensidade, a olindensidade, a pernambucanidade, a nordestinidade, a brasileiridade, a americanidade, a tropicalidade, a morenidade e muitas outras vivências psicohistóricas e socioculturais. Em papel timbrado da Livraria José Olympio Editora, José Lins do Rego escreveu, em dezembro de 1947, este auto-retrato: “Tenho quarenta e seis anos, moreno, cabelos pretos, com meia dúzia de fios brancos, um metro e 74 centímetros, casado, com três filhas e um genro, 86 quilos bem pesados, muita saúde e muito


ÁLBUM DE FAMÍLIA

À esquerda do escritor, a Tia Maria, sua mãe de criação

Não falou, portanto, de sua recifensidade nem de sua paraibanidade e nordestinidade. Abstraiu a circunstância geográfica num auto-retrato predominantemente psicológico, embora comece com dados etário-morfológicos e familiais. Ainda está para ser reconstituída em detalhes a vida de José Lins do Rego no Recife, como estudante dos cursos chamados antigamente de preparatórios e aluno da Faculdade de Direito de 1919 a 1923. Ele não chegou, infelizmente, a completar suas memórias, iniciadas com o livro Meus Verdes Anos, publicado em 1956. Mas numa crônica de 1948 confessou que mal sabia onde ficavam as salas de aulas, embora participasse de todas as agitações da escola; que gritava pelos corredores, “cantando em voz alta e desafinada, árias de operetas da moda”; que “botava apelidos” e “se fizera de terror em arruaças de rua e boêmia”; que fora “aluno péssimo do Dr. Amazonas”; que, bacharel de 1923, “não entrou no quadro de formatura, porque consumiu em cerveja das ruas do Santo Amaro as verbas do avô”. Na mesma crônica, escrita para ser lida em cerimônia que não houve, acrescentou José Lins do Rego da velha escola, que teve entre seus alunos poetas como Castro Alves, filósofos como Tobias Barreto e juristas como Clovis Beviláqua: “Aqui nada deixei que valesse nada. Fui criatura de triste figura em curso de generosas simplesmentes”. Recorde-se que simplesmente era o grau mais baixo de aprovação nos exames ou concursos de antigamente, correspondendo às notas 4 ou 5 na escala de 1 a 10. Dizia-se, na gíria, “fulano foi aprovado com um simplão”. De modo que José Lins do Rego poderia ter dito de sua passagem pela Faculdade de Di-

reito do Recife o que o Dr. Alfredo Freyre me disse uma vez daquela escola da qual foi catedrático de Economia Política. Irritado com a nota oficial do Diretório Acadêmico contra seu filho Gilberto, assim me falou o velho Freyre, que era um homem sem papas na língua: “Esta Faculdade foi em minha vida semelhante a uma estaçãozinha de estrada-de-ferro onde o trem faz pequena parada e a gente salta para esticar as pernas, não bebe a água porque pode estar infectada, dá uma mijada e prossegue a viagem”. Seria interessante uma pesquisa em jornais recifenses dos quais José Lins do Rego foi colaborador nos anos 20, tanto quanto na coleção do semanário Dom Casmurro, que ele fundou com Osório Borba. Confesso, entretanto, que não tenho mais paciência nem saúde para enfrentar a poeira dos arquivos. Em compensação, vou contar um episódio do qual talvez seja eu – desculpem a nota pessoal – a última testemunha viva. Em 17 de março de 1948, José Lins do Rego leu no Recife uma conferência sobre Augusto dos Anjos e o Engenho Pau d’Arco, incluída, em 1952, em seu opúsculo Homens, Seres e Coisas, publicado por Simeão Leal na coleção Os Cadernos de Cultura. A conferência fora agendada por Gilberto Freyre para ser lida na Faculdade de Direito, mas o Diretório Acadêmico não se interessou. Diante do impasse, o Departamento de Documentação e Cultura entrou em cena e promoveu-a no salão nobre do Círculo Católico. Eu mesmo a datilografei, indicando no fim do texto que as citações se referiam à 12ª edição, de 1945, do livro Eu e Outras Poesias, ainda com o selo de uma editora que não existe mais: a Bedeschi. Continente Multicultural 31


No mesmo dia José Lins do Rego foi homenageado com um almoço, tendo sido saudado magistralmente por Odilon Nestor (cf. “Palavras a José Lins do Rego”, Diario de Pernambuco de 19 de março de 1948). Agradecendo a homenagem, o romancista fez um belo discurso do qual, por estar esquecido, reproduzo alguns trechos: “Meus amigos de Pernambuco. Vocês sempre foram as minhas maiores alegrias. Desde menino que o Recife foi para mim uma espécie de cidade de espanto. Aqui com dois anos levaram-me a um Pierreck, para satisfazer a minha primeira vaidade de literato. Botaram-me entre as mãos para que pudesse ficar quieto ao fotógrafo um pássaro de pano. E o menino dos cabelos de cachos, do orgulho da tia Maria, ficou-se em pose, mostrando assim que os fotógrafos não lhe fariam nunca medo”. O francês Louis Pierreck foi, talvez, o primeiro fotógrafo profissional do Recife. Numa fotografia pertencente a minha ex-aluna e amiga Eunice Coutinho Robalinho de Oliveira Cavalcanti está impressa a indicação de que a Casa Pierreck era “honrada com a preferência da alta sociedade pernambucana”, que os clichês das fotos eram numerados e conservados em arquivo e que ficava à rua Rosa e Silva nº 54. Mas ninguém se iluda pensando que era no bairro dos Aflitos. Houve, durante a República, várias tentativas de mudar o nome da rua da Imperatriz Teresa Cristina – que até 1859 se chamava Aterro da Boa Vista – para Floriano Peixoto e, depois, Rosa e Silva. Mas, como assinalou Vanildo Bezerra Cavalcanti, estas trocas não vingaram (cf. Vanildo Bezerra Cavalcanti, O Recife do Corpo Santo, Recife: Conselho Municipal de Cultura, 1977, p. 255). Vê-se pela crônica de José Lins do Rego que Louis Pierreck era fotógrafo procurado por gente de todo o Nordeste; e que o episódio por ele evocado teve projeção proustiana sobre sua carreira de escritor, como reconhece neste outro trecho da mesma crônica: “Ali estava em germe a matéria-prima para o José Lins do Rego das entrevistas, dos romances, de todos os desfrutos da carreira. Infante do Exército do Pará, disse o nosso Jayme Ovalle. Não, soldado raso de Pernambuco, pronto ao seu serviço em qualquer dia e hora de minha vida. Posso eu estar aonde estiver sempre mantenho o Recife como a minha cidade sede, o meu quartel-general, a mi32 Continente Multicultural

nha região onde o povo é o meu povo, onde os amigos são os meus melhores amigos. E que povo e que amigos como gemas de primeira ordem! Vocês aqui podem se esquecer de mim, eu é que não me esqueço de vocês. Os meus dias de mocidade ruidosa passei-os nas ruas desta cidade. Nela aprendi lições para o meu desempenho de homem de letras e de homem cívico” (Cf. José Lins do Rego, Infante do Exército do Pará, Diario de Pernambuco de 28 de março de 1948). As ruas, os bairros, os rios, os mangues, as chuvas torrenciais, os clubes populares – Toureiros, Vassourinhas, Pás-Douradas, Paz e Amor –, o frevo e o passo nos carnavais, os xangôs, a politicagem – toda a cidade do Recife aparece no quarto romance de José Lins do Rego, O Moleque Ricardo, publicado em 1935. Obra considerada por Virginius da Gama e Melo como “o grande romance político do Recife, talvez o mais completo romance político da nossa língua” (cf. Virginius da Gama e Melo, O romance político do Recife, in José Lins do Rego, coletânea organizada por Eduardo F. Coutinho e Ângela Bezerra de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 (Coleção Fortuna Crítica, 7), p. 285). O último capítulo deste romance é uma das páginas mais belas da literatura brasileira. Para Otto Maria Carpeaux é “a maior do romance brasileiro” (apud Virginius da Gama e Melo, p. 282). Ele fala, nesse capítulo, dos rapazes que, por terem tomado parte numa greve, ludibriados por falsos líderes socialistas, foram mandados para o presídio


ÁLBUM DE FAMÍLIA

REPRODUÇÃO

de Fernando de Noronha como criminosos comuns. Num terreiro do Fundão o culto afro-brasileiro se transformara em protesto contra aquele degredo aplicado sem julgamento. E José Lins do Rego descreve o protesto com a força de um coro de tragédia grega. Vale a pena reproduzi-lo: “Os cantos das negras, os passos das negras, no Fundão, tiniam no terreiro com os instrumentos roncando. Naquela noite o negro velho vestia as suas vestes sagradas sem saber o que ia fazer. Todos já estavam prontos para os ofícios, para as rezas familiares. Seu Lucas de lado tirava as rezas. Era o cantar mais triste que um homem podia tirar de sua garganta. Os negros respondiam no mesmo tom. E foi crescendo a mágoa e foi subindo a queixa para o céu estrelado do Fundão. O sapatear dos negros estremecia o chão, os instrumentos acompanhavam as queixas, os lamentos. E com pouco Seu Lucas começou a dizer o que queria, o que sentia. As palavras do ritual não eram aquelas que lhe queriam sair da boca. Deus estava no céu. Ogum no céu com S. Sebastião. Ele queria cantar outra coisa que não aquilo que ele cantava todas

as noites. E os negros na dança iam ouvindo o que Pai Lucas dizia. O mestre falava dos negros que iam pra Fernando. – Que fizeram eles? Que fizeram eles? – Ninguém sabe não. Que fizeram os negros que iam pra Fernando? A voz de Seu Lucas vibrava. Todo o seu corpo se estremecia. – Que fizeram eles que vão pra Fernando? E os negros respondiam, misturando a língua da reza deles com as perguntas do sacerdote, de braços estendidos para o céu. – Que fizeram eles? Ninguém sabe não. E o canto subia, subia com uma força desesperada. As negras sacudiam os braços para os lados como se sacudissem para fora do corpo. Os peitos, as carnes se movimentando numa impetuosidade alucinante. A terra do Fundão estremecia. Pés de doidos, de furiosos furavam a terra. E seu Lucas com a boca para cima misturando as suas mágoas com as suas rezas. – Que fizeram eles que vão pra Fernando? Ninguém sabe não! O sacerdote quebrando o ritual para deixar escapar a sua dor. Seu Lucas não era mais um Deus naquela hora. Como um homem qualquer ele falava pelos pobres que no mar se perdiam. O canto dele varava a noite, varava o mundo: – Que fizeram eles que vão pra Fernando? Ninguém sabe não!” José Lins do Rego gravou este final de capítulo do seu romance O Moleque Ricardo na discoteca do Departamento de Documentação e Cultura. Mas só Deus sabe o que foi feito dessa e de outras gravações, da fototeca, dos arquivos do D.D.C., depois que um prefeito socialista extinguiu aquele órgão por considerá-lo elitista. Em compensação, O Moleque Ricardo está em sua vigésima primeira edição, de 1999, tendo aparecido também no volume I da Ficção Completa do autor, editada pela Nova Aguilar em 1976. É a permanência da palavra escrita, que os meios eletrônicos jamais substituirão. Podemos dizer desta página de José Lins do Rego o que Gilberto Freyre escreveu do poema de Manuel Bandeira Evocação do Recife, isto é, que ela permanecerá enquanto houver literatura brasileira e enquanto existir a língua portuguesa.

Acima: o fanático flamenguista José Lins do Rego Abaixo: Da esquerda para direita, José Lins, sua mulher, Naná, as irmãs de criação Maria Emília e Ivete, as filhas Maria da Glória e Maria Cristina e o irmão de criação Henrique

Edson Nery da Fonseca é professor emérito da Universidade de Brasília – UnB

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O eterno retorno

sença ao lado de autores como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Jorge Amado, já bastante desgarrados da tradição naturalista. No período que vai desde a estréia, com Menino de Engenho (1932), a Fogo Morto (1943), saíram, ano a ano, exatamente dez romances, além de, coincidindo com Usina (1936), Histórias da Velha Totônia, um livro destinado ao público infantil e adolescente. Nessa produção romanceada encontra-se a faceta mais importante e reveladora de sua obra, que pouco se afastará das raízes paraibanas que a estigmatizaram. E isto se fará visível mesmo com ele vivendo fora do seu estado a partir de 1915, morando em cidades como o Recife, Maceió e o Rio de Janeiro, de algum modo seduzido pelos apelos da vida urbana, sem contudo perder totalmente os referenciais do mundo rural onde nasceu. O romance de cunho intimista Pureza (1937), embora ambientado na zona rural, destoa da prosa praticada até então por José Lins, com os romances Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, O Moleque Ricardo e Usina, do chamado ciclo da cana-de-açúcar. Numa passagem definidora de Pureza, o personagem central, Lourenço, aconselhado por um médico a procurar uma estação de repouso, revigora-se de sua doença na explosão do amor físico. Antes da realização carnal do desejo, mostra-se sensualmente sugestiva a narração de uma sessão inesperada de desempenho ficcional de José voyeurismo. Lourenço, do alto da janela do seu Lins do Rego aparece com quarto, no chalé onde se recupera, presencia, sem freqüência associado ao regio- laivos de malícia ou obscenidade, o banho descuinalismo nordestino e aos efei- dado de Margarida no rio fronteiriço: “Vi então tos decorrentes da utilização Margarida se pondo nua, se espreguiçando com da memória no romance. A medo da água fria. O corpo dela às minhas vistas. sua performance literária ini- Um arrepio passou-me pelas costas. Uma sensação cial, na década de 1920, se ensejava timidamente no de alegria estranha, uma vontade de viver imensa. âmbito da crônica, do conto e nas tentativas de in- Cheguei a ouvir o rumor do corpo caindo n’água. vestir na crítica literária. A prosa de ficção somente O corpo de Margarida nas águas do rio Pureza”. As temáticas da cana-de-açútomaria impulso a partir de 1930, com ele marcando pre- Luiz Carlos Monteiro car, do cangaço e do misticisÁLBUM DE FAMÍLIA

José Lins do Rego aprisionou o tempo vivido na construção de seu universo ficcional

O menino de engenho José Lins do Rego (segundo da esquerda para direita, em pé), junto a familiares e conhecidos. O tio Henrique, que o criou, é o último homem à direita, com dois filhos

O

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REPRODUÇÃO

mo sertanejo sofrerão outras tentativas de deslocamento ambiental e social, tipológico ou psicológico, com maior ou menor sucesso em Riacho Doce (1939), Água-Mãe (1941) e Eurídice (1947). Em Homens, Seres e Coisas (1952), uma espécie de diário crítico, José Lins deixa entrever suas preferências literárias (com predominância de autores franceses, como era comum à época), explicita sua filiação crítica impressionista, debate a política literária do momento e escreve sobre amigos próximos ou ausentes, personagens que marcaram seus livros e situações banais ou curiosas do cotidiano. Ao tempo do lançamento de Eurídice em 1947, testemunha sobre a sua própria condição de autor: “Publico amanhã o meu décimo primeiro romance e volto hoje a me lembrar do primeiro que publiquei, em 1932, da tentativa do rapaz provinciano, em editora desconhecida, desprotegido, a custear a edição de sua novela, e sôfrego, na província, à espera da crítica dos grandes da metrópole”. Mais à frente, no mesmo texto recortado e sem título, não esconde o sucesso de crítica e desvenda também suas inclinações proustianas aplicadas ao Nordeste longínquo: “A sorte dera ao novelista estreante uma crítica animadora. E escreve

ele outro romance em 1933. O fio de suas memórias começa a correr como um regato que viesse das cabeceiras de sua vida. Todo o sonho de sua infância e o mundo de sua gente entram na composição do seu processo de contar. E o que era apenas a vontade de um livro único, cresce no desejo do levantamento de todo um universo. O tempo perdido caiu nas armadilhas do caçador”. Sem participar do rigor obsessivo de um Graciliano Ramos, por exemplo, não se pode dizer de José Lins, apesar das imposições editoriais a que sempre buscou atender, que tenha se descuidado do estilo e da poética na construção de seus romances. Dentro da sua oralidade irrefreável, aliada a uma forte e instintiva ligação telúrica e humana, empregou o melhor do seu esforço na consecução das obras que o tornaram popular e o consagraram junto à crítica. E nisto, no saber traduzir os anseios populares, na grande fidelidade que manteve em relação a si mesmo, na coerência de propósitos que sempre o animaram e deram impulso ao artista vigoroso de sua gente que foi e continua sendo, talvez resida o segredo de sua trajetória de ficcionista bemsucedido, no Brasil e em outros países.

Engenho Corredor, onde o escritor nasceu e passou a infância

Luiz Carlos Monteiro é crítico literário

Cronologia e Obras de José Lins do Rego 1901 – 3 de junho. Nascimento de José Lins do Rego, no engenho Corredor, em Pilar, estado da Paraíba. Filho de João do Rego Cavalcanti e Amélia do Rego Cavalcanti. 1911 – Estudos numa escola de Itabaiana. 1912 – Estudos no Colégio Pio X, em João Pessoa, Paraíba. 1920 – Ingressa na Faculdade de Direito do Recife. 1923 – Bacharel em Direito pela Universidade do Recife. 1924 – Casa-se com Filomena Massa (Naná). Desse casamento, nasceram três filhas: Maria Elizabeth, Maria da Glória e Maria Cristina. 1925 – Nomeado promotor público, em Manhuaçu, Minas Gerais. 1926 – Em Maceió, Alagoas, exerce a função de fiscal de bancos. 1932 – “Prêmio de romance da Fundação Graça Aranha” conferido ao romance Menino de Engenho. 1935 – Mudança para o Rio de Janeiro, onde passa a exercer as funções de Fiscal do Imposto de Consumo. 1941 – “Prêmio Felipe d’Oliveira”, conferido ao romance ÁguaMãe. 1947 – “Prêmio Fábio Prado”, conferido ao romance Eurídice. 1951 – Acompanha como presidente a Delegacia Brasileira de Futebol a Lima.

1956 – Membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira no. 25, em substituição a Ataulfo de Paiva. 1957 – 12 de setembro. Morre José Lins do Rego. Romances Menino de Engenho. Rio de Janeiro, Andersen, 1932. Doidinho. Rio de Janeiro, José Olympio, 1933. Bangüê. Rio de Janeiro, José Olympio, 1934. O Moleque Ricardo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1935. Usina. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. Pureza. Rio de Janeiro, José Olympio, 1937. Pedra Bonita. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938. Riacho Doce. Rio de Janeiro, José Olympio, 1939. Água-Mãe. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941. Fogo Morto. Rio de Janeiro, José Olympio, 1943. Eurídice. Rio de Janeiro, José Olympio, 1947. Cangaceiros. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953. Memórias Meus Verdes Anos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. Literatura Infantil Histórias da Velha Totônia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. Continente Multicultural 35


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LALO DE ALMEIDA / FOLHA IMAGEM

Com exclusividade, trechos inéditos de alguns narradores mais talentosos da nova geração

Nova literatura? Essa é boa

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O minicontista Evandro Affonso Ferreira

erguntaram ao matuto: “O que das calorosas. De 34 graus, na sombra. O Recife você acha do caratê?” O matuto: cada vez mais quente, ebulição cultural, cinema, “Pior é o cara não ter, né?” música et cetera. Quem me contou essa foi Carrero contou-me outra: “Não têm apareo escritor pernambucano Rai- cido contistas em Pernambuco”. Ri branco. Eu mundo Carrehavia feito lançamento recente do ro. Demos risa- Marcelino Freire livro Angu de Sangue, de contos.

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“Você não vale. Você foi embora faz dez anos”, disse ele. Repeti a piada numa reunião de novos escritores num café de São Paulo. A piada da arte marcial, claro. Que autoridade tenho para falar do que tem sido feito de novo na literatura em Pernambuco? Não sei das últimas. Marcelo Mirisola, na reunião, quis contar a de um japonês campeão de sumô. Impublicável. Mirisola é um dos escritores mais pervertidos e safados da última safra. Não poupa ninguém. Corta e castra. Tem uma relação avassaladora com os palavrões e as palavras. Deve-se a um agiota,

percussão na crítica. Foi chamado de gênio no jornal O Estado de S. Paulo. “De fato, tenho um gênio forte”, ele diz. Seus clientes que o digam. Ele é dono de um minissebo localizado numa movimentada avenida de São Paulo. Já expulsou muita gente de lá. “Um dia veio um cara atrás de uma biografia de Ulysses Guimarães escrita por James Joyce. Mandei ele se danar.” Evandro diz que é “niilista até a unha encravada do dedinho mindinho do pé”. E mais: que “não inventou o pessimismo, mas vive tentando aperfeiçoá-lo”. Considera a literatura “a maneira mais interessante de se ignorar a

Evandro Affonso Ferreira já expulsou muita gente do minissebo que tem em São Paulo, como um cara que veio procurar uma biografia de Ulysses Guimarães escrita por James Joyce não a um gigolô, a sua entrada na literatura. “Peguei três mil reais para publicar meu primeiro livro, Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia.” O ano passado, publicou O Herói Devolvido pela editora 34. Indicado para o Jabuti 2001 (“Só queria o dinheiro”), foi recebido de pernas abertas pela crítica, deu entrevista para Marília Gabriela, posou de maldito nas páginas da Playboy. Inclusive, está assinando uma coluna mensal na revista. “Falo sobre minhas experiências lingüísticas.” O fato é que virou celebridade. Idade: 34 anos. Cor: branca. Olhos: castanhos. Altura: 1,75. Publicou, em partes, sua polêmica novela na revista Cult, Acaju – A Gênese do Ferro Quente, a ser lançada no segundo semestre pela Ateliê Editorial. Atualmente, recebe alguns reais por mês da editora 34. “Sou o mais novo cafetão do mercado.” É pago para escrever suas memórias – um romance, guardado entre quatro paredes, chamado Um Garoto Triste Cavalgava Faxineiras. Outro que não fica atrás do Mirisola, é o minicontista Evandro Affonso Ferreira, 55 anos. Natural de Araxá, Minas Gerais, lançou no ano passado o livro Grogotó!, com uma gigantesca re38 Continente Multicultural

vida”. Disse que não abandonará os minicontos, que não tem fôlego para escrever um Guerra e Paz. Nem paciência. Dedica-se à organização de seus dicionários – coleciona palavras bafientas e estrambóticas – e ao novo livro, Catrâmbias, a ser lançado sabe-se-lá-quando. “Esperei dois anos pela TopBooks.” Brigou, esbravejou, pôs três pontes de safena. Valeu a pena. Se o conto é mini, a alma não é pequena. Nelson de Oliveira é, dos que participam dos encontros de novos escritores em cafés de São Paulo, o menos estreante. Seu primeiro livro foi um pulo-do-gato, marcou época, literalmente. Naquela Época Tínhamos um Gato foi um dos mais importantes livros da década de 90. Ele não acha. Não lambe a cria. Indagado sobre por que escreve, arranha. “Ninguém pergunta a um escritor por que ele come, por que mija.” Escrever, no caso dele, “é necessidade fisiológica tão urgente quanto o sexo e a alimentação”. E a evacuação. “Livro na gaveta, durante muito tempo, é câncer. Mais cedo ou mais tarde mata”, diz. Sugere a autopublicação. Esperou dez anos para ver o seu felino sair da toca. Embora ele tenha mostrado a língua antes, em


BERNARDO SOARES / DP

ALCIONE FERREIRA / DP

Raimundo Carrero (acima à esquerda), vencedor do prêmio Jabuti de Ficção em 2000, Gilvan Lemos, destaque em entrevista recente à revista Cult e o poeta Miró

REPRODUÇÃO

outra língua. Explica: “As fábulas, reunidas no Naquela Época Tínhamos um Gato, foram primeiramente publicadas em espanhol”, isso em virtude do prêmio Casa de las Américas que ganhou em Cuba. Só em 98 é que saiu no Brasil, pela Companhia das Letras, que também editou o seu primeiro romance, Subsolo Infinito. Tem, prontos, dois livros: O Filho do Crucificado – que reúne cinco contos e uma novela, e que será editado também pela Ateliê – e o Às Moscas, Armas!, que pode ser lido via internet (www.klickescritores.com.br/ catatau). Outro, assíduo de nossos encontros, é Luiz Ruffato, autor do recém-premiado livro (os sobreviventes) – assim mesmo, entre parênteses e caixa baixa. Recebeu Menção Especial no importante Casa de las Américas do ano 2000. Este sofreu mais do que o pão que o Mirisola amassou para ver o seu primeiro livro publicado, o elogiado Histórias de Remorsos e Rancores. Espalhou cartas de intenção para centenas de editoras e demorou para ser correspondido. Quando o livro saiu, estourou. Nada como o tempo e a Boitempo, “uma editora pequena, de esquerda, aguerrida, conhecida pela excelência do catálogo e pelo cuidado editorial – êta, puxa-saquismo!”, ele mesmo que diz, com seu sotaque cataquasense. Nasceu na mesma terra onde nasceu a lendária revista Verde. Por isso ele não perdeu a esperança. Nem o bonde. Seu livro de estréia, “não-comercial” – faz questão de ressaltar – está es-go-ta-do. O livro, não o autor. “Sou um sobrevivente.” Persiste. Agora, prepara seu primeiro romance. Quais as outras novidades? É o que sempre pergunto ao Tarcísio, quando visito a sua Livraria do Escritor Nordestino: “Que poeta é esse, pernambucano, que escreveu O Terceiro Olho Usa Lente de Contato?” Malungo. Uma vez, esbarrei em São Paulo com a poesia de Miró, outro conterrâneo, São Paulo, Eu Te Amo, Mesmo Andando de Ônibus. Porreta. Adriana Falcão escreveu A Máquina. João Falcão pôs a alma

e toda a engrenagem no palco. Um sucesso! Sem esquecer um dos livros mais bonitos que saiu há pouco tempo no Recife, o Cartas Marianas – quem as leu? Depoimentos ousados e emocionados escritos por Eugênia Menezes e Maria Pereira de Albuquerque. Putz! E o que dizer do Jabuti 2000 para o Carrero? Dizer que a literatura pernambucana, acredito, vai ter muitos outros bons motivos para sorrir. A excelente entrevista de Lemos do Gilvan na revista Cult é um aviso. Merecido. A bem-vinda agitação cultural promovida pela nova livraria Arraial – onde os escritores que estão por aí, confinados e esquecidos, ou doidos para estrear, terão agora a chance de aparecer para um cafezinho. E para ouvir a última de Carrero: a namorada falou para o namorado, “Você sua”. E ele: “Não se preocupe, querida, eu também vou ser seu”. (Nas páginas seguintes, textos inéditos dos quatro escritores comentados no artigo.)

Marcelino Freire é autor dos livros AcRústico, eraOdito e Angu de Sangue

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COMPANHIA DAS LETRAS / DIVULGAÇÃO

ALVARO MOTTA / AE

Nelson de Oliveira

Marcelo Mirisola A Mulher de Trinta e Oito – Sou um cara mau, compreende? – e apaguei o cigarro no colchão. Ocorreu-me – por que diabos? – a figura doutrinadora de Clodovil Hernández, fazendo biquinho. Eu disse pra ela ir rebolando em direção ao parapeito. – Olha lá pra baixo! – eu gritava “olha!, olha!” – e, no deck, enchia a cara de gin. Ela disse que tava “com medo” ou alguma coisa parecida – vestia um roupão felpudo. Quando esvaziei a garrafa de gin e me aproximei sem que ela percebesse, trazia no bolso do meu roupão (eu e ela de roupão, ridículos) um cutelo afiado e a surpreendi, gritando: – Um cutelo! – Ah, amor?! – Sabe pra que serve isso? Já ouviu falar em desossamento? A idiota recolheu-se na própria idiotice. O que chamam por aí de “posição fetal”. Uma puta frescura, diga-se de passagem. – Cê já voou? – perguntei pra ela e ao mesmo tempo joguei o cutelo do décimo segundo andar. Ela não sabia voar. E nunca ouvira falar em cutelos, machadinhas, desossamento. Mandei ela se desenrolar daquela posição idiota. E... Trecho do conto A Mulher de Trinta e Oito

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Odor Pára com isso, mulher, não me tortura desse jeito. O cheiro dos mamilos de Madalena passa pela minha fossa nasal e estimula-me as células olfatórias. Estimuladas pelo cheiro desse corpo tépido, caliente, as células se reúnem pra formar o nervo olfatório, a fim de prosseguir viagem até chegarem ao bulbo olfatório. Uma vez instaladas no bulbo, as células já estão no sistema nervoso central. De lá, as células alcançam o tálamo e o córtex orbitofrontal. Essas regiões, quando estimuladas, enviam informações pra outras áreas do cérebro – como numa explosão milimetricamente planejada capaz de arrasar metade de um continente. A ereção é conseqüência dessa explosão. Vem cá, Madalena, não faz assim comigo, deixa de bom-mocismo e se entrega de uma vez, que importa que sejamos irmãos?, sexo é sexo, tabu é tabu, o repúdio mendeliano ao amor consangüíneo é coisa de velho gagá, numa época como a nossa, você munida de anticoncepcional, eu de camisinha – só pra garantir –, podemos amar qualquer parente: pai, mãe, tio, tia, irmão, irmã, deixa de frescura, Madalena. Ó Senhor! O cheiro do púbis de Madalena passa pela minha fossa nasal e estimula-me as células olfatórias. Aí vamos nós outra vez! Estimuladas pelo cheiro desse corpo tépido, caliente, as células se reúnem pra formar o nervo olfatório, a fim de prosseguir viagem até chegarem ao bulbo olfatório. Uma vez instaladas no bulbo, as células já estão no sistema nervoso central. De lá, as células alcançam o tálamo e o córtex orbitofrontal. Essas regiões, quando estimuladas, enviam informações pra outras áreas do cérebro – como numa explosão milimetricamente planejada capaz de arrasar metade de um continente. Conto do livro Às Moscas, Armas, disponível apenas via Internet


(ela Tão leve em seus dezesseis anos, cirurgicamente branco levita o tênis milímetros das pedras portuguesas que a Rua Direita forram. Suspira. No chão, dribla, estendidas, lonas e plásticos pretos que seu olhar perseguem, calças jeans, brinquedos chineses, ervas medicinais, fitas cassetes, cedês piratas, barracas de frutas e estojos de perfumes paraguaios, quinquilharias cameleônicas: o pregão. Uma névoa gorda assenta no fundo do Canyon. A música, as músicas, alarida-se, algazarram-se, evolam-se rumo a (há, na nesga de céu, atando edifícios, uma enorme fazenda cinza) cinzas, fumo de gasolina e diesel de ônibus entocados nas Praças da Sé e do Patriarca. Suas coxas erigem os passos do Viaduto do Chá. Na banca, frente ao Teatro Municipal, exibem-se anéis, dezenas, que examina descuidadamente, Ah!, o de pedra vermelha no anular, Hum..., o que lembra um ésse, Lindo, princesa!, devolve, Ah!, não vai levar?, o tênis cirurgicamente branco sorri, intimidada, Vai... leva... faço um desconto... o coração, Ui!, desvencilha-se, a tentação pespegante, as pernas, segredadas na calça-uniforme azul-escuro, tropeçam nos dó-ré-mis expulsos da caixa-de-som rachada do ambulante, nos fá-sol-lá-sis espremidos da caixade-som da loja de departamentos, das claves que o moço-tatuagens liberta de um tosco instrumento, e se fundem dó-ré-mi-fá-sol-lá-sis se confundem na encruzilhada das Ruas Conselheiro Crispiano com a Vinte e Quatro de Maio, despertada a fome, motocicletas longa fila muletas, ônibus enfileiram gentes no Largo do Paissandu, pensa comer, no bolso

Trecho do romance inédito Eles Eram Muitos Cavalos FOTO DO ARQUIVO DO AUTOR

CÉLIO JR. /AE

Luiz Ruffato

quanto?, comida a quilo?, vermelho o farol, atravessa a faixa empurrando sombras, Ah!, um alguém sério, crente, um lar, filhos, afastado de onde barra-pesada mora, casas tristes barracos, mortos da segunda-feira oblíquos no asfalto, estupros aos sábados, roubos da terça, da quarta, da, esquecer os suores excitados do trem medonho encaixados na sua bunda abraçados em seus peitos, no Shopping Light, sem perguntar o preço, madame, baixar as caixas de sapato, madame, Princesa... quer fazer um book? Bonita... Aqui, meu cartão... Truque mais besta! Fernanda, boba, visgou na lábia, até foto pelada, Pra Playboy, Pra Globo, êta!, nem mais viu o ladino, deve ter negociado, tarado não falta, revista de sacanagem aos pregadores em varais pelas calçadas. De pé, o churrasco grego no pão, envolvido no guardanapo, mastiga, beberica grátis o vermelho copo plástico de refresco, devagar, chuleando os minutos que faltam para retornar à Rua Direita.

Evandro Affonso Ferreira Azombada Finalmente o arrufianado fincou as aspas no inferno, vinte anos depois todas as janelas do mundo se abriram de repente para mim, ombro mais leve parece, sensação de bola de chumbo invisível acorrentada nos pés nunca mais, de agora em diante apenas flanância flauteio flertes, ixe, deveria sair primeiro do cemitério para pensar essas coisas, corpo dele ainda quente na cova, falando nisso, não vou me sentir totalmente livre sabendo que ele meu marido rabacué seja como for continuará ali, sei lá, ainda acho que a cremação, bom, agora não tem mais jeito. Miniconto do livro inédito Catrâmbias

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ZENIVAL

FILOSOFIA

Tobias Barreto: uma obra esquecida Pouco lido no Brasil, poeta e filósofo mulato, cujo pensamento filiava-se às escolas germânicas, chegou a ser enaltecido por publicações de propaganda alemã Abdias Moura 42 Continente Multicultural

T

obias Barreto é um nome altamente reverenciado, mas talvez o menos conhecido dos escritores brasileiros. E isso não é uma constatação nova: em 1943, num livro impresso para a Livraria Martins Editora, de São Paulo, Hermes Lima já afirmava: Tobias Barreto, nome de que todos falam e se recordam, é, contudo, dos menos lidos pelas novas gerações. As primitivas edições de suas obras são hoje raridades bibliográficas. A edição completa delas, em dez volumes, teve tiragem muito pequena, além de não prestar-se ao manuseio do comum dos leitores. Minha dúvida – que me levou a reler parte de sua obra – foi sobre a motivação desse silêncio, quebrado, aqui e ali, por uma homenagem ao mestre da Faculdade de Direito do Recife, que até lhe adotou o nome como patrono. Formulei três hipóteses para explicar tal fato. Primeira, a decantada “falta de memória” do brasileiro. Ainda que um tanto mentirosa (artigos e livros falando de pessoas e coisas do passado são publicados diariamente), é certo que não temos o hábito de cultivar sistematicamente a lembrança dos grandes escritores, como se faz na França, por exemplo. É preciso que apareça um pedante querendo demonstrar sapiência, ou um parente saudoso, para que os nomes dos mortos ilustres sejam repetidos. E isso, em geral, não basta para estimular a leitura das obras antigas, salvo quando descobertas por cineastas ou autores de novelas noturnas de televisão. A segunda hipótese é a da própria dificuldade de leitura do conjunto da obra de Tobias. Com seu germanismo, gostando de pensar como um universitário europeu do seu tempo, ele seria incompreensível para os brasileiros, necessitando interpretações ou “tradução”. Para ilustrar o que estou dizendo: no citado livro de Hermes Lima (O pensamento vivo de Tobias Barreto), consta uma bela alegoria em que o pensador brasileiro aparece ligado mentalmente a cinco autores. Afora Silvio Romero, seu colega de Faculdade e maior divulgador, os personagens com quem apresenta parentesco intelectual são o francês Auguste Comte e os alemães Haeckel, Hegel e Kant. Finalmente, a terceira hipótese: Tobias Barreto tem sido discriminado pelos intelectuais brasi-


tumultuosa, em concurso célebre, de uma cátedra na velha Faculdade do Recife. E vamos encontrar o jurista emérito nas Questões Vigentes de Filosofia e de Direito, nos Estudos de Direito, em Menores e Loucos em Direito Criminal”. Páginas adiante, porém, o autor do texto reconhece: “Em Tobias Barreto não haveria um grande poeta; mas havia, certamente, um grande escritor”. Apesar dessa ressalva, a mesma revista transcreve dois poemas de Tobias (sempre em português, mas acompanhados pela tradução alemã), ambos extraídas do livro Dias e Noites, por ele editado em 1881. O primeiro poema é uma de suas criações simbolistas, Aspiração, do qual destaquei os seguintes quartetos: Conversa o mar com o céu, a flor e a estrela como duas irmãs que dormem juntas beijam-se, abraçam-se, estremecem lânguidas fazendo mútuas infantis perguntas. Somente o coração geme isolado neste deserto de perpétua lida, por isso folga de encontrar um verbo, uma voz que lhe fale doutra vida...

REPRODUÇÃO

leiros, pelo fato de haver escolhido como pátria intelectual um país (a Alemanha) contra o qual o Brasil se colocou, tanto na Primeira Grande Guerra, de 1914, quanto na Segunda, na década de 1940 (sendo que, nesta última, com o envio de força expedicionária para lutar contra o Eixo). Muito comentado tem sido o fato de que escreveu, em Escada, interior de Pernambuco, em sua própria tipografia, um periódico em alemão: o Deutscher Kampfer. E mais duas brochuras na mesma língua: Brasilien wie es ist e Ein offener Brief. Tenho em minha biblioteca uma preciosidade bibliográfica, infelizmente sem a capa e, assim, sem data de edição. É uma revista cultural bilíngüe (português-alemão), provavelmente editada no começo dos anos de 1940, quando a Alemanha procurava cortejar o Brasil para uma aliança contra a Inglaterra. É com certeza posterior a 1o de julho de 1939, data a que faz referência. O primeiro estudo é sobre o centenário de nascimento de Tobias Barreto, devidamente comemorado naquele país. Na abertura, desenho a bico de pena do pensador brasileiro, nascido em 07.06.1839 e falecido em 26.06.1889. Vejamos um pequeno trecho dessa apresentação, bem ao estilo do germanismo, ainda que se referindo a um mulato: “Superior à sua época, maior do que o meio em que viveu, ultrapassando os contornos geográficos do país para irradiar-se com fulgor nos meios cultos da Alemanha e ser consagrado por Haeckel como da estirpe dos grandes pensadores, Tobias Barreto chegou à glória mais depressa do que Tavares Bastos e com mais brilho do que Machado de Assis, os dois outros pináculos da inteligência brasileira, nascidos no mesmo ano de 1839”. Analisando Tobias Barreto como poeta, diz o autor do estudo publicado pela revista alemã: “Partindo da poesia, com Dias e Noites, foi um lírico de tintas suaves e puras, um precursor do simbolismo de Cruz e Souza, um épico condoreiro do movimento hugoano, um nacionalista do folclore sertanejo, cujos cantos dos violeiros do Norte vão se perpetuando anonimamente de geração em geração. Da poesia, evoluiu para a crítica filosófica e literária, escrevendo em Escada, no interior de Pernambuco, as obras admiráveis que são os Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica e os Estudos Alemães. O ciclo de evolução do seu pensamento se encerra com o Direito, de volta à capital, para a conquista

doutra luz, doutro ar, que se respira, doutro mundo, vestido de alvorada; ou sejam quebros de um olhar de virgem, ou sons duma harpa d’anjo além vibrada. Já o segundo exemplo é de estilo condoreiro, Pressentimento. Transcreverei a primeira e a última estrofes, que bastam para dar ao leitor – sobretudo se conhece a obra de Castro Alves, contemporâneo de Tobias na Faculdade de Direito do Recife, mas, em termos de poesia, muito superior ao colega mais velho – uma idéia do estilo inspirado no francês Victor Hugo de que fala a revista alemã:

Victor Hugo, inspiração poética evidente

Meu Deus!... não mais este laurel de espinho não mais a dor, que o coração devasta minha alma é farta de martírios... basta! deixai esta ave procurar seu ninho. No meu sepulcro não terei as rosas, as doces preces que os felizes têm, pobres ervinhas brotarão viçosas, e o esquecimento brotará também. .................................................................. Continente Multicultural 43


Os editores da revista não se contentam em falar da obra do autor nascido na pequena cidade sergipana de Campos. Lembram que seu pai, Pedro Barreto de Menezes, “mestiço acentuado”, era escrivão criminal, e que sua mãe, Emerenciana de Menezes, “passaria por fidalgamente branca em qualquer canto do Brasil”. Resumidamente: Tobias Barreto estudou (durante três anos) primeiras letras em sua terra natal, com o professor Manoel Joaquim de Oliveira Campos. Aos onze anos, partiu para a cidade de Estância, onde teve aulas de latim com o padre Domingos Quirino de Souza (mais tarde, bispo de Goiás) e de música com o maestro Marcelo Santa Fé. Na cidade de Lagarto completou os estudos de latim, em casa de outro padre, José Alves Pitangueira. Aos 16 anos abriu uma classe de primeiras letras e, dois anos depois, conquistou em concurso a cadeira de latim na vila de Itabaiana. A cronolo-

Em 1870, já na casa dos trinta anos, Tobias comprou no Recife um dicionário e uma gramática alemães e começou a estudar sozinho essa língua. Continuou seus estudos em livros que mandava buscar nas livrarias da Alemanha através do livreiro Laillacard, que tinha seu estabelecimento situado na Rua do Imperador. Com toda probabilidade, não sabia falar a língua, mas lia e escrevia quase sem erros

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gia não coincide exatamente com a de Hermes Lima, seu biógrafo, mas ambas as fontes concordam em que seguiu no início da maturidade para a capital da Bahia. O que aconteceu ali é contado apenas pelos admiradores da revista editada pelos alemães: fez o curso teológico “e recebeu ordens sacras”. Este último detalhe não se coaduna muito com a continuidade de sua biografia e deve ser visto com reservas. Tobias passou o ano de 1862 em Campos. Em dezembro, comprou passagem para o Recife. Mal chegado, contraiu varíola e esteve à morte. No final do ano seguinte, fez os exames preparatórios para a Faculdade de Direito do Recife, matriculando-se em 1864, tendo colado grau em dezembro de 1869. Antes e durante o curso, para viver, ministrou latim, francês, história, retórica, filosofia, matemática, qualquer disciplina que os estudantes desejassem. Ainda estudante, perto da formatura, casou-se com a filha de um senhor de engenho de Escada, zona canavieira de Pernambuco. Dois anos depois de formado em ciências jurídicas, Tobias retirou-se para a cidade de seu sogro, o “oronel” João Felix. Ali passou dez anos de sua vida. Dedicou-se à advocacia e depois adquiriu uma pequena tipografia. Foi eleito deputado pelo Partido Liberal, tendo feito vários discursos importantes. na Assembléia Legislativa de Pernambuco. Mas não foi reeleito. Tendo seu sogro morrido, houve uma grande disputa entre os herdeiros. De temperamento inflamado, Tobias Barreto incompatibilizou-se com alguns deles e teve de voltar ao Recife (outubro de 1881). No ano seguinte, disputou a vaga de lente substituto na escola em que estudara, tendo sua vitória sido homologada pelo imperador D. Pedro II. Na Faculdade de Direito do Recife, Tobias lecionou de 1882 a 1889. Além disso, deu um curso de literatura comparada, exercendo uma grande liderança intelectual sobre seus contemporâneos. Foi o líder inconteste de um movimento a que Sílvio Romero chamaria de Escola do Recife. Se teve formação intelectual com padres que lhe ensinaram latim, português e certamente também francês, humanidades e talvez até um pouco de matemática, que o ajudaram a entrar no curso de ciências jurídicas e a ganhar algum dinheiro dando aulas a rapazes abastados, não se sabe de

ZENIVAL

Meu Deus... não posso caminhar sozinho por entre as sobras que esta vida encerra; minha alma ansiosa quer voar da terra, deixai esta ave procurar seu ninho. No pó que habito não terei as rosas, as doces preces que os felizes têm, pobres ervinhas brotarão viçosas e o esquecimento brotará também.


nenhum mestre que lhe tenha ensinado alemão, língua de sua preferência e que lhe abriu caminho para contatos proveitosos com a vanguarda do pensamento europeu, em sua época. Temos de acreditar, portanto, na versão divulgada por Sílvio Romero, de que em 1870, já na casa dos trinta anos, Tobias comprou no Recife um dicionário e uma gramática alemães e começou a estudar sozinho essa língua. Continuou seus estudos em livros que mandava buscar nas livrarias da Alemanha através do livreiro Laillacard, que tinha seu estabelecimento situado na Rua do Imperador. Com toda probabilidade, não sabia falar a língua, mas lia e escrevia quase sem erros. A tal ponto preferia o alemão ao português que, em 1887, admitiu jamais haver lido Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão (Ap. Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, vol. IV, p. 171). José de Alencar ele conhecia, mas abominava sua criação estilística e literária. Apesar de toda a sua inteligência, de haverse casado com uma moça rica e de tantas atividades intelectuais desempenhadas, o escritor ao adoecer, perto dos 50 anos, teve de recorrer à caridade pública. Sua última correspondência, datada do Recife, a 19 de junho de 1889, foi dirigida ao seu amigo Sílvio Romero e transcrita por Hermes Lima. Diz que esperava a morte e pedia alguma remessa de dinheiro. Faleceu uma semana depois.

A biografia aqui resumida é ponteada, na revista alemã, por comentários que merecem transcrição. Depois de dizer que Tobias nasceu na pobreza, para morrer numa pobreza ainda maior, na casa de um discípulo condoído pela sua penúria, o autor do estudo transcreve uma descrição feita por Afonso Dionísio Gama, que o conheceu três anos antes da sua morte: “Vi diante de mim um homem de cor, feio a valer, algum tanto alquebrado, com os cabelos desgrenhados, dentes pouco cuidados, vestindo uma calça branca amarfanhada, sem colete, velho paletó de alpaca preta, camisa desbotada, gravata de retroz escuro, botinas de elástico bem maltratadas”. Mas, não se esquece também de transcrever o depoimento de Graça Aranha, sobre a presença altiva diante da banca examinadora, no concurso prestado na Faculdade de Direito do Recife: “Tobias, mulato desengonçado, entrava sob o delírio das ovações. Era feio, desgracioso, transformava-se, na argüição e nos debates de concurso. Os seus olhos flamejavam, da sua boca, escancarada, roxa, imóvel, saía uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo, profundo, sugestivo.”

Antiga Faculdade de Direito do Recife, onde, segundo Graça Aranha, Tobias entrava sob ovação

Abdias Moura é escritor. Entre seus livros publicados, estão O Sumidouro do São Francisco, As Sociedades no Planeta Terra e Memórias do Século XX

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CONVERSA FRANCA

“Europa

não tem projeto cultural” Filósofo diz que a pós-modernidade está no centro do poder neocolonial, fala das novas formas de escravidão, confessa a influência de Oswald de Andrade e define arte européia como reciclagem barata e narcísica

E

duardo Subirats se considera americanos as conseqüências dessa colonização. exilado da Espanha. Bate de Pior: teriam truncado um projeto social e político frente contra a intelectuali- emancipador, desenvolvido nas obras de artistas dade do seu país – e com uma como José Maria Arguedas, no Peru; Juan Rulfo e tradição de pensadores como Diego Rivera, no México; Oswald de Andrade e Ortega y Gasset, Menéndez Tarsila do Amaral, no Brasil. Pelayo e Miguel de UnamuO seu mais recente livro, A Penúltima Visão no, a quem acusa de fundar uma identidade na- do Paraíso, propõe retomar esse projeto latinocional católica às custas do esquecimento de heran- americano que o autor identifica no Manifesto Anças judias e mouras. tropofágico. Em visita ao Brasil para o lançamento Em sua crítica, Subirats compara tal “ce- do livro, Subirats concedeu entrevista à Continente gueira histórica” com o processo de colonização das Multicultural, em que falou sobre o potencial revoAméricas, e com as teorias do pós-moderno, que lucionário da cultura brasileira, Internet, vanguarteriam eliminado das preocudas históricas, pós-modernidade pações dos intelectuais latino- Alexandre Bandeira e paraíso. 46 Continente Multicultural


Por que Oswald de Andrade e o Movimento Antropofágico foram desconsiderados?

ROBERTO RÔMULO

O que a pós-m modernidade tem de particular no Brasil? Acho que a pós-modernidade no Brasil não existe, felizmente. A pós-modernidade é um invento americano, como a Coca-Cola. É um mirage da academia norte-americana, sobre a base do próprio interesse de americanização planetária. Obviamente os intelectuais norte-americanos estão interessados em que todo mundo seja pós-moderno, desde os índios do Amazonas até as formigas de Machu Pichu, mas isso é simplesmente uma vontade universalista como a dos missionários cristãos quando chegaram aqui, a colocar tangas nas mulheres indígenas. É a mesma coisa. O que há de particular no Brasil é uma grande experiência histórica, no século 20, artística, arquitetônica, poética, e também da cultura popular. Experiência de uma vitalidade e uma originalidade extraordinárias, que é internacionalmente – voluntariamente – ignorada, e que no mundo norte-americano é absolutamente censurada. Pode ser um ponto de partida muito positivo para uma reflexão sobre a situação atual. Em outras palavras, o pensamento filosófico de Oswald de Andrade, que não é considerado por ninguém nos meios mais chatos do academicismo do país, é neste momento de uma intensidade, de um vigor de crítica muito mais importante do que as bobagens que vêm falando Jameson [Fredric Jameson, autor de Pós-modernismo ou A Lógica do Capitalismo Tardio], ou esse senhor que estou lendo agora, Huyssen [Andreas Huyssen, autor de Memórias do Modernismo], que está em moda há alguns anos. A obra do Darcy Ribeiro tem uma importância e um potencial crítico, com sua visão humanística, extraordinário. É um referencial muito mais importante que muitos autores da América Latina considerados importantes. Não se pode compará-lo à visão muito reduzida ao mundo mexicano de Octavio Paz; não se pode compará-lo ao marxismo um pouco anêmico do muito respeitável Eduardo Galeano; nem ao oportunismo político neoliberalista de um Vargas Llosa, para colocar um contraponto. Acho que é preciso fazer um esforço de recuperação e reelaboração desse pensamento e de formulação de um projeto original brasileiro.

Acho que alguma coisa aconteceu no momento da transição democrática nesse país. Em vez de estabelecer um contato com a poética, com os projetos políticos, intelectuais e filosóficos que constituíam o centro das vanguardas dos anos 20 – e também de outro grande momento, o momento do Tropicalismo, nos 50 e 60 –, em vez de retomar esse pensamento e reformular suas idéias num plano contemporâneo, houve uma camada academicista que introduziu o pensamento norte-americano pós-moderno e cortou os laços com esse projeto, mutilado pela ditadura. Acho que essa tese que estou formulando se aplica também à Espanha e a muitos países da América Latina que fizeram essa transição. Está acontecendo a mesma coisa no México, aconteceu um processo muito parecido na Argentina. Acho que é um processo bastante geral, que se pode formular da seguinte maneira: o pós-modernismo, como doutrina alheia introduzida por uma série de intelectuais ligados ao conservadorismo neoliberal, serviu para truncar o projeto emancipador, social e político, de características nacionais e latino-americanistas, que foi desenvolvido nas grandes obras intelectuais desse período. Ou seja, Arguedas, no Peru, Guimarães Rosa, no Brasil, Rulfo, no México.

O filósofo espanhol Eduardo Subirats

O que há de melhor no pensamento de Oswald de Andrade? Ponto um: a originalidade e a radicalidade de Oswald de Andrade estão voltadas para uma crítica da civilização industrial, que parte de um paradigma muito profundo. É uma crítica que tem a ver com fundamentos religiosos da civilização ocidental e com os fundamentos epistemológiContinente Multicultural 47


REPRODUÇÃO

Retrato de Oswald de Andrade, pintado por Tarsila do Amaral

cos da civilização industrial. Essa crítica não é comparável com as estratégias muito locais e conjunturais do pós-modernismo em geral. O pósmodernismo fala apenas da transformação do capitalismo nos últimos 20 anos, não problematiza nem a epistemologia tecnocientífica nem os fundamentos morais repressivos da sociedade cristã. Oswald de Andrade faz isso. Ainda que fragmentário e em muitos aspectos mal formulado, o seu pensamento é de uma enorme importância. O outro aspecto central na obra dele é a crítica ao colonialismo. Que obviamente não se encontra em nenhum lugar da pós-modernidade, porque a pós-modernidade está situada no centro do poder colonial, pós-colonial ou neocolonial, como queiram. A crítica de Oswald de Andrade é também muito original: não é apenas a crítica à invasão, ao colonialismo como fato político, como é a teoria da dependência; não, tudo está incluído. O ponto principal é que ele toma como ponto de partida, de uma forma que só havia aparecido no século 17 na história da América Latina, a forma de vida, de cultura, de concepção do corpo, de concepção artística, das culturas não-industriais, não-ocidentais da América Latina, ou seja, particularmente dos índios e dos pretos. Esses dois elementos são os que dão ao pensamento de Oswald de Andrade uma profundidade imensa, uma grande originalidade e um enorme potencial renovador do pensamento contemporâneo. Neste sentido eu acho que o pensamento de Oswald de Andrade foi, para mim, de um enorme valor inspirador, pois me ajudou a formular uma teoria do presente que, acho, é muito mais articulada e crítica do que muitas análises conjunturais pós-modernas.

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E você inclui a teoria de Jameson no meio dessas análises conjunturais? Não encontro nele uma visão profunda da situação contemporânea. Em verdade, eu acho que os pontos de partida da definição do pós-moderno são pontos que têm a ver com a realidade norteamericana, onde são importantes o simulacro, o poder tecnocientífico, a formulação de uma neovanguarda, a nova cultura popular nascida dos meios de consumo e comunicação de massa. Mas há outros aspectos que também são muito importantes para definir a contemporaneidade não pós-moderna. O continuado genocídio que tem lugar hoje na África, na Ásia, na América Latina, com objetivos econômicos muito evidentes; a mobilização de uma massa desarraigada que é reciclada brutalmente como uma nova escravidão pósindustrial; esse é um fato radicalmente definitório do mundo contemporâneo. O progresso armamentista da pós-Guerra Fria e os comércios legais e ilegais de armas, e as guerras globais que nesse momento têm lugar no mundo inteiro são outro aspecto central da definição do mundo contemporâneo, neste momento de crise da modernidade. O problema da destruição ecológica é um problema radical, central, do mundo contemporâneo. E as novas formas de resistência no mundo inteiro também são aspectos que definem a modernidade. Nenhum desses elementos está no menu do pós-moderno. Simplesmente foram rejeitados. O pós-m moderno desvia a atenção para problemas secundários? Eu concordo com Habermas que o pósmodernismo, como sociologia estética, e o seu background teórico, ou seja, o pós-estruturalismo, basicamente Foucault e Derrida, são movimentos culturais de caráter profundamente conservador e muitas vezes explicitamente reacionário, que basicamente dispersaram a crítica social que foi desenvolvida a partir dos anos 60. A função política foi de esquecer este momento de iluminação, de clareza e de ilustração no mundo inteiro, tanto no Primeiro Mundo quanto no Terceiro Mundo, precisamente esquecer estes aspectos negativos do capitalismo. A crítica que se fez então, tanto da família quanto das novas formas de controle social eletrônico, desapareceram sobre a capa das construções teóricas pós-modernas.


“A obra de Darcy Ribeiro é um referencial mais importante que a visão reduzida ao México de Octavio Paz, ao marxismo um pouco anêmico de Eduardo Galeano ou ao oportunismo neoliberalista de Vargas Llosa”

REPRODUÇÃO

A sua idéia de recuperar um projeto latinoamericano vai de encontro ao que se está definindo, dentro do pós-m moderno, como uma crise das identidades. Acho que esse é um pensamento errado. Neste momento, a Europa está formulando uma identidade exclusivista, racista e imperialista de uma potência bastante importante. Os Estados Unidos estão criando uma identidade de poder mundial claríssimo e bastante problemático. É este discurso conservador que está dizendo precisamente a culturas como a brasileira ou a latino-americana em geral: “Vocês não se preocupem, vocês já não são latino-americanos, vocês não são nada, são híbridos, são mestiços. Não se preocupem com a identidade, nós vamos fazer museus Guggenheim no Rio de Janeiro para explicar o que vocês são”. Mas essa é a tática dos missionários quando vieram aqui, “Não se preocupem, vocês

não são índios, aquilo em que vocês acreditam é tudo falso, agora comprem essas coisas e paguem os impostos e dêem-nos ouro”. Esta é mais ou menos a filosofia que está atrás do pós-moderno. Não, não é a identidade, o problema hoje é a recuperação da memória de um projeto, que era um projeto social, crítico, teórico, artístico, e de recuperação de uma tradição cultural. É um projeto hermenêutico no sentido mais radical da palavra. Um projeto humanista. Acho que essa é uma tarefa ampla que hoje se deve fazer. E que significa uma revisão de vanguarda e uma coisa que a mentalidade pós-moderna tem reprimido brutalmente, a reflexão sobre os problemas sociais derivados do neoliberalismo. Você argumenta que a pós-m modernidade na América Latina é uma construção teórica enquanto os autores do pós-m moderno argumentam que ela é uma constatação. Para se definir a condição histórica de um país como o Peru, Argentina, Brasil, ou da América Latina, em termos globais, há algumas premissas que têm que ser colocadas antes de se estudar shopping-centers. O que foi a colonização? Essa pergunta tem sido desgraçada, reprimida. Mas é uma pergunta pertinente porque o processo de colonização na América Latina não é um processo acabado. A A tropa de Hernan Cortés em luta com os Astecas


guerra na Colômbia é um modelo que segue basicamente os princípios da colonização espanhola, sob novas formas, novas retóricas. É uma guerra de colonização da selva, de genocídio, de deslocamento para a colonização e exploração dos recursos industriais e pós-industriais da selva. A guerra de Chiapas é uma guerra colonial, exatamente no sentido das guerras espanholas e com os mesmos objetivos básicos: exploração extrativista de produtos minerais, petróleo, biodiversidade e água. O segundo aspecto definidor da situação histórica da América Latina é a independência. A independência e a modernidade ligada à independência foram feitas sobre a base de um pensamento não-moderno, que arrastava muitos elementos feudais. Aliás, no caso do Brasil arrastava a direta herança do império português. Ou seja, se cruza-

cultura popular é idêntica ao junk, ao trash, produzido pela indústria de massas. E a outra diferença é que há um elemento na vanguarda latino-americana, por exemplo, na Antropofagia, na pintura de Diego Rivera, ou no pensamento de Arguedas, que não existe nem na vanguarda européia nem na norte-americana, que é o anticolonialismo. Porque a Europa não era uma colônia, era um sujeito colonizador. A vanguarda européia está definida como um projeto de recolonização, o internacionalismo vanguardista é um internacionalismo de recolonização, que retorna à visão dos universalismos imperialistas dos séculos 16, 17 e 18. Mesmo quando os artistas europeus passaram a buscar as raízes de culturas não européias?

“O paraíso subsiste ameaçado e degradado, como o Brasil, onde há ‘ilhas’ em que podemos reconhecer a liberdade e a beleza juntas”

ram os ideais modernos de liberdade, de soberania nacional, democracia e sociedade civil, com esta herança que não era moderna. Este drama aconteceu mais ainda nos países hispano-americanos. A revolta foi rapidamente dominada por um novo sistema autoritário derivado das concepções de poder de raça e de colonização na época espanhola. E um terceiro elemento que deve ser estudado é a modernidade artística do século 20 na América Latina, que tem elementos que são radicalmente diferentes do que os da modernidade européia. Quais as principais diferenças? Há duas, basicamente. A vanguarda aqui não parte de uma negação do passado, mas sim, de uma recuperação do passado destruído. Um elemento que não existe nas vanguardas européias. É por isso, por exemplo, que o planejamento de cultura popular e modernidade num país como o Brasil é radicalmente diferente do que analisa o pósmodernismo no contexto norte-americano, onde 50 Continente Multicultural

A pesquisa de Picasso sobre as máscaras africanas, ou a dos expressionistas alemães sobre o conceito não industrial da natureza é um elemento alheio à dialética das vanguardas. Picasso estava contra as vanguardas, e Paul Klee, como outro expoente privilegiado da arte mais refinada da Europa neste período entre guerras, radicalmente negava pertencer a coisas tão feias como as vanguardas. Afinal, vanguarda é um conceito que procede de estratégias militares do século 19, e das estratégias políticas totalitárias do comunismo do século 20. Então esse conceito de vanguarda é sumamente duvidoso. Também é duvidosa a correspondência que se faz normalmente com subversão, com modernidade, com emancipação. O modelo básico das vanguardas históricas européias é o Futurismo. E o Futurismo era a expressão esteticista do Fascismo italiano. Não acho que o Fascismo italiano tivesse dimensão emancipatória nenhuma. Era o culto da agressão, da guerra e da recolonização da Europa em nome da máquina, e do mundo em nome do industrialismo legalizado.


Falando em vanguardas, você argumenta que a arte moderna se esvaziou justamente quando passou a repetir as fórmulas das vanguardas, sem o teor crítico que havia na origem. Como vê esse esvaziamento na arte brasileira? Eu não sei onde está o esvaziamento na arte brasileira. Eu chego aqui no Recife, que foi considerado o centro do mundo, e vejo no museu obras fantásticas de João Câmara. Isso não é esvaziamento, João Câmara é um artista de uma força, de uma crítica social, de uma intensidade. O esvaziamento está na Europa. Obviamente a Europa só tem um objetivo: enriquecer, enriquecer, enriquecer, nas costas dos pobres que não são da Europa. Isso não é um projeto cultural. A arte européia nesse momento é reciclagem do que foi, é uma auto-afirmação narcisística barata.

Não há o perigo de, sob todo esse peso, do “lixo do mundo”, sufocarem a arte e a intelectualidade brasileiras? Não, acho que o grande inimigo hoje para o desenvolvimento da criatividade – em todos os níveis, desde a criança que está na escola até o intelectual, na universidade –, o grande perigo é a informática e a televisão, ou seja, os meios de manipulação das massas, que controlam a informação monopolisticamente, que podem fazer qualquer coisa, censurar, transformar, deformar, são capazes de substituir o real por uma piada. E estão fazendo isso permanentemente. Não significa que se deva demonizar os meios de comunicação de massa, nem mais nem menos do que deveria ser demonizado o poder da propaganda da Igreja no século 16 ou 17 nesse país,

“O processo de colonização na América Latina não está acabado”

Claro, a América Latina está vivendo uma situação muito dura, que exige dos intelectuais respostas muito mais intensas e universalistas, porque os problemas que vivem são problemas globais. Porque é o lixo do mundo que vem para cá, em todos os sentidos: os produtos mais degradados, os sistemas de produção mais espoliadores da força humana e os processos de destruição da natureza mais violentos. Isso tudo cria necessariamente uma resposta, dos intelectuais latino-americanos e brasileiros, mais consciente e radical do que dos professores da minha cidade, que não vêem mais além da praça Washington Square. Estes definem a pós-modernidade a partir de algumas características do consumo de alto nível das grandes metrópoles pós-industriais norteamericanas. Países como os Estados Unidos vivem o êxtase de um consumo completamente irracional, com uma ligeira consciência de que esse bem-estar é uma bolha de sabão, construída sobre bases militares e financeiras que são absolutamente precárias.

com a Inquisição. Mas é preciso definir claramente estratégias lingüísticas, estilísticas, didáticas, de defesa contra essa invasão. Mas você vê a cultura brasileira respirar, apesar de tudo? Sim, absolutamente. Por muitos motivos, um deles é que a vida intelectual brasileira não está separada dos problemas sociais, ou pelo menos não em grau tão radical como na Europa ou Estados Unidos. Qualquer professor universitário, estudante, intelectual ou artista sabe o que está acontecendo na sua cidade, à sua volta. E há muitos intelectuais que estão trabalhando nesta área da integração, do diálogo com a sociedade. Isso não acontece em Nova Iorque, onde os negros e os hispânicos são vítimas de abusos de todo o tipo, desde abusos das próprias centrais industriais e dos meios de massa até os abusos da polícia, que constantemente está acima deles, desrespeitando os seus direitos; tudo isso está completamente ausente da vida dos intelectuais que falam de pósContinente Multicultural 51


Outro fenômeno que está ligado à Internet é o isolamento. Graças à Internet, agora, o isolamento das pessoas é absoluto. As pessoas que se autoproclamam desenvolvidas estão trabalhando numa linha de produção de oito, nove horas diárias, na Você critica a Internet como um meio de qual estão submetidas a uma racionalização opemanipulação das massas. Mas ela é vista por mui- rativa e produtiva, portanto desenvolvem relaciotos como a possibilidade namentos sumamente “O Realismo Mágico é uma de uma utopia demopobres, e quando saem crática. daí a única alternativa estética neocolonialista, que têm é entrar num A Internet está é a imagem da América Latina bate-papo eletrônico, sendo comercializada, e que quer ter a classe média que ou nos famosos websites cada vez mais o que se de pornografia. Que, encontra nela são shopo consome, a visão que a não bastasse ser o maior ping-centers, muito vaEuropa sempre teve” negócio na Internet, riados, de sexo a literatura, de terrorismo a está aumentando, o que drogas. significa que a sexuaParalelamente a lidade hoje da socieessa comercialização, a dade norte-americana Internet está sofrendo está reduzida à masturum processo progressibação. vo de controle eletrôniÉ claro que não co dos seus usuários. é preciso demonizar a Ou seja, o que era uma Internet, mas pensar utopia de uma nova que a Internet é a realidemocracia virou piada. zação da felicidade huAtenção com o que vomana e o retorno ao pacê escreve nos e-mails, raíso é uma piada. porque pode ser rasO paraíso é, treado pelo servidor da aliás, tema do seu últisua empresa. A sensamo livro, A Penúltima ção de que a Internet Visão do Paraíso. Por está virando o big brother que a escolha? é cada vez maior. Além disso, deHá uma experivemos também ser ência – não é uma utoconscientes dos aspectos pia, é uma experiência – negativos da comunicação da Internet, que é com- que na cultura ocidental só existe na América Latipletamente assexuada. Mesmo nos famosos affairs na. Que é a experiência do paraíso. Esquecem, por virtuais, a característica mais importante é que não motivos em primeiro lugar religiosos, dogmáticos, há contato humano, sensual, e não há contato sexual que o motivo central da descoberta da América por no sentido interessante da palavra sexualidade. Cristóvão Colombo foi o encontro do paraíso. E é o Além disso, os contatos sociais através da motivo central em duplo sentido: no sentido prograInternet são interessantes, mas são unilaterais tam- mático e no sentido estético, porque era impressiobém. Não se pode comparar a experiência pessoal nante a beleza, a pureza e a felicidade dos homens e de estar num comício, ou numa reunião numa pra- mulheres que viviam nessa parte do mundo. ça pública, a simplesmente estar nestes cyber-cafés. E os missionários cristãos, espanhóis parHá uma perda da dimensão humana, psicológica, ticularmente, que eram verdadeiros criminosos, se sensitiva, que é importante. assustaram grandemente quando perceberam que REPRODUÇÃO

modernismo. Inclusive é muito interessante que, dentro da literatura do pós-modernismo, de todos os cânones norte-americanos, o problema da violência não existe.

A Execução do Imperador Maximiliano, do ciclo da História do México, afresco de Diego Rivera

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O conceito de paraíso também está bastante ligado ao Realismo Mágico. Uma corrente de autores identifica nessa escola um caráter pós-ccolonialista, que vê o continente como exótico. O Realismo Mágico é uma estética neocolonialista, certamente. É a imagem da América Latina que quer ter a classe média que o consome. É uma visão de mundo feliz na sua irracionalidade. É a visão que a Europa sempre teve. Os desenhos de De Bry, do século 16, mostravam a mesma coisa. Não, o que estou colocando no livro não tem nada a ver com o Realismo Mágico. É precisamente por isso que eu faço uma menção muito breve, mas acho que suficiente, a um autor que o Realismo Mágico tratou de eliminar: José Maria Arguedas. Junto com Guimarães Rosa, ele é o grande artista latino-americano, que penetra lingüística, antropológica, filosófica e religiosamente no mundo Quetzchua. Que não era o seu mundo,

mas que ele conhecia muito bem porque nasceu no meio desta vida Quetzchua, do mundo Inca. Mas ele não transforma esse mundo, positivisticamente, num gadget maravilhoso. Ele analisa este mundo como ele realmente é: um mundo ameaçado, destruído, constantemente erocionado pelo racismo, pela super-exploração, pela perseguição policial. Essa é a perspectiva que estou assinalando, não é o paraíso reencontrado, é um paraíso destruído. Qual é a participação da Espanha neste paraíso latino-aamericano? Sou um exilado da Espanha. Exilado intelectual, não político, claro. Hoje não existe o exilado político porque a política nas sociedades chamadas desenvolvidas é a administração da cultura como espetáculo. Não existe o intelectual politicamente exilado. Existe o intelectual eliminado da vida pública através da administração do espetáculo. Acho que a Espanha ainda tem que repensar a sua origem a partir da destruição das culturas e das línguas dos árabes e dos judeus da Península Ibérica. Nenhum autor espanhol aceitou – muito poucos – ou pensou radicalmente este problema. O segundo aspecto que formou a grandeza da Espanha foi o seu imperialismo cristão. Que foi um imperialismo antimoderno, foi um imperialismo feudal, como muito bem define Darcy Ribeiro. E hoje a Espanha está embarcada num sonho financeiro e neoliberal, que acho muito legítimo, na medida em que está criando uma importante riqueza econômica para o país, só que culturalmente está criando umas ideologias, uns mapas intelectuais que eu acho sumamente reacionários. É um país onde a vida acadêmica está dominada por uma corrupção, por um monopólio, e onde as divergências com a opinião oficial deste monopólio da mídia são rejeitadas absolutamente. Acho que as pessoas mais críticas que conheço, todas estão fora da Espanha, muitas, nos EUA. REPRODUÇÃO INTERNET

existia uma forma de vida harmônica, cultivada, que contradizia toda a dogmática do Cristianismo. O que depois aconteceu, todos sabemos. A exploração do índio, a escravidão, o genocídio. A destruição do paraíso. Resulta que, apesar disso, o tema do paraíso aparece uma e outra vez, ao longo da história cultural da América Latina, como um motivo crítico contra o processo da sua destruição. Porque apesar de tudo, o paraíso subsistiu. Subsistiu ameaçado, degradado, e ainda subsiste nos dias de hoje. Ainda há algumas “ilhas” maravilhosas, no Brasil precisamente, onde podemos reconhecer a liberdade e a beleza juntas, e formas de vida harmônicas com a natureza. Então, peguei esses dois extremos como momentos de uma tensão para colocar dentro dessa tensão uma série de problemas relativos à modernidade, pós-modernidade, ao processo de colonização, aos meios de comunicação de massa, uma análise do fascismo moderno, da crise da sociedade industrial.

Subirats: “A pornografia é o maior negócio na Internet, o que significa que a sexualidade dos norte-americanos está reduzida à masturbação”

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CRÍTICA DA CULTURA

Periferia exige nova crítica

Acima e na página oposta, graffiti e funk, símbolos de manifestações culturais periféricas que cada vez mais se articulam com a classe média

Nunca, na história, o underground teve diante de si o arsenal e o espaço que se descortinam agora com a cultura web e as potencialidades tecnológicas

G

eralmente recorro ao estudo da preciado pelo mercado, de certa forma passa tampoesia quando me vejo com bém a ser o segmento “mais livre” das pressões desdificuldades no diagnóstico da se mesmo mercado, adquirindo assim uma maior produção cultural contempo- margem de manobra para a experimentação e asrânea. A escolha se dá por mo- sertividade do que as outras formas artísticas vistas tivos meio insólitos. O primei- como mais “rentáveis”. Outro fato que me parece ro é porque sou uma fanática curioso, e termina sendo relativo ao anterior, é a forleitora de poesia e, portanto, um pouco “crente” no ma como a poesia repercute, com alto grau de preseu poder de resposta aos limites e constrangimento cisão, as questões latentes nos demais segmentos da de momentos históricos de impasse para a produção produção cultural de um dado momento ou contexcultural. O segundo é o fato de que, sendo a poesia to social e político. (Quero sublinhar que o que acao segmento da produbo de observar sobre a ção cultural mais de- Heloísa Buarque de Hollanda quase desvinculação 54 Continente Multicultural


interpretação do Novo Historicismo e dos Estudos Culturais. Volto ao caso da poesia 90. Um primeiro contato com essa produção poética vai de fato proporcionar uma visão pouco entusiasta desse material. Vê-se um conjunto de poemas aparentemente pouco original, sem nenhum estilo ou referência definidos. Se entretanto não desistirmos da leitura, algumas novidades podem nos surpreender. A primeira vai ser a extraordinária e mesmo inédita diversidade de vozes que se firma nesta década e que se expressa na forma de um irreversível multiculturalismo no interior da dicção cultural contemporânea. Não vou me ater a este ponto, porque, por ser um de meus prediletos, correríamos o risco de não sair mais dele. Fico então apenas com o registro desta diversidade de dicções e de alguns avanços significativos, como o fato de que a poesia escrita por mulheres, hoje, já se traduz numa produção que abarca 50% do mercado de poesia, seguida pelo avanço também significativo da poesia negra, cuja presença é hoje também bem mais evidente do que nas décadas anteriores. E, sobre ambas, pode-se observar uma transformação qualitativa sem precedentes. Eu diria mesmo que, neste momento, nem a poesia de mulheres nem a poesia negra se confinam no território das lutas identitárias nem do intimismo problematizado que as lançaram, com tanto sucesso, nos anos 60-70, revelando, ao contrário, uma liberdade experimental de pesquisa já bem distante do calor das descobertas de primeira hora, ainda que a elas estreitamente vinculadas. Não posso ainda deixar de referir a emergência nesta década, com força total, da poesia gay, extremamente criativa e forte, e da presença assumida de um olhar judaico, fato raro ao longo de nossa história literária. Mas, multiculturalidades à parte, o que particularmente me chamou a atenção no pa-

RENATA MELLO / TYBA

As mulheres já são 50% entre os poetas, e no mercado emerge com força total uma poesia gay, extremamente forte e criativa RENATA MELLO / TYBA

GEYSON MAGNO / LUMIAR

entre poesia e mercado não carrega minimamente nenhum critério de valor, sendo tomado aqui apenas como um ponto de vista tático de observação da poesia.) Além destes fatores, me interessou particularmente a existência de um quase consenso sobre a falta de interesse da novíssima poesia dos anos 90, qualificada como conservadora, tradicionalista e, sobretudo, sem nenhum nervo crítico. Uma poesia que refletiria apenas a apatia de uma geração marcada pelas pressões do mercado e das novas tecnologias, pela cultura de massa e, portanto, pela ausência de qualquer projeto transformador ou inovador, fosse ele político ou estético. Entretanto, ao lado destes diagnósticos pessimistas, o que se vê é uma nova produção ocupando um espaço razoável na grande imprensa, o lançamento de novas revistas especializadas em vários pontos do País e a proliferação de eventos bastante profissionais para a leitura de poesia, caracterizando, portanto, um certo aquecimento neste mercado. O primeiro problema a ser enfrentado é a enorme fragilidade dos parâmetros de trabalho e modelos de interpretação disponíveis, que são aqueles ainda de natureza modernista, e que mostram uma significativa ineficácia como categorias de análise para o exame das transformações culturais em curso. Na área de literatura, que é o caso em questão, tornou-se extremamente complicado utilizar não só esses modelos, mas, sobretudo, o quadro de valores que sempre informou esta atividade crítica. Por exemplo, a noção de qualidade literária ou estética – até pouco tempo “intocável” e intocada pela crítica –, em função das interpelações que vem sofrendo por parte dos movimentos literários não canônicos, transformou-se hoje num terreno arenoso e mesmo temerário. Parece então que o último caminho que nos resta como alternativa ainda viável é praticar uma atenção redobrada ao contexto, com a historicização não apenas da criação textual, mas, sobretudo, dos processos de transformação do espaço mais amplo da produção dos bens culturais, que poderia ser considerado a colaboração positiva para o estudo da literatura oferecida pelos modelos de

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RENATA MELLO / TYBA

O Guggenheim de Bilbao, Espanha: o espaço contemporâneo sofre progressiva “musealização”

norama literário 90 foi a presença flagrante de poetas provenientes dos bairros de periferia ou subúrbios de baixa renda, ao lado da intensificação do movimento editorial em favelas e comunidades residenciais mais pobres. Ou seja, pela primeira vez, o poeta pobre passa a ter vez e voz com alguma visibilidade. Sobre esse ponto, importantíssimo, voltarei mais tarde. Ao lado disso, a utilização das facilidades oferecidas pelas novas tecnologias de reprodução digitalizada e a exploração de outros canais de divulgação, como comprovam a inesperada popularidade de coleções de CDs de poesia ou os eventos de poesia ao vivo, que muitas vezes chegam a lotar teatros e espaços culturais, sugere que talvez a poesia estaria começando a tender na direção de uma culturalização. Ou seja, uma inédita diversificação de seus canais de consumo – e por que não de sua própria função social? – através da abertura de espaços culturais não formais e da emergência de novos hábitos sociais e comportamentais. Mas isto não é o que causa mais estranhamento no contato com essa nova poesia. Para quem, como eu, está acostumado a se aproximar de um movimento poético em busca de uma proposta estética ou política, a adesão quase blasé a este ou aquele estilo, ideologia ou escola, promove um sentimento de total desconcerto. Em vez de definir caminhos, vê-se que o único compromisso do poeta 90 é com a ampliação de seu acervo de informação e com a afirmação de um desempenho competente. Por sua vez, os critérios de aferição da qualidade de um poema também mudam de eixo: deslizam da avaliação da presença de um maior ou menor valor crítico ou inovador, em direção à presença da habilidade em articular dados do acervo de referências, no sentido de uma quase “clonagem” de elementos da tradição, pelo novo poeta. A

lógica das influências no trabalho de um autor torna-se caótica, fractal e, muitas vezes, quase museológica. Convenço-me de que alguma coisa de muito estrutural está em processo de transformação na relação do poeta com seu tempo e com a dinâmica de valorização de seu material de trabalho. Essa desconfiança me remete a uma questão de fundo colocada por Andreas Huyssen e que talvez descreva de certa forma a relação aparentemente insólita dos novos poetas com a série literária. Huyssen vem, insistentemente, identificando o advento cultura pós-moderna como uma relação radicalmente nova com o passado, ou melhor, a experiência de uma recodificação do passado como presente, que estaria começando a superar, de forma definitiva, o ethos teleológico de um “futuro presente”, eixo da temporalidade modernista. Lembra ainda a idéia de Hermann Lubbe sobre o que ele define como sendo uma progressiva “musealização” do espaço contemporâneo. E, por “musealização”, Lubbe entende praticamente todas as novas práticas culturais que vão, por exemplo, da crescente valorização do restauro de centros urbanos, monumentos, e até mesmo de paisagens, passando pelo prestígio dos brechós e coleções pessoais, do memorialismo e da biografia, até a atual obsessão com o aumento da capacidade dos bancos de dados e seus harddisks ou dos recursos inesgotáveis abertos pelas práticas de automusealização através da criação de homepages e sites personalizados. Isto, sem referir o óbvio que é o sucesso sem precedentes dos museus, que, de local conservador e elitista – bode expiatório dos modernos –, transforma-se na menina dos olhos da cidade pós-moderna. Como diz Andreas Huyssen, “a planejada obsolescência da sociedade de consumo encontra seu contraponto na implacável museumania”. Para fechar, vou me fixar no ponto que me parece o mais atraente dessa nova e radical “viagem” da cultura: o alcance político dos movimentos de hibridização de estilos e fluxos culturais. Ao lado do surgimento, já bastante estudado, de uma textura híbrida de fundo nas novas formas artísticas, nas quais já não é mais possível distinguir um desnível real entre as formas de elite ou de massa, entre a cultura oral ou escrita, entre imagem e palavra ou entre culturas de mídias diversas, destaca-se o fenômeno que, para mim, sinaliza a grande virada da cultura no século 21.


DIVULGAÇÃO / AE

Falo da inédita proliferação de canais e arenas políticas onde fluem gêneros, culturas e pontes que ligam as margens da Cidade Partida, para usar o insight de Zuenir Ventura. O que chama atenção nesse fluxo que se estabelece entre centro e margens é que manifestações alternativas importantes, como a produção de ponta do manguebeat de Chico Science, ou o rap – o movimento rythm & poetry – que nos trouxe o impacto das vozes dissonantes das periferias, não são mais fenômenos impenetráveis. Ao contrário, representam espaços importantes de articulação intercultural. O novo cinema documentário brasileiro vem revelando esse fluxo ou efeito “Cidade Partida”, em filmes como o já histórico Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles, O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, de Paulo Caldas e Marcelo Luna, sobre a violência na periferia com narração rapper do Faces do Subúrbio e dos Racionais MC, ou o Universo Paralelo, de Maurício Eça, filmado em Capão Redondo. Nas artes plásticas, uma artista como Rosana Palazyan anuncia sua próxima exposição na elegante galeria Thomas Cohn: o trabalho conjunto com os jovens internos da Escola João Luiz Alves, onde cumprem pena por tráfico de drogas, assalto à mão armada ou latrocínio. Na literatura, o poeta tropicalista Waly Salomão, no modelo Carlinhos Brown, abre um espaço criativo de troca e educação na favela de Vigário Geral. Por outro lado, a invenção de novos espaços alternativos de mercado e sociabilidade intensifica a circulação entre gêneros, gangues, classes e territórios. É o caso, para citar apenas um exemplo, do espaço rave, inovação na promoção de festas pagas que, de certa forma, tornaram-se um dos canais mais vivos de produção e divulgação cultural alternativas. Um exemplo recente neste sentido é o sucesso do BUM (Brazilian Underground Movement), que explode em 1994 quando um grupo de DJs da Baixada Fluminense, percebendo a ascensão das festas rave na Fundição Progresso, começa a circular da Baixada para a Zona Sul, onde conquista um público enorme e variadíssimo. Desafiando limites geográficos, o BUM, além de se apresentar como banda, divulga a ética de sua tribo contida no panfleto Mandamentos do underground, pela defesa da fraternidade, tolerância, e do combate ao preconceito.

Nunca, na história, o underground teve diante de si o arsenal e o espaço que se descortina agora com a cultura web e com as novas potencialidades tecnológicas. No Cadê (www.cade.com.br), em maio de 2000, só de sites de poesia ativos, estão registrados 557, em sua maioria de poetas não identificados com o mainstream literário e que constróem páginas bastante criativas, muitas vezes supreendentes, cujo objetivo mais freqüente é a resistência ou a intervenção. Seja para “ter um lugar ao sol” (sic), como declara a homepage do grupo Caox (http://www. geocities.com/SoHo/Lofts/1418/), de um subúrbio pobre do Rio, seja para denunciar desigualdades ou afirmar identidades étnicas ou sexuais. Misturado, de forma curiosa, com as páginas de poesia, encontramos o tom contestário dos numerosos (987) sites de funk, rap, hip-hop e graffiti e de revistas afins que, como a Parafernália Submundo Arte Cultura & Chips, lançam a linha estética net-praxianos, segundo seus ideólogos, uma “contribuição ao espaço libertário e global da web”. Um espaço (é sempre bom lembrar) que foi desenvolvido pelo Departamento de Defesa Americano, no quadro apocalíptico de uma perspectiva de conflito nuclear, com o propósito de produzir um sistema altamente flexível e disperso, capaz de criar um ambiente de perspectivas estratégicas infinitas. Que, espero em Deus, saberemos usar, neste novo milênio, com malícia e maestria.

A artista plástica Rosana Palazyan, que junto com menores detentos da escola João Luiz Alves expôs na galeria Thomas Cohn

- Heloísa Buarque de Hollanda é professora titular de Teoria Crítica da Cultura, da UFRJ, e autora dos livros Esses poetas: uma antologia dos anos 90 e 26 poetas hoje

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SABORES PERNAMBUCANOS

Milho na fogueira O ponto alto do nosso São João, o que o torna único e muito especial, é mesmo a comida.

N

o solstício de verão europeu, os camponeses festejavam a proximidade da colheita cantando e dançando em volta de fogueiras, para afastar os demônios da esterilidade, da estiagem e da miséria. Também para homenagear o deus sol e a deusa fertilidade. A tradição nasceu no Egito, em seguida chegando a Grécia e Roma, espalhando-se depois por toda a Europa. Com o tempo esta festa profana, como tantas outras, acabou incorporada à tradição cristã. Sendo a fogueira, acesa por Isabel, símbolo do anúncio do nascimento de seu filho João, primo carnal do Cristo. E com os deuses pagãos substituídos por essa criança que depois cresceu, virou

Em frente à fogueira Zuza, espaduado, benzeu-se sereno e fez oração: – Chô, cão! – Chô, cão! Depois levantou a vista pro céu pra ver se o espiava Senhor São João! (Ascenso Ferreira – Senhor São João)

apóstolo, deu a vida pelo salvador e acabou virando santo. São João. Em Portugal essas festas não ficam restritas a 24 de Junho, dia de seu nascimento. Com o temperamento generoso do povo português fazendo tudo começar em 12 de junho, véspera de Santo Antonio – padroeiro de Lisboa; para terminar só em 29, dia de São Pedro. Por toda parte marchas populares, bandeirolas e balões coloridos, brincadeiras nas ruas, adivinhações, superstições, concursos de ranchos. Com muita música, nessa época sempre alegre, e danças com roupas de época. Mas não existe, por lá, uma comida que seja típica do São João. Usando-se as de sempre, de cada região, próprias dos grandes festejos: carneiro, leitão, bacalhau e sobretudo vinho. Muito vinho.

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti


Essa tradição de festejar o dia de São João veio de Portugal ao Brasil, desde o início da colonização. Com o tempo enraizando-se, especialmente no interior. Sobretudo no Nordeste. Cada família acende sua fogueira. Com fogo e fé. Depois passamos a dançar quadrilhas, com origem nas danças palacianas francesas que abriam os bailes das cortes, trazidas ao Brasil pela aristocracia portuguesa, no início do século 19. E mesmo se tornando fundamentalmente uma dança popular, ainda conserva, em sua marcação, o francês estilizado de anavantús (en avant tous) e anarriêrs (en arrier). Adivinhações de todo tipo: “Passe um ramo de manjericão na fogueira e atire-o no telhado. Se na manhã seguinte o manjericão ainda estiver verde, o casamento é com moço. Se murchar, é com velho”. “Introduza uma faca virgem numa bananeira. No outro dia aparecerá na faca a inicial da noiva ou do noivo. Se não tiver nada, paciência: não vai ter casamento.” Simpatias também: para “dominar a pessoa amada”, “ter namorado fiel”, “saber se é correspondido”, “ter sorte no amor”. Fogos de artifício. Balões surgiram como portadores de pedidos a São João, levando aos céus as mensagens dos fiéis. Se queimassem antes de chegar, o pedido não era realizado. De todas as festas religiosas do colonizador, a de São João era a mais apreciada pelos índios. Talvez por conta das fogueiras que se espalhavam nas aldeias. E, desde seu começo, sempre usando milho – que os portugueses, ao chegar aqui, já encontraram, cultivado pelos tupis. Como Cristóvão

Colombo, em 1492, também encontrou na América. Há mesmo indícios de que já era plantado no vale de Tehuacàn, México, há sete mil anos. Com a colonização do novo mundo esse milho teve difusão rápida. Os espanhóis o levaram para o Norte da África e os venezianos, para o Oriente Médio, de lá chegando à França, Itália, Inglaterra e Alemanha. Na Turquia é chamado de roums (grão estrangeiro), na Itália, de granturco, na Inglaterra, de indian corn (cereal indígena), na Espanha, de maiz. Em Portugal, a cultura do milho começou a partir de 1531, às margens do rio Douro, sendo largamente usado em pães, broas e doces. O ponto alto do nosso São João, o que o torna único e muito especial, é mesmo a comida. Até hoje usando milho – agora já com influência de portugueses e sobretudo africanos. Milho “quebrado” nas vésperas da festa, plantado, segundo a tradição, no dia de São José, 19 de março. Dia, aliás, em que, novamente segundo a tradição, sempre chove. Esse milho tem como complemento, nas comidas, coco e mandioca. E há sempre sabores para todos os gostos. Milho assado, sobretudo na fogueira, milho cozido, pamonha, canjica, munguzá, bolo de milho, bolo de fubá, pé-de-moleque, bolo de macaxeira, cuscuz, cocada, tapioca, bombocado, arroz doce, grude. Pratos, todos, sempre muito trabalhosos, demorados de fazer. E que, por isso, acabam sendo preparados com antecedência. Para ninguém perder a festa, claro. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

CANJICA Ingredientes:

Preparo:

• 15 espigas de milho verde • 4 cocos • 1 colher de chá de sal • Açúcar a gosto • 1 colher de sobremesa de manteiga • Canela em pó

• Rale as espigas de milho. • Rale os cocos e, com pouca água, tire uma xícara de leite de coco grosso. • Coloque 3 copos de água morna no bagaço mal espremido dos cocos e retire todo o leite fino. • Misture o milho ralado com o leite de coco fino, como se estivesse lavando o milho no leite. • Peneire essa mistura duas vezes. • Leve ao fogo mexendo sempre. Quando ferver, junte sal, açúcar e leite de coco grosso. • Deixe cozinhar até formar uma pele na mistura. • Retire do fogo e junte a manteiga. • Coloque em travessa e enfeite com canela em pó.

Continente Multicultural 59


LEO CALDAS / TITULAR

SOCIOLOGIA

A questão étnica no Brasil

O

s tempos de afirmação social e de fecundas transformações por que passa a sociedade brasileira indicam que o País está finalmente engajado em um aspecto que diz respeito às suas responsabilidades históricas, às quais sucessivas gerações da elite política brasileira sempre demonstraram inconcebível alheamento. Refiro-me à questão étnica. Oportuno lembrar a terrível, mas verdadeira, sentença prolatada por Joaquim Nabuco em sua pregação em favor do abolicionismo, quando afirmou que não bastava extinguir a escravidão no Brasil. Importante era erradicar seus efeitos. As formas ostensivas e disfarçadas no racismo, que permeiam nossa sociedade há séculos, sob a complacência geral e a indiferença de quase todos, são parte dessa obra inacabada, inconclusa, de cujos efeitos somos responsáveis. A riqueza da diversidade cultural brasileira não serviu, em termos Marco 60 Continente Multicultural

Os negros e seus descendentes, que já são maioria em três das cinco regiões brasileiras, são vítimas da exclusão social que gera a discriminação racial, numa espiral perversa que deve ser combatida, especialmente no campo econômico sociais, senão para deleite intelectual de alguns e demonstração de ufanismo de muitos. Terminamos escravos do preconceito, da marginalização, da exclusão social e da discriminação que caracterizam o dualismo social e econômico do Brasil. É chegada a hora de resgatarmos esse terrível débito que não se inscreve apenas no passivo da discriminação étnica, mas sobretudo no da quimérica igualdade de oportunidades virtualmente asseguradas por nossas constituições aos brasileiros e aos estrangeiros que vivem em nosso território. Se não seguirmos o conselho de Nabuco, pouco teremos feito para virar essa Maciel página mal escrita da nossa História.


Basta percorrermos os índices do desempenho social brasileiro para constatar o peso da herança histórica e da realidade sociológica do País. O “papel da ação afirmativa” deve indicar muito mais do que um simples diálogo ou a mera constatação de uma adversidade – mancha mais indelével em nossa trajetória política desde que nos transformamos em Nação. Espero que o exame da experiência americana, a partir de alguns de seus marcos mais significativos, entre os quais a decisão da Corte Suprema revogando o entendimento quase secular da constitucionalidade da doutrina de “iguais, mas separados”, sirva de inspiração para que possamos transitar do campo sempre fértil das promessas para o terreno mais promissor das realizações. Temos de convir que a exclusão social, embora dramática sob o ponto de vista da desigualdade de oportunidades que se cristalizou como o marco diferencial de nossa civilização, gerou conseqüências que contribuem para agravar a discriminação racial. É uma espiral perversa que não será vencida se nos ativermos às conseqüências sem remoção de causas. O Brasil terá de convencer-se de que os negros e seus descendentes deixarão de ser minoria neste novo século, pois já representam maioria em três das cinco regiões brasileiras. Atualizaríamos o pensamento de Nabuco se às “medidas sociais”, a que aludiu, acrescentássemos as de natureza econômica. Vencer o preconceito que se generalizou e tornar evidente o débito de sucessivas gerações de brasileiros para com a herança da escravidão que se transformou em discriminação, são apenas parte do desafio. Se vamos consegui-lo com o sistema de quotas compulsórias no mercado de trabalho e na universidade, como nos Estados Unidos, ou se vamos estabelecê-las também em relação à política, como acaba de fazer a lei eleitoral, com referência às mulheres, é uma incógnita que de antemão ninguém ousará responder. Não tenho dúvida de que se não tivesse havido discriminação econômica, não teria havido exclusão social. Sem uma e a outra, a

discriminação racial não teria encontrado o campo em que plantou raízes. O caminho da ascensão social, da igualdade jurídica, da participação política, terá de ser cimentado pela igualdade econômica que, em nosso caso, implica o fim da discriminação dos salários, maiores oportunidades de emprego e participação na vida pública. Neste sentido, parece-me, o papel da educação será essencial. Lembrava Nina Rodrigues que, no Brasil, até os traços predominantes da cultura negra em nosso multiculturalismo, se não desapareceram, pelo menos esmaeceram. Já não distinguimos mais, tal como aconteceu com a cultura indígena, o que e o quanto de nosso cotidiano devemos ao negro. As conquistas jurídicas da Carta de 1988, Artigos 3º, 5º e 7º, têm de ser seguidas de conquistas econômicas, capazes de reverter a crença de que o sucesso, a ascensão e a afirmação dependem apenas do esforço individual na superação do preconceito. É preciso que todos tenham consciência, sem que para isso sejam lembrados constantemente, de que somos a maior nação africana fora da África. Comparativamente à realidade dos Estados Unidos, temos a vantagem de não termos de superar a segregação e a separação, que tanto esforço custou à sociedade americana. Em troca, temos de convencer uma parcela razoável da nossa gente que medidas compensatórias em favor dos negros não representam apenas uma etapa da luta contra a discriminação, mas o fim da era da exclusão, se pretendemos uma sociedade igualitária e mais justa. Marco Maciel é Vice Presidente da República e professor titular (licenciado) de Direito Internacional Público na Universidade Católica de Pernambuco

Continente Multicultural 61


FOTOS: ÁLBUM DE FAMÍLIA

MEMÓRIA

Amaro Quintas: história e permanência Além de historiador, ele foi mestre e formador de várias gerações de pernambucanos

A

o promover recentemente um painel comemorativo dos 90 anos do nascimento de Amaro Quintas, a Fundação Joaquim Nabuco homenageou um pernambucano “tão fiel a Pernambuco quanto é leal o tronco às raízes das árvores”, como registrou o Diario de Pernambuco na ocasião em que ele se despediu da vida e do mundo. Tanto assim é que, vencendo o tempo, sua memória continua viva, acentuando em nós a sua presença e o seu legado. O que ele foi e continua a ser, como, por exemplo, em artigo publicado há pouco tempo no Jornal do Commercio, o recordou o geógrafo Manuel Correia de Andrade, que com ele conviveu como “aluno e em seguida como colega de Magistério, por mais de 40 anos”, confessando a grande influência de Amaro Quintas na sua “formação, do mesmo modo que na formação de toda uma geração”. Talvez possa dizer que também foi assim, na condição de Mestre, porque assim o considerei durante toda a vida, que tive o privilégio de conhecê-lo e me tornar seu amigo. Nele, por quem sempre mantive, ao lado da amizade, um sentimento de admiração que a lembrança prolonga e acentua, coexistiram, indissociavelmente, o educador, mestre e formador de várias gerações de pernambucanos e o historiador. Nessas duas condições, ensinando em colégios como o Ginásio Pernambucano, do qual foi diretor, o Ateneu Pernambucano, criado Fernando de 62 Continente Multicultural

por Waldemar Valente, a Escola Normal, a Faculdade de Filosofia do Recife, a Universidade Católica de Pernambuco ou escrevendo artigos de jornal, fazendo conferências e escrevendo seus livros, cumpriu o “ideal das criaturas bem formadas, porque soube acentuar a nobre preocupação de devolver aos outros aquilo que houve de receber”. Impondo-se dizer, como ainda lembra Manuel Correia de Andrade no seu artigo, que mesmo em situações adversas, sofrendo “pressões políticas e restrições dos novos donos do poder”, como em 1964 “não esmoreceu e manteve uma posição de luta em favor da democracia e do espírito de brasilidade”. É bem possível, por tudo quanto realizou, tudo que fez por opção e escolha, que Amaro Quintas tenha cumprido o destino profetizado pelo seu mais remoto crítico, o professor Ismael Lumach – como lembra o poeta Mauro Mota no ensaio que sobre ele escreveu, Um Historiador Pernambucano –, que dizia, seduzido pela curiosidade de um aluno que queria saber tudo: “Esse menino vai longe!” Vaticínio cumprido pelo aluno no Ginásio e repetido na Faculdade de Direito do Recife, com a tese A Gênese do Espírito Republicano e a Revolução de 1817, através da qual ingressou como Catedrático no Ginásio Pernambucano e definiu ou consolidou o seu destino como historiador. Sobre essa tese Amaro Quintas construiu uma obra de historiador que, sendo erudito, não se contentou nunca em “guardar as datas gloriosas e os nomes ilustres dos heróis de bataMello Freyre lhas e revoluções do Nor-


deste”, como disse Gilberto Freyre ao prefaciar o seu livro Notícias e Anúncios de Jornais, “mas de quem vem alcançando, cada vez mais, o cotidiano, o recorrente, o constante na formação pernambucana e nordestina”. E um historiador, ressalte-se, em quem Gilberto Freyre admirava o ânimo de estimular nos “jovens estudiosos do passado regional como nacional o interesse pelas velhas coleções de jornais de província”, que eram, para ele, “um contingente inestimável a ser usado por aqueles que se dedicam às pesquisas históricas e sociais”. A sua não é uma obra extensa, mas é uma obra onde são visíveis, como assinalou um dos seus críticos, “unidade interna”, “coerência de pensamento” e “posição ideológica”, o que lhe permite transmitir a “perspectiva da realidade enfocada com imparcialidade diante da verdade objetiva dos acontecimentos” e examinar “valores fundamentais do homem dentro de critérios científicos”. Nesse sentido, a obra de quem procurou, “no tempo presente, localizar e elucidar, nos seus livros, os fundamentos do passado coletivo e nacional”. Talvez seja essa uma das razões pela qual os seus livros, voltados, no conjunto, para o estudo das lutas libertárias, das campanhas em favor da libertação do Brasil, das revoluções liberais, da Inconfidência Mineira, da Revolução de 1817, da rebelião praieira, 1

3

são hoje considerados clássicos da nossa historiografia. E, por isso mesmo, vêm merecendo a melhor atenção dos nossos estudiosos. Para o historiador Nilo Pereira, por exemplo, seu livro sobre a Revolução de 1817 é “uma bíblia do civismo pernambucano”, um livro com o qual ele construiu “um monumento sobre uma revolução maior”. E para Manuel Correia, por exemplo, as “posições ideológicas” de Amaro Quintas “estavam bem definidas” nas duas teses que escreveu, uma sobre a Revolução de 1817 e outra sobre O Sentido Social da Revolução Praieira, livros fundamentais ao estudo e campanha de redemocratização, conduzida no Recife pela chamada geração de 45. Já o antropólogo Waldemar Valente, um dos seus mais íntimos amigos, considera seu ensaio, O Padre Lopes Gama, como “um quadro real da vida social e política de Pernambuco na primeira metade do século 19”. No prefácio que escrevi, honrado com o seu pedido, para a 6ª edição do livro O Sentido Social da Revolução Praieira, aventurei-me a sugerir que com esse ensaio, que nele encontrou o seu historiador e o seu mais completo exegeta, Amaro Quintas “se incluía numa tradição do Recife: a de dar ao Brasil alguns dos seus maiores poetas, como Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, João Cabral de Melo Neto, Mauro Mota, Carlos Pena Filho, e alguns dos seus mais notáveis historiadores: 2 Oliveira Lima, José Antonio Gonsalves de Melo, Amaro Quintas”. Entendia, como continuo a entender, que os três – hoje, acrescentaria Evaldo Cabral de Mello –, entre tantos outros, tornam mais que verdadeira a afirmação de que Pernambuco, cenário e palco de tantos heroísmos, jamais deixará de ser berço de revolucionários, poetas e historiadores. Lembro que Montaigne, “quando o interessava saber sobre a vida de um homem, limitava-se a indagar como essa vida terá terminado”. No caso de Amaro Quintas, pode-se responder: foi um homem que “deu tudo quanto a vida lhe proporcionou de melhor, a transmissão da própria vida aos filhos e a disseminação do conhecimento nos demais homens de sua convivência”. Continua, portanto, como uma presença permanente no tempo e na história.

1- Laura Pacheco Quintas e Gabriel Soares Quintas, pais de Amaro; 2- O historiador Amaro Quintas, aos 97 anos; 3- Amaro Quintas, entre amigos. Na foto, entre outros, Lucilo Varejão, Waldemar Valente e Aníbal Fernandes

Fernando de Mello Freyre é presidente da Fundação Joaquim Nabuco

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MARCO ZERO

“Capelinha de melão É de São João. É de cravo, é de rosa, É de manjericão.” (De um auto junino)

São João

(Fogo, folk e mores nordestinos) Aumenta o número das quadrilhas estilizadas que, em 1993, já eram cerca de 300, e algumas já estão dançando funk

Q

uando li, não sei onde, que a luz de estrelas extintas, há bilhões de anos, só agora começam a ser vistas por nós, tive a sensação de estar cercado de estrelas mortas, estrelas fantasmas, espécies de fogos de artifício, no céu. De certa maneira é como se estivesse havendo, lá em cima, uma eterna noite de São João. Mas não quero falar das estrelas de verdade e sim, das “estrelinhas” de mentira, uns foguinhos

que eu soltava nas festas de São João, em minha rua de terra batida. E outros fogos de menino pobre, como cara-dura, traque-de-massa, peido-develha, diabinho, rodinha e umas minúsculas bombinhas enroladas em papel-madeira. Na classificação do folclorista Roberto Benjamim, seriam fogos-dechão, diferentes dos fogos-de-subida, dos fogosde-tiro e, principalmente, dos fogos-de-vista, com “efeitos visuais”, segundo ele. Estes últimos eu e os meninos de minha rua só víamos ao longe, lá para as bandas dos casarões.

Alberto da Cunha Melo 66 Continente Multicultural


As festas coletivas são oportunidades excelentes para se marcarem bem os estratos, as classes, as distâncias sociais. Li um depoimento da pesquisadora Tereza Halliday, onde ela fala de um dos fogos-de-vista que seu pai não podia comprar, os vulcões, que eram soltados por um vizinho e que lhe davam “minutos de deslumbramento”. Ainda bem que o Sr. Neco Lopes gostava de São João, para enfeitar a noite de Tereza. Das estrelas aos fogos, dos fogos às fogueiras, é um mover-se no âmbito de uma mesma e única energia. Creio que na rua de terra batida era mais fácil fazer a fogueira de São João. Aliás, só no chão batido a gente podia jogar pião, bola-de-gude e bola-de-meia. Era bom, também, para inventar pontes para os carrinhos de brinquedo. Para fazer a fogueira, então, era demais. Como irmão mais velho, eu me sentia responsável pela fogueira. Pegava dois pedaços de tronco de bananeira e quatro varas, e a estrutura estava armada. Juntavam-se todos os tipos de galhos e troncos secos, nos terrenos baldios e nos “cercados”. Depois de levantada a fogueira, cercavam-se pelo topo as quatro hastes com um cordão de bandeirinhas de papel de seda. Era acesa às 18h e lá para as 20h já estava nas brasas, ou seja, no ponto para assar o milho verde. Tudo isso continua acontecendo nos bairros esquecidos e nas cidades perdidas do Nordeste brasileiro. A onda ecológica começa a fazer restrições às fogueiras, este costume ancestral, este culto ígneo imemorial. O objetivo é sustar o desmatamento, depois da perda da Mata Atlântica e a ameaça de extinção da Floresta Amazônica. Mas, enquanto a fogueira é anual, as caieiras, as madeireiras, as casas de farinha e as padarias desmatam diariamente. Em 1994, o monge Rameshvara (na verdade, o engenheiro Rodolfo Ameliaco), da seita Hare Krishna, sob o argumento de que “não faz sentido destruir a natureza em nome da fé”, propôs que as

cidades, nas noites de São João, fizessem uma única fogueira. Caruaru faz uma fogueira enorme, mas o povo continua a fazer as suas fogueirinhas. Na Europa, nos países que cultuam o São João, optou-se por uma solução singular. O pintor Miró, no livro A Cor dos Meus Sonhos, diz que “o fogo é o que há de mais primitivo no homem” e que “existe um prazer em queimar”. E conta: “Quando eu era garoto, na Catalunha, não perdia uma só fogueira de 24 de junho: a gente pegava móveis velhos, tudo o que tem vontade de botar fora, e punha fogo”. Este costume existe também na Itália e está belamente retratado no filme Amarcord, de Fellini. Será que aqui no Nordeste brasileiro o povo tem algo de que não precisa, para queimar? Com menos fogueiras porque com mais ruas asfaltadas e mais fios sobre as cabeças, a festa de São João continua. E, com novo alento. Os prefeitos descobriram o turismo e o turismo vem ampliando, urbanizando as festas de São João. Essa urbanização se faz mais através da dança. Em 1993, estimava-se que existiam em Pernambuco cerca de 300 quadrilhas estilizadas. Hoje, este número deve ter aumentado. Os folcloristas que, com razão, criticavam a caricatura do camponês nas quadrilhas antigas, com calças e saias de remendos, hoje se batem contra a excessiva estilização daquela dança, pois já naquele ano havia quadrilhas dançando o funk. Eu não gosto de censurar mudanças culturais promovidas pelo próprio povo, porque acredito que aquilo que tem raiz termina brotando, termina se impondo. O povo gosta sempre de renovar as coisas que ama. Que fez ele com um santo carrancudo, eremita e ascético como João Batista? Um “samba”, que está no “livro de sortes” Lalá, de 1931, e que diz: “S. João foi tomar banho/ Com vinte cinco donzelas./ As donzelas caíram n’água/ E S. João caiu com elas”. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo

Continente Multicultural 67


AFP

PERSONAGENS O escritor belga Georges Simenon era um minimalista com obscuras paixões inconfessadas

Íntimo conhecimento As cartas de

Georges Simenon

Amigos por mais de trinta anos, o escritor belga e o cineasta italiano trocaram contínua correspondência, onde revelaram as suas buscas, certezas e inseguranças como artistas e homens

N

ão poderiam ser mais diferentes – como pessoas e como artistas. Amigos a partir de 1960 (quando Georges foi presidente do júri do Festival de Cannes que premiou La Dolce Vita), mantiveram assídua correspondência durante vinte anos, de 1969 a 1989 – apesar dos raros encontros pessoais. Nessas duas décadas (uma, de grande agitação cultural e, a outra, também “perdida” na Fernando 68 Continente Multicultural

Europa), estiveram duas ou três vezes juntos, menos por culpa de Fellini do que do escritor belga – que não gostava de se afastar da refinada Lausanne. Federico era 17 anos mais novo do que Simenon – e era um italiano expansivo que amava a província com a paixão barroca dos sentimentais latinos. Georges, por outro lado, era um minimalista com obscuras paixões inconfessadas e certa sofisticação dos belgas francófonos, invectivando (com Baudelaire) a monotonia dos seus compatriotas. Georges Simenon escreMonteiro via as cartas educadamente à


mão – numa letra quase indecifrável, de tão miúda. O cineasta italiano respondia pontualmente à máquina, provinciano envergonhado de ter a letra feia e só saber fazer, “com o lápis e a caneta”, apenas “esses pequenos desenhos pornográficos que você admira sem razão”. Estava fazendo seu tipo, claro (Federico esteve sempre representando Fellini – como se fosse uma audição doméstica para algum palco da Rimini que nunca abandonou, espiritualmente). De qualquer modo, havia – além da admiração mútua – alguma coisa necessariamente em comum entre correspondentes tão assíduos e que se tratavam, carinhosamente, por caríssimo Simenon e mon cher Fellini: ambos tinham grande capacidade de trabalho (talvez como uma forma de combater a tendência para a depressão) e os dois comungavam do ódio pelo mundo contemporâneo em contraposição aos universos idealizados das suas infâncias. E também apreciavam as mulheres desta época mais franca e permissiva (com exceção da perda de qualidade de tudo etc). Nas primeiras

cartas, Simenon não hesita em oferecer sábios conselhos de mais velho ao “querido, gigantesco amigo Fellini”. Nas últimas, é o cineasta quem tenta animar o escritor deprimido com a arte incapaz de melhorar o mundo etc. Mas o melhor é ir diretamente a alguns trechos das cartas de ambos, cheias de sabor nestes tempos de e-mails inodoros: “Chinciano, agosto de 1976 Meu queridíssimo Simenon: Quero lhe contar mais uma coisa que demonstra bem o quanto vem sendo enriquecedor o contato com a sua imaginação e sua criatividade. Um pequeno sonho que tive há dois anos antes de começar o Casanova. Atravessava uma época negra. Inércia, desânimo, marasmo, ódio contra o filme... Me sentia prisioneiro, condenado a fazer uma película profundamente alheia ao meu temperamento, à minha imaginação, sobre um personagem que não me pertencia, não me era simpático... Então, uma noite eu sonhei que estou sendo despertado pelo matra-

do coração humano AFP

e Federico Fellini O cineasta italiano Federico Fellini era expansivo e tinha a paixão barroca dos sentimentais latinos


“Inércia, desânimo, marasmo, ódio contra o filme. Me sentia prisioneiro, condenado a fazer uma película profundamente alheia ao meu temperamento, à minha imaginação, sobre um personagem que não me pertencia, não me era simpático” Fellini quear enervante de uma máquina de escrever. Percebo que estive dormindo num enorme jardim úmido de orvalho, com grandes plantas carregadas de folhas de um verde intenso. Ao fundo, vejo uma construção em forma de torre. É dali que parece estar vindo o ruído antipático da máquina. Mas, à medida que me aproximo, não se ouve som nenhum. Distingo uma janela na ‘torre’ e me aproximo para dar uma espiada, erguendo-me na ponta dos pés. Lá dentro vislumbro uma espécie de monge, fazendo algo que não posso ver porque ele está sentado de costas para a janela circular. Aos seus pés, no chão, uma dezena de meninos e meninas riem, brincam com os cordões do seu hábito, tocam nas suas sandálias. Quando o ‘monge’ se volta, vejo que é você, com uma pequena barba branca – uma barba postiça, de disfarce. Assombrado, talvez mesmo decepcionado, nesse momento eu ouço uma vozinha que me diz: ‘É falsa’. Claro que é falsa, eu conheço barbas falsas... e vejo que você está até mais jovem, muito mais jovem do que da última vez que o vi. ‘E o que ele faz?’ – pergunto. E a vozinha me responde: ‘Pinta a sua novela. Está vendo? Já pintou mais da metade dela. É uma novela magnífica sobre Netuno (...)” E a carta prossegue com uma incrível “decifração” do próprio sonho, que leva Fellini a perceber – segundo ele – que todo o seu lamentável estado de ânimo se devia, possivelmente, ao fato de ter completado 55 anos, estar rodando um filme em inglês, assim como Simenon, no sonho, tem que “pintar” as suas novelas e não está nem um pouco incomodado com isso etc) e que o personagem de Casanova na verdade habitava dentro dele, Fellini, do mesmo modo como Netuno habita, profundamente, no fundo dos oceanos. Bem, é o que Federico alegremente deduz, escrevendo para o falso “monge” (é sabido que Simenon contabilizava “10 mil mulheres” possuídas por ele, desde os 13 anos – segundo informa no Diário que se 70 Continente Multicultural

dedicou a escrever quando, no fim da década de 70, se dizia já sem interesse para continuar criando personagens de ficção. Talvez ele próprio fosse um personagem ainda mais incrível)... A resposta à carta de Fellini não demora a vir de Lausanne – datada de 18 de agosto de 1976, pois Simenon é um metódico que, na sua letrinha regular, anota dia, mês e ano, sempre (ao contrário do cineasta de Amarcord, que não é preciso nas datas). “Meu querido Fellini: Senti uma grande emoção ao receber a sua carta. Por um momento, pareceu-me ouvi-lo aqui na Suíça – e compreendi bem todas as suas reações e fuga. Tudo que escreveu me comove profundamente, pois de algum modo você também me esclarece sobre uma parte de mim mesmo (apesar dos meus setenta e três anos, ainda me considero e me sinto como um fedelho). Você é, provavelmente, no mundo, a pessoa com quem sinto ter mais afinidades no terreno da criação. Tentei dizer isso num prefácio, mas não sei se o consegui. Mas gostaria que você soubesse o quanto me sinto próximo de você, não só como artista – se posso empregar essa palavra que não me agrada – mas como homem e criador... O sonho que você conta se assemelha a alguns dos meus – mas me inquieta um pouco haver desempenhado esse estranho papel, nele, e dessa maneira, ter participado, minimamente que seja, no seu novo alento para a criação do difícil Casanova.” A partir de 1973 (quando completou setenta anos), Georges Simenon tornou-se obsessivo com o assunto do envelhecimento: fazia contas da idade de todo mundo e se queixava da sua, entre jocosa e deprimidamente. O assunto se reflete em muitas das cartas ao amigo dezessete anos mais moço: “Querido Fellini, irmão: Provavelmente eu deveria escrever ‘meu filho’, dada a nossa diferença de idade. Mas, como sei que compreende, emprego a palavra ‘irmão’ em outro sentido. Há somente dois homens a quem dou esse


ROGER-VIOLLETI / AFP

Fellini, em sonho, recebeu ajuda de Simenon (que se vangloriava de haver possuído dez mil mulheres) para o desenvolvimento do seu filme Casanova

nome, e o outro é, pelo contrário, mais velho do que eu. Refiro-me a Jean Renoir, que conheci antes de 1930, quando ambos lutávamos pelo que então se chamava de cinema de vanguarda – uma luta que, em várias ocasiões, imaginei que fosse nos levar à chefatura... Se me permito traçar essa linha paralela entre vocês dois é, em primeiro lugar, porque, por mais distantes que nos encontremos geograficamente, jamais tive a impressão de que a nossa amizade pudesse sofrer alguma diminuição com isso – do mesmo modo como ocorre com Renoir, que vive há muitos anos na Califórnia. Mas, entre nós dois, julgo que existe um vínculo de natureza ainda mais especial, uma vez que perseguimos o mesmo objetivo (embora sob formas artísticas diferentes): dar um conhecimento mais íntimo do coração humano, e por esse meio, essa forma antiintelectual que podemos chamar de nossa.

Creio já lhe haver dito que, como eu, você é um instintivo – e como instintivo é que alcança valores universais...” Datada de 9 de novembro de 1976, essa carta do criador de Maigret – que acerta em considerar Fellini “um instintivo” – segue elogiando o processo de “observação involuntária” do cineasta, e pretendendo que esse também fosse o “método” de Jean Renoir (o que já não aparece tão acertado), para então descrever a si próprio como “uma espécie de esponja que absorve a vida sem o saber”, no mesmo saco de gatos dos “instintivos” inconscientes do “trabalho de alquimista” que se opera dentro dos Picassos etc, “desenvolvendo aquela vida transformada”. “Mas, você é o maior de nós três” – declara Simenon, massageando o ego do italiano. A carta, aliás, parece que foi escrita também para isso (Fellini andava deprimido, mais uma vez): “Eu o admiro desde seus primeiros filmes – garante o autor do ótimo Continente Multicultural 71


ROGER-VIOLLETI / AFP

Foto de Simenon na juventude: nas cartas a Fellini a partir de 70 anos, ele se tornou obsessivo com o envelhecimento

Bairro Negro (o melhor Simenon, na minha opinião) – e o que aumentou essa admiração foi ver como você foi se desfazendo de todas as amarras, regras e tabus. No mundo do cinema atual, Fellini é único, e, no fundo da sua alma, você sabe disso.” A citação de Renoir é um tanto misteriosa, pois a leitura dos diários e da biografia de Simenon não revela indícios de uma amizade tão estreita, pelo menos, entre o escritor e o cineasta de La Règle de jeu, o que faz parecer que Georges improvisa sobre o tema ou, ambiguamente, talvez até pretendesse, com isso “cutucar” um pouco o amigo, nos seus brios cinematográficos (com um jab indireto no âmago ciumento das depressões de um cineasta?). Difícil saber. Nem sempre as respostas de Fellini eram imediatas e, muitas vezes, os assuntos ecoavam em cartas posteriores. Mas, são quase constantes as re72 Continente Multicultural

clamações sobre um desencontro íntimo – o que é curioso – com os temas da maioria dos seus filmes pós-70 (como em Casanova). E se faz quase audível aquela vozinha de vovó Donalda, que não combinava com a personalidade poderosa de Federico, aludindo a intenções bem diversas daquelas que foram “adivinhadas” pela crítica, nas suas obras de “intuitivo” (sem nada de Picasso, digo eu: o Picasso do cinema é Antonioni, sem dúvida): “Meu querido Simenon: E eu? que tenho feito eu, durante todo este tempo em que não lhe escrevi? Fiz um filme curto, intitulado Prova d'orchestra (Ensaio de Orquestra), e nele eu quis passar a atmosfera, falar da confusão, dos intentos, dos esforços de um grupo de músicos para alcançar reproduzir esse momento de harmonia prodigiosa que é a expressão musical. Junto aos músicos, há um diretor de orquestra, é claro, o qual com-


preende, na difícil dialética da relação com a orquestra, que o objetivo comum (executar as peças musicais) vai aos poucos ficando em segundo plano...” A carta prossegue com a vívida descrição do ambiente de filmagem do média-metragem, um interregno – apenas – na obra do autor de Cabíria que, no entanto, permanecia na sua angústia com relação ao longa-metragem (Cidade das Mulheres) interrompido desde o Natal do ano anterior: “Que filme estranho! Ou melhor, como é estranho o que me ocorre com relação a esse filme! É a primeira vez em que me sinto tão inerte, tão vazio, como alguém totalmente estranho ao projeto que deve terminar. Por sua vez, o filme também parece

Nunca adaptou a obra de nenhum novelista, poeta ou roteirista famoso. Ninguém seguiu menos os conselhos interesseiros dos produtores e não há cineasta que tenha levado tão pouco em conta os gostos volúveis do público.” Isso foi escrito em 1985, e será nesse tom que a correspondência se aproximará do fim (em 1989), invertendo-se a polaridade: os protestos de admiração são fervorosos, da parte do escritor, assim como se iniciara a correspondência com Fellini confessando a sua admiração devota etc. O cineasta responde com lapsos de tempo cada vez maiores, de 1986 até o final da década, enxertando uns elogios a L'homme qui regardait passer les trais – uma das obras

“Entre nós dois julgo que existe um vínculo de natureza especial, uma vez que perseguimos o mesmo objetivo: dar um conhecimento mais íntimo do coração humano, e por esse meio, essa forma anti-intelectual. Como eu, você é um instintivo” Simenon indiferente a meu respeito – indiferente e inacessível, cercado na sua natureza opaca e compacta. Nos desprezamos mutuamente. Evitamos nos encontrar... Bem, não quero aborrecê-lo com as minhas jeremiadas de costume. Eu e Giulietta estamos pensando em passar o Natal na casa dos Keel, em Zurique. Aproveitando a ocasião, caso concorde, iremos ver vocês e estaremos algum tempo na sua companhia...” O encontro não aconteceu (parece), mas os dois amigos irão se ver em Veneza, por ocasião de uma homenagem a Fellini – quando Simenon é solicitado (também pelo Lincoln Center, de Nova York) a dar seu depoimento sobre o cineasta que ele considera como “o protótipo do criador”: “Nunca imitou ninguém, nunca seguiu nenhuma moda.

mais estimadas do escritor belga – que Federico (estranhamente) confessa que “ainda não conhecia”. “Pareceu-me um belo livro... Bravo, grande Simenon, nunca deixarás de me surpreender!” A última surpresa a vir de Lausanne seria, infelizmente, a notícia da morte de Georges, no dia 4 de setembro de 1989, aos 86 anos. Saiba mais

Sobre Simenon: ASSOULINE, Pierre. Simenon - Uma Biografia. Siciliano, 588pp. Memórias Íntimas de Georges Simenon. Livros do Brasil, 472pp. http://www.ulg.ac.be/libnet/simenon/biosim.htm Sobre Fellini: CHANDLER, Charlotte. Eu, Fellini. Record, 344pp. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini. Edusp, 164pp. http://www.nwlink.com/~dbmeek/newframe.html Fernando Monteiro é cineasta, poeta e escritor.

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DOSSIÊ

LUIZ Esta edição da revista Continente Multicultural traz um presente aos seus leitores. Um CD com gravações de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, com 14 faixas, algumas pérolas, como a gravação original de Asa Branca, de 1947, o primeiro registro da voz do sanfoneiro (Dança, Mariquinha!, de 1945) e o raro fonograma da valsa Perpétua, de 1945. O trabalho de compilação e produção é do pesquisador Samuel Valente.

Uma série especial de matérias apresenta facetas diversas de Luiz Gonzaga, sua influência na música popular contemporânea e muitas informações de interesse não apenas dos aficionados do grande cantor-compositor nordestino, nascido em 13 de dezembro de 1912 e falecido a 2 de agosto de 1989, mas também de todos ligados aos temas da música popular brasileira, da qual ele foi um dos nomes mais expressivos.

GONZAGA

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Estrela

maior do sertão


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Luiz Gonzaga diante da casa em que nasceu, em Exu

O amor leva o jovem à coroa de Rei Não fossem algumas oportunas intervenções do acaso, teria sido Luiz Gonzaga mais um itinerante tocador de fole, sucessor do talento de um habilidoso consertador de sanfona, o “velho Januário”, nas paragens de Exu e redondezas. Essa expectativa absolutamente natural iria, contudo, ganhar novos rumos a partir de 1930. É que Luiz Gonzaga enamora-se de Nazarena, filha de Raymundo Delgado, de prestigiada família do tronco dos Saraiva. Em vista de arraigados preconceitos de parte da família da moça, o namoro – que se manifesta quando ainda eram crianças – praticamente se sustenta à distância. Todavia, Luiz Gonzaga está verdadeiramente apaixonado e quer casar. Quem sabe, seja recebido de braços abertos pelos pais da jovem? Ledo engano. Assim Raymundo Delgado imediatamente reage ao que considera autêntica insolência: “Eu não tenho filha para se casar com um sanfoneiro de meia-tigela. Vou-me entenSamuel der com esse molequinho “fulejo”. 76 Continente Multicultural

Luiz Gonzaga sente-se magoado pelas preconceituosas ofensas. No entanto, apenas uma quicé, “arma fuleja, pequena e sem futuro”, é do que dispõe para materializar as imagens que o açoitam: uma contenda de homem para homem com o pai da namorada. Claro! Também algumas doses de aguardente pura, “pra criar mais coragem”, justifica. Nas calçadas da feira, em plena Exu, frente a frente com Raymundo, o tom grave nas palavras e a formalidade inquisitória ajudamno a dissimular o corado rosto, mais de repulsa que de medo: “O sinhô tá dizendo por aí que eu não presto pra se casar com a sua filha? Que eu sou um molequinho “fulejo”? Gonzaga, porém, não consegue disfarçar as faíscas de incontidos ressentimentos logo pressentidos pela rusticidade do calejado Raymundo: “Mas o quê?! Isso tudo não passa de invenção dessa canalha. Não acredite nessas histórias. Logo você, que vi nascer, filho de Januário e Santana, que é quase uma pessoa da minha família?” Luiz Gonzaga supõe-se o senhor de todas as coragens, euforia que o leva a fanfarValente ronar.


Rapazola, Luiz Gonzaga foi discriminado pelo pai de uma pretendida. Depois de desafiá-lo publicamente, levou uma surra homérica da sua mãe e fugiu para Fortaleza. Daí seguiu para a fama

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“Tão vendo? O cabra afrouxou... Fui lá, disse o diabo, e ele esperneou que só um cabrito... quá, quá, quá!” Enquanto isso, quase não conseguindo conter a raiva, Raymundo encaminha-se à feira na esperança de encontrar Santana, mãe de Luiz. “Seu filho me desmoralizou... Me ameaçou de morte... Está armado e bêbado e é capaz de cometer alguma loucura aqui na feira...” Quase sem acreditar no que escuta, Santana procura apoio e segurança no braço de Efigênia, a Geny, a mais velha de suas filhas, com quem faz biscates na feira. Indignada, só pensa agora, o mais depressa possível, em voltar para casa. Quando anoitece e os céus exuenses entoam mais Ave Maria, meio desconfiado e já pressagiando maus momentos, retorna Luiz Gonzaga. Santana está “refungando” com Januário e o filho não percebe que ela, muito nervosa, está segurando uma forte chibata de jumento. E logo o chama à camarinha. De porta trancada, inteiramente possuída pelo rancor, baixa a cipoada no rapaz, ajudada por Januário. Quando finda a “sessão” de pancadaria, a maior sova de toda a sua vida, Luiz Gonzaga está extenuado. Por quase uma semana, enquanto cura as dores, da alma e do corpo, não conversa com nin-

guém, apenas medita sobre os rumos de suas futuras estradas. Um novo dia está amanhecendo nos céus de Exu, sombrio domingo para Luiz Gonzaga que ainda se ressente da implacável punição, para ele um injusto castigo. Está faminto e sedento. Resolve voltar para casa. Acontece, então, o primeiro “olho-noolho” com Santana. Logo percebe em seus pesarosos olhares, sinais de arrependimento, sinais desenhados pelas fadigas do rosto, visíveis sinais no jeito de falar, nervoso e consternado, mas repleto de indisfarçável meiguice materna. Entretanto, não mais dispondo das rédeas de seus caminhos, Luiz Gonzaga mente; a mentira de quem não mais saberá olhar nos olhos dos amigos, tampouco nos da namorada; a mentira – disfarce de todas as vergonhas – de quem entende que a retirada, sem deixar vestígio, torna-se uma imperiosa necessidade. “Fui contratado para tocar numa feira do Crato. Vai ser segunda-feira, mãe! Eu tenho de partir!” Mesmo a serenidade irradiada pelo filho, Santana se vê apreensiva pela longa caminhada. “Setenta quilômetros a pé, filho?” Luiz procura amenizar as aflições da mãe: “Não se preocupe, mãe! Eu já conheço esses penosos caminhos, mas eu passo a noite na casa de seu Raymundo Preto. De manhãzinha, outra vez toco a estrada. É moleza”. Chega ao Crato e a primeira providência é livrar-se da sanfona amarela, logo vendida por 80 mil réis. Pega um trem de carga e vai para Fortaleza, onde inscreve-se como voluntário das Forças Armadas. Assim, o amor por Nazarena Saraiva Milfont, a doce Nazinha, o encaminha às novas veredas musicais. Quando arriba de casa, condoído na alma e no coração – porque tivera a petulância de enamorar-se pela filha de um preconceituoso sertanejo – Luiz Gonzaga, sem imaginar o que o destino lhe reserva, abdica do reinado regional de Taboca a Rancharia. Em contrapartida, conquista as luminosas estradas que o conduzem à coroa de Rei do Baião.

O dom da sanfona foi herança do pai, o “Januário dos 8 baixos”

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No início da carreira, com visual noir, interpretava valsas e boleros

O solista e o cantor Participar de uma gravação fonográfica na famosa gravadora Victor, do Rio de Janeiro, mesmo na condição de substituto de um sanfoneiro faltoso, cai como uma luva para Luiz Gonzaga, depois das peregrinações pelos programas de calouros das rádios – incluindo o de Ary Barroso. Sua sanfona embalava os roteiros da boemia, o Mangue dos poetas, músicos, seresteiros, também das meretrizes, de um então ainda romântico Rio de Janeiro. Tão convincente é a sua performance acompanhando o artista Genésio Arruda, parecendo mesmo um calejado veterano, que o diretor artístico Ernesto Mattos, convida-o para submeter-se a teste. Luiz Gonzaga “tira de letra” todas as provas e se credencia, perante a diretoria da Victor, a gravar o primeiro disco como solista de acordeom. No dia 14 de março de 1941, acontece o histórico registro de quatro músicas: a valsa Numa Serenata e a mazurca Véspera de São João, compondo o primeiro 78 rpm, o de número 34.744, e uma outra valsa, Saudades de São João Del Rey e o xamego Vira e Mexe integrando o segundo disco, o de número 34.748. É o decolar de um grande salto que emerge do Riacho da Brígida e transpõe as cordilheiras do país. Inicialmente grava o que lhe determinam, músicas consagradas, sucessos nacionais e internacionais: Saudade de Matão, de Jorge Galati, Devolve e Não quero saber, de Mário Lago, Última Inspiração, de Peterpan, Queixumes, de Noel Rosa e Henrique Britto, Nós Queremos uma Valsa, de Nássara e Frazão, Apanhei-te, Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, Subindo ao Céu, de Aristides Borges, Farolito, de Agustín Lara, Manolita, de Léo Daniderff, e outros.


Sempre que há oportunidade, no entanto, in- tras estradas teria de percorrer. E logo uma idéia clui no repertório composições típicas de sua gleba: lhe ocorre: uma “chantagenzinha” com a colaboO Chamego da Guiomar, Pisa de Mansinho, Luar do ração de Felisberto Martins, seu amigo e diretor Nordeste, Sanfonando, Pé de Serra, Xodó. São os pri- musical da Odeon. Basta que confirme um suposmeiros tempos de Luiz Gonzaga no disco. Tempos to interesse da gravadora em sua contratação como de mazurcas, de valsas, de chamegos, de chorinhos, cantor. Felisberto logo aceita a idéia, desde logo lhe de polcas, de rancheiras. Tempos do solista de acor- propondo: “Você pode até continuar gravando na Victor deom, que não encontra como dissimular o sonho como solista. Aqui, na Odeon, com outro nome, comaior de sua vida, o de gravar como cantor. Alguns anos são passados. Vitório Lattari é o meça a sua carreira como cantor. Nada tem de erradiretor da Victor. Luiz Gonzaga com ele conversa do e não seria um suposto interesse, mas – foi você sobre o assunto. Lattari nem aceita discutir essa sua quem me deu a bola! – agora eu confirmo de veraspiração: “É pensamento da empresa conservá-lo dade: existe interesse da Odeon em contratar os tocando sanfona. Você é o coringa que temos no co- seus serviços como cantor”. Imerso na felicidade, Luiz Gonzaga mais que lete para continuarmos, ombro a ombro, brigando com a concorrente Odeon, que tem no elenco An- depressa retorna à Victor e conversa com Lattari. tenógenes Silva, um talento que todos conhece- Em nome de uma vasta experiência adquirida como mos”. São argumentos que não convencem e até en- corista em gravações de estrelas e astros famosos, justifica, perante o diretor, a pretensão de cantar. tristecem o artista pernambucano. Lattari continua irredutível. De 1941 a 1945, Luiz Gonzaga grava 24 Luiz Gonzaga encena o que tinha articulado: discos de 78 rotações, 48 músicas em solo de acor“Senhor Lattari – começa simulando encadeom, grande parte dessa obra direcionada ao consumidor do Nordeste, embora alguns desses regis- bulação – eu recebi um convite do Sr. Felisberto tros tenham boas repercussões no Rio de Janeiro e Martins, da Odeon, para gravar como cantor. Ele em São Paulo, a exemplo de Vira e Mexe, Bilu Bilu até me sugeriu (pra não complicar o meu contrato aqui na Victor) que eu usasse outro nome na grae Pé de Serra. Luiz Gonzaga, no entanto, sequer consegue vadora dele. Já que não é possível ficar como canesconder seus desprazeres por não estar gravando tor aqui...” Atento às palavras de Gonzaga e quase espucomo cantor. Ele tem plena consciência de suas possibilidades e não entende porque não lhe dão a mando de indignação, Lattari dá um sinal de mão chance de interpretar as próprias composições. O como querendo dizer chega! “Que Felisberto, que Odeon, que nada! Você que realmente o leva a supor que somente ele poderia gravá-las é o resultado do registro de Dezessete e quer gravar como cantor, não é? Pois bem: vai ser setecentos, feito pelo já famoso embolador Manezi- logo no próximo disco, uma face, apenas uma face, nho Araújo, uma interpretação que não lhe agrada é como se fosse um teste, e a outra face, bem, você e o deixa enormemente contrariado. Luiz Gonzaga continua como solista, topa?” “Tá topado!” entende que, para o seu talento de compositor, essas No dia 11 de abril de 1945, quatro anos e gravações significam autêntica vitrine no mercado quase um mês depois da primeira musical. Contudo, está convicto gravação, período em que perde que em sua voz ficariam meEle não consegue petua 24 discos como solista de lhores. Além do mais continua esconder o acordeom, o “Velho Lua” está de participando com a sanfona, sem desprazer por não volta aos estúdios da Victor para o merecer crédito no selo do disco gravar como cantor, registro do 25º disco de sua care, muitas vezes, sem cachê comreira, Dança, Mariquinha!, a priplementar, em inúmeras gravamas apenas solista gravação como cantor. Na ções de cantores famosos que inde sanfona. E tenta meira outra face, em solo de acordeom, tegram o elenco Victor. uma jogada, a polca Impertinente. Compreende, então, que, para alcançar tais objetivos, ouque deu certo Continente Multicultural 79


Cena histórica: 13 de dezembro de 1956, Luiz Gonzaga entrega sua sanfona a José Domingos de Morais – o Dominguinhos, que aos 14 anos, é coroado seu sucessor

Dominguinhos, o herde José Domingos de Morais (12.02.1941, Garanhuns – PE), aos seis anos de idade, era reconhecido como garoto prodígio. Dominguinhos – carinhosamente chamado Neném – é a sensação da sanfona de 8 baixos nas praças, nos hotéis e nas feiras das cidades interioranas. Com Neném, mais dois irmãos: Morais (pianista) e Valdo (acordeom). De passagem por um desses recantos, Luiz Gonzaga ouve falar de uma criança que, dizem, “toca igualzinho a ele”. Aguçado pela curiosidade, vai conferir para crer. Fica impressionado com a habilidade e com a apurada técnica, coisas muito difíceis de se ver num garoto daquela idade. “Esse fedelho vai longe...”, fica matutando. Tão grande é a satisfação de Luiz Gonzaga que ele se levanta e vai cumprimentar aquele “pinguinho de gente” que puxa um fole até melhor que muitos adultos. Aproveita para lhe confidenciar uma promessa: 80 Continente Multicultural

“Quando você for mais crescido, vou darlhe uma sanfona nova, presente de ‘padrim Gonzaga’, seu cabra!” O tempo passa. Cada vez mais entranhado nos segredos harmônicos da sanfona, dádiva que vem de berço, Dominguinhos logo é reconhecido como um dos seguidores do estilo Luiz Gonzaga. O mestre, sempre pelas imediações, observa a trajetória do pequeno grande artista. Até o encoraja a seguir os rumos do Rio de Janeiro. “Mas, ele é ainda quase um menino”, comentam alguns de seus colegas. “É cedo que se começa – pondera Gonzaga – e esse cabrinha, que já é um cabra da peste, tem talento que nenhum ouro do mundo compra”. Fica feliz o Rei do Baião quando sabe que o rapaz “está se garantindo” com os sucessos nas boates e nos cinemas dos arredores do Rio de Janeiro. Resolve, então, acolher de vez as suas prodigiosas adolescências, pensando até em proclamá-lo como herdeiro artístico. O primeiro passo é recomendá-lo à RCA Victor.


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eiro artístico Outras idéias, no entanto, borbulham em seus pensamentos. No dia 13 de dezembro de 1956, aniversário de Luiz Gonzaga, sua casa na Ilha do Governador fica parecendo uma “sucursal” da Música Popular Brasileira, onde estão cantores, compositores, músicos de todas as tendências, gente do rádio, da televisão e do disco. Em dado momento, Luiz Gonzaga reúne os convidados e traz pelo braço um jovem rapaz aparentando 14 ou 15 anos, de chapéu de couro, lenço no pescoço, um desajeitado pela timidez, mas exuberante no talento de grande artista do acordeom: José Domingos de Morais, o Dominguinhos. A platéia, que ainda não entende do que e de quem se trata, embora imagine ser mais um candidato a cantor ou compositor, faz profundo silêncio e aguarda a palavra do anfitrião. Gonzaga tira a sua sanfona e passa ao jovem Dominguinhos. Presente do Rei do Baião. O garoto ajeita o fole em seu peito. Treme que só vara verde. Finalmente, apontando para o rapaz, Luiz Gonzaga estufa o peito e, com todos os sotaques nordestinos, anuncia:

tico”.

“Este cabra da peste é o meu herdeiro artís-

Em verdadeiro burburinho fica a casa de Luiz Gonzaga. Todos querem conhecer de perto a nova estrela nordestina. Alguns até pensam que seja mais uma das brincadeiras de Gonzaga. E dizem: “O aniversário é de Luiz Gonzaga, mas o presente quem recebe é esse franzino, que nem pode com a sanfona”. Sempre por perto desses incréus, Gonzaga logo corrige: “O presente não é meu e nem de Dominguinhos. O presente é para a Música Popular Brasileira, que dele vai ouvir falar, e dele vai precisar”. Dominguinhos, a pedido de seu protetor, toca algumas músicas como se fosse o maior recital de sua vida. Brejeiro, de Nazareth, Vira e Mexe, de Gonzaga, e Escadaria, de Pedro Raymundo. Agora, todos concordam: trata-se de um grande talento. Poucos dias depois Dominguinhos é levado para conhecer os estúdios da RCA Victor. Gonzaga está para gravar o baião A Feira de Caruaru e Capital do Agreste, ambos do caruaruense Onildo Almeida. “Você quer entrar nessas gravações, Neném?” pergunta Gonzaga. Dominguinhos sabe que se trata de um grande desafio. Rejeitá-lo seria atestado de burrice. “Só se for agora, seu Luiz!”, responde. E o antológico solo da introdução de A Feira de Caruaru, bem como toda sua base, são tirados da sanfona e dos ágeis dedos de Dominguinhos, ele também participando da gravação de Capital do Agreste. Essas músicas assinalam o começo de sua carreira, um dos maiores talentos do cancioneiro popular brasileiro, o solista, o compositor, o cantor, o incontestável herdeiro das grandiosidades gonzagueanas, mesmo que desses tesouros, por modéstia, abdique. Dominguinhos tem consciência de que, mesmo indicado pela própria majestade, o seu reinado não tem coroa, porque Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, é único. Continente Multicultural 81


A mentira de Carlo

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Década de 60, a carreira de Luiz Gonzaga parecia ter chegado ao fim

Os anos 60 foram de impiedosas discriminações a Luiz Gonzaga e ao gênero baião. É época de Bossa Nova, Jovem Guarda, guitarras elétricas, modismos estrangeiros e caseiros. O espaço que lhes sobra são as cidades do interior. O preconceito chega ao auge no ano de 1967. Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba, e o escritor Ariano Suassuna compõem um baião, “São os do Norte que Vêm”, inscrito e classificado no II Festival Internacional da Canção Popular. Este cai como uma luva para a interpretação de Luiz Gonzaga. Tanto que Capiba, seu grande amigo, pressentindo a perfeição desse casamento – artista e música – convida-o para cantá-la, logo em seguida indo ao Rio para acerto dos detalhes de arranjo. Os organizadores do Festival vetam a idéia.

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Luiz Gonzaga está desgostoso e pensa em “pendurar” a sanfona prateada. É o reflexo de uma coroa que parece declinar dos topos do cancioneiro popular. Ao mesmo tempo reflete e tem o sentimento de que o Nordeste ainda o acolhe. Sua gleba, esses interiores tão seus conhecidos, seus rincões, sua gente que o respeita e admira, são razões suficientemente fortes para que, com sua sanfona, continue compondo e cantando. Na virada dos anos 60/70 muito se fala de “rock caipira” e “rock rural”. Uma exótica mistura de ritmos é imediatamente denominada baião-rock. Há, também, quem sinceramente veja semelhanças entre a música de Luiz Gonzaga e a “country música” americana, que é uma das bases do rock de Elvis, de Bill Halley e dos então já decantados The Beatles. Naqueles tempos, Carlos Imperial vivia o apogeu de sua carreira artística. Ator e compositor de sucesso, produtor, apresentador e “jurado” de programas de televisão, um dos pilares do movimento da “Jovem Guarda” e laureado em vários festivais de música popular, Imperial há muito proclamava a tal semelhança. Em 1968, Luiz Gonzaga por ele é convidado para participar de um de seus programas televisivos, ocasião em que se discute o “Baião-rock”. Meio sem jeito, sobretudo porque teme o que se possa dizer caso ele confirme a apregoada semelhança, o “Rei do Baião” não se define e se vê quase perdido nas sombrias encruzilhadas desses entrançados musicais. Nesse momento, Carlos Imperial bate na mesa, levanta-se e, olhando para


s Imperial

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Gonzaga (que logo pensa: “É agora, meu padrim padre Ciço, tô lascado!”), categoricamente afirma: “Esse homem que representa a simplicidade nordestina, sendo o criador e o divulgador mor do baião, na sua modéstia, não se sentiria à vontade

para comentar semelhanças entre a música dos Beatles e a sua toada, como ele próprio classifica; e que é, pelo menos, 20 anos mais antiga...” Num gesto um tanto teatral, desvia o rosto para o foco de outra câmera, como se quisesse olhar nos olhos e falar com o telespectador, e continua: “Vocês – agora apontando para os demais debatedores – críticos de Música Popular Brasileira, que abominam o xote, o xaxado, a toada, o baião e a sanfona de Luiz Gonzaga, por vocês chamada sanfona cafona da mediocridade, saibam todos, e eu tenho a prova aqui: OS BEATLES ACABAM DE GRAVAR A ASA BRANCA DE LUIZ GONZAGA”. A revelação tem efeito de um terremoto. A música de Luiz Gonzaga gravada pelos Beatles? Nem Ary Barroso mereceu tal distinção, dizem. Ora, nem Tom Jobim, e nem Chico Buarque, outros complementam. Até ele, ali presente e que desconhece as reais intenções do apresentador fica surpreso. “É verdade, seu Imperial?”, é a simplória indagação de Luiz Gonzaga. A partir de então todos se voltam para o cantor das léguas tiranas... É uma verdadeira loucura. Os focos dos refletores agora estão direcionados para o “Rei do Baião”. Jornais, rádios, revistas e a própria televisão, todos querem entrevistá-lo. Seu cachê fica mais decente. Seus discos começam a vender em maior quantidade. Veteranos e jovens, músicos e cantores, do movimento pós “Bossa Nova” ao “Tropicalismo”, todos determinam unanimidade nacional em torno do pernambucano de Exu, filho de Santana e Januário, cantador zambeta e zarolho, que lançara para o mundo o permanente vôo de uma nova música, o gênero baião. Outra vez cortejado e, por todos os méritos e direitos, reverenciado como a majestade única do baião, Gonzaga sustenta a inverídica notícia. Por questão de ética e de respeito ao público, faz isto de uma maneira singular: não a confirma e nem a desmente. Ele só pensa em pegar a “malota”, recheada de xote e de baião, e voltar a despejá-la por esses enormes brasis.

O boato de que os Beatles teriam gravado Asa Branca reacendeu o interesse de crítica e público por Luiz Gonzaga

Samuel Valente é pesquisador

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E o show continua

No começo da sua carreira, Silvério preferiu trilhar a sonoridade de Jackson do Pandeiro à de Luiz Gonzaga, que já tinha muita visibilidade

Até hoje a música de Gonzaga que a editora Irmãos Vitale está lançando. Luiz Gonzaga permanece vi- São cifras (para violão e outros instrumentos) de va, 12 anos após sua morte. mais de trinta standards do gênero sertanejo. Um exemplo: acaba de ser Essa movimentação atual vem comprovar a lançado nacionalmente um força da permanência do nome de Luiz Gonzaga, CD inédito com o registro do eleito o Pernambucano do Século, em votação poshow realizado no distante 24 de março de 1972, pular promovida pela Rede Globo de Televisão, no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro. em dezembro passado. Outro dado importante: os O espetáculo teve roteiro de José Carlos Ca- artistas que fazem música nordestina contemporâpinam e Jorge Salomão (que também fez a direção) nea, em suas diversas vertentes, invariavelmente cie foi promovido por Gilberto Gil e Caetano Veloso, tam o músico como sua maior referência. recém-chegados do exílio em Londres. Do show O cantor Silvério, ex-vocalista do Cascabuforam aproveitadas 15 faixas. Entre elas, Derra- lho, moderno grupo de forró do Recife, também é maro o Gai, Óia Eu Aqui de Novo e Lorota Boa. um dos influenciados pela obra do Velho Lua. Além de Volta Pra Curtir e de inúmeros ál- “Minha mãe era professora de acordeom. Ela cobuns dedicados a ele que estão sendo lançados nes- nheceu Luiz Gonzaga. Vovô a levava para todos os te ciclo junino, Gonzaga também recebeu a reve- programas de rádio. Minha avó era suplente de rência do cantor Gilberto Gil no CD São João Vivo! cantora. Quando alguma faltava, lá estava ela. Nu(Warner). Baseado na trilha sonora do filme Eu Tu ma dessas idas, minha mãe o viu tocando o instruEles (de Andrucha Waddington), o disco traz, fora mento e se interessou por aprender a tocar. Mamãe as músicas de autoria do baiano, clássicos do per- tinha a coleção de discos inteira”. Um desses LPs, nambucano: Olha pro Céu (Gonzaga/José Fernan- em particular, despertou a atenção do filho. “Gosdes), Óia Eu Aqui de Novo (Antônio Barros), Asa tava muito de São João no Araripe. Tanto que quanBranca (Gonzaga/Humberto Teixeira). Estas do participei do disco Baião de Viramundo (Candecomposições também estão no eiro Records) cantei a música É songbook apenas com músicas de Débora Nascimento Romeiro Só.

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Quando Silvério pretendeu ingressar na carreira artística, pensou em trilhar a sonoridade de Luiz Gonzaga. Mas, segundo confessa, o forrozeiro já tinha muita visibilidade. “Optei, então, por Jackson do Pandeiro”, afirma. “Ainda no Cascabulho, tive a intenção de fazer uma espécie de acústico com o repertório de Gonzagão, com arranjos para cordas e percussão, bandolim, cavaquinho. Queria pegar o trabalho mais antigo, as mazurcas, polcas, ganchos europeus”. De acordo com o cantor, essa idéia ainda não está engavetada. Ele apenas está deixando passar o período de divulgação do seu primeiro disco solo, “Bate o Mancá” (Natasha Records/BMG), somente com músicas de Jacinto Silva, continuador de Jackson do Pandeiro, recentemente falecido. Outro artista que não esconde sua reverência é o compositor Alcymar Monteiro: “Nasci ouvindo Luiz Gonzaga na região do Cariri. Na minha adolescência, ouvia de tudo um pouco, Elvis Presley, Bill Haley, Little Richard e o Rei do Baião, passando também por Jackson do Pandeiro”, recorda. Anos depois, o cantor foi conhecer o sanfoneiro no antigo Cavalo Dourado, danceteria do Recife, em 1985. “Entreguei meu disco Ave de Arribação. Ele prometeu que ia ouvir. Depois marcou um encontro para nós conversarmos sobre música. Ele disse: ‘você tem uma voz boa. Como está a sua carreira?’ Eu disse que andava difícil. E ele: ‘eu vou ajudar você’, Cantei com ele em dois discos meus. Há também uma gravação inédita de 1987, um dueto que não saiu até hoje”, revela Alcymar . Além de profissional, a ligação com o mestre também foi emocional. “Ele virou o padrinho do meu filho, que hoje está com 14 anos. Tivemos uma amizade muito boa. Ele dizia: ‘Você é um menino que estou gostando muito’. Mais tarde, o exuense disse para Alcymar que tinha outra surpresa para ele: o apresentou à cantora Marinês.

ALEXANDRE BELÉM / TITULAR

ALEXANDRE BELÉM / TITULAR

Os artistas que fazem música nordestina contemporânea, em suas diversas vertentes, invariavelmente citam Luiz Gonzaga como sua maior referência

“Foi com ela que gravei Oi, paixão, diz paixão, fala pra mim que ama, que eu te dou meu coração’ (canta). Com ela vendi 300 mil cópias”. Já o cantor Maciel Melo conheceu Luiz Gonzaga numa festa promovida por este em Exu. Fui como integrante de uma banda. "Eu tocava teclado e violão. Nesse meu primeiro contato com ele tinha 19 ou 20 anos de idade. Como eu era fã, não fiquei muito à vontade diante dele”, relembra. “Comecei a ouvi-lo quando tinha 8, 9 anos. Era o que se tocava nas rádios”. O forrozeiro lembra que uma das frases que o Rei do Baião falou foi: “Meu filho, quanto mais cedo você começar, melhor”. Atualmente, inúmeras bandas tocam os mais diversos tipos de música denominadas forró, mas o seguidor por excelência da música e do jeito de Luiz Gonzaga é mesmo José Domingos de Morais – Dominguinhos.

Alcymamar Monteiro tem ligação profissional e emocional com Luiz Gonzaga, que virou padrinho do seu filho

Débora Nascimento é jornalista

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MANOEL NOVAES / TITULAR

Dominguinhos

“Ele dizia: Você tá muito enxerido!”

Depois do célebre episódio da apresentação de Dominguinhos como “herdeiro artístico”, o garoto não mais saiu da casa de Gonzaga. Para onde o “velho” ia, fossem shows ou gravações, lá estava lá o piralho de contrapeso. “Ficou sendo a minha segunda casa. Ele dizia: ‘Neném pega a sanfona para me acompanhar’. Numa dessas turnês nordestinas, em 1967, cheguei a ser o motorista da “van” que transportava o sanfoneiro e a banda. Se as kombis hoje não prestam, imagine naquela época. Não tinha nem janela”, recorda. Algumas vezes, o herdeiro também fez a locução dos shows. Depois, começou a tocar mesmo. Gonzaga assistia a toda a evolução do rapaz no 86 Continente Multicultural

palco, mas não o elogiava. “Ele não era de elogiar. Só dizia ‘você tá muito enxerido’. Ele usava duas sanfonas. Eu fazia o acompanhamento normalmente. Era mais um embelezamento. Ele gravava com dois e até três acordeons. Mas não elogiava. Aliás, nordestino não gosta de elogiar. O pai costuma agir assim para não estragar o filho. Ele dizia: esse moleque tá muito enxerido. Mas dizia às outras pessoas: ‘Pode confiar, ele está tocando muito’. Era o jeito dele”. Dominguinhos, por sua vez, ignora a tradição nordestina e enaltece o mestre. “Ele foi a pessoa que mais inventou moda. Aquele jogo de fole ninguém fazia. O sulista norte-americano toca batido. Com o acordeom, você toca de tudo, valsa, bolero e música erudita. Há grandes concertistas de acordeom no mundo. Há acordeonistas japone-


MANOEL NOVAES / TITULAR

ses. Na Europa, há sanfona só com botões – sem o teclado de piano. Por isso, até Sivuca e Hermeto Pascoal aprenderam com ele”, avalia. Entre os shows dos quais José Domingos participou como sanfoneiro estava o espetáculo de 1972 que originou o CD “Volta pra Curtir”. A propósito, o forrozeiro ficou surpreso ao saber que o show havia sido gravado. “Ninguém da banda sabia. Nem o próprio Gonzaga porque ele não comentou nada com a gente. Quase trinta anos depois, a gravadora me procura para pedir a aprovação para liberar o material”, conta. Para o músico, o fato de o disco ter passado tanto tempo no limbo só tem um motivo: “burrice da empresa”. Afinal trata-se de um ótimo registro de uma apresentação ímpar. “Eu tenho vários discos na BMG, mas todo ano só relançam as mesmas coisas. O mesmo fazem com Luiz Gonzaga. É uma falta de preparo. Mas elas são todas do mesmo jeito. Não chegam para o artista e perguntam: ‘há uma série de discos gravados, o que você sugere para ser relançado?’. Para fazer compilações, chamam umas pessoas que não têm competência”. Há vários 78 rotações de Luiz Gonzaga que não foram relançados. Apesar de ter ficado surpreso com a qualidade espantosa da gravação do CD “Volta Pra Curtir”, o compositor reclama que na pós-produção fizeram “um corte horroroso no disco” exatamente em uma das histórias, causos narrados pelo sanfoneiro. “Nos shows pelo interior do País, o povo cobrava: ‘seu Luiz, uma leriazinha!’ Nesse disco

cortaram muita conversa do show. Pouca gente sabe, mas ele era um grande ator”. Para o artista, que conviveu de pertinho com Luiz Gonzaga, opinar sobre o panorama atual do forró é uma árdua tarefa. “São os trios (sanfonazabumba-triângulo) quem realmente defendem o forró. Há vários pelo país, Trio Xamego, Virgulino, Sabiá, Fuba de Taperoá. Também existem outros artistas que têm esse compromisso, como Genival Lacerda, Biliu de Campina, Jorge de Altinho. Você vê isso nos recentes discos de Camarão e Jacinto Silva, que faleceu recentemente. O nome é ruim, mas o grupo é bom: Forró Sacana. O Falamansa é um momento. Não posso dizer que seja bom ou ruim. Hoje quem está lotando as casas de shows no Sudeste são eles. Pelo menos, estão divulgando a música nordestina. Agora tem também o Rastapé, o Peixe Elétrico”, lista. “Há muita gente que faz música merengueada e diz que é forró”, critica o cantor, com a autoridade de quem acaba de lançar mais um bom disco na sua carreira. “Quem começou esse movimento foram as bandas de forró cearense. Não podemos negar. Depois que a lambada acabou, colocaram casais para dançar no palco e passaram a tocar a noite inteira. Eles têm dois guitarristas, dois músicos para cada instrumento. Assim conseguem passar a noite inteira no palco. Com isso desempregaram vários artistas, inclusive eu. Com o sucesso, muitas bandas de baile passaram a tocar forró, como a Magníficos. Alceu Valença diz que essa sonoridade é meio calypso. É um forrolambada”, avalia. Ao contrário do mentor, Domingos aproveita para também distribuir elogios aos colegas de profissão. “Gostei muito do disco de Gil. Ele é muito correto. É um grande cantor, toca sanfona bem. Aliás, antes de tocar violão, tocava sanfona. Também gosto muito de Targino Gondim (autor de Esperando na Janela). Eu o conheci quando ainda era garoto. Ele tem um carinho enorme por Gonzaga e teve a mesma chance que eu tive”. No caso, quem estendeu a mão foi Gil, que, não por acaso, encarnou o personagem Gonzagão (com chapéu de couro, gibão) na capa do recente álbum, São João Vivo! (Warner), em que homenageia o professor. (DN) Continente Multicultural 87


Kadna Cordeiro ensina Asa Branca a crianças inglesas: “Gonzaga é universal”

O Rei do Baião em Londres Há 10 anos venho desenvolvendo projeto de educação musical na Inglaterra, usando ritmos brasileiros. A música de Luiz Gonzaga esteve presente desde o começo desse trabalho. A reação inicial com relação à música do Rei do Baião foi mais positiva do que eu esperava. As crianças e jovens músicos ingleses ficaram fascinados com os ritmos popularizados por Luiz Gonzaga e as histórias contadas pelo mesmo sobre a música dos cangaceiros, como por exemplo o fato do rifle substituir a dama na dança do xaxado.

Kadna Cordeiro 88 Continente Multicultural

Em 1999 realizamos um concerto em Londres dedicado a Luiz Gonzaga que contou com a participação de mais de 40 músicos amadores. A orquestra Toot Brasil formada por 30 crianças e jovens músicos ingleses encerrou o concerto com Asa Branca, a música favorita de todos. Luiz Gonzaga influenciou e influencia gerações de músicos brasileiros e agora também jovens músicos ingleses. Nas oficinas que ministro em escolas, a música do Rei do Baião é uma grande fonte de inspiração nas composições. A idéia de que a música de Luiz Gonzaga não é universal é totalmente falsa. Ela toca corações de pessoas das culturas mais diferentes, da mesma maneira que a própria música nativa o faz. Kadna Cordeiro é professora de música


Nelson Valença, parceiro dele mesmo CARLOS SINÉSIO

Criador de sucessos regionais como O Fole Roncou e Catarino, compositor relembra o seu encontro com Luiz Gonzaga. E revela, sem mágoa, que as canções assinadas pela dupla são de um único autor.

não sabia nada disso.

O senhor começou a compor com que idade? Com 17 anos, mais ou menos. Eu não sabia música, não sabia nem o que era um tom maior, um tom menor,

Valença: “Luiz passou aqui em casa e disse: – Faça um baião”

E quando foi que o senhor conheceu Luiz Gonzaga? Ele passou por aqui uma vez, passeou pela cidade, encontrou um rapaz que trabalhava na rádio (Rádio Difusora de Pesqueira), conversou com ele, disse que estava sem compositor, e o rapaz disse: “Pois eu conheço uma pessoa aqui que faz músicas...” Mas eu não fazia baião; fazia samba-canção, valsas, que era o que se tocava no tempo em que eu comecei a compor. Então ele me procurou. Quando eu disse pra ele que não fazia baião, ele disse: “Faça que eu vou passar aqui tal dia”. Isso foi em que época? O ano eu não me lembro, não. Sei que ele tava na companhia de Ermírio de Morais. [Foi em 1970, quando José Ermírio de Morais disputou e perdeu a eleição ao Senado Federal por Pernam-

Marcos Cirano Continente Multicultural 89


CARLOS SINÉSIO

pra mim na televisão (porque eu sou produtor, fui produtor de rádio, tinha facilidade de escrever). Ele disse: “Eu arranjo um emprego pra você na televisão, você fica compondo, eu, gravando, eu mando buscar sua família...” Mas perguntei: “Luiz – engraçado que nessa época eu gostava muito mais de caçar do que de música, eu fazia música sem nenhuma pretensão... – Luiz, onde é que a gente mata lambu aqui?” – “Aqui, ninguém mata, não”. – “Ah, então eu vou é embora!” – “Esse matuto dá um trabalho danado; você fica aqui, você vai ser conhecido...” – “Olhe, eu não quero ficar, não”. E vim embora.

“Compus as cinco músicas sozinho, mas ele pediu pra botar o nome dele. Eu disse tudo bem”

buco.] Eu fiz cinco músicas, gravei numa fita e deixei por aí. Quando ele passou, tava lá embaixo no coreto, gente como o diabo, discursos, aquele comício. Eu não tive coragem. Mas um amigo meu falou com Luiz Gonzaga para que eu esperasse lá na casa do prefeito. Eu fui. Luiz Neves (o prefeito) abriu lá um quarto que não tinha ninguém e entrou eu e ele (Gonzaga), e estava também Eurivaldo Jatobá (músico e professor de violão conhecido por Eurivinha). Eu cantei três das minhas músicas: Coronel Pedro do Norte, Lulu Vaqueiro e O Urubu é um Triste. Luiz Gonzaga disse: “Eu vou gravar essas músicas, eu vou gravar todas três”. No início, pensei que ele tava me gozando. Mas ele tava dizendo de verdade, mesmo. Sei que depois, uma tarde, um rapaz conhecido meu que trabalhava no cinema me telefonou e disse que a revista Veja trazia uma reportagem com Luiz Gonzaga onde ele falava das minhas músicas, que tinha encontrado um compositor em Pesqueira e outras coisas lá. [As três composições de NV fazem parte do LP lançado por Luiz Gonzaga em 1971.] Depois desse primeiro encontro com Luiz Gonzaga, como foram seus contatos com o Rei do Baião? Aí ele ficou vindo sempre. Toda vez que ele passava pra Exu, ele vinha aqui em casa. Ele até me levou para o Rio de Janeiro, eu passei nem sei direito quanto tempo lá, acho que uns dois meses. Ele me levou... levou não, eu fui por minha conta, ele queria que eu fosse. Fui de avião, cheguei lá e ele não queria que eu voltasse de jeito nenhum. Disse que era pra eu ficar, que ele arranjava um emprego

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Nunca mais o senhor quis saber do Rio de Janeiro? Não, eu fui ao Rio duas vezes. Fui só, fui muito bem tratado lá. Luiz Gonzaga era uma pessoa muito boa, ajudava muita gente, ele era um sujeito muito caridoso. A mim, ele só reclamava de uma coisa: “Olhe, eu comprei leite, porque aqui nós não tomamos leite, e você nunca abriu o refrigerador”. Ele morava num apartamento muito bom, que era do filho, Gonzaguinha, na Ilha do Governador. Eu levei uma bolsa de queijo e outra de doce de Pesqueira. Eu, com vergonha de mostrar, mas você não queira saber como o presente foi valorizado. A mulher de Luiz Gonzaga gostou tanto que passou a guardar o doce e o queijo no quarto dela, para as empregadas não comerem tudo. Depois dessas primeiras músicas suas, quais foram as próximas que Luiz Gonzaga gravou? Foi num disco dele que tem cinco músicas minhas: Catarino, Juvino, O Bom Improvisador, Mulher de Hoje e O Fole Roncou. Todas essas cinco músicas eu compus sozinho, mas ele pediu pra botar o nome dele. Disse: “Olhe, eu tô um tempo aí sem compor nada, você se importa?” Eu disse: “Não, tudo bem”. Ele até disse pra um camarada lá que era pra botar o meu nome na frente. “Bote assim: Nelson Valença e Luiz Gonzaga, porque nessas eu entrei pela janela”. Eu nunca liguei pra isso, não, mas as músicas são só minhas mesmo. Marcos Cirano é jornalista


Discografia Em LPs – Luiz “Lua” Gonzaga – RCA Victor, 1961 – O Véio Macho – RCA, 1962 – São João na Roça – RCA, 1962 – Pisa no Pilão (Festa do Milho) – RCA, 1963 – Sanfona do Povo – RCA, 1964 – A Triste Partida – RCA, 1964 – Quadrilhas e Marchinas Juninas – RCA, 1965 – Óia Eu Aqui de Novo – RCA, 1967 – O Sanfoneiro do Povo de Deus – RCA, 1968 – São João do Araripe – RCA, 1968 – Canaã – RCA, 1968 – Sertão 70 – RCA, 1970 – O Canto Jovem de Luiz Gonzaga – RCA Victor, 1971 – Aquilo Bom – RCA Victor, 1972 – São João Quente – RCA Victor, 1972 – Luiz Gonzaga – Odeon, 1973 – Sangue Nordestino – Odeon, 1974 – O Fole Roncou – Odeon, 1974 – A Nova Jerusalém – Odeon, 1974 – Daquele Jeito – Odeon, 1974 – Capim Novo – RCA, 1976 – Luiz Gonzaga & Carmélia Alves – RCA, 1977 – Chá Cutuba – RCA, 1977 – Dengo Maior – RCA, 1978 – Eu e Meu Pai – RCA, 1979 – Quadrilhas e Marchinhas – RCA, 1979 – O Homem da Terra – RCA, 1980 – A Festa – RCA, 1981

– Gonzagão e Gonzaguinha, A Vida do Viajante (álbum duplo) – EMI-Odeon/RCA, 1981 – Eterno Cantador – RCA, 1982 – 70 Anos de Sanfona e Simpatia – RCA, 1983 – Danado de Bom – RCA-Camden, 1984 – Luiz Gonzaga & Fagner – RCA, 1984 – Sanfoneiro Macho – RCA-Camden, 1985 – Forró de Cabo a Rabo – RCA-Camden, 1986 – De Fia Pavi – RCA, 1987 – Gonzagão & Fagner 2 – BMG, 1988 – Aí Tem Gonzagão – BMG, 1988 – Vou Te Matar de Cheiro – Copacabana, 1989 Compilações em LP – A História do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga – RCA Victor, 1955 – Aboios e Vaquejadas – RCA Victor, 1956 – O Reino do Baião – RCA Victor, 1957 – São João na Roça – RCA Victor, 1958 – Xamego – RCA Victor, 1958 – Luiz Gonzaga Canta Seus Sucessos com Zé Dantas – RCA Victor, 1959 – O Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga – RCA, 1962 – Luiz Gonzaga, Sua Sanfona e Sua Simpatia – RCA, 1966 – Os Grandes Sucessos de Luiz Gonzaga – RCA, 1968 – Meus Sucessos com Humberto Teixeira – RCA, 1968 – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (coleção História da MPB, da Abril Cultural) – RCA, 1970 – Luiz Gonzaga (vol. 1) (coleção Disco de Ouro) – RCA, 1971 Continente Multicultural 91


– São Paulo: QG do Baião – RCA, 1974 – Sanfona do Povo – RCA, 1974 – Asa Branca – RCA, 1975 – Luiz Gonzaga (vol. 2) (coleção Disco de Ouro) – RCA, 1979 – Discografia Básica – RCA, 1979 – Luiz Gonzaga (vol. 3) (coleção Disco de Ouro) – RCA, 1981 – Os Grandes Sucessos de Luiz Gonzaga – RCA, 1982 – Os Grandes Momentos de Luiz Gonzaga – Som Livre, 1982 – O Rei Volta pra Casa – RCA, 1982 – 45 Anos de Sucesso – RCA, 1985 – 50 Anos de Chão (caixa com cinco LPs) – RCA, 1988 Em CD – 50 Anos de Chão (caixa com três CDs) – RCA, 1988 – O Melhor de Luiz Gonzaga – BMG, 1989 – Olha pro Céu – BMG, 1990 – Forró do Começo ao Fim – BMG, 1991 – Êta Cabra Danado de Bom – Revivendo, 1993 – Forró do Gonzagão – BMG, 1993 – Espetáculo das Seis (Luiz Gonzaga e Carmélia Alves) – BMG, 1993 – Quadrilhas e Marchinhas – BMG, 1994 – Sanfona Dourada – Revivendo, 1994 – No Meu Pé de Serra – Revivendo, 1995 – 50 Anos de Chão (caixa com três CDs) – RCA, 1996 – A Triste Partida – BMG, 1998 – Eterno Cantador – BMG, 1998 – Lua – BMG, 1998 – O Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga – BMG, 1998 – O Rei Volta pra Casa – BMG, 1998 – O Sanfoneiro do Povo de Deus – BMG, 1998 – Óia Eu Aqui de Novo – BMG, 1998 – Pisa no Pilão (Festa do Milho) – BMG, 1998 – Sua Sanfona e Sua Simpatia – BMG, 1998 – Xamego – BMG, 1998 – O Essencial de Luiz Gonzaga (Série Focus Nacional) – BMG, 1999 – Luiz Gonzaga (Série Acervo) – BMG, 2000 – Eu Só Quero um Forró – BMG, 2000 – Canaã – BMG, 2000 – Luiz Gonzaga Canta Seus Sucessos com Zé Dantas – BMG, 2000 – Ó Véio Macho – BMG, 2000 – Sanfona do Povo – BMG, 2000 – São João do Araripe – BMG, 2000 – São João na Roça – BMG, 2000 Fonte: Dominique Dreyfus e site www.uol.com.br/luizgonzaga

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ROTEIRO D Durante todo o mês de junho, Caruaru é uma vitrine do forró e dos variados ritmos nordestinos. No Pátio do Forró, com seus 40 mil metros quadrados, está concentrado o maior número de atrações. O São João caruaruense deste ano homenageia o cantor e compositor Jacinto Silva, que morreu em fevereiro. Mais informações sobre as festividades na cidade pelo telefone (81) 3721-1633. Principais atrações do Pátio do Forró 18/06 – segunda-ffeira Heleno dos 8 Baixos • Josildo Sá 19 – terça-ffeira Pisa na Fulô • Jucélio Vilela 20 – quarta-ffeira Quinteto Violado • Mestre Ambrósio • Banda de Pífanos de Caruaru 21 – quinta-ffeira Fogo de Palha • Capim com Mel 22 – sexta-ffeira Cheiro de Mel • Mamulengo Arretado 23 – sábado Jorge de Altinho • Petrúcio Amorim • Jorge de Altinho 24 – domingo / Dia de São João Alceu Valença • Silvério Pessoa 25 – segunda-ffeira Totonho • Kaki com Mel 26 – terça-ffeira Arlindo dos 8 Baixos • Banda Desejo 27 – quarta-ffeira Cristina Amaral • Ademário Coelho 28 – quinta-ffeira Langerri • Forró Baquiara 29 – sexta-ffeira / Dia de São Pedro Dominguinhos • Alcymar Monteiro 30 – sábado Brucelose • Maciel Melo 01/07 – domingo Encontro de Quadrilhas


DO FORRÓ Para saber mais O baião e o forró “A origem do baião se associa ao breve trecho instrumental existente no repente nordestino, que é chamado justamente de “baião”. O termo, sinônimo de “rojão”, designa as células rítmicas que o violeiro-cantador toca na viola, ao afinar seu instrumento, antes de começar a cantar. É o mesmo som que faz quando, no meio do desafio, esperar vir a inspiração para novos versos. Com esse ritmo, ele preenche o espaço entre uma estrofe e outra. Essa seqüência serviu de ponto de partida para Luiz Gonzaga criar o baião. A invenção foi portanto conseqüência de uma descoberta. A de que, às células rítmicas do repente (de canto recitativo e monocórdio), transplantadas da viola para a sanfona, podiase justapor uma melodia cantável. Assim começou a se delinear o formato que o baião veio a ter”. (Carlos Rennó) Forró vem de forrobodó, expressão dicionarizada desde o início do século passado, que significa baile popular, no Nordeste. Seria a forma abreviada da expressão. Outra versão, não comprovada, sustenta que vem do inglês “For All”, utilizado nos bailes organizados para os trabalhadores das ferrovias britânicas no Nordeste. Inicialmente forró era o local dos bailes, depois passou a designar o tipo de música dançada nos bailes, típicas dos festejos juninos. A formação tradicional é sanfona, zabumba, triângulo e, eventualmente, pandeiro. Modernamente, o forró engloba tudo – dança e música – e vários gêneros, além do baião, como xote, xaxado, coco-de-roda etc. Bibliografia Sá, Sinval – O sanfoneiro do riacho da Brígida – Edições A Fortaleza, Fortaleza, 1966. Ferretti, Mundicarmo Maria Rocha – Baião dos dois: Zé Dantas e Luiz Gonzaga”. Editora Massangana, Recife, 1988. Chagas, Luiz – Coleção Vozes do Brasil: Luiz Gonzaga. Martin Claret Editores, SP, 1990. Ângelo, Assis – Eu vou contar pra vocês – Ícone Editora, SP, 1990. Oliveira, Gildson – Luiz Gonzaga, o matuto que conquistou o mundo – Comunicarte, Recife, 1991. Dreyfus, Dominique – A Vida do Viajante, Editora 34, 1996. Câmara, Renato Phaelante da – Compositores pernambucanos – Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 1997. Para consulta na Internet veja www.uol.com.br/luizgonzaga/ e www.mpbnet.com.br/musicos/luizgonzaga/

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ENTREMEZ

Johann Sebastian Bach e José Aniceto Um, como o outro, compunha para o futuro, sem a ansiedade do homem moderno de ver reconhecido e consumido o seu produto artístico

A

queixa partiu do musicólogo George Lederman, quando terminávamos de ouvir A Paixão Segundo São Mateus, de Bach: nunca mais se comporá assim. A noite sem lua, o pátio extenso da casa de campo e o retorno ao silêncio após os últimos acordes da orquestra tornavam a sentença bíblica. Na verdade, nunca mais se compôs assim. A prova é que escolheram a música do mestre alemão para ser lançada no espaço, escapando a prováveis hecatombes que varram o homem e sua arte do planeta. Algum dia, seres de outros universos poderão se encantar com a mais sublime e elevada música. Talvez, os ETs

não compreendam como foi possível que do mesmo barro original tenha nascido a mão que desenhava partituras e a que apertou o botão das ogivas nucleares para o ato final. A Paixão é uma obra complexa, dura quase quatro horas, exige dois coros, cada qual com sua própria orquestra, e inúmeros solistas vocais e instrumentais. As peças profanas do compositor são poucas, se comparadas à sua música sacra, composta sobretudo de 1723 até sua morte, em 1750, quando trabalhava em Leipzig, como mestre de capela ou diretor musical de várias igrejas. O miraculoso para nós, modernos, é o volume da obra de Bach: trezentas cantatas, das quais nos chegaram duzentas; cinco paixões, três orató-

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rios, um magnificat, seis concertos de Brandemburgo, diversos concertos para violino e cravo; fugas, prelúdios, fantasias, sonatas, tocatas, partitas, suítes e caprichos, escritos numa época em que não existiam computadores editando partituras musicais. Será que o tempo diminuiu a sua medida ou possuía um outro sentido e utilidade que perdemos? Bach tinha uma grande família e se ocupava da educação dos filhos. Religioso, compunha para o futuro, sempre na perspectiva do eterno. Era imune à ansiedade do homem contemporâneo, que só pensa no reconhecimento imediato e no consumo do seu produto artístico. O compositor que ficou esquecido cem anos também fez sombra ao talento dos filhos. Só agora os pesquisadores chamam atenção para a qualidade da música produzida pelos filhos de Bach. A história do homem é assim mesmo, um terreno arqueológico em que camadas se sobrepõem às outras e só por milagre alguns tesouros perdidos vêm à luz. Há vários níveis de saber na construção do conhecimento humano. Penso numa pequena orquestra da minha cidade do Crato, uma humilde banda cabaçal de dois pífaros, uma zabumba, uma caixa e um par de pratos. Tinha o nome de Os Irmãos Aniceto, e era formada por um pai e quatro filhos homens. Bastava olhá-los para reconhecer que o sangue de índios e negros corria nas suas veias. Criados nos vales e chapada do Araripe acostumaram-se a caçar na floresta e banhar-se nas nascentes d’água. Plantavam arroz, feijão, mandioca e milho como todos os pequenos agricultores. No tempo livre, tocavam seus instrumentos e dançavam. Tinham um repertório de mais de cem peças, de que se diziam autores. Pode-se duvidar da informação. Outras bandas locais executavam músicas semelhantes. Mas isso não tem a menor importância. A arte é um bem comum e só o homem moderno inventou a assinatura como marca de proprietário.

Por alguma razão a família Aniceto sempre me lembrou a família Bach. Há em comum entre eles o mesmo modo religioso de viver, o sentido de sagrado, a arte incorporada ao comum das coisas. Toca-se o pífaro com a mesma fé e concentração com que se bebe um copo d’água. Com a música celebram-se os nascimentos, os casamentos, as colheitas, a morte. Não há rupturas na cadeia do viver, nenhum staccatto. O tempo flui com uma outra medida. Plantar um roçado de milho não é diferente de compor uma marcha de estrada. Tive provas disso. Nos meus tempos de pesquisador de cultura popular assisti a uma apresentação de palanque dos Irmãos Aniceto. Depois de marchas e baiões, cada membro faria um solo com o seu instrumento, tocando e dançando. Os quatro irmãos, Francisco, João, Antonio e Raimundo, saíram-se bem, sendo aplaudidos. O Velho José Aniceto, com quase noventa anos, foi deixado por último. Para ele, mestre e pai, sobraram os pratos, por serem leves e não exigirem esforço. Quando o filho mais velho fez uma vênia na sua frente, estava dado o sinal para que começasse a dança. Solene e vagaroso, o velho colocou os pratos no chão e deitou-se de bruços. Debatia-se, agitando braços e pernas, como se lutasse contra um monstro poderoso. O público, estranhando aquela dança, não teve a menor compaixão e vaiou o velho até que ele se levantou, dando o rito por encerrado. Eu sofria como se fosse contra mim todo o clamor. Dias depois ele me disse: “Já estou velho e sa minha briga é com a morte. Eu me atiro na terra e ela me puxa para baixo, querendo me levar. Eu luto, luto para subir pro céu”. A música barroca de Bach eleva-se em espirais e sugere um movimento de ascensão. O mesmo que o velho José Aniceto tentava dar à sua vida e à sua modesta criação. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Todos querem ser reis

M

eu coração anda enfraquecido. Nossas emoções estão se tornando mais tristes – o desencanto de viver num mundo violento – momento tão cruel deste meu doce País. O que mais amargura é esse inútil comportamento da maioria dos nossos políticos, trovões acintosos e hipócritas em palavras desprezíveis à inteligência de uma significativa parcela da população. Passaram-se anos e governos; testemunhamos revoluções, golpes e quarteladas; expulsamos invasores e gritamos independência – não sei de quê; criamos mitos, reis e rainhas urbanos e suburbanos; adubamos ignorâncias e falta de educação; velamos milhares de brasileirinhos natimortos por falta de assistência médica; deixamo-nos dormir desastradamente quando a corrupção contaminava, célere, a aridez molambenta dos tapetes de poderes constituídos; nunca aprendemos a cantar a nossa Pátria amada completa; rimos com uma cidadania esquecida; votamos em pestes falastronas e não aprendemos a sufragar, parcimoniosos, por isso decadentes que somos, o antídoto democrático para debelá-los – surrealistas de várzeas pardacentas e lamacentas, também andrajosos, a surrupiarem nossa consciência. Malditos sejam esses políticos que nos consomem. Todos querem ser reis. Vivemos no melhor País da face da Terra, e longe de procurarmos ser felizes, quedamo-nos a legisladores e mandatários aproveitadores, caras lisas – como de paus –, frios tais as pedras que nunca saem de seus lugares, salvo para nos ferir. Se já não bastasse, há gasto de tempo em palminhas para as bundinhas televisivas, axés e

raps – programas de auditórios ridículos com apresentadores retraçados de idiotices – e ainda temos que estar atentos para a nossa segurança. De quando em vez, chocamo-nos com noticiários ao vivo, mortes, incompetência e “revoltantes pronunciamentos” dos nossos governantes – principais responsáveis pela falta de preparo profissional em dezenas de segmentos oficiais. Ora, ora! Nunca deram atenção às prioridades constitucionais, básicas, do nosso País... A educação e a cultura – o resto é conseqüência. Passamos por uma bruta crise de incompetência. Urge que olhemos com a maior atenção para os jovens do nosso País. Pois saibam tantos quantos lerem esta minha opinião, que os índices anuais de mortalidade por violência no Brasil estão aproximadamente em 50 mil pessoas – com espetacular maioria de jovens: vítimas e assassinos. Há séculos, estudos históricos feitos em diferentes países, mostram que os jovens sempre foram mais violentos. Porquanto, a associação entre juventude e violência é antiga. É tão generalizada que Hirschi e Gottfredson, em 1983, num trabalho clássico, Age and the Explanation of Crime, afirmaram que não há teoria satisfatória do crime, porque nenhuma explica esta associação e suas variações no tempo e no espaço. Que jovens reis são esses, que não cultivam sonhos e flores? Bom seria que imitassem o então moço Honoré de Balzac, depois célebre romancista francês, que recusou, peremptório, a sugestão do pai, que queria vê-lo político. “Quero ser literato” – respondeu. “Meu filho, para ser literato, ou rei ou nada.” “Então, pai... Eu vou ser rei.” Que bom que tivéssemos esses reis a mandarem em nós.

Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural




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