A verdade está nas máscaras
N
o princípio, o teatro era assim: um ator solitário e um coro. Depois, Esquilo aumentou esse número para dois, Sófocles para três, e não passou disso o teatro grego. Assim reza a tradição aristotélica, que foi seguida religiosamente por vários séculos. Os papéis femininos eram representados pelos homens. A tragédia era o grande gênero. Tudo impregnado de música. Ainda não se havia inventado a Literatura. O teatro era um grande rito religioso. Uma forma de vida. Se Shakespeare realmente inventou o humano, como quer o crítico americano Harold Bloom, foram os atores - ele, antes de tudo um ator - que sopraram nas suas narinas o fôlego de vida. Nada seriam Julieta, Hamlet, Othelo e Cordélia, Lear e tantas personagens imortais se não houvesse um virtuoso da máscara a lhe emprestar o sentido pleno de realidade. Nos textos antigos, sempre estão lá referidos os que compõem a peça: dramatis personae. Ao pé da letra, nada mais são do que máscaras em ação. Pois, quis a sábia etimologia que todas as pessoas nada mais fossem do que máscaras e que cada movimento inaugurasse ou augurasse, em si mesmo, um drama. Este número de revista é também um número de teatro. Nele, alguns dos atores mais conhecidos do Brasil falam de si e sua arte. Neste tempo de constante re-presentação, os atores são o ponto máximo a que pode chegar o ser?em?outro, ou ainda melhor, o eu é um outro, referido há tanto por Arthur Rimbaud. Dioniso está neste banquete. Que se torna mais completo na excelência de Moncho Rodriguez e Ronaldo Brito. E de Gilvan Lemos, que estréia uma nova seção da revista, a de contos. Mês a mês o leitor conhecerá histórias inéditas dos melhores narradores brasileiros da atualidade.
TEATRO
Paixão p Atores e atrizes discutem a profissão de intérprete, suas meio por excelência
Q
Prólogo
uando, após o toque da 3ª chamada, as luzes apagam, a cortina se abre e os atores entram em cena, a vida começa a fluir, no palco. Não a vida-vida, vida verdadeira, a vida como ela é. Mas a vida-falsa, vida interpretada, a vida tal qual é percebida pela sensibilidade dos artistas – autores, intérpretes, diretores. O crítico Álvaro Lins ressaltou que não é copiando meramente a vida que a ambição do homem de teatro se realiza, mas é, “ao contrário, fazendo o espectador esquecer a sua vida habitual por efeito da apresentação da vida em um estado de deformação (toda arte é deformação) e superamento”. Para que isso aconteça, é fundamental, sem trocadilhos, o papel do ator/atriz. Ele/ela compõem, na observação de Sábato Magaldi, a tríade essencial do teatro (texto-ator-público), cabendo-lhes conduzir a substância do texto até o espectador, consumando o ato criativo do dramaturgo e a intenção dramática do diretor. Hoje, confunde-se a imagem do ator com a do astro de TV, mercado principal de trabalho, no Brasil. O glamour seria o único aspecto visível da profissão. E a fama e o dinheiro culminariam a glória dos “artistas de TV”. Mas a realidade não é bem assim. Somente no Rio de Janeiro, principal mercado televisivo do País, existem, como aponta José Wilker, 10 mil atores sindicalizados, dos quais apenas 300 estão empregados. É um funil rigoroso e cruel. Mas as questões relativas à profissão de ator/atriz não se esgotam na estreiteza do mercado. Para discutir alguns dos aspectos do tema, 4 Continente Multicultural
Reportagem em 3 Atos de Alexandre com direção de como a vocação e o esforço de formação necessários à carreira, a existência (ou inexistência) de um éthos brasileiro na arte de interpretar, a influência da TV sobre o modo de atuar de atores/atrizes, além de contar sua experiência pessoal, foram chamados nomes pernambucanos e brasileiros do teatro, cinema e televisão. Alguns acederam em aconselhar os jovens candidatos ao fascinante (e trabalhoso) mundo da interpretação teatral. Do conjunto de depoimentos, salta uma característica praticamente comum a todos os atores, independentemente de escola, estilo e formação: a paixão avassaladora pelo teatro. Como definiu Paulo José: “O teatro é o espaço ideal para o ator, onde ele é o senhor da expressão. Já o cinema é o espaço do diretor e a televisão é o espaço, na verdade, do patrocinador”.
B
Personagens
ibi Ferreira (Legenda do teatro brasileiro, filha do ator Procópio Ferreira. Peças: My Fair Lady, O Homem de La Mancha, Piaf e Gota D’Água, entre muitas outras. Direção: Tango, Bolero e Cha-cha-cha, Letti e Lotti e Caixa 2. Prêmios: Melhor Atriz e Comenda da Ordem do Mérito das Artes e das Letras da República da França, em 83. Em cartaz com Bibi Vive Amália Rodrigues, comemorando 60 anos de carreira). Carolina Ferraz (Atriz de TV e cinema. Novelas: História de Amor, Por Amor e Estrela Guia, na Rede Globo. Teatro: Honra. Cinema: Amores Possíveis).
elo palco motivações e desestímulos e elegem o teatro como o da arte de interpretar Costa, Fábio Lucas e George Moura, Homero Fonseca
MAURILO CLARETO / AE
Fernanda Montenegro (A Dama do Teatro Brasileiro. Principais peças: Eles Não Usam Black-tie, Dias Felizes, Fedra, Dona Doida e Gilda (foto). Em cartaz com Alta Sociedade. Novelas: 11, entre as quais Guerra dos Sexos e Zazá. Cinema: Tudo Bem, Eles Não Usam Black-tie, Traição, Gêmeas e Central do Brasil, entre outros filmes. Troféus: Urso de Prata no Festival de Berlim, em 98; indicação para o Oscar de Melhor Atriz, em 99 e Melhor Atriz da Associação Americana de Críticos de Cinema, em 98; Melhor Atriz do Festival de Taormina, na Itália, e Molière de Melhor Atriz de Cinema, em 87; Leão de Ouro, do Festival de Veneza, em 80; Molière de Melhor Atriz de Teatro, em 87, e Melhor Atriz da Associação dos Críticos do Rio de Janeiro, em 1962). Geninha da Rosa Borges (1ª Dama do Teatro Pe r n a m b u c a n o . Principais peças: O Marido Domado,
Yerma, Um Sábado em 30 e As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant. Homenageada na Mostra Internacional de Teatro, no Porto, Portugal, 1999. Cinema: Parayba Mulher Macho, Baile Perfumado, A Partida (a ser lançado) e O Pedido, com o qual recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema do Recife, em 99). José Dumont (Filmes: O Homem Que Virou Suco, Memórias do Cárcere, O Primeiro Dia e Abril Despedaçado (a ser lançado). Prêmios: Festival de Gramado, 94, e Festival de Brasília, 98). José Wilker (Iniciou no MCP – Movimento de Cultura Popular, em Pernambuco, na década de 60. Principais peças: Antígona, Morte e Vida Severina, A China É Azul e O Arquiteto e o Imperador da Assíria, entre muitas outras. Prêmio: Molière, 70. Cinema: Xica da Silva, Dona Flor e Seus Dois Maridos, Bye Bye Brasil e Guerra de Canudos, entre outros filmes. Continente Multicultural 5
JOSÉ WILKER: Decidir ser ator eu até hoje estou decidindo, eu estou sempre em dúvida em relação a ser ou não ser ator. Eu comecei no Recife e por acaso. Na verdade eu queria um emprego qualquer. A televisão estava sendo inaugurada, fui fazer um teste para locutor e fui reprovado, porque eu tinha uma voz fina e grossa ao mesmo tempo, afinal eu tinha 13 anos. O cara que me aplicou o teste disse que tinha vaga para ator. Na hora eu peguei. Mas logo saí da TV e já fui convidado para fazer teatro no Movimento de Cultura Popular. E foi exatamente o tipo de trabalho que se fazia no MCP que me encantou. Eu me lembro de ter praticamente estreado numa clareira aberta num canavial. Os espectadores assistiam ao espetáculo montados a cavalo e interferiam naquilo que a gente fazia de uma forma muito criativa. JUCA DE OLIVEIRA: MARCO AURELIO / FOLHA IMAGEM
Novelas: Roque Santeiro, Fera Ferida e Um Anjo Caiu do Céu). Juca de Oliveira (Ator e autor. Peças: A Escada, A Morte do Caixeiro Viajante, Júlio César, Má Sociedade, Hotel Paradiso, Meno Male, De Braços Abertos e Caixa 2, entre outras. Novelas: Nino, o Italianinho e Fera Ferida, Rede Globo; As Pupilas do Senhor Reitor e Os Ossos do Barão, SBT. Cinema: Bufo e Spallanzani (a ser lançado). Prêmios: 2 Molières e um Saci, entre outros). Marcelo Valente (Jovem ator pernambucano, começou no Balé Popular do Recife. Fez a peça infantil Floresta Encantada e o auto de Natal Noite Feliz. Há dois anos assumiu o papel de Jesus no megaespetáculo Paixão de Cristo, na Nova Jerusalém, Pernambuco). Paulo José (Peças: Eles Não Usam Blacktie, Tartufo e A Mandrágora, entre inúmeras outras. Cinema: Todas as Mulheres do Mundo, O Homem Nu, Macunaíma, entre outros filmes. TV: Véu de Noiva e O Anjo Caiu do Céu. Premiado várias vezes). Selton Melo (TV: A Indomada, A Invenção do Brasil e Os Maias. Cinema: Lamarca, Guerra de Canudos, O Que É Isso, Companheiro? e Auto da Compadecida. Teatro: A Luz da Lua e O Zelador, da qual também é produtor).
1º Ato – O chamado (Atores e atrizes falam animadamente sobre o surgimento da vocação, a formação do ator e as vicissitudes da vida de artista). FERNANDA MONTENEGRO: Acho que ninguém se torna atriz a partir de uma data específica. É uma adesão a uma profissão que vem aos poucos, gradualmente. Você não sabe bem por que, mas vai se encaminhando para ela. No meu caso, comecei em 1950 na Rádio do Ministério da Educação e Cultura e depois fui chamada para participar de uma produção no teatro da Universidade, com um grupo semiprofissional. Logo em seguida comecei a fazer televisão e assim se passaram 50 anos...
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Eu sou do Interior, muito pobre, desde cedo comecei a trabalhar, aos 11 anos já trabalhava. Quando cheguei aos 15, fui para São Paulo, onde comecei a trabalhar em banco e a estudar. Depois, entrei para Faculdade de Direito ao mesmo tempo que entrei para a Escola de Arte Dramática (EAD). Eu tinha feito teatro no Interior, lá em Mayrink, onde eu morava. Eu fui até o 3º ano de Direito e tranquei a matrícula . Chegou um certo momento que eu tive que optar, né? Ou eu ficava com Direito ou com arte dramática. Foi uma decisão difícil, mas não foi de muita dúvida, eu apenas lamentei não ter continuado Direito, por que eu gostava muito.
CAROLINA FERRAZ: Eu fui uma dessas pessoas que foi abraçada pela profissão. Tudo o que eu queria era ser jornalista, nunca sonhei com essa profissão. Houve um diretor que se encantou comigo e resolveu me transformar em atriz, acabei cedendo à insistência dele e, daquele momento em diante, me apaixonei por essa profissão. Hoje não me imagino fazendo outra coisa.
VIEIRA DE QUEIRÓZ / TYBA
JOSÉ DUMONT:
Eu não decidi ser ator, eu me encontrei com a arte de representar no meio do caminho. Quando me mudei da Paraíba para Santos, em São Paulo, eu tinha feito o curso da Marinha Mercante, mas não consegui arrumar emprego em nenhum navio. Então fui trabalhar como carteiro e depois conheci um pessoal de teatro e o teatro começou a representar uma melhora de nível social, de vida, para mim. Mas eu nem sabia o que era trabalho de ator. Eu só tinha ido ao cinema, nem teatro conhecia, mesmo assim eu resolvi continuar. PAULO JOSÉ: Eu tenho a sensação de que sempre quis ser ator, ou seja, usar a imitação como expressão, que é uma necessidade muito da criança de contar as coisas que ela viveu através da imitação, ela redramatiza. Minha mãe era declamadora e desde os 6, 7 anos, eu e meu irmão já fazíamos em casa espetáculos teatrais familiares, desses que você pega o lençol e faz pequenos números. Quan-
do fui fazer o ginásio, aos 10 anos de idade, estava visitando as dependências do colégio, cheguei ao teatro e, nos bastidores, vi os instrumentos de contra-regra, roupas de época, espadas, eu fiquei absolutamente encantado. Eu disse: quero ficar neste lugar da fantasia. SELTON MELO: Comecei criança, na TV. Fiz umas oito novelas. Tenho uma formação basicamente televisiva. Comecei a fazer teatro com 17, 18 anos. Teve um período também na minha adolescência, entre a TV e o teatro, que eu fiz dublagem. Depois dali eu fiz um filme, conheci umas pessoas de teatro... Quando fui para o teatro, tive uma revelação muito grande, vi que era realmente isso o que eu queria. O teatro me abriu uma nova perspectiva. BIBI FERREIRA: Olha, eu posso me considerar uma privilegiada, pois sempre tenho um trabalho para fazer. Mas a realidade não é essa. Tenho essa sorte, mas já lutei muito, trabalhei muito e hoje começo a colher o fruto de 60 anos de carreira. Acho que hoje em dia, existe um campo maior para se realizar uma peça. Se o indivíduo não consegue um teatro para se apresentar, ele faz um evento, se apresenta numa estação de metrô, coloca um banquinho numa praça, enfim, ele se vira, e consegue uma forma de mostrar a sua arte. Também hoje existem muitas empresas interessadas em patrocinar uma boa peça, um bom musical... Mas isso que estou falando não significa que é tudo um mar de rosas. A carreira continua sendo difícil, cada vez mais surgem atores e o mercado não é tão grande assim... Muitos atores chegam à velhice com uma situação muito difícil. Excelentes artistas com grande talento, mas infelizmente esquecidos... Cada dia é uma batalha na vida do ator! (SAEM TODOS)
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2º Ato – Estilo brasileiro (Os atores e atrizes discutem serenamente se existe ou não um ethos brasileiro na arte de interpretar.)
Não existe uma maneira brasileira de representar, existe uma maneira humana de representar, que fala do ser humano. BIBI FERREIRA:
JOSÉ WILKER: Eu acho que existe um jeito brasileiro de representar, eu não sei se isso pode ser considerado um estilo. Porque as gerações mais antigas aprenderam com a prática. E a prática da gente foi ou olhar um ao outro ou ver muito cinema americano ou ouvir muito rádio. Eventualmente, algumas pessoas puderam participar de grupos como o Arena, o Oficina, CPC. Durante muito tempo as escolas de teatro, de formação de ator, eram precárias. Agora, mais recentemente, o que dita o jeito de representar é o que se faz em televisão, que eu acho que é um naturalismo extremamente banal e que eu não sei se a gente pode considerá-lo um estilo brasileiro, é apenas um jeito de fazer as coisas. Mas de qualquer maneira eu não acho que a gente precise de um estilo de representar. Eu acho que a gente precisa estar atento ao universo ao qual a gente está falando. JOSÉ DUMONT: Cada povo se expressa da sua maneira, tem a sua gestualidade, a maneira de conduzir seus sentimentos, suas emoções. O nosso cinema, por exemplo, é sempre marcado por uma densidade e por uma poesia. Outra característica é a espontaneidade. Já no teatro, a marca vem do radioteatro e passou para a televisão. Existe um certo jeito que é o galã e sua técnica vocal de fala grave, que as mulheres gostam. CAROLINA FERRAZ: Existem dois tipos de atores: os que te convencem e os que não te convencem. A latinidad faz com que sejamos mais quentes, mas não vejo nisso uma característica especial. Acho que no humor, sim, nos diferenciamos. Temos um humor muito próprio, cheio de espaços preenchidos e um timing especial. PAULO JOSÉ: 8 Continente Multicultural
Eu digo que o estilo brasileiro é o coração. Nós representamos com muita garra, com muito amor... É por isso que temos em nossa terra artistas de altíssima qualidade, e muitos podemos colocar no ranking dos melhores do mundo. Acho que cada lugar, cada população tem um modo de representar, mas todos possuem a mesma ferramenta de trabalho, a emoção.
SELTON MELO: VIEIRA DE QUEIRÓZ / TYBA
RENÉ CABRALES
FERNANDA MONTENEGRO: Acredito, sim, que existe um estilo brasileiro de interpretar. Acho que temos uma cultura teatral muito forte. Uma tipificação brasileira própria, uma maneira de representar. Isso vem de nossa linguagem corporal e da língua falada no país, que é muito rica. Temos uma boa dramaturgia, porque temos facilidade em exteriorizar as emoções, temos calor e uma presença muito forte. (SAEM TODOS)
3º Ato – A televisão (Atores e atrizes comentam, à meia voz, a influência da TV sobre sua atividade e o mercado de trabalho.) JOSÉ WILKER: É muito difícil para a média dos atores sobreviver apenas com o teatro e o cinema – que para nós ainda é uma atividade endêmica –, quer dizer, de vez em quando acontece. A coisa mais permanente dos últimos 50 anos tem sido a televisão. Exatamente por isso, os atores tendem a aspirar excessivamente um espaço na televisão, o que empobrece artisticamente todos eles. JOSÉ DUMONT: Os níveis de escolaridade caíram muito e as pessoas realmente se acostumaram a ficar em casa vendo novela. Então a novela virou um ponto de referência do que é a dramaturgia no Brasil. Aqui não existe um mercado de trabalho, tecnicamente o ator é um desempregado. Eu acho que a televisão faz uma ótima dramaturgia, mas lamentavelmente o mercado é pequeno demais. Como a televisão já tem um padrão, será muito difícil mudá-lo, pois o público já está acostumado a ele. E esta linguagem contamina tudo, até mesmo o teatro e o cinema. Termina que isso empobrece ainda mais o pequeno mercado e as opções para o público. Existe também uma escravidão ao padrão de beleza adotado pela televisão que tira muito das possibilidades de atuação de atores como eu, que têm um tipo mais popular.
Eu sinto na pele como o nível das novelas está cada vez pior. Não me sinto estimulado a fazer novela. Minha última novela foi em 99. Os textos já não são tão atraentes, a direção também, há um “boom” de não-atores também participando. Mas é uma máquina, é uma indústria que tem todas as ferramentas. A qualidade é muito boa, talvez por não ter tido tanto cinema, aprendemos a fazer melhor, concentrou ali. Você pode ficar ali se emburrecendo, é fácil isso acontecer. Porque você está ali, ganha dinheiro, ganha a fama, passa o tempo todo fazendo novela. Mas você pode também usar aquilo a seu favor, para crescer como ator.
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Epílogo (A pedido da Continente Multicultural, alguns artistas dirigiram-se aos candidatos à profissão de ator e atriz, aconselhando-os sobre a carreira.) CAROLINA FERRAZ: ISMAR INGBER / AJB
JUCA DE OLIVEIRA: Nós tínhamos ido para a televisão por causa da Revolução de 64, que tinha inviabilizado o teatro. Os autores – Guarnieri, Dias Gomes, Lauro César Muniz, Jorge Andrade, Vianinha – todos foram para a televisão. E na esteira deles, acabaram indo os atores. Fomos para a televisão e, por volta de 78, eu achei que as razões pelas quais nós tínhamos ido para a televisão haviam de certa forma desaparecido e eu voltei pro teatro. Rompi um contrato, aliás milionário, com a Rede Globo de Televisão... Eu opto pela pobreza, sabe?, e acaba dando resultado, os deuses do teatro acabam me protegendo. BIBI FERREIRA: Olha, eu não gosto muito de diferenciar, pois somos todos atores , todos trabalhamos com emoção, com sensibilidade. Temos ótimos e maus atores tanto no teatro como na televisão. Depende como cada um procura sua formação. Um exemplo é Glória Pires que nunca sequer pisou num palco, e nem quer pisar, e eu a considero uma das maiores atrizes brasileiras. O que diferencia, de repente, é o fato de termos mais tempo para trabalharmos o personagem, estudarmos com mais tempo, no teatro. Já na TV, é decorar e se entregar, pois não há tempo para análises. PAULO JOSÉ: A gente gostaria que fosse mais equilibrada a oferta de trabalho entre cinema, teatro e televisão. Mas, a partir dos anos 60, principalmente depois do Ato Institucional Nº 5, em 1968, a televisão passou a ser o espaço único de trabalho. Houve uma cooptação dos talentos de escritores, atores de teatro, de cinema, diretores. A dramaturgia de televisão é muito própria, muito forte e ocupou todo mundo. E foram criadas situações como se somente na televisão estivessem os maiores atores, ou seja, se não está na televisão, você não é ninguém. Por isso ficou muito importante o trabalho do ator na televisão, que não é o melhor para gente, porque o teatro é o espaço ideal para o ator, onde ele é o senhor da expressão. Já o cinema é o espaço do diretor e a televisão é o espaço, na verdade, do patrocinador. (SAEM TODOS) 10 Continente Multicultural
Cuidado. Você está entrando em uma profissão difícil e instável onde só sobrevivem os fortes e apaixonados. JOSÉ DUMONT: O mundo está tão ruim que você não pode desistir de nada. Mas ser ator hoje em dia não é só sucesso, é preciso se preparar muito para poder ter um trabalho de qualidade. Por exemplo, se esse jovem está numa cidade de Interior, ele tem que começar pelo teatro e trabalhando com sua realidade, tentando transcendê-la e transfigurá-la com suas fantasias. Não é só decidir e dizer: eu vou para a televisão. É preciso trabalhar até chegar ao ponto em que o seu próprio trabalho vier a chamar atenção, aí então a televisão vai se interessar por ele. Para ser ator é preciso ter talento, lastro cultural, mas é preciso, sobretudo, encarar isso como um sacerdócio.
BIBI FERREIRA: Acho importante ser disciplinado, estudioso, versátil e ter muita, mas muita persistência, e, lógico. é preciso ter talento. Se você possui essas qualidades você tem tudo para se tornar um bom ator. Mas há também os que não fazem nada disso, mas têm um dom danado pra coisa, são excelentes por natureza! Esses são uns sortudos!
ALEX RIBEIRO / FOLHA IMAGEM
JOSÉ WILKER:
O que me vem de imediato é: desista... (Ri) Vou explicar melhor: hoje no Rio de Janeiro devem existir 10 mil atores sindicalizados. Desses 10 mil, 300 devem estar empregados, ou seja, 9.700 desempregados. A briga é complicada. Logo, a única possibilidade deve se tentar ocupar esses 300 privilegiados lugares é você aprender. E para aprender é preciso investigar se você é desinibido ou talentoso, porque existe muita gente que é desinibida e sem talento. E que, ao se perceber com talento, saber que talento só não basta. É preciso cultura para administrar este talento. SELTON MELO: Hoje eu não aconselho a começar criança. Eu me sinto um sobrevivente. Tem vários garotos que começaram com a mesma idade que eu e hoje não são mais atores. É muito complicado.
Fiz duas novelas na Bandeirantes, me chamaram pra Globo, fiz uma novela na Globo e depois fecharam as portas. Fiquei uns seis anos sem fazer mais nada em TV. É a síndrome do ator infantil. Será que vai acabar, foi coisa de criança? Complicadíssimo pra cabeça. Quando eu descobri o teatro, tive a revelação: sou um ator. Acabou a angústia de que era coisa de criança. Relaxei, comecei a fazer teatro, na segunda peça a TV me chamou de volta. Desse meu retorno para cá, já vi um monte de gente entrando e sumindo. Entrar, entra; sobreviver é que é a questão. Eu tenho a dimensão da grandeza da profissão e não me iludo mais. PAULO JOSÉ: Aquela velha resposta mesmo: não aceite conselho dos outros, vá por você mesmo, aprenda a errar sozinho. Hoje muitas pessoas querem o caminho da televisão, o atalho da televisão. Mas é sempre bom dizer que a televisão pode dar popularidade instantânea a um jovem ator, mas ela não dá prestígio. A televisão devora rapidamente essas pessoas que aparecem de forma meteórica. O trabalho no teatro é muito menos visível, mas dá muito mais solidez. O lugar onde você se desenvolve artisticamente e como ser humano é no teatro e não na televisão. Então um dos conselhos é: não se deixar seduzir demais pela televisão. FERNANDA MONTENEGRO: O jovem ator ou atriz não deve desvirtuar a vida achando que a arte de representar vai curálo, vai resolver suas inseguranças existenciais e até mesmo indecisões sexuais. Ter a sua imagem projetada para um público não vai mudar alguma coisa nele mesmo. Não se pode confundir vontade de ser ator com terapia. Essa é uma profissão mais resguardada, mais difícil, mas também mais sadia do que se pressupõe. E uma regra básica: é preciso saber que não se vai a lugar nenhum sem muito trabalho e estudo pela vida afora.
Alexandre Costa, Fábio Lucas, George Moura e Homero Fonseca são jornalistas
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Geninha da Rosa Borges Um caso de amor ao teatro Decana do teatro em Pernambuco completa 60 anos de cena com uma declaração de amor ao palco O despertar Esse iniciozinho meu, esse despertar para o teatro, me veio desde criança, no colégio. E foram as freiras, eu já disse aos quatro ventos, foram as Dorotéias que descobriram isso em mim. Eu era a mais despachada, gesticulava, era falante. Então, não tinha festa no colégio, não tinha chegada de autoridades, de freiras importantes, de superioras que eu não fosse falar pelo corpo discente.
levantada por Waldemar de Oliveira, que é um ícone falecido. Há a necessidade de todo trabalho, por pequeno que seja, ser remunerado. Há uma frase de Hermilo (Borba Filho), que eu também digo muito pra não pensarem que eu sou contra o profissionalismo. Ele diz que a profissão dignifica a arte, e isso é verdade. Se eu fosse começar hoje, claro que eu seria uma atriz profissional, eu apenas não posso fazer isso, já estou na minha hora de ir embora, e eu tenho que defender uma bandeira que eu defendi quando era mocinha.
A descoberta
No palco
Então teve uma chamada “noite de estrelas”, em benefício dos leprosos. E Dr. Waldemar me viu (NR.: Waldemar de Oliveira, médico e encenador, fundador do Teatro de Amadores de Pernambuco, que completa 60 anos em 2001). Nessa festa eu dançava, eu cantava, eu fazia esquetes. E Dr. Waldemar me assistiu e aí, como a gente vê nesses filmes, né?, eu fui descoberta por Waldemar de Oliveira. Ele então falou comigo, perguntou se eu gostaria de fazer parte de um grupo de teatro que ele tinha e eu fiquei feliz da vida. Uma moça da sociedade não pisava no palco para fazer teatro. Então ele foi pedir aos meus pais autorização e eles deram, porque Dr. Waldemar na época era uma pessoa de altíssimo gabarito aqui no Recife. E continuamos amadores até hoje.
Eu sempre tive muita sorte, eu não sei o que é, eu acho que tem atores, atrizes que trocam uma energia maior com o público, eu não sei se é a voz, se é a cumplicidade, se é que eles sentem, se tem alguma verdade, mesmo essa verdade real, entre aspas, do palco, mas eu sempre fui muito feliz nesse ponto. Eu já fiz 78 diferentes personagens. Eu já fiz tudo que você possa imaginar. Eu já fui preta, já fui branca, já fui rica, já fui pobre, já fui tudo.
Amador x Profissional Houve uma mudança de mentalidade em todas as pessoas. O amadorismo continua, eu acho que é apenas um respeito a uma bandeira 12 Continente Multicultural
Cinema Dessas 78 personagens que eu fiz, meu Deus, eu não contei as de cinema! Eu fiz o primeiro filme falado feito em Pernambuco (O Coelho Sai), dirigido por Firmo Neto. Depois eu fiz Paraíba Mulher-Macho, de Tizuka Yamazaki. Em Baile Perfumado, eu fiz a D. Armênida que era a dona do bordel. Depois eu fiz um curta, O Pedido. E agora eu fiz um de Sandra Ribeiro, A Partida, com Paulo Autran. Esse ainda não foi finalizado.
HEITOR CUNHA / DP
senhora e ao seu marido, ganhou tal graça, tal frescura, que a peça parecia não apenas pular viva e espontânea, de uma noite de folguedos do sertão brasileiro, mas atingir aquela intensidade irreal de transcendência artística. A arte parece sempre ser uma transposição imaginativa da realidade. Foi isto o que a senhora nos deu, naquele começo de noite da Maison du Brésil, em Paris. Saí dali para o meu avião com um pouco da acre poesia nordestina, cantada em meu espírito. Creia que é com muita satisfação que eu desejo com essas palavras agradecer-lhe a oportunidade que tive de assistir à pequena peça de Suassuna recriada pela sua arte e a de seu marido. Com os cumprimentos muito cordiais, Anysio Teixeira”. O papel era da Presidência da República, Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES. Já pensou que maravilha ter uma carta dessas! Ariano, depois, me disse: “Isto não é uma carta. Isto é um diploma!”
Vida de atriz
O diploma Olhe, eu vou lhe contar uma que você nem vai acreditar. Eu fui homenageada em Portugal. Na Mostra Internacional de Teatro, Meeting 99 Geninha da Rosa Borges. Em Valongo, uma cidade que fica a oito minutos do Porto. Em 68, eu fiz um estágio na Inglaterra. E, de lá, fui à França e levei O Marido Domado, de Ariano. E foi uma coisa maravilhosa. E, que sorte, que sorte!, imagine, Anysio Teixeira, o maior educador do Brasil, estava na platéia e quando chegou no Brasil me escreveu esta carta. E eu vou ler, viu? É pequenininha: “D. Maria Eugênia, recordo-me da Maison du Brésil, da peça de Ariano Suassuna, O Marido Domado, representada pela senhora e seu marido, Otávio da Rosa Borges. A impressão que me deixou a peça foi a de uma deliciosa transfiguração poética, de um pouco da rude candura nordestina, daquele palco desnudo do Le Corbusier. A representação entusiasmaria o autor. Tudo o que Ariano Suassuna escreveu, graças à
Eu acho que a minha grande dificuldade foi em relação à família. Eu boto a carapuça: eu acho que não dei aos meus filhos o que poderia ter dado. Engraçado, a gente se ilude muito. Eu pensei que eu ia ser atriz, e conhecida, e aplaudida, com muitos amigos, entende? Mas filho gosta é de beijinho, de carinhozinho, de sentar no colo, né? Eu acho que nessa parte eu falhei muito. Eu dava assim, no geral, o que eu achava que era o melhor. Eles estudaram sempre nos melhores colégios, tiveram aquela coisa de aula de dança, aula de violão, aula de inglês, francês e tudo. Então eles têm um bom lastro. Mas, esse outro lado, de colinho e de beijinho, não é tanto, porque eu também não sou uma pessoa disso, mas filho não reconhece isso.
Finale O teatro foi quase tudo na minha vida... E eu digo a você, eu ’tô vivendo uns pedaços de tempo que estão enchendo a minha vida que eu acho que são frutos ainda dessa coisa minha com o teatro. (FL) Continente Multicultural 13
Marcelo Valente EDVALDO RODRIGUES / DP
Jovem intérprete de Cristo, na Nova Jeru Dança inicial Desde muito pequeno, 6, 7 anos, eu já fazia todas as peças do colégio. Eu adorava fazer. Quando eu tinha 18 anos, comecei no Balé Popular do Recife. Comecei dançando e, seis meses depois, entrei para o teatro. E eu acho que foi inevitável. Eu entrei disposto a ganhar dinheiro com o teatro. Não ficar rico, ninguém quer enriquecer com arte, mas viver disso. E fazia muita coisa, muitas peças, para poder ter um orçamento, pagar as contas. Eu lia aquelas notinhas: – ’Tão ensaiando tal peça! Eu ia ver os ensaios do grupo e pedia para participar da peça. Só que em geral a peça já estava com o elenco fechado. Então eu falava: “Olha, me deixa como substituto?” Até hoje faço isso. Eu vejo uma peça em cena que me agrada, vou lá para produção: “Eu queria entrar para esta peça. Me deixa ficar como substituto?” Aí eu fico lendo os personagens masculinos todos e se precisar eu entro. Eu entrei em muita peça dessa forma. Foi assim na Paixão de Cristo, em 97, entrei como regra três e fiquei. Quanto a estudo, estou matriculado na Universidade Federal. Só que não sou nenhum aluno modelo, porque eu fiz as cadeiras de interpretação, mas falta terminar as cadeiras de pedagogia.
do novo. Só que elas não vão se tornar uma chama, uma labareda, porque o ator não pode largar o trabalho e o tempo que ele tem pra dedicar ao teatro não é suficiente para que ele lapide o seu talento. E aí a gente fica sempre no meio do caminho. Nós temos potencial, que nunca é aproveitado.
Amadorismo
A força da arte
Eu acho que o sindicato pode dar um número preciso, mas tem uns 2 mil atores que estão em atividade no Recife. Quase todos, ou uma imensa maioria, são amadores. Eles trabalham como bancários, professores e fazem teatro nas horas vagas. Que quer dizer isso? Quer dizer que a gente nunca vai conseguir o grau de qualidade necessária para ser profissional. Então, as nossas peças têm sinais de novidade... fagulhas
A arte alimenta a alma das pessoas. Ela muda pessoas por dentro. Isso é uma coisa que só se consegue com anos de religião, de convívio com um grupo solidário, amigos, uma esposa. Um filme pode fazer uma pessoa mudar completamente. Assistir a um filme e sair outra pessoa. Ver uma peça e sair outra pessoa. Esse poder é parte da arte, ela entra em você e muda você por dentro. Você nem se dá conta da mudança.
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Uma paixão irresistível salém, tem visão quase religiosa da arte Marketing O cinema vem encontrando um caminho, que é a associação de pessoas que estão na mídia com a estética. Cabe ao teatro fazer isso também, como já aconteceu com a Débora Colker na dança, como acontece com o pessoal do Pelourinho, o Olodum. Aí é onde a TV nos salva. Eu tiro por um astro de televisão que é o Antônio Fagundes. Ele tem um grupo, que tem uma estética. E vende esta estética. O empresário sabe que tem o Fagundes no grupo e compra essa estética, mesmo sem saber que estética é essa. A Cristiana Oliveira tem um trabalho de base, com crianças carentes, está formando um grupo, construindo sede, montando um centro cultural. E ela está construindo essas coisas porque é um medalhão. A gente em Pernambuco tem Arlete Salles, José Wilker, Patrícia França, Tuca Andrade, Marco Nanini, Bruno Garcia, uma série de pessoas que foram lá, já alcançaram um espaço. O que tem que ser é isso. Alguém ou grupo que tem uma proposta, que tem uma estética, ir até esses medalhões pernambucanos que alcançaram a mídia e fazer essa ligação. É o que eu acho que é possível.
O último Cristo Há dois anos ganhei o papel do Cristo. Vou fazer mais um ano e depois eu paro. Por quê? Porque eu sei o que é você ficar como regra três. O que é ficar no banco. E vivi isso muito tempo. Aí já é um acordo moral que eu tenho comigo: eu entro agora nas peças e assim que eu acho que deu tempo, que o personagem está bem construído, que consegui chegar ao grau de qualidade que eu queria... é claro, sempre se pode melhorar, mas você alcançou um patamar de qualidade plena, aí eu peço substituição. Eu não vou colocar como uma boa ação, porque fica parecendo um
escoteiro. É renúncia. Acho que você pensar um pouco no outro é quase um vício. Se você começa pensando, é como mentir. Mentir uma vez... e aí você mente de novo... e termina virando mentiroso. É como qualquer vício. O contrário também procede. Se você pensa no outro, começa pensando um pouco, segurar a porta do elevador para alguém entrar, dar a vez no trânsito, se você continua levando isso, você vicia. E você começa a abrir mão de coisas que você não pensaria, antes. Acho que uma das funções do ator é a de interpretar o gênero humano, questionando essas coisas, tal. Mas eu confesso que essa parte de abrir mão, isso é por conta dos meus pais, porque eles são muito religiosos, minha mãe, sobretudo. Se você cresceu assim... Eu sinto falta desses pequenos amores ao próximo, entendeu? Sem eles, conseqüentemente, faltam os grandes amores ao próximo, né? E é por aí.
Escola da Paixão A Paixão de Cristo foi uma escola muito específica para mim. Acho que precisa que alguém, algum exegeta, escreva sobre aquele espetáculo porque ele é único. Porque você atua com público a meio metro de distância das cenas e público a 50 metros. Então você tem que fazer uma atuação que seja crível para quem está junto, ou seja, lágrimas, se é uma cena de choro, e ao mesmo tempo tem que ser um gesto grande para que quem está lá a 50 metros também se emocione. E sem que uma coisa comprometa a outra. Sem que o gesto grande, para quem está perto, pareça exagero, e nem que o gesto pequeno, para quem está vendo de longe, pareça invisível. Aí é muito difícil. Além do fato de ser dublado, é uma dublagem invertida. É ao contrário, eu tenho que me concatenar com a dublagem, em cena, tem um som saindo e FL) eu mexo meus lábios com o som. (F Continente Multicultural 15
O NASCIMENTO DO “A arte de representar não nasce e morre dentro dos limites de um país. Penso que todos nós nos influenciamos e, embora de comportamentos cênicos distintos, todos nós, atores, nos interdependemos.” Fernanda Montenegro, em O Ator e seu Ofício
O
Teatro Brasileiro é um filho torto da religião católica. Não há registro de nenhuma atividade cênica anterior à época do Descobrimento. Foram os colonizadores portugueses que realizaram os primeiros experimentos teatrais, na verdade rituais religiosos teatralizados. O texto: as pregações dos jesuítas que queriam impor a fé cristã. O palco: as pequenas barracas de caniço e barro. Os atores: na maioria padres ou índios jovens – até mesmo crianças –, que tinham um maior poder de convencimento e credibilidade. A platéia: índios mais velhos e colonos recém-chegados ao Brasil. George 16 Continente Multicultural
O padre jesuíta José de Anchieta (15331597) pode ser considerado o pioneiro do teatro do País. Foi dele a primeira peça escrita em terras brasileiras, O Auto da Pregação Universal, de 1567, um mistério medieval em versos. Nos duzentos anos seguintes, as atividades cênicas ficaram restritas aos autos religiosos, quase sempre falados em tupi-guarani, já que os índios não tinham leitura, nem escrita e os colonos eram analfabetos. O longo vazio teatral brasileiro só iria sofrer uma mudança significativa na segunda metade do século 18, quando se têm notícias de fatos como o ocorrido em Cuiabá, onde “um ator negro, escravo, recém-liberto, de nome Victoriano, (...) considerado inimitável nos papéis de caráter violento e altivo, interpretou o papel de Bajazet na peça Tamerlão na Pérsia. Segundo o historiador Ênio Carvalho, no livro História e Formação do Ator, o primeiro elenco dramático permanente seria criado, em 1790, e dirigido por um tenente-coronel de Milícias. Depois dos jesuítas pregando um mundo melhor através da religião católica, chegaram os militares. O Teatro Brasileiro já Moura nasceu panfletário e engajado.
O ATOR BRASILEIRO Mas, as atividades cênicas permaneceram esparsas e, somente com a chegada de D. João VI para viver no Brasil, é que surgiu a urgência da construção de um teatro decente para “elevação e grandeza” da nova capital do Império, o Rio de Janeiro. Durante esse período, as mulheres eram praticamente banidas da cena e os papéis femininos interpretados por homens. Mulher em teatro era sinônimo de má fama e péssima reputação. A herança do preconceito chegou até os anos 40/50, no Teatro de Revista, quando para ser atriz era necessário mostrar a carteira de saúde, assim como faziam as prostitutas para trabalhar. João Caetano (1808-1836) é o primeiro ator dramático genuinamente nacional. Ele criou uma companhia com atores, atrizes, cenógrafo, maestro e um repertório de mais de 30 peças. É de João Caetano também Lições Dramáticas, um livro que sintetizou as normas da interpretação para o ator. Na verdade, tratava-se de uma condensação dos manuais acadêmicos europeus de teatro. Ou seja, o nosso primeiro ator nacional copiava os modos estrangeiros. Uma nova safra de atores, entre eles Procópio Ferreira, seria formada pela Escola Dramática Municipal do Rio de Janeiro, fundada em 1911. O foco central do teatro nacional feito nesse período era o ator. Todas as montagens eram encabeçadas pelas estrelas das companhias e tudo girava em torno delas. Um exemplo clássico dessa escola de fazer teatro e uma verdadeira lenda foi o ator Leopoldo Fróes (1882-1932). Vaidoso, Fróes tinha a fama de nunca ensaiar e jamais decorar os papéis. Na hora do ensaio, uma cadeira vazia era colocada no centro do palco no lugar onde o ator deveria estar. O ensaiador avisava aos coadjuvantes: “Ali está Dr. Leopoldo
Fróes, o resto do espaço é de vocês.” No dia da estréia, Fróes aparecia, improvisava, colocava “cacos” no texto e arrancava aplausos delirantes da platéia. Somente em 1943 o Teatro Brasileiro entrou na maioridade. O ator vedete não era mais o centro da cena, mas sim, o espetáculo como um todo harmônico: texto, ator, luz, cenário, música, figurino, tudo sob a batuta de um encenador. O marco da transformação foi o clássico Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com direção de Ziembinski (1908-1978): 174 mudanças de luz e um palco dividido em três planos dramáticos. A partir dali a cena nacional nunca mais seria a mesma. Novos grupos como Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), Arena, Oficina, Opinião e atores como Cacilda Becker (1922-1969), Sérgio Cardoso (1925-1972), entre outros, despontariam para construir o moderno teatro brasileiro. Hoje, o ator brasileiro é um profissional que, na maioria dos casos, cursou uma escola onde teve uma formação universal sobre as várias técnicas de interpretação. Existem também grupos, como o CPT – Centro de Pesquisa Teatral, de Antunes Filho, onde atores se reúnem em torno de uma formação extra-acadêmica, que resulta em espetáculos filiados a uma estética própria de cada encenador. E há os jovens atores da televisão que num piscar de olhos se tornam conhecidos em todo o Brasil, independentemente do talento dramático. Mas aí não estamos tratando de atores de verdade, e sim, de celebridades. E isto já é outro papo, mais para O Show de Truman e a sociedade como um grande espetáculo. George Moura é jornalista e trabalha como roteirista e supervisor de texto na Rede Globo
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As relações do teatro
nordestino e ibérico
Cena do espetáculo teatral O Trovador Encantado, dirigido por Moncho Rodriguez. As marcas do encenador podem ser vistas no Nordeste do Brasil, na Espanha e em Portugal
O encenador espanhol Moncho Rodriguez não teme a danação, parecendo provocá-la, ao contagiar-se de teatro e humanidade
F
alar das relações do teatro nordestino e ibérico é retornar ao começo da nossa história comum, quando a criação artística do país quase não existia. Durante muito tempo fomos espectadores passivos de companhias européias mambembes, que por aqui aportavam. Hoje, os nossos artistas fazem o percurso contrário, buscando palcos e ruas do Velho Mundo. Nos últimos anos muito se investiu na reaproximação do teatro nordestino e ibérico. Os projetos Cumplicidades, Cena Lusófona, Universo do Cordel e Identidades, entre muitos, apostam numa parceria em que já não existe cultura dominante, colonizador ou colonizado. O encenador galego Moncho Rodriguez é o “Quixote” dessa batalha por um convívio permanente entre as duas culturas. Trabalhei com Moncho pela primeira vez na montagem de O Reino Desejado, texto que escrevi em parceria com Assis Lima e Antonio Madureira. Produzido com escassos recursos, o Reino deveria estrear dentro da primeira mostra de teatro nordes-
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tino e ibérico, Cumplicidades. Moncho exigia dos atores uma disciplina de escravo. O ator varria o galpão de ensaios, costurava e bordava seus figurinos e adereços, cuidava dos objetos de cena. Dedicava-se em tempo integral à montagem. Aquecia-se horas seguidas, estudava, pesquisava. Entre as mais ousadas e belas encenações que vi, algumas são de Moncho. Ele não teme a danação, parecendo provocá-la. Contagia-se de teatro e humanidade. E arrasta na mesma torrente os amigos, atores e todos que o cercam. Não há sono, nem descanso, nem hora de comer. De roldão, mergulha-se no delírio febril do encenador genial, que quase sempre maltrata, escarnece, faz inimizades, pagando com uma única moeda: a devoção obsessiva ao teatro. Criar ao seu lado é sempre um doloroso e machucado ofício. Seus bens cabem na mala de viagem. Ele não possui um único imóvel que possa ser arrolado em inventário. Mas, no Nordeste do Brasil, em Portugal e Espanha são fortes as marcas do seu teatro. (RB)
Ase constrói arte
pelo risco
O encenador espanhol Moncho Rodriguez acha que a saída para a cultura nordestina não está no Sudeste brasileiro, mas sim no atravessar o Oceano Atlântico, em busca de suas raízes ibéricas
M
eu nome é Ramon Ro- sora de português, poesia e sonho. Lourdes foi a driguez Guisande, mas responsável pelo despertar dentro de mim de uma para o teatro batizei-me nordestinice que carreguei para sempre. Moncho, que é Ramon Em 1966, o colégio dos Jesuítas de Vigo me em Galego. Nasci em Vi- esperava com sua disciplina militar. Meu avô rico go, na Galícia, no dia 6 de me ignorava com sua rudeza galega onde o trabalmaio de 1951, numa casa ho é o único laço que pode aproximar homens, com janelas para o mar. Minha mãe é Olga e meu pensamentos e vontades. Fez-me trabalhar como pai Ramon, como eu. Não fosse meu pai ter emi- operário nas horas vagas e sem saber deixou que grado para o Brasil, certamente eu seria um em mim se fossem construindo magníficos cenápescador. Herdei dos meus avós o cheiro salgado do rios de ferro e mecânica. A fábrica serviu-me como mar e a vontade anarquista de viver intensamente. escola social e artística. Vim para o Brasil com três anos, de início Aprendi a falar galego e fiz crescer no meu para Londrina, depois São Paulo, mais tarde Sal- peito uma raiva cega por tudo o que cheirava a vador, Recife e Campina Grande. Em Campina Castela. No Teatro Popular Galego, conheci BlanGrande aprendi as primeiras letras e ganhei meu co Amor. Ali ensaiei as primeiras técnicas de ator primeiro concurso, na Rádio Borborema, com um profissional, de agitador prematuro, de nacionalista poema escrito pelo professor Barreto, onde eu galego, e de homem de teatro independente. anunciava coisas que faria se um dia fosse prefeito. Do Teatro Popular Galego, com as primeiConcorri com um menino louro, de óculos, bem ras experiências de Método e o corpo exercitado mais alto do que eu, que se chamava Felix Araújo. por atores latino-americanos, fui direto para GênoEle perdeu. Muitos anos mais tarde eu o encon- va, na Itália, viver o porto, os prostíbulos, o Partido trei: ele era prefeito. e as aulas de desenho industrial. De Gênova, MiResgatado por minha família de industriais lão, novamente Vigo, e, em seguida, a fuga para da pesca, na Espanha, voltei para Vigo em plena Santiago de Compostela. Vi teatro no obradoiro e efervescência romântica de adolescente. A única coi- acompanhei titeriteiros com seus cenários em fursa que aprendera na escola fora recitar Castro Alves, gões, caindo aos pedaços. Gonçalves Dias, Jansen Filho e Até chegar à Escola DraLourdes Ramalho, última profes- Moncho Rodriguez mática Galega, com Manolo LouContinente Multicultural 19
renço, foram anos de aprendizado e experiências criadoras, perseguições e lutas contra a censura que me proibia de encenar Maiakovski, no Circulo Ourensan. Lugar onde Vieito Ledo, Bernardino Granhã, Suso Monteiro, Victor Freixanes, Xulio Lourenço, Manolo Conde deram-me o norte para conhecer Brecht, Arrabal, Blanco Amor e, de quebra, descobrir João Cabral de Melo Neto. Representava-se Morte e Vida Severina, nos sindicatos, associações de bairro, onde muitas vezes tínhamos como camarim o estábulo das vacas e de cachê levávamos a ceia e um bom vinho. Criei-me no teatro do fazer e discutir, experimentando as técnicas de todos, embriagando-me de imagens nos cabarés noturnos, na Revista Espanhola, nos espetáculos das Zarzuelas, nas comédias do Teatro Independente, nas máscaras da farsa, e só mais tarde nos estudos do Método de Wilham Layton, velho professor cuja fama se alastrava por toda a Espanha católica, profana, stanilavskiana. Em 1974 ensaio uma primeira encenação como profissional: Amores e Crimens de Xão Panteira, de Eduardo Blanco Amor. Uma farsa galega de raiz popular, com o grupo Teima. Surgiu a Sala Carral de Vigo, num antigo casarão que fora sede da Falange, grupo da extrema direita espanhola. PréEm suas encenações, Moncho prega que a arte se constrói pelo risco, não se tendo medo de lançar mão de toda bagagem memorial. Ele busca um teatro que exija o exercício da mutação física e psíquica do ator
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dio fechado e abandonado pelo Estado. Depois de uma verdadeira artimanha guerrilheira, roubamos as chaves do diretor geral de cultura e em 48 horas tínhamos nas mãos o projeto da primeira sala de teatro independente da Galícia. Nesse local, ainda em plena ditadura franquista, atores, poetas, escritores e ativistas criamos o Obradoiro de Investigacion Dramática, por onde passaram mais de 70 grupos e companhias em um só ano. Em 1975, no OID, criamos o Grupo Artello. Comemoramos a morte de Franco estreando um Arrabal revolucionário. Foi a primeira profissionalização coletiva de toda uma companhia. Procurávamos um teatro de pesquisa, de esquerda, palavra sem o menor significado hoje, um teatro revolucionário que pudesse se apresentar em qualquer espaço, em cidades grandes e aldeias. Eu tinha, então, 24 anos, barbas de um homem de 90 e a independência nas mãos. O resultado de muitas experimentações e horas infindáveis de laboratório foi um espetáculo infanto-juvenil que marcou o caminho de uma estética que até então era só um rascunho: Tarara-Chis-Pum! – sátira cruel contra a educação espanholeira nas escolas da Galícia. Em 1977, depois de trabalhar com Julian Beck e Judith Malina, de ter experimentado os métodos do Teatro Livre de Córdoba, na Argentina, fui aprender a andar em pernas de pau, com Eugenio Barba e sua equipe antropológica. Fiz experimentos com o grupo Taffuers da França, o Teatro 8, Gines Sanches do Teatro Laboratório de Sevilha. Indeciso entre a influência do TEI de Madrid e as experiências com Barba em Lekeitio, no País Basco, voltei à Galícia para formar com Manolo Lourenço a Companhia Luis Seoane da Corunha. Encenamos Plínio Marcos, em galego – Dous Perdidos Nuñha Noite Suxa. O espetáculo acontecia numa gigantesca cama elástica. Eu utilizava métodos e técnicas cruzadas: Barba, Brecht, Grotowisk, Stanislavski – uma mistura explosiva cujo resultado me ensinou que a arte se constrói pelo risco, não se tendo medo de lançar mão de toda a nossa bagagem memorial. Um teatro que exigia o exercício da mutação física e psíquica do ator. Em 1979 fui contratado pelo Teatro Universitário do Porto, para renovar um teatro histórico, resistente por 40 anos contra a ditadura. Vitor Garcia havia passado por ali e outros grandes encenadores. Meu espírito anarquista-disciplinado
impulsionou-me a transformar o TUP numa gigantesca selva para apresentar Os Últimos Dias da Solidão de Robinson Crusoé. Eu estava em pleno apogeu da minha carreira de encenador, começando a revolucionar a cena com propostas de interpretação onde a cumplicidade entre o ator e o espectador era o elemento fundamental. A minha carreira foi marcada pela arte do ator, pelo esforço em comprometê-lo com as necessidades de um novo espectador. Tentei formar atores que pesquisam e procuram novas linguagens, fazendo da sua arte uma experiência vital. Depois fui para o Teatro Experimental do Porto, onde fiquei até 1984. Nesse ano, formamos Os Comediantes, até a encenação de Don Juan Tenório, que arrebatou todos os prêmios dos festivais internacionais por onde passou e que me fez afastar da companhia. Um ministro de Cultura de Portugal, Coimbra Martins, com sua política de não subsidiar projetos de estrangeiros, fez com que eu me fartasse da dependência de um teatro que só consegue viver com esmolas do Estado. Brasil. Montagens em Recife, criação da Companhia Estável de Teatro das Alagoas, encenação comercial no Rio, até receber o convite que me devolve ao teatro de Lourdes Ramalho, em Campina Grande, Paraíba. Montamos As Velhas, que elevou o teatro do Nordeste à contemporaneidade e fez com que Lourdes Ramalho fosse reconhecida internacionalmente. Depois Fêmeas, O Romance do Conquistador, com Racine Santos, do Rio Grande do Norte, À Luz da Lua os Punhais e A Grande Serpente. Enceno em quase todos os estados do Nordeste, sempre encaminhando as montagens para cidades e festivais da Península Ibérica. Estabeleço um circuito nordestino-ibérico. Acredito que o caminho para o teatro nordestino não é o sul-sudeste, mas atravessar o Atlântico. Crio o Projeto Cumplicidades, assumido pela Fundação Joaquim Nabuco, que faz o impensável: trazer os mais significativos artistas portugueses e espanhóis para um circuito nordestino e depois levar os nordestinos para um circuito ibérico. Volto a Portugal, convidado pela Câmara Municipal de Guimarães, para implantar um pro-
jeto de teatro que pudesse envolver toda a comunidade sem abdicar de linguagens contemporâneas. Um teatro com um pé fincado na memória e outro no universo experimental. Também remontei com a Companhia de Teatro Guirigai da Espanha, a Oficina de Dramaturgia e Interpretação Teatral de Guimarães, Portugal, e o Teatro Piolin, de João Pessoa. Atualmente, busco formar uma equipe virtual de parceiros e colaboradores, espalhados pelo Nordeste do Brasil e pelo mundo ibérico, que em qualquer momento podem estar juntos, trabalhando numa aventura teatral. Cristina Cunha, atriz portuguesa de teatro e televisão, é uma forte âncora nesse novo teatro que procuro. Com ela consegui chegar a um entendimento sobre poética e imagens, compartilhando os sonhos de um teatro mais aberto e participativo. Outros colaboradores e companheiros que compartem a idéia desse meu teatro da memória são: Luis Matilla, Marcelino Kukas, José Ramalho, Aglaé Fontes, Ronaldo Brito, Américo Rodrigues, Rui Cunha, Narciso Fernandes, Lourdes Ramalho... E agora, com a idéia dos Centros de Pesquisa, rede de teatros experimentais que busca a expressão de um teatro ibériconordestino, outros companheiros se engajam nessa aventura.
Cena da peça Os Desencantos do Diabo, na qual se vê como a carreira do diretor foi marcada pelo esforço em comprometer o ator com as necessidades de um novo espectador
Trecho compactado de depoimento do diretor teatral Moncho Rodriguez
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O rigor ritualístico e sutil dos procedimentos cênicos é uma das características que distinguem a cena oriental da ocidental, levando intelectuais como Antonin Artaud a acreditarem na superioridade do teatro Oriental sobre o Ocidental
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Das Áfricas Árabes e Americaníndias
caba de sair pela editora Nórdica o livro Teatro a Bordo de Naus Portuguesas, de autoria de Carlos Francisco Moura. Talvez seja este o primeiro editado no Brasil, sobre o tema. De publicação portuguesa, é conhecido o livro de Mário Martins, Teatro Quinhentista nas Naus da Índia. Este mesmo autor havia publicado, ainda na década de 70, pelas Edições Brotéria, um outro com o título: O Teatro nas Cristandades Quinhentistas da Índia e do Japão. E já na década de 50, Armando Martins Janeiro tirara em Tóquio, em edição de pequena circulação, um opúsculo sobre o teatro Nô, onde a intermediação da cultura portuguesa na abordagem do teatro tradicional do Oriente é explícita. Esta pequena bibliografia, que é parte de uma maior sobre a presença portuguesa no Oriente a partir do ciclo das grandes navegações, abre pistas para explicar a migração de traços reconhecidamente orientais que viriam a se instalar em muitas manifestações do teatro popular de extração tradicional que ainda hoje é encenado no Nordeste brasileiro. É observável essa referência, por exemplo, na dramatização dos combates realizados entre grupos de Reisados de Congo, durante as chamadas Quilombadas, ou mesmo nos combates entre mouros e cristãos, registrados durante as apresentações de grupos de Fandango (como é conhecido no Ceará) ou Marujadas. Em ambos os casos, trata-se de encenações acentuada- Oswald 22 Continente Multicultural
mente estilizadas em um anti-naturalismo extremado, seguindo uma gesticulação meticulosa e uma movimentação ritualística predeterminada. Há, particularmente, um gesto, o de limpar o sangue da espada na veste do oponente, após enfiá-la em um inimigo, comum tanto nos Fandangos quanto nas Quilombadas, que tem uma acentuada conotação mágica, de esconjuro. Para voltar ao combate, o guerreiro há de retirar de sua arma toda mancha, sombra ou energia negativa proveniente do adversário. Gesto semelhante pode ser observado na representação de A Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno, texto de Baltasar Dias, encenada pelo Teatro Tchiloli, da Ilha de São Tomé, não por acaso, antiga possessão portuguesa, localizada na costa africana, ponto de parada no percurso das naus que seguiam o caminho do Oriente, à época dos Descobrimentos. Sabe-se que este rigor ritualístico e sutil dos procedimentos cênicos é uma das características que distinguem a cena oriental da ocidental, levando, entre outros motivos, intelectuais como Antonin Artaud e encenadores contemporâneos como Ariene Mnouchkine a acreditarem na superioridade do teatro Oriental sobre o Ocidental. Sabe-se, também, que muitos elementos simbólicos e mágicos freqüentes nas apresentações de autos e danças dramáticas nordestinas procedem não diretamente do Oriente, tendo antes percorrido os caminhos que passam pela Península Ibérica. Que outro lugar senão esse Barroso espaço privilegiado da Europa, en-
trecruzamento de continentes, permitiria a mistura? Espanha e Portugal, por muitos séculos, foram ocupados por árabes e mouros. Judeus, ciganos, celtas e outras nacionalidades do norte da Europa também se uniram ao amálgama de povos e raças que conformaram a cultura ibérica. Daí esse “misto quente” de traços culturais que ao país do Pindorama aportou com os portugueses e, por vários séculos, alimentou o que veio a se chamar cultura brasileira do Nordeste. Aqui, ao sol equatorial, novas mestiçagens se acrescentaram e até hoje se acrescentam, principalmente com a contribuição dos diversos povos americanos nativos, e africanos vindos das possessões portuguesas. No Nordeste, essa cultura de formação híbrida encontrou o ambiente propício para novas fusões, mas também para a preservação de traços que viriam a desaparecer em suas próprias origens. Alguns arcaísmos ainda encontrados por aqui, já não mais existem, enquanto cultura viva, nos locais de onde vieram: o continente africano e, principalmente, a Europa. As causas são diversas. Entre as mais prováveis registramos um certo isolamento do estrangeiro e a marcha rumo ao sertão, nos primeiros séculos. Isto funcionou como um freezer tropical para determinados usos, costumes e linguagens, vindo a se traduzir em procedimentos artísticos e performáticos nas manifestações da cultura popular. Outro fator que ajuda a explicar determinadas “permanências” nos autos, danças dramáticas e no teatro popular do Nordeste é a resistência que essa cultura profundamente mística e mágica opôs à ofensiva racionalizadora, patrocinada pela modernidade sobre a vida social. Aqui, bolsões de tradicionalismo permanecem vivos e cheios de vitalidade, como lagos que renovam periodicamente suas águas, e as fazem espalhar-se pelas margens, umedecendo o conjunto da vida cultural com novas porções de mitos, ritos, sonhos e delírios, artesanatos, escambos, curandeirismos e feitiçarias. Das Índias orientais e ociden-
tais, das Áfricas árabes, passados pela Península Ibérica, vieram os reis e guerreiros, os mateus e catirinas, que brincam em nossos reisados e tomam de assalto os palcos das malazartes e do teatro nordestino. Eis aí também nosso itinerário privilegiado de renovação. Se o teatro é oriental, como disseram, nós temos que retomar esta via direta de ligação com seu nascedouro, pelo caminho que o fez chegar até nós, o caminho das naus ibéricas, a via das descobertas e das grandes navegações. Eis nosso caminho das Índias, nada de desvios indevidos, intermediações ou fechamentos. Para nos comunicarmos com o mundo, prescindimos da autorização das metrópoles do Centro-Sul. O Nordeste sempre foi o ponto do Brasil mais próximo das grandes civilizações. Que sejamos nós, agora, os descobridores. Há muito nossa independência está consolidada. Se existe ameaça de neocolonização, ela não vem mais da Ibéria. Com portugueses e espanhóis podemos nos relacionar com toda a sem cerimônia de parentes e velhos conhecidos. Que se reabram as velhas rotas para novos intercâmbios, como acabam de fazer agora potiguares, pernambucanos e cearenses, com lusos e galegos, para encanto dos deuses e desencanto do Diabo. Falo da peça encenada por Moncho Rodriguez, a primeira co-produção do Fórum de Diretores de Teatros Experimentais do Nordeste, cuja montagem iniciou por Natal, Fortaleza e Recife, circulação que deverá percorrer o Brasil e Europa.
Oswald Barroso é teatrólogo e diretor do Teatro da Boca Rica, de Fortaleza, Ceará
A presença portuguesa no Oriente a partir do ciclo das grandes navegações, abre pistas para explicar a migração de traços reconhecidamente orientais instalados em muitas manifestações do teatro popular do Nordeste brasileiro, como a Chgança, uma variação do Fandango e da Marujada
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CINEMA
Ator do “maior épico cinematográfico” prefere o palco
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Há quem ache a interpertação que O’Toole faz de Lawrence muito nervosa e crispada, contrastando com o tom geral de equilíbrio do filme de David Lean
ocê realmente gosta da atuação de Peter O’Toole em Lawrence da Arábia? A pergunta está de volta, com a luxuosa caixa de DVD duplo que acaba de ser lançado no Brasil. Aclamado como uma obra-prima indiscutível e “maior épico de todos os tempos”, o filme (1962) do inglês David Lean entra no catálogo dos vídeo-discos no seu formato original, com tela widescreen e restaurado em todo o esplendor dos 218 minutos originais – além de acompanhado por um documentário de 61 minutos, sobre a produção. Lean filmou sem deserto de computador, sem camelos virtuais e com árabes de verdade, no Marrocos e na Jordânia, fazendo varrer as dunas depois dos inumeráveis ensaios, sob um sol de 50 graus à sombra (que chegou a derreter o negativo da película dentro das dezenas de câmeras) – e tendo que recuar, a cada tomada, com pessoal e equipamento, para filmar num deserto de areia imaculada, cujo “retoque” levava horas. No DVD, Steve Spielberg – que financiou a restauração – aparece para dizer que Lawrence é o seu “filme favorito” e, claro, não menciona a quase única restrição que pesa sobre a obra-prima: será que Peter O’Toole foi a melhor escolha para o papel do aventureiro enigmático? Ele o encarnou tão bem como o teria feito – se imagina – Marlon Brando, uma das primeiras escolhas dos produtores? Brando chegou a Fernando
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fazer testes na Inglaterra, mas foi descartado em face da maior semelhança física do estreante O’Toole, com aquele seu olhar esgazeado que de fato lembra a expressão do Lawrence de verdade, nas fotografias abundantes da sua aventura. A pergunta que se coloca ultrapassa, no entanto, de semelhanças e cabelos louros naturais: seu desempenho não terá sido terminado em overacting, numa encarnação crispada demais, “excessivamente nervosa” e despida do humor peculiar do homem estranho que foi Thomas Edward Lawrence? Sempre me interessei, pela controvérsia em torno da “super-representação” de O’Toole. O DVD veio reacender as opiniões, e meu amigo Gerald Glaser, antigo repórter fotográfico da Vogue em Roma, acaba de me enviar um presente inesperado. Em retribuição ao meu livro T. E. Lawrence: morte num ano de sombra, que lhe enviei, recebi a foto que marcou o começo da sua amizade com Peter (ou Pee-tah, na voz anasalada e com sotaque de Glendalough), devidamente autografada para o fotógrafo ainda não aposentado. Em muitas ocasiões, nossas conversas giraram em torno do filme e do ator de quem Glaser foi companheiro de farra, na juventude (e mesmo depois da celebridade do seu amigo irlandês até a medula). Diversas vezes se encontraram sem outro objetivo além das aventuras etílicas que sempre foram o “esporte” nacional da Irlanda, e, por Gerald, fiquei sabendo não só que Pee-tah levou mais de vinte anos usando meias de uma única cor (verde) ou que ele é capaz de escrever de trás para a frente, sem qualquer dificuldade – dois fatos confirmados pela autobiografia do ator, recentemente lançada. Por ela ficamos sabendo que Peter O’Toole abandonou a escola com treze anos, em 1945, para trabalhar num armazém onde aprenderia a “arrebentar barbante sem tesoura”, Monteiro até encontrar ocupação mais
digna, como assistente de fotógrafo no Yorkshire Evening News (quando Gerald também se iniciava na profissão). Mas o jovem Peter logo iria abandonar as lentes para se engajar na Marinha. Mal esquentara os beliches pequenos demais para ele (1,87m), e já se declarava enjoado da mesmice do mar, para cair nas águas da Real Academia de Arte Dramática... A qual ficaria de imediato sabendo que estava lidando com um jovem irlandês cheio de iniciativa, conforme conta o próprio ator: “Um dos meus primeiros papéis foi o de um velho camponês georgiano, numa peça de Tchekov encenada pelo Bristol Old Vic. A mim cabia entrar, com o passo arrastado, e dizer: ‘Dr. Ostroff, os cavalos chegaram’, e sair pelo outro lado. Mas isso não era para alguém como eu, nos verdes anos. Resolvi que aquele camponês era, na verdade, Stalin... e assim o interpretei: entrei coxeando levemente, como Stalin, e até dei um jeito na maquilagem, de modo a lembrar a figura dele. Entrei, portanto, com toda a coragem e o ânimo de um estreante exaltado, fervendo de ódio contra a aristocracia russa... até que ouvi alguns sussurros e risinhos, me distraí e fitei, furioso, o Dr. Ostroff, a quem anunciei o seguinte: Dr. Horse (cavalo), os ostroffs chegaram!” Celta de Connemara – “ a região mais selvagem e sem horizontes de toda a Irlanda”, segundo ele – O’Toole saiu desse país para só voltar como o astro polêmico do super longa-metragem: “Lawrence! Fiquei obcecado por aquele homem. Isso não foi bom. Eu fui me tornando Lawrence – cuja família era irlandesa, vocês sabem. Dia após dia, suas estranhezas foram me penetrando e isso sem dúvida que atrapalhou minhas interpretações imediatamente posteriores. Tive, mesmo, uma espécie de desajuste emocional, depois do filme. Ninguém pode saber o que é passar dois anos e três meses fazendo o mesmo personagem, naquelas circunstâncias de filmagem, terríveis. Só para ter uma idéia, numa cena do filme eu vi um close do meu rosto com vinte e sete anos e depois, oito segundos após, outro close quando eu estava com vinte e oito anos!” Lembro de Gerald Glaser ter dito que, nos anos imediatos após as filmagens, seu amigo ficara visitando o túmulo de T. E. Lawrence, em Moreton, sempre que estava na Inglaterra e podia programar algum final de semana em Dorset (próximo
também de Clouds Hill, o chalé do último repouso do herói da Arábia). Nesse envolvimento “extra-filme” talvez esteja uma das pistas em favor da overacting que torna a atuação de O’Toole um pouco menos equilibrada do que o “tom geral” da narrativa cinematográfica do perfeccionista Sir David Lean. Passados trinta e nove anos, a visão retrospectiva enseja, no DVD que acaba de ser lançado, talvez uma avaliação mais justa do personagem composto pelo ator que encarnou também Lord Jim, sob as ordens de Richard Brooks (e neste momento eu lembro do poeta pernambucano Tomás Seixas, que acusava Brooks de ter transformado o Lord Jim de Conrad num “Jim das Selvas atooleimado”)... além de Beckett e outros homens estigmatizados pela dúvida e pela angústia – essas marcas que são exclusivas do animal humano (o único que sabe que vai morrer). E isso sem falar nas atuações teatrais, que são as preferidas pelo astro: “O teatro não tem a fixidez do cinema. O teatro é a Arte do Momento. Sou apaixonado pelo efêmero e odeio a permanência. Representar é transformar palavras em carne. Meu Deus, o que são filmes, afinal? Apenas uma porra duma série de fotografias animadas, e mais nada. Mas o teatro! Ah, ali se pode encontrar a impermanência que eu amo. É um reflexo da vida, de certo modo. É como... construir uma estátua de neve... longe do deserto.” Aos 70 anos, Peter O’Toole aparenta até mais do que isso, nas fotos recentes. Está bem gasto o ator – longe do deserto da alma de Lawrence e do seu próprio retrato quando jovem que aceitou o papel (recusado por Albert Finney) do herói “imortalmente moço”... Mas, de algum modo, ele ainda mantém algo do velho aplomb de celta apostador no cavalo bravo da vida – considerando o tanto que bebeu do seu cálice, no sentido figurado e também literal, a vida que levou, as marcas na mão esquerda (no colégio, as freiras irlandesas lhe batiam nesta mão, para “obrigá-lo a não ser canhoto”) e outros sinais do talento desenvolvido para, mais do que ambidextro, tornar-se o ator, ambíguo e intenso, do único super-espetáculo ao mesmo tempo grandioso e intimista da história do cinema. Fernando Monteiro é escritor
Peter O’Toole, durante as filmagens de Lawrence da Arábia, em foto autografada para seu amigo, Gerald Glaser
Capa do LP com a trilha sonora de Lawrende da Arábia
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SÉCULO 21
A sed hege
A idéia de que a combinação de raças e culturas empobrece o Brasil foi e ainda é inconscientemente a base da percepção das nossas elites
E
xistem as culturas em extinção, as culturas isoladas, as culturas dos grupos sociais, as culturas regionais e nacionais e as culturas dominantes e as hegemônicas. Cultura e economia andam juntas, mas são diferentes na essência e forma. Marx sabia disso quando foi para a Inglaterra estudar o capitalismo no seu estado mais avançado para poder entender e projetar as suas estruturas e tendências mundiais. Se, por acaso, ele vivesse hoje e quisesse estudar o futuro da cultura, teria então que passar pelas Américas.
Embora o berço e a juventude das civilizações repouse na Eurásia, as formas contemporâneas e as tendências futuras foram e são moldadas nas Américas. A China, o Oriente Médio, Grécia e Roma são as raízes do mundo que conhecemos. Mesmo possuindo ainda as marcas profundas da base cultural do planeta, todos estes lugares estão relegados a uma posição acessória perante os novos valores que emergiram nas Américas. Isto porque o caldeirão cultural que se produziu no novo continente possibilitou pela primeira vez a miscigenação entre os mais diferentes povos dos quatro cantos do planeta. Africanos, asiáticos,
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 26 Continente Multicultural
ução da cultura mônica europeus não apenas combinaram seus valores, foram mais longe, produzindo uma nova cultura da destilação conjunta de elementos e experiências variadas. Mais importante que um mundo multicultural é sua conseqüência a longo prazo: o interculturalismo e o transculturalismo. A América Latina, particularmente o Brasil, é o maior campo de fusão e fluidez cultural da história. Os brasileiros ainda têm dificuldades de compreender que no Brasil se produziu a melhor semente do mundo de amanhã. Mas assim como o motor do capitalismo trocou a Europa pelos Estados Unidos, onde as elites sabem exercer sua hegemonia, hoje o poder da fusão cultural começa a deixar o Brasil, sem que muitos brasileiros se dêem conta. Pior, o complexo de inferioridade e a idéia de que a combinação de raças e culturas empobrece o Brasil foi e é inconscientemente ainda a base da percepção das nossas elites. Durante certo tempo o mundo olhou para a fusão cultural brasileira como um possível modelo para o futuro da Humanidade e para uma resposta positiva à pergunta seguinte: poderá a civilização do século 20 ser mais do que o somatório de tribos étnicas prontas para matar e roubar em nome de uma identidade pragmática e descartável? A incapacidade dos governantes brasileiros de entenderem o país e a sua insensibilidade para reduzir as desigualdades sociais permitiram que as cruéis mazelas do
Brasil deformassem a benevolência, a cordialidade emergente do nosso transculturalismo. Afinal, temos muita miscigenação, com muita discriminação. Boa parte da produção transcultural do Brasil foi rotulada pelas elites de folclore. Para nossas elites a miscigenação era um mal que condenara o Brasil ao atraso eterno. Embora desde Gilberto Freyre esta percepção venha mudando, ela resiste até hoje no subconsciente dos governantes. Quando o mundo percebeu esta realidade concluiu: se os brasileiros se viam como inferiores, então a via brasileira para um mundo de comunhão cultural deveria ser uma farsa e seria melhor manter a política multicultural de cada macaco no seu galho do que a armadilha transcultural da miscigenação brasileira. Preferindo pagar dois dólares por um hambúrguer do que um dólar pelo nosso nutricionalmente superior prato feito: legumes, cereais, bife e suco; preferindo Papai Noel e neve de algodão, casar com as louras e fornicar com as morenas, nossas elites sufocaram a sedução da nossa cultura e a impediram de se tornar hegemônica. Agiram para reforçar a imagem de um Brasil desigual e inimigo da natureza e entregaram o país à lógica cultural dominante de um mundo formado por tribos com identidades pré-rotuladas, mundo dos guetos e do ódio étnico global. Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com
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MAURILO CLARETO / AE
CONVERSA FRANCA
José Saramago O dinossauro fala
Escritor reage à classificação de animal político em extinção e analisa a relação literária entre o Brasil e Portugal
U
m dos primeiros mandamen- cativa para o desejo de entrevistar um Nobel, além tos do Manual de Boas Manei- da óbvia curiosidade jornalística. Quem sabe, o que ras Jornalísticas diz que repór- me movia era a curiosidade de ouvir a palavra desse ter que se preza não deve es- espécime raro: um intelectual milionário. Afinal, a crever na primeira pessoa. Pe- conta bancária dos felizardos agraciados pelo Prêço licença aos Guardiães da mio Nobel recebe uma injeção substancial – algo Profissão para cometer uma pe- em torno de um milhão de dólares. Mas este é um quena confidência, na primeira pessoa do singular: motivo inconfessável, além de tolo: não há notícia sempre alimentei o desejo de entrevistar um Prêmio de nenhum Nobel de Literatura que, depois de emNobel de Literatura. Se eu vasculhasse minhas flo- bolsar a grana, tenha de repente se transformado restas interiores em busca de uma explicação razoá- num desses novos-ricos semi-analfabetos que povel para esta pequena obsessão, certamente voltaria voam as páginas de revistas como a Caras com seus da expedição de mãos vazias. sorrisos de mil dentes, pele Não encontro nenhuma justifi- Geneton Moraes Neto bronzeada pelo ócio da Côte 28 Continente Multicultural
ZENIVAL
grunhir um “thank you, D’Azur e prataria cuidadosamiss Janis Freedman” – é mente exposta na sala de estar esse o nome da megera. para as lentes dos fotógrafos. O corvo voltaria a É gente que juraria de pés roçar a porta da minha casa, juntos que Ezra Pound é notravestido de carteiro da me de creme de beleza. Para ECT, com um envelope felicidade geral da Literatura, branco de bordas vermelhas a Academia Sueca não provonas mãos. Remetente: a secou, até agora, nenhuma transcretária de outro Nobel de mutação dessa espécie. De qualquer maneira, Raul Pompéia: aprendizagem Literatura, o russo naturalizado americano Joseph lancei-me ao mar, em busca de uma literatura escrita em português e criada no Brasil Brodsky. O nome de Brodsde um Nobel (milionário) ky tinha despertado minha que pudesse ditar belas sentenças ao meu velho e alquebrado gravador. Mi- atenção desde que um resenhista entusiasmado esnhas duas primeiras tentativas, no entanto, resulta- crevera que os leitores poderiam fazer uma experiram em clamoroso fracasso (os dois fracassos foram ência: quem abrisse aleatoriamente o livro de enprontamente mantidos em sigilo, como faz todo re- saios Menos De Um, publicado por Brodsky nos anos 80, poderia ter a certeza de que aprenderia alpórter que se preza). Primeiro alvo de minha caçada: Saul Bellow, go de útil, não importa a página escolhida. Mr. o canadense de ar entediado que conquistou uma Brodsky dispensou delicadamente a convocação vaga no primeiro time da literatura americana com que lhe fiz para que reverenciasse meu gravador livros como Herzog e O Legado de Humboldt. Uma Sony portátil. Uma vez, ele escreveu: “Em matéria voz afável – como convém a uma secretária de fracassos, a tentativa de recordar o passado equiencarregada de erguer muros de proteção entre vale à pretensão de entender o sentido da existência. uma celebridade e o resto dos mortais – sugeriu As duas coisas nos fazem sentir como um bebê que que o pedido de entrevista fosse feito por escrito. segura uma bola de basquete: ela escorrega consCumpri o pequeno ritual. Fiz a primeira tentativa tantemente das mãos”. Quem sabe, conceder a miatravés de uma carta enviada ao escritório que lésima entrevista sobre a infância passada na União Bellow – Prêmio Nobel de Literatura de 1976 – Soviética poderia soar, aos ouvidos de Mr. Brodsky, mantinha num certo Commitee on Social como um exercício inútil, comparável ao esforço de Thought, na Universidade de Chicago. Além de um bebê para manter nas mãos a tal bola de basincensado pela crítica, Bellow volta e meia se mete quete – elusiva, escorregadia, “incapturável”, como em polêmicas com seus pares, o que soava como o passado. A assistente do Prêmio Nobel, a megera garantia de boas declarações. Mas, Mr. Bellow número dois, uma certa Ann Kjellberg, respondeudisse não. Deve ter descartado com um muxoxo o me que o homem estava viajando, pelo Exterior. pedido de entrevista feito por um vago repórter de Assim que fosse possível, ela levaria a ele o pedido de entrevista. Mas um espesso silêncio desabou soum país remoto chamado Brasil. A secretária concebeu uma desculpa de pou- bre a linha direta que, por um curtíssimo espaço de cas linhas (“O Sr. Bellow me pediu que eu respon- tempo, mantive com o escritório de Mr. Brodsky desse a carta que você lhe enviou. Infelizmente, ele por carta e por telefone. Demorou, mas fisguei um peixe da família não poderá conceder a entrevista que você solicitou. Eu espero que você entenda que as demandas feitas dos Nobel, quem diria, na beira da piscina de um a ele são numerosas. Além de tudo, o Sr. Bellow hotel de luxo. O português José Saramago tinha precisa de tempo para executar seus próprios traba- acabado de gravar uma entrevista no quarto para lhos. Por favor, aceite as desculpas do sr. Bellow. Re- uma tevê educativa. Lá vem o homem. Traja um paletó protocolar. Trata os que o abordam com corceba os melhores votos”). Em outras palavras, a mensagem dizia, co- tesia profissional. Quando fala, fica olhando para mo o corvo de Edgar Alan Poe: entrevista com Mr. algum ponto misterioso na toalha da mesa. Não fita Bellow? “Never more, never more”. Restou-me os olhos do interlocutor o tempo todo. Continente Multicultural 29
Qual é o maior incômodo que um Prêmio Nobel enfrenta, além do fato de ser sempre importunado por jornalistas, como o senhor agora? Eu poderia responder que o outro maior incômodo é ser importunado por fotógrafos, por exemplo. Mas não. Incômodo não há nenhum. O que acontece é que se perde a invisibilidade depois que se ganha o Prêmio. É o pior. Evidentemente que é agradável ser reconhecido na rua e em qualquer parte, no aeroporto ou no restaurante. É agradável ver um leitor se aproximar para nos dizer uma palavra amável sobre o que leu. Em todo caso, não é que eu preferisse voltar ao anonimato, mas não há dúvida de que há momentos em que eu gostaria de me tornar invisível. Só não quero ser ingrato. Todos me tratam com tanto carinho e tanta atenção que qualquer palavra minha nesse sentido poderia parecer de algum modo uma ingratidão. O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português. Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção? 30 Continente Multicultural
Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais: profissões que se acabam, culturas que desaparecem, línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale, um planeta que estamos destruindo. Deixemos lá os dinossauros políticos. Porque acontece uma coisa curiosa: é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que, tal como acontece com os dinossauros autênticos, os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos, para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido. Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos ZENIVAL
Quando se dirigia para a mesa onde se faria a entrevista, o Prêmio Nobel de literatura passou 100% desapercebido pela piscina do hotel. De bermudas, o músico brasileiro Sérgio Mendes sorvia uma xícara de café expresso à beira da piscina. Alheio ao mundo exterior, nem nota quando Saramago passa. Os cabelos de Sérgio Mendes, excepcionalmente negros graças à eficiência de uma boa tintura, com certeza seriam mais capazes de chamar a atenção de um eventual observador de paisagens capilares do que os já escassos fios de Saramago – 100% grisalhos. Para alívio de Mendes, nenhum membro da Tribo dos Observadores Capilares, essa confraria excêntrica, trafegou naquele fim de tarde à beira da piscina. Mas eles existem. Desde que o Prêmio Nobel o transformou em notícia no mundo todo, Saramago se tornou refém da própria fama – uma sensação nem sempre agradável para quem passou a vida se dedicando ao solitário ofício de escrever. Antes de começar a entrevista, confessa que de vez em quando gostaria de ficar invisível quando sai às ruas – um desejo que, lastimavelmente, os cientistas ainda não puderam atender. Atenção, arqueólogos literários e políticos: é assim que um dinossauro fala.
Machado de Assis não é tão lido em Port Faça-se um inquérito para qu dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo. O senhor tem uma visão essencialmente pessimista diante do mundo. O pessimismo é bom para a literatura? O pessimismo não é bom nem mau para a literatura, mas não tenho uma visão pessimista do mundo. Ao contrário: o mundo é que está como está. Num momento como esse, pareceria, a mim, um pouco surpreendente que alguém se atrevesse a ser um otimista. Quem, diante do espetáculo oferecido pelo mundo em que vivemos, veja razões para ser otimista, é uma pessoa que ou não percebe aquilo que se passa ou então faz de conta que não entende.
Mas, há dois fatos que são aparentemente indiscutíveis no mundo de hoje. Primeiro: o fato “otimista” de que nunca tantas pessoas em todo o mundo viveram tão bem e tiveram acesso a tanta riqueza. O fato “pessimista” é que nunca foi tão grande a diferença entre pobres e ricos. Diante desse quadro, o senhor não tiraria nenhum motivo para enxergar o futuro com algum otimismo? Não. Se a parte negativa não existisse, então eu diria: uma vez que nunca houve tanta gente vivendo tão bem, pode-se presumir que, no futuro, haja ainda mais gente que vai viver igualmente
ugal como Eça de Queiroz o é no Brasil. e se chegue a uma conclusão bem. Mas, como você mesmo acaba de dizer, nunca foi tão grande a diferença entre os que têm e os que não têm. Tudo indica que a diferença vai ampliar-se. Não vem se reduzindo. É evidente que há mais pessoas que estão vivendo bem. Mas, também há mais pessoas vivendo mal. Como a população da terra vem se multiplicando, pode-se dizer que, se alguma parte vai se integrar à minoria que vive bem ou razoavelmente bem, muito mais gente vai se incorporar à parcela dos que vivem mal. Além de tudo, não se deve esquecer que há uma tendência para a pauperização das classes médias. Há uma parte mínima da classe média que ascende, passa para o outro grupo. Mas, há uma parte da classe média que vai se aproximando cada vez mais da
parte desfavorecida. Noto também que o problema já não é ter ou não ter. O problema – não menos importante – é saber ou não saber. É cada vez maior o número de pessoas que não sabem. Ou sabem mal aquilo que julgam saber. É cada vez menor o grupo de pessoas que detém todo o conhecimento – e de certa forma usa-o para levar o mundo para onde o mundo vai. Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha, quinhentos anos depois, qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil ? Depende do lugar onde eu desembarcasse. Se eu desembarcasse em Copacabana, quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro, eu diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém, porque o lugar cheira mal. Imagine se, pelo contrário, eu desembarcasse numa praia limpa, coberta não de índias despidas, mas de lindas moças quase despidas. Eu diria que aqui é um sítio para viver, uma terra linda. Se, no entanto, eu começasse a encontrar as favelas, eu diria: “Mas o que é que se passa aqui? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira!” Usa-sse no Brasil a expressão “comunista de carteirinha”. O senhor anda com a carteirinha do Partido Comunista Português? Não ando com ela. Tenho cartões e carteirinhas de várias e várias instituições com quem mantenho relações. Não ando com as carteirinhas de todas. Mas, pago a minha cota ao PC. O dirigente comunista Álvaro Cunhal entregou ao senhor uma carta que não deveria ser aberta. Que segredo era esse? Álvaro Cunhal na verdade escreveu uma carta que nunca li, porque a carta só me seria entregue se ele não tivesse sobrevivido a uma intervenção cirúrgica a que foi submetido na União Soviética. O que sei, pelo que me foi dito, é que ele escreveu algumas cartas que seriam entregues a vários destinatários se ele não tivesse sobrevivido. De qualquer forma, não é o Terceiro Segredo de Fátima: ele próprio me comunicou, depois, ter dito, na carta, que esperava que eu nunca saísse do Partido Comunista Português. Não saí. Não sairei. Em todo caso, a carta nunca me foi entregue. Continente Multicultural 31
Carlos Drummond, Jorge Amado e João Cabral: “Eu, membro da Academia Sueca, atribuiria o Prêmio Nobel de literatura a qualquer um dos três” Independentemente do apelo que seria feito nessa carta, jamais passou por sua cabeça a idéia de largar o Partido Comunista? Não tenciono efetivamente – para usar a sua expressão – “largar” o Partido Comunista, a não ser que ele me largue. Quero dizer: se amanhã o Partido se transformar em outra coisa, como aconteceu com a maioria dos partidos comunistas europeus, posso não reconhecer o Partido a que aderi. Nesse caso, é possível que eu saia. Mas, espero que não aconteça. O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras. Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje, qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta? Uma pergunta dessas não é fácil de responder. Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são. O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser, por suas riquezas naturais e pelas características do seu povo, um país em que as luzes predominassem. Não digo que as sombras é que predominam. O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves. O senhor ainda se sente “como uma Miss Universo”, com a agenda atolada de compromissos depois do Prêmio Nobel? Fiquei com a sensação de que as agendas de uma Miss Universo e a de um escritor premiado eram bastante parecidas. Mas, hoje posso dizer que não se parecem em nada. As obrigações e responsabilidades de uma Miss Universo duram um ano. Haverá, então, outra Miss Universo, não só com a coroa na cabeça, mas também com o dever de fazer tudo aquilo que a predecessora fez. Mas, no meu caso – eu, que, não sei se feliz ou infelizmente, não pareço em nada com a Miss Universo – essas obrigações não cessaram pelo fato de, em 1999, Günter Grass ter ganho o Prêmio Nobel. Diga-se que o 32 Continente Multicultural
Prêmio Nobel não impõe rigorosamente nenhuma obrigação. O sujeito chega lá, recebe o Prêmio e vai para casa. Depende da vontade do escritor o uso que ele fará do seu tempo – o emprego que fará de suas possibilidades de comunicação, se vai continuar a escrever, se vai ter contatos com os leitores. Como o Prêmio Nobel foi atribuído a um escritor de língua portuguesa, é claro que minhas obrigações e responsabilidades se multiplicaram. Eu entendi que deveria assumi-las. Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil? Pode-se pensar, por exemplo, que leitores de um país não dêem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro. Mas, também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois. É certo que os escritores portugueses vêm aqui. É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal. Mas, há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte: o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir. Quero crer, no entanto, que seria bom se houvesse um trabalho mais contínuo de ajuda à edição – evidentemente, é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável. O que é lamentável é que seja assim. Eu sou uma exceção. Eu próprio me pergunto por quê. Não sou capaz de dar uma explicação. Talvez o que se devesse fazer seria perguntar aos leitores: por que não os interessa a literatura portuguesa? Por que não os interessa a literatura brasileira? Como é que poderiam se interessar? Por que os interessa um determinado autor – e não outro? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil. Cem anos depois, Eça de Queiroz também o é. Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz o é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão.
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O primeiro escritor brasileiro com quem o senhor teve contato deixou alguma influência em sua formação? Não posso jurar, porque foi há muitos e muitos anos. Mas, o primeiro pode ter sido Raul Pompéia, com esse livro extraordinário que é O Ateneu. Você me pergunta se ficou alguma influência da leitura. Claro que não, porque eu era muito novo. Ainda não pegava essas coisas. O resto foi a aprendizagem. Uso essa palavra propositadamente, porque o que houve comigo foi a aprendizagem de uma literatura escrita em minha própria língua, mas criada e imaginada em outro lugar – o Brasil –, com tudo o que para mim representou a descoberta não só dessa literatura, mas também das realidades sociais e culturais que estavam por trás dos livros. Uma crítica publicada numa revista brasileira sobre o livro A Caverna diz que “a literatura refinada de Saramago dessa vez dá lugar a um sermão”. O senhor acha que a denúncia das mazelas do mundo pode eventualmente comprometer a qualidade literária? Tenho que dizer que nunca comento qualquer crítica. É um princípio meu. Eu escrevo o que entendo. O crítico escreve o que entende. Comentários meus sobre uma crítica ninguém encontrará, em toda a minha vida. Uma velha pergunta: o senhor escreve para fugir da morte? Não, porque ninguém foge da morte. É uma ilusão. O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer. Parte-se do princípio de que a obra vai ficar, não se sabe por quanto tempo. Hoje não sou tão ambicioso. Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas.
A que escritor brasileiro vivo ou morto o senhor concederia o Prêmio Nobel de Literatura? A um vivo e a dois mortos. Não me importaria nada dar a eles o Prêmio, se eu fosse membro da Academia Sueca. O vivo é Jorge Amado. Os que já não estão vivos são Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Sem nenhuma dúvida, eu, membro da Academia Sueca, atribuiria o Prêmio a qualquer um dos três. O senhor escreveu, no livro A Caverna, que as frases de efeito são “uma praga maligna”. Qual é a sua frase de efeito predileta ? Tento evitar, o mais que posso, as frases de efeito. Mas, nem sempre consigo fugir à tentação de escrever uma. Só espero é que, se elas são só frases de efeito, as pessoas que as leiam ou as ouvem não as tomem demasiado a sério. Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra, que palavra o senhor usaria? Como é que se pode definir numa só palavra? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras, talvez eu conseguisse. Dê-me três palavras... Quais seriam, então, as três palavras? Eu definiria assim o Brasil: “Quando se decidem?” Quase aos oitenta anos, qual é a grande pergunta que o escritor José Saramago não conseguiu responder até hoje? A pergunta que não consigo responder é muito simples: para quê? Para que tudo isso? Vou morrer sem encontrar a resposta. Creio que ninguém nunca encontrou. Geneton Moraes Neto é jornalista, editor do programa Fantástico, da Rede Globo
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ANTOLOGIA
Mapa
de
Frederico Barbosa
1 mais prazer
encontro eu lá para Odesina
morar em são paulo é viver em fuga
3 carvalho pinto os olhos de gato na velocidade do asfalto paulista pista exata rica
cidade escapista essa sem praia
guiam com brilho alto na fugacidade o sono na vista de quem pesca e pisca
megavila provincianópole oxímoro máximo capital do interior
sua boca urgente só gosto e prazer engole esquenta
a alegria começa como promessa de norte utópico quando a estrada atravessa o trópico
2 rodovia ayrton senna
querendo saber o quanto de quente um corpo agüenta
4 a dutra e seu rio o paraíba se enrosca como cobra acompanha fiel e tonto como cão
bela estrada essa rápida raia bala promessa de praia
revela-se em dobras como ventre
a ironia no nome
amplifica o caminho como lente
gostava de chuva acelerou tanto que morreu na curva
arrasta atrasa o tempo como não
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viagem 5 as brs e os buracos as marcas de pneu desenham desastres falhas freadas bruscas sustos na estrada recriam imagens esperanças frustradas colapsos no asfalto fracassos vários quantas vidas derraparam nessa viagem partidas truncadas quantas tragédias guardam trincadas as marcas de pneu memória concreta da estrada esburacada
7 as cidades e seus donos
há cidades desconfiadas impessoais misteriosas recife são paulo em que se mora por empréstimo de aluguel de passagem sem se sentir dono como inquilino temporário mas que ninguém tem
há cidades que por mistério se entregam por inteiro salvador rio de janeiro em que cada morador é proprietário verdadeiro em que todo o povo sente-se e afirma-se dono em todo gesto no menor jeito
8 são francisco 6 fronteira não é divisa é fronteira o que se avista de minas é outra estrada é outro tempo outro mundo outro vento é outro povo outra paisagem outros sonhos pesadelos é outro riso outro choro outra alegria outra saudade é outra verdade é outro valor outra coragem vaidade é outra pátria outra praia outro prato é outro picadeiro é bahia outro país inteiro
aquilo? não é rio é mar em vala abismo espanto aquilo? não é crível impossibilidade silêncio em canto aquilo? não é baldo é rasgo abalo falo corrente aquilo? não é sítio de tão vivo parece é gente Continente Multicultural 35
9 dos mapas para Ana Mae
viajar sem mapas como marujo quatrocentista é atravessar túnel secreto sem ciência ou luz o mapa é da viagem simulacro e lucidez viajar sem mapas não é coragem loucura nem ardor aventura é olhar sem arte
10 pernambucano paulistano
cada são paulo a que retorno toca tanto que é ruim na marginal eu quase choro só porque me sinto vir pernambucano paulistano como tantos por aqui tenho-a minha toda e tanto que não a posso possuir
o mapa é da viagem reflexo que se prevê
sobre o autor
mapa é foto antecipada miragem do que se quer viagem
Frederico Barbosa é pernambucanopaulistano. Nascido no Recife, em 1961, vive desde a infância em São Paulo e adotou a praia de Tamandaré (PE) como seu refúgio favorito. Estreou em livro com Rarefato (Editora Iluminuras, 1990). Seu segundo livro, Nada Feito Nada (Editora Perspectiva,1993), foi publicado na Coleção Signos, dirigida por Haroldo de Campos, e ganhou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Nos últimos anos, seus poemas têm sido traduzidos e publicados em coletâneas de diversos países, como os Estados Unidos, Austrália, México, Espanha e Colômbia.
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Em 2000 publicou Cinco Séculos de Poesia – Antologia da Poesia Clássica Brasileira, pela Landy Editora e Contracorrente - poemas, pela Iluminuras. Seu livro Louco No Oco sem Beiras – Anatomia da Depressão será publicado ainda em 2001 pela Ateliê Editorial. A série de poemas Mapa de viagem fará parte de um livro “em progresso” que escreve em parceria com o poeta/crítico baiano Antonio Risério, a ser publicado em 2002
SABORES PERNAMBUCANOS
Os caminhos do açúcar Dos engenhos de minha terra Só os nomes fazem sonhar: – Esperança! – Estrela d’Alva! – Flor do Bosque! – Bom-Mirar! Ascenso Ferreira – Os Engenhos de Minha Terra
Sonho de todos os reis, o açúcar deu forma à economia colonial brasileira e ainda hoje é importante na alimentação sertaneja
A
doçaria dos conventos portugueses teve seu apogeu no período que vai do reinado de Dom Afonso VI, no início do século 12, ao fim da Inquisição. Em 30 de maio de 1834, o ministro Joaquim Antonio de Aguiar aboliu as ordens religiosas e confiscou seu patrimônio – passando então a ser, por isso, conhecido como o “mata-frades”. Em fins do século 15, o açúcar apareceu em Portugal. Passando, progressivamente, a substituir o mel na elaboração das receitas. Junto com a gema de ovo, entregue nos conventos
pelas vinícolas – dado que apenas claras eram usadas na purificação dos vinhos (e, também, para engomar roupas de linho). Passando açúcar e gema a ser base de todas as sobremesas feitas, então, nesses conventos. A cana vem de bem antes. Da região do delta do Ganges, na Índia. É, provavelmente, resultado de alguma mutação – que, em estado natural, esse “junco que dava mel sem ajuda das abelhas” (como o chamava Dario) nunca foi encontrado em lugar nenhum. Já o açúcar se fez, pela primeira vez, em Lyu e Bengala, também na Índia – sendo por isso chamado, durante muito tempo, de “sal índico”. Depois, por volta do ano 1000, também os árabes deram início à sua produção. Na ilha de Creta. Era um açúcar cristalizado que chamavam “qandi” – donde nosso açúcar “cândi”. Sendo apenas mais tarde, em fins do século 10, cana e açúcar trazidos para o Mediterrâneo. E Veneza, entreporto exportador para a Europa Central, Mar Negro e países eslavos, deve basicamente a esse comércio boa parte de sua fortuna.
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 38 Continente Multicultural
Produzir açúcar passou a ser sonho de todos os reis. Mas isso não era tarefa fácil, na Europa. Porque exigia o que era por lá raro – solo rico, úmido e sobretudo quente. Experiências sem sucesso foram realizadas na Sicília, na Espanha e na região de Provence (França). Mas na Ilha da Madeira as condições eram perfeitas; lá chegando as primeiras canas, em 1449, por mãos do Infante D. Henrique. Também Canárias (conquistadas pelos espanhóis) e São Tomé (pelos portugueses) foram igualmente grandes produtores de açúcar. Mas, os portugueses precisavam de novas terras para essa cultura. E era tempo das grandes navegações. As primeiras canas de Pernambuco, “crioula” e “sarango”, foram trazidas por Duarte Coelho. Com ele vieram, também, feitores e agricultores experientes, em sua maioria judeus e cristãos-novos. Entre eles Diogo Fernandes e Pedro Álvares Madeira, que levantaram o engenho Camaragibe – depois chamado Santiago – um dos cinco existentes em Pernambuco, por volta de 1540. Além de Fernão de Noronha, também conhecido por Fernando de Noronha; ou, como citado em documentos italianos, Firnando Dalla Rogna – chefe de consórcio que arrendou o Brasil, de 1501 a 1516, devastou nosso pau-brasil e, por ironia da história, acabou virando nome de ilha. Por não se sentirem seguros, e serem sempre perseguidos, a maioria desses emigrados se dedicou apenas ao comércio. Muitas vezes financiando senhores de engenho e recebendo açúcar em pagamento. No século 19, chegaram variedades novas de cana – a “oitati” e a “bourbon”, nativas do Taiti. Aqui chamadas “caiana” por virem de Caiena, capital da Guiana Francesa.
O primeiro engenho pernambucano foi instalado em 1533; mas já eram 350 em 1625. No início, trapiches, utilizando tração animal – bois e cavalos. Depois movidos a “Rodas d’água”, bem mais eficientes. Mais tarde aparecendo os a vapor, por volta de 1817, vinte e um anos depois de funcionarem em Cuba. Pernambuco chegou inclusive a ser o maior produtor mundial de açúcar, nos séculos 16 e 17. Perdendo o posto, só no século 18, para as Antilhas. Em nossos engenhos se fazia açúcar. Também mel (de engenho), do cozimento do caldo da cana, até hoje ainda muito usado acompanhando macaxeira, inhame, cará, queijo de manteiga e batidas. Além de rapadura – açúcar mascavo em forma de tijolo, nascida de fôrmas conhecidas como “pães de açúcar”. De alto valor nutritivo, continua sendo importante na alimentação sertaneja. Inclusive por ser fácil de levar em viagens, podendo substituir uma refeição; conservando-se por muito tempo embrulhada, em folhas secas da própria cana. Faltando só dizer que da cana também se fazem bebidas, como o próprio caldo e licores – de jenipapo, pitanga, caju. Além de cachaça, naturalmente, a mais popular das bebidas brasileiras. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
BOLO DE ROLO O bolo-de-rolo tem origem no colchão-de-noiva português. Em Pernambuco, substituímos o recheio de amêndoa por goiabada. O que distingue o bolo-de-rolo pernambucano de variações brasileiras, como o rocambole carioca e de outras cidades nordestinas, é basicamente a delicadeza no fazer.
Ingredientes:
Preparo:
• 250 gr de açúcar • 250 gr de manteiga • 5 ovos • 250 gr de farinha de trigo • ½ lata de goiabada, derretida em um pouco d'água.
• Bata bem açúcar e manteiga. • Junte as gemas, uma a uma. Depois as claras em neve. • Acrescente o trigo peneirado e misture, delicadamente. • Divida a massa em 7 assadeiras rasas, untadas com manteiga e trigo. Asse, uma de cada vez, em forno pré-aquecido, por pouco tempo. • Retire a massa das assadeiras, colocando-a em toalha polvilhada com açúcar. • Recheie com a goiabada derretida e enrole rapidamente. • Repita o mesmo processo até a última camada.
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CONTO
TARDE DE DOMINGO
N
Gilvan Lemos
o sábado tinha chovido três vezes. De manhã, à tarde e à noite. Com intervalos. De manhã, pra impedir que ele fosse à praia; à tarde, pra não deixar ele ir brincar com os coleguinhas; à noite... Mas à noite não fez falta, porque ele ficou vendo televisão. Hoje, domingo, amanheceu chovendo, mas chuva fina. E já passou. Terá passado de mesmo? Hem? Ou Deus apenas o está tapeando, pra ele se animar e, quando chegar a hora do jogo, começar a chover de novo? Não duvidava de nada, ele era um menino, marcado, tudo que Deus fazia era para prejudicá-lo. Estava convencido disso há muito tempo. Tinha direito ou não, de protestar? Um solzinho ainda ralo, sem querer esquentar de todo, os pardais desanimados, encorujados em cima do muro, os sabiás desaparecidos, por certo preguiçando nos ninhos, dando calor aos filhotes, um ventinho silencioso, aparecendo sem aparecer, só
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constante, friorento, nos braços da gente. E um silêncio de domingo, chato, o gosto do café-com-leite pregado na língua, a vontade de cagar chegando de mansinho, aumentando, impondo suas ordens. Mas vamos ver em que vai dar, pelo menos uma vez na vida Deus vai favorecê-lo. Houve um momento em que Júnior duvidou disso. As horas passando e nada do pai chegar da rua. Já sei, dizia-se intimamente: Papai não vem, perco o jogo e fim. Mas não pense que você me enganou, eu nunca acreditei que ia ver esse jogo. Naturalmente Júnior sabia a Quem estava se dirigindo. – Não se preocupe não, filho, seu pai vem buscar você. Ele não prometeu? – Isso, a mãe, tranqüilizando-o. Veio, cantando, executando passos de frevo, tentando pegar a mãe para abraçá-la, beijá-la, babá-la. – Pra que foi beber tanto? Você não prometeu levar Júnior ao estádio? O pobrezinho desde hoje que espera. Está louco pra ver esse jogo.
– Encontrei uns colegas da repartição, ficamos a beber umas e outras... E o tempo foi passando, quando dei por mim... – E agora? – Estou morto, filha. Dor de cabeça, cansaço, sono... – É sempre assim, sabe que é assim e não deixa de beber. – Você não entende nada de homem, filha. Cadê Júnior? Venha cá, meu filho, dar um beijo no papai. Júnior não o atendeu. Rancoroso, olhava de banda, como se nada tivesse ouvido, nada mais lhe interessasse. O pai falou-lhe assim mesmo: – Vamos deixar para o próximo domingo, filho. Domingo tem mais, e muito melhor, porque será a final. Júnior, sem o fitar: – Se o Santa Cruz ganhar hoje. – E você acha que ele vai perder? Se é assim nem vale a pena ir. Ou você gosta de ver seu time perder? Não respondeu, estava convencido de que não valia a pena discutir com o pai. Ao retirar-se ainda ouviu: – Talvez Carlos, o vizinho daí de lado, possa leva-lo com os filhos dele. – Já foram – gritou Júnior, do corredor, onde permanecia, escutando a deliberação que seria tomada com respeito ao seu destino, a qual resultaria em nada, coisa alguma, pois já estava habituado a sofrer, era mesmo um menino marcado pelo destino. Ah, se um dia pudesse vingar-se... de Alguém! O pai prosseguia: – E seu irmão? Telefone pra ele. – Desde ontem está em Itamaracá, não sabe? Veio convidar você, mas você prefere beber cerveja com seus coleguinhas. – Está bem, está bem. Aliás, o Júnior podia ir sozinho. – Você está louco? Uma criança de onze anos! – Que é que tem? Na idade dele eu ia sozinho. Pro estádio, o cinema, o parque. Nunca me aconteceu nada.
– Em que época foi isso? Os tempos são outros. Hoje, até os adultos correm perigo em andar sozinhos na rua. Você não lê jornal? Era o que faltava, Júnior sair daqui sem uma companhia, pra ser assaltado antes mesmo de entrar no estádio. Não, por favor, quero meu filho vivo. Sobrevém o silêncio, certo silêncio suspeitoso. Júnior aproxima-se na ponta dos pés, espreita. O pai está dormindo, a cabeça no colo da mãe. Quer dizer que o problema está solucionado. O pai, livre do compromisso; a mãe, desobrigada de interceder a seu favor. Por que tudo tem de ser assim, contra ele? Re t i r a se, ganha o quintal. As mangueiras, o vento nas mangueiras. Não chove mais, de maneira alguma vai chover. Diz em pensamento: Pode chover, agora pode chover, eu não vou ao jogo não! Ninguém parece ouvir, ninguém ouve. Os pardais espojam-se no chão. São como galinhas, tomam banho com areia. Já os sabiás preferem as alturas. Nos galhos mais altos, pulando de um em um ou executando sua cantoria, que mamãe diz ser monótona. Papai, quando de bom humor, brincalhão, as imita: Olha eu, vovó, olha eu vovó. Há vozerio na rua, passam carros, a buzina do vendedor de picolé, a campainha do sorveteiro. Todo mundo vai para o estádio, todo mundo vai assistir ao jogo. Só eu, sem pai nem mãe, sem Ninguém, não tenho direito a ir. Encaminha-se para os fundos, senta-se diante do lavadouro, na calçadinha baixa, as pernas encolhidas, o menino mais infeliz do mundo. No chão, a correição de formigas. Um milhão, um trilhão delas. Ocupadinhas, trabalhadeiras como o diabo, algumas carregando pedacinhos de folhas. Aonde vão? Às suas casas, trabalhar mais, comer, criar mais formiguinhas novas. Devem ter família, maternidade, escola, mercado, tudo que a gente tem. Talvez até fosse melhor ser formiga do que gente. Continente Multicultural 41
Olha, olha aquela, que danadinha, vai carregando uma folha inteira, de araçá, parece, vinte vezes maior do que ela. Que força! Chega se esconde debaixo da folha, dá a impressão de que a folha vai caminhando sozinha. Júnior sorri. E se ele fosse uma formiga? Não se preocuparia com besteiras, não ia à escola... “Lá” teria escola? De qualquer maneira, com sua experiência humana, fundaria times de futebol, ensinaria as formiguinhas a jogar, e coisa e tal. Seria rei, entre elas. Quando as mais velhas viessem-no chamar para ir à escola: Essa história de escola é uma besteira, lá na “terra” os meninos vão à escola e não serve de nada, saem da aula pra bagunçar, atirar pedras em vidraças, matar passarinho, puxar cabelo de meninas e coisa e tal. Quando sua mãe-formiga tencionasse obrigá-lo a comer aquelas comidas ruins, só porque têm vitamina, ele: Comer vitamina pra ficar forte? Quem disse? O filho da lavadeira, que mora em favela, nem tem o que comer, é muito mais forte do que eu. E assim por diante. Do formigueiro, logo Júnior passou a outro planeta. Um ET, ele, um ET, com todos os poderes dum ET. Queria aquele sabiá na mão bastava olhá-lo fixamente, eis o sabiá em sua mão. Aos companheiros: Vamos lá
na terra? Fazer o quê? Assombrar os terráqueos, fazer medo a eles. Mas, para os Ets, nosso planeta tem o nome de terra? Talvez não, já que eles falam outra língua. Vinha um terráqueo e dizia: Que veio fazer em nosso planeta terra? E o ET: Vocês chamam este planeta de terra? É, respondia o terráqueo. E vocês, como é que chamam? O ET: Nós? Até então nós o chamávamos de merda. (Essa foi boa! Rá-rá-rá.). Enquanto isso, sem sua plena atenção, Júnior sentia que alguma coisa estava faltando. Que seria? Olhou em torno, averiguando. Era uma ausência. De que, afinal? Dos sabiás, dos pardais, dos ruídos de fora. E das formigas. A correição fora desfeita. Uma ou outra formiguinha ainda perambulava por ali, na certa procurando alguma coisa que teria esquecido. Júnior apanhou a da frente, uma coisinha de nada. Esmagou-a entre os dedos, e notou que as que vinham atrás dela começaram a fazer um escarcéu dos diabos. Interessante: haviam percebido que uma de suas companheiras não estava mais ali. Júnior teve pena de ter feito o que fez. Criara um problema para as restantes, um drama, uma tragédia. Essas últimas, que diriam à chefona delas? Súbito: – Júnior, Júnior, onde é que você está? Era a mãe, com seus cuidados maternais. Júnior recompôs-se, foi ao seu encontro. O pai estava por trás dela. Risonhos, satisfeitos. O pai: – Taí, não foi ao jogo, nem morreu.
– Venha fazer um lanche – convidou a mãe. O jogo! O jogo! Realmente Júnior havia esquecido. Mas não podia dar esse gosto a “eles”. Ficariam tranqüilos, não guardariam remorso. – Não quero porcaria de lanche. – Júnior! – Vocês criam filho como cachorro, não lhe dão nem o direito de assistir o time dele jogar. O pai tinha razões: – Foi bom você não ter ido, filho, o Santa Cruz perdeu. Júnior, pasmado, aguardava a confirmação. Teve-a. Saiu correndo de volta ao quintal, aos berros: – Eu sabia, eu sabia! Eu sou um infeliz, não tenho mesmo ninguém por mim. Só queria não ter nascido, só queria ter nascido um ET. – Pra que foi dizer? – condoeu-se a mãe.
NONONONOO / DP
Gilvan Lemos nasceu em São Bento do Una, Pernambuco, em 1º de julho de 1928. Mudou-se para o Recife em 1949. Ingressou no exIAPI, por concurso, em 1952, aposentando-se em janeiro de 1980. (Com a unificação da previdência, o IAPI passou a fazer parte do INPS). Publicou seu primeiro trabalho literário – um conto, escrito aos 17 anos – ainda em São Bento do Una. O primeiro romance, Noturno Sem Música, escrito em 1951, foi publicado em 1956. Tem editados onze romances, seis livros de contos, três de novelas. Seu mais recente romance, Vingança dos Desvalidos, foi lançado em junho passado, pela Editora de Comércio de Livros Jurídicos Ltda.
– Ele saberia mais tarde. – Deixasse. – Vai aprendendo, filha, esquece. Daqui a pouco vem comer seu creme de leite e o mundo volta a girar do mesmo modo. – Egoísta! Ela sai à procura do filho. Encontra-o na calçadinha do lavadouro, com um pauzinho na mão, revolvendo a terra. Distraído, nem a viu aproximar-se. – Que é, meu filho? – As formiguinhas, mamãe. Ainda tem algumas trabalhando, as outras foram embora. São tão engraçadinhas. – Você queria ser uma formiguinha? Júnior levanta a vista, fita a mãe, ri: – Acho que sim.
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ÁLBUM DE FAMÍLIA
LITERATURA
Mauro Mota,
regionalismo e permanência As referências regionais, em sua poética, são fruto de um “eu-lírico” comprometido com a instauração de um canto novo, o canto mauromotiano
M
auro Mota está sempre incluído nos compêndios da literatura brasileira quando se fala, como Antônio Candido, na “ala viva da Geração 45” e, em que pese a sua contribuição para as nossas letras com As Elegias – publicadas só em 52 em livro, mas antes em jornais e revistas da época – poder-se-ia afirmar que, pelo uso das canções, odes, elegias, sonetos e outras concepções formais dos clássicos, ele estaria realmente de acordo com os cânones de 45. Além do retorno às formas clássicas, essa Geração, em oposição à de 22, debruça-se em uma preocupação filosófica “séria” diante da existência, negando-se, inclusive, à influência dos modernistas Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, um dos seus aspectos bastante contestável. Rachel de Queiroz, em Ata de 03.12.84, do Conselho Federal de Cultura, reclama a presença de Mauro em sua geração: “Mauro (...), de fato, é da geração de trinta. Só que brotou tarde, como ele dizia. Germinou tarde”, e Nilo Scalzo em As Raízes Pernambucanas de Mauro Mota – no jornal
Claúdia Cordeiro
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O Estado de S. Paulo, 2.12.84 – aponta uma forte influência do grupo de 22 – principalmente de Mário de Andrade. Mas, imitando o seu criador – “de qualquer peraltice capaz” –, a obra poética de MM está sempre endossando e paradoxalmente contrariando as três gerações – 22, 30 e 45. Em Jornal do Município, o Soneto muito passadista na ponte da Madalena nos dá o alicerce para essa afirmativa: Que lembrança ficou para mim do sobrado da Madalena? (Vai passando o rio atrás) Na frente, o jasmineiro e, no oitão, carregado, o pé de fruta-pão e de sombras cordiais. Na cumeeira Luís de Camões instalado O avô de fraque, a avó entre os jacarandás Da sala, na varanda, ou querendo, ao seu lado O neto, de qualquer peraltice capaz. Desta inclusive de mexer nas coisas mortas As valsas de subúrbio, o oratório, a novena. Que lembrança ficou do sobrado onde havia Teresa? Neco prenda o cachorro e abra as portas, porque me chamam, nesta noite, à Madalena, o jasmineiro em flor e o piano da tia.
ÁLBUM DE FAMÍLIA
A “peraltice” de MM usa a irreverência de 22 para digressionar ela mesma, a partir, inclusive, da forma, o soneto, pois “Na cumeeira Luís de Camões instalado”. É o poeta que não assume dogmaticamente as propostas desse primeiro momento do Modernismo Brasileiro e que, em 30, já utilizava as formas tradicionais independentemente da proposta de 45. Em Haroldo Bruno – A poética de Mauro Mota, in Pernambucânia ou Cantos da Comarca e da Memória – encontramos a expressão mais coerente sobre a poética mauromotiana: “espelho convergente”, porque síntese de conflitos geracionais e confronto histórico, como nas obras realmente representativas. Mas é comum falar-se do aspecto regionalista da obra de MM e não se pode negá-lo. Fazse, no entanto, necessário verificar quais os matizes dessa tendência no seu estilo, que caminhos toma a referência do regional no texto: a exploração do pitoresco, do excêntrico tornando ilógica a relação do ambiente sociogeográfico com o homem, como no Romantismo? Ou a exacerbada preocupação sociológica, de fundo positivista, como no Realismo? Ou, ainda, a perspectiva crítico-analítica da existência do brasileiro e do seu ambiente geossocial, como no Modernismo de 22? Em Mauro Mota temos a maturidade do regionalismo de 22, que não se prende ao documentário e não esquece o estético, desde a transcrição da linguagem popular à descrição do espaço geossocial engendradas pelo escritor. Mas, é a recordação, um dos recursos freqüentemente utilizados na literatura regionalista, a exemplo de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que, também na poesia de MM, instaura o deslizamento do real para a construção de um mundo novo, permitindo ao poeta incursionar para espaços míticos, para os limites universais da natureza humana. Utilizando a recordação, MM amplia o seu abarcar das coisas nossas que inclui os espaços urbano e rural. O Soneto muito passadista na ponte da Madalena, transcrito anteriormente, correspondente à fase inicial do poeta (30), revela muito bem esse recurso. Nele o poeta instaura o “mexer nas coisas mortas” e, “entre os jacarandás”, se dilui em paisagem, em perfume do jasmineiro em flor, e na música do piano da tia, referências regionais resgatadas num novo universo lingüístico-semântico da realidade do texto literário.
Vale a pena ressaltar a percepção desse regionalismo-urbano, acentuado nessa primeira fase, para adiante quando, em Elegias (1952), Os Epitáfios (1959), O Galo e Cata-Vento (1962), Tempo de Farmácia (s.d.), Chuva de Vento (1964/1968) e Pernambucânia ou Cantos da Comarca e da Memória (1979), observar-se um equilíbrio entre as temáticas urbanas e rurais, impressas no autor que nasceu na cidade do Recife e passou a infância em Nazaré da Mata, zona canavieira de Pernambuco. Sabe-se que a década de vinte foi cenário aqui em Pernambuco de uma luta ideológica entre as correntes regionalista e modernista que, inclusive, dividiu os dois grandes jornais da província em posições dogmáticas. Conforme Neroaldo Pontes Azevedo – Modernismo e Regionalismo (Os anos 20 em Pernambuco) – “Os ‘regionalistas’ encastelaram-se no Diario de Pernambuco” e pregavam a conservação dos valores tradicionais como forma de se defenderem contra a onda de “modernismo”. “Por outro lado, os que divulgavam o modernismo tinham como quartel-general o Jornal do Commercio (...) e tinham como palavra de ordem imitar São Paulo, especialmente naquele primeiro grito de urgência na destruição do passado.” Neroaldo Azevedo cita ainda a obra de Ascenso Ferreira como síntese das duas tendências, porque impôs-se de uma forma moderna subordinada a um conteúdo regional. No entanto, isso pouco nos ajuda na compreensão do matiz regionalista na poesia de Mauro Mota, como sugerem alguns autores. É Haroldo Bruno que define: “Nada mais longe de um poema regional de Mauro Mota do que um poema regionalista de Ascenso Ferreira...”
Em sua biblioteca, Mauro Mota e a filha Tereza
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É que a poesia de MM alcança uma complexidade estética tão perfeita que consegue manter-se à margem desses conflitos. As referências regionais, em sua poética, são, enfim, fruto de um “eu-lírico” coerentemente comprometido com um universo de imagens, sons, perfumes e valores sócioculturais que servem à instauração de um canto novo, o canto mauromotiano. No espaço da recordação, o poema Menino Doente evoca a infância com as suas referências impressas no matiz regionalista personalíssimo do autor: Eram o pião, a bola, o realejo, o trem de corda, a caixa de brinquedo de armar. Longe da escola, eram os dedos de mãe, penteando-lhe os cabelos, a fruteira no quarto, o açúcar-cande, o resedá por cima da atadura. Entre a cama e a janela, era o menino com medo, não da doença, mas da cura. O menino Mauro Mota
Além dessa pequena análise que contextualiza e delimita o espaço conquistado pela poesia de MM na literatura brasileira, não se pode esquecer que ele foi um artífice da palavra de tal competência que levou o crítico Ivan Cavalcanti Proença, em seu artigo Boletim de uma trajetória literária – in Antologia em verso e prosa/Mauro Mota – desdobrar-se em uma análise do nível formal de sua obra e afirmar: “No soneto, Mauro Mota foi o único poeta pós-22 – e a afirmação resulta de muito pensar (e procurar) nosso – que conseguiu trabalhar ao nível formal com quase todas as variantes rímicas (esquemas e combinações), rítmicas (distribuição dos ictos), métricas, do clássico petrarquiano, ao soneto-hoje, libertíssimo, com a mesma força conteudística, mantendo aquela antiga dignidade do ‘casamento’ soneto forma fixa/tema tradicional, poesia-poesia, ou valendose do soneto para registrar o simples, o ‘banal’, o momento que, a princípio, ‘não dá poesia’. Incrível que, com todo esse percurso, variado e heterogêneo, (fixo só na forma fixa) consiga dizer, o tal poema de significados, que afinal, é o que nos interessa.” Com Elegias, Mauro Mota incrusta a sua presença definitivamente na paisagem literária brasileira, a ponto de se criar a legenda, até hoje usada nos meios intelectuais: Mauro Mota, o autor das Elegias. Nele, parte da observação de Proença é ratificada exemplarmente. Sob o signo da dor, pela perda da mulher Hermantine, o eu-lírico se desdobra em uma série de dez sonetos, como se aquela forma fixa fosse a “fôrma” necessária para domar a dor: As mãos leves que amei. As mãos, beijei-as nas alvas conchas e nos dedos finos, nas unhas e nas transparentes veias. Mãos, pássaros voando nos violinos. Abertas sempre sobre os pequeninos, Mãos de gestos de amor e perdão cheias. Mãos feitas para construir destinos no céu, no mar, nas tépidas areias.
ÁLBUM DE FAMÍLIA
As mãos que amei em todos os instantes A carícia das mãos que iam colhê-las Eram as rosas que colhiam antes. Se parecem dormir, não as despertes. As mãos que amei, que desespero vê-las Cruzadas, frias, lânguidas, inertes!
O mestre e poeta César Leal vem-nos advertindo que uma análise literária que se queira séria não pode dissociar a forma do conteúdo e, mais recentemente, tem informado que a redução teórica do conceito do lírico de Emil Staiger se encontra ultrapassada, talvez porque o eminente estudioso, especialmente em seu Conceitos Fundamentais da Poética, tenha-se detido mais profundamente nos aspectos conteudísticos da obra poética. Mas o caminho metodológico percorrido por Staiger se molda perfeitamente como instrumento de análise da trajetória lírica do grande poeta brasileiro. No soneto citado anteriormente, por exemplo, a presença das “mãos humanas”, imagem recorrente em inúmeros momentos da poética mauromotiana, remete-nos, imediatamente, ao registro de Staiger: “(...) o autor lírico, para expressar estado de espírito sombrio, lança mão de imagens da esfera do corpo”. O poeta assombra-nos nessa recorrência com imagens inesquecíveis, como no poema O Viajante: ........................................... Angústia longa e cinzenta de não partir nem ficar. Transeunte na ponte entre o cais e o barco do mar, o barco dos emigrantes, todos de mãos amputadas, que as mãos ficaram no ar e é um só gesto coletivo de despedida e chamar.
passado e futuro, tornando-as, como afirma Staiger, “uma unidade sem diferenciação”. Por isso, a antítese de “despedida e chamar” de um único gesto, o gesto universal do adeus. É nessa dimensão atemporal em que se abriga o eu-lírico, em sua “sólida sozinha solidão”. O caminho de volta está interceptado entre dois “abismos”, ou deixar-se entregue a ela, excluindo-se do mundo real, ou regressar ao vazio do mundo. À medida que ingressamos pelos caminhos da poesia mauromotiana encontramos uma coerência profunda da sua cosmovisão que lhe lega uma integridade própria daquele que soube fazer do seu canto testemunho do Homem. Desrealizando o cotidiano, o trivial, o regional, e resgatando o imediato projetado num espaço mítico, universalizante, o poeta é fusão com a natureza de todos, porque:
É importante observar aqui não só a imagem recorrente das mãos em sua obra, mas também a coerência que existe, na poesia de Mauro Mota, em relação ao modo de ser do lírico, a habitar espaços ontológicos, resvalando-se entre existências opostas,
Bom que “a ventania de agosto” nos traga de volta o poeta. Abramos todas as janelas.
Paz na origem como se tivesse existido sempre e não chegasse depois. No silêncio que não veio e já havia sem ter sido antes música ou palavra. Paz da natureza cúmplice, as sombras descendo do arvoredo sem tocar na folhagem, os pássaros mudos abrindo os bicos para recolher e levar longe o eco dos cantos anteriores. Paz onde Luciana escute o rumor da rosa abrindo.
Desde 1984, o Recife deveria comemorar oficialmente o Dia do Poeta, no 16 de agosto. A data foi proposta pelo então vereador Luiz Nery, como forma de homenagear o aniversário de Mauro Mota, no ano de morte do escritor. “Não apenas por Mauro, mas por todos os outros poetas do Recife, como Carlos Pena Filho, João Cabral de Melo Neto”, diz Nery. Ele lamenta que até hoje este dia não tenha sido festejado ou divulgado em escolas. Uma compensação é que a obra poética de Mauro Mota está para ser reunida pela primeira vez, numa edição comemorativa dos 90 anos do nascimento do escritor, com patrocínio do Sindaçucar. A tiragem do livro será de mil exemplares, com distribuição gratuita entre os associados do Sindicato. O livro será ilustrado pelas Cenas Mauromotianas, pintadas pela esposa de Mauro, Marly Mota. No momento, os organizadores Everardo Norões e Sônia Lessa, da Ensol, estão trabalhando na pesquisa e ordenação dos poemas, guardados na Sala Mauro Mota da Fundação Joaquim Nabuco e nos arquivos de Marly Mota.
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Cláudia Cordeiro é professora de literatura brasileira
MARCO ZERO
O BACHAREL Glória do município. Fazer o curso de Direito na Faculdade do Recife, ser nomeado promotor. Não enganar Jandira, casar com Jandira, ir morar com Jandira no chalé vermelho. Gaiolas de pássaros no alpendre. Leões de pedra surgindo da floresta tenra do jasmineiro do portão. Brilhar nas sessões do júri e nas festas cívicas, escrever no semanário e esperar tranqüilo o baby e o concurso para juiz. Mauro Mota
Canto condensado e discurso poético em Mauro Mota
O
s escritores – e, principalmente, os poetas – são os mais inseguros dos artistas. E essa insegurança geralmente os brutaliza, torna-os injustos com os escritores mortos. Quando alguma alma penalizada reclama, por exemplo, que Cassiano Ricardo está esquecido, eu costumo responder: – Esquecido, não, silenciado. No Jornal do Commercio, do Recife, o colunista José de Souza Alencar (Alex) vem, ano após ano, denunciando o que considera o esquecimento em que teriam mergulhado o nome e a obra de Mauro Mota. Seus livros sequer são reeditados.
Mauro não foi esquecido, meu prezado Alex, ele foi e está sendo silenciado, porque a sombra enorme de sua obra pode obscurecer as obrinhas de muitos poetas considerados importantes em nossos dias. As autoridades culturais movem-se vegetativamente, e só com muita pressão – da minha eles ririam – investem alguma coisa em monumentos artísticos que não sejam ruínas de pedra e cal deixadas pelos nossos antepassados. Mas ponhamos a mágoa de lado e falemos primeiramente no livro de estréia de Mauro Mota, Elegias, que publicou em 1952, aos 41 anos. Esse livro possui embrionariamente toda a poética mauromotiana, a da alternância entre a “poetry as speech” e a “poetry as song”, para usar aqui expressões muito
Alberto da Cunha Melo 48 Continente Multicultural
caras ao universo de Ezra Pound. Mauro usa o verso-livre para alcançar uma poesia aberta e dialógica, e utiliza o verso metrificado (decassílabos e heptassílabos), para elevar o teor mélico da tradição vernácula, de modo soberano. Essa alternância acompanha todos os livros de poesia de Mauro Mota, dando-lhe um perfil bastante personalizado entre os integrantes da chamada Geração de 45. Ele e João Cabral de Melo Neto estão nessa geração por um determinismo cronológico, como dois pássaros raros e estranhos nesse polêmico ninho. No entanto, essa sua estranheza passou de certo modo despercebida em virtude da fama, com todos os méritos, de três poemas, em especial: Dez Elegias, A Tecelã e Boletim Sentimental da Guerra do Recife, onde uma das propostas de 45, a da renovação de formas canônicas, tradicionais, foi enriquecida com novas peças exemplares. O poema Dez Elegias, o mais festejado da obra de Mauro Mota, elevou-o à posição de maior poeta elegíaco do Brasil, em qualquer tempo. Essa espécie de poema, surgida no século 7 a.C., na Grécia, em dísticos que alternam o hexâmetro com o pentâmetro, começou como canto de guerra para transformar-se, no século 6 a.C., em sombrio gemido de dor, através de poetas como Simônides de Ceos. O hexâmetro greco-latino é geralmente transposto para o decassílabo, no vernáculo, e foi esse o metro escolhido por Mauro para as suas elegias, aliando-o a desconcertantes imagens visuais, mas sem quaisquer rebuscamentos, o que o coloca, também, entre os melhores renovadores do soneto, entre nós. Ele deu à elegia um tratamento atualizado do século 20, acrescentando novo brilho a uma espécie literária com dois mil e seiscentos anos. Essa transfiguração formal atravessa toda a poesia metrificada de Mauro Mota, onde se revezam, como já disse, dois metros, o decassílabo e o heptassílabo, os mais cantantes da língua, e que identificam todo o segmento de sua obra que me atrevi a chamar de “poetry as song”. Seguramente, os versos metrificados são mais numerosos do que os versos-livres. Elegias, por exemplo, tem vinte e seis poemas, dos quais apenas oito são em verso-livre. Por ter experimentado este último por vários anos, acostumei-me a
classificar, para meu uso, em dois tipos, os poemas que o utilizam: o poema-crônica e o poema-polimétrico. No primeiro, versos enormes são misturados com versos curtíssimos; no segundo, há uma faixa de oscilação, entre um máximo e um mínimo de sílabas (optei por este). Mauro Mota pratica, em verso-livre, o poema-crônica, mas daquele tipo que o crítico chileno J. M. Ibáñez Langlois descreveu a respeito da poesia de Pound: “um dizer coloquial, a poesia como prosa (...) com todas as técnicas narrativas, da anedota, do sentido épico, do relato”. Mauro começou escrevendo esse tipo de poema e nunca o largou durante toda a sua trajetória literária. Mas, por maior que já fosse o prestígio de Pound na segunda metade da década de 20, não acredito que Mauro Mota tenha sido influenciado por ele.
Para Nilo Scalzo os poemas escritos por Mauro nas décadas de vinte e trinta estão “ajustados às características que marcaram a poesia da segunda geração modernista: a revelação do quotidiano, redescoberta pela visão comovida do poeta, no qual o lirismo não exclui uma pontinha de humor”. No entanto, o tom de melancolia contida, a condensação lírica dessa poesia o afastam, para mim, do segundo modernismo. Quem primeiro fez uma aproximação da poesia de Mauro Mota com a de Pound foi Gilberto Freyre, prefaciando Itinerário. Mas ele fala em “pura coincidência”, e afirma: “de Pound se tem dito como se poderia dizer de Mauro Mota, que sendo ‘typically modern’ é um ‘tradicionalist at bottom’”. Sim, no fundo, todo grande poeta é um tradicionalista, procurando entender a vastidão do passado, porque o presente é incompreensível e o futuro sempre foi imprevisível. Ou, até porque, como diz Mauro Mota, em Morte Sucessiva, “tudo já aconteceu”.
Retrato de Ezra Pound, por Wyndham Lewis: no dizer de Gilberto Freyre, Pound, como Mauro Mota, era um ‘tradicionalist at bottom’, sendo ‘typically modern’
Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
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A invenção do cotidiano 50 Continente Multicultural
CATARINA DO AMPARO
LIÇÃO DE ARTE
Maurício Arraes
arte?
Quando e como começou seu interesse pela
Desde que eu fui para a Argélia, com 13 anos. No Liceu Francês, o colégio público em que eu estudava, tinha aulas de arte, de desenho, de pintura. Eu começei a gostar a partir daí. A pintura era um meio de expressão que eu adotei, já que eu não falava ainda a língua direito. Começei a desenvolver a minha arte desde então.
FLÁVIO LAMENHA
M
aurício Arraes é um seguidor da tradicional escola figurativista pernambucana. Vai encontrar sua fonte de observação (e invenção) no cotidiano das ruas: um cachorro que passa, um homem numa bicicleta, uma feirante, um violeiro na beira da praia, um casal namorando, um velho na rede, tendo por fundo casas, bares, postes, lojas, carros. É um ambiente urbano tratado com cores fortes e caligrafia rápida de tal forma características do seu trabalho que ele nem precisa assinar. Basta a gente ver e já sabe: é um quadro de Maurício Arraes. Essa paixão pela realidade urbana brasileira se explica um pouco pelo distanciamento de sua terra, a que foi obrigado já aos 13 anos, quando foi morar na Argélia e, depois, na França. Lá, começou a desenhar e pintar como forma de expressão, a fim de suprir suas deficiências no domínio da língua estrangeira. De volta, pôde ver tudo com olhos novos. E daí partir para essa sua linguagem particular, na invenção de um novo cotidiano. Radicado no Rio de Janeiro, esse recifense de 45 anos diz que dedicou-se à arte porque não poderia viver sem a pintura. Talentoso, vive desde os 22 do que mais gosta de fazer: pintar.
ções de pinturas de alguns livros. Minha pintura era inspirada no Surrealismo, com elementos simbólicos. Era bem diferente da que eu faço hoje. Quando surgiu esta temática do cotidiano no seu trabalho? Com 17 anos, eu fui para Paris estudar. (Maurício é formado em História na Universidade de Paris VII – Jessieu). A partir daí, eu comecei a pintar casas e paisagens e, com 18 anos, passei a pintar as ruas, os mercados de Paris. Em 1974, começei a pintar os transeuntes, o movimento nos metrôs, enfim, foi nesta época que eu encontrei o meu próprio caminho.
Acima, o artista. Na outra página, quadro da série Cachorros. Para Cil Vicente, os cachorros de Maurício Arraes dariam uma exposição à parte
Apesar de ter passado um bom tempo fora do país, as suas pinturas refletem a realidade urbana brasileira. Isto se dá por um sentimento de resgate? Eu acho que tem esse lado, sim. Tanto quando cheguei lá fora, quanto quando voltei para cá, houve um choque grande das culturas para mim. Você tem uma visão diferente da realidade ao seu redor e passa a enxergar tudo a partir de um ponto de vista novo. Eu me sinto ao mesmo tempo pintando as coisas de maneira mais próxima, mas também mantendo um distanciamento. Como se tudo e todo mundo fossem exóticos, não de uma maneira folclórica, mas no sentido de estranho, diferente. Esta mistura da visão entre duas culturas, eu acho que me motiva muito. Eu estou sempre vendo as coisas com novos olhos.
Chegou a fazer cursos por fora? Como você vê as novas linguagens nas artes Não. Eu realmente tive a minha base toda plásticas, como multimídia, intalações, a negação no Liceu. Lá sempre tinha uma caixinha de gua- da tela como suporte? che e outros materiais para os alunos produzirem. Eu acho que as outras linguagens são interNaquela época, a gente começava essantes, eu só não concordo com apredendendo o básico, primeiro a negação de nada. Do mesmo Marco Polo copiando fotos, fazendo reprodu- Colaborou Joana Aquino jeito que não concordo também Continente Multicultural 51
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Casario visto da Ponte Velha, no Centro do Recife
com a proclamação da morte da pintura, que é uma questão que já foi levantada várias vezes. Desde o surgimento da fotografia, disseram que a pintura estava acabada. No entanto, a fotografia influenciou os caminhos da pintura, porém nunca ameaçou sua existência. A pintura existe deste o tempo dos homens da caverna, é uma linguagem única, como a poesia. O surgimento de outros meios não determina absolutamente o fim de um. Por exemplo, o acontecimento do cinema não encerrou o teatro, que continua se desenvolvendo, ao contrário do que muita gente achava. São linguagem que se acrescentam. É interessante que alguns artistas consiguam expressar o moderno e o contemporâneo através destes novos meios, linguagens e técnicas. Por isso, a meu ver, cada forma de arte tem sua importância, a poesia, a pintura, o desenho, a gravura, a literatura. Uma pode ajudar a compor a outra, mas não obrigatoriamente mata a outra. Existem artistas que influenciaram a sua pintura? Uma influência direta eu não acredito. Há dezenas, centenas de artistas que eu admiro, mas não que tenham um efeito determinante na minha obra. Dentre os que você admira, pode dar alguns exemplos? 52 Continente Multicultural
É difícil, porque eu vou dizer nomes de vários amigos...(risos).Mas eu gosto de muita coisa. Em Pernambuco, há coisas muito boas. Tem Gil Vicente, Zé Cláudio, o próprio Brennand, grandes artistas que eu nem sei por onde começar. Fora do país, neste século que acaba de terminar, eu gosto muito de alguns pintores da Pop Art. Fora os grandes, como Matisse. Qual é o procedimento que você usa para compor seus quadros: observa muito e daí surgem as idéias, ou muita coisa parte de sua imaginação? Uma parte é imaginação. Várias coisas eu observo e, às vezes, aquele conjunto de cenas formam um quadro. Ou, até mesmo, uma só cena dá origem a uma série de quadros. Compor um quadro não é fácil, depende da idéia, da complexidade da imagem . Tem alguma obra em especial que o marcou pela complexidade? Não, todos os quadros são difíceis. Em geral, seus quadros apresentam cores claras e vivas. Como eu retrato muito o que vejo, eu tento passar isto também através das cores. Eu tento passar a realidade brasileira. Ás vezes, falam que meus
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Qual a sua relação com o mercado da arte? Dá para viver de pintura em Pernambuco, no Brasil? Dá, eu vivo só disso desde que eu tenho 22 anos. Agora, no meu caso particular eu tenho dois pólos de mercado, o Rio de Janeiro, onde moro, e Recife, que corresponde a uma parcela menor. O que você acha da figura do curador? Hoje em dia há uma polêmica de que ele estaria “tomando” o lugar do artista, aparecimento mais na mídia etc. O mercado da arte é muito dinâmico. Esta figura do curador é uma coisa nova. Quando eu começei, o próprio crítico de arte fazia esta relação com o artista. Era um papel menor e o curador veio para agilizar mais isso. É uma coisa que faz parte do mercado e eu não tenho nada contra. Isto é uma coisa independente do meu trabalho, não faz parte das minhas preocupações. Cada área tem uma esquema de trabalho e a gente tem que lidar coma realidade do mercado.
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Qual a importância dos Salões de Arte? Eu acho essencial. Eu acho uma pena que estejam diminuindo o número de galerias de arte desde a época em que comecei . Hoje, buscamos lugares alternativos para exposição. Os centro culturais, atualmente, estão assumindo um papel importante. Espero que eles se desenvolvam para poderem cumprir o papel realizado pelas galerias particulares.
Quais os seus planos para o futuro? Este ano eu tenho ainda uma exposição, dia 7 de novembro, na Casa de Cultura AláOgum, no Rio de Janeiro. Quero também expor no MAMAM (Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães), do Recife. Acho um espaço muito interessante. A longo prazo, meu plano é continuar crescendo na minha profissão. Continuar pintando, estudando, aprendendo e melhorando o meu trabalho.
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quadros são sempre muito coloridos, mas na verdade as cores são resultado direto do que eu vejo.
Já que você sobrevive somente da arte, qual o conselho que você daria a uma pessoa que está começando agora nas artes plásticas? Eu acho que tem que ter muita persistência, tem que ter muita vontade. Não tem nem que dar conselho, porque se a pessoa não quiser muito ser artista, ela não vai conseguir. O que se sente é quase uma impossibilidade de se estar fazendo outra coisa. Só é assim que a pessoa vai conseguir vencer. Tem até um fato engraçado que Gil Vicente conta. Um amigo dele foi perguntar o que ele lhe aconselharia, porque seu filho estava querendo ser pintor. Vicente disse que seu conselho era esconder todos os papéis e tintas que houvesse dentro de casa e não deixar ele desenhar de jeito nenhum. Porque foi assim que ele começou, desenhando escondido. Foi só com muita vontade e enfrentando muita dificuldade que ele conseguiu ser um grande pintor. É praticamente isto, a pintura, por ela mesma, envolve de uma maneira que não deixa para a pessoa uma outra alternativa.
No alto, homem tocando violão na praia. Abaixo, detalhe de quadro retratando um bêbado atravessando a rua. No pé da página, detalhe de quadro com casario, em Arraial da Ajuda, na Bahia. O cotidiano visto como se fosse pela primeira vez
Todo artista deve também buscar um estilo próprio? Eu acho que esta é uma condição sine qua non para o desnevolvimento da arte. Que ela acompanhe um estilo próprio. Continente Multicultural 53
Gil Vicente 54 Continente Multicultural
mundo achatado, sem latitudes, onde não existe tema principal. A ação e o momento retratados não são especiais: poderiam ter sido outros e o artista lhes dispensaria o mesmo tipo de atenção e despreocupação com o qual transforma o que vê em pintura, e o que pinta em realidade. Nenhum detalhe merece um tratamento técnico ou pictórico melhor ou mais sofisticado. Maurício não aborda a realidade por estereótipos plásticos. Sua caligrafia é apenas adequada às narrativas – e isso é muito –, parecendo evoluir num projeto artístico/filosófico que constata os fatos e faz uma crônica seca, sem interpretação, sem glamour ou denúncia, sem exageros, onde os objetivos e valores são o expurgo do estilo e a anulação do autor. Ele vê o essencial sem alarde, mostrando que a realidade é simples e apesar disso desperta interesse. Poucos pintores conseguem se despir de aspirações elevadas e mensagens profundas, e só alguns fotógrafos se aproximaram tanto da realidade do nosso mundo. Maurício nos mostra que nada é tão importante, que temos algumas alegrias e assim vivemos normalmente. Muita felicidade ou depressão é conseqüência de recusarmos o óbvio.
Gil Vicente é artista plástico CATARINA DO AMPARO
Ciclistas observados de apartamento no bairro do Parnamirim, no Recife
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H
á dois anos, no Rio, confesso a Maurício Arraes minha vontade de escrever sobre o seu trabalho. De volta ao Recife, procurando antigos catálogos, reencontrei o excelente texto de José Cláudio que apresentava a exposição de pinturas de Maurício, em 1981, na Galeria Futuro 25. O que eu queria escrever, e julgava original, compreendi ser ainda um eco do que Zé Cláudio revelou, de forma iluminada e definitiva, havia dezessete anos. Arquivei meu projeto, não dei retorno a Maurício e pensei que ele devia reeditar aquele texto a cada exposição que fizesse. Se estou aqui é por inabilidade em convencê-lo disso. Lembro as inúmeras visitas que fia ao ateliê de Maurício, durante quase vinte anos, e falo da parte que consegui ver das centenas de pinturas e milhares de desenhos e gravuras que ele guarda, além do que já vi exposto e publicado. Sempre me impressiona a intimidade com que ele compõe suas cenas. Posadas, flagradas ou imaginadas, estejam as figuras e objetos conscientes ou não da sua cumplicidade naquele momento, todos aparecem à vontade, nada indicando que sintam alguma distinção ou qualquer solenidade pelo fato de estarem sendo abordadas artisticamente. O pintor também não credita a si mesmo ou ao seu ofício nenhuma aura de privilégio, transcendência ou elevação. Tudo é plano, igual e comum: artista e modelos (anônimos ou famosos, ricos ou pobres), animais (os cachorros de Maurício mereciam uma exposição à parte), plantas, ruas, carros, muros, placas, cartazes, marcas, bares, móveis, garrafas. Nenhum item da composição é escolhido ou revelado por ter qualidades especiais (e se tem, o artista não as leva em conta), embora cada elemento seja tratado como diferente e único. Cada coisa tem suas características, sim, mas nada tem valor maior. Tudo se move e existe tranqüilidade no texto, mas sejam as tomadas urbanas ou rurais, vemos um
Sobre a realidade
FLÁVIO LAMENHA
C r o n o l o g i a 1956 – Nasce, no Recife, Maurício Arraes de Alencar. 1973/1977 – Curso de História na Universidade Paris VI (Jessieu). Curso de sociologia da Arte na École Pratique des Hautes Études. Desenho e Pinturas como autodidata. 1978 – Exposição Individual de Desenho, Pinturas na Galeria de Arte Ipanema, Rio de Janeiro. Individual na Galeris de Arte Ipanema em São Paulo. Participação no Primeiro Salão Nacional de Artes Plásticas. 1979 – Participação na Exposição Sete artistas em Foco na Galeria Artespaço, Recife. Exposições da Litografias com o grupo Guaianases em Recife, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. Exposição com o mesmo grupo na Galeria Gravura Brasileira no Rio de Janeiro. Participação no Segundo salão Nacional de Artes Plásticas. 1980 – Exposição individual na Galeira de Arte Ipanema Rio. Exposição na Casa da Criança de Olinda promovida pelas Edições Pirata. 1981 – Individual na Galeria Futuro 25 em Recife. Prêmio de Aquisição no Quarto Salão Nacioanl de Artes Plásticas. 1982 – Individual na Estampa. Rio de Janeiro. Participação do Salão Carioca. Prêmio de Aquisição do Salão de Pernambuco.
1983 – Elas, individual na Galeria das Artes no Circo Voador. Rio de Janeiro. 1984 – Dix Artistes de Recife – Coletiva no Espace Latino- Américain em Paris. Individual no Museu Guido Viaro, em Porto Alegre. Participação na exposição Como você vai, Geração 80?, no Parque Lage, Rio. 1985 – Exposição na Fundação Joaquim Nabuco. Recife. 1986 – Individual de desenhos na Artespaço, RJ 1987 – Individual de Desenhos na Artespaço, RJ 1988 – Exposição na Galeria Officina. Recife. Exposição de Pinturas Só Ipanema, na Galeria de Arte Cleyde Wanderley, RJ. 1989 – Exposição junto com o pintor George Barboza de Paisagens de Casa Forte na Galeria Belo-Belo. Recife. 1990 – Individual no Espaço Cultural Pallon. Recife. 1991 – Coletiva na Galeria Futuro 25, Recife. 1992 – Individual na UERJ, RJ 1994 – Individual na BookMakers, RJ 1995 – Individual na Espaço Vivo, Recife. 1998 – Individual na De Boscan e Erasmo Rocha, RJ 2000 – Individual no Instituto Cultural Brasil – Argentina, RJ. Individual na Galeria Arraial, Recife.
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Sidnei Tendler gosta do colorido e da forma como as cores vibram e se relacionam
Um pintor pernam A formação em Arquitetura, o gosto pela poesia, o exercício da fotografia resultaram num trato com os materiais plásticos que misturam pesquisa e intuição.
S
e fosse correto definir um pintor observando-se não as suas cores, mas as palavras que emprega para qualificar a sua arte as mais adequadas para Sidnei Tendler seriam contemporaneidade e amplitude. No amplo caminho que dá acesso a sua ampla casa é com prazer e entusiasmo bem coloridamente brasileiro que fala do seu ofício, de como se instalou na Antuérpia e, é claro, de coisas muito contemporâneas, como a próxima exposição que fará em Amsterdam, do projeto em andamento de uma ampla exposição sobre as cidades que conheceu não somente de ouvir dizer, mas de entranhar a sua carne na carne delas, como Nova Iorque, Paris, Rio de Janeiro, Recife. Sidnei Tendler é um pintor jovem, de talento e de sorte. Sobre a juventude fala a sua carteira de identidade. Sobre o taMário 56 Continente Multicultural
lento, depõem os seus quadros. Sobre a sorte, duas ou três histórias de como a sua última exposição no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, achou de coincidir com outra de Velásquez. De como o esquecimento de um cliente de um documento seu num restaurante e o reencontro com Tendler nele resultou num convite para mostrar o seu talento, a sua sorte e a sua juventude na Bélgica. “Pinto quadros por letras, por sinais tão luminosos como os do Levante”, escreve Cesário Verde no mais urbano poema da literatura portuguesa, onde canta “o sentimento dum ocidental” por cidades como “Paris, Madri, Berlim, São Petersburgo, o mundo”. Sidnei Tendler, depois de mostrar os 500 anos de Europa no Brasil, Tendler investe agora, não mais no tempo, mas no espaço de sete cidades. “Serão quadros noturnos, quero mostrar as cores das cidades à noite”, Hélio explica.
bucano na Bélgica Quem olha para qualquer quadro de Tendler logo se apercebe de que a diferença entre ele e um Pedro Américo no tratamento de materiais históricos é maior do que entre o Brasil e a Bélgica na qualidade de vida. “Quando fui convidado a pintar os 500 anos, preferi destacar os 500 anos de cultura européia no Brasil e creio que este foi o primeiro questionamento não panfletário dos descobrimentos”, diz. A formação em Arquitetura, o gosto pela poesia, o exercício da fotografia, o trabalho como design e fábrica de móveis resultaram num trato com os materiais plásticos que misturam pesquisa e intuição. Tudo isso com a saudável atitude de não estabelecer diferença entre arte pura e arte aplicada. “Quando desenhava móveis já estava fazendo arte”. A experiência com laca – “muito refinados, com sete a nove camadas até deixar a superfície perfeita” seguiu à exploração da madeira, eucatex, tela - mais estimulada a partir de sua chegada à Bélgica - também foi aproveitada no desenvolvimento da sua pintura.. Sobre a sua evolução estética, Tendler reconhece uma fase inicial minimalista, alguma influên-
ARQUIVO DO ARTISTA
cia do movimento Cobra e o interesse permanente por atualizar-se, “contemporaneizar-se”. A isso ele acrescenta o contato com as cores do Recife. “No Recife a luz é diferente de outros lugares, muito forte; há também a presença do mar, da paisagem que integram as minhas paisagens do inconsciente”. A mesma atitude dirige a sua arte, seja uma pintura mais “gestual”, seja um painel histórico. “Nunca dou títulos aos meus quadros. O título induz a uma só leitura e eu gosto mesmo é de não fechar nenhuma figura. O que vale é a obra aberta”. Se a inquietação é algo bem visível – e não somente insinuado – na sua estética, um certo fascínio pelo dinamismo e passagem das coisas logo se nota em cada uma das cores desse “pernambucarioca” que levou num container todos os seus móveis para a Antuérpia, mas nada tem de atávico nem telúrico. Mas que vai encontrando analogias entre o Recife e o lugar onde mora. O porto. De olho e memória no mar, onde a forma nasce da forma. Mas o que mesmo é buscar “os amplos horizontes” para poder não descansar de pintar.
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ARQUIVO DO ARTISTA
A estrutura dos quadros do artista é composta de visões transparentes
O pintor se pinta
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Raul Córdula
idnei Tendler faz parte de uma família de artistas plásticos que há muito recusou as questões formais e acadêmicas. Na década de vinte teria sido um pintor abstracionista, nos “40” faria action painting, posteriormente seria rotulado como expressionista abstrato, não figurativo, não representativo, gestualista, etc. O que ele faz, na verdade, é pintura pura. Seu olhar e seu gesto criador estão articulados com o momento em que o quadro se forma mentalmente, e arte é coisa mental. Há nisso qualquer coisa do repentista, mas não do improvisador. Sim, pois no “repente” a obra se organiza imediatamente em sua integridade, e no “improviso” ela, no máximo, se esboça. Para tanto o acaso é levado em conta como matéria criativa. Não há acaso, porém, na gesticulação dos pincéis e das tintas, mas genialidade no ato de transformar a performance em arte. A estrutura dos quadros de Sidnei Tendler é composta de visões panorâmicas, horizontais e transparentes, característica dos paisagistas, pintores que representam o mundo visto de longe, sensíveis à luz e suas mudanças, conhecedores dos humores 58 Continente Multicultural
atmosféricos, decifradores dos segredos dos ventos, da alma das cidades e do caráter dos homens. Arte como “coisa mental” é um conceito do renascimento. De Leonardo para cá a arte libertouse de seus cânones mais severos, e quem pode dizer que o advento da modernidade não se deve a isto ? O artista superou seus próprios meios, a ciência supriu necessidades importantes, o poder transferiu para a tecnologia funções e tarefas que prendiam o artista a uma relação subalterna de trabalho. Deixando de ser um artífice, ou um operário da beleza, o artista assumiu definitivamente seu papel. Hoje o artista encontra-se livre de funções e de encargos, dedicado ao seu trabalho criador, ocupado em pensar e realizar os objetos de seus sonhos e desejos, mergulhado no território do inconsciente de onde traz novos símbolos e reinventa seus sistemas de linguagem. O artista atual é aquele que, por exemplo, se pinta. Pintando uma paisagem ele se pinta, retratando o outro ele está se retratando, e assim fazendo está pintando para o outro. Raul Córdula é artista plástico e crítico de arte
ARQUIVO DO ARTISTA
Cronologia 1958 – Nasce, no Rio de Janeiro, Sidnei Tendler. 1977 – Curso de Arquitetura na Universidade Santa Úrsula. Trabalhos com fotografia. 1980 – Menção Honrosa no Congresso da União Internacional de Arquitetos com um trabalho sobre a “reabilitação de um ambiente urbano em degradação”. 1982 – Curso de pós-graduação na Parsons School of Design em Nova Yorque, E.U.A. 1983 – Participa da mostra Auto Retrato, de fotografias, na Funarte/RJ. 1985 – Inicia pesquisas com pinturas a base de Laca Nitrocelulose, inicialmente em móveis, depois em painéis de madeira. 1986 – Exposição na SKM Galeria, Rio de Janeiro. 1992 – Exposição no Museu do Estado de Pernambuco, Recife. 1993 – Mostra no Cultural Centrum Theilaar, Bélgica. 1994 – Mostra no Centro Cultural Wolewei, Turnhout, Bélgica. 1995 – Exposição no Museu do Estado de Pernambuco, Recife. Mostra na Basílica de Koekelberg, Bruxelas, Bélgica. Exposição no Cultural Centrum Theilaar, Bélgica. Exposição no Solar da Cultura, Rio de Janeiro. Exposição no Espaço
Candido Portinari, São Paulo. Mostra na Galeria Artespaço, Recife. 1996 – Exposição no Creative Factory, Bélgica. Exposição no Cultural Centrum Theilaar, Bélgica. Participa da mostra coletiva Arte nos Correios, Dinamarca. Participa da coletiva Artistas de Pernambuco no Ceará. Participa da coletiva Artistas de Pernambuco em Brasília. Participa da coletiva Artistas de Pernambuco na Paraíba. Parçticipa da coletiva Viva Bandeira, Recife. Mostra na Embaixada da Venezuela, Brasília. 1997 – Participa do Projeto Contraponto no Museu do Homem do Nordeste, Recife. Exposição na Galeria Bremen, Holanda. Participa do Festival de Arte Caribenha, Cuba. 1998 – Participa de mostra coletiva na Loveland Gallery, Colorado, EUA. Participa de coletiva na Contemporary Art Gallery, Oklahoma, EUA. Participa de coletiva no Institute of Modern Art, New Mexico, EUA. 1999 – Participa de mostra coletiva no MAMAM, Recife . 2000 – Mostra noCastelo In Den Ouden Bareel, Bélgica. Mostra no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
AnĂşncio
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AnĂşncio
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uexpressão ma de resistência Pernambuco recebe com exclusividade exposição de quase 100 artistas de expressão ibero-americana, do México ao Chile, revelando resistência à hegemonia econômico-cultural dos EUA Ao lado, Orillese a la Orilla, do mexicano Yoshua Okón. Policiais em cenas de transgressão. Impressão a cor em papel Kodak. Acima, à direita, Ocurrió asi, infografia sobre madeira, do peruano Miguel Aguirre. O passo-a-passo da violência urbana nos meios de comunicação
F
oi uma das maiores exposições já vista no Recife. Arte IberoAmericana – Políticas da Diferença – reuniu, no Centro de Convenções de Pernambuco, entre os dias 3 de julho e 15 de agosto, 220 obras de 27 países. Quase 100 artistas plásticos colocaram em cena – sob variadas formas – peças que provocaram não apenas admiração e estranheza, mas um debate essencial sobre a estética contemporânea e o papel político da arte.
Luiz Augusto Falcão 62 Continente Multicultural
Ao lado, Sem título, do paulista Nuno Ramos. Técnica mista. Abaixo, detalhe de En mémorie de Gorée, do caribenho Alex Burke. Tinta nanquim sobre envelopes. Ao pé da página, 4.000 Yards/Apple Trees, after Gerhard Richter, do brasileiro Vik Muniz. Demonstração de como a fotografia se impôs, na década final do século passado, como forma expressiva
Algumas instalações, num primeiro olhar, poderiam sugerir a adesão latino-americana aos moldes tão agregados às artes plásticas dos Estados Unidos. Com um pouco mais de apuro, no entanto, via-se ali um painel de contrastes - sem espaço para hegemonias –, e uma posição crítica à imagem que o Primeiro Mundo guarda a respeito da cultura produzida em sua periferia. “O meio artístico europeu ou norte-americano, por exemplo, espera de uma região periférica, de preferência uma expressão vinculada à política ou ao exotismo de comportamento”, escreveu a curadora Aracy Amaral, no volumoso catálogo da exposição (687 páginas, 3,98 kg). Vários trabalhos entraram na contramão dessa idéia preconcebida. Daniel Joseph Martinez, norte-americano de origem latina, foi um deles. Seus dilacerados auto-retratos – fotos de um corte fundo no pescoço e de uma bala atravessando a cabeça – poderiam recordar, segundo o crítico Victor Zamudio Taylor, obras de Andy Warhol. “No entanto – salienta – Martinez não pretende, aparentemente, despojar a imagem de seu conteúdo social, mas sim, imbuí-la de significado.” O mexicano Yoshua Okon, com Orillense la Orilla, entra em campo para testemunhar polícias em cenas de transgressão. O meio para mostrá-los é uma câmera de vídeo. Diante dela, soldados dançam, ensinam a manejar um cassetete e fazem tre-
jeitos repetitivos – impensáveis para um militar em plena rua. O resultado é um exercício hilariante carregado de crítica social. A questão sócio-política, de maneira mais explícita, foi trazida pela representação do Equador. “A sociedade equatoriana padece de uma crise global que abonou o terreno para que a preocupação social prolifere no mundo da arte”, observa o crítico de arte Lupe Álvarez. “Não é casual que nos concursos dedicados à plástica abundem obras que fazem alusão crítica a algum dos males que afligem o país.” É o caso de Ana Fernandes e o seu Luz de America – a reprodução de uma cédula de dinheiro, em acrílico, com retratos de figuras equatorianas. Em cima da nota, a águia símbolo dos Estados Unidos e a frase que vem impressa no dólar – In God We Trust. Para o artista plástico João Câmara, Políticas da Diferença... não é uma exposição temática. Trata-se de um conceito. “Não há uma visão hegemônica, existe, sim, a procura de uma expres-
Ao lado, Sem título, do brasileiro José Damasceno. Cadeira revestida de bolinhas de gude. Acima, quadros em forma de capas de livros, do peruano Fernando Bryce. Jogo subversivo de apropriações personalizadas. Tinta acrílica sobre papel
são de resistência ao fato de a América Latina estar na periferia do eixo Nova York-Europa”, afirma. “Não há, contudo, nem um laivo de nacionalismo nessa postura.” De acordo com Câmara, a exposição se caracteriza ainda pelos meios que utiliza – habituais na cena dos anos 80: fotos, vídeos, objetos tridimensionais e o próprio corpo humano. A exposição, patrocinada pelos governos de Valência, na Espanha, e o de Pernambuco, no Brasil, quase seria realizada em São Paulo. Problemas de agenda e de espaço adequado na capital paulista trouxeram o acervo para o Centro de Convenções. Com isso, o Recife tornou-se a única cidade do País a abrigar, num mesmo lugar, obras de artistas como as do fotógrafo Vik Muniz – primeiro brasileiro a expor no Witney Museum de Nova York –, do argentino Marcos Lópes, da mexicana Claudia Fernandes, do cubano Douglas Pérez, entre tantos outros. Um dos destaques foi a desconhecida, porém profícua, cultura plástica caribenha. Depois de passar pelo Recife, a exposição cumprirá uma longa jornada internacional, passando pela França, Áustria, Estados Unidos, México e, por fim, Valência, no ano que vem. Na cidade espanhola, é realizado, anualmente, um encontro que reúne curadores de toda a América Latina e dos Estados Unidos. “O processo que culminou com a montagem da exposição Ibero-americana iniciouse na época da criação do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), em
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1997”, conta José Carlos Viana, diretor dos museus de Pernambuco. Em seguida, a partir do consórcio de Valência (Consorci de Museus de la Comunitat Valenciana), Pernambuco fechou acordos de intercâmbio com outros museus, como o de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC) e o de Arte Moderna, da Bahia, além da Pinacoteca do Estado (SP). As parcerias prometem. Luiz Augusto Falcão é jornalista
PATRIMÔNIO
Um mergulho no passado paulistano com estilo
Jantar na Villa Kyrial em 1916, presidido por Freitas Valle, ao fundo, na cabeceira. De óculos, à direita, o jovem músico Sousa Lima.
Livro conta a história de um mecenas da Belle Époque paulistana e do salão que se tornou núcleo de efervescência cultural Eduardo Cruz Continente Multicultural 65
E
Desde 1899, Freitas Valle já se desdobrava em Jacques D'Avray
ra uma chácara, no nº 10 da rua Domingos de Morais, cidade de São Paulo, adquirida pelo senador gaúcho José de Freitas Valle e batizada de Villa Kyrial. Era começo do século 20. A propriedade iria transformar-se em núcleo irradiador de cultura por cerca de vinte anos, e o seu proprietário, um dos maiores mecenas brasileiros do período. Esta história foi contada pela jornalista e historiadora Marcia Camargos, no livro Villa Kyrial – Crônica da Belle Époque Paulistana, editado pela SENAC-São Paulo, e que tem como suporte de pesquisa o trabalho competente e reconhecido da Companhia da Memória. Mas o que era a Villa Kiryal? Um amplo palacete com jardins, em seus salões, fartamente decorados, próprio ao estilo, funcionou o que podemos chamar de centro cultural freqüentado por luminares e endinheirados que acreditavam naquele oásis estar promovendo a civilização daquela poeirenta e promissora província. Um salão onde nomes como Tarsila do Amaral trafegavam com a mesma celeridade do maestro Francisco Mignone e cujo afrancesamento óbvio era criticado por Monteiro Lobato, mas que mecenava figuras como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e José Oiticica. E quem era Freitas Valle, o senhor da Kyriall? Professor de francês, advogado, perfumista, gourmet, mecenas, deputado e senador estadual. Como poeta, sob o pseudônimo de Jacques D’Avray, publicava tragipoemas em sofisticadas plaquetes com poucas páginas e aspecto gráfico apurado. Com tipologia, cor e vinhetas diferentes umas das outras, essas plaquetes, acondicionadas em caixas de papel marmorizado com título gravado em dourado, seguiam o conceito de livro
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inaugurado pelos simbolistas, como espaço de significação. O poeta mineiro Alphonsus de Guimarães veio a chamá-lo de Prince royal du symbole et grand poète inconnu. A relação entre ambos os poetas é apenas um dos pólos de interesse reunidos pela autora Márcia Camargos. Como a passagem do tenor italiano Enrico Caruso pela Villa Kyrial, onde conheceu Freitas Valle e dele fez uma caricatura. A tanta informação e tantos documentos raros que a autora teve acesso, uma das maiores dificuldades na feitura do livro foi o da seleção: “Como tive acesso privilegiado ao arquivo Freitas Valle, totalmente inexplorado e muito rico, não foi fácil deixar de lado alguns documentos”, diz a autora. O livro traz história de perfumistas, escultores, músicos geniais e até uma discussão por modernistas sobre a inserção da Kyrial ao movimento de 22. Uma foto registra, sorridentes, na escadaria do terraço da Villa, os protagonistas da Semana, dias após o evento. A foto foi legendada como “Invasão Futurista na Villa Kyrial”. O resgate histórico sempre foi defendido por todos, mas pouco de prático vinha sendo feito. O trabalho de Marcia Camargos e da Companhia da Memória é de grande importância e vem apoiando-se no sistema de parcerias com a iniciativa privada. Para saber mais: Villa Kyrial, Crônica da Belle Époque paulistana, de Marcia Camargos. Senac: São Paulo, 2000. 255p. Companhia da Memória, fone: (11) 383.3699, fax: (11) 3081.5087, e-mail: memoria@plugnet.com.br Eduardo Cruz é jornalista e produtor de vídeo em São Paulo
Depoimentos da autora Marcia Camargos “Por incrível que pareça, e apesar de existirem pouquíssimos estudos sobre esta fase da vida cultural paulistana e brasileira, ofuscada como foi pela eficientíssima máquina propagandística do movimento modernista, minha maior dificuldade consistiu em decidir que rumo tomar, que atalho escolher, que partes descartar. Como tive acesso privilegiado ao arquivo Freitas Valle, totalmente inexplorado e muito rico, não foi fácil deixar de lado alguns documentos, optar por um caminho em detrimento de outros, igualmente interessantes. Ao fim e ao cabo, utilizei, de verdade, apenas um décimo de todo o material pesquisado. É claro que a gente gostaria de esgotar o assunto, espremer até a última informação, vasculhar cada pista, revelar o mais ínfimo dos detalhes. Mas, para viabilizar uma público a história deste personagem incrível e do seu tese e um livro, há que se cortar muita coisa boa, e eclético salão.” esta é a parte mais dolorosa do processo.” “Há mais de quinze anos temos trabalhado “A idéia de pesquisar este tema surgiu há com o resgate da memória brasileira. Fomos piomuitos anos, quando um livro de Aracy Amaral neiros neste tipo de pesquisa histórica fora da acachamou minha atenção para aquele importante demia. Vasculhamos arquivos e conversamos com ponto de encontro da cidade no início do século 20. pessoas para escrever livros e realizar exposições, Constatei que não havia textos de maior fôlego ded- entre outros produtos culturais. É um filão muito icados à Villa Kyrial, apenas referências esporádicas, fecundo... um campo em que, em nosso país, quase e raras eram as pesquisas sobre o período em que ela tudo ainda está por ser feito. As pessoas em geral, e se insere – a chamada Belle Époque paulistana. as empresas em particular, têm se conscientizado, Tinha diante de mim um assunto interessantíssimo, cada vez mais, da importância da preservação da e uma lacuna historiográfica que merecia ser memória. Como os mecenas do tipo de Freitas Valle preenchida. Como era próxima da família Freitas não existem mais, este papel vem sendo desempenValle fui, aos poucos, obtendo documentos e toman- hado pela iniciativa privada. No nosso caso, estas do depoimento de pessoas que conviveram com o parcerias são fundamentais, e possibilitam uma senador-mecenas. Com um material riquíssimo e autonomia de vôo que não teríamos sem tal apoio. inédito em mãos, entre cartas, fotografias, impressos Felizmente, as empresas têm compreendido sua e uma grande quantidade de papéis produzidos função social e, por meio de leis de incentivo à culpelo cotidiano da Villa Kyrial, achei que deveria, de tura, patrocinam e viabilizam muitos projetos nesta alguma forma, divulgar e levar ao conhecimento do área.”
Rua São Bento, 1902: artéria elegante da metrópole do café
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA
Circo, orixas e o Pequeno Dicionario do Aurelio Joel Silveira
1.Influencia 5.Nobel Q
uando em 1939 publiquei meu primeiro livro de contos, A Onda Raivosa, a crítica, inclusive Mário de Andrade, detectou no mesmo uma forte influência da melíflua Katherine Mansfield – da qual até então eu não tinha lido uma só linha.
2.Chato
Foi o falecido David Nasser quem certa vez me contou: – O Chatô (Assis Chateaubriand) chegou um dia para mim e disse: “Saiba vossência que jornalista que não enriquece é burro. Aprenda isso, turco”. Lembro a historinha, somo e peso meus haveres e concluo: sou uma besta, e das mais quadradas, sem direito sequer a renovar as velhas ferraduras.
3.Sonho Como todo palhaço velho, sempre sonhei em ver o circo pegar fogo. Acho que vou conseguir.
4.Patifes
Temos de reconhecer que, apesar de tudo, o Brasil nos oferece algumas compensações. Uma delas é a facilidade com que somos esquecidos, questão da noite para o dia. Para os patifes, então, isso é de uma extraordinária e confortável conveniência.
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Às vésperas do anúncio do Nobel de Literatura de 1993, Jorge Amado foi visto, todo esperança e reverência, na peregrinação ao santuário de Santiago de Compostela, na Galícia. Donde se conclui (ou concluo eu) que, decepcionado, ele já havia mandado às favas seus orixás baianos.
6.Biografia 7.Aurelio
Vim sem ser chamado, irei sem ser expulso. Eis aí toda a minha biografia.
A última vez que me encontrei com Aurélio Buarque de Holanda, uma das minhas primeiras amizades aqui no Rio, foi quando do vigésimo quinto aniversário de São Bernardo – de mestre Graciliano Ramos. Bebericávamos no bar do hotel, em Maceió, quando ele de repente me perguntou: – Que tesouro você traz aí nessa sacola, que nunca se desfaz dela? – É a minha caixa de pronto-socorro, para as emergências. Aqui dentro tem aspirina, sonrisal, pó de sulfa, band-aid, remédio para o fígado. E tem também o Pequeno Dicionário do Aurélio. Num tom grave, Aurélio sentenciou: – Trata-se de um cidadão realmente prevenido.
8.Obito O telefone toca: – Fulano morreu. Bocejo: – Novamente?
9.Papa Algo me diz que as coisas começaram a desandar de vez aqui no Brasil logo após a primeira (e dispendiosíssima) visita que nos fez João Paulo II.
13.Marcas Quando aqui no Brasil morre um político de notoriedade nacional, é costume ouvir: “Foi uma pessoa que deixou marcas”. Na maioria das vezes seria mais apropriado dizer que na verdade o que o ilustre defunto deixou foram hematomas – na coisa pública; ou, mais explicitamente, no erário.
10.Memoria 14.Prova É até bom que o brasileiro não tenha memória ou a tenha curta. Lembrar para quê? Lembrar o quê?
Todo memorialista devia provar na Justiça ser verdadeiro tudo o que disse em suas memórias. Antes de publicá-las, é claro.
Como os gramáticos, de um modo geral (uma das exceções é João Ribeiro, exímio arrumador de palavras), escrevem mal! Mais parecem senhoras exageradamente robustas tentando acomodar suas enxúndias e adiposidades em vestidos feitos para talhes esguios. Contorcem-se, suam, ofegam – e o que sai de todo esse comovente esforço é uma prosa (?) geométrica, sem cor, sem som, uma linguagem ao mesmo tempo empanturrada e achatada. Meu amigo é que tinha razão: – Toda gramática é fascista.
Já fui Botafogo, já fui Portela, já fui eu etc etc... Resumindo: já fui.
11.Fascistas15.Fui
12.Ultima Insisto: se existe uma primeira-dama, necessariamente deve existir uma última. Quem será ela ?
16.Idiota Simplifiquemos as coisas e economizemos as palavras: idiota é todo aquele cujas opiniões não coincidem com as nossas.
17.Foi
– E então,como está indo a vida? – Indo? Já foi. Joel Silveira é ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.
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MIL PALAVRAS
ANGOLA J. R. Duran
Todos os fotógrafos que admiro (Richard Avedon, Anne Leibowitz e, claro, Robert Capa) estiveram em um momento ou outro em uma guerra. Eu, apesar de estar satisfeito com o meu trabalho, queria chegar perto de alguma coisa que não pudesse controlar. Alguma coisa maior do que pudesse imaginar. Maior do que a vida. Durante dez dias, em junho do ano passado, estive em Angola. Em todas as partes possíveis (nunca indo sentado no primeiro carro, de um dia para outro uma mina pode estar no seu caminho) e olhando tudo de perto. Um pouco do que vi está nas fotos seguintes. Um país envolto em uma guerra há mais de vinte anos, mas com um povo de uma força e de um orgulho admiráveis. 72 Continente Multicultural
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no Recife
REPRODUÇÃO
PSICANÁLISE
O mito LACAN
Psicanalistas discutem no Recife a linguagem do inconsciente segundo Jacques Lacan, que repensou Freud e criou escola Paulo Sérgio Scarpa 80 Continente Multicultural
A
obra e o legado do mais importante psicanalista depois de Sigmund Freud serão discutidos por psicanalistas de todo o mundo, no Recife, na Reunião Lacanoamericana de Psicanálise, entre 29 de agosto e 1º de setembro, no Mar Hotel. O psicanalista francês Jacques Lacan – um dos mais influentes pensadores da segunda metade do século 20 e que estaria completando cem anos em abril – é considerado o reinventor ou refundador da Psicanálise. Mas Lacan parece que foi muito mais para seus fiéis seguidores: foi um transgressor venerado e repudiado. Ele morreu há 21 anos, no dia 9 de setembro. A importância de Lacan para o século 20 foi tão grande que um dia ele deixou escapar: “Fui eu que inventei o inconsciente”. Seu maior mérito, porém, parece ter sido o de “ter livrado Freud das amarras do obscurantismo intelectual e das garras do poder institucionalizado burocraticamente”, conforme salienta o psicanalista Paulo Roberto Medeiros. “Ele releu Freud diante de centenas de curiosos numa Paris efervescente, arejada pelo marxismo malthusseriano e pelo existencialismo sartriano dos anos 60”, conta. Lacan nasceu em abril de 1901, um ano depois do lançamento da obra fundadora da Psicanálise: A Interpretação dos Sonhos (1900), de Freud. Embora não tenham sido amigos nem companheiros de ideais, foi Lacan quem promoveu, nos anos 50, o famoso movimento que se caracterizou como o retorno a Freud. Ele levou os textos freudianos para serem discutidos por psicanalistas, mas apresentou-os também a médicos, filósofos, lingüistas, antropólogos e até a matemáticos. Por isso, uma de suas maiores virtudes é a que perdura até hoje: a de ter promovido a conexão da Psicanálise com outras disciplinas.
Laberge lembra que a essas paixões Lacan acrescentou ainda a Filosofia, a Lingüística, a Topologia e até a Matemática. “Levi-Strauss inspirou seu simbólico, Henri Wallon, seu imaginário, Bataille e Koyré, seu real. A tríade do simbólico, do imaginário e do real aparece em Lacan desde 1953 e percorre toda sua obra, reformulando as duas tríades freudianas do consciente, pré-consciente e inconsciente, do id-ego-superego”, analisa Laberge. A fama de Lacan estava no auge na Europa quando foram fundadas as primeiras escolas lacanianas no Brasil, em 1975. A Psicanálise falava no “retorno a Freud”
Paulo Roberto Medeiros: “A instituição psicanalítica resiste à Psicanálise” Como nasceu a Psicanálise? Nasceu do desejo, do desejo de uma fala outra, diferente de todas até então existentes sobre o próprio desejo. Coube a Freud nomear esse novo campo do saber, sendo o primeiro a ouvir essa fala, expressa no âmbito da assim denominada histeria. A partir de uma recriminação histérica reivindicatória, Freud conseguiu deslocar sua posição de ausculta médica dos sintomas do corpo para a escuta psicanalítica das dores da alma. Assim, desde 1895, a Psicanálise procura ouvir essa outra fala, gramaticalizando sua sintaxe. O universo lacaniano será falocêntrico? Por quê? O Falo é o único símbolo aceito enquanto símbolo pela Psicanálise. A Psicanálise adota e elabora as inscrições simbólicas registradas na ordem da própria cultura. A partir de Freud a diferença sexual não é biologicamente determinada, mas simbolicamente engendrada. Biologicamente a anatomia é o destino, mas não desejantemente. Indicar-se o sexo enquanto gênero resultará num efeito da identificação do sujeito – masculino ou feminino – a um significante representativo do Falo. É, na cultura, um significante uno representativo do pai procriador. Lacan, trazendo elementos da Antropologia compatíveis às formulações freudianas para a Psicanálise, se apóia em LéviStrauss para indicar as mulheres na ordem simbólica enquanto objetos de troca para manter a disposição da ordem estrutural do Nome-do-Pai.
FLÁVIO LAMENHA
Famoso pelo estilo barroco e hermético, Lacan se tornou uma lenda da “intelligentsia” francesa e ele nem havia ainda publicado seu primeiro livro na década de 60, à exceção, claro, de sua tese de doutorado em Psiquiatria denominada Da Psicose Paranóica em Suas Relações com a Personalidade, de 1932. “Freud e Lacan se parecem sobretudo pelo amor à cultura. Desejavam que os analistas fossem letrados. Literatura, Mitologia e Antropologia permitiram a Freud elaborações decisivas como totem e tabu, Moisés e o monoteísmo e textos sobre Dostoievsky, Shakespeare, Hofmann”, explica o psicanalista Jacques Laberge.
Quais são hoje as formas de “resistência” à psicanálise como instituição? A própria instituição psicanalítica apresenta-se como mais uma forma de resistência à Psicanálise. Revela-se seja instituindo-se como mais uma forma de corporativismo dentre os muitos já existentes, seja como o vazio dos ritos, seja como lugar do exercício de um poder, na maioria dos casos, usurpado, seja como obscurantismo intelectual. Como está, hoje, a Psicanálise após Lacan? Revigorada e banalizada. Sob muitos aspectos encontra-se revivificada pelo vigor intelectual e clínico daquele gênio, havendo, no entanto, a preocupação com sua possível banalização face a uma divulgação distorcida e superficial de seus conceitos, inibindolhes a força revolucionária de origem. Paulo Roberto Medeiros, psicanalista, fundador, em 1991, de Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise, com sede no Recife, cidade onde mantém sua clínica. Nascido em 1945, Petrópolis Rio de Janeiro, estudou no Rio e em São Paulo, chegando ao Recife em 1968 para ser pároco da Holy Trinity Church, a então denominada Igreja dos Ingleses, no bairro de Aflitos, onde exerceu suas funções até 1971.Foi também membro fundador do Centro de Estudos Freudianos do Recife, nele permanecendo até 1989. Começou sua experiência de análise em 64, no Rio de Janeiro, retomando-a em 66, em São Paulo, prosseguindo-a no Recife, em 76.
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e postulava que “o inconsciente se estrutura como linguagem”. Mas o movimento no Brasil foi apenas uma conseqüência dos seminários semanais promovidos por Lacan desde 1953. A partir de 1966, seu público foi ampliado com a publicação de seus textos dispersos no livro Écrits (Edition Seuil). A partir de então, jovens atentos e admirados iam ouvi-lo na Ecole Normale Supérieure ou na Faculdade de Direito da Sorbonne, em Paris. E foram seus escritos, lembra Paulo Medeiros, que “popularizaram” Freud no Brasil. “Sobretudo através do seu ensino em Paris e na efetivação da proposta de Freud quanto à formação da análise laica, considerando-se sua fala durante trinta anos consecutivos.” Quanto a seus escritos, o psicanalista brasileiro faz uma analogia: seria como comparar a popularização de Dublin (Irlanda) no Brasil através dos escritos de James Joyce. “E cito
Joyce por encontrar similaridade no tratamento dado à linguagem por parte de ambos”, explica. A popularização de Freud via Lacan existe, de fato, e deve-se à importância para Lacan daquilo que Freud chamou “análise leiga”, acrescenta Paulo Medeiros. Ou seja: a formação psicanalítica não sendo restrita à ordem médica e às suas instituições, podendo ser praticada por quem quer que tenha recebido qualquer outra formação anterior desde que sua própria análise assim o indique. “Isso permitiu tornar a Psicanálise num porto a acolher navegantes de muitos mares”, conclui o psicanalista. Em 1980, poucos meses antes de morrer, Lacan dissolveu a Escola Freudiana de Paris, que fundou em 1964 após a ruptura definitiva com a Associação Internacional de Psicanálise (IPA), a mais tradicional instituição de Psicanálise do mun-
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Jacques Laberge: “Não Quem foi Lacan? O mais importante psicanalista depois de Freud. Sua formação anterior em psiquiatria culminou com a publicação de sua tese sobre o “caso Marguerite”. Ela, por ter ferido uma atriz, foi internada. Com sua procura de fama via crime-castigo, ilustrava a “paranóia de autopunição”. Nesta época Lacan fazia análise com Lowenstein, e este início pelo real da psicose o diferencia de Freud, que foi levado a descobrir o inconsciente pelo discurso das histéricas que, subitamente, ficavam paralíticas ou cegas. Existe homem normal? Não existe. O neurótico, o perverso e o psicótico são os três tipos de discursos dos conflitos psíquicos. O chamado homem normal é aquele que não é demais atrapalhado por sua neurose, seja histérica, seja obsessiva, seja fóbica. sonho?
O que seria em Lacan o correspondente do
Sonho é o termo mais usado por Freud. Seu livro A Interpretação dos Sonhos é um dos mais decisivos da história do pensamento. É lido minuciosamente por Lacan, que comenta os mais famosos sonhos. Lacan 82 Continente Multicultural
Lacan apresentou os textos freudianos a médicos, filósofos, lingüístas, antropólogos e até a matemáticos, promovendo a conexão da Psicanálise com outras disciplinas do. “Lacan nos lembra que todos os governos mais autoritários sempre se caracterizam pelo bem que dizem querer para seus povos. O analista não pode procurar o bem, mas o desejo do analisando. O trabalho sobre este desejo, encoberto, escondido, permite efeitos mais duradouros na vida de um sujeito. Precisa de tempo”, vaticina Jacques Laberge. “A Reunião Lacanoamericana de Psicanálise do Recife propõe um elo social entre psicanalistas freudo-lacanianos em torno do discurso psicanalíti-
co”, adianta Paulo Medeiros. “É uma oportunidade memorável para um intercâmbio de idéias, a nível internacional, entre psicanalistas freudo-lacanianos de vários continentes”, conta. Politicamente, salienta, trata-se de um alinhamento supra-institucional, cuja iniciativa vem recebendo, no decorrer dos anos, apoio permanente por parte de psicanalistas argentinos e brasileiros, encontrando eco em todas as partes do mundo onde se pratica a Psicanálise de orientação freudo-lacaniana. Para saber mais:
Reunião Lacanoamericana de Psicanálise do Recife, 29 de agosto a 1º de setembro de 2001, no Mar Hotel. www.lacanorecife.com.br fones: (81) 3465.8594 – 3466.5551/4723 fax: (81) 3325.5015 Paulo Sérgio Scarpa é jornalista
existe o homem normal” Em um país como o Brasil, quem realmente tem acesso à Psicanálise? Na grande maioria dos países, infelizmente, a cultura, as ciências e seus efeitos chegam em primeiro lugar às elites. Em muitos países, a luta contra o analfabetismo ainda nem foi vencida. Assim, só com a multiplicação dos analistas é que está surgindo a possibilidade do acesso dos pobres à análise. Nas principais capitais brasileiras existe algo que não havia há 30 anos, seja centro de saúde estadual, municipal, faculdades etc. O essencial da análise é a elaboração em cima da transfeQual a relação de Lacan com Freud? rência e isto pode ocorrer com ou sem divã, mesmo Lacan era um jovem analista quando Freud fa- que o divã favoreça a análise. Não podemos esquecer leceu. Um primeiro ponto comum que os encaminhou também o preço variado das sessões de análise em conpara a análise é que ambos eram histéricos. Sabemos de sultório, onde chegam pessoas com dinheiro e outras famosos desmaios de Freud. Lacan alude à sua própria mais sacrificadas, que pagam um preço acessível. histeria expressa na troca do feminino pelo masculino na frase “a senhora é reduzido”. E aprendemos sobre a “homossexuação” do desejo na histeria, que não é hoJacques Laberge nasceu na região de Montreal, Canadá. Comossexualidade. A típica neurose feminina é a histeria, meçou sua análise em 1965 em Porto Alegre. Após um período na Ecole seus conflitos sexuais sendo convertidos em dores e Freudienne de Paris, retorna ao Brasil, trabalhando como psicanalista no mal-estares físicos, sendo o nojo o sintoma típico. De Recife desde 1972. Participa atualmente da Intersecção Psicanalítica do fato, a típica neurose masculina é a neurose obsessiva Brasil, instituição que convocou a Reunião Lacanoamericana de Psicanána articulação da primazia do anal e da morte. lise e da Convergência.
não tem um correspondente do sonho. Destaca em Freud o sonho, o chiste, o lapso, o ato falho, as formações do inconsciente que surgem na sessão de análise. Muitas vezes, o analisando usa uma conversa enfadonha sobre seu dia-a-dia. Aí, o analista pode atravessar esta conversa com a pergunta: “Tem sonhado?” O recurso ao sonho surge como um corte no ron-ron das banalidades que pode ser também cortado por um lapso quando um analisando diz, em lugar de “machuquei minha mão”, “machuquei minha mãe”.
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F
reud, inserido no modo de pensar evolucionista predominante em todo século 19, não poderia deixar de se inspirar na grande obra do seu tempo que foi O Ramo de Ouro do erudito sir James George Frazer. Essa obra, clássica, é referida como um dos mais belos textos da Antropologia. N’O Ramo de Ouro, James Frazer nos mostra a unidade essencial do espírito humano através da multiplicidade de suas manifestações culturais. Esse autor, otimista como toda a intelectualidade européia do seu tempo, pretende nos mostrar uma progressão constante de formas rudes e sangrentas de conduta a formas cada vez mais evoluídas. E Darcy Ribeiro sintetiza bem esse período, ao se referir que as barbáries que estavam ocorrendo no submundo colonial não tinham repercussão ali na Europa imperial, eram tidas como coisas distantes que diziam respeito a gentes que não eram propriamente humanas, que estariam num estágio de evolução bastante atrasado. Mas a ferocidade nazista mudou o otimismo desse europeu, mostrando-lhe a ferocidade contida nele próprio. E aprendemos que o ser bruto não é uma característica do homem nos seus primórdios e ultrapassada, ou em seus dias finais, como queria Frazer e outros evolucionistas seus contemporâneos, que viam essas manifestações de rudeza como deslocadas do seu tempo, uma sobrevivência do tempo remoto. A ferocidade humana é uma ameaça permanente sobre qualquer sociedade. A obra de Frazer tem hoje o valor de uma grande criação literária. Sem valor científico, é equiparável às obras de ciência-ficção. Frazer sempre apresentou sua conjectura assinalando o seu alcance limitado e sua validade precária. Dentro de sua concepção de evolução, concebe a magia, a religião e a ciência como uma seqüência evolutiva em marcha. A magia seria uma forma primeva da ciência que, fracassando, teria dado lugar ao delírio da con-
Maria Teodora de Barros Oliveira
Totem e Tabu:
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AFP
duta religiosa. As concepções e as práticas fundadas na ciência viriam como solução final, pela evolução. Entretanto, não há aqui sucessão evolutiva. Sabemos que no passado e no presente a conduta mágica tem sido usada como guia para muitos, independente de ser um selvagem, um feiticeiro, ou um homem comum até mesmo envolvido com a ciência. Religião e magia coexistem desde sempre. Sabemos pelas referências de Freud que ele foi leitor de Frazer servindo-se dessa literatura para criar seu mito em Totem e Tabu. Porém, os textos de Freud tidos como textos antropológicos, entendidos assim por muitos, vemo-los como textos com suporte antropológico para falar não especificamente de um costume de um povo, de uma etnia, ou de mitos coletivos, mas de uma lei psíquica à qual a humanidade está submetida: a lei fundante da condição humana. A lei da proibição do incesto, que nos fez humanos, instituída pelo assassínio do pai, “ato” fundante do supereu freudiano ou do “complexo paterno”, que teve por função barrar a satisfação das primeiras pulsões incestuosas da criança. Mas o supereu não é o pai, é uma instância do sujeito. Freud aborda a gênese do supereu no mito do Totem e Tabu e explica como os filhos se submetem retrospectivamente às privações que antes impunham ao pai, já morto, com a ilusão de conservá-lo vivo. Vivo, cumpria sua função de preservar os filhos do “desamparo”, o que considera como o modelo original do trauma. O desamparo para ele é o temido detrás de toda manifestação da angústia de castração. Daí, recorrendo à etnografia, Freud aponta como ela revela a universalidade do horror ao incesto, variando, contudo, de acordo com a cultura tribal, a concepção de filiação e as regras de parentesco. O totemismo é o representante das instituições religiosas e sociais entre os aborígines australianos, povos tribais de tecnologia mais rudimentar, e que ordenava escrupulosa e rigorosamente as regras de uniões a propósito de evitar relações sexuais incestuosas.
derivações
Geoff Allan, do British Columbia Public Works Depatement, avalia o terreno do Museu de Antropologia da British Columbia University
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U D RO
P RE O ÇÃ
Judeus vítimas do Nazismo: “A ferocidade humana é uma ameaça permanente sobre qualquer sociedade”
Freud descreve nesta sua obra, editada em 1912, quando trata de Alguns Pontos de Concordância Entre a Vida Psíquica dos Selvagens e dos Neuróticos, ao referir-se à relação de um australiano com seu totem, que ela é base de todas as suas obrigações sociais, sobrepondo-se à sua filiação tribal e às suas relações consangüíneas. O jurista e antropólogo McLennan (1827 – 1881), representante do evolucionismo unilinear em sua forma mais pura e extrema, publicou uma série de trabalhos sobre o totemismo e a religião que influenciou muito a Frazer e Freud. McLennan realçou as inter-relações que existem entre as restrições matrimoniais e os sistemas de parentesco. Criou os neologismos exogamia e endogamia para explicar as possibilidades de casamentos dentro das tribos. Indicou que o objeto da exogamia é impedir o casamento entre membros do mesmo grupo, e que o nome familiar constitui a prova de pertença. Outro antropólogo, Lewis Morgan, fez posteriormente pesquisas de campo, e descreveu sobre sistemas de parentesco publicando Sistemas de Consangüinidade e Afinidade da Família Humana (1871), trabalho que foi visto como o começo dos estudos sobre a organização social baseada no parentesco. Freud cita-o, chegando daí a explanar sobre a característica do sistema totêmico que interessa aos psicanalistas, baseando seus argumentos na constatação de que em quase todos os lugares que encontrou totens encontrou também uma lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, conseqüentemente, contra o seu casamento. Viu, então, a exogamia como uma instituição relacionada com o totemismo, como já havia teorizado McLennan. Todavia, se essa especulação antropológica aguçou o espírito de Freud, ela não foi a sua preocupação de estudo. Ele a utilizou, observando nela o papel ocupado pelo totem como o do pai simbóli-
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co, que substitui o pai da horda primeva morto pelos seus filhos para ocupar seu lugar. Morto o pai da horda primeva, subsistiu o pai simbólico. Aí está o mito construído por Freud, soltandose da Antropologia, utilizando-a como metáfora para demonstrar o complexo das relações parentais, e como a situação/função designada e vivida pelos indivíduos neste complexo é um mito individual, independente do modelo de família, mas sim, da noção de filiação e parentesco: se numa sociedade ocidental ou tribal. O nome do totem ou o do pai vem a ter uma função, de manter viva a lei de interdição de determinadas mulheres, cujo desejo, em determinados neuróticos, pode se evidenciar pela escolha do objeto amoroso, conforme se refere Freud em Um Tipo Especial de Escolha de Objeto Feita Pelos Homens (1910); ou também pela impossibilidade de efetivarem uma relação sexual com uma determinada mulher, conforme Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor (1912). A essa constatação Freud aponta para a força da lei da proibição do incesto e ao deslizamento desse desejo para mulheres não proibidas, mas que representam imagens fantasmagóricas das proibidas. No primeiro texto referido, por exemplo, Freud aborda como algumas mulheres são objetos de amor desde que tenham como precondição a existência de “uma terceira pessoa prejudicada”; no caso, a terceira pessoa injuriada representaria o pai, seu rival, o vetor do pai Simbólico, pela via do Imaginário. Ou também no fato do amor à prostituta, citado por Freud. Sobre isso, ele observa que o pensamento consciente do adulto se apraz em considerar a mãe como uma pessoa de pureza moral inatacável, e que a descoberta das relações sexuais entre os adultos pela criança, sendo também aplicável a seus próprios pais, vem lhe suscitar desprezo e rebeldia, destruindo a autoridade dos adultos, pois lhe parece incompatível com a revelação de suas atividades sexuais, sendo muitas vezes essa aplicação rejeitada pela criança com relação aos seus próprios pais. Conhecendo posteriormente a existência de mulheres que praticam relações sexuais como meio de vida, ao aprender que pode ser iniciado por elas na vida sexual, consideraas com um misto de desejo e horror.
Voltando à Antropologia, recordo que LéviStrauss retoma o estudo da exogamia n’As Estruturas Elementares do Parentesco, onde, ao meu ver, depreende-se o sentido da função dos papéis ocupados nas diferentes fratrias e clãs na vida tribal: o da proibição de casamentos entre indivíduos das mesmas matrilinhagens, com suas regras de circulação de mulheres entre outras matrilinhagens, e levando consigo também seu sistema linguajeiro. Neste sistema, o seu código simbólico advém do seu significante totêmico, nome de um animal ou de uma planta, materialidade do inconsciente, que substitui um antepassado, o pai primevo (senão pela crença citada da transmigração da alma, pela expressão simbólica do pai morto materializada no totem), origem da interdição, possibilitador do simbólico. À equação freudiana selvagem = criança = neurótico, podemos ainda arriscar a acrescentar = adulto. Pois, sobre essa equação psíquica, se assim podemos dizer, Freud também se pronuncia diante das barbáries da guerra de 1914, não ficando alheio ao desapontamento do cidadão. Numa análise crítica, escreve em Reflexões Para os Tempos de Guerra e de Morte (1915): “Rigorosamente falando, este [desapontamento] não se justifica, pois consiste na destruição de uma ilusão. Acolhemos as ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindonos em troca gozar de satisfações.” A pesquisa psicanalítica já lhe revelara que “a essência mais profunda da natureza humana consiste em impulsos instintivos de natureza elementar, semelhantes em todos os homens e que visam à satisfação de certas necessidades primevas. [...] São impulsos primitivos que “passam por longo processo de desenvolvimento antes que se lhes permita tornarem-se ativos no adulto. São inibidos, dirigidos no sentido de outras finalidades e outros campos, mesclam-se, alteram seus objetos e revertem, até certo ponto, a seu possuidor. [...] A sociedade civilizada, que exige
boa conduta e não se preocupa com a base instintiva dessa conduta, conquistou assim a obediência de muitas pessoas que, para tanto, deixam de seguir suas próprias naturezas. Estimulada por esse êxito, a sociedade se permitiu o engano de tornar maximamente rigoroso o padrão moral, e assim forçou os seus membros a um alheamento ainda maior de sua disposição instintiva.” [Onde há citação da palavra instinto, leia-se pulsão, sendo esta a resultante da interferência da Cultura (característica do humano) no instinto (próprio do animal, do estado de natureza) É Lacan quem vai recolocar esse conceito tão fundamental ao corpo teórico da psicanálise, num retorno a Freud, esterilizando-o das adulterações que sofrera]. Dessa forma, Freud reconhece que a penosa desilusão pelo comportamento dos concidadãos do mundo durante a guerra foi injustificada. Foi fruto de uma ilusão a que se cedeu. “Os concidadãos não decaíram tanto porque nunca subiram tanto quanto haviam acreditado”. Ele analisa a mudança acarretada pela guerra em antigos compatriotas – advertindo para não se cometer uma injustiça contra eles – “pois o desenvolvimento psíquico tem uma peculiaridade não presente noutro processo de desenvolvimento”. Exemplifica: quando uma aldeia se transforma numa cidade, ou uma criança, num homem, a aldeia e a criança ficam perdidas na cidade e no homem: os antigos materiais ou formas foram RE PR abandonados e substituíOD UÇ ÃO dos por novos. Mas com o psíquico é diferente. Freud observa que nesse caso, cada etapa anterior de desen-
Sobre a desilusão que se abateu no mundo, diante da Segunda Guerra, Freud disse: “Os concidadãos não decaíram tanto porque nunca subiram tanto quanto haviam acreditado”
AFP
Um aborígine Walmajarri, da região de Kimberley, Noroeste da Austrália, realiza dança tradicional
volvimento persiste ao lado da etapa posterior dela derivada, e que a sucessão também envolve a coexistência, embora toda a série de transformações tenha sido aplicada aos mesmos materiais. O estado psíquico anterior, mesmo sem ser manifestado durante um tempo, poderá, em qualquer época, tornarse novamente a modalidade de expressão das forças psíquicas, e na realidade a única, como se todos os desenvolvimentos posteriores tivessem sido anulados ou desfeitos. “A psique primitiva é, no sentido mais pleno desse termo, imperecível”, diz Freud (grifo meu). Infiro desses dizeres que Freud fez uma leitura do psíquico com uma referência do que viria posteriormente a ser elaborado e chamado de estrutura e, nesse caso, a estrutura psíquica aparenta-me como sendo imutável, embora toda estrutura seja dinâmica. De acordo com o conceito straussiano, estrutura é um modelo inconsciente de análise, invisível, perceptível a quem estiver fora dela. E qualquer mudança num dos seus elementos significará sua mudança. Entretanto, mesmo se referindo ao conceito de desenvolvimento, como todo evolucionista, Freud apreendeu que o psíquico é imperecível, “O seu desenvolvimento é diferente”, ou seja, não se desenvolve no sentido de mudança, de evolução. E, dessa forma, não se desenvolvendo num processo evolutivo, não passando por transformações que anulariam um estágio anterior, sua forma 88 Continente Multicultural
primária, como acontece no exemplo citado da aldeia que se transforma em cidade e muda sua estrutura. Portanto, sem mudança estrutural no psíquico. Freud também observa que o psíquico controla certas atitudes por ação de dois fatores, um interno e outro externo. O interno consiste na influência exercida sobre as ações pulsionais egoístas pela necessidade humana de amor, tomada em seu sentido mais amplo. O fator externo é a força exercida pela educação, representante das reivindicações do nosso ambiente cultural. Esses fatores fazendo a civilização, permitindo a vida comum pelo domínio dos “maus instintos”, presentes já na tenra infância. “A civilização foi alcançada através da renúncia à satisfação instintiva, exigindo ela, por sua vez, a mesma renúncia de cada recém-chegado.” Podemos pensar que decorrem daí a maior ou menor eficácia ou inscrição simbólica do Totem ou Nome-do-Pai, e o mal estar na civilização. Para saber mais:
FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Versão em português, resumida e ilustrada. Edição do texto: Mary Douglas. Editora Guanabara S. A., Rio de Janeiro, 1982. FREUD, S. Obras Completas de S. Freud. Ed. Standard Brasileira. Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro. Maria Teodora de Barros Oliveira é psicanalista
Lourival Holanda
tura, dar sinal desta outra coisa mais funda. O modo operatório aqui é um sistema de travamento, seja na desautomatização, seja na renovação dos extratos já existentes. O modo literário estabelece uma cartografia de regiões impensadas, dentro de nós, e que só na cifragem poética podem ser invocadas. Trata-se portanto de uma transcodificação do que nos escapa. As prisões que estão refincadas no vago, na gente (p. 240). O escritor, com antenas atentas, capta e cripta o encoberto e o esquecido. Que, no entanto, subjazem no impensado da língua. Há, portanto, na estruturação do discurso poético, uma reversão da sintaxe lógico-discursiva que pede um outro modo de abordagem. A prática analítica ou a crítica literária trabalham, ambas, enquanto decodificadores semióticos. Partem do signo como objeto e buscam o objeto de sua ocultação: o subdiscurso ativo. Aqui, creio, se inscreve o simbólico que tenta ajustar o real ao imaginário. É esse o espaço, suponho, de nosso encontro. Poetas e ro-
ZENIVAL
O Encoberto e o Esquecido
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alvez fosse mais prudente começar pelo fim: tendo todo um percurso em comum, Psicanálise e Literatura têm finalidades diversas: a operação analítica persegue um propósito fármaco, para dizer com Platão (terapêutico, diríamos), a que a Literatura nem sempre sabe responder. A mais densa Literatura, depurada de seu aspecto decorativo, redutor, da estética parnasiana, tenta, através do simbólico, uma apreensão concentrada – como ocorre com Clarice Lispector ou Guimarães Rosa, por exemplo – do que está para além da palavra. Seu sentido está ali, latente, além da sintaxe. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso; quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 15ª ed., 1982, p. 152). A grande Literatura condensa significações e sentidos no modo incomum – o poético. E o poético, como o simbólico, diz sempre uma “palavra oblíqua”. O analista buscará o saber desconhecido ali cifrado, a verdade do inconsciente que faz sua aparição através do significante. O crítico literário vai extasiar-se com essa feitiçaria evocatória do verbo, que alarga as possibilidades de dizer-se de uma cultura e desdobra as dimensões do homem: o que talvez defina a Literatura. O discurso literário tenta dizer um certo real, falha sempre ao dizê-lo, e finda dizendo outra coisa (Leyla Perrone-Moisés). Interessa, especialmente, em Litera-
mancistas são para nós aliados preciosos, e seu testemunho deve ser altamente valorizado porque conhecem entre céu e terra muita coisa que nossa sabedoria escolar nem poderia sonhar, é Freud, falando da Gradiva, de Jensen. Guimarães Rosa é um paradigma do fazer literário: se ele possibilita uma percepção específica, é porque sua linguagem singulariza a forma, obscurece os objetos, e tudo resulta num efeito de estranhamento e imprevisibilidade que faz sua força. Assim, combate a tendência entrópica, de desgaste da palavra, reduz a redundância e desautomatiza a percepção. Como o inconsciente não se situa em lugar nenhum, pode aflorar aqui, em qualquer lugar, nos módulos de desordem organizada do texto roseano que permitem combinações e associações imprevistas. Sabe-se que ele privilegia os significantes, porque o inconsciente quase sempre cifra-se aí, para deixar dizer o que não tem expressão – sendo senão aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que não se pode descer. Os labirintos da memória A intensa odisséia interna do Riobaldo envelhecido já não é tanto recordar o fato passado: é buscar seu sentido. Queria que se achasse com ele o quem das coisas. No seu apego doentio ao passado, o neurótico cria um monumento – esse peso o prende, sempre: daí o sintoma. Para trás, não há paz (p. 35). A escrita literária é um modo de busca, de exploração, de interrogação. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clarêia razão de paz (p. 10). O trabalho poético também consiste em levantar um monumento à memória (recor/dar: dar de novo ao coração). No entanto, pela linguagem o poeta opera ali uma superação dos impasses do imaginário, através da “forma” – que então permite partir de uma experiência singular, para uma abertura de sentidos, o que caracteriza a linguagem poética. Aqui o analista diria: o texto é materialização do corpo na linguagem. O poeta diz: aqui a carne se faz verbo. Arrancar da memória, dos hiatos nas recordações, a carga de acontecimentos semelhando ser insignificantes e contendo, no entanto, fortes afetos inexplicáveis. O tempo vai des-membrando a unidade que supúnhamos tivesse nossa vida. O processo poético quer re-membrar – apreender um sentido unificador que liberte, em nós, os “nós” de que so90 Continente Multicultural
Em momento agudo, Nietzsche traduzia assim o inconsciente: “Minha memória diz que fiz isso; meu orgulho diz que não; a memória cede” mos constituídos. Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido (Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 1962, p. 51). O processo analítico vai chamar neurose a essa repetição a-histórica; e cura, a essa educação progressiva para superar (ou substituir) a infância. Já aqui tocamos parte do mistério poético: importa saber agora, não tanto o que se diz, mas por que se diz. De qual pressão interna é o texto ali ex-pressão? De onde vem a vontade de dizer, de palavrar que faz o escritor? O que ele carrega ou fabrica, e, através da linguagem, dá à luz? Reconstruir os labirintos da memória porque só se perdendo aí é que ele se acha: o frágil fio do sentido com que atamos o absurdo do mundo. Porque o amor imanta, ordena, amansa o mau mistério do mundo. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura (p. 236). Sem ele, o mundo queda um desconexo conjunto de coisas.
ZENIVAL
Como o inconsciente não se situa em lugar nenhum, pode aflorar aqui, em qualquer lugar, nos, módulos de desordem organizada do texto roseano Na expressão de Drummond: essa coleção de objetos de não amor, que é o mundo, em dado momento. A prática analítica, aqui ainda, vai de par com a literária: busca ver o que a plasmação semântica vela/desvela do sentido secreto, o real que a cada qual move e manda. Em todo texto há traço desse sentido, em suas sobrecargas verbais. Por isso, num primeiro momento, todo grande texto surpreende e desnorteia. O que não tem sentido, num primeiro momento; mas que faz sentido, dado naquela forma. Re-memorar/Co-memorar – Re-cordar: dar, de novo, ao coração. Em inúmeros momentos o narrador diz estar recosturando as memórias, porque a vida é cheia de passagens emendadas. Em muito, lembra a anagnórisis de que fala Aristóteles: um reconhecimento que nasce do aclaramento, de uma repetição. E que origina a reconciliação, porque a culpa se vê absorvida/absolvida pelo andamento das circunstâncias – agora iluminadas. O projeto do
narrador se assemelha aqui, em muito, com o proceder analítico em final de análise, suponho, em que não se sai feliz da vida, todos os problemas resolvidos, depois do analista pago; mas, feliz na vida que é a real, cheia de insoluções. A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero (p. 169). Porque é preciso, mesmo se a felicidade não estiver, acolher a alegria. É essa esperança, pacificadora, que se persegue: conviver com essas demasias do coração. O narrador quer uma negociação entre a rudeza do real e o ilimitado do imaginário. Porque a gente guardasse cada um consigo sua tenção de bem-querer, com esquivança de querer pensar, do que a consciência escuta e se espanta; e também em razão de que a gente mesmo deixava de escogitar e conhecer o vulto daquele afeto, com seu poder e seus segredos (p. 282). Em momento agudo Nietzsche traduzia assim o inconsciente: minha memória diz que fiz isso; meu orgulho diz que não; a memória cede. O fato vale pela percussão singular, ou não, em cada um. O modo do “contar salteado” de Grande Sertão: Veredas, e em como a vida é cheia de passagens emendadas (p. 168), trabalhar a memória involuntária – e que para o analista dá ensejo ao inconsciente – faz a força do texto. Riobaldo busca encadear os traços do vivido. Mas sabe sua dificuldade: A qualquer narração dessas depõe em falso, porque o extenso de todo sofrido se escapole da memória (p. 304). Tal restituição é a instituição de alguma inteligibilidade para a complexidade da vida. Na mera “lembrança” muita coisa de essencial escapa. O narrador parece oferecer a Freud as palavras a sua reelaboração do mecanismo psíquico como algo não estático, mas dinâmico. Em outro momento, Guimarães Rosa, num surpreendente lance de lince freudiano afirma: Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. Freud dizia que os traços mnemônicos são remanejados, segundo as circunstâncias. Há, de fato, uma historicidade da interpretação. O narrador não ignora isso. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares (p. 142). Lourival Holanda é professor do programa de pós-graduação em Letras da UFPE. Publicou os livros Sob o Signo do Silêncio (Edusp, 92) e Fato e Fábula (Eduam, 99)
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ENTREMEZ
Guimarães Rosa e o amor entre dois homens O vínculo entre dois machos, amado e amante, era preconizado e dava força à nobreza e ao Estado grego
H
á uma nota do editor da Livraria José Olympio, no final do Grande Sertão: Veredas, pedindo aos leitores e críticos para não revelarem a seqüência do enredo do romance. Se levarmos o pedido a sério, ficamos privados de qualquer comentário sobre o livro. Como a Rede Globo já mostrou para todo o Brasil, com o consentimento da filha do autor, a identidade oculta de Diadorim, peço licença para também falar livremente sobre esse segredo, num artigo que será lido por poucos. Guimarães Rosa me perdoará. O Grande Sertão se constrói na épica disputa entre o bando de Joca Ramiro, representante do bem, e o bando de Hermógenes, indisfarçada representação do mal. Deus e o Diabo se enfrentam nos vastos sertões gerais. Diadorim, que em menino já cruzara com Riobaldo na travessia de um rio, é filho do mítico Joca Ramiro, que mesmo morto continua a nortear o grupo e a clamar por vingança. Riobaldo e Diadorim se encontram como pares no meio das andanças e lutas dos jagunços. A arete que os diferencia faz que se reconheçam e que se amem. Parece que estamos diante do amor clássico entre homens, de que temos exemplos na história e na literatura grega, romana e até na Bíblia. Lembramos Aquiles e Pátroclo, Alexandre e Hefahistíon, Davi e Jônatas, Guilgamech e Enkidu, Niso e Euríalo. Alguém mais afoito arriscaria chamar o vínculo dos dois machos de erastés e erómenos, amado e amante, modelo grego de relação entre um homem mais velho e um jovem. Mas no romance de Guimarães
Ronaldo Correia de Brito 92 Continente Multicultural
Rosa, Diadorim é um donzel de corpo resguardado, duro sério, defendendo reserva e pudor na ponta do punhal. Seu forte apego ao amigo recusa manifestações físicas. Já Riobaldo não consegue negar a atração pelo companheiro, procurando a morte para livrar-se desse tormento. “Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era firme exato. Só o que a gente pode pensar em pé – isso é que vale. Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava com o Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu tinha inventado... Daí, voltei, para o rancho, devagar, passos que dava. ‘Se é o que é’ – eu pensei – ‘eu estou meio perdido...’ Acertei minha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar comigo! – com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo.” Para um nobre grego do período heróico, a descoberta do desejo por um rapaz mais jovem não desencadeava essas fúrias. Em algumas cidades, o Estado preconizava esse amor. O amado se espelhava no amante, que buscava ser o mais nobre dos homens, servindo de modelo ao amado. Em troca, o amado oferecia ao amante a sua graça, o seu corpo. Essa relação formalizada e ritual dava força à nobreza e ao Estado. Fica evidente que o modelo de amor entre machos, da Grécia, não serviu à elaboração do romance de Guimarães Rosa. Falamos da obstinada reserva de Diadorim, e, embora nunca negado, o amor de Riobaldo só se confessa em voz alta, após o último combate com o Hermógenes, quando Diadorim já está morto. Para espanto do leitor, o rapaz viril e casto, homem pronunciado até as últimas
páginas do romance, é revelado mulher. “Que trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos muito verdes... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto... Diadorim – nu de todo... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci.” A transformação do corpo masculino de Diadorim em corpo de mulher, assegurando-lhe alma e psique feminina, parece a busca de legalidade para o amor de Riobaldo. Estarreço! É como se Homero transformasse Pátroclo em mulher, no momento em que seu cadáver arde na pira funerária, para justificar o amor de Aquiles. Davi chora Jônatas na morte deste: “Tu eras toda minha delícia; teu amor era para mim mais precioso que o amor das mulheres”. Guilgamech pranteia Enkidu: “Choro por Enkidu, meu amigo, amargamente me lamentando como mulher enlutada”. Niso, no livro IX da Eneida, escolhe ser morto abraçado a Euríalo. Atravessamos as veredas do grande sertão na companhia de dois jagunços. Um deles é o feminino encoberto. Não sei se Guimarães Rosa alguma vez experimentou os sentimentos dos seus dois personagens. Não me interesso por biografias. Dizem que ele inspirou-se no Romance da Donzela Guerreira, a moça que se veste de homem e vai combater na guerra, no lugar do pai ancião. Se o fez, porque não revelou a verdadeira identidade de Diadorim desde o início da narrativa, deixando-nos acreditar até o final que são dois homens que se amam? Argumentam que Riobaldo ama a polaridade feminina oculta no masculino. É possível. Mas um romancista tão agudo e delicado como Guimarães Rosa não precisaria transformar a anatomia de um corpo para nos convencer das sutilezas do sentir humano. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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HUMOR
Ral
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ÚLTIMAS PALAVRAS
Saindo de órbita
D
e repente, fico a divagar pelo inimaginável como, por exemplo, se eu fosse o homem mais rico do mundo. Extasiantes pensamentos deste tipo ocorrem, freqüentemente, em mim, o mais irrequieto, o mais compilador de ousadia e frenético de todos os espíritos povoadores da terra. Seria eu, na minha incandescente melancolia, um homem estrondosamente poderoso, mas não pensem os leitores que me insinuaria pelos caminhos inescrupulosos das conquistas empresariais, esnobando dinheiro em artimanhas soçaites ou me aventurando no mundo dos negócios internacionais. Não viveria cercado das mais belas estrelas de Bervely Hills em cruzeiros marítimos, nem dando festas às margens do Lago Magiori, sequer imergindo em fanfarronices monárquicas de Mônaco ou Brunei. Las Vegas jamais faria parte do meu itinerário. De jeito ou maneira entraria na fila de futuros viajantes à Marte, como fazem os milionários norteamericanos. Mas a Ilha de Saint Michel, mesmo já tendo sido pleiteada pelo meu primo Glauco de Carvalho na década de 60 (hoje na Gazeta Mercantil), contrariando Axel Munthe, se vivo fosse, seria minha a todo custo. Transformaria aquela abadia num palácio de contemplação à história e aos deleites pessoais. Espelharia seu lago circundante e o encheria de peixes das mais variadas espécies. Os seus jardins seriam reverenciados por bromélias e bogarís, cantados e encantados por canários e sabiás importados, onde, com minha família, passaria o verão au le sol devient plus ferme, consubstanciando-me das espetaculares noites enluaradas na penumbra do cálido amor ao lado da minha amada.
A música de John Williams, como no cinema, dominaria todos os ambientes, fetichista e atenta, intensificando as emoções; Schubert faria um belíssimo back-ground nos momentos em que recrudescesse da minha neurose de poder; no seu paroxismo, De Honras Coroado, de Ketelbey, entraria solene, e Vivaldi me sinalizaria as intempéries da natureza, atenuando possíveis depressões. Seria eternamente jovem, sem adolescentes rompantes de idiotas fantasias, e acolheria Chopin com o seu toque lírico para meu tempo dedicado à companhia dos livros e amigos. E nada mais. Por certo não me preocuparia com o inferno financeiro global oriundo das Bolsas da Argentina e de outros bichos. Ater-me-ia sim, apenas aos acontecimentos culturais europeus combinando com rigorosas escolhas teatrais da Broadway e as prazerosas noitadas do Rainbowroom nova-iorquino. Discutiria Eça com Saramago, as Eras com Hobsbawm e o Poder com Bobbio. Assim colheria mais ensinamentos para melhor escrever minhas crônicas, saudades e conceitos, perpetuando histórias. Para abrandar o meu complexo de inferioridade, nada mais agradável do que ter Jacques Chirac como mordomo e a rainha Elizabeth camareira; Putin como cozinheiro; Bill Gates como consultor de negócios; Schumacker seria meu motorista particular; Bush como chefe da segurança e Saddam Hussein como vizinho muito ranzinza e falador para ter com quem discutir nas horas de tédio. Aí, eis que acordo com a zoada de um maracatu próximo da minha casa. Ainda convalescente, deparo-me com a impenetrável realidade do triste apanágio da pobreza descalça do meu país, convencido de que um sonho dificilmente deixa de ser um sonho.
Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural