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Especial
Chico Buarque Compositor diz que MPB é coisa para jovens, que sonhava ser craque de futebol e que não é poeta
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Teatro Adriana Falcão
Autora fala da criação de Cambaio, queixa-se da crítica e revela que desistiu de fazer teatro
Memória
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Século 21 Memórias de delegacia
Computador que não funciona, fria formalidade: um flagrante do Primeiro Mundo, em Londres
Poemas inéditos do autor de A Música da Luz e Os Ritmos do Fogo cantam o tempo e o amor
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A obra de Sílvio Romero, sobre crítica e história da literatura, sempre tomou um caráter polêmico
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Exposição lembra a importância do Gráfico Amador para a moderna tipografia brasileira
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Como a sopa se espalhou pelo mundo, do sangue de animais a ervas daninhas, até o caldo sintético
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Entrevista e poema inéditos do pintor cuja obra antecipou as principais vanguardas artísticas
A distinção entre música e poesia nos livros didáticos pode não passar de estratégia econômica
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Surgimento da sumaca
Evaldo Cabral de Mello conta como um barco holandês foi adaptado pelos luso-brasileiros
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O eterno retorno do rei
Perpetua-se a lenda de que o rei português D. Sebastião, desaparecido em batalha, vai voltar
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Por que Lampião não entrou em Lagarto Joel Silveira estréia coluna, relembrando Lampião, Rubem Braga e Graciliano Ramos
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Mil palavras
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Lição de Arte Cícero Dias
O que a música ensina
Diário de uma víbora
Sabores pernambucanos Isso dá um caldo
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Messianismo
Artes Visuais
Experiência vanguardista
O paisagista Telles Júnior revigorou a pintura no Estado e levou uma vida de lutas e desgostos
História
Literatura
Vaidade e truculência
Essencialmente pernambucano
Marco zero
Antologia
Weydson Barros Leal
Foto de Chico Buarque, por Geyson Magno/Lumiar. Foto de Adriana Falcão, por Ana Attoni/Folha Imagem. Auto-retrato de Ernesto Guevara de la Serna
Che, o fotógrafo
Fotos inéditas mostram um lado desconhecido do líder guerrilheiro, enfocando cenas do cotidiano
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Entremez
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Coisas de cinema Olhares fellinianos sobre acontecimentos recentes da política brasileira, do golpe de 64 a ACM
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Humor Lailson
O desenhista pernambucano é o primeiro enfocado na nova seção de humor gráfico
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Últimas palavras Volúpia do segredo
Os mitos, a literatura e a política são alimentados por enigmas que excitam a curiosidade humana
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Expediente Companhia Companhia Editora Editora de de Pernambuco Pernambuco –– CEPE CEPE Presidente Marcelo Marcelo Maciel Maciel Diretor Financeiro Altino Altino Cadena Cadena Diretor Industrial Rui Rui Loepert Loepert
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Marcelo Maciel Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Carlos Fernandes Fernandes Editor Mário Mário Hélio Hélio Editores Executivos Homero Homero Fonseca, Fonseca Marco Marco Polo Polo Assistente de Edição Alexandre Alexandre Bandeira Bandeira Arte Luiz Luiz Arrais Arrais Editoração Eletrônica André André Fellows Fellows Ilustrador Lin Lin Colaboradores:
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Gerente Gráfico Samuel Samuel Mudo Mudo Gerente Comercial Alexandre Alexandre Monteiro Monteiro Equipe de Produção Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira, Sílvio Mafra e Zenival Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE CEP 50100-140 Circulação e assinaturas Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 - fone/fax: (81) 3222.4130 e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Caixa Econômica Federal Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
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Cabeça de escritor I brir o microfone para um grupo tão heterogêneo de escritores (Nº 05) foi uma grande sacada. Proporcionou aos leitores um painel – não literário, mas sociológico – da mentalidade do escritor brasileiro. No geral, as falas coincidiram entre si, havendo o predomínio do baixo astral. Afirmam que “não apareceu nada de novo na literatura brasileira, nos últimos anos” com uma sem-cerimônia que chega a doer. Nada de novo? E Valêncio Xavier? E André Sant’Anna? E Marçal Aquino? E Jamil Snege? E assim vai. Não sei. Talvez o ingênuo seja eu, por achar que a nova safra de poetas e prosadores esteja com a bola toda! Mais uma vez, parabéns! Nelson de Oliveira – São Paulo – SP
A
Cabeça de escritor II enho 14 anos e sou escritor. Sempre leio a revista na Biblioteca Gilberto Freyre, com a qual colaboro em organizar os livros. Adorei as entrevistas com os escritores. Continuem fazendo essas entrevistas para nós, leitores, sabermos um pouco mais sobre suas vidas. Roberto Belo de Lima – Recife – PE
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Imperialismo lingüístico omei conhecimento da revista através do meu orientador. Estou na última fase do mestrado na Faculdade de Comunicação Casper Líbero, onde também leciono. Aproveito para pedir os endereços onde podemos comprar a revista aqui em São Paulo. Rosemary Duarte – São Paulo – SP NR: Livraria FNAC – Praça dos Omaguás, 34 e Livraria Cultura – Av. das Nações Unidas, 4777.
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Imoralidades into-me satisfeito em saber que ainda existem cidadãos que se preocupam em divulgar o que esse Brasil tem de melhor – seus artistas, seus escritores, seus filhos prodígios – sem apelar para imoralidades, peitos e bundas! Rodrigo Benevides Bezerra de Mello – Jaboatão dos Guararapes – PE
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Mensagens arabéns à toda a equipe da Continente pelo excelente nível da publicação. Tarso Genro – Prefeito de Porto Alegre – RS
Felicitações pelo nº 5 da revista, muito bem apresentada e rica em conteúdo. Arnaldo Niskier – Rio de Janeiro – RJ
EDITORIAL REPRODUÇÃO
Che Guevara, com um “puro”, no momento em que tirava uma foto, em Havana, 1962
Chico Buarque ao pé da letra, Che Guevara à luz da câmera
E
ntre os “dez erros ou mentiras freqüentes sobre literatura e cultura na América Latina”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano começa a questionar no seu livro Nós Dizemos Não a afirmativa de que “fazer literatura consiste em escrever livros”. Ele põe entre os produtos literários os textos jornalísticos de José Martí e Rodolfo Walsh e as canções populares: “Eu me pergunto (...) se a obra de Chico Buarque de Hollanda carece de valor literário porque está escrita para ser cantada. A popularidade é um delito de lesa literatura? O fato de que os poemas de Chico Buarque, talvez o melhor poeta jovem do Brasil, andam de boca em boca, cantarolados pelas ruas, diminui seu mérito e rebaixa a sua categoria? A poesia só vale a pena quando se edita, ainda que seja em tiragens de cem exemplares?” Isso está numa crônica publicada há 21 anos. Depois desse tempo, Chico Buarque já foi tema de teses, escreveu romances, peças de teatro, virou best-seller. Não faz muito, quando o escritor Pedro Lyra lançou a sua antologia sobre a geração dos poetas que floresceram na década de 60, os jornais voltaram ao tema, que sempre tem partidários apaixonados de um e de outro lado da discussão: ao pé da letra, música popular é poesia? O próprio compositor, pouco dado a polêmicas, que enveredou na literatura pela prosa de ficção, já respondeu: não, o que ele faz não é poesia. É com alguns dos seus “versos” que o repórter Geneton Moraes Neto emoldura a sua conversa bem-humorada com um Chico Buarque que, entre outras surpresas, fala de quando foi motorista de Garrincha. De surpresa em surpresa foi sendo feita esta edição, como uma notável estréia. Joel Silveira, um dos melhores da Imprensa brasileira em todos os tempos, a quem Chateaubriand chamava de “Víbora”. A sua coluna vem com a ironia e o humor finos, isto é, a língua (uma faca só lâmina) afiada. Outra surpresa: as fotos de Ernesto Che Guevara. Não as que dele fizeram, mas as que ele fez. Sim, o grande líder latino-americano quis ser fotógrafo. E foi. Recentemente, em Valência, na Espanha, uma grande exposição mostrou ao público, pela primeira vez, centenas de imagens tiradas pelo Che. Depois que a Biblioteca Valenciana e o Centro Che Guevara a promoveram, a mostra foi solicitada por instituições de várias grandes cidades do mundo, como Paris, Londres, Roma e outras da Espanha. Enquanto a exposição não chega ao Brasil, os leitores de Continente podem conferir em primeira mão o talento de Che para as imagens, em reportagem especial. Continente Multicultural 3
“
Há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente, vem uma idéia. Você se pergunta: de onde veio? É o que acontece com o futebol: é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável
”
CHICO
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Memórias prévias de um ídolo da MPB
Q
uem tentar extrair do entrevista- lidades que despertam atenção em qualquer época, do Chico Buarque de Hollanda sob qualquer circunstância – não apenas quando circunvoluções teóricas sobre a lança um disco. Ninguém precisa ser psicólogo Música Popular Brasileira ou profissional para constatar que Chico Buarque dissobre a Poesia ou sobre a Polí- pensaria de bom grado essa honraria. tica certamente voltará para casa A palavra unanimidade já foi escrita inúmede mãos abanando. Porque ras vezes ao lado do nome de Chico Buarque de Chico Buarque, tímido profissional, usará a timi- Hollanda. Mas um crítico cri-cri poderia, se quidez como escudo para escapar pela tangente. O sesse, repetir em relação a Chico Buarque o que o homem não é dado a digressões – nem um pouco. poeta e crítico Mário Faustino disse de Carlos Diante de jornalistas em geral, Chico é um caso Drummond de Andrade: a presença de Chico clássico de Síndrome do Silêncio Compulsivo: em Buarque de Hollanda na vida brasileira – assim situações normais, prefere se calar. Só fala – pro- como a de Carlos Drummond – seria ainda maior vavelmente incomodado – quando enfrenta a roda- se ele usasse o enorme prestígio de que é dono para da de entrevistas programadas pela gravadora para intervir com maior freqüência no debate cultural. badalar um novo lançamento. Fora daí, o assessor – “A poesia de Carlos Drummond – disse de Imprensa de Chico Buarque, Mário Canivello, Faustino, em célebre artigo publicado no suplementrabalha dobrado para ir se livrando dos incontá- to literário do Jornal do Brasil – é documento crítico veis pedidos de entrevistas. Estrela de primeira de um país e de uma época (no futuro, quem quiser grandeza, Chico Buarque perconhecer o geist brasileiro, pelo tence à constelação de persona- Geneton Moraes Neto menos entre 1930 e 1945, terá Continente Multicultural 5
Sérgio Buarque de Hollanda, autor do clássico Raízes do Brasil, pai de Chico: “Não sou filho de alemão. Sou pai de alemão”
de recorrer muito mais a Drummond do que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e “filósofos” nossos...) e um documento humano “apologético do Homem”. Não parece restar dúvida de que Carlos Drummond de Andrade é um dos nossos raros masters, ao lado de Camões, Fernando Pessoa, Jorge de Lima. Já apontamos aquilo que consideramos o seu grande pecado de omissão: o não se ter nunca realmente interessado (e hoje em dia ainda menos) pelo desenvolvimento da poesia brasileira como forma de cultura. O não propagar. O não ensinar, por um de tantos meios. O não lutar abertamente contra os inimigos de nossa poesia: a facilidade, as falsas glórias, a caótica escala de valores”. Diante de tal cobrança – se um dia lhe fosse feita –, o master Chico Buarque poderia responder que já disse em suas músicas tudo o que tinha a dizer – assim como Drummond fez em seus poemas e crônicas. Quem discordar que atire a primeira pedra. Fora dos palcos e estúdios, tenta levar uma vida que nem de longe lembra a de uma estrela. Observadores sortudos podem flagrar o Poeta empenhado em fazer caminhadas solitárias pelo calçadão da praia do Leblon – cenário que escolheu para manter a forma desde que se mudou do Jar-
dim Botânico. Volta e meia é personagem de uma cena tipicamente carioca, como esta, testemunhada pelo locutor-que-vos-fala: Chico Buarque chega sozinho para almoçar em um self-service do Jardim Botânico, o Fazendola. Como qualquer mortal, enfrenta a fila do caixa com a bandeja na mão. Depois, flana pelo salão em busca de uma mesa vazia. As testemunhas da cena cumprem com louvor o papel que lhes cabe: todo mundo faz de conta que Chico Buarque não é Chico Buarque. Deve ser um sósia. Assim, a estrela pode almoçar em paz, sem ser importunado por estranhos. Quando já se dirigia ao portão de saída do self-service, Chico Buarque foi abordado pela primeira vez desde que chegou para o almoço. Quatro moças pedem autógrafo. O pedido é atendido em guardanapos. Se um dia resolvesse escrever um livro de memórias – remota possibilidade que ele, no entanto, não descarta inteiramente – Chico Buarque teria assunto para encher mil páginas. Se quisesse, reuniria cenas incontáveis da convivência com gente que, como ele, virou mito. O que dizer da amizade com Garrincha no exílio, na Itália? Chico serviu de motorista de luxo para o gênio das pernas tortas. Enquanto circulavam, Garrincha ia confessando uma surpreendente admiração por João Gilberto.
Nesta entrevista, Chico revisita cenas marcantes como estas – em companhia de Garrincha. Fala da primeira e única vez em que viu o então ditador Emílio Garrastazu Médici. Desmente um mito: o de que teria escrito os versos “você não gosta de mim, mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel. Diz qual é a música de outro compositor que lhe desperta um sentimento parecido com a inveja. O Poeta que prefere não falar vai responder, a partir de agora, a quarenta perguntas. São lembranças inéditas – um capítulo do livro de memórias que, possivelmente, jamais será escrito. Gravando! Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito? Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor. Mas existem músicas que amo. Gosto mais do que as minhas. Eu não gostaria de ter feito uma música alheia. É uma coisa que não me ocorre. Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa. Quando você grava ou repete nos shows, não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro, então, sentir o prazer que sinto a cada composição minha, por menor que seja. Você poderia, então, citar uma música de ououtro autor que você inveja? Um milhão de músicas. Não tenho uma preferida, mas agora que você falou, me bateu uma na lembrança: Águas de Março – de Tom Jobim. É uma música que eu não diria que gostaria de ter feito, porque é impossível que eu fizesse uma música dessa. É outra cabeça. Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação, assim como músicas de Noel Rosa, Cartola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Recorro a um recurso: tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom. Ao me fazer parceiro, eu crio a música com eles. Ao fazer a letra para uma música alheia, eu estou me apropriando um pouco dessa música – que não é minha. Depois de fazer Paratodos, Paratodos, você passou anos sem lançar um disco com músicas inéditas. Disco de Chico Buarque agora é feito Copa do Mundo – só de quatro em quatro anos?
“Águas de Março, de Tom Jobim, é uma música que eu não diria que gostaria de ter feito, porque é impossível que eu fizesse uma música dessa. É outra cabeça. Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação” Pior! Agora é de cinco em cinco. Os lançamentos vão se espaçando. O trabalho vai ficando mais difícil, mas também mais prazeroso. Quando termina, você se sente cansado, mas satisfeito. As músicas saem, talvez, com menos espontaneidade, com mais intensidade. A que você atribui o espaçamento cada vez maior entre um disco e outro? Talvez a música popular seja uma arte de juventude. Imagino que seja, porque o consumidor de música popular é, sobretudo, o adolescente, o jovem de vinte a trinta anos. Depois, começa a diminuir. Já o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo. Faz uma coisa ou outra, mas não com a exuberância que tinha aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos, você tem um Continente Multicultural 7
baú de música inéditas. Depois, as músicas vão escasseando. Você fica mais exigente. Chega, então, um tempo em que a gente começa a fazer música popular com o resto de juventude que se tem. Depois, o melhor a fazer talvez seja imitar Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas. Talvez seja melhor procurar outro afazer, outra ocupação.
“Garrincha jogava umas peladas na periferia de Roma e ganhava um cachê. Era impressionante, ele era muito popular, apesar de haver parado há muito tempo”
gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória, mais ingênua, talvez. Mas não! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto.
Que tipo de comentário ele fazia sobre João Não é o que você vem fazendo nos últimos Gilberto? anos, com a dedicação cada vez maior à literatura? Garrincha comentava gravações, se referia a A literatura é uma alternativa. Talvez eu te- detalhes, lembrava de como João Gilberto cantava nha me inspirado em Caymmi ao pensar nisso: ter uma determinada música. Para me mostrar, Garum recurso para continuar criando sem depender rincha cantarolava – não muito bem –, mas mostrada juventude – que é o motor da música popular. va que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto. Referia-se à maneira como João Gilberto Você diz que o futebol tem momentos de cantava as músicas. João é um inventor. Não é um improviso e genialidade que nenhum artista concon- compositor. Talvez seja mais do que compositor, segue repetir. Mas em alguma de suas músicas porque inventa a partir de uma música alheia. E você teve o sentimento de improviso que você só Garrincha falava exatamente disso: a maneira como encontra no futebol? João Gilberto cantava – talvez uma cantiga mais É possível encontrar algo semelhante ao fu- conhecida que ele tivesse reinterpretado, como Aos tebol, no jazz, na música instrumental. Alguma coi- Pés da Santa Cruz. Garrincha salientava a maneira sa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou como João Gilberto reinventava um samba. improvisador. De qualquer forma, há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente, vem uma idéia. Você se pergunta: de onde veio? É o que acontece com o futebol: é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável. Que música ou que verso despertou em vovocê, na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible? Você vai trabalhando, trabalhando, trabalhando em cada música, até que há um “clique”: aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz”. É como se fosse algo que viesse de fora. Quando estava exilado na Itália, você teve contato com Garrincha. É uma página pouco coconhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conconversaram sobre futebol ou sobre música? É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música... Acontece também com Pelé – que adora música. Mas Garrincha era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma. A
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É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália? Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma. Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat. Era impressionante. As pessoas paravam na rua. Garrincha era muito popular. Isso aconteceu entre 1969 e 1970. Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo. Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962. Mas ele ainda era muito conhecido na Itália.
MARCOS MENDES / AE
Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria? Nunca escolhi ser músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos 14, 15 anos de idade, eu quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão. Mas eu tinha essa ilusão, na época, com bastante segurança. Tornei-me músico um pouco por acaso. Devo dizer que o sonho de ser um craque permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja.
Você chegou a tentar ser um jogador de futebol profissional? Eu, que jogava tanto, um dia fui ao Juventus, na rua Javari, em São Paulo, para fazer um teste. Mas eram milhões de candidatos fazendo o teste... Comecei a perceber que ia não dar para mim. Depois de esperar, esperar e esperar, fui embora. Não cheguei nem a ser chamado para fazer o teste, porque acharam que eu não tinha físico para ser jogador. Mas por que você escolheu logo o Juventus para fazer um teste – e não um time grande, como o Palmeiras, o Corinthians ou o São Paulo? Porque eu achava que, num time mais fraco, eu teria uma vaga na certa...(ri). Você, como especialista em futebol, jogador amador, técnico de um time de futebol de botão chamado Politheama, poderia escalar a seleção brasileira de todos os tempos de Chico Buarque de Holanda? Qual é o grande time? É impossível. A brincadeira de escalar times de diversas épocas é apenas uma brincadeira. Porque você não pode comparar o futebol que se joga hoje com o futebol que se jogava há dez anos. Imagine vinte anos! A comparação é falsa. Não se imagina o que seria Garrincha hoje nem se imagina o que seria Romário há vinte anos. É uma comparação absurda. Você tem no futebol ídolos que não são tão populares quanto Pelé e Garrincha, como Canhoteiro, por exemplo... Canhoteiro, Pagão. Fiz uma música chamada “O Futebol” dedicada a uma linha utópica – Mané Garrincha, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro. Temos nossos ídolos particulares, aqueles que a gente pensa que são só nossos, porque ninguém conhece. Pelé e Garrincha todo mundo da minha idade viu jogar. Quando eu morava em São Paulo, via jogadores como Canhoteiro e Pagão. Não havia televisão em rede nacional. O pessoal do Rio, então, não conhecia esses jogadores. Quando falo de Canhoteiro e Pagão, nem sempre conhecem, aqui no Rio. Outros ídolos aqui do Rio nem sempre eram conhecidos em São Paulo. Quando eu voltava para casa em São Paulo, depois de passar férias no Rio, por volta de 1955, antes da Copa,
“Nunca escolhi ser músico. Quando pude escolher, aos 14, 15 anos de idade, eu quis ser jogador de futebol. Era uma ilusão. Mas o sonho permaneceu na minha cabeça até hoje”
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Quando criança – ou adolescente – você era daquele tipo de torcedor que vai ver o jogador descendo do ônibus na porta da concentração? Eu fazia isso tudo, porque morava perto do estádio do Pacaembu. Eu me lembro de ter visto a seleção de 1958 concentrada. Fui lá peruar, ficar com cara de bobo olhando para as “figurinhas”. Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de fi10 Continente Multicultural
CARLOS MAGNO / AJB
JOSÉ ANTÔNIO / AJB REPRODUÇÃO / AE
portanto, eu falava de Garrincha – e ninguém sabia quem era.
Cartola, Caymmi e Noel: admirações e referências para Chico, que confessa, entretanto, ser a música popular uma arte de juventude. Como Caymmi, que se dedicou à pintura, Chico pensa numa alternativa. Talvez a literatura
gurinhas – muito pouco de televisão. Não tinha televisão em casa. A gente não via futebol pela TV: ia ver no estádio. Eu via os jogadores de longe, durante os jogos. Ver de perto um jogador era um acontecimento. De qual dos jogadores que você viu de perto você guardou a lembrança mais forte? De Almir, o Pernambuquinho – que ficou olhando para mim depois que entrou no ônibus. Eu estava ali de boca aberta, com cara de babaca,
olhando os jogadores. Almir, então, começou a caçoar de mim. Depois de ter sido chamado na primeira convocação, num grupo de quarenta e quatro jogadores, Almir terminou nem indo para a Copa da Suécia. Você, ainda criança, viu a famosa seleção brasileira de 1950 jogar em São Paulo contra a Suíça, nas vésperas da grande derrota contra o Uruguai, no Maracanã. A derrota de 1950 deixou algum trauma em você? Trauma não posso dizer que tenha deixado, porque eu tinha seis anos de idade. Mas me deixou assustado, porque ouvi o jogo pelo rádio. O Maracanã, “o maior estádio do mundo”, era um sonho na minha cabeça. Eu me lembro exatamente de que o locutor, chamado Pedro Luís, disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai: “Gol de Friaça! Quase que vem abaixo o Maracanã!”. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo! Pensei que o estádio estivesse caindo, com duzentas mil pessoas. Não prestei atenção ao jogo. Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro. Quem o levou ao estádio, em São Paulo, para ver o jogo do Brasil contra a Suíça pela Copa de 50? Quem levou foi minha mãe, porque meu pai não gostava muito de futebol. O futebol tem uma presença enorme na vida do brasileiro, mas aparece pouco como tema de músicas. É desproporcional a relação entre a importância do futebol e a quantidade de músicas que tratam do tema. Por que? Não sei. O futebol é próximo da vida do brasileiro, assim como os jogadores sempre foram muito próximos dos músicos. Jogador de futebol tem mania de batucar, canta na concentração. Isso não é de hoje, existia já nos anos cinqüenta. Hoje, o pessoal de pagode se encontra com o pessoal da seleção para gravar. Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol, vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol? Não é só música. Há pouca literatura tratando de futebol, há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema: é difícil repro-
duzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente, traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema. Prometo fazer mais umas duas ou três. Você jogaria pelo Fluminense hoje ? Claro que jogaria! Tenho vaga naquele time. Quando joga futebol, que posição você ocupa? Jogo em todas. Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centroavante recuado. Por que é que você se apresentava como jogador da Seleção brasileira numa viagem que você fez ao Marrocos? Alguém desconfiou da mentira? Quando você diz que é brasileiro no Exterior, o pessoal começa a falar de futebol. É uma maneira de ganhar ponto com eles. Numa conversa com motorista de táxi, por exemplo, o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro. Então, eu assumia a identidade de jogador de futebol até que um estrangeiro disse: “Ex-jogador, não é?”... Eu disse que tinha sido convocado para a Seleção de 82: tinha sido reserva de Sócrates. O pessoal acreditava? Não!(rindo) Você quebrou o perônio e rompeu os ligamentos jogando futebol. Disse, então, que não estava conseguindo compor porque não sabe fazer música parado. Você só compõe andando? Não apenas compor – eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado, não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo. Se você tem qualquer problema, dê uma caminhada – porque ajuda, inclusive a ter idéias. Se a música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não vem, a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama. Eu não conseguia ter idéias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdido pela imobilidade. Você então associa o ato de andar ao ato de compor? Associo o ato de andar ao ato de pensar, criar e compor.
Continente Multicultural 11
Você já teve o “estalo” para alguma música jogando futebol? Fazer música jogando futebol não dá, porque durante a partida você fica empenhado em suas jogadas geniais. Mas caminhando tive a idéia de várias coisas. A verdade é a seguinte: você compõe com o violão, mas quando o momento em que o processo fica encrencado, você tem de sair andando. Não pode ficar parado, com o violão, a vida inteira. Então, para resolver impasses, o melhor é caminhar. Diz a lenda que você escreveu aquele refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel – que tinha uma filha. Somente você pode tirar essa dúvida: é verdade? Eu nunca disse isso. As pessoas inventam. O engraçado é que a invenção passa a fazer parte do anedotário. Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa: acontecia na época da ditadura militar, porque, com a censura, a política interferia na criação, o que nos incomodava. Mas você não ia dedicar uma canção a um pessoa. Quando se falava “você”, não se estava referindo a um general. Era uma generalidade. Por falar em generais: o general Garrastazu Médici freqüentava estádios no tempo em que você sofria os horrores da censura. Alguma vez você cruzou com ele num estádio de futebol? Vi uma vez, porque eu estava chegando ao portão que dá nas cadeiras do Maracanã. De repente, chegou uma turma de batedores, com sirenes, com a truculência que é um pouco própria de autoridades, mas na época, era muito mais acentuada. “Afasta todo mundo!”. Médici desceu do carro. Fiquei vendo de longe aquele figura. Você já era famoso. Algum dos batedores do general reconheceu você por acaso? Batedor não reconhece ninguém: não olha para a cara de ninguém na hora de sair abrindo espaço. 12 Continente Multicultural
“Em Roma, fui motorista de Garrincha. Conversávamos sobre futebol e música. Eu imaginava que ele gostasse de uma música mais simplória, mas não. Ele gostava de João Gilberto. E falava da maneira como ele cantava, reinterpretando, uma cantiga conhecida como Aos Pés da Santa Cruz. João não é um compositor. É um inventor. Talvez seja mais do que compositor, porque inventa a partir de uma música alheia”
Em 1978, você participou da campanha do então candidato ao senado Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. Numa declaração publicada em 1998 em livro, Fernando Henrique diz que você é um crítico repetitivo. Como é que você recebeu essa crítica? Achei engraçado no começo. Mas não dei a importância que às vezes dão. Parece que fiquei ofendido. Não. É normal, é natural que um político tenha opiniões políticas até a respeito de artistas. Diz o que interessa naquele momento. É da natureza de um político. Fernando Henrique sabe o que diz e tem o direito de gostar de quem quiser. Nunca imaginei que ele gostasse de mim. Achei divertida e engraçada a ênfase com que ele gosta de uma pessoa e pode deixar de gostar. Mas é a opinião de um político. Fernando Henrique diz que não gosta mais de mim. Antes, gostava. É verdade que você tem um irmão alemão? Eu tenho um meio- irmão alemão. Não sei se ainda tenho. Mas tive. O meu pai teve um filho alemão antes de se casar. Depois, perdeu de vista, porque voltou para o Brasil, onde se casou. Não se relacionou mais com a mulher nem com o filho que teve
FERNANDO SAMPAIO / AE
Desenho cidades enormes, gigantescas, com fontes, com praças, com nomes, com ruas. Quando não desenho, penso. Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço. Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino. São as melhores de todas. Você batizou o seu time de futebol de campo de Politheama – que era o nome do seu time de futebol de botão. Que nomes você dá às suas cidades imaginárias? Não vou contar. As cidades têm nomes. Mas não posso nem pronunciar aqui. Vou passar vergonha. Por quê? Porque são nomes que têm consoantes que nem existem. São idéias bobas. na Alemanha. A última notícia que ele teve foi durante a guerra. A mulher pediu que o meu pai enviasse documentos provando que não tinha sangue judeu até a segunda ou terceira geração. O meu pai providenciou. Depois da guerra, não teve notícias. Você chegou a procurar esse irmão ? Uma vez, quando fui a Berlim, tive a impressão de estar vendo um irmão sempre em alguma parte – alguém que pudesse parecer comigo ou com meu pai. Tive a impressão de que ele poderia estar ali. Não sei explicar o que aconteceu. Não sei se a mãe não contou a ele quem era o pai. A mulher pode ter mudado de nome depois de se casar de novo. Um pai alemão pode tê-lo adotado. O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele: “Por acaso o senhor é filho de alemão?”. E ele dizia : “Não. Sou pai de alemão”. O seu pai disse, num artigo, que você, quando era estudante, gostava de desenhar cidades. Havia sempre uma fonte no meio da praça, nas cidades que você desenhava. Você, que já foi estudante de arquitetura, ainda hoje desenha ou imagina alguma cidade nas horas vagas?
Você tem a fama – falsa – de tímido e a fama – verdadeira – de arredio. Você não é de estar todo dia nos jornais ou na televisão. Qual é o maior incômodo que a fama traz? É o assédio dos fãs, a invasão de privacidade ou a curiosidade da Imprensa? Assédio de fãs, no meu caso, não existe, porque não ando cercado nem de óculos escuros. Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito. Se você andar como uma pessoa qualquer, você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem, dizem “Olá, Chico, tudo bem?”. Não passa disso. Não vou dizer que é mau. É bom, é simpático, é gostoso. Não tenho nada contra. Mas a Imprensa incomoda você de vez em quando... Quando quer, a Imprensa incomoda. É por isso que você dá tão poucas entrevistas e fala tão pouco com os repórteres? Eu falo bastante. Falo mais do que devia. Já estou falando aqui há meia-hora com você! Mas é que não tenho tanto assunto. Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas.
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Letra
A rigorosa autoavaliação de Chico Buarque, suscita uma discussão sobre os contornos e os “(...) O amor não tem pressa Ele pode esperar em silêncio num fundo de armário, na posta-restante, Milênios, milênios No ar E quem sabe então o Rio será alguma cidade submersa. Os escafandristas virão explorar sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma, desvãos Sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, vestígios de antiga civilização” (“Futuros Amantes”)
Mas o que dizer de versos como estes (escritos para o “Xote da Navegação”, música de Dominguinhos): “(...) Para quem anda na barcaça tudo, tudo passa (...) Para quem anada na barcaça Tudo, tudo passa Só o tempo não.
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A AN RI
Passam paisagens furta-cor Passa e repassa o mesmo cais Num mesmo instante eu vejo a flor que desabrocha e se desfaz
S BRAU ZEH
Somente um poeta inspiradíssimo escreveria versos assim. Mas o autor desses versos não se considera poeta. Nem inspiradíssimo. O compositor de música popular Chico Buarque de Holanda não se declarará Poeta. Mas até as pedras do calçadão do Leblon – por onde ele transita de vez em quando em passo apressado para se livrar dos chatos e queimar calorias - sabem que os versos de Chico Buarque não se enquadram na mera definição de “letras de música”. As rimas que o poeta Chico Buarque engendra há uns bons trinta e cinco anos(!) teriam vida própria se, desgarrados da música, pousassem nas páginas do livro que ele, provavelmente, jamais lançará. Para todos os efeitos, o livro já foi escrito (é só reunir o caminhão de rimas inesperadas, achados brilhantes, metáforas belíssimas que ele foi armazenando pelo caminho). Mas permanecerá inédito, em forma de páginas soltas nas faixas dos discos. O próprio Chico Buarque se encarregou de esclarecer, no “site” que mantém na Internet (chicobuarque.com.br): “Nunca publiquei nem creio que venha a publicar um livro de poemas. Não escrevo poemas”.
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Poesia
recusando-se a assumir a condição de poeta, limites das duas formas de expressão artística
O primeiro sinal de vida de Chico Buarque em 2001 veio nas letras que escreveu para as músicas de Edu Lobo em Cambaio, musical de João e Adriana Falcão (leia a matéria seguinte). Eis um trecho de “Canção Que Existe”, pérola da nova safra: “Deve haver algum lugar um confuso casarão onde os sonhos serão reais e a vida não. Por ali reinaria meu bem com seus risos, seus ais, sua tez E uma cama onde à noite sonhasse comigo talvez. Essa é a tua música é tua respiração mas eu tenho só teu lenço em minha mão Olhando meu navio o impaciente capataz grita da ribanceira que navega para trás. No convés, eu vou sombrio cabeleira de rapaz Pela água do rio Que é sem fim e é nunca mais”
Um lugar deve existir Uma espécie de bazar onde os sonhos extraviados vão parar entre escadas que fogem dos pés e relógios que rodam para trás. Se eu pudesse encontrar meu amor não voltava jamais”. Geneton Moraes Neto é jornalista, editor do programa Fantástico, da rede Globo
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Wally Salomão
Fronteira pouco nítida
O
que o Chico Buarque diz não importa, ele é poeta sim. Muitas das letras dele têm qualidade superior a grande parte do que se encontra na literatura. Esta semana eu peguei um texto de Chico intitulado Canção que existe, que me lembrou muito Dante em A Divina Comédia. E se você ler este texto, classifica-o como poesia tranqüilamente. A língua portuguesa tem tradição na fusão entre a poesia e a letra de uma música. Existem sutis diferenças entre as duas, claro, mas elas estão muito próximas. Não há uma regra definida para o que
E
m alguns casos, eu concordo que uma letra de música pode ser considerada poesia, como no Concretismo, por exemplo. Existem letras que sobrevivem independente de serem enquadradas como música. Águas de Março de Tom Jobim é para mim um grande poema. Outros artistas fazem trabalhos além da música também, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque. Eu já vi algumas entrevistas com Chico na qual ele afirma não ser poeta e acho que em certo ponto tem até razão. Eu acho interessante quando ele diz que faz
Canções que resistem
Jacy Bezerra
pode ou não ser poesia. Eu não aceito quando alguns professores de Português , estrategicamente, tentam fazer uma separação entre as duas áreas. A única coisa que eles conseguem dizer é que poesia é aquele texto que se sustenta na página. Para mim, este argumento não faz o menor sentido. Lógico que existem pontos característicos de cada um destes mistérios. Um pernambucano, João Cabral de Melo Neto, disse em Duas Águas que existem poesias para serem ditas em voz alta e em voz baixa. Ou seja, há diferenças entre música e poesia, mas a fronteira entre elas não é tão nítida. Quando eu faço um texto sabendo que este vai ser musicado, o processo de criação não é o mesmo. Por exemplo, Maria Betânia me pede uma letra, eu penso já na voz dela. Porém, ao mesmo tempo, eu posso fazer uma letra nem pensando em musicá-la e acaba acontecendo, como Mel, que só depois de pronta, foi trabalhada por Caetano Veloso. A poesia já tem um ritmo próprio. A história dos poemas prova isto, quando estes eram recitados por menestréis ou em jograis pelos povos mouros. Até hoje, percebendo o texto de Garcia Lorca, esta influência do canto popular está bem clara. Então, como a poesia tem um ritmo próprio, não há rigidez no que pode ou não ser musicado. Wally Salomão é poeta e letrista
primeiro a música e depois a letra. Em todo caso, Chico Buarque deve ser considerado principalmente e essencialmente músico, mas algumas de suas letras podem facilmente ser classificadas poesias, como Carolina e A banda. Estas canções resistem no papel independentemente de serem cantadas ou não. JULIO JACOBINA / DP
SELMY YASSUDA / AE
Poetas e compositores expõem as
Jacy Bezerra é poeta
diferenças entre o poema e a canção
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ara mim, música e poesias são primas, parentes próximas. Têm uma relação forte, mas não são a mesma coisa. Às vezes, coincide de uma boa canção ter uma letra poética, mas não é sempre. Na música, antes de tudo, a letra deve ter ritmo. Por exemplo, o poema Tabacaria de Fernando Pessoa é genial, mas não para ser musicado, porque não tem ritmo. Por isso que é complicado dar melodia a um poema. Eu já fiz isto com Maracatu, que tem letra de Ascenso Ferreira e um poema de Maiakoviski adaptado por Augusto de Campos. Estes dois trabalhos tinham ritmo e se encaixavam em uma melodia. Considero, sim, que algumas letras minhas têm características de poesia. Por exemplo, Sino de Ouro que começa com estes versos: “ Hoje eu queria fazer um poema / com penas dos versos de chumbo que faço / e faria um poema voando tão leve / Um poema de éter, poema de pássaro”. Há músicas que resistem ao tempo, como Recomeçando das cinzas, Cambalhotas, Lava mágoas ou Gato da noite, que eu provavelmente fiz como um bate-bola com Carlos Drummond de Andrade. São canções cujas letras sobrevivem independentemente da música. Isto é bastante difícil hoje em dia na música popular. Muitas
A
ARQUIVO / DP
letra de uma música é uma coisa bastante diferente de um poema. Em princípio uma letra deve ser submetida à música. Quando uma letra supera uma canção, não há uma boa canção. Quando um ouvinte escuta uma música prestando atenção primeiramente à sua letra, não é um bom ouvinte. Uma canção deve ser lembrada inicialmente por sua melodia. A poesia e a música têm relação por suas origens. Elas nasceram juntas e é por isso que a poesia tem um certo ritmo. É o que Ezra Pound chama de “melopéia do poema”. Porém, depois a música e a poesia se separaram e tomaram rumos
RICARDO BORBA / DP
Depoimentos a Joana Aquino
Alceu Valença
Forte parentesco
vezes, a melodia é belíssima, mas se você for parar para pensar, a letra é medíocre e não resiste fora da música. Eu, por ter tido esta formação literária e como comecei a escrever antes mesmo de compor, consigo na maioria das minhas letras alcançar um texto poético. Mas, às vezes, isto não acontece. Quando uma música minha não resiste ao tempo, eu sei porque. Alceu Valença é cantor e compositor
diferentes. Eu penso como Thomas Mann escreveu no romance “Doutor Fausto”: “Um poema não deve ser bom demais para servir de material para uma boa canção. A música se sai muito melhor na tarefa de dourar a mediocridade”. Ou seja, ele diz que uma canção pode ter uma letra pobre e, mesmo assim, ser uma bela canção. Por outro lado, eu admito que excepcionalmente alguns artistas conseguem se superar e fazer letras poéticas independente da música. Chico Buarque, por exemplo, em Brejo da Cruz. Essa letra pode ser lida no papel como um poema. Caetano Veloso também atinge isso quando faz letras experimentais. E isto é perigoso para o artista. Quando se faz letras como essas, a música não funciona e não pega. Sebastião Vila Nova é sociólogo e músico
Duas coisas diferentes
Sebastião Vila Nova
Quando Gagarin fez poesia Tudo é matéria para poesia, mas um poema tem estrutura e elementos próprios que o distinguem como tal
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udo é matéria para a poesia. valeu a pena”, um clichê que não expressa com sufiTanto o norte-americano Wil- ciência o encantamento que deve ter sentido. liam Carlos Williams, tendo coNo entanto, o primeiro homem a ir para o mo tema um carrinho de mão e espaço, o russo Yuri Gagarin, numa frase sintética, galinhas brancas, quanto o per- fez poesia. Ao falar: “A Terra é azul!”, além de usar nambucano João Cabral de uma frase objetiva e bela, deixou-a prenhe de sigMelo Neto, a partir de um nificações. Que a Terra (ao contrário de Marte, comprimido de aspirina – para citar apenas dois que é vermelho, ou de Júpiter, que é prateado) vista exemplos -, fizeram poemas exemplares. Mas, para do espaço tem a cor azul; que, vista de onde Deus efeito de simplificação, na discussão a que se a vê, isto é, apagados os detalhes contrastantes e propõe este artigo, vamos tomar inicialmente um desagradáveis, é um círculo azul, sendo círculo um motivo tradicional – no caso, uma bela paisagem – símbolo de completude e unidade, e o azul emblepara mostrar que, se qualquer coisa pode virar ma de espiritualidade e paz; finalmente, pela poema, nem todo modo de dizer as coisas é poesia.. própria simplicidade infantil da frase, expressou o Quando Petrarca subiu ao monte Ventoux, na estado de “sem palavras” em que ficou ao contemProvença, “para ver o que uma altitude tão grande plar espetáculo tão magnificente. tinha a oferecer”, ao descer comentou que quase Sua frase poderia ser vista como um microperdeu sua alma “admirando coisas terrenas”. Sen- poema, de ressonâncias épicas e até metafísicas timento de um poeta, expresso por um poeta. Já o (porque o homem, quando ao lado das estrelas, astronauta Neil Armstrong, ao pisar na Lua, recitou está entre irmãs; não foi demonstrado pelos cientisuma frase pomposa, provavelmente decorada: “Um tas que somos feitos da mesma matéria que elas?). pequeno passo para o homem, um grande salto para Porém, só funciona em toda sua plenitude se coa humanidade”. E o turista americano, que pagou nhecermos as específicas circunstâncias em que foi 20 milhões de dólares para passear no pronunciada. Fora do contexto, é sideral, falou que foi “maravilhoso, apenas um verso lírico. Marco Polo 18 Continente Multicultural
Radicalizemos, pois, em busca do poema como objeto de arte autônomo, que funcione sempre e possa ser apreciado em todo seu potencial, seja de cabeça pra baixo, debaixo d’água, em qualquer circunstância. Como um quadro de Mondrian. O verdadeiro poema é uma máquina de emocionar. Ou, na feliz expressão de Ferreira Gullar, algo capaz de provocar “um relâmpago na cara”. Uma estrutura feita de palavras, incluindo significados (ou ausência deles), sons, espaços, sinais, ritmos, silêncios, melodias, harmonias, imagens, ruídos, ecos, dissonâncias, enfim, uma série de elementos medidos e pesados milimetricamente de modo a não poderem faltar ou sobrar sem que tudo desmorone. Isso, é um poema. Vamos, entretanto, isolar dois elementos que nos interessam para esta discussão: o ritmo e a melodia. Cada poema tem um ritmo (ou ritmos) e uma melodia (ou melodias). Cada leitor os interpreta de uma maneira. E cada leitor, a cada nova leitura, descobre variantes nos mesmos. Essa é uma das qualidades que enriquece a fruição de um poema – ao mesmo tempo que enriquece o leitor. Como a música é uma das mais (se não a mais) poderosa das artes no que diz respeito ao envolvimento emocional, ela se torna um verdadeiro buraco negro principalmente das sutilezas ritmicas e melódicas de um poema, quando este é musicado. Por exemplo: Desde que Paulo Diniz musicou o poema José, de Drummond, sempre que o leio me vem à mente a sonoridade rascante da voz do cantor: “E agora Josééééé!” Não estou aqui fazendo juízo de valor em relação à música, mas sim ao fato de que ela impregnou o poema. Quer dizer, nessa minha experiência, já não é o poema que eu conhecia. Tornou-se a letra de uma música de Paulo Diniz. O que ele me dizia ficou absorvido, interpretado – e reduzido – pela canção. Vejamos um caso oposto. Manuel Bandeira escreveu uma letra de música que diz: “Vai, azulão,/ azulão companheiro,/ vai,/ vai ver minha ingrata./ Diz que sem ela o sertão/ não é mais sertão./ Ai, voa azulão, azulão,/ companheiro, vai”. Simplesinha, não? Mas a música que Jaime Ovalle colocou nela é tão plangente, tão carregada do senti-
mento da “sodade” sertaneja, que a letra ganha uma ressonância emocional belíssima. Ou seja, essa característica, que já existe em forma singela, é magnificamente realçada. A letra se complementa e se fortalece com a melodia. Esse equilíbrio entre letra e música é o ideal da canção popular. Nesse ponto, ninguém iguala Noel Rosa. Suas canções parecem ter sido feitas – letra e música – sempre ao mesmo tempo, de tal forma fluem entrelaçadas que uma não sobrevive sem a outra: ao assobiarmos uma canção de Noel, imediatamente lembramos a letra; ao dizermos a letra de uma canção sua, logo lembramos a música. Assim, vemos que, se um poema se basta por si só e pode até ser prejudicado quando associado a uma melodia, a letra de música, pelo contrário, só sobrevive quando acoplada à melodia. O que não quer dizer que não haja instantes poéticos nas letras de alguns de nossos compositores, particularmente Chico Buarque. Quando, falando de uma separação, enuncia que: “teus seios inda estão nas minhas mãos,/ diz com que cara agora eu vou sair?”, ele está fazendo lirismo puro e derramado. Mas isso não significa que a letra, como um todo, seja um poema. (Disso está mais perto a letra da música Construção, “construída” em estrutura poemática, que, por sinal, mimetiza a estrutura do edifício em construção). Só quando a letra subsiste por si mesma, sem a música, teremos um poema. A tal máquina autosuficiente e complexa de que falo no início deste artigo. E, neste caso, por que musicá-la? É possível encontrar momentos de poesia – e até poemas – na MPB, repito. O próprio Manuel Bandeira, um dos homens que mais entendeu do assunto neste país, dizia que o único verso que ele invejava era: “Tu pisavas nos astros distraída”, do letrista de música popular Orestes Barbosa. Também acho completamente válido um espetáculo que, a partir de poemas, utilize teatro, dança, vídeo, sons (música, batuques, gritos, ruídos eletrônicos e/ou concretos etc) a fim de valorizar e amplificar o texto. Mas o poema lido em silêncio, na página branca, tem encantos próprios e inigualáveis.
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TEATRO
Convite sonho aoao sonho ao sonho coletivo
Texto, múisica e cenografia criam clima onírico, que perpassa toda a encenação de Cambaio
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DIVULGAÇÃO
Os bastidores e a criação de Cambaio, o musical feito a 10 mãos – Adriana e João Falcão, Chico Buarque, Edu Lobo e Lenine
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ceitos. Talvez seja o Estado com maior diversidade do país, com essa mistura de raças de holandês, português, africano e índio”. Para o diretor, o resultado é uma cultura cosmopolita que encanta os próprios brasileiros. “Hoje é chique ser pernambucano, ou estar no grupo dos pernambucanos”, emenda Adriana. João arrisca uma explicação para essa valorização de Pernambuco, observada sobretudo no eixo Rio-São Paulo: “A cultura pernambucana tem dado seguidos exemplos de liberdade de experimentação, a despeito de qualquer tendência mercadológica”. A disponibilidade dos atores para dedicação integral é justificada por João Falcão como necessária à realização de um projeto de longo prazo, que extrapola os limites do palco. Paralelamente à peça, estão sendo produzidos um CD ao vivo, com as canções de Chico e Edu e os arranjos de Lenine, DIVULGAÇÃO
arece a vida torta, o sonho. Um mergulho em profundezas ora plácidas, ora tumultuadas do espírito. Esboço do inferno e do paraíso. Território livre onde as paixões afloram ou ressurgem, escondidas sob a aparência da vida desperta. Que talvez seja, esta sim, a vida torta, insegura, cambaleante – a vida cambaia. Foi de um episódio da série televisiva A Comédia da Vida Privada que João e Adriana Falcão retiraram o mote para o musical Cambaio, que parte este mês para sua turnê nacional, começando pelo Recife, depois da temporada de estréia de dois meses e meio em São Paulo. Na história da TV, Marco Nanini contracenava com ele mesmo sonhando que era dois. Quando Chico Buarque ligou para Adriana convidando ela e o marido para escrever um musical, o mecanismo do sonho dentro do sonho, numa espiral de fantasia e realidade, foi logo disparado. Chico e Edu Lobo, parceiros no projeto, adoraram a idéia. Da inspiração à transpiração, não demorou muito, e o resultado desse trabalho pode ser visto em Cambaio, que reúne o que foi chamado por alguns de verdadeiro time dos sonhos: Chico Buarque e Edu Lobo escreveram as canções para o texto de Adriana e João Falcão, este último o diretor do espetáculo, juntamente com Lenine, que assina a direção musical. E haja transpiração. Da produção à encenação, Cambaio é um repetido convite ao sonho coletivo. Para dar a partida, o diretor de A Dona da História e Uma Noite na Lua selecionou 18 jovens entre mais de 4.000 candidatos, sonhadores de todo o País. Requisitos básicos: musicalidade, vigor físico e anonimato, que permitissem aos integrantes da nova trupe se dedicar inteiramente à preparação física, vocal e rítmica e aos ensaios. Na estrutura metálica de 14 metros de altura ou no chão, os atores em cena não apenas interpretam, mas cantam, tocam instrumentos e usam os corpos como instrumentos, em um movimento incessante que acompanha, como pano de fundo, a linguagem musical. João Falcão admite que não se trata de um musical convencional, o que para ele exprime um pouco a alma pernambucana de Cambaio. “O pernambucano recebe influências internacionais de maneira aberta, sem precon- Fábio
interpretadas pelo elenco, um documentário do making of feito a partir de 80 horas de vídeo, gravadas desde a seleção do elenco até os ensaios, e um livro, de autoria do pernambucano André Laurentino. Tudo ainda está sendo viabilizado, já que o projeto não conta com um grande patrocinador. Entre elenco e técnicos, trinta e cinco pessoas levarão Cambaio, depois do Recife, a Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Brasília. Ainda não há definição de estréia no Rio, mas já há um convite para ir aos Estados Unidos, Lucas em 2003.
O quinteto de Cambaio: João Falcão, Chico Buarque, Adriana Falcão, Lenine e Edu Lobo
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Uma vi
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encaixe entre o texto e as músicas de Chico e Edu são, para Adriana, o grande trunfo do musical. “O que o texto não diz, a música diz, o que a música não diz, o texto diz”, garante. Para tanto, foram muitas idas e vindas: “Quando chegava uma canção que a gente mesmo tinha encomendado, mudávamos tudo em função da canção, por causa de uma levada diferente, especial”. Para Cambaio, Chico e Edu fizeram oito canções inéditas, a maioria temas românticos que embalam o ambiente onírico do espetáculo. E a proposta é que as músicas de fato conduzam a narrativa, a partir de provocações do texto. Quem está acostumado ao excesso de palavras que marca a obra de João Falcão pode até estranhar. Esse limite voluntário é para deixar que as canções contem (ou cantem) a história de um popstar e de um cambista que se apaixonam pela mesma mulher. “As músicas não são para ilustrar, abrir um parêntesis. Foram feitas para envolver a trama”, explica João Falcão. O que aproxima mais Cambaio de uma performance musical com uma história por trás, do que de um musical clássico. Segundo o diretor, enxugar os textos era imprescindível para não atrapalhar a viagem bem brasileira que surge do encontro das composições de Chico e Edu com a sonoridade de Lenine. “Tentei transportar para o palco a estrutura fragmentada de um sonho”, define João Falcão, que vê Cambaio como um marco de ousadia em sua carreira. O papel do diretor foi exatamente colocar 22 Continente Multicultural
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asileira DIVULGAÇÃO
ordem na aparente desordem onírica que conduz o romance-tema. O triângulo amoroso seria “normal” se não fosse um detalhe: o popstar sonha que é o cambista e o cambista sonha que é o popstar. Suspensa no sonho dos dois, encontra-se a Bela. O Rato é um cambista que vende ingressos para o show do Cara, cantor de sucesso que atrai multidões de fãs. O Rato sonhando que é o Cara, o Cara sonhando que é o Rato, ambos com a Bela na cabeça. Pura imaginação? Ou seria a Bela a mais sonhadora dos três, em sua busca do amor perfeito? Eis outro sonho coletivo, simbolizado nos suspiros de uma musa compartilhada. A inspiração no episódio de A Comédia da Vida Privada se restringe à idéia básica, sem quaisquer apropriações ou puras imitações. “A contradição social está mais clara em Cambaio, e também o fato de um sonhar com a vida do outro”, avalia Adriana, lembrando ainda que, na trama da Comédia, Nanini era um só, que sonhava ser dois. Mas a autora reconhece: pensou em aproveitar algo do que já tinha, tanto do enredo quando do texto. “Não se aproveitou uma frase. Vimos que o texto da TV não funcionaria no teatro, nem as situações”. Enquanto João segue dedicado à excursão de Cambaio pelo Brasil, uma vez que é tão detalhista que não pára de observar e produzir pequenas modificações em cada encenação, Adriana, além dos trabalhos para a Rede Globo, está preparando o roteiro para um documentário sobre a vida e a obra de Vinícius de Moraes, por encomenda da própria família do poeta, cantor e compositor. O filme deve ser lançado no ano que vem.
A história do artista e do cambista que sonham um sendo o outro é interpretada por 18 jovens atores
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ANA OTTONI / FOLHA IMAGEM
Adriana n達o pretende escrever mais para o teatro, fixando-se mesmo na literatura
Adriana Falc達o
O dom da 24 Continente Multicultural
Autora de A Máquina e Cambaio assume a vocação literária, confessa não ter o dom do teatro e queixa-se da crítica feita por “gente caduca”
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ernambucanizada desde os 11 anos de idade, quando se mudou do Rio para o Recife, Adriana Falcão quer ser cada vez mais escritora e menos roteirista. Quer pensar mais na palavra bruta como matéria-prima de seu trabalho. “Na TV, tenho que pensar num bom diálogo, nos personagens, nos atores. Também é divertido, mas é diferente”, compara. Ela acredita que o gosto pelas duas linguagens tenha origem nos oito anos que trabalhou em publicidade: Adriana adorava fazer anúncios, por causa da construção de texto, tanto quanto comerciais para a TV. “Isso ditou as duas vertentes do meu pensamento”, teoriza a arquiteta que “nunca fez nem uma casa de cachorro”. De volta ao Rio de Janeiro há seis anos, após 23 no Recife, Adriana não tentou mais publicidade, e juntamente com João entrou para o seleto grupo de criação de Guel Arraes, na Globo. Roteirista consagrada, ela está se sentindo mais autora depois do êxito do romance A Máquina, lançado em 1999. Também cronista e contista, prefere os textos curtos, uma herança da publicidade. “Sou muita concisa, não me vejo escrevendo um romance de 300 páginas”, confessa. Mas parece que o tamanho de suas obras não importa para as editoras. A Objetiva está pedindo um novo livro faz tempo, de olho numa reprise do sucesso de A Máquina. A Salamandra, por sua vez, já está encomendando um segundo livro infantil, confiando no dom da escritora: sua estréia na literatura infantil será em agosto, com o lançamento de Mania de Explicação, por essa editora. Fã de Paulo Mendes Campos, Machado de Assis e Guimarães Rosa, Adriana Falcão diz tentar se manter atualizada em relação à produção literária
brasileira contemporânea, citando Rubem Fonseca, Sérgio Rodrigues e Patrícia Melo como autores que leu recentemente. De Pernambuco, ama os poetas, principalmente João Cabral, Carlos Penna Filho e Mauro Mota. Além de um “absolutamente moderno”, o publicitário Jairo Lima. A escritora de formação pernambucana lembra com carinho de um professor de Literatura que, para ela, seria um dos maiores autores brasileiros, se tivesse investido na carreira: Tomás Maciel. E reconhece, cheia de culpa, que leu muito pouco da nossa prosa. A seguir, a autora fala de como foi a criação de Cambaio, sua reação à crítica “caduca”, o contato com um “mito” como Chico Buarque e confessa que não fará mais teatro:
Os dias da criação Quando a gente estava montando A Máquina no Recife no ano passado, em janeiro, o Chico Buarque ligou pra mim. Ele tinha lido o livro A Máquina, tinha assistido A Dona da História, tinha recebido um convite para fazer um musical, e tinha pensado em mim pra escrever e no João pra dirigir, por causa das coisas que ele via da gente por aí. Aí, assim que a gente voltou pro Rio, começou a se encontrar com eles, Chico e Edu. No começo era uma coisa pros 500 anos do Brasil, que era em abril. Na mesma noite que ele me ligou, perguntou se eu tinha alguma coisa guardada, que era uma coisa pra logo, e tal. Daí, fui pensar com o João e a gente tinha essa idéia dos sonhos. A gente fez uma pequena sinopse, mandou pra ele, ele mostrou pro Edu, eles adoraram, e quando a gente chegou no Rio, em março, mais ou menos, começou a se reunir. Foi um processo muito maluco, porque a gente ia inventando a história, ia levando
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A crítica caduca As críticas não tiveram impacto sobre mim, porque eu estou muito resguardada. Estou no meio de uma equipe – o Chico, Edu, Lenine e o João Falcão, marido e parceiro de Adriana, dirige o musical, mexendo em cada encenação
João – muito protegida. Porque eles adoram o espetáculo. Adoram o texto que tem ali. Eu me sinto tão defendida por tudo, por aqueles meninos que adoram e que defendem o espetáculo. Sinceramente não me mobilizou em nada. Com A Máquina eu morria de medo que falassem mal, que fosse mal recebida pela crítica. E cada trabalho que eu faço sozinha, cada crônica que eu escrevo (estava escrevendo crônicas para a Veja Rio), eu ficava com medo quando saía, com medo de ser ruim, com medo da crítica. E dessa vez, não, porque eu me sinto tão segura, apoiada por eles, evidente. E depois, eu tenho muita segurança de que o espetáculo é muito bom. E muito moderno. As pessoas reagem porque estão meio caducas mesmo. Estou escrevendo um roteiro sobre a vida de Vinícius de Moraes, um documentário. E por causa disso estou estudando muito o Modernismo. Porque o Vinícius nasceu em 1913 e começou a produção de poemas em 1930, já com uma influência muito grande. E comprei um livro, 22 por 22, que são 22 artigos falando da Semana de Arte Moderna. Vinte e dois artigos de jornalistas, uns falando bem, uns falando mal. Os que falam mal, é com uma arrogância, e com uma ignorância, como se fossem donos da verdade. E muito preconceito. Porque o que eu vejo aqui é esse preconceito mesmo, o tempo todo, nas revistas, nos jornais. E estou tão enjoada disso! E com uma arrogância! Porque se fala tanto que os artistas são estrelas. JAQUELINE MAIA / DP
pra eles umas provocações de música: uma música pra se cantar antes do beijo, era o tema de uma. Uma canção inédita, que o Cara, que é cantor, compõe na hora pra uma fã. Eles iam fazendo as canções. Foi tudo meio junto, assim. E aí foi o ano passado quase que todo nisso. Pensava numa história que acabava assim, na próxima reunião já não era mais assim, mudava, e as músicas mudavam. Foi um processo muito mutante. Acho que tem no meu computador material escrito que dava pra fazer outra peça, que não foi usado nessa. De tanto que a gente experimentou, experimentou, experimentou, até que ficou uma coisa superminimalista. A gente tinha muito cuidado, porque era um texto que ia entrar junto com as letras do Chico. Então a gente não queria cair numa coisa naturalista, a gente sempre que via um lado naturalista, a gente tentava fugir dele. Por isso tantas tentativas. No final das contas ficou um resultado que eu gosto muito, o Chico adora. Porque é muito minimalista e as canções contam muito a história. Diferente daquele tipo de musical em que está acontecendo uma coisa, entra uma música pra ilustrar, depois volta pra história. Ficou muito como a gente pensava.
“Foi um processo muito maluco, porque a gente ia inventando a história. Pensava numa história que acabava assim, na próxima reunião já não era mais assim, mudava, e as músicas mudavam. Foi um processo muito mutante” Mas o jornalismo está virando uma estrelice! Eles falam com uma arrogância... Não sei quando começou isso de os jornalistas se sentirem contra os artistas. Mas uma coisa que eu sinto, nas primeiras críticas que saíam, a gente escondia das crianças. Parecia que papai e mamãe tinham feito uma coisa errada. Porque era de uma agressividade como aquela contra os modernistas, que eram chamados “os palhaços”. No Estadão, a que falava mal falava do meu trabalho e do de João, dizia assim: “São talentosos, sim, já provaram que sim, mas dessa vez, mostram um texto sem esforço e sem afeto”. Como é que eles podem saber do meu esforço e do meu afeto? Como é que uma pessoa pode afirmar isso numa frase? Eu fiz um ano de esforço.
Encontro com Chico Eu estava lendo na revista Desfile uma matéria sobre andar na praia. Aí diz assim: se você andar na Lagoa, você pode encontrar com Marina Lima, se andar em Ipanema pode encontrar com Gilberto Braga e, “com muita sorte, até com Chico Buarque”. Chico Buarque é um algo acima de tudo. Eu, especialmente, nunca fui uma tiete, mas sou profunda conhecedora, posso responder em qualquer programa de TV sobre a vida e a obra dele. No começo tem aquela coisa do gênio, você fica com medo de falar e ele achar que é uma burrice, descobrir que eu sou burra. Mas com o tempo, ele tem uma humildade tão grande, é tão verdade que ele é muito humilde, que você vai se sentindo à vontade muito rápido. E quando você vê, ele está ali dizendo as mesmas besteiras que você diz no Recife num boteco. E ele gosta também. Ele tem muito humor. O Edu também tem muito humor, um humor muito pernambucano, a família dele é pernambucana, e ele diz que até os 20 anos passou todas as férias da vida dele no Recife. Ele
sabe coisas, expressões, tem um humor muito pernambucano. Aí vai desfazendo o mito... claro que quando o mito fala que gostou do texto, aquilo tem um peso. Aí eu fico tranqüila, porque vejo no olho dele que ele gostou mesmo.
Teatro x Literatura Sobre a experiência de escrever para teatro, especialmente um musical: a edição era muito do João. Como ele era o encenador, o diretor do espetáculo, e como ele tem muito mais experiência em teatro do que eu, essa foi a minha única experiência em teatro, e a última. Foi a primeira e última. Porque eu não penso em teatro, não sou uma pensadora de teatro. Minha cabeça não pensa em teatro. Eu gosto muito de escrever literatura, não que eu ache mais fácil ou mais difícil, é o que eu acho que tem mais a ver comigo. Estou aprendendo a escrever para TV e para cinema, estou aprendendo, com muito esforço. Mas teatro é uma coisa que você tem ou não, e eu acho que eu não tenho esse dom. Eu escrevia os textos para o espetáculo como quem escreve sob encomenda para alguma coisa. Escrevia com o maior carinho, o maior amor pelo que eu estava fazendo, mas confiando muito na cabeça do João. Como em A Máquina, que eu escrevi um livro e ele transformou em teatro. Era mais ou menos isso o que eu fazia, escrevia coisas que me eram encomendadas, e que eu sabia que o João ia transformar em teatro. A edição é dele, eu me sinto muito fazendo parte de uma equipe, mesmo. Quando eu comecei a escrever A Máquina, eu comecei tentando escrever uma peça, não consegui e terminei escrevendo um livro. Quando o Chico ligou e disse, olha, um musical, eu perguntei ao João se ele queria, porque eu não sei escrever um espetáculo. Nenhum. Fábio Lucas é jornalista
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SÉCULO 21
Na delegacia em Londres e Recife Anos depois de testemunhar espancamentos e tiroteios numa delegacia do Recife, impressionou-me a formalidade da polícia londrina
O
discurso vigente de segurança substitui o fator humano pela imagem da perfeição tecnológica. Na delegacia de Enfield, região de classe média do Norte de Londres, havia apenas um policial para atender a um número de pessoas que se amontoava mais e mais em uma pequena sala de espera. Educadamente fui comunicado por ele que teria de aguardar até que o computador voltasse a funcionar. Alguns ingleses mostraram-se surpresos com a aparente entrada da sua polícia na era da computação. Eram jovens, homens e até donas de casa com suas crianças. Uns estavam ali para prestar depoimentos, a maioria queria prestar queixas sobre pequenos roubos e ataques que podem ocorrer a qualquer momento e em qualquer lugar da cidade. Uma jovem senhorita estava recebendo correspondência de teor racista e desejava prestar queixa, mas perdeu a paciência quando o policial lhe sugeriu que prestasse queixa pelo telefone disponível na sala de espera: ali, na frente de toda essa gente e sem privacidade. Uma moça de seus 25 anos que chegou mais tarde, para – ao que parecia – ajudar a polícia
prestando um depoimento, perdeu o controle após trinta minutos de espera e ameaçou partir alegando passar mal. Em poucos segundos apareceu uma policial com um sorriso fresco e despreocupado, e lhe perguntou se ela queria adiar o depoimento. Frente à negativa da jovem, a policial a fez entrar por uma porta de segurança. Uma velha senhora que havia chegado depois de mim murmurou: “Parece que vamos ficar aqui por todo o dia”. Felizmente, uns quinze minutos depois, a pessoa que estava sendo atendida quando ali cheguei saiu. Imaginei que o computador havia retornado ao normal e rapidamente me dirigi para a porta de segurança, quando o policial me chamou no balcão e mais uma vez perguntou a razão de minha ida ali. Ora, como manda a lei inglesa, todo residente estrangeiro deve comunicar a mudança de endereço. Tudo que queria era apenas a anotação
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 28 Continente Multicultural
do meu novo endereço na carteira de migração, um pedaço de papel, parecido com um boletim escolar, que me custara mais de cem reais, dias antes, na sede do Home Office, no centro de Londres. Apanhando um extenso formulário, o policial começou vagarosamente a preenchê-lo com os meus velhos e novos dados. Isto, perguntando antes às pessoas na sala de espera se tudo estava em ordem. Um gesto aparentemente educado, mas que deixou as pessoas que ali esperavam ainda mais irritadas. Para minha surpresa, todo o trabalho foi feito na caneta e no formulário. O computador, abandonado em um canto da sala, parecia mais um monumento aos dias que virão, quando talvez nem mesmo um policial será preciso para atender ao cidadão. Bastarão telefones e terminais, como em um banco. A vítima aperta alguns botões e após a operação recebe um papel confirmando sua queixa, uma mensagem de consolo e outra de orientação sobre como evitar situações perigosas; e, quem sabe, no verso, palavras otimistas de algum político. No final, o policial de traços marcadamente indianos, como se tivesse uma mensagem gravada na garganta, agradeceu mais uma vez pela minha paciência por ter esperado e declarou: “Você agora é um dos nossos”. Desejei-lhe um bom dia e abri a porta para a entrada da jovem que fazia mais de uma hora aguardava para prestar queixa contra a correspondência de teor racista que estava recebendo.
O tempo havia mudado e o sol ameaçava estragar o céu nublado. Não podia fazer mais muita coisa. Havia perdido parte do dia e resolvi caminhar de volta para casa. No caminho tentei me lembrar do dia em que fui tirar carteira de identidade em uma delegacia no Recife. Faz mais de vinte anos. Enquanto o agente de polícia preenchia a ficha com meus dados pessoais, ouviam-se claramente gritos vindos de dentro das celas do prédio. Um preso estava sendo espancado. Para alguém da classe média brasileira, aquilo provocava medo. O agente, porém, portava-se naturalmente. De repente, ouviu-se um breve tiroteio. Dois ou três policiais fortemente armados passaram por mim carregando o que restava de um bandido. Os gritos tornaram-se insuportáveis. Formou-se logo um grupo de curiosos que, com um olhar que misturava medo e curiosidade, observavam do outro lado da rua. Felizmente, o agente terminara de preencher minha ficha. Eu já podia ir. Dias depois ele bateu na minha porta para me entregar a carteira de identidade. Um serviço grátis? Não, ele botou uma cara de quem queria algo mais. Eu agradeci, fechei a porta e nunca mais o vi. Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com
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ANTOLOGIA
Para Érika Moribe De tudo que és, de toda alegria que emprestas ao mundo, o que eu amo em ti é a luz do paraíso que inauguras em mim.
Weydso
Canção Silêncio que veste a noite mais calma, teu nome é segredo que às vezes diz não. Íntimo rosto desta canção. No corpo que domas, no espaço que gastas, teu gesto é a fome de onírico pão. Íntimo rosto desta canção. Enquanto me envolve teu elmo de prata, revela-me a face de incerta prisão. Íntimo rosto desta canção. Teu verbo é a sede dormindo nas águas, teu tempo a garganta que acorda o clarão. Íntimo rosto desta canção. 30 Continente Multicultural
O outro dia
a Ivan Junqueira
O que comemoramos? Ainda o tempo é a sua antiga fome, único alimento de nossa invertida construção. No fim, é a mesma estação, o mesmo indício: duna que a luz movimenta com os remos dos dias. Sob o olho íntimo de tudo, brindamos a boda do assinalado registro, e cada hora é uma mesma cruz à beira da mesma estrada. Acima dos telhados acendem-se corpos, silêncios, estrondos, enquanto a noite balança a sua peneira de luzes. Da boca de cada janela ouve-se o hálito de alguma música. O mundo se inventa na melodia que escuta – busca o incêndio o eterno fogo – quer o corpo a sua dança – e ainda o tempo respira a si mesmo, busca seu fim, seu recomeço. O que comemoramos, se é esse fim o inadiável endereço? É o fim, então, a festa? O desenlace das mãos, tudo o que nos reserva? A noite enrijece seus membros, esfria seus muros, bebe os escuros do próprio luto. É o tempo à nossa frente, a luz, o dia, e talvez, por isso, comemoramos.
n Barros Leal Calendário
a Alexei Bueno
Avançamos. Já avistamos a distância dissolvida pelas horas. O calendário nos aponta certezas, os exatos percursos, seus hiatos presididos por santos, por domingos. Nada mais incerto do que a realização dos números, a presença diante dos relógios, o testemunho dos passos, dos ritmos que por trás das janelas embalam a vida. Nada mais incerto, e no entanto avançamos. À frente, um precipício de buscas em que somos os exploradores, os messias de uma escuridão que é o mais claro futuro, os ciganos em cujas cartas não enxergamos mais que a obviedade de sermos. E ainda avançamos, corremos o desfiladeiro, conquistamos minutos, meses, calendários, e nenhuma música – em sua finitude – consegue nos redimir em seus infinitos silêncios. É o que somos. Um silêncio cortado por desejos, por gestos, pela eterna recordação. E o abismo se aprofunda, cresce, boceja e se agiganta. Nele esquecemos que a subida é oculta, ilusória. Mais um dia se acaba, e avançamos.
Este Espelho A mulher que eu amo traz o gesto da vida aos silêncios do dia. Suas mãos em minhas mãos são dois pássaros de luz iluminando um mesmo corpo. Mais cedo que o sol é a alegria de seu riso o que constrói minha alegria. Em meu rosto reflete-se a paz que a paz de seu rosto desenha, e tudo flui, ante a vida e a vontade de sermos um, nada mais. E sendo minha esta mulher, e eu seu homem, somos dois o mesmo espelho: metade amor, metade inteiro. Continente Multicultural 31
A Terra Verde
O Tear da Manhã
Quero que saibas, amor, que por ti o meu dia se constrói, e assim este poema, instrumento que risca as retinas do branco, e derrama em cada coisa o teu relógio de sementes.
Os três únicos fios dessa corda que teço, são sentenças da boca que me morde por dentro;
Na colheita da noite, é tua aurora o anúncio que será doce o dia, e mesmo a chuva, quando a tarde se descobre, é a dança vertical de tua música.
essas linhas que cruzo, que manejo, que intento, são da cesta os arreios a frear o seu peso;
Antes do teu corpo, a terra em mim era uma espera infértil, e assim o estio uma inútil floração.
não conheço o traçado de seu curso, o desenho, sei que os fios são gritos da mudez, do incêndio;
Teu nome criou em meus olhos o sentido da cor que na alegria cresce. Agora é vida a terra verde. A tua luz beija o trigo Que sonha o pão.
essa corda que arrasta por meu corpo o seu beijo, risca o chão, cada tábua, duma escada que desço,
Sempre avistamos a porta. Guardamos os ossos das secretas vontades, mas a sombra cresce, a cada passo. Impossível o esquecimento, a conversão das perdas então multiplicadas, cada uma voltada para o nada. Um dia estaremos juntos: um ou outro sob a chama da morte, um ou outro sob as cinzas da vida, enlaçados. Seguiremos. Buscamos o centro, a absoluta extremidade, onde há apenas um espelho e diante dele alguém que pergunta: “E Deus?” Os olhos ecoarão no vazio e o espelho nos deixará a sós – afirmação do eterno – a responder: “É o vivido...” E estaremos ali, um diante do outro – um morto e um vivo – sem sabermos, afinal, por quem...
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que componho e desfaço, que equilibro e é penso, e ao ser chão é patíbulo dessa boca que invento.
o Prêmio Othon Bezerra de Melo, da Academia Pernambucana de Letras. Em 1990, com o livro O Ópio e o Sal, ganhou pela 2a. vez o Concurso Literário Estado de Pernambuco. Em 1994 publicou, através de Massao Ohno Editor, em São Paulo, Os Círculos Imprecisos, uma coletânea que incluía dois novos livros (Os Círculos Imprecisos e O Silêncio e o Labirinto) e uma
ÉRIKA MORIBE
O Encontro
Weydson Barros Leal nasceu no Recife, Pernambuco, em 08/12/1963. Teve suas primeiras publicações de poemas em jornais do Recife (Diário da Manhã, Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio) a partir de 1983. Em 1985, publicou o livro de poemas Água e Pedra, como separata da Revista Estudos Universitários, da UFPE. Em 1988, recebeu o Prêmio Mauro Mota de Poesia, no Concurso Literário Estado de Pernambuco, com o livro O Aedo, que no ano seguinte receberia
são três tripas de corda de um sisal que não meço, mas que aos poucos me engole como o dia o seu estro;
Na Praça Miró, Barcelona
Verbo
De cor, só sei o teu nome. Esqueço a cidade, as horas, os compromissos da tarde, para lembrar o teu nome, como a história de uma alegria.
Agora que és uma costela faz o teu corpo O tempo conduzirá a seu leito a língua de tua fogueira Que tu a ames como se ama o que morre
De cor, só sei este nome. Assim recupero a bandeira que reclama em mim tua falta, e remonto o cordão que faz brilhar cada conta.
Eis o amor
Em mim, só guardo o teu nome. Outras letras aprenderei na infância desta palavra.
Tradução
16 de setembro
Quero dizer “eu te amo”, e o teu nome nasce em mim. Quero tocar tua mão, e o espaço é o espelho que torna à luz.
É teu este poema. É feito de tempo e palavras, como as coisas de uma casa.
Antes de ti, o amor era uma idéia, uma cidade, algum pressentimento. Nada valia esse risco que as coisas e os dias parecem viver, e a vida era então um sistema falhado, um contar e recontar histórias que somavam, no fim, uma aventura vazia de sentido ou sentimento. Amar-te fez de mim um começo, um resgate, uma conversão. Pronuncio o teu nome e dissipam-se as sombras, dissolvem-se os medos, os recuos, os segredos, quando o corpo abre o seu livro que em mim revela esta tradução. antologia de poemas dos dois livros anteriores. Em maio de 1997 publicou, pela Editora Bagaço, o livro de poemas A Música da Luz, lançado na 1a. Feira Internacional do Livro de Pernambuco. Participou, em junho de 1997 – como poeta convidado, representando o Brasil – do VII Festival Internacional de Poesia em Medellin, na Colômbia, ao lado de 60 poetas de 38 países. Ainda em 1997, escreveu a biografia do artista plástico Francisco Brennand, publicada através do Minis-
Como a memória desta casa, este poema é o nome de cada coisa lembrada. Como coisa que se guarda, o teu poema é o tempo que construiu sua casa.
tério da Cultura do Brasil, dentro do livro Brennand, ao lado do estudo crítico de Olívio Tavares de Araújo e fotos de Rômulo Fialdini, lançado em novembro deste ano na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Tem poemas e ensaios sobre literatura e artes plásticas publicados em jornais, revistas e catálogos de exposições no Brasil. Em 1999 lançou pela editora Topbooks o livro de poemas Os Ritmos do Fogo, com apresentação de Ivan Junqueira. Continente Multicultural 33
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LITERATURA
Silvio Romero Sob o signo do embate e da polêmica
A
obra multifacetada de Sílvio Romero (Lagarto, SE, 1851 – Rio de Janeiro, 1914) estrutura-se, desde os primeiros ensaios publicados em periódicos do Recife, na década de 1870, sob o signo do embate e da polêmica. Contendo variados matizes e aspectos culturais, e refletindo também amplos interesses intelectuais e filosóficos, a obra romeriana absorve simultaneamente poesia, crítica, teoria e história literária, folclore, etnografia, estudos políticos e sociológicos. Ele faz parte de uma trinca clássica na crítica literária brasileira, com Araripe Jr. e José Veríssimo. Críticos brasileiros da atualidade, quando manifestam sua preferência por um dos três, fazem sua escolha geralmente em detrimento dos outros dois. Como exemplos, verifica-se que Antonio Candido decide-se por Sílvio, Alfredo Bosi não esconde sua empatia em relação a Araripe, e João Alexandre Barbosa fica com Veríssimo. Em 1878, Sílvio Romero publicou seus dois primeiros livros, A Filosofia no Brasil e Cantos do Fim do Século. No primeiro, ao expor seu pensamento Brasileira (a primeira edição, em dois volumes, é de filosófico e literário, tinha como propósitos gerais 1888) de Sílvio Romero, “em verdade, não é hiscombater o meio acadêmico e intelectual do Rio de tória da literatura, mas uma obra muito mais amJaneiro e exaltar as qualidades de pensador de Tobias pla, isto é, uma história da cultura brasileira, em Barreto, seu mestre e conterrâneo, uma admiração que se sobressai a contribuição da literatura”. Essa de toda a vida. Quanto à poesia, com o acréscimo de afirmativa de Castello é reforçada pelo próprio outro livro, Últimos Harpejos (1883), resume-se a Sílvio em 1904, em resposta, através de carta, a um sua carreira de poeta malogrado, sem maior interes- questionário feito por João do Rio para a imprensa se para a literatura que o próprio registro, tendo-se carioca, extensivo aos escritores em voga no início em vista que os versos eram bem medíocres, emper- do século 20: “Em mim o caso literário é complirados e destituídos de sensibilidade poética. cadíssimo e anda tão misturado com situações crítiO eixo principal de sua historiografia literá- cas, filosóficas, científicas e até religiosas, que nunria veio a lume em 1882, quando publicou a Intro- ca o pude delas separar”. dução à História da Literatura Brasileira, embrião de Sílvio Romero sempre reivindicou para o sua obra monumental, hoje em edição de cinco vo- Brasil o que chamava de “pensamento autonômilumes. A opinião corrente entre críticos e historia- co”, desvestido das influências lusa e francesa, podores literários, conforme aqui se remonta a um rém de outro modo impregnado de cultura alemã deles, José Aderaldo Castello, é e inglesa. Associado a Tobias que a História da Literatura Luiz Carlos Monteiro Barreto na Escola do Recife, 34 Continente Multicultural
absorveu os ensinamentos positivistas de Comte, para logo após optar pelo evolucionismo spenceriano, no qual os fatores biológicos dariam um suporte maior à sua crítica sociológica. Na ambiência cultural brasileira, entre o declínio monárquico e o advento da República, caracterizava-se pelas investidas violentas, intolerantes, às vezes gratuitas, contra outros escritores, intelectuais e políticos. No discurso de recepção a Euclides da Cunha em 1906, na Academia Brasileira de Letras, protagonizou um escândalo sem precedente, “sob o olhar austero de Machado de Assis” e estando presente o presidente da República, Afonso Pena, que “teve de ouvir o que não lhe agradava”, como assinalou Brito Broca em A Vida Literária no Brasil – 1900. Tal incidente resultou, ainda, na censura aos discursos de recepção na ABL. Sílvio Romero levantou, no seu discurso, o problema dos cafeicultores brasileiros, criticou as “academias de luxo”, a reunião do Congresso Pan-Americano no Brasil, os empréstimos vultosos tomados pelo governo brasileiro a outros países, arrematando no final: “Os governos, os chefes políticos, os diretórios dos partidos, os grandes, os potentados, todos os que formam essa classe dirigente, que nada dirige, não têm querido cumprir o seu mais elementar dever para com as populações nacionais”. Em conseqüência desse temperamento desabrido, envolveu-se em numerosas polêmicas, a partir da decretação da morte da metafísica e do romantismo, até os achaques do fim da vida com José Veríssimo e Laudelino Freire. Esta lista é imensa e inclui, entre outros, o escritor português Teófilo Braga, Castro Alves, Machado de Assis, os historiadores Manoel Bonfim e Capistrano de Abreu, o jurista Lafayette Rodrigues Pereira. Teófilo Braga cuidou dos prólogos e das notas eruditas dos livros Cantos Populares do Brasil (1883) e Contos Populares do Brasil (1885), porém atreveu-se a mudar a ordem de capítulos do segundo, passando lendas populares de uma seção para
outra, o que provocou a reação irada de Sílvio Romero. Este chegou a escrever os livros panfletários Uma Esperteza (1887) e Passe Recibo (1904), nos quais atacou Teófilo Braga com apelidos, ironias, acusações de plágio, ultrapassando todos os limites e regras da civilidade e da convivência social. Após a publicação de Machado de Assis (1897) – em que cerca de 120 páginas, um terço do livro, versavam sobre Tobias Barreto –, o conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira escreveu, em defesa de Machado, uma série de artigos coligidos em Vindiciae (1899). A resposta de Sílvio Romero não tardaria a vir, classificando Lafayette como “o miserável e torpe cobarde que escreveu contra mim umas infâmias e imundas sandices ultimamente no Jornal do Commercio, com o pseudônimo de Labieno”. Em Zeverissimações Ineptas da Crítica (1909), Sílvio Romero atinge duramente José Veríssimo, por este ter minimizado a importância de Tobias Barreto. Além disto, teria Verísssimo insinuado que Sílvio vivia a defender a cultura alemã sem ao menos dominar aquele idioma. Ao término deste episódio, Veríssimo não guardaria a sua isenção crítica costumeira, pois, na composição da sua História da Literatura Brasileira, faria uma referência brevíssima, de passagem apenas, sobre Sílvio Romero. No mesmo questionário a João do Rio citado, diz Sílvio Romero: “Não tive nenhumas precocidades literárias, científicas ou outras quaisquer. Quando escrevi a primeira poesia e o primeiro artigo de crítica, tinha dezoito anos e meio bem puxados e já andava matriculado na faculdade do Recife”. Nesta passagem detecta-se facilmente algo de obscuro e truculento nele, ao renegar, mesmo que seja a sua própria, uma precocidade intelectual visível e inconteste. Desse modo paradoxal, Sílvio Romero podia exagerar também nos elogios a escritores medíocres, e até no auto-elogio, demonstrando instabilidades latentes e uma vaidade que explodia, vez por outra, em cabotinismo e impertinência. Luiz Carlos Monteiro é poeta e crítico literário.
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AnĂşncio
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AnĂşncio
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Ao lado, série de capas e miolos de livros publicados pelo grupo
GUILHERME CUNHA LIMA
Gráfico Amador
ARTES VISUAIS
No alto, o símbolo do Gráfico Amador, criado por Aloísio Magalhães.
Vanguarda tipografica em Pernambuco
E
m maio de 1954, quatro jovens se reuniram no Recife, na intenção de editar livros com textos literários deles e dos amigos. Com um importante diferencial: tinham que ser elaborados sob cuidadosa forma gráfica. Na época, o universo editorial era dominado pelo comodismo, falta de imaginação e mesmice. Ao criar O Gráfico Amador, Aloísio Magalhães, Gastão de Holanda, José Laurenio de Melo e Orlando da Costa Ferreira estavam iniciando um trabalho que durou sete anos, produzindo mais de trinta livros e folhetos que hoje são referência de excelência gráfica. “O que todos desejavam era pôr em prática o manifesto que nenhum deles escrevera, mas pairava no ar e era aceito pelos três” (Orlando, Gastão e Aloísio), conta José Laurenio. “Para não fugir à natureza mesma dos manifestos, este se notabilizava sobretudo pelos propósitos de destruição. Era necessário destruir a noção de que o livro, sob o aspecto material, está dispensado de ser obra de arte. Era necessário destruir a perniciosa associação da idéia de beleza gráfica com edições de luxo, associação alimentada no Brasil pelo equívoco de alguns editores e também pela esperteza de outros”.
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GUILHERME CUNHA LIMA
A composição dos livros era basicamente manual e a encadernação era simples: capas coladas sobre costura, em alguns casos usando-se grampos na lombada ou ainda com os cadernos soltos dentro da capa. O GA publicou também dois boletins indicando as técnicas e recursos gráficos da oficina. Os volantes eram o que hoje chamamos folders, folhetos culturais com quatro ou oito páginas com poemas ilustrados. Houve também a impressão de um programa de teatro, com oito páginas. A produção do Gráfico Amador foi até novembro de 1961. Exatamente no mesmo período em que o então presidente Jânio Quadros renuncia, colocando o Brasil numa grave crise constitucional. Diz o designer Guilherme Cunha Lima, autor do livro O Gráfico Amador – As Origens da Moderna Tipografia Brasileira, que, embora durante toda a existência da oficina seus integrantes tentassem profissionalizar seu trabalho, o GA morreu amador. “Só a partir do desmembramento do grupo é que seus membros iriam, cada um de per si, afirmarse como profissionais naquilo que começou como uma atividade diletante”. De fato, Gastão de Holanda, além de editor, romancista e poeta, tornou-se designer gráfico e professor universitário; Orlando da Costa Ferreira foi editor, bibliotecário, ensaísta e professor universitário; Aloísio Magalhães, pintor, é considerado um dos mais importantes designers brasileiros, foi fundador da Escola Superior de Desenho Industrial, e exerceu diversos cargos oficiais, entre os quais o de secretário geral do Ministério da Educação e Cultura; José Laurenio de Melo, do quarteto o único ainda vivo, é poeta, tradutor e editor.
As gravuras do livro Aniki Bobó (no alto e abaixo) foram feitas por Aloísio Magalhães e “ilustradas” com texto de João Cabral de Melo Neto (1958)
GUILHERME CUNHA LIMA
Para Laurenio (e seus amigos), “era preciso desfazer uma infinidade de mal-entendidos em vigor no ambiente editorial brasileiro e que, por ignorância ou por desleixo, ou por ambos os motivos, se estendem num livro desde a folha de rosto até o colofon”. Era, finalmente, “necessário atentar para uma série interminável de enormes minúcias, só na aparência desprezíveis”. Oriundo do Teatro do Estudante de Pernambuco, com exceção de Orlando, o grupo já tinha participado da edição de três livros, sob a marca das Edições TEP. Nesta época, não havia editoras no Recife e as do Sudeste só editavam autores conhecidos. Então, os amigos criaram O Gráfico Amador, comprando uma prensa manual, e imprimiram, para inaugurar a empreitada, o poema As Conversações Noturnas, de José Laurenio. Reuniamse e trabalhavam na garagem da casa de Gastão, no bairro dos Aflitos. Em 1956, a oficina foi para a casa da mãe de Aloísio, no Parnamirim, para, logo em seguida, ser transferida, em definitivo, para a rua Amélia, no Espinheiro. Ali passou a funcionar o Gráfico; o Atelier 415 (referência ao número da casa), do então pintor Aloísio Magalhães, que também morava ali; e o escritório de arquitetura de Glauco Campello, Jorge Martins Jr. e Artur Lício Pontual. Num quarto dos fundos ficou morando o estudante de arquitetura Abel Accioly. Em pouco tempo o trabalho do Gráfico Amador começou a ser noticiado e comentado em todo o Brasil. Intelectuais e amantes dos livros começaram a se associar à empreitada, contribuindo para a compra de uma impressora elétrica, tinta e papel. Assim, foram produzidos vinte e sete livros, três volantes, dois boletins e um programa de teatro. Os livros, em tiragens pequenas e pequenos formatos, eram impressos em tipografia e ilustrados por litografias, clichê em metal, xilogravura, clichê de barbante e pochoir (técnica que utiliza papelão vazado.
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Um
Em torno do quarteto que formava o núcleo do Gráfico Amador, passou a circular muita gente ligada à cultura. “Era uma verdadeira efervescência cultural”, conta o arquiteto Jorge Martins Jr. Artistas plásticos como Adão Pinheiro e Reynaldo Fonseca passaram a colaborar com ilustrações para os livros. A presença de arquitetos – cujo curso ainda funcionava na Escola de Belas Artes – provocava um grande intercâmbio de informações. Jorge lembra, por exemplo, que, na casa da rua Amélia, onde funcionava o GA, eram dadas palestras sobre temas incomuns, como a influência de Braque sobre Le Corbusier. Tudo isso levando a um alargamento dos horizontes intelectuais dos que costumavam ir lá. A turma era dividida, segundo Ariano Suassuna, entre os que trabalhavam – os “mãos sujas” – e os que observavam e conversavam – os “mãos limpas”. Ariano, mesmo tendo textos seus editados pelo Gráfico, se incluía entre os últimos. Tanto que levou para o local uma espreguiçadeira, onde se acomodava confortavelmente durante as reuniões. A freqüência era a mais variada possível. Por lá passaram a arte-educadora Ana Mae Barbosa, o bibliófilo José Mindlin, o poeta e tradutor Jorge Wanderley, o crítico João Alexandre Barbosa, os poetas Mauro Mota, Sebastião Uchoa Leite e Vinícius de Moraes, o escritor Osman Lins, o teatrólogo Hermilo Borba Filho, os pintores Francisco Brennand e Di Cavalcanti, o compositor Ataulfo Alves, entre
ponto de efervescencia cultural
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GUILHERME CUNHA LIMA
GUILHERME CUNHA LIMA
outros. Durante estas visitas, a noitada se estendia. Mas, a bebida não era o uísque, revela Jorge, e sim, rum com Coca-Cola. Conta Abel Accioly, então estudante de arquitetura, que o clima era de muita boemia. Aloísio Magalhães gostava de tocar violão e Carlos Pena Filho, de cantar. Então iam todos varar a noite na Churrascaria Cabana, no Parque 13 de Maio. Já o pintor e poeta Montez Magno, um dos freqüentadores do GA, revela que havia entre eles o ritual da “entronização”, que consistia em instalar a réplica de um quadro famoso no salão de um cabaré local e, em seguida, fazer uma comemoração etílica em torno do mesmo. Montez chegou a participar da entronização da Mona Lisa no Cabaré Bom Bom, próximo à rua Direita. O artista ressalta, porém, que nem tudo era boemia. Eram pessoas muito cultas, que, algumas vezes, chegavam a discutir em francês. Uma das visitas que mais rendeu ao GA foi a do poeta João Cabral de Melo Neto. Ele, que já tinha uma prensa manual na qual fazia livros artesanais, em Barcelona, passou aos integrantes do Gráfico Amador todos os conhecimentos práticos que adquirira. E foi também co-autor de um dos livros mais originais do grupo, o Aniki Bobó, onde há uma inversão de termos radical: um texto ilustrando desenhos. O artista plástico Paulo Bruscky conta que certa vez Aloísio Magalhães, que era muito criativo, pegou tacos de chão e barbantes para, com eles, experimentar gravuras. João Cabral ficou impressionado com aquilo e dispôs-se a escrever um texto “ilustrando” as imagens. Nasceu assim o livreto Aniki Bobó, que, segundo pesquisou Bruscky junto ao cineasta português José de Oliveira, significa brincadeira de criança, em Portugal. “Aquelas brincadeiras antigas, como empinar papagaio, jogar bola de gude”, explica. O poema, em prosa, começa assim; “Aniki Bobó tinha de seu duas cores, o azul e o encarnado, como outros têm na vida um burro e um cavalo. Não eram o mesmo as duas cores para Aniki
destemido: eram na sua vida um amigo e um inimigo. O azul era seu colchão de molas, líquidas como as do mar. Azul também eram as suas muitas lâminas de barbear. Era muito curiosa sua rara coleção, pois quando vistas de perto eram vermelhas por antecipação”. Curiosamente, o poema não consta da obras completas de João Cabral, que, quando perguntado a respeito por Bruscky, numa de suas últimas visitas ao Recife, não se lembrava mais dele. O episódio é demonstrativo da criatividade de Aloísio Magalhães, um artista que atuava em várias frentes. Conta Jorge Martins que, quando abandonou o projeto do GA, mudando-se para o Rio de Janeiro, já tinha se posicionado contra o quadro de cavalete, com sua aura de obra única, adotando a feitura de peças múltiplas e reproduzíveis. Acontece, porém, que estava numa grande penúria financeira e eis que o grupo Othon Bezerra de Melo encomendou a ele 120 quadros para colocar nos quartos do seu novo hotel em construção. Aloísio comprou vários cartões coloridos, fez cortes geométricos em cada um, criando assim um jogo de formas e cores que poderiam ser combinadas inúmeras vezes, resultando em quadros variados, no estilo do geometrismo abstrato inaugurado por Mondrian. Proporcionou assim, ao hotel, um conjunto de 120 obras originais, diferentes entre si, mas unidas pela mesma proposta, conseguindo o dinheiro de que necessitava sem precisar violentar suas convicções. (MP)
Para saber mais: O Gráfico Amador – As Origens da Moderna Tipografia Brasileira, de Guilherme Cunha Lima. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1997, 204 páginas. Exposição O Gráfico Amador (na programação do XI NDesign) Data: de 15 a 20 de julho Local: Hall do Teatro da UFPE Mais informações: www.vitaminad11.com.br GUILHERME CUNHA LIMA
Ao lado, xilogravura de Reynaldo Fonseca para o boletim número 2 do Gráfico Amador (1961)
Na página oposta, clichê de barbante de Gastão de Holanda para Elegia, de Ovídio (1961)
Abaixo, gravura de Aloísio Magalhães para o livro As Conversações Noturnas, de José Laurenio de Melo (1954)
SABORES PERNAMBUCANOS
De sopas e cavalos cansados “A sopa é a consolação de um estômago necessitado.” Brillant-Savarin (A Fisiologia do Gosto, 1755)
De folhas de urtiga a ninhos de andorinha, a história da entrada preferida da culinária mundial: a sopa
S
opa nunca foi prato apreciado, no Brasil, por índios e escravos. Devendo seu prestígio, entre nós, à presença portuguesa. A primeira que nos veio foi uma sopa de cavalo cansado, preparada com vinho tinto, açúcar, canela e pão torrado, usada como revigorante por lavradores de Portugal. Ainda hoje lembro babá Joaninha, na casa de minha avó, falando de uma sopa parecida – a de cachorro cansado, segundo ela capaz de levantar defunto. Não são muitas as sopas que podemos dizer típicas de Pernambuco. Entre elas, a de cabeça de peixe, que aproveita a cabeça de peixes da região – cioba, cavala, garoupa, camurim – usados em outros pratos. A de testículo de boi, originalmente tomada pelos vaqueiros das fazendas de gado. A de jerimum. A de milho verde, sobretudo perto do São João. A de feijão, aproveitando a feijoada já pronta. A de macaxeira ou a de inhame, largamente consumidas pelos índios – raízes que permanece-
ram em nossa culinária mesmo depois de aqui chegarem os portugueses. De muitos outros lugares nos vieram sopas. Da Índia, a kanji, canja de galinha. Da França, o consommé, caldo de carne ou de galinha, batizado com este nome porque fica apurando no fogo, enquanto a água é consumida; além da sopa de cebola e a bisque, com lagosta, camarão ou siri, mais conhaque ou vinho branco. Da Espanha, o gazpacho. Da Itália, o minestrone. Da Rússia, o borchtch. Da China, mais recentemente, a sopa de ninho de andorinha, de preferência Yen Yen (que se alimentam apenas de mariscos e algas, 250 dólares por cinqüenta gramas de ninho), servida nos restaurantes da moda em São Paulo. A trajetória da sopa vem de longe. Primeiro o homem descobriu o fogo e como assar nele a
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carne. Com a descoberta de potes aprendeu depois que essa carne, cozida em água, não ficava esturricada. Dando-se também conta de que o caldo em que foi preparado o alimento guardava sua cor e seu gosto. Assim nasceu a sopa. Para ser, durante muito tempo, o principal alimento de populações inteiras. O nome veio depois, da Alemanha, com a supper (ato de ensopar o pão). Sendo esse nome, a partir de então, consensualmente adotado. Zuppa (inzuppano: ensopando o pão) na Itália. Soupe (ensopar o pão) ou potage (de pot – pote), na França. Soup, na Inglaterra. Além, claro, de sopa, em Portugal. Na Grécia se bebia um caldo negro preparado com sangue de animais misturado em vinagre, sal e ervas aromáticas; além de uma sopa de rosas, feita com pétalas perfumadas, miolo de pássaros, gemas de ovo, azeite, pimenta e vinho. Em Roma, Nero tomava um caldo de alho-poró para proteção de suas cordas vocais. Na Idade Média, difundiu-se na Europa o costume, vigente até hoje, de preparar caldos de urtiga e de ervas daninhas. Além de outros mais elaborados, feitos com leite de amêndoas, cebola, fava, tudo temperado com mostarda, canela, gengibre e vinho azedo. No Renascimento, o Sr. Boulanger (em francês, literalmente, padeiro, embora tendo como profissão vendedor de caldos – marchand de bouillon), inventou uma sopa fortificante, restauradora, feita de carne de boi, carneiro
e legumes, para ir à mesa antes do jantar, que denominava restaurant. Afixando, em seu estabelecimento, placa que dizia: “Boulanger vende restaurantes divinos, vinde a mim, vocês que têm o estômago em penúria, eu os restaurarei”. Daí vindo a própria origem da palavra restaurante. Depois tudo se sofisticou. Em 1680, Domingos Rodrigues (A Arte de Cozinhar) indicava doze receitas de sopa. Menos de cem anos depois, Luas Rigaud (O Cozinheiro Moderno) já relacionava 63 sopas e caldos. Em 1755, Carême, cozinheiro de reis, estudou desenho e arquitetura para melhor apresentar seus pratos – e criou mais de quinhentas delas. O gastrônomo Grimod de la Reynière (Almanac des Gourmands), por essa época, dizia que “a sopa está para um jantar assim como o portal está para um palácio”. A trajetória da sopa, em certo sentido, imita a do homem. Depois do apogeu, o declínio. Seu prestígio, hoje, já não é o mesmo de tempos idos. Em 1852 o Barão Liebiz, químico alemão, conseguiu produzir um extrato de carne que acabou dando origem ao caldo sintético. Findando a idade romântica (desse prato) com a invenção das sopas em pó, a industrialização vulgarizando a culinária – em 1886, por dois suíços, Maggi e Knorr. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
SOPA DE MACAXEIRA Ingredientes: • ½ kg de costela de boi • 2 dentes de alho • 2 colheres de sopa de azeite • 1 cebola • 1 tomate
Preparo: • Cheiro verde • ½ kg de macaxeira • 2 litros de água fervente • Sal e pimenta, a gosto
• Tempere a costela com sal, pimenta e alho • Faça um refogado com azeite, cebola, tomate e cheiro verde. Junte a costela. • Acrescente a água e a macaxeira; deixe cozinhar. • Retire a carne. Passe o restante no liquidificador. Peneire. Leve ao fogo para ferver. • Tempere com sal e pimenta.
SOPA DE MILHO VERDE Ingredientes: • 1 kg de costela de boi • 2 dentes de alho • 2 colheres de sopa de azeite • 1 cebola • 1 tomate • Cheiro verde • 2 litros de água fervente
Preparo: • 6 espigas de milho bem verdes • 2 xícaras de leite de vaca • 2 gemas • ½ colher de sopa de manteiga • Sal a gosto
• Tempere a costela com sal e alho • Faça um refogado com azeite, cebola, tomate e cheiro verde. Junte a costela. • Acrescente água e cozinhe bastante. • Retire a carne. Coe o caldo e reserve. • Debulhe as espigas de milho e passe os grãos no liquidificador, junto com leite. Acrescente a manteiga e as gemas. • Junte o caldo reservado com o creme de milho. Deixe cozinhar lentamente, até que a sopa fique cremosa. • Decore com espigas de milho cozinhadas, cortada em rodelas
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LIÇÃO DE ARTE
O mundo
O
pintor Cícero Dias, 94, vive há 64 anos em Paris. Não se afrancesou. Aos seus ateliês sempre levou o microcosmo de Pernambuco. O clima dos engenhos de Escada. Uma rede. A miniatura de um bonde. O espaço vira tempo. Atualmente está empenhado em fazer alguns ajustes no monumento que construiu no cais. Quer pôr uma pedra lá e algumas inscrições, restituindo o Recife aos arrecifes. Sobre isso, escreveu uma ode. Na verdade, uma espécie de pequeno poema em prosa, gênero que os franceses notabilizaram. Mas o de Cícero Dias tem a mesma rítmica assimétrica dos seus quadros, a mesma viagem onírica, nada linear. Cícero Dias saiu do Recife, em 1937. O Estado Novo, fazendo justiça à sua própria “polícia do pensamento”, conseguiu expulsar alguns dos melhores talentos da época. O exílio rendeu ao artista bons frutos, embora colhidos com dificuldade. Já chegava na Europa “amadurecido para o sofrimento e a poesia”. Ditadura no Brasil, Guerra Civil na Espanha. Depois, era o mundo inteiro que se matava. Ele foi preso. Militou contra o nazismo. Nos anos heróicos da Guerra Civil espanhola tornou-se amigo íntimo de Picasso, que se fez padrinho de sua filha Sylvia e no seu nome manteve durante vários anos um telefone. Mas o resultado menos pessoal disso foi que graças a um pedido do seu amigo Cícero Dias é que o pintor espanhol autorizou a ida da sua Guernica para o Brasil, na Bienal de São Paulo (12 de dezembro de 1953, com direção artística de Sérgio Milliet).
REPRODUÇÃO
de
Na página anterior, Cícero Dias na sala de jantar do seu apartamento, Rue de Longchamp, Paris. Acima, detalhe de Visão Romântica do Porto de Recife, Recife, 1930 – óleo sobre cartão – 124 x 228cm
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REPRODUÇÃO
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Picasso, Éluard, Péret, Cendrars, Paulo Prado, Mário de Andrade, Villa-Lobos, Murilo Mendes, Gilberto Freyre e os muitos etcéteras da longa lista de amigos famosos de Cícero Dias não caberiam aqui. Muito menos transcrever os comentários – vários deles inéditos – sobre a sua arte. Como Di Cavalcanti, o primeiro a incentivar a sua mudança do Brasil para a França: “Sempre admirei a pintura de Cícero Dias. Sou mesmo um dos seus primeiros admiradores e nunca neguei o grande lirismo de seus quadros que bem traduzem o Nordeste – a vida terrena e poética de velhos engenhos de Pernambuco. (...) O valor da obra de Cícero Dias perdura límpido e espontâneo”. Cícero Dias não só atravessou quase todo o século 20 – ele nasceu a 5 de março de 1907 –, exercitou as suas principais escolas de arte, como Surrealismo e Abstracionismo. Mas, tudo de maneira personalíssima. Com isto se quer dizer menos adesão às teorias estéticas que resultaram em programas, palavras de ordem e manifestos, e mais o livre exercício da arte. Onirismo, lirismo, ludismo e erotismo definem melhor a sua arte que todos os ismos modernos. Ele, que viu duas passagens do cometa Halley, sabe que os calendários, como as escolas e os gêneros, são invenções arbitrárias. O tempo, como a sua pintura, clama pelo desmedido. Como uma cor que se alastrasse de cores brincalhonas. Uma febre de mar que não se doma. A arquitetura que cursou e abandonou por antipatia às matemáticas não lhe ensinou nenhuma lição de arte. A sua professora, além da natureza e do seu próprio instinto, foi a tia Angelina. Sendo a pintura uma vocação da vida inteira, expressou-se com um bom humor e um sabor boêmio poucas vezes tão vigoroso em toda a arte moderna. Esse espírito de boêmia e liberdade que os estadonovistas e os nazistas não conseguiram aprisionar reflete-se não somente nos seus quadros, mas na força sorridentemente livre da sua poética e nos textos que lhe dedicaram amigos, como Manuel Bandeira: “No hall do Palace o pintor/ Cícero Dias entre o Pão/ de Açúcar e um caixão de enterro/ (é um rei andrógino que enterraram?)/ toca um jazz de pandeiros com a mão/ que o Blaise Cendrars perdeu na Guerra.// Deus do céu, que alucinação!/ Há uma criatura tão bonita/ que até os olhos parecem nus:/ Nossa Senhora da Prostituição.” (MH)
Engenhos de cultura Eu comecei a pintar como discípulo de uma tia minha, pintora, no engenho Contendas. Ora, o barão de Contendas tinha uma verdadeira escola. O que era curioso naqueles engenhos, o Contendas, o Noruega, era o que eles tinham como fonte intelectual: Tobias Barreto, Clóvis Bevilacqua e o autor do Código Civil, Pontes de Miranda. Quer dizer, aqueles engenhos foram centros de cultura muito ampla.
Estado Novo
REPRODUÇÃO
Eu saí de Pernambuco por causa do Estado Novo. Eu recebi uma carta de Di Cavalcanti, que já estava lá em Paris, me dizendo: “Venha pra cá, saia daí”. Só podia. Havia polícia pra cá, polícia pra lá. Presos na rua da Aurora ou na Casa de Detenção. Mas havia muitos também que não aceitavam esse tipo de situação e por esse mesmo motivo morreram por aqui, como foi o caso do Ulysses Pernambucano. Quando prenderam o Ulysses Pernambucano, eu tenho a impressão de que ele não recebeu apoio moral suficiente para resistir. Então morreu, coitado.
A minha amizade com Eluard saiu de uma briga entre ele e Breton. Mas, em 1938, época da minha primeira exposição em Paris, eles ainda se davam. Eu nunca fui muito próximo a Breton, sempre o julguei um tipo, não pretensioso, mas muito senhor de si. Quando acabou a guerra da Espanha, muitos dos surrealistas que ainda eram amigos brigaram. O grupo todo se dividiu. Uns ficaram republicanos, outros, comunistas, outros, trotskistas. E Eluard, neste tempo, ele pegava muita briga. Bom, eu tinha deixado muitos quadros no ateliê de Picasso, e entre eles um chamado A Mulher na Janela. Quando Eluard viu o quadro, emocionou-se. E pediu a Picasso para conhecer o pintor que havia pintado aquele quadro. Ele então me procurou, e eu sabia que ele não me procurara antes pensando que eu era muito ligado a Breton. Aí eu expliquei a Eluard: “Eu sei que você tem essa expectativa, mas não é verdade. Eu não detesto Breton, mas também não tenho nenhuma aproximação com ele”. A partir daí, ele se tornou muito amigo meu. REPRODUÇÃO
Fragmentos de uma entrevista
Paul Eluard
Um modelo do cosmos Havia mais ligação entre a arte moderna e a de séculos anteriores do que muita gente pensa. Picasso falava muito em Cézanne. Quando ele fez, por exemplo, Demoiselles d’Avignon, fez influenciado por Cézanne. Ora, Cézanne, por sua vez, tinha admiração por Giotto, um pintor do século 13, amigo de Dante. Quando eu me preparava para fazer o desenho da praça do Marco Zero, encontrei uma opinião de Proust dizendo: o século 13 foi um dom de Deus. E foi. O Ulisses, de James Joyce, copia a estrutura da Divina Comédia. Então, eu comecei a ler sobre o século 13. Eu acho extraordinário esse caldeamento, desde o século 13 ao atual.
Página anterior, detalhe de Visão Romântica do Porto de Recife, Recife, 1930 – óleo sobre cartão – 124 x 228cm Ao lado, A Difícil Partida, Rio de Janeiro, década de 20 – aquarela sobre papel – 98 x 50cm Acima., Cícero Dias e sua filha Sylvia com Picasso em Vallauris, 1950
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Casa-Grande & Senzala Quando Gilberto teve que procurar pintores para ilustrar Casa-Grande & Senzala, eu era o mais chegado a ele, e o que estava mais por dentro da matéria, por causa dos engenhos, dessas conversas todas. Então eu procurei me esmerar bem. Mas os desenhos para Casa-Grande & Senzala são apenas de informação, de forma que são muito chatos, entendeu? Você não tem liberdade. Por exemplo, a casa-grande do engenho Noruega, tudo dela está lá no desenho. Infelizmente a casa caiu, no tempo em que era governador Carlos de Lima Cavalcanti, que, por causa de brigas políticas, negou dez contos para Ilustração de Cícero Dias para o livro Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, 1933, exemplar aquarelado pelo pintor
preservá-la. Todas essas casas-grandes caíram. Essas casas todas, inclusive Jundiá, onde nasci, caíram.
Eu vi o mundo... ele começava no Recife Para fazer esse painel, de quinze metros, tive dificuldade com o material. Mas imagine que ele foi feito em 1931, e que eu levei o painel para Paris; lá, procuramos o maior técnico na França que pudesse dar uma opinião. O técnico bateu no meu ateliê em Paris, eu apenas estava desenrolando o painel, ele pegou na textura e disse: “Isso é para nunca acabar”. O painel foi feito em papel craft, que existe até hoje. Feito com cola de peixe, coisa rara também. Depois, com a minha estadia na Europa, descobri que pintores como Rubens, por exemplo, pintavam sobre papel.
Destruição Quando levei Eu vi o mundo... para São Paulo, para a Bienal, havia uma parte muito lúbrica. Foi um sujeito lá e rasgou. Nós sabemos quem foi. Foi um dos grandes de Pernambuco, mas não posso dizer o nome. Nunca disse a ninguém. REPRODUÇÃO
Então, quando eu fiz essa praça, li muito essa história do século 13. E o que houve no século 13, 14 e 15? Só descobrimos o mundo todo por causa das estrelas. O pessoal olhava para o céu, era a vida do homem. Eu aí tinha que recorrer a coisas extraordinárias, às estrelas, ao mapa mundi; foi assim que eu concebi o desenho da praça. O desenho não é mais do que o reflexo do céu, um modelo do cosmos.
Outro caso de depredação foi quando eu fiz minha primeira exposição no Rio, em 1938; teve um sujeito que entrou lá com uma navalha. Aparecia dessas coisas. Por exemplo, Oswald de Andrade chegou a entrar em luta corporal com um sujeito que ia atacar os quadros de Tarsila.
porteiro e perguntou: “Onde está o meu apartamento?” O porteiro disse que não tinha. Ele aí queria brigar. Foi para a rua, encontrou um sujeito que trabalhava por perto e disse: “Olhe, eu lhe pago e você vem comigo, vamos pegar uma picareta e tirar a placa com o meu nome”.
Arte abstrata
João Cabral de Melo Neto
Na época do governo Barbosa Lima, eu estava chegando da Europa, com as idéias todas, e Antônio Balthar tinha feito o prédio da Fazenda de tal maneira que todos pudessem pintar. Então, fui pintor de um mural abstrato. Hoje publicaram um livro sobre arte abstrata no Brasil onde dizem que o pioneiro da arte abstrata em mural no Brasil fui eu, com aquele painel. Mas, não foi só na América do Sul, como eles dizem, podia ser de todas as Américas, porque na América do Norte talvez ainda não tivesse.
Conheci João em Pernambuco, nos tempos áureos... Eu até discordava de João porque às vezes eu pintava o universalismo, e o João procurava mais o lado regional. Ele não queria o universalismo. Depois, uma coisa que eu achava imperdoável, uma coisa triste, era o Vicente do Rego Monteiro, o Manoel Lubambo, fascistas, pedindo sempre a nossa prisão e mandando raspar a cabeça de Graciliano Ramos, essa coisa toda. De forma que eu me afastei muito dessa gente... E João Cabral achava que Vicente tinha explicações... Não havia explicação nenhuma, abertamente eles tinham um jornal chamado Fronteiras, e você vai ver lá eles pedindo a prisão minha e de Gilberto Freyre.
Espírito poético
Villa-Lobos Villa-Lobos era meio louco. Eu desenhei muito para ele. Em Paris, ele ia muito a meu ateliê. Ele pegava mitologia índia, da Amazônia, saci pererê, que só tinha uma perna, o outro com as bundas viradas não sei para onde... Todas essas mitologias, de índio tudo aleijado, para organizar um balé com isso; o coreógrafo italiano virou para ele e disse: “Maestro, como é que podemos dançar um balé com gente tão aleijada, sem perna?” Ele foi embora, disse que o homem era burro. Levou o balé para Milão. Lá foi vaiado. Outra: um sujeito fez um imóvel lá em Paris, Edifício Villa-Lobos. Ele chegou lá, chamou o
Entrevista concedida a Alexandre Bandeira, Homero Fonseca, Marco Polo e Mário Hélio REPRODUÇÃO
Além de Picasso, de Cézanne, eu tive muita influência de poetas. Concordo que sem poesia é impossível a vida do homem. Eu até prefiro as críticas e avaliações sobre a minha arte feitas por poetas do que por críticos. Porque a crítica de arte é analista demais e muito estreita. Quando você tem um poeta que escreve sobre você, ele descobre coisas fantásticas, ele acompanha bem o seu espírito poético.
Convergir, Paris, 1954 – óleo sobre tela – 98 x 80cm
Olinda em Paris (passeando com Cícero Dias) A Mario Gibson Barbosa Na ilha antiga de São Luís, que abre em dois o Sena em Paris,
O dono próprio me contou que com o nome o hotel comprou,
existia um Hotel Olinda (existia, não sei se ainda).
e o mantém sem querer saber se é um quando, um donde ou um quê.
Cícero, ciceroneando todo amigo pernambucano,
Mas se alguém pergunta ainda por que o hotel se chama Olinda,
diante do hotel recomendava: “Vem da Olinda nossa, essa placa,
num só dia o fará mudar para outro que nada dirá:
mas ao dono não pergunte onde ele descobriu esse nome.
para outro insípido e vazio, exemplo: para Hotel do Rio.
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O
Divino criando o Recife com o poder mágico, com corais, com pedras, numa paisagem de oceanos e de areias. Numa terra baixa sujeita a pancadas de um mar todo de esmeraldas. Urrando como um animal em jaula com sons de triunfo e perigosos. Eram esmeraldas jogadas em areias finas, douradas, brilhando ao ardor do sol. Só Deus com suas forças eternas salvaria esse burgo tão selvagem das águas oceânicas. Ele, Deus, que tudo criara derramando amor em tudo, a tudo o que lhe tocara a divindade do Universo, a transparência do espírito, as vibrações do coração, salvaria o Recife, salvaria as esmeraldas, salvaria um céu de anil, a transparência do ar, a brisa corria aos pulos pelos cantos da terra. Tudo ele Deus salvaria. O Divino é a nossa salvação. Nisto, num clarão estranho, rompendo tudo num ruído metálico de suas grandes asas, os poderosos arcanjos espalhando-se pelas costas de Pernambuco, os corais e mais corais, belos, coloridos, róseos, vermelhos, tudo semeando dia e noite, à luz das estrelas, as candentes, bem vivas, a mostrar os caminhos da vida eterna, e aos abrigos de uma esfera celeste colorida de um azul de anil, as formas, as cores se ajustavam, já emitiam a divina imagem onírica de um sonho real da cidade do Recife. Salvando o Recife salvará Deus a sua mais pura criação. Como salvar o Universo, o mundo de que me fala a Gênese, momentos únicos da criação. Só ao Divino podemos apelar para a vida. Por que não chegarmos ao século XIII, à ajuda dos mais sábios, a Dante Alighieri, em um olhar na vida, num momento em que as trevas se iluminam? Já uma vitória dos pequenos corais apontando o mar infinito de que nos fala o nosso Castro Alves. Vitória do Divino, a luta da realidade e do ideal. Já os cometas surgem com as suas caudas luminosas afirmando a existência eterna do Recife. As
Poema em prosa inédito de Cícero Dias
emoções ligadas ao Recife que só nele tocam estão vivas no espetáculo do céu, no mais íntimo do seu ser, acompanhando a vibração dos astros e das constelações, uma vida sideral. Lembro-me quando os lampiões, a um faiscar das luzes na rua da Aurora, exato Aurora, se refletindo nas águas do Capibaribe, bem à noitinha, senti como um símbolo, uma visão, vinha como uma mensagem pela superfície do Rio. Olhei, escutei os lampiões. Evocavam o momento histórico do cangote, das auras, simplesmente uma rapsódia, destas que pertencem a Deus. Nenhuma força no mundo a destruiria, só os altos poderes da vida poderiam auscultar, a tanger as ondulações das águas quase que invisíveis como raspando pelas beiras das terras uma musicalidade cândida, ao contrário das águas oceânicas, roucas, como ouviu Byron ao gritar ao mundo: Ó mar, ó Mar. Cidade a mais oculta na criação. Já se ouviam os urros do largo quebra-mar, as ondas oceânicas atrevidas se destruíam entre elas. A pedra resistia a tudo. Entre elas, as ondas, a se chocarem, aos berros, violentas, saudaram as areias, as palmeiras, outras pedras estavam a caminho para defender as areias, à vista as maldiçoes oceânicas, as que assistiram à morte trágica de Pedro Ivo, das belas suicidas, dos náufragos inocentes, das prostitutas em abandono. Uma metamorfose pela beira-mar surgia. Os angélicos corais, com seus milhares de vida, se viram do dia para a noite transformados em calhaus, em seixos, numa pedra capaz de lutar contra a força inexpugnável de um oceano, uma pedra brava, indomável. Sim, os lindos corais resistiram nessa luta de vida e morte entre o Recife e o Mar Oceano. Mas foram estas mesmas águas que ajudaram a dar vida a uma cidade e como procuraram destruí-la. Vagas que outrora eram indomáveis e de puras inocentes vagas se tornaram violentas capazes de jogar pelo chão um coqueiral. Nesse tempo calhaus já se tornavam pedras, mas a luta continuava, a areia das vagas marinhas. Também foi o
ODE AO
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Vivíamos em grandes contradições. O Recife nasceu do oceano, o mesmo oceano quis tomá-lo todo em seu corpo, como que arrependido, implorando a Deus, sofrendo a querer de volta, aos urros, uma fronte luminosa em seus horizontes, vorazes águas oceânicas martirizadas, devorariam seus filhos, como na antiguidade grega o gigante a devorar os seus filhos, o Divino a salvar o Recife, salvar o universo todo, este mundo que se apresenta na Gênese. Só ao divino podemos apelar para a vida. Ao auscultar a sonoridade marinha, chegamos às portas de um outro gigante. Para os homens todos, ele se chamava Dante, Dante Alighieri. Aos braços de uma beleza de pura criação, correu pelo mundo afora, longe deste mar medonho que quis enganar a todos, jogando pela água os bonecos de anis, limpando ao máximo de pureza um colarinho soberbo. Alvo colarinho, puro, liso, ereto, dominador, só igual ao firmamento de sua altivez, capaz de ser Juiz, de ser Papa. Com todos os poderes, só ele, o colarinho anil, cor do céu. Um firmamento como nenhuma banda da terra existe, uma nitidez rara, uma transparência, tudo de uma pureza, uma brisa constante, como limpando o ar onde tudo se espalha em tudo. Só por este céu sentimos momentos de glória, como pedaços do céu, até ao alcance de nossas vistas, bailava-se sobre as areias, lambidas por pequenas vagas. Mas, o mar quebrava as pedras aos pedaços que rolavam pelos corpos dos adolescentes. Eram coxas lisas, eram pedras lisas, as mãos percorriam em transe, cegas de tanto amar, um amar sem fim, suave. Mas, de súbito, a meiguice das águas se torna violenta. Como se defender deste mar? Como diz Castro Alves, munido de um punhal? A lucidez de um punhal já era pouco para enfrentar a fúria do oceano. Um silêncio profundo rolava sobre os seus seios, nada parecia perturbar a tranqüilidade ofegante dos lindos seios se não fora a fúria diabólica do oceano, e esta gente pela beira da água salgada. O sal da água lhe criara uma euforia estranha, aos pulos pela brisa solar. Eram personagens cami-
RECIFE
EDUARDO QUEIROGA / LUMIAR
tempo em que as ondas vinham meigas, alisavam a bela cabeleira de Isaura, as mesmas que conheceram Gonçalves Dias. Eram pretas, bem negras, como aquelas das asas de uma graúna. Ó terra bendita, cheia de glória. Mas, as águas marinhas já não se atreviam a penetrar pelo burgo, pelos mangues, como queriam. O Recife enfrentava um Oceano. Pelo ventre do Oceano formavam-se poderosas lendas, as que corriam pelo mundo, as anteriores ao século XVI. Uma, a famosa Rio de Fogo, que penetrava pelo mar, fervendo com toda a força, esquentando fortemente as águas do mar, impossibilitando qualquer navegação. Os veleiros se incendiavam ao se aproximarem. As lendas já vinham de longe, anteriores a Roma, a Atenas, o oceano trazendo o sopro dessas longínquas civilizações. A mitológica Recife ia vivendo. Hoje, agarrando as pedras, antes agarradas aos corais, enquanto os personagens caminhavam beirando a orla marítima com seus corpos nus, ignorando a vinda do século, para muitos deles a aproximação dos sonhos, embaixo de uma abóbada de anil. Uma visibilidade única na vida dos homens ignorantes, que iam pelo século adentro, metiam os seus pés pelo ouro da areia. Os povos da antiguidade dividiam a vida do homem entre os deuses e os gênios, e nós estávamos em sua companhia, beirando um oceano sem fim, por baixo de um céu, uma água fluvial, às vezes mágica, como a de Toledo, que secava a vista de El Greco. Raras cidades do mundo se enchiam de mitos como as do Recife, para a criação oceânica, um oceano que causava pavor a Castro Alves. Byron e Chateaubriand viviam de suas emoções quase que telúricas, a ponto de viverem aos gritos, pelos campos, pelas ruas. Mar, ó Mar. Em seus cérebros corriam as ondas, sem dimensões, violentas, calmas, aos soluços. Byron, só igual a Nabuco, no patamar em Veneza, despertou numa manhã aos berros: Recife! Ó Recife. Seu amigo Castro Alves se agarrando às pedras com um punhal às mãos se defendeu deste mar imenso.
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nhando, bailando a vida toda. Formavam às vezes um raro balé nos trópicos, seminus, como outrora umas figuras gregas, egípcias. Inconscientemente clamava para os deuses, com a alma, para o Olimpo, às vezes parados, à procura de vozes para cantar, misteriosas vozes que cantavam no fundo da água. Porém, houve uma parada em tudo, planetária, e só se ouvia o eco, à chegada da estrela lúbrica. Surgia, espantosa de lubricidade, só refletia um amor violentamente carnal, vinha desde o momento da primeira criação. As vozes se perdiam. Onde encontrá-las? Entre as belas formas e belas fêmeas, aos gritos: Recife, Recife. Grande, surge pelas ondas um animal terrível, o Bicho mesmo. Vinha do chamado além ao Recife, rompia os membros humanos, ninguém pulava pelo além ao Recife, não ultrapassava essa “cinta de pedra inculta e viva”, como dizia, desde o século 16, o poeta Bento Teixeira. O Diabo vivia noite e dia, não havia limites para as atrocidades cometidas pelo verdadeiro monstro do mar. As lendas a respeito deste animal percorriam pelas praias todas. Coitada da gente mordida, morta, pelo monstro. Havia melancolia, havia amor. Uma tristeza sem parar, mas muito amor na alma. Ficávamos de luto fechado, estendendo um pano de dó pela casa. Longínqua estrela, onde estás, para aliviar os nossos sofrimentos? Um menino sem braços a pedir a Deus felicidade, as águas malditas do Oceano, dessas cantadas por Dante. A vingança do mar, com seus demônios, tudo querendo e tudo perdendo. Perdendo por pequenas pedras. A pedra só salvara o mundo, salvara o Recife, Recife de todos nós, cheia de luz, iluminando o homem. Mas os monstros marinhos procuravam devorar aquilo que de melhor lhe ofereciam as donzelas, donzelas soberbas pelo areal. Não destruiriam, ó mar, o que
melhor delas as donzelas mostraram ao mundo. Monstro marinho, volta às tuas sórdidas grutas, aos infernos, nunca tocarás em Beatriz, animal terrível das águas oceânicas, como uma hiena à procura de cadáveres. Vivíamos nos limites do Bem e do Mal, podíamos dar um adeus aos corais. Apelamos a São Miguel, chefe dos anjos, arcanjo poderoso. Resplandecendo uma esperança despontava pelas luzes. Em suas fortes mãos uma lança transpassava o corpo do monstro. Havia urros de lobos, de animais pré-históricos. Mas faltaria a todos a força para derrubar os arrecifes, os corais e sua beleza. O mar infinito de Castro Alves. Adolescentes em férias, imberbes adolescentes, como uma flor de limbo, deste mar bravo, a querer destruir aquilo o que mais amavas, quando vivias pelas encostas da terra, rolando nas encostas das terras, estas que te viram juntas a teu corpo. Mas, as terras se formavam com as vontades de se tornarem terras de grandes florestas, essa luz esplêndida que se distrai nas águas do rio Beberibe, onde a paisagem em volta se reflete, atravessando o corpo das águas , até enxergarmos o leito do rio em toda a sua lucidez. Luz lírica, criando uma atmosfera, uma luz que se jogara sobre o mar, e que se vai progressivamente criando outros mares já cheias de cores e ricas de poesia. Caminhamos pelo Eterno, ó candeeiro meu, por que não viver à procura de uma bacia d’água? À porção de águas paradas, elas se encontram lá pelo círculo de Colombo, à procura de nossa terra. Um sol e seus veleiros, rompendo tudo à descoberta do Brasil, foi uma gente de Palos, conhecidos como os iluminados ligados à casa de Espanha, a rainha católica, à procura de ouro, para reconstruir o Santo Sepulcro. Eu vi o mundo... ele começava no Recife.
Cícero Dias e Paul Eluard A amizade entre o pintor e o poeta revela prováveis ligações entre a arte de ambos
ALEX BRAGA / LUMIAR
C
simples transcrição de uma emoção fugidia, prova de que Eluard não esteve muito inspirado. Dias voltou a Paris, em 1945, e aí se instalou. Em 1948, o poema seria completado com alguns versos e, no mesmo ano, teve o título mudado para Palmeiras, no catálogo de uma exposição de Cícero Dias, no Recife. Este último livro revela o segredo provável da adjunção: a ilustração A Sesta, de 1944, mostra, com efeito, três personagens, um que “tomou lugar na terra”, comodamente deitado à sombra, os dois outros verticais – retos, a cabeça banhada de sol. Uma das figuras parece se fundir com o canavial, e sua cabeça, coroada, pode ser interpretada como palmeira. Acrescentamos, para completar, que Dias acompanhou, fim de novembro de 1948, Eluard, Jacqueline e Alain Trutat numa turnê de conferências em Arras e Lille; e que Eluard teve em sua coleção duas telas de Dias. Trecho extraído do livro Eluard, Picasso e a Pintura, de Jean-Charles Gateau. Tradução de Heloísa Arcoverde. ALEX BRAGA / LUMIAR
ícero Dias, jovem pintor brasileiro, havia exposto no Brasil, precocemente, aos 18 anos, depois instalou-se em Paris, onde a galeria Jeanne Castel acolheu sua primeira tela, em 1937. Sua pintura, como a de Dominguez, misturava cubismo e surrealismo. Dias pertencia a uma família abastada, fazia carreira na diplomacia e não dispensava as saídas bastante livres. As más-línguas insinuavam que o interesse de Eluard por ele se limitava a estes três aspectos, e que o café autêntico pesava na balança. Na realidade, Eluard conhecera Dias desde 1938, na casa de Picasso, e fora visitá-lo no seu ateliê. Admirou muito uma tela de 1939, A Mulher na Janela, por sua displicência poética e tropical. O status diplomático do pintor, adido na Embaixada do Brasil em Vichy, lhe valia uma certa proteção, mas não o livrou de uma estadia compulsória na Alemanha em maio e junho de 1942, que ele teria de bom grado evitado. Em 27 de abril de 1942, um pouco antes desta ida forçada, Eluard endereçou a Dias uma carta de recomendação destinada a Alfred Barr, diretor do Museu de Arte Moderna de Nova Yorque, porque o pintor desejava ir aos Estados Unidos tão logo se liberasse. Ao retornar da Alemanha, Dias permaneceu em Marselha, onde recebeu de Eluard, em julho, uma nova carta cordial. Nesse entretempo, Eluard havia enviado, em 31 de outubro de 1942, aos cuidados da embaixada do Brasil em Vichy, o poema Em Seu Lugar, destinado a uma exposição das obras de Dias em Lisboa, e publicado em junho de 1943 no número 20 da revista Confluências, de Lyon. Estes seis versos formam um quadro em que a noite se mistura ao dia dando uma impressão de calor tropical e de imobilidade. Uma mulher, em silhueta, que “tomou lugar na terra”. Ela está aí, “em seu lugar”, para florescer e amadurecer. Trata-se, talvez, da figura feminina cuja cabeça, sob um círculo luminoso, enfeita-se de duas estrelas em Os Noivos, de 1942, ou então de A Mulher na Janela, de 1936. O poema se aproxima da
Detalhe: Mulher na Janela, Paris, 1939 – óleo sobre tela – 92 x 72cm
de uma visão
Enigmas
A obra de Cícero Dias desafia explicações que o vinculem a algum tempo ou lugar, com imagens oriundas do inconsciente coletivo
C
Passa Tempo, Paris, 1939 – óleo sobre tela – 160 x 60cm
nhuma moderação. Brasil ou Europa? Rio ou Paris? O Brasil sonhando ser europeu, o Rio sonhando tornar-se parisiense. Sonhos entrelaçados, sem terem nada de típico nem, indubitavelmente, de regional. Genealogia moderna, então? Dias, satélite das constelações das vanguardas? Tampouco. Outra decepção, outro silêncio de interpretação. As comparações valem pouco, porque se distanciam demais do provável. Assim, são os estudos de nus femininos e de animais, desenhos atados em espirais enlaçadas, simplificações no registro da flexibilidade e do esticamento. É verdade que elas podem lembrar os croquis à tinta de Gaudier-Brzeska dos anos 13 e 14. Estes croquis não interessavam a ninguém nos anos 20, não foram nem reproduzidos nem expostos, só ficaram conhecidos há um quarto de século. Inútil supor qualquer parentesco. Mesma observação e mesma conclusão a propósito da expressão, levemente russa, um pouco Malevitch, um pouco Larionov, de figuras geometrizadas pela ampliação dos volumes – válidas, também, para Fernand Léger. Uma razão para isso: a arte moderna européia – cubismo, suprematismo, futurismo, vorticismo, abstrações – permanece desconhecida, senão inacessível, no Brasil, nestes anos. Segundo o testemunho de Dias, uma única revista chegava regularmente de Paris, revista oficial que só levava em conta as manifestações artísticas oficiais, Salões dos Artistas Franceses e da Sociedade Nacional. Para a nova arte, quase nada, apenas conversas sem nenhuma fotografia a comprovar – a conversa de Cendrars, por exemplo, faDagen miliar de Picasso bem como de De-
REPRODUÇÃO
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Abaixo, Contínuo, Paris, 1952 – óleo sobre tela – 97 x 130cm
ícero Dias é inexplicável. Nenhuma história explica suas obras dos anos 20, e o pintor não se explica sobre a gênese delas. Elas aí estão, após decênios, tais quais foram inventadas, tais quais foram expostas no Rio, não menos enigmáticas, não menos destacadas de sua época, de seu lugar de nascimento. Dito de outra maneira: elas não se assemelham a nada conhecido. De um golpe, derrotam geografia, cronologia e genealogia. Geografia. Dias nasceu em Pernambuco. Viveu e trabalhou no Rio, no centro de um círculo composto de poetas e pintores brasileiros. Ele se interessou pelos trabalhos do Congresso Afro-Brasileiro de 34, cujo título diz bem a que vem. Primitivismos na obra de Dias, reminiscências da África ou da Amazônia, alusões arcaicas ou arcaizantes? Nenhum traço. Do Brasil, as aquarelas conservam apenas signos esparsos e levemente pitorescos, palmeiras, baías, orlas, linhas serpentinas de algumas montanhas com perfil de dunas. Veêm-se, menos ainda do que as balustradas de pedra, os automóveis, os transatlânticos, as guirlandas de lâmpadas e as linhas elétricas, traços de uma vida citadina e moderna cujo charme Dias, então, degustava sem ne- Philippe
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máticas bem distribuídas sobre a folha de maneira a realçar em toda a superfície para que se aceite uma tese tão elementar. De vez em quando, talvez uma construção extravagante, uma quimera, devam um pouco da sua estranheza a estas experiências – e apenas isso. Mas e o resto – e por que não – todo o resto? E os sainetes grotescos, o fantástico dos mascarados, os mistérios destas imagens sem lendas, sem símbolos, sem referência? Mas, e estas loucuras charmosas e herméticas que a psicanálise e mesmo o esoterismo não ajudam a decifrar? E o onirismo incontido que os surrealistas consideraram irmão do deles quando Dias veio a Paris, em 1937? Enigmas, enigmas e mais enigmas. Há outros na história da arte no século 20, esta história que se faz e se desfaz sem cessar, ao sabor das ressurreições e dos desmoronamentos. Há, por exemplo, esta de Chaissac, que fascinou Dubuffet, e aquela de Aloísio, outro meteoro. Onde encontraram, em que profundezas, as imagens que souberam inventar? Dias gosta de se referir, a este propósito, a uma espécie de pré-história da arte, comum a todos, onde todos beberam na fonte, lago subterrâneo das origens, reservatório enterrado de mitos, de obsessões, de fantasmas e de visões. Cabe aos artistas descobrir as ressurgências que este Léthe alimenta, cabe a eles tornarem-se vedores e exploradores. Por falta de melhores opções, aceitar, então, a hipótese poética aberta à investigação, e admitir simplesmente que Cícero Dias, tendo penetrado bem antes neste mundo obscuro, trouxe inesquecíveis imagens de sua curta viagem ao centro do sonho. REPRODUÇÃO
launay. Além disso, Cendrars só vem ao Brasil em 1927 e, Dias precisa bem isso, quase sem bagagem, logo, sem essas imagens que teriam sido tão preciosas para os jovens artistas brasileiros. Um outro detalhe: a primeira exposição brasileira dos pintores ditos da Escola de Paris acontece no Recife, Rio e São Paulo em 1930, dois anos depois da exposição de Dias. É preciso, além do mais, desconfiar dos paralelos e das pesquisas sobre influência. Existem aquarelas e tintas de Dias em que se observam perfis e rostos de linhas ondulantes e eróticas, com desproporções abundantes de elipses incongruentes. Algumas lembram os retratos e nus que Picasso desenhou e pintou de Marie-Thérèse, mas em Boisgeloup, em 1932 e 1933. Neste aspecto, a cronologia se mostra impiedosa. E não deixa por menos quanto ao desejo de comparar as fantasias de Cícero Dias às visões de Paul Klee, contemporâneas – e pouco vistas na própria Europa – ou posteriores. Bastaria, se persistisse dúvida, referir-se aos críticos que saudaram a revelação de Dias: não souberam o que dizer, não projetaram, por vacilação, contrariando o hábito, nenhum nome, nenhuma comparação que reduzisse a singularidade da obra a um sistema de referência. De um deles, em suas frases, essa confissão de impotência: “Cícero Dias pintou quadros para alimentar seu desejo de pintar. E apenas para abrandar seu temperamento”. Abrandar seu temperamento? Na verdade, seria de supor o inverso, que o pintor tudo fez para exaltá-lo, levá-lo ao paroxismo de intensidade e extravagância. Ele não o nega, aliás. Evoca bebidas misturadas com efeitos virulentos e admite mesmo, sem muito acrescentar, a possibilidade de haver, então, experimentado alguns alucinógenos. Seria a explicação? Evidente que não. As aquarelas são complexas demais, suas composições bem elaboradas, as dissonâncias cro-
Entropia II, Paris, década de 60 – óleo sobre tela – 55 x 46cm Abaixo, O Sono, Rio de Janeiro, 1928 – aquarela sobre papel – 51 x 51cm
Extraído do catálogo da exposição de Cícero Dias na galeria Marwan Hoss, Paris, de 8 de março a 7 de maio de 1994. Tradução de Heloísa Arcoverde.
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OLIMPIA MANGIAROTTI
Cronologia
Foto atual de Cícero Dias, aos 94 anos
1907 – Cícero Dias nasce, no engenho Jundiá, município de Escada, Pernambuco. Sua tia Angelina inicia-o nos estudos primários e no gosto pelo desenho e pintura. 1925 – Começa o curso de arquitetura na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. 1928 – Realiza a sua primeira exposição, no hall da Policlínica Geral. Seus quadros despertam entusiasmo nos modernistas e escândalo nos conservadores, sofrendo ameaças de destruição. No mesmo ano, expõe em Escada e abandona a Escola de Belas Artes. 1930 – Expõe em Nova York, junto a Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Guignard, Di Cavalcanti, Ismael Nery e outros. 1931 – Expõe Eu vi o mundo... ele começava no Recife, painel de 15m x 2,50m, na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. O painel causa polêmica e tem três metros cortados por vândalos. 1933 – Ano de edição de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, com ilustrações de Cícero Dias. 1934 – Organiza, com Gilberto Freyre, o I Congresso Afro-Brasileiro. 1937 – Participa do primeiro Salão de Maio, em São Paulo, e parte para Paris, a convite de Di Cavalcanti, para fugir do Estado Novo. 1939 – Durante a guerra, freqüenta o ateliê de Picasso, na rue des Grands Augustins. 1942 – É feito prisioneiro dos alemães em BadenBaden, depois trocado em Portugal pelos alemães detidos no Brasil. Volta clandestinamente à França, onde se torna
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o guardião do poema Liberdade, de Paul Eluard, até o dia da invasão da zona livre pelos alemães, quando cruza a fronteira com a esposa e de Lisboa faz o poema chegar a Roland Penrose, em Londres. O poema seria jogado, mais tarde, de vários pára-quedas da Royal Air Force britânica, sobre a área ocupada. 1943 – Mantém relações estreitas com artistas portugueses, entre os quais Almada Negreiros. Publica trechos do romance autobiográfico Jundiá, ainda inédito. 1944 – Litografias de Cícero ilustram a obra Ilha dos Amores de Camões, edição Montalvor, Lisboa. 1945 – Picasso dedica a sua peça de teatro O Prazer Agarrado Pela Cauda a Cícero, apelando para que volte a Paris. Cícero volta e liga-se à Escola de Paris, grupo de artistas abstratos mais em voga na época. OLIMPIA MANGIAROTTI
Foto de um dos mais recentes quadros de Cícero Dias
ALEXANDRE BELÉM / TITULAR
Cícero e a Rosa dos Ventos, desenhada para a Praça do Marco Zero
1946 – Segundo o crítico Antônio Bento, inaugura o movimento construtivista no Brasil, quando expõe na galeria Denise René, Paris. 1948 – Pinta abstratos nos muros do Ministério das Finanças, Recife. Viaja pelo Nordeste com Rubem Braga, Orígenes Lessa, Mário Pedrosa e José Lins do Rego. 1949 – Participa da exposição “As grandes correntes da pintura contemporânea”, no Museu de Lyon, ao lado de Chagall, Klee, Manet, Matisse, Miró, Mondrian, Picasso, Van Gogh e outros. 1950 – Fundação do Congresso da Escola de Altamira, da qual faz parte. 1953 – Cícero obtém de Picasso a autorização para expor Guernica na II Bienal de São Paulo. 1954 – Incêndio no seu ateliê em Paris. 1959 – Jean Boghici declara que o painel Eu vi o mundo... é a Guernica brasileira. 1965 – Sala Especial na Bienal de São Paulo: grande retrospectiva da obra de Cícero Dias. 1976 – Filme sobre Cícero Dias realizado em Paris, por Luiz Miranda Correia. 1978 – Filme sobre a vida e obra de Cícero Dias, com texto de Rubem Braga, realizado pela Rede Globo de Televisão, Rio de Janeiro. 1982 – Participa do III Congresso Afro-Brasileiro no Recife. Suas pinturas abstratas nos muros do então Conselho Econômico do Estado de Pernambuco são restauradas. Homenageado com placa de prata na Secretaria da Fazenda, no Recife. Tese
sobre a vida e obra de Cícero, em São Paulo, por Janira Bastos. 1988 – Seus dois painéis contando a vida de Frei Caneca são instalados na Casa da Cultura do Recife. A obra Eluard, Picasso e a Pintura, de Jean-Charles Gateau, cita Cícero como um dos artistas que Picasso admirava. 1991 – Inaugura um mural no metrô de São Paulo (3m x 20m). 1996 – É inaugurada a exposição do painel Eu vi o mundo... na Unesco, com a presença do presidente Fernando Henrique Cardoso. 2000 – É autor da principal obra da praça do Marco Zero, cujo projeto de reforma assumiu o título do seu painel Eu vi o mundo... ele começava no Recife (1931). * A partir de 1930, Cícero passa a expor no Brasil e internacionalmente com freqüência. Para esta cronologia foram escolhidas as exposições mais significativas, como a de 46, em Paris, que teria sido a primeira de arte construtivista por um brasileiro; ou a de 49, no Museu de Lyon, primeira em que expôs ao lado de Picasso, Miró e outros.
Para saber mais: http://www.cicerodias.com.br Cícero Dias, de Antônio Bento e Mário Carelli. Edição especial do Banco Icatu. Anos 20, de Cícero Dias. Index, Rio de Janeiro, 1993
MEMÓRIA
Há 150 anos nascia o pintor que retomou o paisagismo realista dos holandeses e revitalizou a arte pernambucana
Telles
Júniorpossuía a paisagem
REPRODUÇÃO / MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO
A
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filha do paisagista pernambucano Telles Júnior (18511914), Rachel Telles, uma vez escreveu sobre a cheia do rio Capibaribe que inundou a estrada dos Remédios em julho de 1896: “Pelas doze horas do dia o sino do campanário da igreja dos Remédios dera um repique demorado, assinalando a alegria em virtude das águas começarem a baixar. Quando o papai viu os parapeitos das janelas aparecendo, tomou a máquina fotográfica e bateu as chapas”. Telles Júnior viveu para registrar Pernambuco. Técnico e detalhista, reproduziu com fidelidade paisagens de matas densas e estradas de barro úmido, a quietude de um tronco de árvore caído e a força dos ventos e das águas. Foi para o fim do século 19 o que os pintores holandeses haviam sido para o século 17: o retrato de uma época e de uma região. “Dele saiu toda uma geração de pintores no início do século 20 voltados para o regionalismo paisagístico, como Baltazar da Câmara e Mário Nunes”, diz o professor de Estética e História da Arte da Universidade Federal da Paraíba Gabriel Bechara. Ele lembra que o legado de Telles Júnior foi decisivo para a formação da Escola de Belas Artes de Pernambuco, nos anos 40. Ainda nos anos 20, mas avessos ao padrão realista de Telles Júnior, modernistas como Joaquim e Vicente do Rego Monteiro e Cícero Dias seguiram rumo distinto e alimentaram o debate sobre a representação da realidade na arte. Joaquim Cardozo foi taxativo: “A arte de Telles Júnior não surpreende”, e para Gilberto Freyre era este o seu maior defeito: suas pinturas eram de reprodução, e não de interpretação. Ele próprio, Freyre, aluno de Mestre Telles Júnior, aos sete anos, lembrava-se com humor dos gritos que ouvia a qualquer espontaneidade: “Igualzinho ao modelo, seu menino!”
Alexandre Bandeira
REPRODUÇÃO / MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO
Professor autoritário, Telles Júnior teria inconscientemente estragado quadros de mais de um discípulo, como afirmou Lucilo Varejão, e Gilberto Freyre dá conta de que “a todos se acrescentava como pintor, matando possíveis começos de personalidades diferentes da sua”. De tão fiel à realidade, fixou Pernambuco em quadros que logo eram identificáveis à terra, como exclamou Oliveira Lima, batendo os olhos em duas telas do pintor: “Isso é pernambucano!”, antes mesmo de reconhecer-lhes a autoria. A luminosidade do céu de Pernambuco, como descreveu o historiador, “que não chega a ser turva, mas que é raramente deslumbrante”, Telles Júnior a reproduziu com o mesmo domínio com que captou o verde das matas e do mar e o vermelho do barro. Para o professor Gabriel Bechara, o paisagismo de Telles Júnior estava vinculado a um programa republicano de afirmação nacional, de redescoberta da paisagem brasileira, ao qual o artista tinha grande afinidade. Já o pintor José Cláudio acredita que Telles Júnior via a paisagem pernambucana com olhos de quem tinha acabado de nascer. Esse deslumbramento, José Cláudio o explica no livro Artistas de Pernambuco, em passagem que comenta a infância de Telles Júnior. Filho de marinheiro, o mar era para ele
local de trabalho, de esforço de homens e máquinas. A terra era a ancoragem desejada. “Ele atacava a paisagem e a possuía com a violência com que depois de prolongada abstinência os marinheiros possuem as mulheres do cais do porto”. O mar era uma cidade, e a terra, um lugar tranqüilo. Nos quadros de Telles Júnior, raras eram as figuras humanas ou os animais; antes, viam-se vestígios da presença do homem: as estradas marcadas pelo carro de boi, a casa-grande. A propósito, tanto Gilberto Freyre quanto Joaquim Cardozo afirmaram se tratar de uma deficiência técnica do pintor, para quem o desenho da figura humana não seria o forte. “Não era Telles mestre nem da arte de viver cordialmente entre os homens, nem da de retratá-los em traços nítidos”, escreveu Freyre no prefácio às memórias de Telles Júnior, publicadas na Revista do Arquivo Público, de dezembro de 1974. Professor impaciente. Homem do mar apaixonado pela terra. Pintor insociável. Quanto mais se analisa a obra de Telles Júnior, mais se conhece a sua personalidade. As Memórias, o caderno de lembranças da sua filha, Rachel Telles (da reserva técnica do Museu do Estado de Pernambuco), e os jornais da época contam a vida deste artista que foi para a sua arte um operário, disposto a trabalhar pesado e suar por uma geração de novos pintores.
Ventania, 1902 – óleo sobre tela – 47,5 x 59cm
Na página anterior, Tronco caído, sem data – óleo sobre papelão – 42 x 23,5cm
O primeiro paisagista pernambucano Há uma lacuna na pintura pernambucana que vai dos holandeses até a geração de Telles Júnior. Neste intervalo de dois séculos, o paisagismo praticamente sumiu, sendo preterido por imagens religiosas, ex-votos e retratos da aristocracia. Em Artistas de Pernambuco (1982), José Cláudio sugeriu que o legado paisagístico teria sido escamoteado por razões religiosas e políticas. “Não era de se esperar que depois de Guararapes os vitoriosos (...) abrissem espaço para a pintura dos holandeses”, escreveu. Exemplos de peças votivas – e que celebravam a expulsão dos holandeses – foram três painéis pernambucanos que serviram de estudo para o catarinense Vítor Meireles (1832-1903) pintar o famoso A Batalha dos Guararapes (1869). Mas, embora de importância histórica, eram considerados pelo próprio Meireles “de nenhum merecimento artístico”. Tanto que Gilberto Freyre nem registra o nome
dos autores, quando conta o episódio, no seu livro Vida, Forma e Cor (1962). Neste livro, Freyre ainda lista alguns “pintores de assuntos piedosos” do Recife: Aristides Tebano (século 17); João de Deus Sepúlveda, Francisco Bezerra e Luís Alves Pinto (século 18); Sebastião Canuto da Silva Tavares e Arsênio Silva (século 19). Nenhum destes alcançou importância comparável à que Telles Júnior veio a ter. No artigo As Artes em Pernambuco (revista Illustração Brasileira, junho, 1924), José Campello identificava o ano de 1879 como o “das primeiras criações sérias da arte pictórica em Pernambuco” – excluídos os holandeses e Arsênio Silva (1833-1883), que apesar de recifense passou a vida no Rio de Janeiro. Referia-se, principalmente, aos retratos do francês Daniel Bérard e às paisagens de Telles Júnior.
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Operário da arte Marinha, sem data, – óleo sobre madeira, – 22,3 x 12,7cm
J
erônimo José Telles Júnior nasceu no Recife, em 2 de agosto de 1851. Seu pai era marinheiro. Até os oito anos, viveu mais sobre o oceano do que sobre a terra, acompanhando o pai em suas viagens. Um dos primeiros registros de suas Memórias narra com orgulho a aventura de uma tempestade a bordo do brigue Prazeres: “Ah! como o invejo [o pai] com o seu chapéu de duas palas gotejando água, com o semblante enérgico queimado pelo sol, fitando o vagalhão que se aproximava furioso dizer com calma ao homem-do-leme: ‘Agüenta o leme!’. O vagalhão passava lavando as trincheiras do Prazeres, que o cavalgava fazendo ringir toda sua mastreação”. Teria abraçado a carreira do pai com prazer; mas o pai, embora o tivesse apresentado ao mar, não quis a mesma vida para o filho. O futuro estava no comércio. Quase um século mais tarde, em 1970, a sexta filha do pintor, Rachel Telles, aos 84 anos, escreveria no seu próprio caderno de memórias: “Meu avô preferia ver meu pai no leme, salpicado das espumas do mar, comandando tripulações. Uma profissão de futuro certo, como afirmava ser, em vez de, com a palheta, a espalhar tintas nas telas”. Não se sabe por que as duas versões diferem; mas é evidente que o comandante Jerônimo descrito pela neta teria respondido melhor aos desejos do filho. Outro exemplo: por duas vezes lhe foi confiada uma posição de responsabilidade sobre um
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barco: como maquinista do vapor Maria Angélica e como comissário do vapor George Belle. Rachel registrou que o pai teria merecido louvores do avô pelo primeiro serviço; Telles Júnior lamentou a severidade de Jerônimo, no segundo. “O amor pela Arte prevaleceu”, escreveu Rachel sobre o pai. Mas, nas Memórias de Telles Júnior, a pintura e o desenho aparecem aos poucos, pontuando uma infância apaixonada pelo mar. Aos sete anos, entrou na escola do professor Máximo, em Pernambuco, que, na hora do recreio, deixava os meninos desenharem calungas num grande livro. Por volta dos dezessete anos, em Montevidéu, fugiu de uma quarentena forçada a bordo de um barco com suspeita de cólera, passando umas quatro horas clandestinas em terra, onde visitou uma casa de pinturas e comprou uma caixa de tintas aquarelas. Meses depois, cursava aulas de desenho no Arsenal da Marinha da Corte no Rio de Janeiro, e visitava o Liceu de Artes e Ofícios, onde o impressionaram as paisagens do comendador Agostinho da Motta. “Nas minhas horas vagas, trabalhava constantemente para imitá-lo”, escreveu. O com. Motta foi talvez o seu primeiro mestre, pois desde então deixou de querer o mar e passou a querer a tinta. Mas, aos dezoito anos, e sem dinheiro, só restava ao rapaz trabalhar como caixeiro em Porto Alegre, onde morava a sua família na época. É por esse tempo que Rachel registra o encontro do pai com o pintor italiano De Martino, encarregado de embelezar a loja maçônica Luz e Ordem.
política. Havia militado pela República, no entanto, e embora Gilberto Freyre tenha notado a frieza com que Telles Júnior descreveu as providências tomadas quando da mudança de regime; uma passagem do caderno de Rachel pinta um Telles Júnior mais entusiasta: “Tenho a mais nítida lembrança de um carro alegórico muito bonito, que saiu lá de casa, levando o Heitor [irmão de Rachel], que foi uma criança muito linda, de belos cabelos loiros e cacheados, sentado no trono da República, representando a mesma”. Telles Júnior havia organizado o carro, que se completava com um “jovem muito moreno de compleição forte, olhar parado e audacioso, apontando para a República. Estava fantasiado de índio, representava o Brasil. (...) Num plano mais afastado viam-se soldados, representando a força heróica da Pátria Brasileira”. À noite do mesmo dia, Telles Júnior teria distribuído vinho entre os convidados na sua casa, “risonho e feliz”. Em 1891, deixou o Liceu de Artes e Ofício. Fora da política e da Sociedade, magoado com os ex-colegas, tornou-se um “homem insociável (...) dedicado à família, bem longe e muito longe dos ingratos”. Quando escreveu as Memórias, em 1985, tinha acabado de fechar o ateliê na rua Nova, que sempre tivera dificuldades em manter. Terminou as Memórias dando nome aos mestres com quem aprendeu o ofício. Aurélio de Figueirêdo, cujo primeiro quadro em Pernambuco foi um retrato do primogênito de Telles Júnior, Benevenuto; o português Barradas; o alemão Augusto Roth; o francês Delaire. Ensinou a muitos, e a alguns que viriam a negar a condição de discípulos. Grave ofensa para quem teria dito que “gostaria muito de deixar substitutos para o meu lugar (...) que amassem a pintura como eu venho amando”, como está no caderno de Rachel, também pintora. (AB)
REPRODUÇÃO / MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO
REPRODUÇÃO / MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO
Aos dezenove e de volta a Pernambuco, consolidou a vida no comércio, e três anos depois casou-se com a prima legítima Laura. Foi morar na rua Nova, nº 14, onde abriu seu primeiro ateliê, no primeiro andar. Mas, “o tempo de que dispunha, como empregado que era da casa bancária de Augusto F. D’Oliveira & Cia., era quase nenhum”, escreveu. Já fazia, então, trabalhos de gravuras de frontispícios de música, e já tinha seus discípulos. Dedicava também parte do tempo à outra paixão menor, a fotografia, “ancilar da outra: a de pintar do natural”, como notou Gilberto Freyre. Mais tarde, o crescimento da família – oito filhos – o faria mudar-se para a estrada dos Remédios, na casa que ajudou a construir e onde ficou até o fim da vida, e que foi imortalizada nos seus quadros. Então foi inaugurado o prédio do Liceu de Artes e Ofícios (1881), a cargo da Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais de Pernambuco. As Memórias dedicam longo capítulo ao Liceu, que significou para o pintor as maiores lutas e os maiores desgostos. Logo estava associado ao Liceu e ensinando desenho, substituindo o português Barradas. Mostrou-se disposto a suar pela instituição, mas, desde o começo ressentiu a qualidade dos companheiros. “Pouco a pouco (...) ia me convencendo de que me achava no meio da escória dos operários de Pernambuco.” Trabalhava pesado, organizando a biblioteca – “embora as provas disto (...) muito propositadamente tenham desaparecido” – montando exposições, trabalhando o dia inteiro – “não faltavam consócios (...) que sempre apareciam à noite, eram engenheiros de obras feitas”. Criou inimigos, chegou a andar armado. Travou polêmicas nos jornais. Em 1890, no aniversário da Sociedade, montou uma exposição que recebeu críticas do Sr. Leônidas e Sá, redator-chefe da Gazeta da Tarde. No dia seguinte à inauguração da mostra, o jornal resenhava sobre a falta de entusiasmo do público pernambucano para com a arte, considerava frios e rasos os discursos da diretoria (então encabeçada por Telles Júnior), e criticava a participação de quadros de alunos, “muito rudimentares”, na mostra. A julgar pelas lembranças da filha, não deixava se abater em frente à família. “Papai parecia sempre alegre e satisfeito no desempenho de todos os seus encargos”, escreveu Rachel. Chegou a ser deputado ao Congresso Constituinte de Pernambuco, apesar de não se apegar à
Cheia dos Remédios, sem data – óleo sobre tela – 45 x 70cm. O menino trepado no cajueiro (canto inferior esquerdo) pode representar um dos filhos de Telles Júnior buscando refúgio das águas, como conta Rachel Telles
AnĂşncio
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MARCO ZERO
A invasão das guitarras Traças musicais, os compositores populares estão devorando os poetas literários dos livros didáticos do ensino médio, no Brasil
“
U
m intelectual brasileiro ia começar a ler Camões quando a banda passou e...” Esse início de piada que, segundo o poeta Bruno Tolentino, numa entrevista à Veja, provocava nos portugueses “gargalhadas logo à primeira frase”, mostra a estranheza que causa lá fora a presença cada vez maior de letras de MPB ao lado de textos dos melhores poetas brasileiros e portugueses, nos manuais de Literatura, Redação, gramáticas e demais obras sobre a linguagem, dirigidas ao ensino médio. Seria esse estranho método fruto de um conluio comercial entre a indústria do
disco e a do livro didático? Isso não sei. Apenas desconfio de que se trata de um fenômeno ou aberração tipicamente brasileiros. Resolvi, em 1991, fazer um levantamento estatístico da freqüência de letras de música em cerca de cinqüenta títulos. Após quatro meses tinha em mãos um relatório-reportagem consistente. Daria uma página inteira de jornal, mas só muito tempo depois é que Celso Marconi o publicou no Suplemento Cultural da CEPE, mas sem uma parte importante, os gráficos estatísticos. Não guardei nem os originais nem a parte publicada, mas lembro-me, muito bem, de que de todos os textos “poéticos” incluídos, num período que ia do século
Alberto da Cunha Melo 64 Continente Multicultural
16 ao século 20, de José de Anchieta a João Cabral de Melo Neto, 15% das citações eram de letras da MPB. Para um fenômeno que se manifestou no início da década de 80, com uma coleção de livros paradidáticos, vendida nas bancas de revistas, sob o título (creio) de “Literatura Comentada”, onde Gilberto Gil e Carlos Drummond de Andrade eram colocados num mesmo saco, aquele percentual pareceu-me impressionante. Ele incidia sobre toda a história da poesia brasileira. Mas foi na década de 60, quando Vinícius de Moraes afastou-se da poesia e entregou-se de corpo e alma à música, com absoluto sucesso, e depois promoveu, em suas entrevistas, os grandes compositores ao status de melhores poetas nacionais, que a confusão se estabeleceu. Na pesquisa, nenhuma surpresa: o compositor mais citado como poeta foi Chico Buarque de Holanda. Em segundo lugar, claro, o esperado Caetano Veloso. Chamou-me a atenção o fato de que a música popular tenha entrado nos livros didáticos como poesia e a poesia popular estivesse ausente. Se as editoras têm a intenção de lutar contra o que possivelmente consideram um preconceito não classificar os compositores populares como poetas, caem no preconceito de achar que a poesia popular não é poesia. Na época de minha pesquisa estavam ausentes também as letras de forró, de xote, do xaxado, do baião e do frevo. Preconceito contra os nordestinos por parte da indústria do livro didático, toda ela concentrada no Sudeste? Eu nunca me preocupei verdadeiramente com essa discussão em torno das diferenças entre poema e letra de música. Acredito, e neste ponto estou com o velho Ezra Pound, que defendia uma poetry as speech, que “o que conta é o bem escrever”. Se eu pegasse um pouco de Ernst Cassirer e
Olavo de Carvalho, e os temperasse com método aristotélico, poderia tentar temerariamente uma definição de poesia. Poderia dizer: a poesia pertence ao gênero linguagem simbólicoverbal e sua diferença específica em relação a outras artes verbais é que se expressa predominantemente de forma descontínua-conotativa. O conceito de poesia, com essa extensão, excluiria o conto, a crônica, a novela e o romance, que são linguagens contínuas-conotativas, mas incluiria as letras de música, que se expressam descontínuo-conotativamente. Como se vê, há sempre uma possibilidade de malabarismos conceituais quando se discute problemas da Arte. E das artes a poesia é a mais escorregadia quando se trata de definições. Com outra significação poderíamos considerar, na terminologia de Wittgenstein, a poesia um “conceito aberto”. É mais fácil fazê-la que defini-la. Perdeu-se um tempo enorme procurando as diferenças específicas entre poesia e prosa, e creio que não vale a pena gastar mais tempo e tinta com essa discussão sobre se letra de música é poema ou não. Platão, nos Diálogos, procura destacar, dos gêneros de criação, uma parte “relativa à música e aos metros”, a que chamou conjunto e, a este, chamou de poesia. Teria pensado nos rapsodos do tempo de Homero ou nos líricos andarilhos, com suas cítaras, como Simônides? No século 3 a.C., os alexandrinos rebelaram-se contra a melopéia, e separaram a poesia da música. Na Idade Média, poesia e música voltaram a dar-se as mãos, mas veio o Renascimento e houve nova separação, até hoje. Creio que os editores brasileiros tentam juntar as duas novamente para ganhar mais dinheiro. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
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HISTÓRIA Sumaca segundo gravura anônima do Museu da Marinha, em Paris
A aparição
da
De como um tipo de barco, trazido pelos holandeses, foi adaptado aqui e, por mais de 200 anos, navegou no litoral brasileiro, cumprindo um papel econômico
A
partir da ocupação holandesa, ções com o Reino, permitindo integrar os percurcai um silêncio definitivo sobre sos costeiro e oceânico, dispensando as operações os caravelões da costa. Nas fon- de baldeação da carga, sempre arriscadas face à vites luso-brasileiras, só aqui e ali gilância dos iates e chalupas inimigas. Quando a aparece algum retardatário. O navegação de cabotagem renascer no governo nascaravelão desaparecera do Nor- soviano, o caravelão terá sido abandonado em favor deste. Os anos de guerra naval de uma embarcação de origem neerlandesa, a smak, haviam-lhe sido nocivos. Mais exposta e vulnerá- que frei Calado ainda designará por “barcos rasteivel do que a navegação oceânica, a cabotagem terá ros”, mas que foi logo aportuguesada em ‘esmaca’ sido decimada pelos cruzeiros neerlandeses. Ade- e, depois, em ‘sumaca’. mais, nas condições da guerra, a própria caravela Aporte da civilização material dos conquisatendia melhor à dispersão geográfica dos peque- tadores do Nordeste, onde ela se instalará comodanos portos onde, perdido o Recife, os luso-brasilei- mente ao longo de duzentos anos, a sumaca predoros procuravam, a duras peminará no tráfego costeiro da nas, manter suas comunica- Evaldo Cabral de Mello região, para daí ganhar todo 66 Continente Multicultural
sumaca o litoral brasileiro, do Ceará ao São Francisco. Datam da restauração de Pernambuco as primeiras referências a este tipo de embarcação. A relação de Francisco de Brito Freyre alude ao papel desempenhado no bloqueio do Recife por cinco delas, “vindas dos Portos de Pernambuco”, isto é, dos portos do sul da capitania sob o controle do exército restaurador. A narrativa também refere, entre os barcos inimigos, patachos e sumacas encontrados em Itamaracá e na Paraíba. Outra relação registra duas sumacas apresadas pela armada de Pedro Jaques de Magalhães. Terceira fonte consigna a captura de uma sumaca de mantimentos pertencentes aos holandeses. Salta à vista a circunstância de já então se haver aportuguesado, na ortografia definitiva, o vocábulo neerlandês ‘smak’, o que pressupõe o transcurso de certo tempo desde a sua transplantação para o Nordeste. Brito Freyre também registra que as primeiras haviam sido trazidas no bojo das naus neerlandesas, sendo montadas aqui. De Pernambuco, a sumaca ganhou a costa leste-oeste no trajeto entre o Ceará e o Maranhão; e os percursos da Bahia às capitanias de baixo. Em finais de seiscentos, ela assegurava as comunicações marítimas entre o Recife e a Bahia ou entre a Bahia e Sergipe, viagem em que gastavam menos de três dias, ou ainda entre a Bahia e Penedo. Um documento setecentista do arquivo da casa de Cadaval afirma que o tráfego marítimo entre o Rio e Santos era feito “em sumacas e outras embarcações semelhantes, incapazes para navegação de tanta importância”, donde a freqüência dos naufrágios, arribadas e apresamentos por corsários, frente aos quais eram especialmente indefesas. A linha RioSantos seria, aliás, bem lucrativa, transportando anualmente cerca de 10.000 pessoas e recebendo 40 contos de frete. Do Recife e da Bahia, graças ao
tráfico negreiro, a sumaca alcançou a costa ocidental da África, se é que os holandeses já não a haviam levado originalmente para lá. Em meados do século 18, uma investigação oficial transmitida pelo governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, com data de 12.11.1758, constava as condições penosas a que eram submetidos os escravos transportados nessas embarcações. Os regulamentos eram sistematicamente desrespeitados, a ponto de uma sumaca que deveria conduzir 237 indivíduos transportar 368. Os africanos acomodavamse pela tolda, castelo e convés, ademais do porão onde se armava um bailéu, “em que vêm os escravos, sem mais ar que o das escotilhas.” Ao cabo de dois séculos nas nossas águas, perdera-se a memória da sua origem holandesa. O almirante francês, barão de Roussin, que realizou sua expedição hidrográfica ao Brasil de 1819 a 1820, quando se valeu do conhecimento e da experiência dos pilotos e práticos brasileiros, mencionou-a, sem aludir à procedência, pela expressão inglesa smack, a despeito de a língua francesa já conhecer a voz sémaque. Segundo Roussin, tratava-se de embarcação muito encontradiça no litoral brasileiro, assemelhando-se, na mastreação e velame, aos brigues-escunas do seu país. Seu compatriota, Boileau, cônsul no Recife, ao escrever a palavra exótica em ofício ao Quai d’Orsay, explicava tratar-se de embarcação local, um bâtiment du pays. Outro francês, certo Dupré Ebrard, que um século antes redigira uma Instruction hydrographique de la côrte du Brasil (1711), anotou haver topado, na altura dos Abrolhos, uma soúmaq, “um navio português de fabricação brasileira”. Restrita aos percursos da cabotagem do mar do Norte à costa da França, a sumaca não foi utilizada em Portugal, tanto assim que, em trânsito pelo Recife, Sá de Continente Multicultural 67
Debret – Vista de Olinda, com sumaca em primeiro plano
Bandeira deu-se ao trabalho de descrevê-la no seu diário, comparando-a ao iate, que era então a principal embarcação utilizada entre Lisboa e o Porto. Anos antes, Henry Koster contentara-se com mencioná-la, sem entrar em detalhes, dispensáveis para o leitor inglês, familiarizado com aquele gênero de barco. Um historiador da cabotagem nas ilhas britânicas, Robert Siper, observou ser a sumaca a grande esquecida dos tempos da navegação à vela. “Descreveram-se devidamente os clipers oceânicos, as escunas mercantes e a maioria dos numerosos tipos locais, mas as sumacas ficaram esquecidas, já que não batiam recordes de travessia nem eram típicas de qualquer localidade”. Algo semelhante ocorreu entre nós, com a agravante de que o seu desaparecimento em meados do século 19 verificou-se antes que a fotografia lhe houvesse captado o perfil, como na costa da Escócia, onde, havendo tardiamente capitulado frente aos concorrentes, houve tempo de se reunir abundante iconografia. A sumaca, que se espalhou por quase todo o norte da Europa, do Báltico ao Cantábrico, originara-se no litoral dos Países Baixos, em função de cujas características físicas de pouca profundidade e extensa rede hidrográfica, fora construída com vistas a integrar a navegação marítima e a fluvial. 68 Continente Multicultural
A sumaca inscreveu-se em toda uma tradição da arquitetura naval holandesa, a mesma que produziu a fluyt ou o koff, barcos de fundo chato e grande capacidade de carga, exigências comerciais a que sacrificavam a elegância do casco, a rapidez e a maneabilidade. As sumacas operavam especialmente no tráfego entre os Países Baixos, de um lado, e Antuérpia e os portos flamengos, de outro, servindo também na carga e descarga dos grandes navios. Um dicionário de marinha de começos do século 18 distinguia o smakschip, em flamengo wydtschip, ou embarcação larga; e o smal-chip, ou embarcação estreita, diferença apenas de largura, a construção e a armação sendo idênticas. A distinção nascera de circunstância local, o smalschip sendo suficientemente estreito para singrar através das comportas de Gouda, ou Tergonde, na Holanda, ao passo que o smakschip, mais largo, não podia utilizálas, vendo-se na contingência de navegar por fora das muralhas urbanas, através de outra comporta. Da Holanda, a smak emigrou para a costa oriental da Inglaterra e da Escócia, cujas relações marítimas com os Países Baixos eram estreitas; e dali para a costa ocidental, em torno do Firth of Clyde, onde a população se adensava, como no litoral neerlandês, ao longo de uma rica rede hidroviária de rios, camboas e braços de mar. Sua grafia foi an-
glicizada em smack. Na Grã-Bretanha, ela prestou- Roussin, por exemplo, atribuíra-lhe a média de 80 se a uma série de usos, desde a pesca e o transporte toneladas, mas o exame de 37 unidades engajadas de carvão à condução de passageiros. Foi na região na navegação entre o Recife e os portos do Ceará do Clyde que as sumacas resistiram mais demora- ao São Francisco e entre o Recife e os principais damente à concorrência dos barcos a vapor. Cerca portos do litoral brasileiro, especialmente o Rio de de 1920, ainda existiam, embora já substituídas, no Janeiro, aponta uma média de 92 toneladas, as de resto do litoral escocês, pelos puffers. Nos portos do maior capacidade servindo aos percursos mais lonnorte da Alemanha, elas também sobreviveram no gos. Se as eliminarmos do cálculo, teremos que a decurso de oitocentos, como indica uma bela gra- média das sumacas empregadas no Nordeste recivura da coleção do Musée de la Marine (Paris). fense girava em torno de 77 ton, numa faixa entre Do seu papel na cabotagem européia, basta dizer 50 e 197 ton. Mais de 2/3 situavam-se na faixa de que mereceu a honra de reprodução no recueil de 50 a 100 ton, apenas o terço restante dispondo de planches sur les sciences, les arts libéraux et les arts mé- capacidade superior. Inicialmente utilizada pelos holandeses nas caniques, anexa à Encyclopédie. A armação da sumaca compunha-se de mastro de vante ou traquete, comunicações entre o Recife e as guarnições ao dotado de vela latina, vela de estai (polaca), mastro longo da marinha, seu domínio prendeu-se à estrude mezena com vela redonda ou quadrada, e guru- tura da navegação e do comércio luso-brasileiro pés; dispunha também de castelo de popa. Ela após a restauração do Nordeste e a consolidação do também arrastava escaler. Mastreação e velame papel de entreposto regional do Recife. Por motinão parecem ter sofrido modificações de impor- vos de segurança das comunicações marítimas entância durante dois séculos de Brasil, se nos fiar- tre Portugal e o Brasil, a navegação livre foi substimos na gravura de Debret relativa a Olinda, o que tuída por um sistemas de comboios anuais que prinão se verificou nos congêneres holandês e inglês, vilegiavam os portos de Salvador, Recife e Rio. Ele que se beneficiaram da sofisticação crescente do pressupunha a infra-estrutura duma cabotagem velame que marcou as técnicas de construção naval ativa ligando os núcleos populacionais dispersos na Europa do século 18, como se constata na su- pelo litoral ao grande porto mais próximo, encarremaca representada por Pieter Le Comte em gra- gado de mediatizar o comércio com a metrópole. vura existente no Musée de la Marine (Paris) e em Teve-se assim de recorrer a um barco especializaazulejo holandês que pode ser visto no convento de do, embora se deva ter em mente que a especialização da marinha mercante nos séculos 17 e 18 e Santo Antônio do Recife. O Dictionnaire de Marine, que proporciona começos do 19 era bem relativa, na medida em que as dimensões médias do smalschip, dá-lhe um com- as embarcações podiam ser facilmente convertidas primento de 18 metros e uma boca de 5. Vistoria ao atendimento de necessidades bélicas e outras. Para atender ao aumento do tráfego decorem cinco sumacas que faziam o tráfico de escravos entre a costa ocidental africana e o Recife (1758) rente não só do incremento físico da produção exportável, mas sobretudo indica que variavam da concentração no Reentre 22 e 15m de comInicialmente utilizada pelos primento por 6,6 e 5,0 holandeses nas comunicações cife de todo o comércio exterior de Pernambuco e de boca. De maior inentre o Recife e as guarnições das chamadas ‘capitanias teresse é sua capacidade ao longo da marinha, seu anexas’, era necessário de carga, cujo exame é factível graças ao regis- domínio prendeu-se à estrutura dispor de barco de maior capacidade de carga, a tro portuário do Diário da navegação e do comércio média da sumaca sendo o de Pernambuco de 1830 luso-brasileiro após a duplo da do caravelão, 80 a 1850, período que ton contra 40 ou 50. Socoincidiu com a grarestauração do Nordeste bre este, a sumaca tamdual substituição da bém dispunha da vantasumaca pela barcaça no gem do fundo chato, de Nordeste recifense. Continente Multicultural 69
Sua eliminação resultou do fenômeno de desconcentração comercial, reforçado, a partir dos anos vinte do século 19, pelo declínio das exportações de algodão e pela queda do preço do açúcar
‘prato’, apropriado aos pequenos portos. Por fim, podia ser utilizada no tráfico africano. Seu domínio tornou-se assim fato consumado desde a Restauração Pernambucana (1654), ampliando-se e consolidando-se com o progresso do povoamento do Rio Grande e do Ceará e o aparecimento dos ‘portos do sertão’, que vinculavam essas capitanias ao entreposto recifense. Na área ao norte do cabo de São Roque, em que as distâncias aumentavam, a ocupação humana rarefazia-se e as condições de navegação tornavam-se precárias, a sumaca passou a gozar de um monopólio que não conseguia adquirir ao longo do litoral pernambucano e paraibano, onde devia contar com a concorrência ativa de embarcações menores, como as ‘canoas do alto’ e outras. Nos ‘portos do sertão’ ou costa de sotavento, o papel da sumaca foi, por conseguinte, ainda mais relevante. Ao invés da marinha açucareira, isto é, da costa oriental ou de barlavento, ao longo da qual disseminavam-se os engenhos, no Ceará e no Rio Grande a produção concentrava-se ao longo de ‘ribeiras’ servidas através de portos de mar ligados ao Recife: a ribeira do Acaraú, cujo centro era Sobral e que dispunha de três portos distintos (o Camocim, o Acaracu e o Mundaú); a do Ceará, cujo porto era Fortaleza; a de Jaguaribe, a mais importante, cujo porto, o Aracati , servia de entreposto ao Icó e ao sertão do Crato e dos Cariris; a do Apodi, com centro em Mossoró e a do Açu. A economia das ribeiras cearenses repousava sobretudo na pecuária, com a exportação de couros e de charque para o Recife; e a das do Rio Grande, no sal e na pesca. Quando a grande seca de 1777 desferiu um golpe mortal na produção e no comércio da carne seca, o algodão a substituiu nos porões das sumacas. Em meados do século 18, o comércio do Reci70 Continente Multicultural
fe com esses portos e com o litoral do Piauí (Parnaíba) estava a cargo das ‘sumacas do sertões’, as únicas de porte que podiam alcançar aquelas paragens. Em começos do século 19, Koster, de passagem pelo Aracati, se valeria dos préstimos de um rico comerciante local, armador de sumacas. Pela mesma época, armava-as também um dos mais prósperos homens de negócio do Recife, Bento José da Costa, que explorava pesqueiros e salinas no Rio Grande. Ao estourar a revolução de 1817, uma das primeiras providências do governador do Rio Grande consistiu em embargar as sumacas fundeadas nos portos da capitania. Na mata açucareira, a sumaca não pôde desfrutar dessa posição. Ali o transporte marítimo atendia a centros de produção, os engenhos, dispostos num contínuo à beira do litoral ou a pequenas distâncias. Os trajetos eram menores e as condições de navegação, mais fáceis. Na costa de barlavento, a sumaca não eliminou as embarcações menores, canoas do alto, balsas, lanchas e jangadas. A fronteira entre elas e a sumaca girava em torno das 50 caixas de açúcar, a caixa correspondendo então a 40 arrobas. Entre os barcos recenseados no governo do conde dos Arcos (1749), 2/3 eqüivaliam a unidades entre 50 e 145 caixas; e o terço restante a unidades entre 15 e 45 caixas. Esses dados só incluíam, porém, os barcos de proprietários domiciliados no Recife, com exclusão dos que se armavam em outros portos regionais, nem cadastravam barcos de capacidade inferior a 15 caixas. É, aliás, revelador da sua primeira utilização comercial em águas brasileiras que a capacidade das sumacas, como a das embarcações de menor porte, seja medida em caixas de açúcar, praxe herdada do século 17, quando haviam transportado o produto antes de carregarem o couro, a carne de sol ou o
algodão. Sendo poucos no litoral da mata os rios que lhes davam acesso, elas não puderam integrar os percursos fluvial e marítimo, como fará sua sucessora, a barcaça, exceto em alguns pontos, como na Paraíba, por onde podiam subir até a cidade; no Goiana, onde chegavam às proximidades da vila; no São Miguel, quatro léguas até a vila do mesmo nome; e no São Francisco até Penedo. Tampouco eram numerosos os portos de mar em que pudessem ancorar: a baía da Traição, Itamaracá, Porto de Galinhas, Maracaípe, Barra Grande e Jaraguá ( Maceió). Nos portos de rio e mar que não davam acesso às sumacas, os barcos de pequeno porte proliferaram até o triunfo da barcaça em meados do século 19. Destarte, elas próprias requeriam os serviços de pequenas embarcações. As fontes atestam a vivacidade desse tráfego fluvial, subsidiário da cabotagem. Ali onde as sumacas podiam subir parte do rio, como no Potengi, no Paraíba e no Goiana, lanchas, canoas e balsas encarregavam-se do restante do trajeto e, em certos casos, penetravam mesmo pelos afluentes. O algodão paraibano, por exemplo, era transportado para o Recife em embarcações que o vinham buscar no porto da província, aonde era trazido parte por via fluvial, parte em lombo de animais. Os percursos fluviais que negavam acesso às sumacas e que eram a grande maioria estavam dominados pelos pequenos barcos. Assim, na freguesia do Cabo, cujo açúcar descia em canoas pelo Jaboatão ou pelo Pirapama até Barra de Jangada; no Sirinhaém, no Formoso e alguns dos seus afluentes; no Una, no Camaragibe, no Santo Antônio Grande; nos cursos d’água que desembocavam nas lagoas de Mundaú e Manguaba; no São Miguel. No São Francisco, navegavase em canoas até o porto de Piranhas, ao pé da cachoeira de Paulo Afonso. Nos portos do sertão, a sumaca também teve de recorrer às embarcações menores: no Camocim, navegado pelas canoas; no Ceará, onde chegavam até a Soure; no Jaguaribe, entre a foz e o Aracati; no Apodi, até Santa Luzia, seis léguas da costa. A cabotagem recifense adotou assim um modelo dual em que a embarcação dominante de porte médio, como outrora o caravelão e depois a sumaca, convivia com os pequenos barcos de origem portuguesa ou nativa. Mesmo quando a substituição da sumaca pela barcaça resultou, num pri-
meiro momento, na abolição do dualismo, ele foi logo restabelecido pela introdução dos barcos a vapor. Graças ao regime de ventos e correntes no litoral do Nordeste, a sumaca pôde ser alternativamente utilizada nos percursos da mata e dos portos do sertão. A fabricação do açúcar e seu transporte para o Recife tinha lugar nos meses de verão, ao passo que a navegação da costa leste-oeste dependia das monções de sudeste, isto é, dos meses de inverno, as sumacas partindo em maio para regressar em outubro, com os primeiros alíseos. Elas aproveitavam assim na costa do sertão os meses de entressafra açucareira. A cabotagem regional tinha também de levar em conta o calendário das frotas que ligavam o Recife a Lisboa. Aos produtores de açúcar e aos comerciantes da terra, convinha que elas velejassem do Reino em inícios do outono para alcançar Pernambuco pelo Natal e retornar à metrópole em finais de março, começos de abril. Esta rotina era freqüentemente perturbada pelos atrasos no apresto dos comboios, de modo que os navios só chegavam muitas vezes em fevereiro ou março ou até mais tarde, com os inconvenientes que se adivinham, inclusive para a navegação dos portos do sertão. Nos anos trinta e quarenta do século 19, a sumaca desapareceu do litoral. Quando, no decênio seguinte, Vital de Oliveira realizou seus trabalhos de hidrografia, já a menciona como coisa do passado, exceto no tocante às pequenas sumacas que sobreviviam em áreas meridionais da província de Alagoas, a barra do São Miguel e o porto de Coruripe, onde se construíram. É sempre difícil averiguar os porquês numa história silenciosa e humilde como é a da pequena cabotagem. A explicação comumente dada na época apontava o assoreamento que teria atingido indiscriminadamente os ancoradouros e os rios. Segundo Fernandes Gama, “em outros tempos esta província oferecia abrigo em diversos ponContinente Multicultural 71
A noção dum litoral freqüentado por barcos de grande porte parece ter sido idealização alimentada na tradição oral dos moradores locais e, na melhor das hipóteses, na dos práticos, um resíduo do imaginário popular do ‘tempo dos flamengos’. Trata-se de algo que vai a contrapelo do que dizem as fontes entre o período holandês e o século 19 tos do litoral a grandes vasos; hoje, porém, apenas conta, além do porto da capital, uma só baía própria para ancoragem de navios de alto porte: a de Tamandaré”. E invocava a autoridade do cosmógrafo Pimentel e do barão de Roussin e “o testemunho de pessoas que ainda vivem” para provar que Pau Amarelo, Itamaracá, Catuama e Goiana haviam sido outrora freqüentados por navios de “muito maior porte”. A situação era idêntica com referência aos cursos d’água: “abandonados à natureza, sem o menor socorro d’arte, os rios de Pernambuco, obstruídos todos os anos pelas enchentes, cada dia vão oferecendo maiores dificuldades na sua navegação.” Destarte, a sumaca teria sido vitimada pelo assoreamento resultante de três séculos de monocultura canavieira e de depredação dos recursos naturais. A este fenômeno não pode, contudo, atribuir a responsabilidade principal pela sua desaparição. A noção dum litoral freqüentado por barcos de grande porte parece ter sido idealização alimentada na tradição oral dos moradores locais e, na melhor das hipóteses, na dos práticos, um resíduo do imaginário popular do ‘tempo dos flamengos’. Trata-se de algo que vai a contrapelo do que dizem as fontes entre o período holandês e o século 19. A realidade foi que, a partir da formação do entreposto recifense em meados de seiscentos a sumaca constituiu a embarcação de maior porte utilizada na cabotagem. A ‘Informação geral da capitania de Pernambuco’ (1979) é bastante conclusiva: a lista de barcos registrados no porto do Recife indica que sua capacidade de carga não ultrapassava a 150 caixas de açúcar, quando a capacidade média das naus portuguesas da época correspondia a pelo menos o dobro. A realidade foi outra. Na zona da mata, o assoreamento não foi, via-de-regra, suficiente para estorvar a navegação de sumacas. Nos começos do 72 Continente Multicultural
século 19, elas continuavam a tocar os poucos portos de rio e mar que haviam freqüentado desde seiscentos, como a Paraíba, as barras de Itamaracá, a de Catuama e a do sul, que dão acesso ao canal entre a ilha e o continente, chamado rio de Itamaracá, de Santa Cruz ou Itapissuma; o rio Formoso até à distância de uma légua da foz; a Barra Grande, Porto de Pedras e Jaraguá, em Alagoas. Por outro lado, haviam desaparecido de portos cujas profundidades haviam permanecido praticamente as mesmas do período holandês, como Porto de Galinhas ou Maracaípe. O abandono desses ancoradouros devera-se não ao assoreamento, mas à precariedade das estradas que os serviam. No tocante à barra de Sirinhaém, a comparação dos dados fornecidos por Joannes de Laet no século 17 com as de Vital de Oliveira no 19 indica que as condições dos fundeadouros não se haviam modificado substancialmente e que, por conseguinte, quando as sumacas cederam o lugar, ainda existiam surgidouros aptos a acolhê-las. Na barra do Gamela, o canal entre a foz e as camboas que se abriam ao norte, a do Passo, ao sul, a de Ariquindá, e as próprias camboas tinham profundidades para barcos de porte médio. O que também ocorria na barra do rio Una, cujo porto, Abreu do Una, declinara devido às mesmas carências constatadas em Maracaípe ou em Porto de Galinhas. Os acessos do litoral alagoano tampouco se haviam deteriorado. O único ponto de onde as sumacas foram expulsas pelo assoreamento foi o rio Goiana, devido à obra impensada da Câmara Municipal, que aterrara o braço principal do Capibaribe-Mirim. Muito menos nos portos do sertão o assoreamento constituiu o fator decisivo na desaparição da sumaca, como indica o ‘Roteiro da costa do norte do Brasil desde Maceió até o Pará’ (1877). O Camocim, que era o porto da Granja, contava nos anos setenta do século 19 com fundos
para os vapores das Companhias Pernambucana e Maranhense, que faziam escala rotineiramente. Era idêntico a situação no Acaraú, porto de Sobral, centro do norte cearense, no Mundaú e em Fortaleza, que dispunha do porto da cidade e do de Mucuripe. No Jaguaribe, as sumacas nunca haviam subido o Aracati, situado quatro léguas a montante, fundeando, do lado de dentro da barra, no porto do Cajueiro, onde eram servidas pelas canoas que viajavam entre a foz e a vila; ali, nos anos setenta do século 19, ainda ancoravam os vapores da Companhia Maranhense. No litoral do Rio Grande do Norte, a barra de Mossoró recebia os vapores da Companhia Pernambucana, igualmente servidos pelos barcos que subiam até Jurema, a quatro léguas da foz. No Açu, as sumacas haviam navegando até três milhas da foz, altura de Macau, os navios de maior calado completando o carregamento fora da barra, que também será freqüentada pela Companhia Pernambucana. Em resumo, de um lado, havia portos que, a despeito do assoreamento, continuaram a ser freqüentados pelas sumacas; e, de outro, portos em que elas haviam cessado de tocar, malgrado as condições de navegabilidade não se haverem marcadamente deteriorado. Na segunda metade de oitocentos, as escalas da Companhia Pernambucana eram praticamente as mesmas das utilizadas outrora pelas sumacas. Outra indicação de que a sumaca não foi vítima do assoreamento reside no fato de que sua atuação cresceu substancialmente nos últimos decênios de setecentos, subseqüentemente ao boom algodoeiro, como demonstra a comparação entre a ‘Idéia da população’ (1749) com o roteiro de Paganino (1784) e fontes da primeira metade do século 19. Conhece-se a razzia que durante a guerra de independência das repúblicas do Prata fizeram nas nossas sumacas de algodão os corsários norteamericanos a quem Artigas havia concedido cartas-de-marca. Há que buscar, portanto, as razões do seu desaparecimento nas novas circunstâncias que passaram a condicionar as relações entre o Recife e seus entrepostos nos primeiros decênios de oitocentos, entre as quais a autonomia conferida aos portos provinciais ainda no quadro do monopólio comercial português, ao abolir-se a subordinação do Ceará, Rio Grande e Paraíba a Pernambuco, e ao abrir-se o Brasil ao comércio estrangeiro (1808). A sumaca surgira para atender às exigên-
cias de especialização e volume de carga impostas pela concentração do comércio colonial em meados do século 17, induzida pelo sistema de comboios e pelo monopólio exercido pelo Recife sobre as comunicações regionais com Portugal. Sua eliminação resultou do fenômeno inverso de desconcentração, reforçado, a partir dos anos vinte do século 19, pelo declínio das exportações de algodão e pela queda do preço do açúcar. Descentralização, diminuição do volume exportado pelos portos do sertão e declínio do preço do produto exportado pelos portos da mata deram-se as mãos
para substituí-la pela barcaça. Por outro lado, cumpria liberar a navegação entre o Recife e os portos do sertão dos ônus do sistema de monções, para que fosse feita no decorrer de todo o ano, o que requeria embarcação habilitada a tirar partido dos ventos litorâneos e da navegação entre os arrecifes. A barcaça responderá melhor a essas exigências. Abertos os portos das capitanias anexas ao comércio com a metrópole e, depois, com o estrangeiro, a sumaca recuou para seu “habitat” original, o litoral da mata açucareiro. Contudo, a modéstia destes percursos tornava-se pouco ou nada rentável face à multidão de pequenos barcos que lhe faziam concorrência e que penetrando os pequenos rios podiam integrar, a menores custos, a navegação fluvial e a marítima. Dispensada dos portos do sertão, a sumaca tornou-se onerosa nos portos da mata.
Gerrit Groenewegen – Detalhe: Navio na Foz de Um Rio Com Viajantes em Primeiro Plano O barco da direita é uma sumaca
Evaldo Cabral de Mello é historiador
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MESSIANISMO
Morte do D
precipita do O mito de D. Sebastião motivou o sonho de nobreza de muitos plebeus e uma variada literatura
D. Sebastião, o rei português desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, originou um movimento messiânico
M
ilenarismo, messianismo. Embora sejam termos bastante próximos, não podem ser considerados sinônimos, e cabe aqui ligeiramente distingui-los. O milenarismo é a crença utópica no advento de mil anos (data simbólica). Há milenarismos de natureza religiosa, como o dos Adventistas, das Testemunhas de Jeová, dos Mórmons, e aqueles seculares, como o Positivismo e o Marxismo (formas disfarçadas de religião de muitos intelectuais dos séculos 19 e 20). Movimentos como New Age, bem como os seus derivados da Era de Aquário, a Grande Fraternidade Branca e muitos outros participam dessa crença milenar. O messianismo é, como o nome indica, a crença num messias. Existe no Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, mas não é exclusivo destas religiões. Há expressões messiânicas no Budismo e em muitas seitas. O fenômeno se manifesta em todos os continentes, e também tem as suas máscaras correspondentes no plano político, como os quase deificados Lênin, Mao, Hitler, Perón (este chegou a ser chamado explicitamente de “o messias, enviado do Destino”). Para os autênticos cristãos, Jesus é o Messias, e só. A sua segunda vinda à terra será apoteótica.
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Alguns poucos judeus também acreditam nisso. Mas, a maioria deles ainda espera a vinda do Messias ou o identificaram em alguns líderes políticos e religiosos. Ainda outros pensam que seja o próprio povo judeu o messias desejado. Se fosse necessário escolher três palavras para sintetizar milenarismo e messianismo, as melhores seriam: desejo, utopia e evasão, associadas a outras como paz, felicidade, justiça. Sem esquecer-se de que tudo isso está ligado à visão mítica do tempo. Mas, essa visão mítica é inseparável dos traumas e movimentos da história. Em períodos de decadência, sofrimento, escravidão, pobreza, exílio e diversos outros tipos de abatimento é quando mais que os ânimos sonhadores e esperançosos exacerbam as suas crenças. A Esperança é a última que mata. O sebastianismo – uma das formas do messianismo luso – nasceu da história, mas os seus elementos motivadores vão além do fato histórico – no caso, a morte do rei D. Sebastião, de Portugal, na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, a 4 de agosto de 1578, aos 24 anos de idade. É conveniente, embora impossível, separar o D. Sebastião físico do mítico. As ânsias emocionais que levam à mitificação quase sempre são motivadas pelos acidentes da vida real. Nesse caso, terminou por simbolizar o patriotismo e nacionalismo português, a ponto de um escritor como J. A. das Neves
esejado
omínio espanhol
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afirmar, em 1810 que, na sua época, metade da população de Portugal era sebastianista. Outros mais irônicos afirmavam: os portugueses não esperavam por D. Sebastião para salvá-los, mas pelos ingleses. Se o sebastianismo nasceu antes mesmo de D. Sebastião, os fatores que motivaram as maluquices reais também lhe são anteriores e condicionantes. A própria união dinástica, que viria a ocorrer após a sua morte, já se preparava muito antes. Autores como Sá de Miranda costumavam dizer que a situação de Portugal teria piorado com as conquistas do Oriente e do Novo Mundo. Os nobres viviam tão “deslumbrados” que, mesmo em meio à pobreza material e ao descontrole econômico (o país terminou por abrir mão, em 1570, do monopólio comercial do Oriente) sonhavam ainda com novas conquistas, como o delírio de um domínio amplo de vários países, até a China. Os mais “realistas” preferiam a conquista do Norte da África, suposta tábua de salvação de todos os problemas. Foi essa ilusão que moveu D. Sebastião, quando começou a reinar, aos 14 anos, em 1568. A adolescência não é só a idade feudal do homem (como disse, aliás, em conferência adolescente, Gilberto Freyre), é também a mais estúpida, arrogante e presunçosa. Se o poder por si mesmo já tumultua o sentido da realidade, associado ao culto do heroísmo militar e à religião pode levar a tragédias. Cria-se o novo rei, uma espécie de novo Cruzado que deveria salvar a Europa dos infiéis. Seis anos depois de assumir o trono, já se achava o rei capaz de invadir Marrocos e só foi impedido por um temporal no Tejo. Quatro anos depois, a sua cabeça tempestuosa achou que era o momento ideal. O resultado se conhece bem.
Ao perecer nas areias marroquinas, D. Sebastião foi sucedido pelo cardeal D. Henrique, que morreu a 31 de janeiro de 1580. Nenhum dos dois deixou herdeiros. O testamento desse tornava as coisas ainda piores (“não declaro aqui agora quem me há de suceder, será quem conforme a direito houver de ser e esse declaro por meu herdeiro e sucessor”). Logo os poetas anônimos transformaram isso numa quadrinha sarcástica: “Viva o rei D. Henrique/ nos infernos muitos anos/ pois deixou em testamento/ Portugal aos castelhanos”. Na verdade, ao trono vago havia diversos pretendentes além de Filipe II de Espanha (também tio de D. Sebastião). O principal deles foi António, prior de Crato, neto bastardo de Manuel I. Em 1581, Filipe II se tornou Filipe I de Portugal. Oito anos depois, sufocaria uma tentativa de uma esquadra inglesa de lhe tomar a sua conquista. Não cessaram aí as invectivas contra os espanhóis. Apareceram candidatos que se diziam o próprio D. Sebastião. Isso porque, logo após a tragédia de Alcácer-Quibir, se espalhou o boato de que o rei não morrera. Estaria escondido e voltaria para reclamar o seu trono. Entre os farsantes, o mais famoso foi o pasteleiro espanhol Gabriel Espinosa. As suas peripécias motivaram o drama Traidor, Inconfesso e Mártir (1849), do romântico espanhol José Zorrilla (1817-1893). Na lista dos pretensos reis houve também um italiano, Marco Túlio Catizone, que teve a sua história reconstituída no romance histórico A Ponte dos Suspiros, de Fernando Campos (leia trecho mais adiante). Esse romance de Fernando Campos é o mais recente exemplo de uma vasta literatura em torno do sebastianismo, que envolve tam-
O teatrólogo romântico José Zorrilla é autor de peça sobre o sebastianismo
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O escritor português Fernando Campos escreveu o romance A Ponte dos Suspiros, enfocando um dos “herdeiros” de D. Sebastião, o italiano Marco Túlio Catizone
bém grandes autores como Vieira, Garret, Camilo Castelo Branco e Fernando Pessoa. Pode-se dizer que os textos sebastianistas são anteriores ao próprio D. Sebastião, com as quadras “proféticas” do sapateiro, Bandarra (1500-1556), que misturam “sabedoria” popular, judaísmo e mitos espanhóis como o do Encoberto. A derrota de D. Sebastião também motivou clássicos, como Lope de Vega, a escrever a peça La tragédia del rey Don Debastián y bautismo del principe de Marruecos (apesar do título, trata-se de uma comédia). Na atualidade, o sebastianismo foi retomado por autores como Almeida Faria, que o reconstitui de modo irônico, no romance O Conquistador. O mito também vem sendo aproveitado na música popular lusitana, como em Demônios de AlcácerQuibir, do CD De pequenino se torce o destino, de Sérgio Godinho. A história mesma e não a sua recriação mítica de D. Sebastião é uma boa nota de rodapé da subjugação de Portugal por Espanha. Portanto, está diretamente entranhada no imaginário de um país ávido por autodeterminação e, ao mesmo tempo, presa fácil de outras coroas mais fortes, como França e Inglaterra. O Brasil, que herdou de Portugal muitas bizarrices e extravagâncias, assimilou também o sebastianismo. Como a saudade, esse mito parece um patrimônio ocioso dos que têm um gosto quase mórbido pelo perdido, a febre insaciável do arcaico e ânsias do inalcançável. A sobrevivência do culto ao Desejado assume ainda nos dias de hoje ritualizações artificiais de grande interesse para a antropologia e sociologia. O quanto o sebastianismo tem mais a ver com a decadência política e econômica de um certo Portugal e não com a tão propalada psicologia lusa dada a melancolias é algo fácil de verificar. Da mesma forma, o seu aproveitamento no Brasil terá menos relação com uma insuspeitada vocação brasileira para o Quinto Império (ignorado pela maioria) e mais com a tremenda pobreza e ignorância de sua gente, com a apropriação nostálgica pelos conservadores de várias estirpes. De uma forma ou de outra, o melhor de tudo é sempre a literatura. (MH)
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O Galeão
F
lutuava sobre a laguna o vazio e o nada, cerrara-se uma espessura de bruma que o sol da manhã nascente, sem a conseguir romper, mal dourava de um rubor genesíaco. Na umidade viscosa, cortada por manso respiro de asas e pios de gaivotas, entranhara-se o fedor que a maré vasa destilava das cloacas da cidade invisível. Grande Canal – vem da cerração uma voz. – Estamos a chegar. Como fantasmas a proa da gôndola surge das entranhas do nevoeiro e logo a embarcação acosta ao cais. O homem apeou-se: – Arriverdeci, buon uomo. Que palidez! pensa o gondoleiro. Como rebrilham aqueles olhos no escuro do capuz! A barba a grisalhar antes do tempo, os dedos brancos da mão, como de cadáver mas bem cuidados, aferrados ao bordão, a outra a acenar leve adeus... É prà i algum grande senhor, apesar do burel e do desalinho... – Arriverdeci, Eccelenza. Vê afastar-se, a esvoaçar engolida na névoa, a sombra da capa do romeiro, ouve-lhe o eco dos passos sem
imagem esbater-se na fundura cinzenta em direção a São Marcos. Sente um arrepio: “Uma alma do outro mundo!” Persigna-se e abala dali. Num canto da piazza o homem bateu a uma porta. Um criado vem abrir. – Sua Eminência, o arcebispo de Espálato? – Quem devo anunciar? – Um peregrino acabado de chegar da Terra Santa. Português. Desejo falar a Sua Eminência. Matéria da máxima importância. O criado foi dentro e não tardou a reaparecer: – Sua Eminência aguarda-vos. Um átrio lajeado de mármores, paredes ornadas de retratos a óleo de prelados de ar estático, cadeirões encourados, pregueados de cobre, em nichos dourados imagens de santos, peanhas com estátuas de deuses pagãos, um busto do imperador Diocleciano, ao fundo escadaria suntuosa. – Por aqui, senhor – disse o mordomo, começando a subir. O arcebispo estava sentado à secretária. Debaixo, enrolado a seus pés, um dálmata levantou o focinho e as pintas negras rosnaram. – Calado, Split! Mas o cão levantou-se e, a dar ao rabo, aproximouse do desconhecido, que, como habituado, lhe fez uma festa. – Estes bichinhos sabem quem é deles amigo – sorriu o prelado. – Que me quereis falar... Era um homem magro e seco, as pontas dos cabelos a fazerem coroa em roda do solidéu, a barba encanecida, pontiaguda. O tamanho do tronco inculcava ser alto. – Deus vos cubra de graças por me terdes recebido, Eminência. A seu lado, de pé, um cônego de sotaina presa à entrada do peregrino suspendera o gesto de apresentar ao superior alguns papéis. – ... peregrino... português... – mirava-o o prelado. – Vindes da Terra Santa? – Sua Eminência o arcebispo de Espálato tem na sua frente o homem mais desgraçado que jamais se viu. Remirou-o o arcebispo, a magreza na estatura alçada, na barba rala o loiro riscado de fios de prata, a postura mal ocultando a na capa de romeiro traços de altivez... – Falai – disse – Ouvistes certamente contar daquele grande destroço que foi para a cristandade a batalha do rei de Portugal contra os Mouros? – Quem não ouviu? Deu brado em todo o mundo.
– Alcácer-Quibir – lembrou o cônego. – Grande descalabro, sim – continuou o arcebispo. – O exército cristão destroçado, o rei morto... – O rei não morreu! – Que dizeis? – O rei não morreu? – repetia o cônego abismado. – Como o podeis afirmar, se Filipe de Espanha o sepultou com solenes exéquias em Lisboa? – O rei está vivo. Sou a única pessoa neste mundo que o pode testemunhar. – Como assim? – Todos estes anos, desde aquele fatal fim de tarde, nunca dele me apartei. As suas angústias foram as minhas angústias, as suas dores, as minhas dores... – suspendeu-se, a garganta embargada, os olhos aguados, depois continuou: – ... a sua humilhação, a minha humilhação... – Mas vós viestes sozinho. Onde está o rei? – O rei e eu... – Este homem é louco! – exclamou o cônego. O arcebispo levantou-se, estendeu a mão ao acólito a suster-lhe a fala: – Estais a querer dizer-me... – Sim, Eminência. O arcebispo deu alguns passos na sala com ar concentrado. Parou em frente do estrangeiro e disse: – Uma enormidade! Como o poderíeis provar? – É um louco! – repetia o cônego. – Rei sem coroa, sem cetro, sem anel... – ... e sem reino, podeis descansar – tornou o peregrino com triste dignidade mas um lampejo de majestade no olhar e na voz. E, como o arcebispo hesitasse em falar, continuou: – Compreendo a vossa perplexidade e descrença. Um rei não aparece assim, caído do nada, vestido de peregrino, em casa de um arcebispo longínquo... – ... e essa batalha foi já há muito tempo – lembrava o cônego. – Há vinte anos – disse o desconhecido e precisou: – Vão cair vinte anos no dia quatro de agosto próximo. – Então – perguntou o arcebispo – por que é que só agora....? – Contar-vos-ei tudo como se passou. – Mas sentemo-nos – tornou o prelado, entre curioso e duvidoso, e indicava uma cadeira ao peregrino. Sentaram-se os três e o estrangeiro começou:(...)
ZENIVAL
São Mateus
(Trecho do romance A Ponte dos Suspiros, de Fernando Campos, editora Difel, 2ª ed., Miraflores, Portugal)
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N
a História do Brasil há uma forte tendência para se contar os acontecimentos numa perspectiva dos dominadores ou dos vencedores, quer se trate de questão de poder político, quer de conflitos desencadeados para assegurar privilégios ou novas posições conquistadas. No entanto, existe uma “História” a partir da visão dos vencidos que precisa ser contada. A história da destruição da comunidade do Caldeirão do beato Lourenço, ocorrida nas franjas da chapada do Araripe, no Vale do Cariri cearense nos anos de 1936-37, é um típico exemplo de parte de um importante capítulo de nossa história que se poderia intitular: “A luta pela terra”. A luta pela posse e domínio da terra no Brasil é tão velha quanto a sua própria história. Tantas foram as vicissitudes políticas que concorreram para evitar o uso da terra por quem realmente nela trabalha, que, ainda hoje, na maioria dos casos, os conflitos são tratados como um caso de polícia e não uma questão social. Enquanto na maioria dos países civilizados a reforma agrária deixou de ser um tabu, entre nós ainda é um escândalo. Num país de dimensões continentais com mais de oito milhões e meio de quilômetros quadrados, a grande maioria da população não tem acesso à terra para gerar riquezas. A propriedade rural continua concentrada nas mãos de uma pequena casta que cria toda sorte de empecilho para o progresso do Brasil. Essa questão é tão velha que as REPRODUÇÃO
Caldeirão,
messianismo e a luta pela terra
Cláudio Aguiar 78 Continente Multicultural
REPRODUÇÃO
ações políticas dos irmãos Gracos em favor de uma reforma agrária, na Itália, ocorridas por volta de 100 a. C. ainda hoje são lembradas como exemplos fundamentais de leis que combateram o latifúndio e fomentaram extraordinárias riquezas a partir de pequenas propriedades por parte de camponeses que viviam socialmente desamparados. A evolução histórica da utilização da terra no Brasil tem origem nas famosas capitanias hereditárias, sistema que gerou as “sesmarias”, os governos gerais e a escravidão colonial de homens trazidos de África que se arrastou por mais de três séculos. O Brasil foi o último país latino-americano a libertar seus escravos. Não me parece um absurdo afirmar que a luta pela abolição da escravatura se assemelha à efetiva implantação de uma reforma agrária no Brasil. Desde o final do século 19 que a propriedade rural nos Estados Unidos da América é considerada uma empresa e não há mais problemas fundiários naquela parte da América. Aqui boa parte dos grandes latifúndios só serve para garantir empréstimos especiais do Banco do Brasil, que logo são perdoados por força do lobby que atua nos diversos níveis da vida política nacional. Há uma espécie de ligação entre os diversos movimentos sociais de nossa história que foram dizimados pela violência institucional. De Palmares aos massacres sofridos pelos membros do MST pode-se identificar uma razão de ser. Esse lamentável processo de formação da sociedade brasileira não se deu de maneira pacífica como certas correntes ideológicas apregoam hoje. Houve um significativo custo social. Diante das incontáveis perseguições, os escravos fugiram para regiões inóspitas e, ali, livres dos grilhões de seus cruéis senhores, instauraram novas comunidades. O quilombo de Palmares talvez seja o melhor exemplo de organização social que se conhece. Durante mais de 70 anos
sobreviveu e conseguiu manter-se como se fosse um país com seus governos e embaixadores. O final já se conhece: Palmares foi destruído a ferro e fogo pelas forças legalistas. Depois, o exemplo de Canudos, de Antonio Conselheiro, nos sertões da Bahia, também teria a sua base fundamental no uso de amplas faixas de terra, embora não se possa negar a presença de ritos e manifestações sebastianistas que justificam a presença de características messiânicas naquele movimento social. Já na segunda década do século 20, em terras de Santa Catarina e Paraná, milhares de camponeses revoltaram-se contra a penetração do capitalismo nascente que implantava ali o sistema ferroviário sem reconhecer alguns direitos vitais dos camponeses e pequenos proprietários rurais que viviam em suas terras. O movimento que dali surgiu, denominado Condestado, como se deu com Canudos, mais uma vez teve a terra como ponto crucial. Com a mesma dimensão vieram a seguir os movimentos ocorridos no Caldeirão (1936-37), nas Ligas Camponesas (1955-1964) e no atual MST. Todos eles têm como ponto de convergência a problemática da terra. Ainda que, cada um, a seu modo, tenha se afirmado e conquistado espaço na sociedade, a verdade é que logo foram combatidos pelas instâncias políticas que sempre conseguem mover governos que os levam à destruição. Falamos em messianismo, porém, é preciso estabelecer a diferença entre messianismo e fanatismo. Estes termos geralmente aparecem como sinônimo, mas têm significados diferentes. O messianismo decorre basicamente da confluência ou interligação das ações históricas e interferências mitológicas exercidas sobre uma dada sociedade. Foi no judaísmo onde a idéia messiânica encontrou mais espaço e aceitação. Ali se preconizaram as posturas salvacionistas como esperança ou espera de um
Na página anterior, o beato Lourenço (ao centro), líder da comunidade do Caldeirão Ao lado, detalhe do quadro Canudos ou Guerra no Sertão, de Tereza Costa Rego. Acrílica sobre madeira – 2,20 x 1,60m
REPRODUÇÃO
samparados que lhe procuravam na cidade de Juazeiro. O beato Lourenço, fiel seguidor do Pe. Cícero, os recebia em Caldeirão sem exigir nenhuma contrapartida. Os que chegavam apenas deveriam estar dispostos a trabalhar para o seu próprio bem e o da comunidade. Pouco a pouco, a comunidade, baseada no trabalho cooperativo, onde predominava realmente a regra socialista que recomenda dar “a cada um segundo as suas necessidades”, cresceu de tal sorte que no ano de sua destruição (1937) já possuía cerca de dez mil pessoas. Ali, aqueles homens que nunca tiveram terra para trabalhar nos seus lugares de origem, de repente, passavam a ter suas necessidades básicas satisfeitas. Com razão eles mesmos denominaram aquela comunidade do Caldeirão como sendo a “A pátria do sertão”. “Essa comunidade – escreveu Franklin de Oliveira – não podia continuar: era um desafio à selvagem estrutura agrária do Nordeste. E sua gente foi massacrada – quarenta anos depois, Canudos repetia-se na chapada do Araripe”. O movimento social desencadeado por padre Cícero desde a década de 1870 até os nossos dias continua crescendo. É que nunca questionou a ordem vigente nem se preocupou com a questão da terra nem outras necessidades vitais para o homem, como, por exemplo, educação, saúde e moradia. Por isso, nunca foi incomodado pelas autoridades. O ataque final foi ordenado em fins de 1937, em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas. Foram utilizadas as forças militares por via terrestre e até aviões que bombardearam a população civil que, assustada, errava por dentro da chapada do Araripe. O emprego de ataque aéreo contra civis jamais havia sido realizado na América Latina. Essa ação só encontraria paralelo nos famosos bombardeios que as forças nazistas de Hitler, com a anuência de Franco, efetivaram contra a população de Guernica, durante a Guerra Civil espanhola de 1936-39, imortalizada por Picasso em seu conhecido painel que denunciou este genocídio perante o mundo.
O quadro Guernica (1938), de Pablo Picasso, retrata o bombardeio aéreo da cidade espanhola pelos nazistas. Em 1937, aviões brasileiros bombardearam a população civil de Caldeirão
Messias. Sempre os profetas, através de suas pregações, defenderam a vinda de um Senhor da Justiça, um Salvador do Mundo, um Filho do Homem, um Servo de Jeová etc. Já a atitude fanática é algo diametralmente oposta, pois, via de regra, significa obediência cega a um líder carismático, que, quase sempre, incita seus seguidores a praticarem a violência. O fanatismo, portanto, é qualidade, caráter ou espírito do fanático que exacerba seus comportamentos. Ele adere de tal sorte ao líder que é capaz de exceder-se na adoração ou na paixão e facilmente chega a transformar-se num faccioso. Este tipo de comportamento faccioso nunca existiu em Caldeirão. A violência só apareceu ali quando as forças militares cearenses invadiram a comunidade em 1936 e começaram a destruí-la sem nenhuma justificativa plausível ou determinação judicial. A reação dos camponeses liderados pelo beato Lourenço poderia ter sido algo semelhante ao mecanismo da legítima defesa. No entanto, reagiram pacificamente, salvo alguns casos isolados de reação violenta, com a qual não esteve de acordo o beato Lourenço. Até as acusações feitas contra o beato, no sentido de que ele praticara certos ritos religiosos de exclusiva competência dos padres seculares, nunca foram provadas, pois o que ele fazia era simplesmente vestir uma túnica e elevar às alturas uma bandeira da comunidade, enquanto em sua capela entoavam orações aprendidas nas missas católicas. O móvel fundamental que concorreu para a formação dos movimentos sociais em Juazeiro em torno do padre Cícero, desde o final do século 19, em grande medida, foi a pobreza que sempre grassou entre os homens sem terra do Nordeste brasileiro. A própria existência da comunidade do Caldeirão, nos primeiros anos, deveu-se, em parte, ao padre Cícero que para lá mandava desterrados e de-
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Cláudio Aguiar é escritor e autor do romance Caldeirão que reconstitui o massacre da comunidade de mesmo nome
LUMIAR
Cavalgada em busca de Dom Sebastião
V
aqueiros e cavaleiros, ostentando mantos, lanças e bandeiras, invadem São José do Belmonte, no sertão de Pernambuco (479 km da capital). Eles rumam para a Igreja Matriz de São José (padroeiro da cidade). Fogos de artifício e tiros de bacamarte ecoam, anunciando a alvorada. Começa a Cavalgada da Pedra do Reino. À frente do cortejo, que acontece sempre no último domingo de maio, está – desde 1995 – o escritor Ariano Suassuna, 74. Em seu Romance da Pedra do Reino (publicado em 1971) é que se inspirou o evento. A cavalgada refaz, num percurso de 30 km em cerca de cinco horas, um trágico momento vivido pelo primeiro movimento sebastianista do Sertão, ocorrido em 1838, quando a Guarda Nacional, auxiliada por latifundiários, reprimiu o grupo do beato mameluco João Antônio dos Santos e do seu cunhado, João Ferreira, na Serra do Catolé, fronteira com a Paraíba. Inspirado na literatura de cordel da época, que falava do desaparecimento do 16º rei de Portugal, os sebastianistas pregavam seu desencantamento na caatinga, para libertar os sertanejos da opressão e da miséria, implantando um reino de justiça, liberdade e igualdade. Segundo eles, nesse reino encantado os negros ressurgiriam brancos (livres), os pobres fica-
Josélia Menezes
riam ricos, os velhos retornariam a ser jovens e os doentes seriam curados. Tudo isso seria conseguido com a imolação dos adeptos. Com o seu sangue deveriam ser lavadas as “pedras do reino”, duas rochas de granito de 33 metros A história tem semelhanças com outra tragédia posterior: a de Canudos. O arraial de miseráveis resistiu por três vezes às investidas das forças militares da Bahia. Foram dizimados, finalmente, em 1897. “O movimento daqui teve um caráter libertário pré-socialista, anterior a Canudos. Foi, sem dúvida, um movimento revolucionário, que pregava justiça e liberdade; portanto, de reivindicação política, numa região oprimida”, diz Ariano Suassuna. Além de Suassuna, outros autores, como Euclides da Cunha, Araripe Júnior e José Lins do Rego, se ocuparam do messianismo à brasileira. Mas, o que motivou o autor do Romance da Pedra do Reino foram os escritos de um autor hoje quase inteiramente esquecido, Ático de Souza, de 1874. As Pedras do Reino de São José do Belmonte foram transformadas em área de proteção ambiental e sítio histórico pelo município, na década de 90. No lugar, estão sendo erguidas esculturas ou “ilumiaras”, conforme projeto de Ariano Suassuna. Nos 30 km em volta da área vivem 50 famílias, inclusive descendentes dos sebastianistas, como Misael de Oliveira. O seu bisavô, Manoel Beato, foi um dos 53 imolados. “Ele queria saúde”, afirma. Após o confronto com a polícia, que elevou o número de mortos para 83 pessoas, os sobreviventes foram presos e levados para Fernando de Noronha. As mulheres e crianças foram libertadas e parte dos homens foram julgados no dia 18 de maio de 1838.
Integrante da Cavalgada à Pedra do Reino, no Sertão pernambucano
Josélia Menezes é jornalista
Para saber mais: Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, de António Quadros. Guimarães Editores, Lisboa, 1982 vol. 1: O Sebastianismo em Portugal e no Brasil. Origens do Sebastianismo, de A. de Souza Silva Costa Lobo. Edições Rolim, Lisboa, 1982. Interpretação Não Romântica do Sebastianismo, de António Sérgio. Sá da Costa, Lisboa, 1980. D. Sebastião e o Encoberto – Estudo e Antologia, de António Machado Pires. 2ª ed., FCG, Lisboa, 1980. http://www.portfolium.com.br
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA
Por que Lampiao nao entrou em Lagarto Joel Silveira
1.Lampiao E
ra fim de tarde, eu conversava com Rubem Braga na cobertura (que era também granja) do seu apartamento em Ipanema e, enquanto me servia do sempre generoso uísque do anfitrião, ia matraqueando sem parar sobre os mais diversos assuntos. Braga limitava-se a ouvir, quietamente mergulhado na espaçosa rede baiana que o pintor Carybé lhe mandara de presente. Eu falava, falava, ele balouçava. Foi quando a conversa passou a ser Lagarto, a cidade da minha infância, lá em Sergipe. Inflado de incontrolável orgulho, lá para as tantas informei ao sabiá da crônica que Lampião, apesar de toda a sua proclamada valentia, jamais tivera coragem de entrar em Lagarto. Mansamente, num demorado esforço, Braga emergiu da rede e falou: – Quer dizer que Lampião nunca entrou em Lagarto? – Nunca! Braga silenciou por alguns segundos, disse em seguida: – Pois eis aí o que se chama de um homem sensato. Afinal, que diabo Lampião ia fazer em Lagarto? E conclusivo, antes de mergulhar na rede: – Lagarto não é lugar para entrar, mas para sair.
2.Preferencia Já beirando os rijos e alegres noventa anos, me dizia aquele meu primo lá em Sergipe: – A gente sente que está envelhecendo quando começa a gostar mais de carne-de-sol do que de mulher. 82 Continente Multicultural
3.Gerundio Vez por outra, me lembro do conselho que certa vez me deu Graciliano Ramos: – Fuja do gerúndio como o diabo da cruz. Para ele, era fácil. Creio mesmo que o gerúndio é que fugia dele.
4.Quilos
– Como Fulano escreve! Quantos livros você acha que ele publicou ? – Até a semana passada, devia estar beirando os quinhentos quilos.
5.Sublime
Numa das vezes em que visitei o poeta Manuel Bandeira em seu singelo e despojado apartamento da rua Moraes e Vale, na Lapa carioca, encontrei-o lendo no original A Tempestade. Interrompendo a leitura, ele me disse: – Para mim, é o que Shakespeare fez de melhor. E em seguida me traduziu aquele trecho que diz assim: “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos” e “nossa curta vida está envolvida num sono”. E mostrando todos os enormes dentes: – Não é sublime?
6.Essenciais11.Calhorda Em Madrid, outubro de 1977, eu me espantei com a exigüidade da biblioteca do poeta Vicente Aleixandre, que naquele dia estava ganhando o Prêmio Nobel de Literatura. Comentei: – Tão poucos livros, Dom Vicente? O velho poeta me respondeu: – Os essenciais. E me alegrei, passando os olhos pelas lombadas, que entre os “essenciais” lá estivesse o Sagarana – de Guimarães Rosa.
7.Ganho
Dizia o outro: – Só de acordar toda manhã e constatar mais uma vez que não me chamo Onotônio, já ganhei o dia.
8.Traidores Costuma-se dizer que todo tradutor é um traidor. É possível, mas pergunto: quantos dos nossos escritores, particularmente os ficcionistas de má prosa, já não foram beneficiados pela paciente e oportuna recauchutagem dos tradutores, quero dizer, dos traidores lá de fora?
9.Adolpho Vira e mexe, quase sempre sem motivo algum, lá vinha Adolpho Bloch com o mesmo conselho: – Nunca escreva cartas! Certa feita, indaguei: – E bilhetinho, pode? – De forma alguma! Bilhete é mais perigoso do que carta!
10.Velho
Podem acreditar: já fui muito mais velho do que sou.
Ao surpreender o heráldico e longevo figurão, autor de tanta porcaria no plano estadual e federal, penso comigo mesmo: “E dizer que este calhorda já teve quinze anos!”
12.Poetisa
A contumaz poetisa me telefona: – Recebeu meu último livro? Penso em dizer que não, mas acabo dizendo: – Recebi. – Já leu? Minha vontade é responder: – A úlcera, em fase de erupção, me recomenda toda cautela. Nada de sucos ácidos. Fico alguns segundos calado, pensando no que dizer, já que pressinto do outro lado da linha uma ofegante expectativa. Foi quando a ligação caiu. Caiu do céu.
13.Gozo Metade da noite, quase na hora de fechar o jornal, o jovem repórter interrompe o seu acelerado teclar, fixa por alguns segundos os olhos num ponto vago da redação, pergunta em seguida ao calejado e já um tanto idoso editor: – Gozo se escreve com “s” ou com “z”? O enfastiado dromedário ergue os olhos do texto que corrigia e responde, num tom resignado: – No meu caso, é com cedilha.
14.Moco
Se vivo fosse, Castro Alves estaria com 153 anos. E mais moço que a baianada toda, a vigente. Joel Silveira é ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.
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ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
MIL PALAVRAS
O fotógrafo
Auto-retrato de Che Guevara, na Tanzânia, 1965
CHE Em muitas fotos, Guevara está portando uma câmera fotográfica. Exposição revela ao mundo as suas imagens inéditas Mário Hélio
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E
ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
rnesto Guevara de la Serna, fotógrafo. Sim, e dos bons. Isso revelou a exposição Ernesto Che Guevara, realizada na Biblioteca Valenciana, Espanha, de 19 de abril a 25 de maio deste ano. 120 imagens de temática diversa, desde auto-retratos a documentos de ruínas arqueológicas, de fotos de família a reportagens urbanas. De atos políticos a competições esportivas. Em Cuba, México, Índia, Iugoslávia, Paquistão, Japão. Tanzânia, Ásia, Egito, Marrocos, Hong Kong, Espanha. A exposição, que teve como curadores e organizadores Josep Vicent Monzó, Manuel Muñoz Ibáñez e Antoni Paricio i Garcia, começa já a ser solicitada por instituições de diversas partes do mundo. A associação de Che e fotografia não é incomum. Como ícones da sua mitificação planetária estão justamente as suas melhores fotografias. E em muitas deles ele está portando uma câmera fotográfica. O curioso é que ninguém se tenha apressado a procurar o conteúdo da tal máquina, como enfatizou Manuel Tarancón Fandos, secretário de Cultura e Educação de Valência, num dos textos de apresentação da mostra. “Esta exposição nos mostra um Guevara mais humilde e próximo, que contrasta com o Guevara messiânico”, diz José Luis Vilacañas Berlanga, diretor geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas de Valência. Num poema dedicado a Lênin, Maiakovski disse temer que a sua mitificação terminasse por amesquinhar a imensa dimensão humana do líder. Isso parece valer para todos os grandes homens. Inclusive para Che. “Tal grau de popularidade comporta em si mesmo o perigo de converter-se em um
vazio ícone midiático da moda, o cartaz que se compra na grande superfície comercial junto ao dos ídolos musicais”, observam Monzó, Ibáñez e Paricio. “Mas a sua personalidade é rica, cheia de matizes e efetivamente difícil de compreender sem conhecer a parte mais pessoal e íntima dela; na que voluntária e involuntariamente mostra seu profundo sentido estético e seu total compromisso com suas idéias e com a vida: a fotografia.” Na apresentação do catálogo da exposição, o filho de Che, Camilo Guevara March, que dirige o centro de Estudos Che Guevara, uma das instituições promotoras do evento, define-lhe o significado: “Possivelmente, esta recopilação de fotos tiradas sem o fim de expor uma obra, apresentada mais como constância de uma vivência, que como sutis códigos de expressão, desperta a curiosidade de um público interessado em fazer um passeio – ainda que intermitente – pela vida deste aprendiz de fotógrafo e mestre extraordinário do ético”. Como descobriram os organizadores as fotografias tiradas por Che Guevara e como as conseguiram para expor? “Foi numa viagem a La Habana, em que começamos a falar sobre as fotos do Che. Conhecíamos um sem número de instantâneos nos quais aparece sempre com câmeras e para nós era intrigante que, sendo evidente sua paixão pela fotografia, nunca se houvessem mostrado as fotos que ele fizera”, contam Monzó, Ibáñez e Garcia. “Estávamos realizando a montagem da exposição ‘1898, as fotografias cubanas’, na Biblioteca Nacional José Martí, quando conhecemos Aleida March, perguntamos pelas fotos, e já de regresso decidimos que esse magnífico trabalho fotográfico deveria dar-se a conhecer”. Imagens integrantes da Biblioteca Valenciana. A revista agradece aos curadores a gentil autorização de reproduzi-las. Ato em Carney de las Mercedes, Cuba, 1959
ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
Ao lado, San Antonio, México, 1955
As fotos de Che mostram um homem mais humilde e próximo que contrasta com o Guevara messiânico
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ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
Cidade escolar Camilo Cienfuegos
ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
Quadrilátero das Monjas, visto do palácio do Governo, Uxmal, México, 1955
ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
Por todos os países onde passou, Che Guevara levou sua câmera fotográfica, documentando o que via Hilda Gadea cruzando o Papaloapan, México, 1955
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Ao lado, Ciénaga de Zapata, em Matanzas, Cuba, 1959
A associação entre Che e fotografia não é incomum. Suas melhores fotos são ícones da sua mitificação planetária
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ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
México, 1955
ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
As fotos foram tiradas sem o plano de compor uma obra, mas sim, de registrar uma experiテェncia existencial
Acima, ao lado, escultura hindu no Sudeste da テ《ia, 1959 Mテゥxico, 1955
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ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
Ele fotografou ruínas arqueológicas, cenas do cotidiano, paisagens, atos políticos e competições esportivas
ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
Na página anterior, IV Jogos Panamericanos, México, 1955 Escalada do Popocatépetl, México, 1955 Pirâmides, Egito, 1959
ERNESTO GUEVARA DE LA SERNA
Nas fotografias de Che Guevara está a parte mais íntima e pessoal de uma personalidade rica de matizes
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ENTREMEZ
Amarcord,
o fascismo e outras lembranças Fellini descobriu uma fórmula de tratar política, religião e a mais funda angústia existencial com humor e poesia
Q
uem não viu Amarcord, de Fellini? Eu vi mais de dez vezes e gostei de todas. Não há uma única cena do filme que eu não aprecie. Gosto da música de Nino Rota, de Gradisca, Volpina, do Tio Teo, do pavão do Conde, da cena final do casamento com aquele acordeom tocando nostálgico... Eu amo Fellini e queria ter feito todos os filmes que ele fez. Todos, não. Julieta dos Espíritos é muito chato. Agradam-me os artistas que têm pátria, uma pequena cidade que sempre aparece nas suas criações. Mesmo quando as suas personagens desfilam por Paris ou Nova York, parece que caminham pelo lugar ancestral que o artista carrega dentro de si. García Márquez tem Aracataca; Kazantzákis, Creta; Kaváfis, Alexandria; Lorca, Granada; Fellini tem Rimini. Rimini é o centro do mundo. Nada deixou de acontecer ali. Em Amarcord, os celtas são lembrados
Ronaldo Correia de Brito 92 Continente Multicultural
na queima da bruxa, no início da primavera; os romanos, na grandiloqüência; e os americanos, numa feérica elaboração do superficial e do falso. As duas cenas do Grande Hotel, a chegada do Xeique e o encontro de Gradisca com o Príncipe são paródias hilariantes dos musicais de Hollywood. Acho que é por isso que eu gosto tanto de Fellini. Ele descobriu uma fórmula de tratar política, religião e a mais funda angústia existencial com humor e poesia. A sua maneira de expor o histrionismo de Mussolini e o ridículo do poder, em Amarcord, me parece mais sincera que Spielberg falando do povo judeu no filme A Lista de Schindler. Fellini escolheu os seus olhos de menino para dirigir a câmera que mostra a Itália fascista, deixando que os absurdos se revelem entre peidos e risos. Com o mesmo olhar perplexo de menino eu vi cenas da história recente do meu país. Num dia primeiro de abril de 1964, dia consagrado à mentira, meu pai me proibiu de ir à escola, na perdida cidade do Crato. Minha mãe, aflita, acendia velas para Nossa Senhora Aparecida, uma imagem de louça que meu irmão mais velho e eu ganhamos de presente na primeira comunhão. O perigo do comunismo estava erradicado. Os militares haviam feito uma revolução. Para nós, crianças, nada mais proveitoso. Tivemos o dia livre para brincadeiras e banhos de rio. Nosso vizinho da rua Teófilo Siqueira, Seu Zé Correia, fechou as portas de casa, enlutado. Janista fiel, queimou uma bateria de fogos, do começo ao fim da rua, quando Jânio Quadros com a sua vassoura ganhou as eleições para presidente. Era uma quinta-feira, dia em que o gado subia para o matadouro da cidade. Assombrados com o tiroteio, sem saber para onde correr, bois e vacas entraram no palácio do bispo. Prenderam Dedé Alencar, dono do armazém de farinha, porque tocou na radiola de alta fidelidade um disco com a música da campanha de Miguel Arraes. Prenderam Juvêncio Mariano, que ninguém sabia que era comunista. Todos o conheciam como o dono da sapataria. Minha mãe ficou preocupada porque só ele nos vendia a prestação. Levaram um bancário da nossa rua. Assistimos à cena sem compreender nada. Era um cara legal, tinha um jipe e dava bigu quando vínhamos da escola. A
mulher dele olhava para nós, perguntando em tom de desafio: nunca viram um homem honesto sendo preso? Na igreja tocavam os sinos, e o bispo celebrou missa de ação de graças pela revolução. Meu pai era udenista e confiava nos militares. Nós ainda não compreendíamos o que fosse capitalismo e comunismo. O Crato era distante como Rimini, e as notícias nos chegavam tarde nas Atualidades Atlântida. Nossas fantasias infantis se detinham nos seriados do cinema, fantásticos como as trinta concubinas do Xeique de Amarcord. Todas essas lembranças vieram por conta de um reencontro. Avistei Delfim Netto, personagem dos anos de ditadura, num programa do PPS, partido de que ele é deputado. Os cabelos tingidos de preto não disfarçavam os anos passados. Os velhos canastrões políticos do programa falavam agitando os punhos. Reclamavam os seus direitos. Péssimos intérpretes, não me arrancaram lágrimas nem riso. Em nada estavam à altura da fantástica cena de Roma de Fellini, onde rugosas matriarcas, ao lado de cardeais decrépitos, lamentam a perda do prestígio da nobreza e do clero. Nossos palhaços de máscaras mal retocadas, vez por outra, ocupam as telas, não do cinema, mas da televisão. Antônio Carlos Magalhães é o mais novo ídolo. Mas, o filme é ruim, repetitivo como os enlatados americanos. É melhor ver a história política recontada pelas lentes bemhumoradas do mestre italiano. Ou arranjar um bom diretor de cena para dirigir o Senado e a Câmara. Mas, para essa vaga eu não me candidato. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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AnĂşncio
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HUMOR
Lailson
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ÚLTIMAS PALAVRAS
A volúpia do segredo
C
erta ocasião, ao se encontrarem a sós, um deputado manifestou o desejo de revelar um segredo seu para Tancredo Neves. O velho político mineiro pediu que não lhe contasse, pois, a partir daquela confissão, mais de uma pessoa passaria a sabê-lo. Alimento vitamínico da curiosidade, o segredo é a bula mais excitante desde os primórdios da humanidade. As vinhas de todo mistério são guarnecidas por estranhos dogmas que continuam aguçando todos os segmentos dos homens e mulheres do mundo – seus afazeres, suas realizações, seus fracassos. Há enigma para todos os gostos – segredos tumulares sempre revelados sem a extensão devida (aí está a maior das expectativas): o doce fragor do jasmim que alumbra a inspiração poética; o amor instigado pelo voluteio da paixão dos enamorados; as calibradas sabedorias detetivescas do Padre Brown, de Chesterton; as conjurações dos golpistas “salvadores de pátrias”; confissões eclesiásticas e pecados repetidos com falsas penitências; o Grande Segredo de Barjavel; as peripécias dos amantes nas alcovas de Capitus e Ladies Chaterlley; as ousadas e constantes rapinagens de grande parte dos políticos
nos bunkers de Perilos; a santificação das idéias esgotadas de ideais; todo Dia D; as armações maldosas dos Césares romanos; a sapiência da velha de Siracusa; as profecias de Nostradamus; a angustiante espera do fim do mundo e as facetas da moça virgem e prendada. Burlescos são os segredos. Burlados são os crentes vigilantes da escuridão. A ira, por exemplo, vive o requinte do obscuro desejo de vingança, no entanto, muitas vezes se queda ao perdão da bondade – lícito poder do ensinamento divino. O que os vaidosos não são capazes de fazer com o espelho de Narciso? Ou então Crasso, quanto pagaria para voltar a cometer seus erros com a pernosticidade dos comandantes-em-chefe no apanágio da glória ansiada? Suspiremos aos que brincavam à baila dos segredos de anéis passados de mãos em mãos infantis. Que faziam os mestres da música para mexer com nossos sentimentos? Criavam tons de diapasão, alteavam clavas de sol e baixavam as de fá em sóis menores para alegrar a vida dos dós embutidos nos corações apaixonados. E os artistas das pinturas e retratos que revitalizavam momentos memoráveis da nossa história? O dom espiritual que não maculava outras crendices, porém empestava a esperança da vida eterna – outros mundos –, instigante à revelação da morte com ingredientes de reencontros paradisíacos. Onde se escondia a grandeza dos poetas e literatos que ainda nos ensinam a verdadeira razão de viver? Há uma porção de descobrimentos que já foram cobertos pelas ações acobertadas por oportunistas. Terras que não sabíamos onde ficavam. No frigir das contas, só existe mesmo o segredo absoluto – estratégia do subconsciente que bloqueia a cautela do consciente das pessoas sempre anchas por revelar fatos estupefacientes para excitar a curiosidade do ouvinte. Dali por diante, tudo é suspeito, inclusive a história que ficará contada. É preciso ter cuidado com os tais segredos, senão viram voluptuosas revelações.
Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural