CONTEÚDO
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A Bahia de Jorge, vista por seu tradutor espanhol, e a origem de Quincas Berro D’Água
Século 21 –
Mecenato
Falência do Estado e leis de incentivo podem consolidar mecenato brasileiro, mas há obstáculos
Poesia –
Manoel de Barros
Poesia –
José Régio
Poeta reafirma a insignificância, fala do encontro com Guimarães Rosa e mostra poema inédito
Uma análise da obra do poeta português no seu centenário e pôster com o poema Cântico Negro
Antologia –
Sérgio de Castro Pinto
Poeta paraibano canta o cotidiano em versos curtos permeados de uma lírica ironia
Conto –
Moacyr Scliar
História inédita do escritor gaúcho tem como tema central um avô nostálgico da censura
Sabores pernambucanos – Sal Cheio de simbolismos, o sal pode significar mau agouro ou amizade
Mil palavras –
A Ilha e o Sol
Ensaio fotográfico de Bruno Costa enfoca aspectos da ilha de Fernando de Noronha
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Lição de Arte –
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Samico
Gravador pernambucano conta como se envolveu com a gravura e desenvolveu seu estilo
Marco Zero –
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Museus –
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Guggenheim no Brasil
O possível Guggenheim brasileiro gera polêmica e abre debate sobre o conceito atual de museus
Diário de uma víbora –
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Conversa franca –
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Milagre do Padrinho
O discurso regionalista do Padre Cícero como solução atual para o Nordeste na globalização
História –
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Trauma nacional
Historiador holandês diz que a ocupação do Brasil pelos Países Baixos foi desastrosa
Humor
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Cartum de Sávio
Últimas palavras –
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Jacinto de Thormes
O criador da coluna social moderna no Brasil fala da Rainha Elizabeth e emergentes
Entremez –
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Almanaque
Reflexões sobre a morte, a tristeza, o terror e um gordo tocando cavaquinho
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Cultura de resultados
A lógica do espetáculo faz o Estado investir cada vez menos em políticas culturais permanentes
BRUNO COSTA
Especial – Jorge Amado
Capa: Jorge Amado nas escadarias da igreja de Nosso Senhor dos Passos, Salvador, onde foi filmado O Pagador de Promessas. Foto: Xando Pereira
Fartura cultural
Por que as empresas estatais e privadas devem conhecer a Lei Rouanet
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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira
Renovação e democracia Amigos, que bom! Vivo insistindo com esses companheiros panelados aqui do Sul-maravilha que a renovação sempre vem das margens. Pois não é que vem Continente Multicultural e comprova o meu blá blá blá? Das margens do Capibaribe, aparece este primor de revista, prazer e informação, não necessariamente nessa desordem. Qualidade na vontade clara de democratizar conhecimento, sem necessidade de auto-afirmação, emulação de Nova York, ou humilhação do leitor. Vida longa para o continente cultural! Contem comigo! Pedro Bial – Rio de Janeiro – RJ
Arte Luiz Arrais Editoração Eletrônica André Fellows Ilustrador Lin e Zenival Colaboradores:
Alberto da Cunha Melo, Basílio Losada, Bruno Costa, Carybé, Cláudia Nina, Cristiano Santiago Ramos, Daniel Moreno, David Heald, Eu Garcia, Fernando Quevedo, Flávio Lamenha, Geneton Moraes Neto, Geyson Magno, Hugo Phiulpott, Joel Silveira, Jonas Cunha, Luiz Carlos Monteiro, Luiz Santos, Marcelino Freire, Marcio Doctors, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Marcos Galindo, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mascaro, Milton Michida, Moacir dos Anjos, Moacyr Amâncio, Moacyr Scliar, Patrick Kovarick, Paulo Liebert, Rivaldo Paiva, Roberto Rômulo, Ronaldo Correia de Brito, Sávio, Sebastião Moreira, Txema Fernandez, Xando Pereira, Zuleide Duarte
Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE CEP 50100-140 Circulação e assinaturas Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 - fone/fax: (81) 3222.4130 e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Caixa Econômica Federal Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
2 Continente Multicultural
Autoria de jingle A edição de junho de Continente trouxe uma bela novidade: CD com faixas históricas de Luiz Gonzaga. Fui amigo de Lua e o CD me emocionou muito. Principalmente porque acompanhei aquela gravação do jingle Seringueiro, meu irmão, no Nossoestúdio, em 1978. A música em questão é de Walter Santos, com letra de Tereza Sousa. Walter é baiano de Juazeiro e amigo de infância de João Gilberto, com quem viajou para o Rio, nos anos 60. Tereza é carioca. Os dois são autores de uma bossa-nova gravadíssima, Amanhã, e de obras primas como Samba pro Pedrinho (O Pedrinho é de matar). São também pais de Luciana Sousa, que gravou no ano passado um CD com poemas de Elizabeth Bishop. O New York Times o relacionou entre os dez melhores do ano em jazz/pop. José Nêumanne Pinto – São Paulo – SP Nossa Senhora Na página 58 (Sabores pernambucanos) da edição nº 6, há um erro que faz diferença para os cristãos: não foi Isabel quem acendeu a fogueira, mas Maria, para avisar a José do nascimento de João. Juliana G. das Oliveiras – Recife – PE A colunista Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti responde: “Os entendidos em teologia que consultei dizem que só há, no caso, tradição
oral. Sem nenhuma fundamentação bíblica, portanto. Pensando bem considero a versão da leitora bem mais interessante que a do texto. Obrigada. E continue a ler Continente”. Sebastianismo É impressionante como o episódio de Alcácer-Quibir, ocorrido em 14 de agosto de 1578, motivado por insensata idéia da difusão do Catolicismo, pela espada, além de Gibraltar, ainda gera, durante tantos séculos, insanas e místicas especulações, inspirando episódios de incompreensível barbárie e, também, tantas obras do nosso cancioneiro e do nosso teatro, a exemplo das do mestre Ariano Suassuna. Parabéns pela excelência da publicação. Ricardo Fiúza – Brasília – DF Identidade Sou recifense e perdi minhas dúvidas daquela cidade com os longos anos de Fortaleza e, agora há pouco, de Salvador. É aquela (Recife) – ainda – minha cidade, porque somos das cidades cujos nomes das ruas ainda nos dizem alguma coisa a mais que o roteiro pra táxi. Pertencemos às cidades em que moramos assim como somos dos livros que lemos. As veredas são as mesmas, ou melhor, os canais. Sabemos desfrutar os sons dos bairros (ao pensar no Espinheiro, por exemplo, não vem sofrimento na minha cabeça, como poderia se esperar no desaviso); sabemos também que as coisas precisam de reparos, e a Ilha do Maruim se diz a qualquer viajante. Resolvi que deveria com urgência assinar a revista. Pela qualidade gráfica, pela qualidade dos textos, das entrevistas, das imagens e também por notar uma certa preocupação com identidade que permeia todos os números. Parece que há uma pergunta sobre quem somos nós vinda das diversas matrizes, indígena, ibérica, negra e, mais perto de nós, a (própria) brasileira. Algo muito importante da revista é não ter caído numa patriotada, algo do tipo vejam-como-somos-inteligentes-e-bonitos-aqui-no-Pernambuco. Ela escapou dessa armadilha provinciana sem por conta disso deixar de falar sobre nossa terra, nossa gente. Brennand na capa, entrevista com o Subirats e ainda a Heloísa Buarque de Hollanda! O nº 06 foi a melhor revista de todas, ainda mais, turbinada com o CD do Luiz Gonzaga, cuja faixa Minha Fulô eu há muito estava querendo re-escutar além da minha gravação da Comadre Florzinha. Pois sim, ia esquecendo: não gosto do nome Continente Multicultural, acho que foi mal escolhido, muito grande, meio exagerado, pesadão. Por que não Marco Zero? Por que não Continente (apenas)? Ou outro? Acho falho existir várias entrevistas num mesmo número (aquela revista do Niemeyer na capa, eu creio, tinha bem umas seis entrevistas); a capa do Cacá Diegues não foi boa. Bom, mas são pequenas adiposidades a serem relevadas da melhor revista do Brasil hoje. Ricardo Rigaud Salmito – Salvador – BA Poesia Oportuna fonte para intensificar alguns debates no meio acadêmico... essa revista está mesmo de parabéns. Com relação ao “embate” Letra X Poesia, nº 7, julho/01 – ao tempo em que me desculpo pela intromissão, indevida, talvez –, permito-me lembrar que é um “duelo” já (quase!) posto à margem das discussões
a respeito da artisticidade de certos “objetos” culturais. A leitura interpretativa, agora, indaga, sim, da poeticidade ou não do texto – e o conceito de texto que se invoca é o semiótico, que é mais amplo que o meramente lingüístico. Já o conceito de poesia, há, na tradição dos estudos da arte, uma rica discussão teórica. Independente de “arengas” por decidir se se trata de poema, de letra de música, de popular, de erudito... “correr-se-á atrás” do instante poético, procurar-se-á “cercar” o momento de poesia para nele “mergulhar” em devaneios, afetivos e reflexivos. Felicitações ao Marco Polo. Seu breve comentário é esclarecedor e, praticamente, definitivo. (Apenas acrescento que a idéia de Paul Valéry – poema = máquina de emocionar –, a que você recorre no seu breve ensaio, diz respeito a envolvimento afetivo + intelectivo. O envolvimento com um texto de Chico é incompleto se é, apenas, emotivo...) Interessa mesmo é saber se aquilo que um determinado “sujeito” faz, em termos culturais, é poético ou não. O material e os meios – palavras, versos, pigmentos, sons etc. – constituem o nível da expressão. O nível das significações é “mais dentro”, “cobra” um mergulho mais profundo... Se o “cara”, recorrendo com propriedade a esse material e a esses meios, transforma as experiências significativas que observa no seu entorno em instantes de humanidades, ele é poeta, “faz” (poeta, palavra de origem grega = aquele que faz) linguagem artística – como Fernando Pessoa, Charles Chaplin, Glauber Rocha, Edvar Munch etc.; como faz, diga-se com absoluta propriedade, Chico Buarque. Janilto Andrade – Recife – PE
Tradução Quero parabenizar este excelente veículo de cultura, pela forma intensa e abrangente de seus artigos. Li a revista num só fôlego. Quero ressaltar, entre outros artigos, a bela entrevista com o tradutor mineiro Ivo Barroso, onde ele nos deu verdadeiros toques de tradução. Que Continente tenha muitas edições. Eric Ponty – São João Del-Rei – MG Coluna Prestes Gostaria de ver abordada na revista a figura de João Alberto Lins de Barros, pernambucano, “tenente” revolucionário nos anos 20 e 30, comandante da Coluna Prestes, interventor em São Paulo, inimigo de Assis Chateaubriand e que foi uma espécie de mecenas, a partir do poder que teve no Estado. Abel Santos Gonçalves – Brasília – DF Continente Multicultural 3
AnĂşncio
4 Continente Multicultural
S
e um fauno existisse e gostasse de escrever se chamaria Jorge Amado. Reinventaria as palavras como somente sabem as fêmeas, fazendo-as brotar do seu corpo. Nasceria a literatura liberta dos meneios de civilização. Teria como um quê de selvagem, arrebatadora e lírica. Como a vida. A metáfora do verbo se fazendo carne, no seu caso, deveria ser, de imediato, invertida: a carne é que se fez verbo. A língua brasileira. A idéia corrente do Brasil como a personificação da exuberância deve muito aos livros de Jorge Amado, que na Europa sempre definiram o país e receberam boa acolhida, a começar da resenha consagradora de Albert Camus, na França, a sua segunda casa. Durante toda a segunda metade do século vinte, ele foi o escritor brasileiro por definição. O que melhor viu o seu povo. Como será o Brasil? Perguntou Manuel Bandeira, num poema, e respondeu: Mário de Andrade. Como será a Bahia? O Brasil de Jorge Amado. Foi essa intimidade plena que flagrou o seu tradutor espanhol Basílio Losada, amigo de toda a vida. No seu artigo, que publicamos em primeira mão no Brasil, ele o homenageia vivo. A ele e à Bahia, que pulsa em cada uma de suas palavras. Quando o El País sentiu que a “indesejada das gentes” se aproximava de Amado, pediu a Basílio um artigo, em vinte minutos. Mas ela, que não gosta de relógios, adiou a vinda. Enquanto isso, já circulava um outro, na revista Altaïr, ele cheio de vida. Quando Jorge Amado morreu, a edição de agosto de Continente já estava impressa. Mas Pernambuco não poderia deixar também de louvá-lo a ele que tanto amou a terra dos altos coqueiros. Agora, que já reencontrou Carlos Pena, Paulo Cavalcanti, Quincas Berro D’Água, que há muito não via, repetiremos sobre ele o que uma vez escreveu sobre o seu outro amigo pernambucano Gilberto Freyre: “Nenhuma criação do seu povo lhe é indiferente, estrangeira à sua obra, distante de seu coração”. Continente Multicultural 5
EDITORIAL
LUIZ SANTOS
Oropa, França e Bahia
ESPECIAL
de Jorge Am
mado
LUIZ SANTOS
Um caso único de identificação entre um escritor e um lugar, numa singular trama de afinidades
T
eríamos que cascavilhar muito na memória para encontrar um caso semelhante de identificação profunda entre um artista e seu entorno. Talvez apenas na Grécia homérica tenha ocorrido fenômeno semelhante. A Bahia e Jorge Amado, o escritor e seu mundo, numa singular trama de afinidades. Sobre a cidade e sua gente, sobretudo sua gente, construiu Jorge Amado uma obra titânica, composta de centenas de títulos, com romances traduzidos para cinqüenta línguas. A Bahia encontrou nele seu intérprete mais fiel, um escritor capaz de construir a imagem da cidade e de seus habitantes e oferecê-la ao mundo, mítica e real. Assim nasceram personagens como Dona Flor, com o problema de seus dois maridos; o capitão Vasco Moscoso, marinheiro de rumos incertos e imaginados; os Capitães da Areia, bandos de meninos que vivem sua liberdade nas praias sem fim ganhando a vida. Todo um mundo – negros, hindus, libaneses, velhos colonos, fazendeiros de café, emigrantes chegados de Portugal ou da Galícia, alemães ou escandinavos que passaram um dia pela Bahia e que não saíram dela jamais. Isso que alguns poderiam chamar de “cor local” tem emocionado leitores de todo o mundo e permanece vivo na Bahia de hoje, e os identificamos, descobrimos seu perfil em qualquer um que passa, e gozamos com sua graça e sua melancolia.
Basílio Losada Continente Multicultural 7
LUIZ SANTOS
Todos os santos Neste país absurdo e maravilhoso, surrealista antes mesmo de inventarem o termo, um rincão do mundo em que a loucura ou a lucidez cotidiana se constrói sobre ecos de culturas submersas pela história, neste país em que convivem próximas todas as culturas que viveu a humanidade, desde o Neolítico à tecnologia de ponta, ler Jorge Amado é um exercício apaixonante. Mas falar da Bahia leva, de ínicio, a uma questão de nomes: como se chama realmente esta cidade? A Bahia foi descoberta em 1º de novembro de 1500 e, atendendo à festividade do dia, foi batizada com o nome de Bahia de Todos os Santos. Em 1530 se estabeleceram na orla marítima alguns colonos portugueses e fundaram a cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, nome barroco e deslumbrante que forçosamente teria que ser encurtado em nos8 Continente Multicultural
sos tempos. Hoje, a cidade tem quase três milhões de habitantes e se chama Salvador. Contudo, Jorge Amado prefere o nome de Bahia, porque com este nome a conhece, fora dos expedientes administrativos, quem vive nela, sobretudo os humildes, os descendentes de escravos, os caboclos mestiços de diversos sangues chegados do interior e os emigrantes pobres. A burguesia continua preferindo o nome oficial, inclusive o de São Salvador, povoado de indulgências. A cidade teve uma história acidentada. Resistiu aos ataques dos holandeses, no século 17, obstinados a se instalar no litoral. Foi a primeira capital do Brasil até que, no ano de 1763, a capital foi transferida para o Rio de Janeiro. Os séculos 17 e 18 marcaram um tempo de prosperidade que se traduziu na construção de um interminável conjunto de igrejas barrocas único na América. Dizem que há 365 templos, um para cada dia do ano. Os engenhos de açúcar e os cafezais criaram uma classe próspera e ostentosa de “coronéis” – proprietários agrícolas – que aparecem com freqüência nos romances de Jorge Amado e em sua autobiografia, Navegação de Cabotagem.
Das fazendas ao turismo Os coronéis baseavam a sua riqueza na escravatura, e rivalizavam em ostentação e brutalidade. Os sobrados da cidade alta, meio arruinados, mas hoje em processo de recuperação, eram as moradas desses fazendeiros. A partir de 1860, após um lento e contraditório processo, foi abolida a escravidão e se acelerou a decadência da Bahia. A partir LUIZ SANTOS
Dizem que todo grande escritor deve ter um mundo próprio e uma linguagem própria para expressá-lo. Penso em Faulkner, em Rulfo, e também em Jorge Amado. Há alguns anos, após prisões, aventuras, perseguições políticas e exílios diversos, e depois da queima pública de seus livros em uma fogueira no Pelourinho, regressou Jorge Amado à Bahia, peregrino do mundo em busca de sua meta e de sua origem. Na Bahia, Jorge Amado é um símbolo, é “o Poeta”, apesar de sua obra não haver sido marcada pela publicação de poemas. Mas toda a sua narrativa é um imenso poema de amor à cidade e às pessoas que a habitam. Basta perguntar pelo “Poeta” que alguém é logo levado até à Fundação Jorge Amado, no Pelourinho, cenário de tantos de seus romances. Contam de histórias fabulosas ou reais, de quando foi perseguido, desde quando de sua cadeira parlamentar defendeu a presença viva de uma cidade revolucionária. O povo da Bahia está construindo a imagem mítica de Jorge Amado, tal como na Idade Média se construía a imagem de um herói ou de um santo.
de onde, índios do interior. Tudo em uma mestiçagem que antecipa a raça cósmica do futuro. Na cidade alta se tece um Dédalo de ruazinhas e pracinhas, de rincões misteriosos e de becos sem saída. Mas, se todos os caminhos levam a Roma, todas as ruas da cidade alta levam ao Terreiro de Jesus, onde se ergue a catedral, e ao Pelourinho. Não se espante ninguém com este nome: o pelourinho era o tronco, quer dizer, o lugar onde se açoitavam os delinqüentes, os escravos, as prostitutas independentes e os adúlteros que não pertenciam à classe dominante.
de 1970, se iniciou a recuperação econômica da cidade apoiada num fenômeno novo: o turismo de massas, o consumismo cultural. A cidade se organiza em dois níveis: alto e baixo. O excessivo desnível se supera através de bondinhos e um gigantesco elevador, o Lacerda. Os colonizadores portugueses dos séculos 16 e 17 alcançaram a fórmula que se havia revelado eficaz no Porto e em Lisboa. A cidade baixa concentra hoje a vida comercial e os serviços, e inicia uma orla marítima muito ampla com praias imensas junto às quais se erguem os bairros dos pescadores. Georges Moustaki, em uma esplêndida canção dedicada à Bahia e a Jorge Amado, fala desta cidade de pescadores e marinheiros, de meninas do porto e ancoradouros. Não fala das hordas de turistas que invadem hoje os areais. A cidade alta fascina a qualquer visitante. As prodigiosas igrejas barrocas convertem este espaço em uma apoteose de volutas e dourados luxuosos.
A declaração de grande parte da cidade alta como patrimônio cultural da humanidade por decisão da Unesco em 1985 ativou a restauração das casas velhas coloniais e as fachadas aparatosas. Estes edifícios mostram toda a riqueza de uma época em que as missões, os jesuítas e os senhores de engenhos e dos cafezais fizeram da Bahia o que ela é hoje: uma cidade-espetáculo, mutante, misteriosa, dinâmica, multicultural, esmagadora em sua beleza um tanto decrépita. Para se chegar à cidade alta é recomendável tomar os bondinhos ou o elevador Lacerda. Passa-se então, em uma verticalidade vertiginosa, de um âmbito urbano a outro muito diferente, ainda que unidos pelo colorido denso e os aromas asfixiantes de um mundo tropical. Mas a maravilha da cidade alta é o povo. Deve o visitante lançar um olhar, inclusive distraído, ao barroco deslumbrante das igrejas, ou às fachadas lambuzadas de cores dos sobrados ou das casas humildes. Mas, logo, sente-se em uma varanda e contemple o espetáculo, também barroco, das pessoas que passam. A Bahia é a cidade símbolo do Brasil, um lugar onde as diversas raízes étnicas e culturais do país aparecem estreitamente amalgamadas em uma síntese deslumbrante: negros de diversos grupos étnicos; turcos, libaneses, bengalis, portugueses e galegos, escandinavos sabe lá Deus 10 Continente Multicultural
Hoje no Pelourinho já não se açoita a ninguém. Podem, isso sim, roubar a carteira de um turista incauto, e isso cada vez menos porque a crescente afluência de visitantes multiplicou as medidas LUIZ SANTOS
A cidade alta
O encanto do Pelourinho
LUIZ SANTOS
A Bahia formou a sensibilidade solidรกria e rebelde de Jorge Amado
de segurança. No Pelourinho e seus arredores o viajante poderá contemplar o desfile deslumbrante dos personagens de Jorge Amado. E se quer saber mais deles, pode ir até à Fundação que tem o seu nome e ver ali exemplares de seus livros, centenas de edições nas línguas de maior difusão, fotografias, objetos pessoais, condecorações rutilantes. A princípio, na cidade alta, o turista fica deslumbrado pela sensação de vitalidade, inclusive de alegria, que emana dessas pessoas. Mas logo, se o viajante é observador, descobrirá nelas o banzo, “essa doença estranha, uma espécie de loucura nostálgica ou vocação ao suicídio que abate em seu desterro aos negros exilados”. E cabe pensar se essa alegria não será um disfarce da melancolia ou o desespero. Sempre, após explosões coletivas de alvoroço, por exemplo o Carnaval do Rio, se pode descobrir a raiz oculta da desesperança.
Carnaval sincrético E por falar em Carnaval, nada a invejar o da Bahia do Carnaval do Rio. Nada é tão luxuoso, é mais espontâneo, não é um espetáculo preparado minuciosamente, ainda que agora comece a sê-lo. É mais anárquico e disparatado, um carnaval popular só um pouco premeditado, em constante evolução com a introdução de ritmos novos e de blocos com instrumentos musicais improvisados. O Carnaval dos afoxés, por exemplo, é aquele em que descendentes de escravos cantam o nagô para afirmar sua origem e sua cultura, ou os trios elétricos, que tocam qualquer ritmo, desinibidos, que interpretam música afro com instrumentos elétricos.
Lutar ao som da música Nos blocos – de índios, de brancos, de negros – se mantém a divisão de classes e os enfrentamentos mal dissimulados. No bloco dos negros fica proibida a intervenção de brancos, como expressão de uma espécie de poder musical negro. O velho samba vem sendo substituído por novas formas de danças, como o samba-reggae, que nasceu em 1987. Há no Carnaval da Bahia um sincretismo musical em constante transformação, um improviso que já não existe no do Rio de Janeiro. O folclore do continente negro impregna a cidade. Em qualquer romance de Jorge Amado es12 Continente Multicultural
LUIZ SANTOS
ta raiz africana é um elemento fundamental. A capoeira, por exemplo, uma espécie de luta dançada ou de artes marciais acrobáticas com acompanhamento musical, que nasceu entre os escravos fugitivos e que se praticava nos descampados da selva, onde os fugitivos aprendiam a defender-se de seus perseguidores. Luta e passos de dança, pernadas ao vento, cambalhotas, um cancã desenfreado convertido em espetáculo nas rodas de capoeira. Esta lutabalé, regulamentada – é o sinal dos tempos – e codificada desde 1960, se aprende hoje em academias como se fosse uma dança de salão mais que a memória de um exercício de defesa pessoal.
Ritos do continente negro O sincretismo cultural tem sua expressão característica no candomblé, um cristianismo impregnado de rituais africanos ocultos sob uma camada superficial do Cristianismo. Os escravos sudaneses tinham que ocultar diante dos seus donos a fidelidade a suas tradições religiosas e camuflavam seus orixás sob a aparência do Livro de Horas cristão. Toda a América negra vive um ressurgir dessas religiões sob nomes e formas diversas: a santeria cubana, o vudu haitiano, o batuque, o tambor, a umbanda, uma forma de culto aos antepassados impregnada de espiritismo que está a ponto de se converter em religião nacional do Brasil. Alguns candomblés serviram de refúgio aos perseguidos em tempos de ditadura. Jorge Amado foi obá – uma espécie de sacerdote ou diretor de ritos no candomblé de Axé Opó, e seu retrato figura no lugar de honra na escola de capoeira do Mestre Pastinha. A comemoração dos trinta anos de atividade literária de Jorge Amado foi uma celebração multitudinária em toda a cidade. O grande espetáculo da Bahia é o povo: “Sempre que penso no mulato baiano vejo um homem gordo. Gordo não só fisicamente, mas também como caráter: bom, amável, guloso, sensual, agudo, um pouco poeta...”
Personagem de romance A Bahia definiu a sensibilidade solidária e rebelde de Jorge Amado: “Os anos nas ruas, mesclado com o povo dos cais, os mercados e as feiras, nas rodas de capoeira, nos mistérios do candomblé Continente Multicultural 13
LUIZ SANTOS
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e nas festas populares, no átrio das igrejas barrocas, isso foi minha universidade e me deu o dom da poesia, uma poesia que vem do conhecimento da dor e da alegria de nosso povo.” O povo da Bahia, o melhor espetáculo: trapaceiros, prostitutas sentimentais, cafetões, vigaristas, pedintes, homens-da-cobra, meninos de rua, comerciantes portugueses, artistas alemães, norteamericanos ou noruegueses presos ao encanto dessa cidade a que chegaram um dia, talvez por acaso, e decidiram fazê-la sua para sempre. A Bahia não é uma cidade-museu, não se precisa de guias para conhecê-la, basta ler Gabriela, Cravo e Canela, Os Velhos Marinheiros, A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, Dona Flor e Seus Dois Maridos... A Bahia é uma vitrine viva de pessoas e de música, de ritmos misteriosos, uma cidade onde se aguçam os sentidos para captar um espírito que é ao mesmo tempo africano, colonial e moderno. Não é necessário o apoio de manuais, mas é imprescindível ler Bahia de Todos os Santos, livro inclassificável, romance de personagem coletivo ou derramado canto de amor de Jorge Amado à sua cidade. Não é nada conveniente unir-se a um circuito organizado de visita aos monumentos. É muito melhor perder-se, gozar da surpresa permanente, bater perna pelas ladeiras, de praça em praça, e deter-se para ver passar Gabriela, uma belíssima mulata; a Dona Flor, tão cozinheira, com o problema angustiante de contentar a seus dois maridos; o capitão Vasco Moscoso; o Quincas; a Andreza de Oxum; o mulato Curió, um incurável romântico sempre no mal de amor; a pobre Dora Cu de Jambo; a Jubiabá. Personagens tão reais como o mesmo Jorge Amado. Ou como o seu amigo Carybé, pintor que até esqueceu o seu nome argentino para ser mais baiano. Ou o antropólogo Pierre Verger. Ou o gravador Karl Hansen, todos baianos de prol. Porque a pátria não é o lugar onde se nasce, mas o lugar que se escolheu para morrer. E resta ainda a cozinha baiana, a mais africana do país, uma viagem em si mesma, síntese de sabores que se come primeiro com os olhos, cozinha mestiça com nomes que são poesia: cajá, mangaba, sapoti, angu, mingau, mugunzá. E cocadas para sobremesa. Paloma, filha de Jorge Amado, Paloma Jorge Amado pelo nome completo, escreveu A Cozinha Baiana de Jorge Amado, com receitas minu-
ciosas e provadas de tudo quanto comem os personagens que aparecem nos romances de seu pai. E o livro, uma jóia, é também antologia de textos saborosíssimos de “o Poeta”. Não se deve deixar de ir a Salvador da Bahia, dar uma volta pela catedral, obra-prima do barroco colonial, ver brilhar na escuridão ouros falsos ou verdadeiros, passear sem pressa e sem excesso de curiosidade. Não se sentir turista em mundo alheio, mas integrar-se na cor, na vitalidade das pracinhas e encruzilhadas, ouvir os pregões dos charlatães como se fossem poemas em voz alta, escutar a música, as músicas improvisadas a qualquer momento e com qualquer instrumento: uma guitarra, um berimbau, uma lata de querosene, ou dois pauzinhos e um tambor. E voltar logo, vencidos já para sempre pela saudade. Basílio Losada é catedrático em filologia galaico-portuguesa na Universidade de Barcelona. Especialista em literatura brasileira, traduziu para o espanhol 15 livros de Jorge Amado
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Onde se narra o caso dos dois nascimentos do célebre personagem de Jorge Amado
Na página ao lado: Jorge Amado, marinheiro de terra firme, na praia de Maria Farinha, em 1961. O menino é Ricardo, filho do professor Ruy Antunes
ZENIVAL
O poeta Carlos Pena Filho – testemunha, inspiração ou o verdadeiro Quincas Berro D’água?
A
té hoje permanece certa confusão em torno do nascimento de Quincas Berro D’água. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições, lacunas – seria exagero dizer. Pois a autoria da obra, pérola do realismo fantástico à baiana, está fora de cogitação questionar. Nela, está o melhor Jorge Amado: a cor vibrante dos trópicos, os sabores e cheiros da Bahia, a linguagem untada em azeite-de-dendê, o universo dos desvalidos – marinheiros, malandros, jogadores, putas, mães-de-santo, cachaceiros – em oposição ao mundo mesquinho da pequena burguesia, preconceituosa e amante das aparências, a narrativa fluente num registro fantástico absolutamente “natural”. A questão está em Homero
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reconhecer-se, não obstante o cenário soteropolitano em que o personagem está imerso, que Quincas Berro D’água não seria baiano, mas pernambucano. Não sei se esse mistério da vida (ou das sucessivas vidas) de Quincas Berro D’água pode ser completamente decifrado. Mas aqui será tentado. Há testemunhas idôneas do primeiro nascimento de Berro D’água em solo pernambucano. Uma das testemunhas vivas é o químico Paulo Loureiro, amigo de Jorge Amado por cinco décadas. Dele disse o escritor, em Navegação de Cabotagem: “Durante anos companheiros no Partido Comunista, parceiros na mesa de pôquer com Carlos Pena Filho e Ruy Antunes, anfitrião sem igual na praia deslumbrante, gozador e solidário, amigo de toda a vida, Paulo e eu nos tratamos Fonseca de velhos bolcheviques...” Outra
ÁLBUM DE FAMÍLIA
A VIDA E A VIDA DE QUINCAS BERRO D’ÁGUA
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testemunha atuante é Tânia Carneiro Leão, que, à época dos acontecimentos aqui narrados, era casada com o poeta Carlos Pena Filho, personagem central da história, como se verá mais adiante. Desde o início da década de 50, Jorge Amado tornou-se amigo de Loureiro e Ruy Antunes, este, eminente jurista, advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito do Recife. No início, era camaradagem: comunistas de carteirinha, os três, Amado sendo eleito deputado federal pelo PCB e Ruy, deputado estadual, nas eleições democráticas pós-Estado Novo. Com o tempo e as revelações de Nikita Kruschev, no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, todos abandonaram as ilusões ideológicas, mas mantiveram a fidelidade irrestrita à amizade. Por esse tempo, Jorge e Zélia vinham quase todos os anos ao Recife, demorando-se o mês inteiro das férias de janeiro, principalmente na casa de Paulo, a “praia deslumbrante” de Maria Farinha, ou no sítio de Ruy, em Aldeia, um arrabalde verdejante. Quando não vinham, os casais Paulo e Dóris e Ruy e Laís iam ao encontro de Jorge e Zélia, no Rio de Janeiro e, depois, na famosa casa do Rio Vermelho. Esses encontros foram interrompidos em meados dos anos 60, por causa do golpe militar, e reataram-se a partir dos anos 70, mais esparsos por conta dos compromissos cada vez mais mundiais de Jorge e, ao final, pela saúde debilitada do escritor. Dos encontros, participava, assiduamente, uma récua de amigos do peito: o jovem poeta Carlos 18 Continente Multicultural
Pena Filho, o engenheiro Marcos Botler, o médico Hellis Benaia, eventualmente o escritor e cordial prócer comunista Paulo Cavalcanti, todos antigos companheiros de militância no PCB, excetuando Carlos, poeta pouco afeito aos embates ideológicos. Em uma ocasião, em 1963, o casal baiano trouxe companhia agradável, um pintor e desenhista argentino de “nome de marquês veneziano ou de cabaretiê portenho”, na definição amadiana, Hector Julio Páride de Bernabó – o Carybé, ilustrador da maioria dos romances de Jorge Amado, parceiro e amigo de toda a vida. Carybé imortalizou uma cena de uma rodada de pôquer, na praia de Maria Farinha, após uma suculenta feijoada, que associou a uma “épica” batalha naval na costa pernambucana, envolvendo naus insensatas, fortificações medonhas e disparos tonitruantes. Carybé deixou registrada a cena (v. reproduções), em que ele próprio aparecia deitado numa rede, confundida com uma nau inimiga, e os parceiros de pôquer retratados como defensores de um imaginário forte. A cena é narrada nesses versos: “A Fortaleza de Orange/ pensando ser atacada/ por um mísero navio/ com uma pessoa deitada/ sacudiu suas baterias/ em mortíferas rajadas./ Os seus quatro capitães/ artilheiros afamados/ aprontaram os canhões,/ de bocas arreganhadas/ e sem se mover dos postos,/ com balas empeçonhadas/ atacaram o baixel/ de carga tão delicada./ No bastião do sudeste/ por cabo Ruy comandado/ a metralha era terrível/ o ar, todo envenenado/ nos atacou pela proa/ deixando
Jorge Amado e amigos numa roda de pôquer, após uma feijoada, bombardeiam a rede (nau) de Carybé Desenho inédito de Carybé, do acervo dos familiares do professor Ruy Antunes
os panos queimados./ Pra nossa maior desdita/ cabo Paulo retirado/ em seu bastião sudoeste/ mandounos de sotavento,/ pela brisa carregados/ ares de bufa do Cão,/ humores empesteados./ Malta, cavaleiro da cruz/ do Nordeste atirava/ rajadas colubrinas/ bombardas e empavoadas/ balas de repetição/ que ofenderam o boreste/ de nossa nau desgraçada./ O bastião de sudeste/ de artilharia pesada/ trovejava ferro e fogo/ sobre nós pobres coitados/ de resistência acabada/ devido aos tiros do Jorge/ capitão de vida errada/ que atirava com seu cu/ bombas, minas, trovoadas/ e rijas ventilações/ que quase nos naufragava./ A muito custo a nau,/ fedorenta e chamuscada,/ chegou a Maria Farinha,/ de bons ares afamada/ e rogamos ao bom deus/ que nunca uma feijoada/ reúna esses capitães/ canoros de seus traseiros,/ cus de ferro, corneteiros/ de nossas alegres manhãs.”
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o contrário do que possa imaginar um leitor mais desavisado, Jorge Amado era um bom burguês. Diferia muito dos seus personagens: não era farrista, sequer bebia (a não ser raro vinho ou uísque social), não freqüentava as putas depois de casado, era um pai de família carinhoso, um marido amantíssimo – e meio dependente, a ponto de pedir, candidamente: “Zélia, coça aqui minha orelha” – e, o mais incrível, um sujeito reservado, até tímido, embora, quando na segurança da roda de amigos, conseguisse soltar-se, participando de brincadeiras gozativas e contando um
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ÁLBUM DE FAMÍLIA
Jorge Amado e sua gente pernambucana: Paulo Loureiro, Paulo Cavalcanti e Ruy Antunes, 1992
ou outro caso. Mas principalmente ouvindo, ofício em que era capaz de passar horas, especialmente se se tratavam de histórias do povo, de valentes destemidos, santos milagreiros, mulatas bundudas, pescadores mentirosos, com licença dos pleonasmos. “Jorge era simples, caseiro, solidário, bom companheiro, meio sisudo com estranhos, mas brincalhão com os amigos”, declara de papel passado, se for preciso, Paulo Loureiro, cuja participação no nascimento de Quincas Berro D’água ajudou a fomentar a confusão, como se verá. No contar do amigo, o escritor, nas longas temporadas de veraneio em Maria Farinha, costumava ficar a maior parte do tempo enfurnado na casa de praia, de calção e chinelos, enfrentando galhardamente o cozido, a galinha de cabidela ou a peixada pernambucana, marinheiro de terra firme embalado nas conversas amenas, enquanto Zélia Gattai, mais atirada, aventurava-se ao alto-mar, inclusive na pesca de arraia, tendo, certa vez, capturado uma desavergonhada que, trazida para casa às costas de Loureiro, assediou sexualmente o bravo ajudante de pescaria, mas isso está contado em A Casa do Rio Vermelho, da escritora. Jorge, e Zélia, de quem ele nunca se separava, vinham ao Recife, com os filhos João Jorge e Paloma, que aqui confraternizavam ruidosamente com Clarinha, de Carlos Pena e Tânia, Julita, Henrique, Ana Clara, Iracema e Ricardo, de Ruy Antunes e Laís, e Cláudia e Paula, de Paulo Loureiro e Dóris, numa prova inconteste do espírito familiar reinante no ambiente. Só um evento podia abalar a placidez 20 Continente Multicultural
dessas tertúlias: a presença de um penetra, um bicão que, sabendo da presença do autor de best-sellers e recorrente candidato ao Prêmio Nobel, se infiltrasse na roda de amigos, a exibir conhecimentos literários, a dar-se importância, a desfiar teorias, coisas que o escritor decididamente detestava. Nem sequer política tinha vez na roda dos bolcheviques em espírito, o que não impediu de, em 1964, ao responder inquérito policial-militar instaurado para investigar as atividades dos comunistas, ex-comunistas, amigos de comunistas e supostos comunistas, o químico Paulo Loureiro haver sido interrogado por um abusado coronel sobre tais perigosos contatos: – O senhor conhece o escritor comunista Jorge Amado? – Conheço. Somos amigos de longa data. – O senhor manteve reuniões com o escritor comunista Jorge Amado? – Bem, se o senhor chama nossos encontros de “reunião”, tive sim. – Quantas vezes o senhor manteve reuniões com o escritor comunista Jorge Amado? – Não sei ao certo. Mas foram muitos encontros. Praticamente todo o ano, ele e a família vinham à minha casa. – Quanto tempo duravam essas reuniões do senhor com o escritor comunista Jorge Amado? – Dias inteiros. Era de manhã, de tarde e de noite. – E nessas reuniões os senhores tratavam de planos para solapar as instituições nacionais?
– Não, senhor. Bebíamos, comíamos, conversávamos e jogávamos pôquer. O que menos se falava era de política. Pois foi exatamente numa dessas suspeitas rodadas de baralho que nasceu, a primeira vez, Quincas Berro D’água.
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REPRODUÇÃO
s versões são controversas, havendo detalhes não suficientemente esclarecidos, aspectos obscuros mesmo. Mas o fato é que certo dia, na casa do casal Laís e Ruy Antunes, o poeta Carlos Pena Filho, ostentando, na mesa de jogo, sua fina palidez, saiu-se com esta: – Pois vocês não sabem. Conheci, esta semana, num boteco do Pina, um sujeito tão inveterado no copo que, pegando uma garrafa d’água, serviu-se de uma talagada, pensando fosse cachaça! – E então? – perguntou Jorge Amado, farejando a presepada. – E então? Ora, quando o líquido bateu na garganta... vocês precisavam ver. O jogo pára, em suspenso. Ruy Antunes ajeita o meia-taça no pau da venta e olha por cima dos óculos. Paulo Loureiro tosse, distraído. Jorge se concentra na magra figura do poeta: – O que aconteceu? O poeta se levanta, dando um efeito teatral à cena, faz um gesto entornando um copo imaginário e berra a plenos pulmões: – Áaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaagua! Por um instante, todos ficam calados, atônitos. – O cachaceiro era alérgico! – arremata o poeta do Soneto do Desmantelo Azul. A gargalhada é geral, coletiva, num crescendo, Paulo engasga, Ruy tem lágrimas nos olhos, Jorge se contorce na cadeira. Serenado o surto de riso, Paulo fulmina o poeta: “Isto é mentira! Não pode ter acontecido. É invenção do Carlos!” Ruy intervém, categórico: “Nada
disso. É a pura verdade. Apenas o Carlos fez uma pequena distorção. O caso não foi presenciado por ele. O caso aconteceu com ele!” A polêmica durou a noite inteira e jamais nenhum dos participantes da conversa abriu mão de sua versão: Carlos havia sido testemunha, Carlos havia inventado, Carlos era o próprio Berro D’água! Até hoje os fatos nunca foram cabalmente esclarecidos, desconfiando-se até de que seus protagonistas não tinham qualquer interesse em estabelecer a verdade verdadeira. Pouco importa: o fato inconteste é haver Quincas Berro D’água nascido, pela primeira vez, em Pernambuco, na casa de Ruy Antunes, na pessoa do poeta Carlos Pena Filho. Bem o atestam as dedicatórias impressas nas várias edições do livro de Jorge Amado, que, embora não descrevam, como não poderiam fazê-lo, a gênese do personagem, dão pistas valiosas, para o bom entendedor: “Para Laís e Ruy Antunes, em cuja casa, pernambucana e fraternal, cresceram, ao calor da amizade, Quincas e sua gente” e “À memória de Carlos Pena Filho, mestre da poesia e da vida, Berrito D’água na mesa do bar, comandante de fina palidez na mesa de pôquer, hoje navegando em mar ignoto com suas asas de anjo, estas histórias que eu lhe prometi contar”. Num oferecimento de próprio punho, à edição especial de A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água, em 1967, comemorativa do 30º aniversário da Livraria Martins Editora, com 1.125 exemplares numerados, está escrito: “Para Ruy e Laís, donos desta história, de Quincas, de sua vida e suas mortes, a amizade fraternal do Jorge”.
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segunda vida de Quincas Berro D’água é conhecida. Nasceu na Bahia, na máquina de escrever de Jorge Amado, cercado da gente do mercado, becos e ladeiras de Salvador, embalado pela poderosa imaginação do escritor, a atribuir-lhe duas mortes, numa narrativa maravilhosa.
Capa da edição especial de A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua, comemorativa do 30º aniversário da livraria Martins Editora, 1967
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O dilema de Jorge Amado LU I
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AR RA IS
Apesar da crítica o baiano firmou-se com dezenas de milhões de livros vendidos
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m dos maiores dilemas que Jorge Amado teve de enfrentar, na sua longa trajetória de escritor profissional, revela-se como o descompasso entre um enorme sucesso de público e um certo azedume, demonstrado por alguns setores da crítica brasileira, em relação à sua obra. Quando não primam pela omissão sumária ou pela desaprovação apressada, muitas apreciações sobre seus livros sedimentam-se na severidade mais artificiosa, às vezes sem o cuidado elementar da supressão de armadilhas como a redundância e o lugar-comum. Isto pode ser comprovado pela utilização, por exemplo, de um clichê como “repetitivo”, transmitido indiscriminadamente de um crítico para outro. No entanto, essa repetição propalada de temas e personagens se processa em feixes específicos de livros, que logram aparecer em seqüência ou dispersos no conjunto da obra, sem invalidar, porém, as obras capitais isoladas que ele escreveu, entre elas podendo-se citar Mar Morto (1936), Capitães da Areia (1937), Terras do Sem Fim (1943), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966) e Tenda dos Milagres (1970). O próprio Jorge Amado sempre reconheceu, na sua fatura romanesca, as marcas de uma re-
Luiz Carlos Monteiro 22 Continente Multicultural
petição freqüente na delimitação de espaços narrativos e na construção de personagens. As locações costumeiras de seus romances – com os tipos populares, míticos ou humanos que os caracterizam – revezam-se na simetria de dois mundos, que complementam-se ou excluem-se mutuamente: a zona rural das fazendas, vilarejos e cidades da microrregião cacaueira da Bahia e a ambientação urbana de mercados, ladeiras, botecos, vielas, docas do cais do porto, trapiches, terreiros de candomblé e sobrados que funcionam como prostíbulos, casas de jogo e pensões decadentes.
É bem verdade que esse maneirismo amadia- Cravo e Canela em 1958, embora ele já fosse, ao lado no não esconde a “fórmula mágica” que intenta atin- de Érico Veríssimo, um dos únicos escritores brasigir de chofre um tipo de leitor sequioso por deparar- leiros a viver da renda de seus livros. O texto lúdico, se com relatos excitantes ou dionisíacos, permeados referendado no trinômio sexo-vida boêmia-gastrotambém da crônica da violência, do sofrimento e da nomia, traz à luz a paixão incestuosa de Tieta pelo denúncia do estágio miserável da população baiana, sobrinho, o desejo rasgado do turco Nacib pela breque alardeiam tanto as coisas boas quanto o lado jeira Gabriela ou o triângulo amoroso fragmentado podre e execrável da vida. Esse leitor – originário, entre a realidade e o sobrenatural, protagonizado por sem distinção de gênero, etnia ou posição econômi- Dona Flor, o circunspecto Teodoro e o malandro ca, dos meandros e estratos mais insólitos da socie- debochado Vadinho. Com a aprovação conjunta de leitores e merdade – pode apenas desejar o mergulho no texto de fruição agradável, ou por outra mostrar-se disposto cado editorial, este novo filão popular e picaresco a sofrer os desencontros e dramas de personagens passará a substituir a inclinação didática e doutrinária, colocando em dimensão segunda o confronto de com os quais de algum modo se identifique. O discurso romanesco de Jorge Amado parte classes e a conscientização de trabalhadores pela linde uma compulsão ética inegável nos romances ini- guagem panfletária utilizada, contudo não deixando de referir-se à luta desigual e ciais da década de 1930. O inglória pela sobrevivência de primeiro deles, O País do CarO escritor seres postos insensivelmente naval, escrito aos dezoito bem-sucedido à margem do capitalismo. anos, e publicado um ano depaga um preço O fato significativo e pois, em 1931, já trazia um desmedido por este que faz de Jorge Amado um evidente domínio da técnica criador destacado é que, à narrativa e o substrato dos temesmo sucesso maioria dos criadores no mas sociais. Este e outros romances da década viriam a ser apreendidos e quei- Brasil, não foi dado o privilégio de um alcance de mados pela polícia em Salvador, em novembro de público tão amplo quanto tipologicamente diversifi1937, com a instauração do Estado Novo. De Ca- cado. Porque não se sabe de nenhum outro escritor pitães da Areia, que havia sido lançado naquele mes- brasileiro, ficcionista, poeta ou crítico, por mais como mês e ano, inclusive com o autor na prisão, fo- nhecido que seja ou tenha sido, que tenha conseguiram incinerados 808 exemplares, e de Jubiabá, pu- do o seu desempenho editorial – sem esquecer das blicado anteriormente, em 1935, o ato de incinera- suas intervenções junto ao mercado televisivo e cineção registra 267 exemplares, pelo fato central de matográfico –, contabilizado em meia centena de anunciarem, ainda que nos termos utópicos da fic- traduções e algumas dezenas de milhões de exemção, o surgimento de lideranças populares nas figu- plares vendidos. De todo modo, a Jorge Amado não pode ser ras do menino de rua Pedro Bala e do negro Antônegada a qualificação de escritor autêntico e vocanio Balduíno. Mais à frente, nas próximas duas décadas, a cionado, independentemente de críticas desabonadivulgação do autor no exterior passou a contar com doras, de percalços e instâncias negativas de sua vida o apoio da máquina internacional comunista, amol- pessoal ou da complexidade de suas relações com o dada ao doutrinarismo stalinista em livros como O mercado editorial nativo e internacional. Deve-se Cavaleiro da Esperança (1942), biografia de Luís lembrar, ainda, que o escritor bem-sucedido paga Carlos Prestes, O Mundo da Paz (1951), panegírico um preço desmedido por este mesmo sucesso, prinde países do Leste Europeu, e a trilogia sob o título cipalmente num país onde seus pobres escritores comum Os Subterrâneos da Liberdade (1954), com a trabalham, na sua maior parte, amadoristicamente e história romanceada de militantes conhecidos – Os- com poucas perspectivas de profissionalização, ou car Niemeyer entre eles – ou anônimos do Partido andam à caça de uma nesga qualquer de aparição, lembrança ou reconhecimento público, que os leve à Comunista Brasileiro. O fenômeno de vendagem massiva vai inten- ilusão de fama ou celebridade. sificar-se bem mais após a publicação de Gabriela, Luiz Carlos Monteiro é crítico literário Continente Multicultural 23
SÉCULO 21
Mecenato e democracia No Brasil, onde há até pouco tempo o bem público era considerado uma extensão do privado, o mecenato tem sido imperial e clientelista
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arte é filha do poder e o mecenato tem sido seu pai. A ostentação da riqueza e da vitória, o desejo dos poderosos de imortalidade e de se igualarem a um Deus é a força por trás da arte. A arte pela arte, só no coração
de artistas. Na Antigüidade, os faraós mobilizaram toda a sociedade na construção de seus túmulos de imortalidade; Mecenas emprestou seu nome à prática de apoiar e financiar as artes; Péricles patrocinou o surgimento do classicismo e o estabelecimento das bases da beleza; Ptolomeu criou a biblioteca de Alexandria.
Na Idade Média, o mecenato religioso exigiu a destruição da arte clássica, impôs as cruzadas contra os infiéis, e fez dos monumentos a Deus a medida do poder. No final da era medieval a Europa estava pontilhada de capelas, igrejas e catedrais. O mecenato dos reis e imperadores visava à ostentação de seus grandes impérios com a construção de soberbos palácios e monumentos. Os museus do Louvre e Britânico eram grandes arcas onde se depositaram as riquezas pilhadas mundo afora. Até então o artista era um escravo da vontade do mecenas e tinha vida miserável quando não estava trabalhando por encomenda para um senhor. A revolução industrial inverteu a polaridade da relação mecenas-artista. Por um lado, para o emer-
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 24 Continente Multicultural
gente empresariado, a arte não era essencial como eram o lucro e a acumulação. Por outro lado, o artista se tornou assalariado e pôde – desde que arcasse com as conseqüências – tentar produzir aquilo que lhe desse prazer. Foi nos EUA onde o mecenato empresarial mais se destacou. Com a garantia de dedução tributária das doações, as artes se consolidaram e se evitaram os vícios europeus, como o mecenato totalitário, de Hitler e Stalin, que politicamente lembrava o mecenato religioso da era medieval. O surgimento do mecenato público correspondeu a uma revolução. Ele estabeleceu normas e princípios para que o artista pudesse ser sujeito de seu trabalho e para que a arte fosse de acesso geral. Emergia então a preocupação com a democratização, a descentralização e a pluralidade artística, rompendo-se o monopólio da postura individualista e autoritária até então dominante. Os países ricos conseguiram satisfazer suas necessidades com a manutenção da dialética entre o mecenato público e o empresarial. Mesmo im-
possibilitados de resolver seus problemas básicos, os outros países conseguiram manter acesa a chama da arte nacional, local e tribal. No Brasil, o mecenato tem sido imperial e clientelista. Há até pouco tempo o bem público era considerado uma extensão do bem privado e as tentativas de fomento estatal da cultura acumularam fracassos. Eram poucos os empresários que podiam ser chamados de mecenas.
Surpreendentemente foram a falência do Estado e a chegada do neoliberalismo que permitiram a introdução de uma nova abordagem no Brasil. As leis nacional, estaduais e municipais de cultura foram pensadas visando à promoção de um verdadeiro mecenato público no País. O resultado tem sido mais que animador. O patrocínio e investimento em cultura contaminaram a empresa privada e pública e, pela primeira vez em sua história republicana, o Brasil começou a se equipar com instrumentos que podem consolidar um mecenato moderno. Mas os obstáculos são grandes. Primeiro, os recursos investidos são ainda parcos frente à demanda. Segundo, a indefinição quanto à instalação de um processo participativo e democrático na tomada de decisões deixa a distribuição de recursos refém dos velhos hábitos do clientelismo, da demagogia e corrupção. Por exemplo, sabe-se que proliferam no Brasil escritórios que cobram comissões para a aprovação de projetos, e nada tem sido feito para investigar tal prática. Finalmente, os recursos parecem correr apenas para os grandes projetos. Um exemplo desta distorção está na Inglaterra, onde grandes fortunas foram gastas em projetos megalomaníacos, como a chamada Cúpula do Milênio, e que se revelaram estrondosos e escandalosos fracassos. Enquanto isto, incontáveis pequenos projetos culturais, muitos de escolas primárias e associações, enfrentam grandes dificuldades em levantar recursos para sua implementação. Se o mecenato público brasileiro vencer esses obstáculos, então não será impossível que consigamos democratizar e impor nossa arte e cultura moderna em pé de igualdade às nações mais fortes. Vai ter cidade no Exterior brigando para construir uma sucursal do Museu de Brennand e até Bill Gates poderá querer gastar uma fortuna para adquirir os originais de Manoel Bandeira e a primeira gravação de Águas de Março. Caso contrário, teremos mais um século de descaso cultural e artístico. Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com
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DANIEL MORENO
POESIA 26 Continente Multicultural
Manoel, o ínfimo
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onheci o poeta Manoel de Bar- minha alma. Uma gota serena, sei lá. Um desvio no ros por telefone. verbo, sei lá. Como ficar atolado numa pedra. Ainda no Recife, uma A segunda vez que conheci Manoel de Baramiga me ligou e fulminou: ros foi pessoalmente, no Carnaval de 96. Aprovei“Todas as coisas cujos valores tei o feriadão para visitá-lo em Campo Grande. Eu podem ser disputados no cus- e mais dois amigos viajamos de carro 16 horas de pe à distância servem para poe- São Paulo, 1.100 quilômetros. Abandonamos bunsia”. E cuspiu mais: “O que é bom para o lixo é das e sambas. Fomos atrás do autor dos Poemas bom para a poesia”. Concebidos sem Pecado, da Face Imóvel, do Compêndio Silêncio. para Uso dos Pássaros. Esquecemos das ladeiras de Aos poucos, a palavra de Manoel vai nos colo- Olinda. A poesia mora noutros 4 cantos. Na Gracando contra a parede. Ou melhor: a favor da parede mática Expositiva do Chão, nos Arranjos para Assobio, e dos caramujos. Das coisas que ruínam, impres- no Livro sobre Nada. táveis. “As coisas jogadas fora têm grande importânManoel de Barros chega aos 85 anos em cia – como um homem jogado fora”. Ou: “Escrever dezembro. Imaginávamos encontrar o poeta dando nem uma coisa / Nem outra / A fim de dizer todas / miolo aos pombos. Alface aos pássaros. Ou confabuOu, pelo menos, nenhumas / Assim / Ao poeta faz lando com os bichos do mato. Cercado de peixes e bem / Desexplicar / Tanto quanto escurecer acende cachorros e gatos. Largado num balanço de cadeira. os vaga-lumes”. Besteira. Manoel é normal. Veste calça e camisa soCarmina Viana, a minha amiga, continuou o cial. Formou-se advogado – “das causas perdidas”, fio da conversa. O telefone fonético. O barulho que salienta. Já morou em Nova Iorque, Paris, Itália. É a poesia “barriana” (quero chamar dono de uma fazenda no Pantanal e assim, “barriana”) fez no chão da Marcelino Freire de algumas cabeças de gado. Sua casa, Continente Multicultural 27
EU GARCIA / AE
O Pantanal não determina a obra: “Não sou um poeta pantaneiro”
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(inclusive, cedeu um poema inédito que a Continente publica com exclusividade). Vale a pena conferir. Leia, a seguir, alguns trechos da conversa com Manoel de Barros, anotados rapidamente (e depois confirmados com o poeta por telefone). “Não gosto de falar para gravador. Não tenho respeito por essas coisas”, defende-se.
Millôr Fernandes Foi o Millôr quem primeiro falou de minha poesia. Me deu um empurrãozinho. Escreveu lá no espaço que ele tinha no Jornal do Brasil: “Olha só, macacada: poesia é isto”. E transcreveu um poema meu. Aquilo teve uma repercussão grande. Depois, ele que me apresentou ao Antônio Houaiss, que me apresentou ao Ênio Silveira, da Civilização Brasileira. Antes, eu só publicava por editoras pequenas. Millôr me deu a maior colher de chá.
O Pantanal Não ligo para a exuberância do Pantanal. Ser chamado de “poeta pantaneiro” me irrita profundamente. Poesia é palavra, não é paisagem. Eu mexo com palavras, meu texto não situa lugares.
MARCELINO FREIRE
em Campo Grande, fica no Jardim dos Estados, um dos pedaços mais exuberantes da cidade. “Estou cagando para exuberâncias”, disse Manoel. “Minha poesia trata dos seres diminutos, jogados aos farrapos”. Diz que poesia não é paisagem. É palavra. E nisso ele chafurda bem. Tem substantivos escuros. Recusa adjetivos e advérbios. Diz que acredita no “Milagre Estético”, como todo grande poeta. “Grande poeta uma merda, sou o poeta do ínfimo. Eu sou o ínfimo”. O que dizer, então, da gente, miúdos como um carrapato? Voltei a Campo Grande este ano para nova visita. Para conhecer o poeta pela terceira vez. Quem me acompanhou, a tiracolo, foi Sérgio Cassiano, cantor e compositor do grupo Mestre Ambrósio e também poeta. Poeta? Há quem diga que o que Manoel escreve não tem importância. E não tem mesmo. Não dá, ele, importância para a importância. Seus seres são lodosos e enferrujáveis. Xô os postais poéticos de Corumbá ou da Amazônia. Nesse novo papo, acontecido num final de semana, ele – socado num “buraco” do sofá que ele chama de “Buraco do Manoel” – falou de outro Manuel, o Bandeira. Disse como conheceu o poeta João Cabral. Adiantou coisas sobre o seu novo livro, o Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, a sair pela editora Record até o final deste ano
Eu não sou um poeta regional. Eu sou poeta. Uma jornalista do Jornal do Brasil uma vez me perguntou, no Rio, se eu estava sentindo falta do Pantanal. Eu falei, “eu gosto mais é do Leblon”. Ela fez uma manchete com isso. Achei engraçado.
Milagre Estético O verdadeiro artista está à procura do “Milagre Estético”. Aprendi essa com o Borges. Poesia não é informação. É linguagem. É substantivo e verbo. Um equilíbrio sonoro das palavras, das letras, das frases. Uma eufonia. Esse equilíbrio é que produz a harmonia. O que a palavra entoa é mais importante do que o que a palavra diz.
Dinheiro Escrevi um livro sobre nada e ganhei 50 mil reais. Um amigo me ligou dizendo que a Academia Brasileira de Letras me concedeu um prêmio. Foi aquele meu livro infantil Exercícios de Ser Criança. Perguntei logo: tem gaita? O que é que eu ia fazer na academia se o prêmio não tivesse dinheiro? Ganhei 30 mil. Bom, né? Meus livros vendem bem. O que vendeu mais foi o Livro das Ignorãças. 60 mil exemplares até agora. Vender isso com poesia é muito. Não posso comparar com outras coisas que vendem melhor. Perto do Paulo Coelho eu sou uma formiga desprezada.
Viagens Sempre tive uma curiosidade primitiva. Sede de experiência do primitivo. Deixei o Rio e fui conhecer a Bolívia, o Peru. As tribos indígenas de lá. Vivi um tempo com os índios. Depois fui parar em Miami, com meu inglês escalafobético. Morei numa pensão em Miami. Meu inglês era bom só para pedir comida e para “I love you”. Depois é que fui para Nova Iorque. Morei um ano em Nova Iorque. Eu tinha 27 anos nessa época. Vi muitos filmes do mundo inteiro que eles tinham lá. Sempre gostei muito de cinema. Fiz um curso de cinema como ouvinte. Um curso de cinema no MoMa. Morava ali perto da 47. Lá eu pude conhecer a arte de Picasso, Chagal, Paul Klee.
O resto Imagino que cumpri minha vocação do jeito que pude. Mas falta sempre o resto. E o resto parece ser tudo. Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de contemplar os seus restos. Eu contemplo os meus. Pois o que me falta sempre há de ser escrever o resto.
Guimarães Rosa Fiquei encantado com o livro do Rosa, o Sagarana. Sou encantado com a obra toda dele.
A casa do poeta em Campo Grande, Mato Grosso do Sul
que ele tinha de elogiar. Depois, acompanhei o Rosa em alguns passeios ao zoológico. Ele, com um caderninho, anotando frases. Anotando gestos dos bichos. Via o hipopótamo, anotava. A girafa, o leão.
João Cabral
MARCELINO FREIRE
O poeta em seu refúgio: “Um homem normal”
Fiquei sabendo que o Rosa vinha visitar o Pantanal. Ele vinha de trem. O trem parou em Porto Esperança. Parava para o pessoal pegar um vapor para Corumbá. Peguei esse vapor só para conhecer o Rosa. Nem dormi na noite anterior. Guimarães era um mito para mim. Cheguei perto e ele estava se abanando com um leque. Corumbá é muito quente, moscas perseguindo ele. Ele estava sentado na proa do navio quando eu me aproximei. Na cabeça da gente, o nosso ídolo não é gente. Rosa era. Rosa era simples. Não dava para entender um gênio assim, comum. Eu disse uma frase para chamar a atenção dele. Não lembro da frase. Ele puxou conversa. Depois encontrei outras vezes com o Rosa no Rio de Janeiro. No Itamaraty. Dei um livro para ele, o Compêndio para Uso dos Pássaros. Ele falou: “Manoel, isso aqui está um doce de coco”. Era a maneira
O João Cabral descobriu que eu falava e lia em francês. Ele me pediu para traduzir um poema chamado Le Musèe Gravin, do poeta Aragon – um grande poeta da França. E depois ele queria que eu recitasse o poema numa rádio, pode? O Cabral era encarregado de procurar os poetas para fazer traduções, para se apresentar nessa rádio, num programa apresentado por uma francesa. “Mas eu não falo no rádio. Eu sou muito tímido”, eu dizia. Ele não acreditou. Fui lá na rádio. Causei o maior vexame. Olhe, João Cabral é um dos maiores poetas da Língua Portuguesa. Ele enxugava, chupava até as tripas das palavras. Seco demais. Substantivo demais. Verbo demais.
O outro Manuel Bandeira me ensinou poesia. Para mim, ao tempo, era o Ser mais importante do mundo. Desejei conhecê-lo de perto, ouvir sua voz, era meu ídolo. Mas nunca tive coragem de abordá-lo. Depois que Bandeira morreu, estive no Recife. Quis conhecer os lugares por onde andou, a rua da União, a rua da Aurora etc. Achei as ruas. Mas ninguém sabia do poeta. Depois caminhei pela ponte Buarque de Macedo, recitando as Cismas do Destino, do outro poeta, Augusto dos Anjos, de minha admiração.
O Novo Livro Estou com um livro pronto. Quando for ao Rio eu já entrego para a Record. Se chama Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. O título faz uma brincadeira com o Tratado Geral das Grandezas do Brasil, escrito pelo primeiro historiador brasileiro, o Gandavo. No Tratado, falo de cisco, de madeiras, dos seres e das coisas desimportantes. Já usei esse nome em outros poemas. O ínfimo sempre está comigo. O poema que vai de-junto leva o tom do livro.
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Poema Inédito de Manoel de Barros (do livro Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, a ser lançado este ano): O Catador Um homem catava pregos no chão./ Sempre os encontrava de comprido ou de lado/ no chão. Ou de joelhos./ Nunca de ponta./ Assim eles não furam mais – o homem pensava./ Eles não exercem mais a função de pregar./ São patrimônios inúteis da humanidade./ Ganharam os privilégios do abandono./ O homem passava o dia inteiro nessa função/ de catar pregos enferrujados./ Acho que essa tarefa lhe dava algum estado./ O estado das pessoas que se enfeitavam a trapos./ Catar coisas inúteis dava àquele homem/ a soberania de ser ninguém e nem nada./ Ele ganhava a liberdade de Ser – mais do que Ter. Marcelino Freire é autor do livro Angu de Sangue, entre outros
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O poeta português cultivou uma obra marcada pelo conflito entre o divino e o humano, o convívio solitário com a dor e a melancolia
P
um homem na encruzilhada da arte
or quantas estradas enveredou José Maria dos Reis Pereira, trilhando As Encruzilhadas de Deus: “entro... seja onde for. Começo a disfarçar,/ a fingir que estou bem, muito à vontade./ Mas a verdade é que não sei como hei de estar (...)” (Espelho). Ruas desertas, tabernas, bordéis, embalado pelo vento “na noite longa e lôbrega”, errou José Régio nas imagens de sofrimento e de angústia na busca de Deus. Poeta desde os 13 anos de idade, romancista, teatrólogo, contista e crítico literário, o vilacondense José Maria dos Reis Pereira, conhecido pelo pseudônimo de José Régio, Zuleide 32 Continente Multicultural
cultivou ao longo dos seus 68 anos de existência uma obra marcada pelo conflito entre o divino e o humano, o convívio solitário com a dor e a melancolia, companheiras no seu exílio portalegrense: “Alentejo, ai solidão,/ Solidão, ai Alentejo,/ Pátria que à força escolhi!” (Fado Alentejano). Seu livro de estréia, Poemas de Deus e do Diabo, 1925, suscitou, por um lado, grandes críticas de católicos conservadores e, por outro, o aplauso da nascente geração neo-realista. O Cântico Negro – poema deste primeiro livro – é citado constantemente em antologias e constitui referência fundamental quando o assunto é o professor do Liceu Mousinho da Silveira, de PortaleDuarte gre, escritor que representou para a
mento dialogam com o poeta fingidor da Autopsicografia, de Fernando Pessoa. O universo da cultura judaico/cristã lastreia a obra do autor de A Chaga do Lado, revelando uma espécie de obsessão pelos temas místicos. Religioso confesso, mas também religioso revoltado, Régio em seus versos traz à cena figuras contraditórias, como Onã, exemplo bíblico de desobediência à instrução paterna, exaltando o indiCumprindo um programa de vidualismo egoísta do filho de Judá: (...) independência na arte de criar, José “Sim!, só a mim me entrego e me posRégio chocou, escandalizou e irritou suo,/ Porque eu me basto para achar o o público, à maneira de Sá Carneiro, mundo!”. Esta atitude solipsista da poeAlmada Negreiros e Fernando Pessoa sia regiana tem o seu nascedouro no seu primeiro livro, em versos como: “A miBranquinho da Fonseca e Edmundo Bettencourt, nha glória é esta:/ Criar desumanidade!/ Não defendeu a produção de uma “literatura viva”, do acompanhar ninguém” (Cântico Negro). A poesia de exercício crítico inteligente através de um movi- José Régio é marcada pela dor. Nela, observa-se mento literário sem pretensão doutrinária, ideoló- muitas vezes uma valorização do sofrimento que o gica ou política. Os presencistas também reivindi- aproxima de Camilo Pessanha, quando a define cocavam a superioridade da intuição sobre a razão, mo uma “falta de harmonia sem a qual o coração é do psicológico sobre o social e do individual sobre quase nada”. No poema Exortação ao Meu Anjo leo coletivo, atitudes que valeram principalmente a mos: “Quando me deixar cair/ No sonho de adoeRégio as acusações de antipresencistas ferrenhos cer para poder dormir,/ Fere-me com a tua lança!/ que, no final dos anos 30, intensificaram os ataques Reaviva em mim a dor, fonte da esperança”. Tema contra o autor de Mas Deus é Grande. A indepen- e motivo de uma poesia angustiada, ainda encondência quanto às regras acadêmicas esterilizantes tramos em Colheita da Tarde, livro póstumo, a reiteecoa na obra de Régio desde o mencionado Cântico ração da cumplicidade do poeta com a dor. O Negro, onde rejeita os caminhos indicados e o poema Vida e Morte encerra estas reflexões em torno da poesia de José Régio. “sangue velho dos avós”. Cumprindo um programa de independência na arte de criar, José Régio chocou, escandalizou e VIDA E MORTE irritou o público à maneira de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Pessoa. Impregnada pelo espírito de É a mim, virgem louca, Orpheu, a poesia do livro Biografia, 1929, provocou É a mim que sorris? os protestos de leitores e literatos habituados à pieA mim que abres os braços, dás a boca, guice e ao estilo reverente e edulcorado da poesia Diriges esperanças de amizade, que tratava dos intocáveis temas da religião. IdenPromessas de conforto? tificado em muitas passagens com Cristo, o poeta Eu não mereço a tua mocidade! apresenta-se numa dualidade de quem em processo Desisti de sonhar com ser feliz. de alteridade observa-se vivendo, como dizia BanNão te venhas meter no meu caixão de morto, deira, “a vida inteira que podia ter sido e que não Roubar-me o único bem com que me engano, foi”. No soneto Demasiado Humano, de flagrante Última ilusão que quero: inspiração nietzschiana, o poeta resume a sua bioAquele desespero sobre-humano grafia: “Que eu vivo a expor minh’alma nas estraNo qual ainda espero! das,/ Com chagas inventadas retocadas.../ Para esconder bem fundo as verdadeiras”. Persiste aí o mesmo espírito de fingimento que encontramos no Zuleide Duarte é doutora em Literatura Brasileira pela poema Jogo de Espelhos, onde o disfarce e o fingi- UFPB e professora da Funeso modernidade portuguesa o viés mais radical do movimento de Orpheu e, paradoxalmente, bastante afastado daquele ideário em outros aspectos. Teorizador da Presença – “Folha de arte crítica”, revista coimbrã cujo primeiro número saiu em 10 de março de 1927, Régio, ao lado de João Gaspar Simões, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro,
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ANTOLOGIA
Poemas de
Sérgio de Castro Pinto os pobres as costelas dos pobres são móbiles de calder ou armas brancas disfarçadas na bainha da carne? as costelas dos pobres são adagas do mais puro aço. aço temperado na caldeira dos trópicos. desembainhadas, as costelas dos pobres são um osso duro de roer.
kitsch
a joaquim inácio brito, amigo soldados de polícia ofertam às namoradas buquês de roletes além de melodias. após, batem em retirada e vão orlando a noite à voz de orlando dias.
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papel de jornal no papel de jornal cabe o presente e o seu papel de estocar embrulhos. no papel de jornal transporto o presente e o seu papel de estocar entulhos. o presente e o seu papel de provocar engulhos.
à companhia de água e esgotos o hidrômetro registra um pingo de minha vida sob o chuveiro. (no fim do mês, engulo em seco: taxam-me o dilúvio inteiro!)
no papel de jornal cabe todo presente. o presente e o seu papel de sonegar futuro.
etílico a vida é dose! de gole em gole
na bicicleta ergométrica à ângela bezerra de castro pedalo milhas da ciclovia imaginária e o coração dispara:
– com um olho cheio de rum e o outro sem rumo –, o mundo é um porre!
dou carona às coronárias.
os pardais os pardais são me(l)ros vira-latas de asas fuçando os quintais
Sérgio de Castro Pinto nasceu em João Pessoa, Paraíba, em 1947. Estreou como poeta com o livro Gestos Lúcidos, em 1967, e publicou, nos anos seguintes, estes livros de poesia: A Ilha na Ostra (1970), Domicílio em Trânsito (1983) e O cerco da memória (1993). Publicou, no ano passado, o ensaio Longe daqui, aqui mesmo – a poética de Mário Quintana. É doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, onde leciona, no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Continente Multicultural 35
CONTO
Meu avô, o censor Moacyr Scliar
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urante a época da ditadura militar, meu avô arranjou um emprego: tornou-se censor. O salário era bom, mas esta não era a principal razão pela qual ele gostava do cargo. A principal razão era representada pelo instrumento que usava, uma caneta hidrográfica marca Pilot. Preta: outras cores estavam disponíveis, mas meu avô preferia exatamente a preta. Mais sóbria e, sobretudo, mais autoritária. Autoridade era a palavra que meu avô mais utilizava. É preciso respeitar o princípio da autoridade, repetia muitas vezes. Este princípio governava sua relação com a família, com os colegas – amigos não tinha – e com o mundo em geral. Não era uma relação muito feliz. Meu avô enviuvara cedo; dizia-se que a mulher tinha morrido de desgosto, o que podia ser apenas uma história propagada por más línguas, mas refletia, de qualquer modo, aquilo que todo o mundo sabia: meu avô tratava a esposa muito mal. Dos quatro filhos, três não falavam com ele. O único que o acolhera na velhice fora meu pai, médico e homem excepcionalmente bom. Conviver com meu avô não era exatamente um prazer. A idade não o tornara nem um pouco mais agradável, ao contrário, apenas acentuara os traços de seu caráter: estava mais mandão do que nunca, mais chato do que nunca. Minha mãe
detestava-o, mas, em consideração ao marido, fazia o possível para tratar bem o sogro. O único com quem meu avô se dava bem era eu. Aos doze anos, filho único, cabia-me a tarefa de acompanhá-lo ao banco, onde retirava o dinheiro da aposentadoria, à farmácia, ao barbeiro. Nessas ocasiões, conversávamos. Melhor dizendo: ele monologava, eu o ouvia. “Pouca vergonha” era uma expressão que usava muito. Uma menina com calça justa? Pouca vergonha. Uma senhora muito pintada? Pouca vergonha. Outdoor ousado, motoqueiro arrojado, um grupo rindo e cantando: pouca vergonha, pouca vergonha, pouca vergonha. Havia um momento no dia, contudo, em que meu avô sentia-se feliz. Depois do almoço, pegava o jornal da cidade – do qual tinha assinatura – e, caneta Pilot em punho, começava uma leitura atenta, que podia durar três, quatro horas. Quando – o que era freqüente – encontrava uma notícia que não lhe agradava, algo que podia ser enquadrado na categoria de “pouca vergonha”, ou, pior, de “esquerdismo”, pegava a caneta e traçava um X ali. Fazia-o com visível prazer. Prazer, não; deleite. Ao mesmo tempo, deixava escapar um audível, e nostálgico, suspiro. Uma nostalgia que eu podia entender. Aquilo era o que o meu avô tinha feito durante muitos anos. Todas as tardes ia à redação do jornal e pedia para ver as provas tipográficas – naquela época não existia computador (a tecla “delete” seria a realização de meu avô). Quando encontrava uma notícia suspeita – e notícias suspeitas eram muitas, para os censores da ditadura – sacava a Pilot e, num gesto brusco, traçava o X que era a sua marca registrada. Agora, notem a coincidência: meu avô chamava-se Xisto, Xisto de Pádua Almeida. Ele estava convencido de que seu pai lhe dera esse nome por causa de um presságio. Feliz presságio. As visitas de meu avô levavam o desespero à redação. O diretor tentava argumentar, dizendo que o jornal não poderia sobreviver se não desse notícias; mas meu avô mostrava-se irredutível. Mais: não permitia espaços em branco na edição. As notícias censuradas tinham de ser substituídas por conselhos morais, que meu avô extraía de um livro chamado Guia de Todas as Virtudes, escrito por um
obscuro pensador espanhol do século dezessete. No porão de nossa casa meu avô guardava toda a coleção dos jornais que havia censurado. Era uma enorme quantidade de papel velho e mofado que, inclusive, servia de ninho para ratos. Mas ele não permitia que minha mãe se desfizesse daquilo. Ali estava o seu passado. O presente limitava-se ao inócuo, e simbólico, ato de riscar o jornal com a Pilot. Mas até disso acabou sendo privado. Lá pelas tantas começou a perder a visão – algum problema na retina, incurável – e breve não podia mais ler. Isto precipitou-o numa funda depressão. Não queria mais sair, não queria mais comer. Preocupado, papai pediu minha ajuda. Eu teria de ler o jornal para o homem todos os dias – e guiar a mão que empunhava a Pilot.
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Não era exatamente uma atividade prazerosa e eu a fazia com uma certa dose de má vontade. Mas aí descobri um jeito de transformar aquilo em diversão. Comecei a inventar notícias. Exatamente: inventava coisas que não tinham acontecido. Esse noticiário fictício, escrito numa folha de papel, era o que eu lia para meu avô. “Garota desfila nua num shopping”. “Estudantes promovem orgia como forma de protesto”. Coisas desse gênero. Meu avô escutava, a princípio incrédulo – pouca vergonha, pouca vergonha – e a seguir, sempre com meu auxílio, traçava um trêmulo X no jornal. Em um lugar qualquer, obviamente. Durante algum tempo distraí-me com essa perversa diversão. Lá pelas tantas, cansei. Já ia di-
zer ao meu pai que não contasse mais comigo, quando meu avô teve um acidente vascular cerebral. Depois de uns dias de coma, morreu. O jornal dedicoulhe um pequeno necrológio: “Faleceu ontem o estimado morador desta cidade, o senhor Xisto de Pádua Almeida...” Seguiamse algumas frases convencionais, e amavelmente mentirosas. Quando li aquilo soube imediatamente o que fazer: fui buscar a caneta Pilot de meu avô. Minha intenção era traçar ali um raivoso – e saudoso – X, um X bem grande. Infelizmente, não foi possível: a caneta tinha secado. A vida é assim: o tempo passa, as canetas secam e as pessoas morrem. Pouca vergonha.
Moacyr Jaime Scliar nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a 23 de março de 1937, de ascendência russo-judaica. Formouse em Medicina em 1962, pela UFRGS, quando já publica sua primeira coletânea de contos, Histórias de um Médico em Formação. De lá para cá são cerca de 50 volumes editados, a maioria com repercussão de público e crítica. Seus livros foram traduzidos para os EUA, França, Alemanha, Inglaterra, Espanha, Itália, Suécia, Noruega, Japão, Holanda, Argentina, México, Canadá, Israel e outros países. Suas últimas publicações foram A Mulher que Escreveu a Bíblia (romance, Cia. das Letras, Prêmio Jabuti 2000) e Os Leopardos de Kafka (novela, Cia. das Letras, 2000). 38 Continente Multicultural
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SABORES PERNAMBUCANOS
A antiga arte de usar do sal
“Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!” Fernando Pessoa (Mar Português)
A cozinha pernambucana esquece a recomendação médica e capricha no tempero que vem do mar
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a Santa Ceia pintada por Leonardo da Vinci, o saleiro está entornado diante de Judas. Nenhum alimento tem mais simbolismos do que o sal. Desde as mais antigas civilizações, o recém-nascido é banhado em sal, para protegê-lo das dores do mundo – sendo essa crendice oriental depois aproveitada nas cerimônias cristãs de batismo. Salgar a terra é retirar dela fertilidade e futuro. Derramar sal traz mau agouro. Diz-se que se conhece bem alguém quando comem, juntos, 30
kg de sal – ao longo de 30 anos, claro. Sem sal é aquele que tem pouca vida; só que, com sal demais, o sujeito pode é acabar sem vida nenhuma. Em Roma, chegou a ser usado como moeda. Os legionários eram remunerados com quantidades determinadas de sal, ou com dinheiro para sua aquisição – daí vindo a própria palavra salário (salarium). O caminho por onde chegavam as caravanas trazendo sal é, ainda hoje, um dos principais acessos a Roma – Via Salaria. Na Idade Média se guardava em potes artisticamente decorados, colocados à mesa de refeições – quanto mais longe dele, menos importante o comensal. Africanos e asiáticos o usavam na conservação de alimentos. Mas não foram os primeiros. Este hábito já existia entre os egípcios, quatro mil anos antes de Cristo. Daí nasceram as carnes curadas e defumadas e o hábito de salgar peixes – um processo desconhecido pelos índios brasileiros que, para assar e secar alimentos, usavam uma grelha de varas que denominavam “moquém”. Os portugueses já conheciam a tradição de secar ao sol frutas e peixes, especialmente bacalhau. Aqui estenderam esse processo às carnes. Assim nascendo carne-de-sol e charque – mantas de carne salgadas, expostas ao sol e ao vento,
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 40 Continente Multicultural
para enxugar e secar. O que difere uma da outra é a quantidade de sal colocada e o lugar de origem do seu preparo. O charque tem origem quíchua, (ch’arqui), é mais salgado, sendo originalmente fabricado no Sul; e a carne-de-sol, ou carne-do-sertão (prato típico do Nordeste), tem salgação mais leve, sendo, portanto, menos resistente. Nossos índios usavam pouco sal como tempero, por preferirem as pimentas – de todos os tipos, verdes ou maduras. Ao ingerir peixes ou legumes, colocavam diretamente na boca o “ionquet” – mistura de muita pimenta e pouco sal (conseguido pela retenção da água do mar em valas), avivando o sabor dos alimentos. A cozinha pernambucana é generosa no sal; e essa é uma herança tipicamente portuguesa. Até exageramos. Que nosso organismo deveria, segundo os médicos, merecer, no máximo, 5 gramas ao dia. Mas não estamos nem aí e ingerimos, em média, 12,3 gramas. Todo sal é ou foi do mar. Quando encontrado em terras distantes do litoral, é sinal de que ali, um dia, houve mar. A água marinha tem, em sua composição, diversos tipos de sais dissolvidos: carbonato de cálcio, sulfato de cálcio, sulfato de mag-
nésio, cloreto de magnésio e, sobretudo, cloreto de sódio – predominante no nosso sal de cozinha. É feito por evaporação solar, evaporação forçada ou mesmo extraído em minas de sal (sal-gema). Há grande diferença entre sal grosso e refinado. O primeiro é mais puro, mantendo todas as suas propriedades originais – o problema é que umedece com facilidade, dificultando o seu uso diário. Com o tempo, foi-se usando cada vez mais o refinado, ao qual acrescentamos aditivos de silicatos. Perdemos no gosto, mas passamos a poder usar saleiros. A medida usualmente recomendada, nas receitas, é a pitada de sal – o tanto que cabe entre o dedo polegar e o indicador. Uma pitada nos bolos e doces realça o sabor; e, nas claras batidas em neve, dará mais firmeza. Só que essa medida é muito vaga, a pitada de um jogador de basquete deve dar duas ou três das nossas, seres humanos normais. Nesse caso vale o bom senso. Em dúvida, faça como na vida. Seja prudente. Use pouco sal. Você quase sempre terá uma segunda chance; e poderá corrigir, depois. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
CARNE-DE-SOL Fabricação:
Ingredientes:
• Escolha um pedaço de carne da sua preferência: recomendando-se picanha, contra filé ou filé. • Lave e depois faça alguns talhos verticais, acompanhando a fibra da carne. • Cubra com bastante sal grosso e deixe exposta ao sol e ao vento, por 24 horas.
• 1kg de carne-de-sol • 2 litros de leite • 2 cebolas cortadas em rodelas • Manteiga de garrafa
FAROFA DE BOLÃO • Coloque em um pirex água quente, coentro e cebolinho picados, mais sal e manteiga. • Junte aos poucos a farinha de mandioca, mexendo sempre com um garfo, até que a mistura forme pequenos bolões escaldados.
FAROFA DE JERIMUM • Descasque 2 kg de jerimum, tire as sementes e corte em pedaços grandes. Cozinhe em água e sal. Escorra e amasse com garfo. • Junte manteiga e farinha de mandioca em pequenas quantidades, para que a farofa fique úmida. Salpique coentro picado.
Preparo: • Deixe a carne-de-sol no leite, durante 4 horas, para retirar o excesso de sal. • Escorra o leite e enxugue a carne. • Frite a carne com cebolas, colocando nela, de vez em quando, manteiga de garrafa. Quando estiver quase no ponto, leve ao forno por 15 minutos. • Sirva com farofa de bolão, farofa de jerimum e feijão verde; se quiser ainda mais, use macaxeira e banana-prata, ambas fritas.
FEIJÃO VERDE • Cozinhe o feijão com água e sal. Escorra e reserve. • Em uma frigideira coloque manteiga. Frite uma lingüiça cortada em rodelas. Acrescente cebola, tomate e cheiro-verde picados. • Junte o feijão verde.
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MIL PALAVRAS
noronha fernando de
Durante sete meses, o fotojornalista Bruno Costa, da agência olhONu, viveu no arquipélago de Fernando de Noronha, a 545 km do Recife. Voltou com “A Ilha e o Sol”, uma reportagem visual, reveladora de um olhar interessado na vida insular, suas paisagens e, sobretudo, sua gente, para além do cartão postal.
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LIÇÃO DE ARTE Retrato de Gilvan Samico, por Gil Vicente
AMI
FLÁVIO LAMENHA
Nascido em 15 de junho de 1928, o recifense Gilvan José Samico é considerado o melhor gravador em madeira do Brasil. Dono de uma carreira extraordinariamente coerente, ele vem, desde sua primeira gravura (curiosamente, em gesso), de 1953, caminhando para a construção de uma obra única. O gosto pelos paralelismos, pela simetria, pela flora e fauna, pelo tempo suspenso e a figura hierática, já se anuncia desde as primeiras matrizes, passando pela grande virada, no início da década de 60, quando abandona definitivamente o clima noturno predominante em seu trabalho e, graças ao intercâmbio criativo com o cordel, descobre a força ordenadora da luz. Neste momento, não só as tendências latentes se intensificam, como o artista descobre uma linguagem exclusivamente sua, num universo exclusivamente seu. Sim, porque, apesar de utilizar referências populares e mitos arquetípicos, dá a todo esse material um tratamento altamente personalizado. Samico começa a interessar-se profissionalmente pela gravura em 1957, ao estudar com Lívio Abramo, em São Paulo, e, no ano seguinte, com Oswaldo Goeldi, no Rio. Segundo o crítico Frederico Morais, esse contato foi extremamente fértil para o artista pernambucano. Abramo explorava ao máximo a variedade de tramas, na fronteira entre a figura e a abstração, enquanto Goeldi seguia uma linha expressionista, com cortes precisos criando atmosferas pesadas. Com um, Samico aprendeu o gosto pelas texturas elaboradas; com o outro, a contenção formal. No início dos anos 60, ao estudar a literatura de cordel e suas ilustrações, passa a valorizar a linha preta e o espaço branco, mudando de uma temática predominantemente urbana e documental, para uma ambientação rural, onde impera a imaginação carregada de mitos do sertanejo. Com uma ressalva da maior importância: Samico não vai “ilustrar” o romanceiro popular, mas, sim, criar um universo particular em que se mesclam – também – informações eruditas (mitologia, relatos bíblicos, arquétipos) e intuições pessoais. É dessa mescla de fontes e
Os mistérios da vida e os reinos do fantástico Há mais de 40 anos, o xilogravurista Gilvan Samico vem construindo uma obra em que se unem impecabilidade técnica, felicidade temática e criatividade brilhante
CO Marco Polo
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dividir a gravura em “compartimentos”, onde são figurados guerreiros, mulheres, pássaros, serpentes, bandeiras, cometas e rios, o artista também os imobiliza, como se fizessem parte de tempos congelados que se interrelacionam. O que cria no espectador a sensação – ou melhor dizendo, o encantamento – de estar diante de cenas que aconteceram, acontecem e acontecerão para sempre. O que nos leva a outro aspecto da arte de Samico. Sua sacralidade. O crítico Jacob Klintowitz foi quem proclamou Samico como um inventor de mitos. Na verdade, o artista vai ao inconsciente coletivo, onde nadam e navegam os arquétipos, e, ali, pesca imagens imantadas de complexas significações, que reelabora a partir de suas referências particulares, fazendo uma espécie de arco tenso de onde parte uma seta certeira, sua obra. Em outras palavras, coube a este gravurista pernambucano, pertencente à linhagem dos que trabalham com o enigma, traduzir estas imagens na sua figuração pessoal e ordená-las de forma a que habitem um universo coerente. Através de uma ótica imbricada na cultura popular nordestina, Gilvan Samico rege uma ópera cósmica, na qual seus personagens – galos de ouro, damas da noite, virgens, feras, anjos, caçadores de serpentes – fazem as manhãs, navegam o barco do destino, regem o sol, triunfam sobre os demônios, dominam o dia, guardam os mistérios da vida e abrem os reinos do fantástico. FLÁVIO LAMENHA
A queda do anjo, 1971, pintura a óleo de Gilvan Samico
informações que nascem gravuras como Daniel e o leão (61), O boi feiticeiro e o cavalo misterioso (63) e Suzana no banho (66). Nestes trabalhos já emerge uma nova linguagem. Diz Frederico Morais que Samico substitui o negro goeldiano e a fartura textural de Abramo, realizando uma “operação de limpeza do espaço gráfico, simultaneamente à introdução de um tempo fora do tempo, mitomágico. A figura humana é pouco mais que um logotipo e a natureza é reduzida ao seu estrutural básico. É um mundo lavado, despoluído, descontaminado e que encaramos como que pela primeira vez”. Tudo isso, aliado à descoberta de um veio temático altamente enraizado na cultura popular, contribuiu para tornar Samico “um dos mais brilhantes gravadores do País”, na afirmação do crítico. Um ponto que salta à vista no trabalho de Samico é o cuidado tanto na elaboração quanto na execução de suas gravuras, até porque só produz uma por ano. Para Frederico Morais, “essa extrema parcimônia criativa é claramente indicativa de sua vontade de realizar uma gravura impecável em todos os sentidos. Impecável na técnica: tudo em sua gravura é imediatamente apreensível, transparente. Não há truques, macetes, subterfúgios. Impecável na linguagem: clara, concisa, depuradíssima. Impecável na escolha dos temas. Impecável na narrativa, que combina rigorosa simetria e compartimentação espacial com uma temporalidade específica”. Neste último aspecto, fica nítido que ao
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Homem e cavalo, xilogravura, 1958, que já prenuncia aspectos posteriores: homens e animais, equilíbrio e poses hieráticas
O primeiro chamamento Samico fala do início de carreira, como “tropeçou” com a técnica de gravura, seus métodos de trabalho e quando descobriu o caminho que o consagrou Eu nasci no Recife e cresci em Afogados. Fiz o primário no Patronato das Crianças, do Governo. Sempre fui um aluno muito ruim, mas da aula de desenho eu gostava. Eram aulas sem muito direcionamento, então tinha a fachada da escola e eu ia desenhar. Mas não fui desses meninos que vivem o tempo todinho com um pedaço de papel, como meu neto aqui, que vê televisão sem parar de desenhar. Houve uma coisa, eu tenho a impressão que teve uma importância nessa minha vontade de fazer coisas. Até hoje eu não sei quem foi que fez aquilo que eu vi... Mas, lá em Afogados morava também uma tia minha que tinha dois filhos. Um dia, na casa dela, encontrei um caderno de desenho com uma cabeça de mulher, artista de cinema, desenhada. Rapaz, eu olhei aquele
negócio e achei uma coisa tão... Como alguém é capaz de copiar tão bem a ponto de eu reconhecer que era uma artista de cinema? Eu não sei se foi isso que detonou a coisa, mas o fato é que eu não tenho qualquer lembrança de outro chamamento. De repente me vi desenhando, copiando. Estampa de santo, capa de revista, tudo. Eu não tinha referência nenhuma, lá em casa não tinha um quadro sequer. Então fui desenhando, até que um dia meu pai, de tanto me ver futucando aquilo, se intrigou com a coisa. Ele disse: “Eu tenho um amigo que é pintor, vou levar você lá pra ele dizer alguma coisa sobre o seu trabalho”. Juntei aquela papelada e fomos no ateliê de Hélio Feijó. Hélio olhou aquele negócio e disse: “É... o que está ruim aqui é que o seu modelo é uma coisa já pronta. Em vez de você copiar capa de revista, copie o que você vê, o que passar na sua frente!” Foi uma grande lição. Eu vivia numa época de espaços muito abertos, habitados por bichos, tinha muita árContinente Multicultural 53
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Matriz. O Atelier findou-se ali, por volta de 1957, quando eu já tinha resolvido dar uma saída. Escolhi São Paulo. Já conhecia a cidade rapidamente e era um meio mais buliçoso, já tinha museu de arte, era uma cidade grande, com outros atrativos do ponto de vista artístico. Fui saber que o Atelier tinha sido liquidado muito tempo depois. Havia uma conta de aluguel enorme. Um dia (a coisa eu sei por alto), o dono adentrou pelo Atelier e foi pegando tudo o que estava nas paredes, pelos cantos, e foi jogando no quintal. Foi assim que aqueles meus primeiros trabalhos, quase todos se perderam. Alguma coisa Léo, mulher de Zé Cláudio, conseguiu salvar... Um retrato de um dos participantes do Atelier, Mário Lauritzen Berguen, e mais uma cena que eu tinha começado num pedaço de compensado, daquela favela que você via da Ponte Velha.
Em Conversão de Santo Humberto, 1962, o artista já utiliza a linha negra sobre espaços brancos e usa temas bíblicos com “roupagem” nordestina
vore... Então eu convivia com esses espaços e com cabras, bois, cavalos, passarinhos, cobra, sapo. E tudo isso passou a ser minha referência. Nessa época já estava formada a Sociedade de Arte Moderna do Recife, num apartamento em que Hélio morava. Então ele disse: “Olhe, aqui a gente se reúne. Venha sempre”. Eu não era mais aquele menino, já estava grandinho. Aí eu comecei a freqüentar a Sociedade. Ela era visitada por jornalistas, fotógrafos, poetas e intelectuais. Era uma coisa muito boa, com muito bate-papo. E freqüentavam também outros jovens com pretensões artísticas, inclusive Abelardo da Hora, que já tinha feito exposições, era um artista já com certo nome. Bom, lá pras tantas, Abelardo falou: “Olhe, esse negócio aqui está muito bom, mas a gente podia aproveitar esse tempo pra fazer alguma coisa e não só para ficar nesse batepapo”. Quer dizer, nada impedia que se fosse lá de vez em quando, mas ele teve a idéia de juntar essa miuçada toda de jovens e fundar o Atelier Coletivo, que tinha um nome desse tamanho: Atelier Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife. E aí a gente começou a se reunir e desenhar numa das salas do Liceu de Artes de Pernambuco, ali do lado do Teatro Santa Isabel. Lá, inclusive, tinha estátuas, mãos, pés, ornatos, tudo em gesso. Abelardo instituiu a coisa da pose rápida. Porque não tinha modelo... Então você tinha meio minuto pra esboçar uma figura. Depois trabalhava mais o desenho. Aí, sim, comecei a trabalhar junto de outros artistas ou futuros artistas. Surgiam dificuldades, a gente mudava de casa, até que terminou na rua da
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A primeira gravura A gravura foi uma espécie de topada, um acidente de percurso. Eu nunca tinha me interessado por gravura. Havia no Rio Grande do Sul o Clube da Gravura, muito conhecido. Seguindo o exemplo, Abelardo pensou em fazer aqui o Clube da Gravura da Sociedade de Arte Moderna. Foi assim que eu fiz a minha primeira gravura. Não foi xilogravura, foi “gessogravura”. Numa placa de gesso. Não por minha escolha, Abelardo que achou que era muito fácil fazer um contorno de madeira e encher de gesso em cima de um vidro. Quando secava estava polido e tudo. Foi assim que ele justificou. É um material horrível pra se gravar, quebradiço. Eu dizia: “Mas, Abelardo, a gente com tanta madeira...”, mas não tinha jeito. Então, eu, em casa, pegava um pedacinho de madeira e assim fiz uma ou duas gravuras. Minha experiência, quando fui pra São Paulo era essa. Mas eu já tinha mandado para o Salão daqui. E inclusive ganhei um prêmio, porque o único gravador que concorreu ao Salão fui eu (risos). Eu nunca pensei em ser gravador e acabei sendo ajudado por várias pessoas. Não é engraçado? Quando eu anunciei que ia para São Paulo...
Olhe, eu conhecia naquela época Francisco Brennand, conhecia Aloísio Magalhães... Com Aloísio eu não tinha muito contato, mas quando eu ganhei o prêmio do Salão ele era membro do júri. Então, ele me encontrou e disse: “Você está indo pra São Paulo fazer o quê?” Eu disse: “Estou indo pra dar uma volta”. Ele disse: “Eu sou muito amigo de Lívio Abramo, você quer uma apresentação pra ele?” Eu digo: “Quero”. Aí Aloísio fez um bilhetinho e eu me mandei pra São Paulo. Ao mesmo tempo (isso é uma coisa de que nunca falei) Brennand me fez uma pergunta muito parecida: o que eu queria fazer e essa coisa toda. Aí disse: “Eu tenho um grande amigo lá, uma pessoa que tem muita ligação
REPRODUÇÃO
A gravura foi uma espécie de topada, um acidente de percurso, porque eu nunca tinha me interessado por essa técnica. Por sugestão de Abelardo da Hora fiz a minha primeira, uma “gessogravura”
com as artes; eu vou fazer uma cartinha pra ele porque é uma pessoa de quem você pode precisar”. Eu digo: “Está certo”. Aí ele fez. E foi bom porque era alguma coisa assim como uma segurança. Ele mesmo me chamou um dia para jantar na casa dele. Bom, isso vai dando a medida de como eu fui chegando para a gravura. Chegando lá eu procurei Lívio Abramo, e ele disse: “Eu estou ensinando gravura na Escola de Artesanato (que pertencia ao Museu de Arte Moderna de lá), você quer uma bolsa?” “Quero.” Fui aceitando tudo, né? Aí, no outro dia estava eu lá, fazendo as minhas primeiras experimentações em gravura em linóleo, porque ele dava aula em linóleo.
Por que você está gravando no escuro? A bolsa só me dava direito a receber aula na Escola. Eu era funcionário público, trabalhava no Ipsep, e havia umas facilidades naquele tempo. Você podia requerer três meses de licença para fins culturais. Não era uma maravilha isso? Me deram tranqüilamente, não precisei implorar nem me apadrinhar. Além disso, tinha férias e direito a uma A mãe dos homens, 1981. Universo mítico recriado pela personalidade do artista
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Um coice de mula Eu não tinha um estilo. Se você analisar 56 Continente Multicultural
meu trabalho vai ver que o que aparece de Goeldi é mínimo. Eu tenho mais a sinalização pra Lívio do que pra Goeldi. Sendo que não é nem um nem outro, porque felizmente eu escapei da influência, dessa que vai até o limite do sujeito copiar. Escapei por conta de uma figuração e temática diferentes. Somando tudo foram sete anos que passei fora daqui. Vim umas três vezes para tratar do emprego. Talvez não tenha sido muito legal, mas eu não me penitencio por nada, porque estava fazendo um trabalho, não estava vadiando, sendo pernambucano estava servindo a Pernambuco, e não levava dinheiro nenhum, procurava ganhar lá, no Rio. Já aí eu comecei a participar de Salões, as gravuras começaram a ser notadas, a crítica começou a falar. As pessoas acham graça e pensam que é modéstia, eu digo que tenho mais sorte do que talento; se eu não tivesse essa sorte, não adiantava nenhum talento do
As pessoas acham graça e pensam que é modéstia, mas eu digo que tenho mais sorte do que talento; se eu não tivesse essa sorte, não adiantava nenhum talento do mundo. Eu não iria poder fazer o que fiz FLÁVIO LAMENHA
Samico hoje, produzindo apenas uma xilogravura por ano
licença-prêmio. Era pago como se você estivesse trabalhando. Aí fui me virando, morando em pensão, quarto, pardieiro... Mas chegou um tempo em que o dinheiro começou a se esgotar; precisava arranjar um ganha-pão ou vir embora. Nesse momento aparece lá em São Paulo um primo meu, esse em cuja casa eu vi um caderno com a cabeça desenhada. A gente se encontrou e, conversa vai, conversa vem, saiu esse assunto de que eu precisava deixar São Paulo. “Vá pro Rio!” Ele morava no Rio, tinha casado lá, tinha um apartamento: “Você fica um tempo com a gente”. E assim foi. Aí vem outro momento importante: quando eu anunciei a Lívio Abramo que ia embora pro Rio, ele disse: “Eu sou compadre de Oswaldo Goeldi. Você quer uma apresentação pra ele?” A história se repete... Eu disse: “Quero”. Aí fui embora para o Rio de Janeiro. Chegando lá, entreguei a Goeldi a apresentação de Lívio: “Ah! grande figura e tal”. Não era muito expansivo, mas uma pessoa boa de se conviver. Ele dava um curso livre numa salinha, numa torre na Escola de Belas Artes; tinha uns dez alunos. Lá comecei a fazer muito pouca coisa. Eu escutava mais. Sempre foi assim. Mesmo com Lívio. Timidez tinha até o couro cabeludo. Então eu ficava lá pelos cantos, e isso chamava até a atenção. O próprio Lívio dizia: “Samico, por que você está gravando no escuro?” (risos). Mas a minha permanência com ele foi muito de escutar o que ele dizia do trabalho dos outros, de umas poucas gravuras que eu fiz, a maneira como ele fazia, como encontrava o lugar certo pra mexer na gravura. Eu era muito tímido para trabalhar em grupo; mesmo vivendo com um grupo. Na hora, de frente para um cavalete, chegava um atrás, eu parava. E aí o que eu pude aprender foi uma coisa mais de ouvir, de observar.
mundo. Eu não iria poder fazer o que fiz. Então, numa dessas minhas vindas, no início dos anos 60, tive um encontro com Ariano. Eu não estava satisfeito com a gravura que estava fazendo. Era muito noturna e não tinha uma sinalização de que eu estava fazendo uma arte no Brasil. Eu disse isso a Ariano. Foi quando ele me disse: “Samico, porque você não dá uma mergulhada no mundo do cor-
REPRODUÇÃO
O Sagrado, 1997. Segundo os críticos, o artista pernambucano ressacraliza a arte
del, dos gravadores populares?” Rapaz, isso aí foi mesmo que um coice de mula. Quando eu era menino, ouvia as histórias de Juvenal e o Dragão e não sei o quê. Mas não tinha sido chamado de forma nenhuma a ter isso como fonte. Ele botou uma bomba nas minhas mãos. Apesar de toda a amizade que eu tinha com Ariano, não estava obrigado a seguir seu conselho. Mas aquilo ficou presente. A única coisa que eu me perguntava era: como eu ia abordar uma coisa dessas que já estava feita? Onde estava o filão em que eu poderia mergulhar? Fui tateando, porque nada acontece de repente. Em meu trabalho as mudanças acontecem devagar, mesmo quando eu dei um salto pretendendo chegar à coisa do cordel. Pensei: bom, a capa do folheto, eu não vou pra ela como uma fonte imediata, porque é uma coisa graficamente presente. Então, a minha saída vai ser o texto. Quer dizer: se você resolver ilustrar um cordel, você pode fazer o que muita gente faz: lê a história, pinça os elementos importantes para você e constrói a sua imagem em cima. As características da gravura de cordel eram diferentes da minha. Eu trabalhava com a noite, com a linha branca. Então, tive que fazer um remanejamento. Percebi uma indicação do que eu devia usar: os espaços brancos, a linha preta. Comecei trabalhando nessa direção e a gravura começou a clarear. As primeiras ainda deixavam o que eu chamo de resto de madeira, aqueles cortes que você não controla muito, só até certo ponto, mas eles ficam como uma surpresa. Quando você imprime, diz: puxa, eu não sabia que tinha
acontecido isso. Fui tirando aos poucos, até que reduzi a gravura numa figuração toda em linha, alguns chapados pretos, outros com um ligeiro traçado pra animar a coisa. Então você veria a figura, e o resto, tudo branco; a figura e esse chapado. Não tinha mais nenhuma sugestão de céu, de nuvem, de nada que lembrasse um espaço naturalista. De repente, o sentido de profundidade, de perspectiva, some da minha gravura, que vira, mesmo quando tem paisagem, uma coisa num plano só. Qualquer sugestão de profundidade é dada pelas justaposições de plano; não tem linha de fuga, não há nenhum interesse em que uma coisa lá atrás seja menor do que a da frente pra poder dar esse sentido de profundidade. A minha gravura chegou a ficar econômica de elementos e de tratamento. Não foi um processo muito racional, não. Até hoje, eu tenho um negócio que escapa ao raciocínio. A gravura tem uma lógica dentro dela mesma, mas a lógica externa que a gente procura saber (“por que isso?”) é meio complicada... A gravura obedece a uma lógica interna... A gravura popular também não usava cor; agora estão usando. Aí, sim, é um acento diferente. A cor que eu usava era a da diferenciação dos cortes, das tramas, a gama de valores que tem dentro disso aí. Mas quando eu começo a pesquisar esse novo filão, então começo a usar a cor. Uma das explicações disso pode ser da minha frustração de pintor (ou de não-pintor)... Quer dizer, eu nem sei, porque pintura minha tem aí à beça, pode ser até que digam: “É pintura, mas não é boa”. É um direito Continente Multicultural 57
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que todo mundo tem. Mas eu já estava carimbado. Ninguém conhecia pintura minha porque eu vivia restrito à gravura. De certa forma, tem uma frustração. É um pouco do que acontece com alguns artistas que, abordando mais de uma técnica, são mais reconhecidos em uma delas em detrimento da outra. Mas eu gostaria de ter o prestígio que tenho, não só como gravador, mas também como pintor. Aí, se não tenho como mostrar minha pintura, boto cor na minha gravura.
Uma estrela é uma estrela
Duas das mais recentes xilogravuras de Gilvan Samico. O devorador de estrelas, 1999, e, na outra página, Rumores de guerra em tempos de paz, 2001
No meu trabalho, uma estrela é uma estrela. Ela é feita rigorosamente. O desenho pode ser executado com ajuda de régua, compasso etc. Porém, para gravar, eu o faço à mão livre. Para fazer uma circunferência, você pode simplesmente deixar meio achatada de um lado, é a sua maneira de fazer uma geometria livre, sensível, como dizem... Eu, não; faço no compasso, porque na minha gravura, ela tem que ser perfeita. Se houver qualquer coisa troncha isso vai aparecer, porque o todo pede que cada elemento seja muito bem colocado, pensado e executado. Eu só faço uma gravura por ano, é verdade. Agora, isso não significa que eu passe um ano debruçado numa matriz. Eu passo mais tempo preso ao projeto da gravura, do que à gravura. Se eu estou com o projeto todo pronto, e eu vou para a madeira, eu lhe garanto que em vinte dias eu lhe dou nem que seja a primeira impressão. Pra análise, pra fazer pequenos ajustes. Que não podem ser correções no sentido amplo. Porque se você mexe numa área com a qual você não está satisfeito, você está fazendo só a correção possível. Chega a um ponto em que se você não atinge o que quer, perde a matriz. A partir de um certo ponto, se ela estiver errada, não dá mais; tem que fazer outra. O que você pode é ajustar uma tonalidade com a outra, uma trama que tem que se contrapor à outra.
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Há uma espécie de enxugamento progressivo no meu trabalho. Eu nunca sou excessivo, nunca; nunca, entre aspas, porque tem gravura que eu posso lhe mostrar que tem coisas de dez passarinhos, uma cobra, dois peixes... Mas é o excessivo necessário naquela gravura. Outras são mais enxutas, mais secas: dois, três elementos mais importantes, e, no entorno dela, um número pequeno de coisas, que, naturalmente, têm sua importância também. Às vezes, quando há uma quebra do contorno da gravura, uma entrada, uma triangulação, é porque eu me dou ao direito de brincar um pouco com as margens, com a quebra do retângulo. Na maior parte das minhas gravuras tem uma fita que é um contorno duplo nas margens, que entra, sai... Há uma preocupação de criar o que eu chamo uma espécie de arquitetura, que é o arcabouço onde possíveis histórias possam acontecer. Nessas comparti-
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mentações às vezes há alguma coisa que entra e vai sair mais adiante, ela deixou um espaço contido. E ali acontece uma cena. Mas não quer dizer que o que acontece mais adiante tenha relação com a primeira. Há uma certa liberdade. Acho que as figuras se resolvem dentro da gravura porque não há nenhuma dissonância. Nunca ninguém me perguntou porque esse pássaro era maior do que esse outro elemento. Não vejo ninguém dizer: “Mas rapaz, um passarinho deste tamanho, maior do que uma figura humana!” Isso é sinal de que ele está no lugar certo, que o tamanho teria que ser esse.
O título pode ser dica e “eninhado” O título de uma gravura pode ser uma dica, às vezes em função de um elemento, uma situação. Eu tenho uma gravura chamada O Diálogo. Quando a fiz, não pensei em diálogo. Aí é que está: a coisa vem de trás pra frente. Dentro dessas com-
partimentações ela tem uma figura de homem, de um lado, e uma figura de mulher, do outro. No meio um estandarte, uma serpente. Na hora de botar o título, tinha outros elementos que eu podia ter escolhido. Podia ser Homem e mulher, podia ser Um casal, podia ser outra coisa que tivesse relação com algo à parte. Tem uma outra, em forma de tríptico; uma serpente de um lado, um peixe do outro, uma figura central de um pássaro superposto a uma cruz. Na base, um vegetal, folhas em chamas. Seria fogo? No estudo não tinha essa cruz. A figura central era um pássaro de asas abertas, com um ornato, uma estilização de flores. Aí me vem de repente: o pássaro com as asas abertas está lembrando a crucificação... Botei uma cruz atrás. Aí ela ganhou essa coisa mais objetiva. Acrescentei em cada asa uma espécie de olho, que podem lembrar sutilmente as chagas das mãos. Ninguém ainda identificou aquilo como chaga, eu é que na minha conturbada cabeça fiz esse tipo de associação. Então, um título aí é curioso. Por que não Fênix? Agora, me diga: podia ser a Fênix tendo uma cruz por trás? A cruz está associada ao Crucificado; ao mesmo tempo é como se ela fosse um renascimento. Então, é um “eninhado” danado, não é? Eu estou falando isso agora que estou tentando chegar a um ponto de análise, constatação; mas no momento de criar não existe nada disso. Isso surge naturalmente. O título é que gerou toda essa especulação...(risos).
Armorial sem saber Essa coisa de ser chamado de “gravador armorial”... Eu fazia uma gravura inspirada no popular, ainda que eu nunca tenha querido ser artista popular, sou um artista erudito. A essência do Armorial é a união do popular com o erudito. Um dia Ariano me apareceu e disse: “Eu acabei de criar um movimento e você está nele”. É claro que ele sabia que eu iria me engajar, era uma questão de coerência. Agora, Ariano nunca pegou na minha mão pra fazer um trabalho meu. Então, eu não aderi ao Movimento Armorial, eu já era armorial antes, sem saber! Depoimento a Cristiano Santiago Ramos e Marco Polo
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MARCO ZERO
Política cultural ou a outra cultura do improviso Para reforçar seu apelo eleitoral, governos e prefeituras privilegiam os eventos de massa em detrimento das atividades e equipamentos culturais
A
política que viceja no Brasil é a eleitoreira, a casuística. Continua faltando ao País uma política industrial, agrícola, indigenista e, para não estender a lista, uma política cultural. Por incrível que pareça, na década de setenta, os que discutíamos um conceito mais que estrito, operacional, de cultura, já aplicávamos uma terminologia especial para designar as ações culturais efêmeras e as permanentes, chamando as primeiras de eventos e as segundas de atividades. Já considerávamos as atividades como atribuição especificamente estatal, pelo seu teor formativo, e os eventos, mais próprios para serem financiados pela iniciativa privada.
Em artigo para o encarte “Caderno T”, da revista Bravo!, Fernando Cochiarale, curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, diz que “a lógica do entretenimento e do espetáculo vem sendo hipervalorizada, ao passo que o trabalho continuado e permanente, essencial para a vida cultural, mas quase invisível para o grande público, vem recebendo poucos investimentos públicos e privados”. Bem, esse “trabalho continuado”, a que eu chamo de atividade, certamente não atrairá a iniciativa privada, o que considero até compreensível dentro da lógica de mercado, pois não cabe ao empresariado investir na formação de novas gerações de produtores culturais, ou numa espécie de indústria de base da cultura, que se move através de ateliês coletivos, escolas de
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música, de dança, de atores e tantas outras agências de arte-educação. As empresas estão interessadas em financiar grandes espetáculos porque obtêm retorno imediato em termos de reforço de marca para seus produtos. Esses grandes eventos, que exercem uma poderosa atração sobre a mídia, nem sempre são de péssima qualidade estética, como o são os shows das duplas sertanejas, dos grupos de pagode e de funk. Basta lembrar que a Souza Cruz apoiou durante 16 anos a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém e marcaram épocas eventos como Free Jazz, Carlton Dance, Concertos Eruditos em São Paulo e Hilton de Pintura e Gravura. A partir de janeiro de 2003, eventos como aqueles deixarão de ser apoiados pela Souza Cruz, em virtude da sanção do meio-fascista Projeto de Lei 63/99, do ministro da Saúde, José Serra, que proíbe a publicidade de cigarro nos meios de comunicação e em locais públicos e fechados. O ministro da Cultura deveria ter pedido demissão, ou pedido a FHC que repassasse para o seu Ministério, pelo menos, os R$5,5 milhões anuais que aquela companhia investe só em música. Se as empresas investem nos espetáculos de massa, tendo como objetivo a manutenção ou ampliação de sua fatia no mercado, o Estado age sem planejamento no plano cultural, politicamente pressionado. A atribuição estatal de investir prioritariamente em atividades culturais de caráter formativo-permanente ou em eventos que, apesar de seu alto valor estético, não interessam ao grande público, vem sendo desvirtuada para atender, quase sempre, a interesses partidários. Estados e municípios privilegiam os eventos de massa em detrimento das atividades e equipamentos culturais. Se as empresas assim agem para reforçar a sua marca ou a imagem de seus produtos, governos estaduais e municipais o fazem para reforçar seu apelo eleitoral, seu poder de voto. E o resultado é a indigência cultural abafada pelo tumulto dos espetáculos de massa. O resultado dessa política eleitoreira foi colhido pelo próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1999, pois 92% dos municípios brasileiros não contavam com sala de projeção; 83% não tinham museus; 85%, nenhum teatro; 64,5% não tinham livraria, e um, em cada
cinco municípios, não dispõe de biblioteca pública. Quanto a centros de formação artística, o IBGE não pesquisou a sua freqüência, mas, se não há teatro, como esperar a existência de um curso de formação de atores, por exemplo? Por experiência pessoal, posso registrar que, para governos de esquerda, a cultura “é superestrutura” e será beneficiada mecanicamente à medida que as “condições materiais” o permitirem. Na escolha de secretários de cultura, por exemplo, eles “só pensam naquilo”, isto é, no voto. Preenchem a secretaria de Cultura por último, para atender a um partido aliado descontente. E o que é que acontece? É tudo improvisação, desde a escolha do nome do titular. E nome improvisado não tem argumento para discutir uma possível política cultural. Geralmente não sabe precisamente o que é cultura, e, por isso, também não sabe com que conceito trabalhar, se com o filosófico, se com o antropológico, se com o estrito, se com o operacional. Nomes improvisados, assim, são ótimos para atender aos cabos eleitorais que dizem “conhecer todo mundo na área cultural”. E o dinheiro do povo termina virando altos cachês, que são pagos aos artistas da moda pelo Estado, improvisado de empresário cultural.
Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
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MUSEUS
O Brasil precisa do Guggenheim?
Na página oposta, o bairro do Recife Antigo, que integra o cinturão cultural do qual poderá fazer parte o Guggenheim Recife
bilidade em cada local, mais os de instalação e manutenção (todos por conta das cidades), e a possível autonomia de direção e curadoria dos museus centrada em Nova York, começou-se a sentir a urgente necessidade de um amplo debate. Afinal, o Brasil precisa do Guggenheim ou o Guggenheim precisa do Brasil? Os artistas se dividem. Nelson Leirner, do Rio de Janeiro, é radicalmente contra: “É mais um passo no caminho da nossa colonização. O Guggenheim vem receber benefícios do Governo, que MOACYR AMANCIO / AE
Abaixo, Guggenheim de Bilbao
Q
uando surgiu a notícia de que o museu Guggenheim poderia abrir uma filial no Brasil, o primeiro momento foi de euforia. Ao se anunciar que as quatro cidades prováveis seriam Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador e Recife, criou-se um clima de rivalidade. Depois veio a possibilidade de que o Rio sediaria uma matriz e as outras cidades, três filiais, o que serviu para acalmar os ânimos. Mas, diante dos altos custos para os estudos de via-
O Guggenheim precisa
do Brasil?
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POAULO LIEBERT / AE
GEYSON MAGNO / LUMIAR
Nelson Leirner, artista plástico (Rio de Janeiro)
não investe nas nossas instituições”. Já Daniela Steele, da Bahia, enfatiza: “Sou totalmente a favor. Os museus brasileiros são bastante tradicionais. O Guggenheim tem outra atitude”. Roberto Peixe, secretário de Cultura do Recife pondera que “a vinda do Guggenheim para o Recife isoladamente não tem sentido. Estamos lutando para trazê-lo, sim, mas para integrá-lo num contexto mais amplo, o Complexo Cultural RecifeOlinda, que envolve as regiões do Pina, Brasília Teimosa, cais José Estelita, Recife Antigo, Memorial Arcoverde e Sítio Histórico de Olinda”. Para isso, ele conta com o apoio técnico e institucional do Governo de Pernambuco, que vem realizando um estudo minucioso de diversos aspectos da questão. “É um contrato complexo, envolvendo legislações diferentes, internacionais”, explica Celecina Pontual, assessora especial da vice-governadoria do Estado. O impacto urbanístico do projeto e a atração de investimentos também estão sendo avaliados. “Uma vez que deverá haver quatro estados envolvidos, poderá ocorrer um barateamento dos custos gerais, mesmo porque estamos contando com a capacidade de investimento do empresariado não apenas local quanto do País como um todo”, completa Pontual. O Rio de Janeiro também pleiteia a vinda do museu como âncora de uma ampla reforma urbana. Já Pernambuco vem demonstrando desenvoltura na revitalização de espaços. Haja vista o bem-
sucedido (embora ainda incompleto) Bairro do Recife, bem como os projetos em andamento do Paço Alfândega e da Tacaruna, que deverão se tornar grandes complexos de cultura e lazer, sem falar na idéia de utilização do Matadouro de Peixinhos como um centro cultural. Para o crítico paulista de arte, Tadeu Chiareli, o Guggenheim deveria vir para o Recife. “São Paulo e Rio já contam com um sistema razoável de museus e galerias. O Recife tem dado importantes contribuições para a arte brasileira, mas ainda continua produzindo de maneira periférica. A vinda do Guggenheim movimentaria o mercado de arte da cidade”, afirma. Por seu lado, a Fundação Guggenheim parece determinada a trazer o museu para o Brasil. Tanto que enviou convite às quatro cidades brasileiras selecionadas, para que visitem o museu de MP) Bilbao. (M
Sou absolutamente contrário. Acho que é mais um passo no caminho da nossa colonização. O Guggenheim é como a McDonald’s, é uma franquia. Vem para cá receber os benefícios do Governo – que não investe nas nossas instituições, mal cuidadas, falidas – para realizar exposições do interesse deles, como as roupas do Armani ou as motocicletas Harley-Davidson. Isso vai nos ajudar em quê? Ele não traz nenhum benefício. O Guggenheim é uma cadeia de lojas falida, que precisa de filiais para se sustentar, como Bilbao, Alemanha, o Brasil. Também não é ousado, de jeito nenhum. É um museu tradicional, como outro. As exposições de roupas ou de motos são ousadias no terreno comercial. Mas é difícil encontrar um museu ousado, que seja ativo no sentido de criar espaços para artistas, principalmente os jovens.
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LUIZ SANTOS
Museu-grife,
a “cereja” de um bolo maior
Vista aérea do píer da praça Mauá, no Rio de Janeiro, que deverá ser o local de instalação do Guggenheim Rio
JONAS CUNHA / AJB
As cidades de Salvador (acima) e Curitiba (na outra página) também estão pleiteando a presença do famoso museu
M
uita expectativa: afinal, primeiras negociações começaram. No momento, qual cidade brasileira será os ânimos estão mais calmos e as partes envolvidas a próxima sede do museu- mais silenciosas, pois a fase é de estudo e de tentatigrife mais badalado do va de entendimento entre a prefeitura do Rio de Jamundo, o Guggenheim? neiro e a Fundação Guggenheim para que se possa A torcida pelo Rio de Ja- chegar a um acordo determinando o papel de amneiro é grande, mas a bas as partes quanto à possibilidade de criação do questão é bastante polêmica e envolve uma série de museu na cidade. A procuradoria, onde transita um outras considerações que vão além da simples pre- contrato de viabilização da vinda do Guggenheim sença imponente de uma obra do porte da que se para o Rio, prefere não antecipar nada. vê em Nova York, por exemplo. Isso porque a O fato é que quando o museu-grife chega, construção do museu, se vier a acontecer em áreas ele apenas chega. Não traz consigo dinheiro e nem cariocas, vai ser apenas parte de um projeto maior, recursos para bancar sua existência. Cabe ao parincluindo a revitalização de uma área degradada na ceiro estabelecer as metas de como angariar financidade, a zona portuária. ciamento. E, segundo o assessor de comunicação A região contrasta com os pontos turísticos do secretário de urbanismo Alfredo Sirkis, Eduarmais bonitos do Rio e precisaria urgentemente de, do Nascimento, a prefeitura está se propondo a ser digamos, um upgrade. Um Guggenheim cravado articuladora junto à iniciativa privada para o deseali, mais precisamente no Píer Mauá, seria um estí- nho de uma triangulação financeira no processo. mulo para levantar a poeira e incentivar uma reno- Mas a secretaria avisa: o museu é apenas a cereja do vação geral do lugar, nos moldes de outros píeres do bolo de um projeto maior. mundo que também renasceram das cinzas e hoje O dinheiro público seria canalizado, não pasão referência turística obrigatória. ra bancar o colossal Guggenheim, mas para (isso O processo, no entanto, é lento e também inclui a participação da iniciajá gerou muita confusão desde que as Cláudia Nina tiva privada) criar uma série de outros 64 Continente Multicultural
DIVULGAÇÃO / PREFEITURA DE CURITIBA
desde o Guggenheim até a desativação da usina do gasômetro, a criação de garagens subterrâneas, enfim, várias peças de um quebra-cabeças, no sentido positivo da palavra, coadunando muitas coisas ao mesmo tempo. Queremos transformar o píer da Praça Mauá em um novo cartão postal da cidade”, diz Eduardo Nascimento. Ele acrescenta, porém, que a simples vinda do museu é excelente, mas tem de ser cuidadosamente estudada porque não pode trazer prejuízos junto com ele. “Se não for o Guggenheim, poderia ser qualquer outro chamariz, como já se especulou há um tempo de trazer empresas da Disney. A zona portuária é uma área de grande potencial que precisa ser explorada”, diz. Para o projeto integral do porto, incluindo toda a série de modificações para a sua revitalização, estão previstos, em financiamento público, cerca de R$ 150 milhões ao longo de quatro anos, somandose a mais R$ 3 bilhões, por parte da iniciativa privada, ao longo de 10 anos. Quanto ao Guggenheim, em si, ainda não se sabe quanto ele vai custar, mesmo porque isso depende das linhas de seu projeto arquitetônico. Por todos os lados, além das tentativas de entendimento, o compasso é de espera por maiores
definições. Segundo o curador do Museu de Arte Moderna do Rio, Fernando Cochiaralle, não se podem emitir opiniões precisas e definitivas neste momento. “Seria precipitação tanto destruir a idéia do museu quanto endeusá-la, uma vez que a questão ainda não foi debatida amplamente com a comunidade artística”. Cochiaralle diz não ter nada contra projetos da iniciativa privada desde que a mesma dê conta de seus próprios riscos. Mas a questão realmente lateja: “Quem vai pagar esta conta?” Para a crítica de arte Vera Beatriz Siqueira, outros aspectos também devem ser analisados. “Não sou contrária à vinda do Guggenheim para o Rio, mas a simples presença do museu não vai resolver nada. Tudo depende da maneira como ele será agenciado. Se o museu se propuser a trazer um acervo permanente e significativo de arte moderna e contemporânea, será ótimo, uma vez que essa é uma lacuna que temos na cidade. Mas acho que não deverá ser dessa forma, pois a proposta me parece ser algo semelhante ao que existe em Bilbao, com exposições temporárias”, diz Vera. Segundo ela, se for assim, o cenário da arte pouco muda na cidade. “Será apenas outro espaço, onde circulam sempre as mesmas pessoas, sem a preocupação de formação de um novo público”, arremata. O fato é que a história desse namoro entre Rio de Janeiro e Guggenheim ainda vai longe; deve demorar até virar compromisso sério. Mesmo porque há muita coisa a ser debatida, criada e planejada ao redor dessa tão cobiçada “cereja”.
ARQUIVO DA ARTISTA
projetos no local, visando à revitalização completa da área, desde obras de infra-estrutura, como esgoto e luz elétrica, por exemplo, até projetos mais incrementados como um veículo leve sob trilhos, um bondinho moderno circulando pela cidade, além da chamada “ciclovia da arte”, ligando os dois museus, o Museu de Arte Moderna, MAM, no Aterro do Flamengo, e o Guggenheim. Mesmo que isso tudo sejam apenas planos a longo prazo (a história do bondinho, por exemplo, é uma conversa antiga), o fato é que idéias não faltam, e a cidade, se tudo isso acontecer mesmo, pode ganhar muito com a vinda do museu e toda a movimentação que se criará em torno. “São cerca de 16 projetos independentes que correrão paralelos, indo
Jussara Salazar, artista plástica (Curitiba) Se o Guggenheim tem interesse no Brasil, significa que a arte brasileira tem paridade, tem competência para desenvolver bons projetos, do nível que o Guggenheim pressupõe; é razoável, portanto, que os responsáveis pelo museu invistam no desenvolvimento da nossa arte. Se houver essa intenção, acho muito boa a vinda para cá. Do contrário, estarão repetindo o modelo colonialista. É melhor nem virem.
Daniela Steele, artista plástica (Salvador) Sou totalmente a favor da vinda do Guggenheim e acho que deveria vir primeiro para Salvador. (...) As coisas viram arte quando entram num local artístico. Uma motocicleta na rua é apenas uma motocicleta, mas basta entrar no museu e ser exposta para se transformar em arte. A intenção artística deixa de ser do autor e passa a ser do museu. O museu é o artista, e a exposição em si é o objeto de arte.
Cláudia Nina é jornalista
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DAVID HEALD / AE
As novas catedrais Com arquitetura inovadora, o Guggenheim de Nova York foi projetado por Frank Lloyd Wright, em 1945
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arte brasileira a partir dos anos 90 passou a ocupar um lugar de destaque no mapa internacional. Nossa produção passou a interessar não só por sua qualidade, mas também porque possui uma característica que se adequa bem às necessidades de um mundo de economia globalizada. Os artistas brasileiros são capazes de se inserir na linguagem internacional das artes, conhecendo e dando conta das questões da atualidade contemporânea e contribuindo com uma vitalidade criativa, que a antropofagia às avessas do mercado de arte necessita para se renovar. Hoje, a arte brasileira começa a ser vista dentro do panorama mais amplo da história da arte ocidental. Até recentemente, fora a Arte Pré-Colombiana, o Muralismo Mexicano e as manifestações do Barroco Peruano e Brasileiro, as outras manifestações plásticas da história da Arte Latino-Americana eram vistas como uma arte fechada em si, ou seja, como Arte Latino-Americana, isto é, como um apêndice da história da arte ocidental. Nos últimos anos, essa equação tem mudado: artistas brasileiros começam a ser vistos descolados dessa classificação mais genérica, para se- Marcio
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rem vistos como capazes de contribuir com linguagens próprias, que se somam à tradição da história da arte mundial. Isso ocorreu como um desdobramento da globalização, que, ao necessitar de um solo comum e sem fronteiras para a sua ação, encontrou nos valores da cultura o modelo de território sem barreiras de que necessitava. A cultura como um todo, e mais especificamente as artes visuais, por possuir um código que depende da percepção do aparelho ótico, comum a quase todos, ocupam metaforicamente esse lugar onde a congregação das diferenças pode se realizar, criando o território de trocas comuns de que a globalização necessita. E o museu passou a ser o lugar onde essa idéia é consagrada. Daí o fato dos museus serem hoje as novas catedrais; é nos museus que se realiza essa percepção espiritual de uma nova humanidade sem fronteiras. O Brasil, nesse panorama, possui uma formação cultural especialmente favorável porque nossa história trata basicamente de lidar com a adversidade e conviver com as diferenças. A experiência brasileira, que, como a americana, tem sua formação de origem na pluralidade étnica e cultural, tratou essa questão de maneira a incorporar o Doctors convívio das diferenças a partir de
de curadorias. Devemos afirmar a idéia de que mais importante do que o museu, o curador, ou até mesmo o artista, está a obra de arte. Qualquer museu que venha a ser constituído tem que ter uma política clara de formação e aquisição de acervo. Essa deve ser a nossa moeda de troca. Não devemos e não podemos aceitar um museu-embalagem, oco, que passivamente recebe exposições itinerantes. O horizonte que devemos manter diante dessa questão é que não podemos ser ingênuos. Ingênuos no sentido de que não precisamos de um museu com essas características, ou seja, um museu que funcione como pólo dinamizador e aglutinador de múltiplas atividades econômicas. Tampouco podemos pensar que o dinheiro que será investido em um projeto dessa magnitude poderia migrar para os museus já existentes; aqueles que desejam investir em um projeto como o do Guggenheim não estão interessados em investir em outras estruturas de museus. Mas não podemos também ser ingênuos a ponto de achar que o Guggenheim não está interessado em nós e que somos nós que estamos interessados nele. Por isso devemos colocar claramente que não nos interessa um museu que não estabeleça uma política clara de formação de acervo e que essa política deva priorizar necessariamente uma visão inclusiva da arte brasileira na história da arte ocidental.
SEBASTIÃO MOREIRA / AE
um modelo cultural; contrariamente à experiência americana, que procurou administrá-la cartesianamente, buscando um equilíbrio equânime e idealizado a partir de um modelo de democracia política. A experiência brasileira passou a ser um modelo possível porque trata da distribuição do poder cultural e não da distribuição do poder político e econômico. É uma saída muito mais conveniente, porque ainda não houve interesse de se iniciar o diálogo da distribuição do poder político e econômico, a que necessariamente a globalização terá que levar. Uma arte de qualidade e uma grande capacidade de se organizar nesse setor (não podemos perder de vista a importância da exposição Brasil + 500 nesse contexto), um momento conveniente à incorporação de outras culturas, a localização do museu como o lugar da consagração espiritual de um planeta sem fronteiras econômicas e territoriais e uma formação histórica modelar baseada numa visão da manifestação cultural como elemento de equilíbrio de forças fazem do Brasil um país exemplar no mundo, como ponte entre ele e os periféricos. E é isso que, como um ímã, atrai o Guggenheim para o Brasil e o Brasil para o Guggenheim. É um encontro. No estágio atual de desenvolvimento de nossas artes necessitamos de um museu-catedral. Não temos nenhum aparato museológico capaz de absorver essa nova qualidade de museu. Não estamos preparados para o século 21. Mas não acredito que precisemos de um museu de grife e que esta grife tenha que ser necessariamente a do Guggenheim. Fixamo-nos excessivamente no modelo de Bilbao e nos esquecemos das outras experiências como a de Berlim e de Las Vegas – experiências não tão bem-sucedidas. E nos esquecemos também de que cidades como o Recife, Salvador e Rio de Janeiro possuem outros atrativos que Bilbao não possuía antes da construção do Guggenheim. Mas, o mais importante é que essa situação remete a uma frase de Dalí que diz que o primeiro homem que comparou uma mulher a uma rosa foi um gênio, e o segundo, um idiota. Em outras palavras, será que não estaríamos fazendo o papel do idiota? Por que não pensar em fazer outras parcerias, com a Tate Modern ou o Beaubourg, por exemplo? Ou criar a nossa grife ou nosso museu-catedral? O mais importante é percebermos que em qualquer escolha, não devemos perder a dimensão de que esse é um caminho de duas mãos. Não podemos aceitar passivamente um modelo de museu
Tadeu Chiareli, crítico de arte (São Paulo) O ideal seria que o Guggenheim se instalasse numa cidade que já tivesse dado importantes contribuições para a arte brasileira, mas que ainda continuam produzindo de maneira periférica, como é o caso do Recife, Manaus ou Porto Alegre. O Recife tem uma história significativa nas artes plásticas, mas falta um gancho para que as pessoas conheçam mais sobre isso. O Guggenheim tem importância internacional e isto atrairia muitas atenções ao mercado de arte da cidade. Além de trazer movimentação comercial na área turística, cultural e econômica, o museu daria um arejamento na produção de Pernambuco. Os artistas do Recife e Olinda fazem coisas importantes, mas, muitas vezes, ficam confinados na produção de uma “suposta” arte. Claro que este projeto tem que ser bem estudado, porque o investimento do Guggenheim poderia ser revertido nos museus do Recife.
Marcio Doctors é crítico de arte
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HUGO PHIULPOTT / AFP
A Tate Modern, de Londres, inovou ao apresentar suas coleções de arte em grupos temáticos e não em seqüência cronológica
Arte contemporânea quer museu crítico
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arte contemporânea ainda precisa nos critérios de valoração então vigentes – assentade museus? Ao mesmo tempo cân- dos na idéia de autonomia da obra de arte – e esvadida e provocadora, foi essa inda- ziando o poder de consagração de museus e galerias. gação que o Conselho Internacio- Estes, por seu lado, não se mostravam flexíveis para nal de Museus de Arte Moderna assimilar, por registro, exibição e guarda de obras, as (Cimam) teve como tema de seu transformações conceituais em curso. encontro em setembro de 2000, As duas décadas seguintes, embaladas por em Budapeste. Diretores de museus, curadores e al- crescimento sem precedentes do mercado de arte, guns artistas de várias partes do mundo mapearam acomodaram as diferenças que separavam artistas e não apenas as várias formas de dependência da pro- museus. É sintomático desse apaziguamento que, dução contemporânea em relação aos museus, mas no fim da década de 90, o MoMA (Museum of também, invertendo o enunciado do tema, as manei- Modern Art, Nova York) – paradigma do museu ras pelas quais, muitas vezes, é o museu que precisa moderno – tenha organizado uma mostra chamada da arte contemporânea para legitimar-se como espa- The Museum as Muse (O Museu como Musa), na qual ço de produção simbólica. exibia apenas obras que tematizavam, no mais das Fosse formulada na década de 70, as respos- vezes criticamente, a própria idéia de museu. Mas, a tas a essa questão teriam sido, ao menos por parte despeito dessa aparente conciliação, recorrentemente dos artistas, de rejeição ao espaço institucional. Em emergem tensões entre a mutabilidade das estratévez da conjugação de estratégias entre artistas e insti- gias criativas e o desejo classificatório e redutor das tuições ocorrida em períodos anteriores, aqueles instituições. É na ambigüidade dessa relação que o anos testemunharam largas fissuras entre os prota- encontro do Cimam tentou posicionar-se. gonistas do mundo das artes. Expressiva parcela de A principal conferencista do encontro foi a artistas passou a questionar, numa recepção tardia do artista e ensaísta eslovena Marina Grzinic. Para ela, legado duchampiano, a necessidade de legitimação o tema deveria ser visto com cautela, pois poderia institucional do que produzia; e fez parecer uma sugestão de retorno a isso introduzindo ruídos simbólicos Moacir dos Anjos posições defendidas na década de 70,
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estudo etc.). A relevância do papel exibidor do museu se expressaria e se justificaria por ao menos duas razões: disponibilizar ambientes e equipamentos adequados às necessidades da produção contemporânea (amplos e flexíveis ao ponto de poderem ser refeitos a cada exposição) e por criar uma proteção simbólica do que nele é exposto, conferindo legitimidade social ao que escapa ao senso comum do que é, a cada época, considerado arte. Por desempenhar esse duplo papel exibidor – físico e simbólico – o museu de arte contemporânea não pode, por definição, constituir-se em território fechado, sendo antes um espaço de experimentação que tece canais de comunicação entre o cada vez mais poroso campo da arte e as demais instâncias de expressão humana. Para além desses aspectos ligados à produção e exibição de obras, a arte contemporânea precisaria de museus pelo fato desses apresentarem uma coleção de trabalhos (de seus acervos ou exposições temporárias) que formam o repertório simbólico com que a comunidade constrói seu olhar e cria referências para julgar a arte. Deve-se chamar novamente a atenção, entretanto, para o fato de que a programação de um museu e sua política de aquisições não são nem podem ser neutras. As escolhas de exibição e compra de obras são normalmente informadas por atribuições de valor baseadas em consensos frágeis e sujeitos a bruscas reavaliações ao longo do tempo. O que se inclui ou exclui do espaço simbólico do museu revela, de fato, mais das convenções valorativas acordadas, num determinado momento, entre os que
ROBERTO RÔMULO
pelas quais a denúncia da estrutura de poder que regeria os museus e sua rejeição fariam com que a arte estabelecesse um contato mais “autêntico” e direto com a “vida”. Essa posição ingenuamente desconsiderava, segundo a artista, que, dentro ou fora do museu, as sociedades se conformam a partir de estruturas hierarquizadas, o que desqualificaria esse tipo de crítica como algo específico às instituições artísticas. Além disso, no mundo atual a natureza dos conflitos entre produção artística e museu é distinta: no momento em que narrativas históricas e atribuições de valor artístico se desmancham, ela reside justamente no fato de o museu abertamente assumir o poder de permanentemente (re)construir a memória simbólica de uma coletividade. Ao contrário do poder opaco e “espectral” atribuído ao museu nos anos 70, os artistas são obrigados a confrontar o poder real que os museus admitem possuir. Nesse contexto, o museu de que a arte contemporânea precisaria seria um museu que fosse crítico de si mesmo, estabelecendo espaços de confrontação simbólica que questionassem o lugar privilegiado de seu discurso. A partir da questão apontada por Marina, os participantes do encontro do Cimam fizeram considerações em torno da concepção mais operacional das “necessidades” da arte contemporânea e das formas como os museus as têm suprido ou podem vir a fazê-lo. No plano da criação, essas necessidades se refeririam principalmente ao financiamento da produção de obras de feitura complexa e que envolvem um volume de recursos financeiros normalmente indisponíveis aos seus criadores. Pelo comissionamento de artistas (por convite, seleção ou concurso), os museus têm permitido a realização de projetos que, de outro modo, não seriam executados, criando assim condições para o amadurecimento das trajetórias dos artistas contemplados. Contudo, esses programas são também uma forma de exercício do poder institucional: não só por distinguir um número limitado de artistas e proporcionar um debate sobre questões específicas às obras selecionadas, mas também por envolver condições privilegiadas de aquisição da obra financiada ou de outros trabalhos do artista. Também no âmbito da visibilidade da obra o museu parece ainda ser, segundo os participantes do encontro, a instância preferida dos artistas, a despeito da saudável proliferação de espaços de exposição não tradicionais e da consolidação de formas alternativas de inserção institucional (ateliês-residência, bolsas de
Eduardo Subirats, filósofo espanhol (Nova York) Existem três modelos históricos de museu. O primeiro era um depósito de troféus de guerra. O conceito de museu nacional metropolitano é a tradução deste conceito na era do colonialismo europeu. O museu moderno cumpriu uma função normalizadora, antecipadora e estruturadora da cultura. O Guggenheim é o museu como espetáculo, que exibe signos de identidade arquitetônica ou midiática como conteúdo. É o museu como um fenômeno de mercado, de arte como uma forma de pornografia e da cultura como simulacros midiáticos definidos por burocracias políticas e corporativas. A especulação em torno desses museus é financeira e política, não intelectual. Representam uma fase final da destruição da experiência artística, do mesmo modo que McDonald’s e a Coca-Cola representam a fase final da decadência do gosto culinário. Acho que os brasileiros têm problemas mais importantes em que pensar.
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O arquiteto Frank Ghery fez do prédio do Guggenheim, de Bilbao, uma atração à parte, que chega a concorrer com as obras que exibe
formam o chamado campo da arte (artistas, críticos, historiadores, curadores, diretores de museus, colecionadores, galeristas etc.) do que atribuições absolutas de valor. Não há nisso, a princípio, nenhuma arbitrariedade; assim como em várias outras instâncias da atividade humana em que decisões precisam ser tomadas num contexto de incerteza, criam-se, no campo artístico, meios institucionais (formais ou não) em que distintos julgamentos de valor entram em conflito e resolvem-se em acordos – inerentemente provisórios – sobre a importância relativa de obras e artistas. Isso explica por que obras que já desfrutaram prestígio sejam hoje esquecidas e por que obras correntemente tidas como cruciais ao nosso entendimento da história da arte tenham sido por tanto tempo relegadas aos desvãos de suas narrativas. A impermanência dos cânones artísticos – magnificada pela crise atual das grandes narrativas históricas que os definem – tem feito com que alguns curadores e museus busquem a valorização de obras que ainda não obtiveram o reconhecimento merecido. Nesse contexto podemos entender a inserção das obras de Hélio Oiticica e de Lygia Clark na arte contemporânea mundial e a realização de grandes mostras retrospectivas internacionais, acompanhadas de publicações que reúnem vasta fortuna crítica sobre suas trajetórias. Outros curadores buscam problematizar a própria idéia de cânone, explicitando os relativismos em que se apóiam as estruturas de consagração artística. O exemplo mais paradigmático desse tipo de atitude continua sendo o da exposição Magiciens de la Terre (Centre Georges Pompidou, 1989), na qual o curador Jean-Hubert Martin desapegou-se dos valores hierarquizantes então estabelecidos entre arte culta e arte popular e propôs uma cartografia inteiramente nova da produção artística mundial. Em vez de escamotear o fato de participar desses embates de poder consagratório, alguns mu-
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TXEMA FERNANDEZ / AFP
PATRICK KOVARIK / AFP
No Centre Georges Pompidou, de Paris, a arte culta e a arte popular foram exibidas lado a lado, numa mesma valorização
seus, como notou Marina Grzinic, têm realmente pautado sua atuação recente pela explicitação de serem enunciadores de discursos simbólicos que, a despeito de sua natureza convencional – e provisória –, se pretendem universais. O exemplo de maior ressonância tem sido o da recém-inaugurada Tate Modern, em Londres, a qual reformulou, de modo radical, a maneira de apresentar sua coleção internacional de arte moderna e contemporânea. Em vez de replicar a leitura cronológica consagrada por quase toda a historiografia da arte e adotada pela maioria dos museus de arte moderna em todo o mundo, a Tate Modern agrupou as obras em torno de quatro grandes temas, permitindo que obras feitas em épocas e contextos distintos pudessem estabelecer relações (de aproximação ou repulsa) e incorporar novos significados. Num gesto consciente de ironia histórica, os temas escolhidos muito se assemelham aos temas clássicos das artes plásticas até o surgimento das vanguardas; são eles: 1. História, Memória, Sociedade; 2. Paisagem, Matéria, Ambiente; 3. Nudez, Ação, Corpo; e 4. Natureza-Morta, Objeto, Vida Real. Se o confronto entre obras de Monet e Richard Long, Cézanne e Duchamp ou Picasso e Mona Hatoun produzem ruídos com os quais nossa formação visual não está habituada, eles nos permitem ver novamente obras cuja potência de comunicação estava parcialmente bloqueada por uma catalogação enrijecida e fechada a contaminações. Por uma coincidência que é reveladora da fragilidade das convenções que pautam a disciplina da história da arte, o MoMA decidiu celebrar a passagem do milênio com a exibição de seu acervo também de um modo completamente distinto do que vinha fazendo há décadas. Em vez da clássica apresentação em que se sucediam as vanguardas européias e americanas (na qual estas apareciam como desdobramentos originais e momento de apogeu das primeiras), os curadores reorganizaram sua coleção a partir de três grandes exposições (Modern Starts,
o que existe em seu interior. Caso se tome o Guggenheim Bilbao como paradigma do que deveria ser um museu de arte contemporânea, poder-se-ia mesmo perguntar, realizando a inversão no tema do encontro do Cimam, se os museus de arte contemporânea ainda precisariam de arte. Não parece ser esse o caso. A despeito da atenção recebida pelo projeto, seu poder de encantamento reside no fato de ser o depositário de um conjunto de criações artísticas. E à medida que olhares e corpos se acostumem com as formas do edifício, mais atenção será dada às obras que ele envolve. Ainda que alguns sintamse nostálgicos da suposta neutralidade do “cubo branco” modernista, que buscava apartar a arte do mundo e celebrar uma autonomia logo vista como impossível, a arquitetura desses museus parece gradualmente aproximarse do que mais distingue a arte contemporânea. Em vez de isolar territórios simbólicos distintos, tornam-se espaços de contágio e de troca, permeáveis ao trânsito entre formas e meios diversos de expressão de vida. Talvez de forma mais decidida que diretores, curadores e mesmo artistas, a arquitetura dos museus contemporâneos aponta para a necessidade de confronto e contato entre o que, a despeito de parecer apartado, a todo instante se toca.
FOTOS ARQUIVO DO ARTISTA
Making Choices e Open Ends) que, embora retendo limitações cronológicas, permitem aproximações insuspeitadas entre obras, a relativização da paradigmática montagem do museu e a abertura de estruturas conservadoras à porosidade da cultura contemporânea. Outros importantes museus europeus – Stedelijk Museum, em Amsterdã, e Musée National d’Art Moderne, em Paris – também têm demonstrado o desejo de questionar as leituras da história da arte. Note-se que as mudanças nesses museus não provocaram transformações significativas no perfil de suas decisões de aquisição. Com a possível exceção do MoMA, que tem incorporado ao seu acervo, ainda que timidamente, obras de artistas latinoamericanos, asiáticos e africanos, os grandes museus europeus (uma visita à Tate Modern é instrutiva a respeito) têm praticamente ignorado a produção moderna e contemporânea não européia. Embora essa política não seja ainda motivo de questionamento a partir do próprio corpo curatorial dessas instituições, a divulgação internacional (por Bienais e exposições itinerantes) dos artistas não contemplados nessas coleções torna muito visíveis as lacunas em seus acervos. Outro aspecto da relação entre arte contemporânea e museu tem emergido da maior importância que a arquitetura dos museus tem assumido na configuração de sua identidade. Embora o MoMA, o Guggenheim New York e o Centre Georges Pompidou tenham estabelecido o local privilegiado que sua arquitetura ocupa na afirmação de seu perfil, na última década há a disseminação e o aprofundamento dessa postura. São exemplos recentes o Museu d’Art Contemporàni de Barcelona (projeto de Richard Meier), o Kunsthal de Roterdã (de Rem Koolhaas) e a própria Tate Modern (de Jacques Herzog e Pierre de Meuron a partir da construção original de Giles Gilbert Scott). O caso mais célebre é o da filial do Guggenheim em Bilbao. Projetado por Frank Gehry, tem sido considerado o maior responsável pelas transformações urbanísticas por que passa a cidade e por inseri-la no circuito internacional de artes. Uma das construções mais impressionantes do século 20, o Guggenheim Bilbao magnifica uma difícil questão: como conciliar o caráter épico de seus espaços externos com a atenção demandada pelas obras que abriga. Experimentada pelo visitante, a arquitetura do museu relativiza tudo
Montez Magno, poeta e pintor (Recife) No começo me entusiasmei, mesmo sabendo que teríamos a filial de uma filial. Mas há dois pontos problemáticos. O primeiro é que o Guggenheim é um museu tentacular, que impõe seus artistas. Não abriria espaço para os artistas locais, com raras exceções. O segundo é que é um investimento muito alto. Com um terço do que gastaríamos com isso, poderíamos criar um grande museu, com projeto de alguém daqui. Desde 72 que faço maquetes para minha série Cidades Imaginárias (foto abaixo). Entre elas, há quatro que poderiam ser alternativas de modelos para a criação de um museu de arte contemporânea nosso, no qual se gastaria um terço do que uma filial do Guggenheim consumiria. Não sou arquiteto, mas tenho idéias. Minhas maquetes são para o exterior do museu, um arquiteto e um engenheiro dariam assistência para complementar o projeto.
Moacir dos Anjos é crítico de arte e diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães. Participou do Encontro do Cimam, em Budapeste, e visitou o Guggenheim de Bilbao e a Tate Modern de Londres, a convite do Instituto Itaú Cultural
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AnĂşncio
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AnĂşncio
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA
Cultura de Almanaque Joel Silveira
1.
Graciliano
Texto que naquela manhã do começo de 1939 Graciliano Ramos me entregou, na José Olympio: “(...) Projetos não tenho. Estou no fim da vida, se é que a isto se pode dar o nome de vida. Instrução quase nenhuma. José Lins do Rego tem razão quando afirma que a minha cultura, moderada, foi obtida em almanaques”.
2.
Obras completas
Algo me diz que quando Sicrano morrer vai precisar de dois caixões. Um, menor, para ele. Outro, tamanho família, para acomodar suas obras completas. Vai morrer tudo no mesmo dia, no mesmo minuto.
3.
Tristeza
Quando estou triste e um tanto murcho, costumo escutar a Marcha Fúnebre da 3ª de Beethoven; ou então, se não todo, trechos do Réquiem de Mozart. E falo comigo mesmo: – Isso é que é tristeza, idiota! A sua, factual, é apenas ridícula!
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4.
Covardia
Um país onde o povo não tem coragem de ser contra o Flamengo e a Mangueira não pode ser tido na conta de um país corajoso.
5.
Cumulo
O cúmulo do ridículo e do grotesco: um marmanjo alto, gordo e barrigudo tocando cavaquinho.
6.
Nao
Levei anos e anos para aprender a dizer não, mas aprendi. Agora o “não” me sai com a maior facilidade, sem qualquer inibição ou constrangimento. Fulano, um espertalhão que conheço desde o começo dos tempos, e a quem já concedi, complacentemente, milhares de “sins”, me telefona: – Você poderia... Antes que ele continue, brado: – NÃO!
7.
Conclusao
Passei anos e anos procurando levar este país a sério para, no final das contas (e da vida), chegar à conclusão de que tudo não passou de uma estúpida perda de tempo.
8.
Licao
11.
Dedicatoria I
Envelhecendo e aprendendo: é não saindo de casa que a gente acaba sabendo das coisas.
9.
Terror
Se os maus poetas soubessem que, quando morrem, morrem para sempre, é possível que fossem mais cautelosos em suas exteriorizações e mais contidos em seus impulsos. Nada mais aterrador do que um mau poeta inspirado.
10.
Epitafio
Sugestão para o meu epitáfio: Aqui jaz um desafortunado que em vida não conseguiu ler Guerra e Paz no original.
Jamais consegui ler um livro dedicado pelo autor “aos meus queridos pais” e “à minha devotada esposa”.
12.
Dedicatoria II
Quando fiz cinqüenta anos, ganhei de Pablo Neruda a sua Antologia Poética com esta dedicatória: “A JS, em sus cinqüenta luces”. Achei lindo. Ainda acho, embora a poesia do ofertante já não me encante como outrora.
Joel Silveira, ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.
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GENETON MORAES NETO
CONVERSA FRANCA
Jacinto de Thormes
O colunista dos Anos Dourados
Q
uem foi o único brasileiro que teve estranho, o que é improvável, acrescente-se que o privilégio de trocar cochichos Maneco Muller tornou-se célebre sob um pseucom a rainha da Inglaterra? dônimo: Jacinto de Thormes. Quem foi o visitante curioDepois de aceitar de bom grado o pseuso que o dramaturgo Tennessee dônimo eciano que lhe foi sugerido pelo jornalista Williams, autor do clássico Um Prudente de Morais, neto – um dos grandões do Bonde Chamado Desejo, conduziu Diário Carioca –, Maneco Muller dedicou-se ao até um quarto todo vermelho, numa mansão em trabalho de criar, sob a marca Jacinto de ThorNova Iorque, não se sabe com que intenções? mes, um personagem que o acompanharia, como Quem foi o jornalista atrevido que, aos 22 uma sombra, por toda a vida. Aos olhos do públianos de idade, criou, nas páginas do Diário Cario- co, Jacinto de Thormes era um homem sofisticaca, no já remotíssimo ano de 1945, a primeira co- do que aparecia fumando um imponente cachimluna social moderna do jornalismo brasileiro, co- bo, com ares de lorde inglês, nas “fotos oficiais” mo bem diz o verbete dedicado a ele na mini-enci- que ornavam suas colunas. Pronunciava nomes clopédia Ipanema de A a Z? estrangeiros com sotaque britânico. Tinha um cão O único brasileiro que falou ao pé do ouvi- chamado William Shakespeare Júnior, personado da rainha Elizabeth II, o repórter curioso que gem (real) de suas andanças. O cão chegou a testemunhou a paisagem vermelha do quarto de merecer foto de página inteira numa revista de Tennessee Williams, e o jornalista atrevido que lan- moda, em que aparecia usando um boné que caiçou, no Brasil, a base do colunismo moderno são ria bem numa partida de críquete numa tarde de um homem só: Manoel Bernardez Muller. verão nos arredores de Wimbledon. O fato de Aos poucos familiarizados com a biografia criar uma celebridade canina dá a dimensão do do jornalismo brasileiro, diga-se que ele ficou poder de fogo de Jacinto de Thormes. famoso como Maneco Muller. Além de circular nas Se, ainda assim, o nome soar Geneton Moraes Neto “altas rodas”, Jacinto de Thor76 Continente Multicultural
Por onde anda Jacinto de Thormes, o homem que criou o colunismo social moderno no Brasil? Em entrevista exclusiva, ele sai do retiro para falar das cenas que viveu ao lado de Gilberto Freyre, Salvador Dalí, Tennessee Williams, Truman Capote e a rainha Elizabeth II mes era um infatigável fabricante das Listas das Dez Mais Elegantes. Criou um modismo. As Listas passaram a ser publicadas em todo o País, em versões adaptadas ao gosto dos cronistas locais. Igualmente, lançou a expressão “colunável”. Aposentado depois de abandonar as colunas sociais para se dedicar à crônica esportiva (o futebol é uma de suas paixões), Jacinto de Thormes sumiu de circulação. Por onde andaria, hoje, o cronista dos Anos Dourados? Quem apostar que o Jacinto de Thormes aposentado é hoje um dinossauro que vive ruminando nostalgia dos tempos em que o Rio era a capital da Corte se enganará redondamente. Porque, retirado da cena, ele vê com curiosidade a ascensão dos “emergentes”. Diz que, hoje, uma palavra resume tudo: velocidade. Acabou-se o tempo em que os sobrenomes de famílias tradicionais desfilavam pelas colunas. Hoje, gente que enriqueceu depressa brilha depressa nas colunas – e desaparece depressa. Neste mundo, Jacinto de Thormes se sentiria deslocado. Mas não faz as vezes de saudosista ranzinza.
O homem vai revisitar cenas inacreditáveis que viveu ao lado da rainha da Inglaterra. Falará de Tennessee Williams. Descreverá o encontro que marcou com Gilberto Freyre porque queria saber quem chegaria primeiro à Presidência da República no Brasil: um negro ou uma mulher. Fará uma radiografia dos novos tempos do soçaite. Jacinto de Thormes volta a atacar, a convite da Continente. Os nomes tradicionais das colunas sociais foram substituídos pelos chamados “emergentes” – os novos ricos que, no caso do Rio de Janeiro, moram na Barra da Tijuca. O que é que os emergentes despertam no senhor: enfado, asco ou curiosidade jornalística? Tenho uma idéia formada. Precisamos olhar essa questão não como um simples fato, mas como conseqüência da velocidade do que acontece hoje. Em Botafogo, existe uma padaria que exibe uma inscrição: fundada em mil oitocentos e não sei quantos. A tradição dava prestígio, dava credibilidade. Mas acabou! As pessoas precisam imaginar Continente Multicultural 77
REPRODUÇÃO
que uma “emergente” é fruto do momento que vivemos hoje, dominado pela velocidade. Como o mundo muda, numa grande velocidade, se a mesma pessoa aparecer duas ou três vezes numa revista, dirão: “Mas que chato! De novo?” Antes, valorizava-sse a tradição. Hoje, o que é que se valoriza: é a riqueza rápida? O sucesso hoje é esse. A Corte acabou! A diferença é essa: quem aparece hoje é gente que surge rapidamente e ganha dinheiro depressa. Não interessa o nome. O jogador de futebol que faz sucesso também vai para a Barra da Tijuca, porque, lá, ele compra, ele se faz, ele é importante. Mas não sou contra. Porque as pessoas não têm culpa. Não sou o sujeito esnobe que diz “imagine você...”. Não! A época atual pede que se faça tudo rápido, para durar pouco. Última Hora, 11 de novembro de 1968: Jacinto de Thormes cochicha com a rainha Elizabeth II, na tribuna de honra do Maracanã
Qual era a dúvida que o senhor quis tirar com Gilberto Freyre? Eu queria fazer alguma coisa diferente, além da coluna. Matérias que representassem alguma coisa. Procurei um banqueiro famoso. Mas o sujeito só falava de dinheiro e política. Não publiquei nada. Já Gilberto Freyre era o tipo da pessoa que sabia falar. Expansivo. Perguntei a ele: quem chegará primeiro à Presidência da República – a mulher ou o negro? Gilberto Freyre achou ótimo. Disse, primeiro, que “o brasileiro não é uma raça, muito menos uma sub-raça ou meia-raça, como os subantropólogos querem, mas, sim, uma meta-raça”. Depois de muita habilidade e inteligência, acabou dizendo que o negro chegaria primeiro à Presidência. A rainha Elizabeth II desperta, à primeira vista, um sentimento de tédio, até entre os admiradores. O senhor – que foi seu intérprete, na visita que ela fez ao Brasil em 1968, teve essa sensação também? A rainha é uma funcionária pública perfeita. Um dos compromissos que ela cumpriu aqui foi ver, no Maracanã, um jogo da seleção de São Paulo, comandada por Pelé, contra a seleção do Rio, comandada por Gérson.Vi o jogo sentado ao lado da rainha, perto do governador Negrão de Lima, que falava francês. Samuel Wayner me disse para aceitar o convite para ser intérprete da rainha. O pessoal do Itamaraty, meus amigos, tinha me convidado. Você sabe que não se chama a rainha de Vossa Majestade,
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a não ser em cerimônia? Chama-se de Madam. A rainha perguntou sobre as orquídeas que tinham sido distribuídas na Tribuna de Honra. Eu disse que as orquídeas tinham vindo da Amazônia. Fiz uma onda. Amazônia coisa nenhuma. Eram daqui mesmo. O senhor achou que seria “rústico” citar a Amazônia ali, para a rainha? A rainha entendeu que as orquídeas tinham vindo da Amazônia, mas eu, na verdade, disse que elas eram de um gênero amazonense, o que não deixa de ser verdade. Mas não sei, não entendo nada de flores. A rainha achou ótimo. A gente tem de fazer essas coisas: é gentileza. De repente, ela me perguntou: “Você não acha que esse jogo está um pouco lento?” Não é boba. Eu disse: “Madam, o que acontece é que os jogadores que a senhora se acostumou a ver no estádio de Wembley são ingleses fortes e robustos, correm muito, são verdadeiros touros. O nosso jogador, madam, é uma cobra. Aliás, chamamos de cobra o nosso grande jogador. Porque ele, de repente, dá um bote”. A rainha ficou me olhando impressionada. Para minha sorte, poucos minutos depois, Pelé, que estava fingindo que o jogo não era com ele, de repente viu a brecha, gritou “dá”, dri-
blou um, cortou outro e quase fez um gol maravilhoso. A rainha se virou pra mim e disse: “Isso é que é cobra?”. Eu disse: “Yes, madam, precisely”. O que ela fez? Olhou para o príncipe Philip e perguntou: “Você sabe qual é a diferença entre os nossos jogadores e os brasileiros?” Começou a contar ao marido a minha história, sem me pagar royalties. A rainha lhe deu a impressão de sofrer de uma certa falta de brilho pessoal? A impressão que a rainha dá é a de que é uma pessoa triste. Aquilo deve ser muito, muito chato. A rainha, em situações normais, é inacessível aos jornalistas – inclusive os ingleses. A que o senhor atribui o fato de ter sido escolhido para atuar como intérprete? Bastou a amizade com o pessoal do Itamaraty? Eu era cronista esportivo. Falava inglês – bem ou mal. Era um sujeito que não ia cuspir no chão nem fazer nenhuma grosseria. Antes do início do jogo, quando o juiz Armando Marques entrou, a torcida começou a gritar “bicha! bicha! bicha!”. A rainha me perguntou o que era aquilo. Que história era aquela de “bicha”? Eu disse que a torcida estava aplaudindo o juiz – que era muito popular no Brasil... Você veja o que é um profissional. Quando, depois do jogo, se encontrou com o juiz Armando Marques, a rainha disse: “Gostei de ver sua popularidade...” Mas o príncipe Philip soube o que queria dizer o coro da torcida, porque disseram a ele.
O
ÇÃ
DU RO
Coluna do jornal Última Hora, 31 de março de 1958
REP
Lygia Fagundes Telles diz que, quando esteve em São Paulo, o escritor William Faulkner abriu a janela do hotel e perguntou: “O que vim fazer em Chicago?” Bêbado, ele não sabia nem onde estava. O álcool entrou também nos contatos que o senhor teve com escritores americanos como Truman Capote e Tennessee Williams? Não entrou outra coisa, além de álcool. A entrevista com Truman Capote eu nem cheguei a
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Tarso de Castro escreveu: “O jornalismo se divide mais ou menos assim: no início, é uma conquista maravilhosa, uma briga para ver uma coisa que se escreveu sair no jornal. Depois, chega o tempo de ser o competente cara de jornal. Por esse tempo, há um dia em que se descobre que não temos nada de super-hhomens. Por fim, chega o tem80 Continente Multicultural
AJB / AP, 1991
AFP, 1976
escrever. Para dizer a verdade, achei-o murcho, sem significação alguma. Fiquei com raiva. Decepcionado. Não dava para escrever nada. Eu também estava numa fase ruim. Não vou culpar os outros. Eu estava em Nova Iorque, pela revista O Cruzeiro. Fiz também entrevistas com Tennessee Williams e Salvador Dalí. O verdadeiro Salvador Dalí era Gala, a mulher, que o dirigia em tudo. Houve uma cena que considero terrível: Salvador Dalí sentou-se ao lado de uma senhora brasileira que estava em nosso grupo. Disse a ela: “Que mãos lindas! Eu poderia pintar as suas mãos?” A mulher ficou encantada. Quem não quer? Dalí ficou de telefonar. A secretária de Salvador Dalí realmente ligou no dia seguinte: “O senhor Dalí gostaria muito de marcar uma data. Por falar no assunto: gostaria de dizer que o preço é...” E falou em não sei quantos mil dólares. Que negócio terrível... Já o Tennessee Williams me fascinava. Quando cheguei para a entrevista, encontrei 50 milhões de pessoas. Gim puro. Um porre sem tamanho. Bebe-se muito em Nova Iorque. Quando essa gente se expande, não é brincadeira. A primeira coisa que Tenessee Williams fez comigo foi: “Deixe-me mostrar minha casa”. A gente nem conseguia ver a casa, em meio a tanta gente sentada por todo canto. Quando ele abriu o quarto, era tudo vermelho e dourado lá dentro. Por que o sujeito vai me mostrar um quarto onde não havia ninguém? Para que me mostrar um lugar todo vermelho que, para ele, era a parte fundamental da casa? Eu estou associando coisas. Não houve nenhuma insinuação. Quando contei umas histórias, ele me perguntou: “Mas era sexo normal ou diferente?”. Respondi que comigo era tudo normal. De repente, toca a campainha. Abre-se a porta. Aparece um rapaz lindo, bonitão, rosado, com uns dois metros de altura. Ficou parado. Visivelmente, não conhecia ninguém. Tennessee viu o rapaz de longe, correu até onde ele estava: “Mas o que é que você veio fazer aqui?” O rapaz estranhou: “Você não disse para vir?” E Tennessee: “É amanhã, seu burro! Não vê que hoje a casa está cheia de gente?”.
po em que o cansaço se arrasta diante do fato de que, afinal, não éramos tão importantes”. Jacinto de Thormes viveu essas três estações? Quanto a ser importante ou não, é relativo. Porque, na época, eu fui importante, sim. Fui importante porque, para começar, não me levei a sério. Prudente de Morais, neto, me chamou para ser o que era antigamente “cronista social”. Era tudo muito francês – “tout en bleu”, “tout en rouge”. Eu achava aquilo uma frescura, mas, como precisava ganhar dinheiro, não pude recusar. Só não queria botar meu nome. Afinal, eu fazia esporte, freqüen-
Perguntei a Gilberto Freyre: quem chegará primeiro à Presidência da República – a mulher ou o negro? Ele disse que o negro chegaria primeiro à Presidência
AFP, 1971
Tennessee Williams, Salvador Dalí e Truman Capote (no sentido horário): histórias saborosas de um colunista
tava academia de boxe. Iam me chamar de sei lá o quê se me vissem falando de vestido. Digo: vou levar esse negócio na brincadeira. Preciso de um pseudônimo. Prudente de Morais disse: “Jacinto de Thormes!” Eu não tinha lido ainda Eça de Queiroz. O que me impressionou, depois, é que o Jacinto de Thormes do romance de Eça de Queiroz A Cidade e as Serras é precisamente um camarada que vive em Paris, mas permanece apegado ao lugarejo de onde veio. Já Eça de Queiroz viveu em Paris e em Londres. Não gostava de viver em Portugal. Era um sujeito esnobe, um grande escritor que escrevia numa língua que infelizmente não tinha a repercussão que ele gostaria que tivesse. O senhor é apontado como o criador da primeira coluna social moderna do Jornalismo brasileiro. De onde surgiu esse estalo? Você criou a coluna sob influência americana? O personagem que criei tinha um cachorro chamado William Shakespeare Júnior – que me acompanhava de verdade. Fomos a boates juntos. Era um cão muito educado. O personagem Jacinto de Thormes era uma maneira de me defender, porque o que eu queria era ser escritor. O Rio de Janeiro era capital da República. Comecei a freqüen-
tar o Senado e a Câmara dos Deputados, os homens de negócio. Passei a incluir esse mundo dentro das brincadeiras, as coisas mais suaves que eu fazia na coluna. A lista das dez mais elegantes era coisa americana. Mas as listas dos americanos não tinham a dimensão que as listas ganharam aqui no Brasil. Quando eu saía, as pessoas me paravam na rua para discutir a lista. A criação desse formato de coluna foi influência americana? Mas claro! Eu lia sobretudo o New York Times e o Washington Post e – de vez em quando – os jornais de Los Angeles, porque traziam a cobertura de cinema. As colunas que me influenciaram eram publicadas por esses jornais. Mas eu não podia fazer igual. Tinha de adaptar. Porque nos Estados Unidos havia colunistas que tinham um poder terrível: derrubavam fábricas, derrubavam shows, derrubavam pessoas. Aqui, fiz a brincadeira de inventar Jacinto de Thormes. As colunas americanas já tinham o formato de notas sincopadas. Devo dizer que o Rio de Janeiro tinha uma personalidade. Se estivessem no Rio, aqueles colunistas não escreveriam como escreviam nos Estados Unidos. O Rio era uma das cidades mais divertidas do mundo, como disse a revista Time. A cidade tinha, além da praia, os cassinos, os grandes shows e um lado que faço questão de citar: a cultura. Basta lembrar que Getúlio Vargas convidou Gustavo Capanema para ser ministro da Educação e Cultura. Capanema simplesmente pediu a Carlos Drummond de Andrade que fosse chefe de gabinete. O Modernismo – que foi paulista – veio explodir no Rio. Todos os grandes escritores, o Portinari, o Villa-Lobos, não apenas atuavam no Rio: a gente convivia com eles. É a diferença. Não era o intelectual lá e o social aqui. Evidentemente, havia na sociedade coisas fúteis. Mas eles participavam das revistas, havia o costume de todos irem ao Municipal para ver balé, ver ópera. Qual é o sinal de deselegância que mais incomoda você? Quando eu ia fazer a lista, eu levava em conta também a inteligência. O que me incomoda? É a bonita e burra. Tenho horror a esse tipo de coisa. É a pessoa que se preocupa demais com a aparência, ao ponto de não saber fazer outra coisa. Sempre digo: uma grande dama é sempre uma grande dama sem querer. De propósito, não é Continente Multicultural 81
nunca! Porque não conseguirá comprar elegância, não conseguirá adquirir essa qualidade fazendo divulgação de si mesma. Uma pessoa não elegante pode ter boas maneiras. É outra coisa. Pode ser educada. É outra coisa. Pode ser culta. É outra coisa. Mas elegância reúne quase que todas essas qualidades – inclusive cultura!
FERNANDO QUEVEDO / AGÊNCIA O GLOBO
Ibraim Sued: personalidade surpreendente
A rainha é uma funcionária pública perfeita. Você sabe que não se chama a rainha de Vossa Majestade, a não ser em cerimônia? Chama-se de “Madam”. A impressão que a rainha dá é a de que é uma pessoa triste. Aquilo deve ser muito, muito chato
Qual foi a personalidade mais surpreendente que você conheceu? Alguém que tenha surpreendido você no bom ou no mau sentido... Vou dizer: Ibrahim Sued. Começou como fotógrafo. Era um sujeito de origem humilde, com pouca escolaridade. Conseguiu uma coisa formidável. Eu, que comecei 10 anos antes de ele surgir no jornalismo, percebi que ele tinha um faro jornalístico incrível. Podia ser ignorante. Mas de burro não tinha nada. Um dia, olhou para minha biblioteca. Perguntou: “Diga-me uma coisa: para que serviram, na sua carreira, esses livros todos?” Sob o ponto de vista de Ibrahim, era uma pergunta excelente. Uma vez, eu disse a ele: “Você fatura até erro de concordância”. Ele me respondeu: “Você sabe Português, mas não fatura nada”. Ibrahim tinha toda razão. Era um camarada surpreendente. Quem freqüenta a alta sociedade, como o senhor freqüentou, inevitavelmente ouve e vê segredos impublicáveis. Que segredo impublicável o senhor poderia contar hoje, tanto tempo depois? É difícil falar. São coisas tão grandes que os nomes vão acabar vindo à tona. Fatos verdadeiramente nacionais. Não quero fazer autobiografia, porque ou falo das coisas ou não falo. Não dá para contar pela metade. Havia um presidente da República, casado com uma mulher muito bonita, que, um dia, saiu de carro com alguém. Os dois deviam ter bebido um pouco. O presidente tinha dado o automóvel novinho à moça. Os dois estavam usando o carro pela primeira vez. Imagine: um presidente e uma moça. Lá pelas tantas, ela disse: “Você sabe que eu acho esse carro uma porcaria?” O presidente respondeu: “Então, bata aí”. A moça bateu numa árvore, com o presidente dentro. Quebrou o carro.
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Darcy Ribeiro dizia que a gente tem aqui no Brasil uma das elites mais cruéis do mundo. O senhor – que conviveu com nossa elite no que ela tem de bom e de ruim – assinaria embaixo desse julgamento? É preciso ver nossa história. Os ingleses que saíram para os Estados Unidos foram formar um lugar, um país. O patriotismo americano é impressionante. Vê-se bandeira por todo lado. Já os jesuítas vieram ao Brasil por uma questão de ordem. Os portugueses não vieram fundar nada. Vieram tirar o que era possível tirar, assim como os espanhóis. A diferença é essa: em vez de dar, tiraram. Nós também não conseguimos tomar certas decisões nacionais que exigem personalidade. Falta igualmente uma unidade. São Paulo trabalha, o nortista emigra, a Bahia se diverte, o Rio Grande do Sul comanda, o Rio de Janeiro vive e Minas Gerais conspira. As diferenças podem até ser fantásticas. Mas não há no Brasil uma união de idéias – o que termina se tornando uma grande dificuldade brasileira. A elite brasileira não é uma só. São várias as elites. De vez em quando, são péssimas. Em áreas importantes sob o ponto de vista popular, como no futebol, por exemplo, a elite não pode ser pior do que é agora. Se Maneco Muller escrevesse hoje sobre Jacinto de Thormes, qual seria o primeiro parágrafo? Jacinto de Thormes foi uma farsa, um mentiroso, não era nada daquilo. Criou aquele negócio. O pior é que pegou. Todo mundo veio atrás. Fico contente com o que fiz. Jacinto de Thormes carregou Maneco Muller nas costas. Mas sem Maneco Muller, seus erros, seus pecados, seus vícios e algumas qualidades, o Jacinto de Thormes não teria existido. O senhor considera o Jacinto de Thormes pai dos colunistas sociais que estão aí hoje? Não sei de pai nem mãe. Mas fui o primeiro.
GENETON MORAES NETO
Presidente casado com primeira-ddama bonita só existiu um... Pelo amor de Deus! Para que eu fui falar nesse troço!!!
Café soçaite “Enquanto a plebe rude na cidade dorme Eu janto com o Jacinto que é também de Thormes Tereza e Dolores falam bem de mim Já fui até citada na coluna do Ibrahim” (Trecho do samba Café soçaite, do compositor carioca Miguel Gustavo, gravado originalmente por Jorge Veiga, em 1955, e regravado por Maria Bethânia, em 1968)
Geneton Moraes Neto é jornalista
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ENTREMEZ
O novo milagre de Juazeiro
A “santidade” do Padre Cícero cria-se no imaginário popular contra toda a hierarquia romana
U
ma mulher enlutada queria que eu fotografasse o seu menino. “Ele vai morrer. Pelo menos guardo o retrato.” De seis irmãos, Antônio fora o único que escapara. Os outros estavam no céu, juntos do Padrinho Cícero e da Mãe das Dores. Por essa graça alcançada, Maria do Carmo estava indo para Juazeiro do Norte, no Ceará, pagar promessa ao santo dos romeiros. Éramos mais de cinqüenta pessoas espremidas na carroceria de um caminhão pau-de-arara. Todos diziam ter um motivo religioso, arranjado lá no fundo do coração, para fazer aquela travessia sofrida. Sentados nas tábuas estreitas do pau-dearara havia noivas, penitentes, franciscanos e coroados. Os trajes dependiam da promessa que tinha sido feita. Partimos às quatro da manhã da cidade de Arcoverde e a previsão era que chegaríamos bem tarde da noite. Quando o caminhão deu o primeiro arranque, começaram os benditos, cantados doze vezes. Uma viagem que eu fiz a Juazeiro Fui visitar meu Padim Ciço Romeiro Ele estava sentado na cadeira Seu cajado na mão abençoando os seus romeiros. Ao meio-dia, o sol quente de fim de outubro ameaçava derreter nossos juízos. O sertão seco, um deserto cortado por uma estrada de asfalto, parecia mais absurdo que nos romances regionalistas.
Ronaldo Correia de Brito 84 Continente Multicultural
Juazeiro era uma miragem cravada no Cariri cearense por um homem manso chamado Cícero Romão Batista, da mesma têmpera de Antônio Conselheiro, beato José Lourenço e padre Ibiapina, embora escritores de esquerda reneguem essa comparação, fixando a imagem de um padre coronelista, alinhado às forças conservadoras do poder. O Padre Cícero ficou conhecido pela sua participação no rumoroso caso do milagre de Juazeiro. Uma beata de sua paróquia, Maria de Araújo, sangrava pela boca após o sacramento da eucaristia. Ele e outros sacerdotes do Vale do Cariri passaram a qualificar o fato como extraordinário e miraculoso, afirmando que Deus escolhera Juazeiro para ser o centro de salvação da Humanidade. A Igreja só reagiu tardiamente ao fato, abrindo um processo de excomunhão, em Roma. A questão, de contornos político e religioso, arrastou-se até o fim da vida do Padre Cícero, impedindo-o de exercer as atividades pastorais. O milagre da hóstia que se transformava no sangue de Jesus Cristo, embora quase esquecido nos dias de hoje, foi o que primeiro chamou atenção sobre o pequeno lugarejo, atraindo multidões de fiéis. Embora tenha permanecido fortemente ligado à Igreja Católica e tentado reabilitar-se como clérigo, a “santidade” do Padre Cícero criava-se no imaginário popular, contra toda a hierarquia romana. É o povo miserável do Nordeste quem lhe dá assento ao lado da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Para alguns mais afoitos ele está acima desse panteão. Ceramistas de Juazeiro se recusam a queimar no forno a imagem do Padrinho, por achar sacrilégio, mas não têm escrúpulo em botar no fogo santos mais graduados. O Padre Cícero agregou muitos pobres por sua orientação paternalista. Dava conselhos práticos sobre o cultivo da terra, estimulava o pequeno
comércio, os fabricos caseiros e o artesanato. Orientou levas de nordestinos a procurarem as terras e os seringais da Amazônia nas retiradas das grandes secas. Atraiu para Juazeiro homens e mulheres de todos os estados nordestinos, gerando um convívio de culturas, se considerarmos que existe diversidade cultural no Nordeste. Sem se dar conta, tornou-se o centro de um regionalismo incipiente, integrado a um nacionalismo manifesto no Sul e Sudeste. Opôs-se “à entrega pelo Governo de vastas porções das florestas de seringais da Amazônia a Henry Ford, em 1928”, contrastando “com a mentalidade entreguista das autoridades federais”, segundo Ralph Della Cava. O que mudou no Nordeste e no Brasil nos cem anos que separam as primeiras romarias das atuais? Quais as diferenças entre o mito vivo e o culto à memória do padre que morreu irreconciliado com a Igreja, sem nunca ter retornado ao exercício das suas ordens? As descrições que faço de uma viagem ao Juazeiro parecem propositalmente carregadas nas tintas do exotismo, bem ao gosto do Cinema Novo. É como se nada tivesse mudado. Continuam os mesmos alarmantes índices de mortalidade infantil, de desnutrição, de analfabetismo e de miséria. Somaram-se às antigas mazelas as drogas e a prostituição. O cangaceirismo romântico deu lugar à violência urbana sem qualquer romantismo. O campo esvaziou-se. Os caminhões paus-de-arara continuam transportando nordestinos miseráveis em peregrinação à Jerusalém brasileira. Espera-se um milagre. Talvez o de um Nordeste redimido de sua miséria crônica. Talvez a ressurreição do discurso regionalista do Padre Cícero, defendendo a causa do Nordeste dentro de um contexto nacionalista, nestes tempos de globalização.
Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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MARCOS GALINDO
HISTÓRIA
Historiador holandês diz que o governo dos Países Baixos atrasou o Nordeste em 50 anos e que o episódio teria sido reprimido no inconsciente dos holandeses
O historiador holandês Ernst van den Boogaart
R
aras são as opiniões tão críticas sobre o período da ocupação holandesa no Nordeste brasileiro, de 1630 a 1654. O historiador Ernst van den Boogaart, 58 anos, residente em Amsterdã, explica por que considera o período como “um desastre sem atenuantes” para qualquer um dos povos envolvidos. Sem concessões para os nostálgicos do que não houve, Boogaart analisa friamente a figura de Maurício de Nassau e diz que o Nordeste teria sido uma colônia de plantação mesmo sob o jugo holandês. Ele se reMário
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cusa a fazer suposições históricas e baseia seus argumentos em fatos: “Afinal, os holandeses colocaram o Nordeste em 25 anos de quase ininterrupta guerra”. Para a Holanda, o fracasso “em todos os sentidos” da Companhia das Índias Ocidentais revelou-se uma vergonha grande demais para ser lembrada: “O Brasil holandês foi um episódio que muitos esqueceram com prazer”. Nesta entrevista exclusiva, ele ainda comenta a importância das obras de Evaldo Cabral de Mello e José Antonio Gonsalves de Melo, que lamenta por não serem mais conhecidas na Holanda. Hélio
REPRODUÇÃO
O desastre brasileiro
Na sua opinião, em que consistem as princi- nial ser uma atividade dentre várias dos mercadores. pais diferenças do método de colonização holandês A primazia de uma perspectiva comercial do coloem contraste com o português e o espanhol? nialismo e as muitas alternativas ao comércio colonial Durante os séculos 17 e 18, as empreitadas fizeram dos holandeses talvez os mais relutantes colocoloniais holandesas foram executadas por compa- nizadores europeus daquele tempo. Conquistar ternhias comerciais, como as Companhias das Índias ritórios, subjugar populações e se firmar do outro laOcidentais e Orientais. O colonialismo espanhol, do do oceano atraíam pouco os holandeses. Outra diportuguês, francês, e até certo ponto o inglês, no ferença era a nacionalidade das pessoas que iam, de começo da Idade Moderna, era principalmente fato, para o outro lado do oceano. O pessoal das um negócio estatal. Além disso, nos países católicos grandes companhias comerciais consistia em 50% ou a Igreja e o Estado eram aliados mais próximos do mais de alemães, escandinavos, franceses etc., mãoque nos países protestantes. Isso era mostrado no de-obra migratória que havia sido atraída pelos maapoio aos esforços missionários. Nas colônias de iores salários da Holanda. Isso significava que havia plantação holandesas e inglesas no Caribe, os es- menos chance de o colonialismo holandês ser visto cravos eram deixados para cuidar de suas almas de como um negócio nacional do que na Espanha ou acordo com seus próprios costumes. em Portugal. Na Holanda havia menos base social e A composição do “interesse colonial” – isto menos necessidade de cálculos sóbrios sobre uma é, os tipos de pessoa que influenciavam a política vida melhor do outro lado do oceano ou de fantasias colonial e suas perspectivas sobre esses assuntos – coletivas sobre terras longínquas de abundância. era, penso, mais diversificada em Portugal e EspaFinalmente, não se deve crer que as difenha do que nos Países Baixos. Nestes, os interesses rentes abordagens dos colonizadores europeus decomerciais tinham maiores chances de prevalecer terminavam totalmente ou mesmo predominantedo que motivos como honrar a soberania e a obri- mente que tipo de sociedades coloniais emergiam gação da Igreja em espalhar as “boas novas”. na América. A geografia, as condições de saúde e Há outro fato que se as atividades dos povos coloAs pinturas extremamente nizados são ao menos tão deve atentar ao se visualizar as forças por trás do coloniaimportantes para explicar as interessantes de Post e lismo holandês. Os holandeEckhout só mostram que as diferenças. ses dominaram por muito artes podem florescer num Mesmo considerando tempo o comércio intra-eua b s u r d a uma conjectura hisropeu. Daí o comércio colomonte de estrume
Detalhe de Vista de Itamaracá, Frans Post, óleo sobre tela, 63,5 x 89,5cm
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Bolsa de ações de Amsterdã, Hiob A. Berckheyde
tórica desse tipo, dá pra responder que país seria o Brasil se os holandeses tivessem permanecido não trinta, mas cem anos, por exemplo? Os holandeses não conquistaram o Brasil. Na verdade, não havia Brasil no século 17. Se os holandeses tivessem permanecido no Nordeste e os portugueses, nas áreas da Bahia, Rio de Janeiro e periferias, essas áreas teriam certamente sido disputadas em guerras entre os holandeses e os ingleses depois de 1650. Qual teria sido o resultado no século 21? Uns Estados Unidos do Brasil, de língua inglesa, no Sul, comparáveis aos Estados Unidos da América, no Norte? Um Brasil de línguas francesa, inglesa e holandesa entre o Oiapoque e o rio São Francisco e um Brasil português ao sul? Com a sabedoria da compreensão tardia só podemos dizer que a derrota dos holandeses foi uma das pré-condições do que mais tarde se tornaria o Brasil. Também é provável que, fosse qualquer nação européia que estivesse no controle, o Nordeste teria continuado como uma colônia de plantação. O registro histórico mostra que todas as antigas colônias de plantação – não importa se portuguesas, inglesas, holandesas ou francesas – terminaram se desenvolvendo lentamente nos séculos 18 e 19. Isso subli90 Continente Multicultural
nha o que eu dizia anteriormente sobre a importância limitada da nacionalidade do poder colonizador. É o paradoxo das colônias de plantação que enquanto elas eram, em vários aspectos, as mais modernas das sociedades no começo da Era Moderna, todas terminaram por se desenvolver lentamente no mundo industrial. A sociedade de plantação, um tipo muito moderno de sociedade pelos padrões do século 16, foi uma invenção dos portugueses “retrógrados”, aliás. Há da parte dos brasileiros uma referência quase sempre simpática à dominação holandesa. Eu acho que esta simpatia pelo Tempo dos Flamengos no Nordeste é em grande parte mal colocada, certamente quando se avalia o resultado. Demograficamente e economicamente, a tentativa holandesa de assumir à força a mais próspera das colônias de plantação portuguesas foi um desastre sem atenuantes para qualquer um dos grupos populacionais que lá viviam. Ela atrasou o desenvolvimento do Nordeste em pelo menos cinqüenta anos. Afinal, os holandeses colocaram o Nordeste em vinte e cinco anos de quase ininterrupta guerra. Era o paralelo, no Novo Mundo, da Guerra dos Trinta Anos na Alemanha e de sua imensa des-
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A primazia de uma visão comercial do colonialismo e as alternativas ao comércio colonial fizeram dos holandeses os mais relutantes colonizadores daquele tempo truição. Tomemos apenas o tamanho da população como índice. Em 1654 ela deve ter caído, nas quatro capitanias conquistadas, ao nível de 1600, se não de 1580. Em parte isso se deveu a epidemias que teriam ocorrido de qualquer modo. Mas a guerra tornava muito mais difícil compensar as perdas. As importações de escravos foram severamente interrompidas. Houve uma substancial migração para os territórios que permaneceram sob controle português. Índios e negros fugiram para as áreas não-colonizadas. Mais de 50% dos engenhos foram destruídos, uma grande paulada na capacidade produtiva da área. As realizações científicas muito concretas de Marcgraf e Piso e as pinturas extremamente interessantes de Post e Eckhout não diminuem em um centímetro os efeitos destrutivos da conquista holandesa. Elas apenas mostram que às vezes as artes e ciências podem florescer num monte de estrume.
ficativo foi o envolvimento holandês no comércio de escravos e no governo de uma sociedade escravocrata, e o exemplo que isso deu à Inglaterra. Antes de 1630, eu acredito que a opinião que prevalecia entre os holandeses era: essas são coisas de que é melhor ficarmos longe e deixá-las para os portugueses e espanhóis. Os comentários depreciativos de Dierick Ruiters sobre as atitudes portuguesas para com os escravos na Bahia na década de 1620 são reveladores sobre esse respeito. Você também os encontrará na crítica à Goa portuguesa, de Linschoten. No Sul da Europa havia uma tradição ininterrupta de escravidão desde a Antiguidade. Não era esse o caso no Noroeste da Europa. Por que e como os holandeses, ingleses e franceses vieram a aceitar a escravidão e como eles lidaram com suas contradições inerentes é um problema histórico tão interessante quanto por que eles eventualmente decidiram aboli-la.
O que representa para um historiador holandês a experiência holandesa no Brasil? Tanto por uma perspectiva do século 17 como por uma perspectiva liberal dos nossos tempos – e, claro, como um historiador holandês – eu diria que provavelmente o desenvolvimento mais signi-
Maurício de Nassau é ainda quase um herói epônimo no Brasil, a ponto de o novo prefeito do Recife ter afirmado como a sua maior ambição ser uma espécie de “novo Maurício de Nassau”. Que avaliação faz a historiografia holandesa desse maior ídolo da colonização entre os do Brasil? Continente Multicultural 91
Que importância teve a Companhia das Índias Ocidentais para a história do capitalismo no Ocidente? Nenhuma, eu diria. A WIC nunca se recuperou da aventura brasileira, e conseguiu subsistir na sua maior parte como uma concha protetora de mercadores e companhias menores operando individualmente na Ásia Ocidental e no Caribe. O que eu acho notável é a velocidade com a qual os mercadores holandeses e ingleses, operando, em sua maioria, como indivíduos, conseguiram com sucesso construir um “segundo Brasil” no Caribe depois de 1645, as colônias de plantação nas menores e maiores Antilhas. Isto é “capitalismo nascente” em ação, se você quiser. Por trás da sua pergunta há a pergunta maior, feita por Eric Williams no seu clássico Capitalismo e Escravidão (Capitalism and Slavery, 1943). Ele argumentou que as colônias de plantação, especialmente aquelas no Caribe, eram uma pré-condição necessária para a acumulação de capital que seria investido nas minas, indústrias Negros dançando ao som de tambores e instrumentos de cordas, Zacharias Wagener, gravura em cobre
têxteis e estradas de ferro da Inglaterra e da Europa Ocidental industrializadas do século 19. Mas eu acho que os historiadores que argumentaram contra Williams – que a Revolução Industrial e o capitalismo nos séculos 19 e 20 não foram criticamente dependentes das colônias escravocratas – têm os melhores argumentos. A aventura do Brasil holandês, até se você considerar o estabelecimento de 1664, não ajudou a acumular capital nos Países Baixos. Pelo contrário. Toda a empreitada foi uma triste perda de recursos e vidas. Ao destacar-sse as aventuras holandesas no Brasil, costuma-sse esquecer a importância que teve a sua presença na África e em outros domínios. Que conexão pode-sse estabelecer entre essas experiências do ponto de vista econômico e cultural? Sim, você está certo nesse ponto. Essa pergunta vai direto ao coração da experiência colonial holandesa nos séculos 17 e 18. Àquela época, a Holanda era a única nação cuja principal empresa colonial estava na Ásia e não na América. Nos séculos 19 e 20 a Ásia e a África se tornaram os principais
Nas colônias de plantação holandesas no Caribe, os escravos eram deixados para cuidar de suas almas de acordo com seus próprios costumes REPRODUÇÃO
Johan Maurits não é uma figura muito discutida na historiografia holandesa. Isso é verdade, aliás, para todo o interlúdio brasileiro. Para o homem holandês comum, ele não existe, nem o Brasil holandês. Minha visão é de que ele era um membro das aristocracias governantes européias, de mente maquiavélica, que fez um trabalho inteligente de gerenciar a sua reputação pelo seu apoio às artes e ciências.
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objetivos das rivalidades imperialistas entre os grandes Estados europeus. Para os ingleses e os franceses isso envolvia muito mais uma reorientação de seus papéis no mundo do que para os holandeses, que recebiam permissão dos ingleses para continuar na Ásia o que eles haviam começado por volta de 1600. Na imaginação histórica holandesa, mesmo hoje, o colonialismo é colonialismo na Indonésia. É lá de onde vem o material para inspiração literária, filmes e séries de TV. As atividades holandesas no Atlântico são um assunto muito menor na Holanda. O que holandeses podem se lembrar – com pesar – é que “nós” trocamos Nova Iorque pelo Suriname. “Nós” fizemos as coisas melhor no Oriente é o senso comum. A colônia brasileira não tem espaço na consciência histórica holandesa? É difícil dizer quais foram os efeitos do desastre brasileiro na psique coletiva dos holandeses, se há algo do tipo. Às vezes temos a tentação de pensar em termos psicanalíticos e nos perguntamos se o desastre brasileiro não foi profundamente reprimido. Uma formulação mais prosaica e provavelmente melhor seria que o Brasil holandês foi um episódio que muitos esqueceram com prazer. Afinal, até Johan Maurits começou bem rápido a se desfazer das suas coleções brasileiras. Até onde eu sei, não há nenhuma referência brasileira nos palácios e parques que ele concebeu como decoração de sua função como governador de Cleves, na Alemanha.
Retrato de Maurício de Nassau, Johannes de Baen, 1665
Que importância tem para os holandeses a interpretação brasileira da sua presença no País, especialmente os livros de José Antonio Gonsalves de Melo e Evaldo Cabral de Mello? É uma vergonha dizer que, afora o muito limitado número de historiadores holandeses que lêem em português, os trabalhos de José Antonio Gonsalves de Melo e Evaldo Cabral de Mello são ainda desconhecidos. Eu entendo que Tempo dos Flamengos foi traduzido recentemente e vai ser publicado em breve. Um esforço vem sendo feito para conseguir dinheiro e editoras para alguns dos trabalhos de Evaldo Cabral de Mello. Na minha opinião, Rubro Veio é uma obra-prima absoluta. É um daqueles livros que todo historiador deveria ler, independentemente de sua especialização, apenas para aprender o que são pesquisa histórica, pensamento analítico sobre os costumes do passado e Continente Multicultural 93
REPRODUÇÃO
Detalhe de peça votiva anônima representando a Batalha dos Guararapes
Os holandeses colocaram o Nordeste em vinte e cinco anos de quase ininterrupta guerra. Era o paralelo, no Novo Mundo, da Guerra dos Trinta Anos na Alemanha e de sua imensa destruição escrita da História. O Negócio do Brasil deveria ser leitura obrigatória em qualquer instituição para treinamento de diplomatas. Ele tem um quase eterno tema: a natureza constantemente mutante das relações entre Estados, e os papéis, freqüentemente muito pouco gloriosos, apesar da pompa externa, que os diplomatas têm que desempenhar. A mensagem pode até ser um pouco sombria. Esses livros merecem ser traduzidos para o inglês, francês e alemão primeiramente, mas isso está além dos meus poderes. Nós estamos tentando achar meios de tornar possível uma edição em holandês. Na sua opinião, qual a melhor interpretação do Brasil holandês? O melhor trabalho de síntese ainda é o habilmente intitulado The Dutch in Brazil (Os holandeses no Brasil), de Charles Boxer – nunca houve algo como The Dutch Brazil (O Brasil holandês) –, mas este trabalho é evidentemente impensável sem os trabalhos anteriores de José Antonio Gonsalves de Melo, José Honório Rodrigues, Hermann
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Wätjen, P. M. Netscher e F. A. de Varnhagen. Boxer não pôde usar Olinda Restaurada e os outros trabalhos de Evaldo Cabral de Mello, porque ainda não haviam sido publicados. Qual a pergunta que o Sr. considera fundamental para o entendimento da história do Brasil holandês, mas que, na sua opinião, ainda não foi feita, ou não foi bem formulada? Eu não sinto que haja qualquer ponto de importância geral que seja especialmente conectado às atividades dos holandeses no Brasil. Na minha opinião, o “Brasil holandês” é mais produtivamente estudado dentro da estrutura do que se tornou História Atlântica, uma estrutura que não prioriza histórias nacionais ou o papel dos europeus, mas que é comparativa com justiça e tenta dar um relato equilibrado dos feitos e experiências de todos os grupos étnicos envolvidos. Isso não deve desencorajar estudos especializados com um corte geográfico, social, étnico ou cronológico mais restrito. É um apelo para que se mantenha a cena mais ampla em mente e que se leia bastante na literatura histórica sobre a África e as Américas, tanto quanto sobre a Europa. Ernst van den Boogaart é historiador. Em 1979, organizou a exposição do Brasil Holandês para o Gabinete Real de Pinturas da Mauritshuis, um dos mais importantes museus da Holanda, instalado na Casa de Maurício de Nassau em Haia. Sua contribuição historiográfica atende sobremaneira ao campo da expansão marítima holandesa no Atlântico do século 17. Seu mais recente livro é Jan Huygen van Linschoten and the Moral Map of Asia (Londres,1999)
HUMOR
Sรกvio
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ÚLTIMAS PALAVRAS
Me dá uma cultura aí!...
P
obre de um país que vive na mendicância para se instruir. Os tecnocratas inventaram o economês para enganar suas mirabolantes engenharias do surrupio das reservas do tesouro – o tesouro da juventude. Os políticos, há séculos representam a ladroagem da consciência do povo (isso sem falar a dos cofres públicos). Os nobres juristas criaram a instituição do Habeas Corpus para a ralé dos abastados bedegüebas – porém incomum e desesperado para os marginalizados sociais. Os iletrados tiraram da cartola a temática dos desgraçados – aquela elite que ninguém que lê acredita. E o empresariado deu força à desatenção para o escrúpulo, buscando, principalmente, no segmento da comunicação, a maneira mais fácil de enriquecer às custas dos pobres palafiteiros das favelas sem nome, sem endereço, sem motivação (as novelas televisivas os fazem esquecer do sofrimento da falta do que comer ou do que fazer, para o bem de todos os vizinhos e felicidade geral da Nação). O Governo Federal que tenta melhorar a educação no País, quase nunca acicata a emoção lacrimejante dos que sabem alguma coisa, embora não meça esforços para proteger os habitantes da avenida Paulista – lamentavelmente não os sensibilizando ao investirem seus caixas restantes no incentivo à cultura. Os da Wall Street, engraçado, que não têm tradição cultural, não se furtam a empregarem seus dólares com essa finalidade – sabedores dos benefícios fiscais posteriormente abiscoitados. O Congresso Nacional, pela maioria de seus asseclas cativos, choraminga por não mais votar famigeradas Medidas Provisórias (antes incrementassem mais vantagens àqueles que desejem porventura descontar os impostos cobrados em função de promoções literárias e artes em geral) –, leis de consertos encetadas por magias protecionistas, gabando-se de procurar moralidades de dezenas de seus pares bisonhos da rapinagem, que freqüentam os esgotos dos caras-lisas, difundindo a
desmoralização da instituição mais contemplada de respeito no seio constitucional. A empáfia da parafernália televisiva, que paga milhões aos seus famintos produtores de ocasião para repetirem os dobrados dos sinos de Hemingway (não sei para quem), nos faz engolir, através dos auditórios de faustões, gugus, ratinhos e de outros menos premiados pelos ibopes, os maiores absurdos pedagógicos de todas as paragens. Isto sem falarmos nas novelas, que além de ensinarem aos jovens moços – paupérrimos moços-velhos – o adultério fácil e a destruição familiar pelos seus desmantelados roteiros, ainda roubam, em horários nobilíssimos, o deslumbre dos sem escolas, sem merendas, sem sonhos... Consoante tudo isso, ficamos à mercê de uma sociedade passional aos regalos dos seus interesses, desprezando os educadores e os policiais – cantiga que aprendi desde meus primeiros passos pelos Caminhos de Ouro, quando me encantava com o centeio rebelde daquele jovem apanhador de respostas desencantadas. Não mais reclamaríamos da violência nem das doenças, tampouco da fome – esquálida imagem que atordoa todos nós desafortunados de autoridade e humanismo. Só a cultura traz a fartura de reflexão. É preciso que as nossas empresas estatais e as do setor privado conheçam a Lei Rouanet. Ah, brilhante arena sem leões-de-chácara para nos abrigar da esperneante certeza do pires nas mãos diante uma mais lúcida cobrança que venha a pairar sobre esta nossa República de desavisados empreendedores!... Me dá uma cultura aí?...
Rivaldo Paiva 96 Continente Multicultural