Multicultural
Centenário – Poesia Cecília Meireles, poeta, ativista e educadora, está presente também na literatura de Portugal
Especial – Violência Escritor exilado afegão conta como seu país está sendo marcado a fogo pela ditadura dos Taliban
Século 21 –
Militância
Jovens protestam contra a globalização porque são eles que viverão suas conseqüências negativas
Crítica da cultura –
Retrato
Filmes mostram como compreender melhor as culturas norte-americana e islâmica
Religião – Intolerância A rivalidade entre judeus e palestinos, povos irmãos, tem origem registrada no livro do Gênesis
Memória –
Geopolítica da Fome
Conto –
Eros e Tanatos
Orgulho lusitano
O poeta português João Esteves Pinto fala de uma árvore símbolo de seu país dominando o deserto
Sabores pernambucanos –
Cachimbos e livros
O crítico João Alexandre Barbosa diz que gosta mesmo é de vagabundear entre livros
História –
Navegação
O historiador Evaldo Cabral de Mello mostra a importância da barcaça no Brasil do século 19
Mil palavras –
Festa
Marco Zero –
Para as massas
Música –
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Poesia cantada
O compositor Zoca Madureira e o poeta Jaci Bezerra gravam CD sobre o amor
Diário de uma víbora –
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Variedade
Joel Silveira conta sobre Jânio Quadros e a renúncia, Aldous Huxley e o Brasil, e Purgatório
Lição de Arte –
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Artistas da Paraíba
Miguel dos Santos e Flávio Tavares revelam universos centrados na magia e na família
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Caju
Nativo do Norte e Nordeste brasileiros, o cajueiro fornece óleo, resina, castanhas e doces
Literatura –
Foto: AFP / John MacDougall
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O cearense Moreira Campos narra história em que o erotismo surge na presença da morte
Antologia –
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Quando Josué de Castro convidou Roberto Rossellini para filmar o seu clássico
Capa: Menina afegâ refugiada se agarra à mãe, vestida com a tradicional burka, no acampamento de Jalozai
REPRODUÇÃO
http://www.continentemulticultural.com.br
CONTEÚDO
Continente
O fotógrafo Edmond Dansot registra a festa da Nossa Senhora da Montanha, dos Xucurus
Leis de incentivo à cultura estão sendo utilizadas quase exclusivamente na promoção de eventos
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Entremez –
Assunto polêmico
Colunista não profanou a memória de Guimarães Rosa e ainda discorda do final de Grande Sertão
Conversa franca –
Irreverência
O historiador inglês Paul Johnson desanca Picasso, os politicamente corretos e o relativismo moral
Humor –
Samuca
Últimas palavras –
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Jorge Amado
O encontro com o baiano quando ele andava por Salgueiro, em Pernambuco, buscando inspiração
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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert
Continente Multicultural
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manoel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira Editor de Arte Luiz Arrais Editoração Eletrônica André Fellows Ilustrador Lin Secretária Neuma Kelly Silva Colaboradores: Alberto da Cunha Melo, Alexandre Belém, Caesar Sobreira, Camilo Soares, Cláudia Nina, Denis Bernardes, Edmond Dansot, Evaldo Cabral de Mello, Fernando Monteiro, Gabriel Malard, Geneton Moraes Neto, Jafar Ashtieh, Joana Aquino, João Esteves Pinto, Joel Silveira, John MacDougall, Jorge Martins Jr., Kleber Mendonça Filho, Latif Pedram, Luiz Carlos Monteiro, Marcelino Freire, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mascaro, Menahem Kahana, Moreira Campos, Musa Al-SShaer, Nelson de Oliveira, Patrick Baz, Rahimullah, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Samuca, Sebastião Vila Nova, Tariq Mehmood, Zuleide Duarte Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Santanna, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Mauro Lopes, Rafael Rocha, Roberto Bandeira, Sílvio Mafra e Zenival Webmasters Carlos Eduardo Glasner Douglas Rocha Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco (ISSN 1518-5095) Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 Assinaturas Carina Aguiar Leal Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h30 Redação: fone/fax (81) 3222.4130 e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Circulação: 3217.2522 Publicidade: 3217.2520 Tiragem: 10.000 Impressão CEPE e-mail: depinfo@fisepe.pe.gov.br Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Caixa Econômica Federal Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
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Bom trabalho Parabéns pelo bom trabalho que vocês vêm fazendo. A revista é muito boa, do projeto gráfico à qualidade dos textos. Vida longa para a Continente! Edmílson Caminha – Brasília – DF Orgulho Foi a primeira vez que comprei a Continente. Parecia ser meu primeiro brinquedo! Sou pernambucano e moro em Brasília; quando vi que a revista era de Pernambuco, fiquei muito orgulhoso e ao mesmo tempo triste por não conhecer gente tão boa do meu estado. Que bom que descobri a tempo. Romildo Nascimento – Brasília – DF Folclore Encantei-me com o conteúdo e a feição gráfica da revista. Gostaria de ver inseridos nela temas sobre o folclore, entre outros. Tereza Brasileiro Silva – Campina Grande – PB E tem? Para mim, a melhor qualidade da Continente é a de ser feita por gente nossa. Se me perguntam qual a maior deficiência, respondo: E tem? Maria Conceição Cardim Pazzola – Olinda – PE Hegemonia Prezado professor Marcos Guedes: Sou aluno de Relações Públicas da Universidade Católica de Pernambuco e hoje – na aula de Cultura Brasileira ministrada pelo professor Janilton Rodrigues de Andrade – fizemos uma leitura e, posteriormente, uma análise de um texto de sua autoria sobre a cultura hegemônica publicado na revista Continente Multicultural (“A sedução da cultura hegemônica” – edição de agosto de 2001). Causou uma grande discussão entre o professor e os alunos o subtítulo desta matéria, em que o senhor afirma que “a idéia de que a combinação de raças e culturas empobrece o Brasil foi e ainda é inconscientemente a base da percepção das nossas elites”. Gostaria que o senhor nos explicasse o porquê desta “inconsciência” e as causas da sua existência. Ficamos gratos pela sua atenção, Atenciosamente, José Guibson Delgado Dantas – Recife – PE Caro José Dantas, Fico feliz em saber que o artigo provocou grande discussão. Este é objetivo principal dos ensaios que escrevo. Vou tentar responder sua pergunta pondo o problema a seguir: os brasileiros raramente assumem o racismo. Boa parte da nossa elite fala conscientemente que o país é uma democracia racial quando basta uma
observação geral para ver que os negros e índios não estão representados nas instituições do país. Outro exemplo recente é a discussão sobre políticas que apoiassem o ingresso de negros nas universidades. Sabe-se que o número de negros (e índios) nas universidades brasileiras é irrelevante. Mas as autoridades nunca aceitaram políticas sociais voltadas para grupos étnicos. Após muita resistência, o ministro da Educação acabou cedendo. Para conhecer mais sobre a história do pensamento racista e sobre a cultura do Brasil, dois livros importantes: O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, e O Brasil Visto de Fora, de Thomas Skidmore. Um abraço para você, seus colegas e para o professor Janilton Rodrigues. Atenciosamente, Marcos Guedes Delegacias Prezado senhor Marcos Guedes: Li um artigo escrito por V. Sa. (“Na delegacia em Londres e Recife” – edição de julho de 2001) e confesso que fiquei muito triste com sua comparação em relação às delegacias de Londres e Recife. Doutor, delegacias de vinte anos atrás jamais deveriam ser comparadas com as de hoje. Além do mais, todas as polícias em todos os países que já conheci são prepotentes, pois o poder de polícia por si só já impõe. No mais, não se pode generalizar a polícia por baixo. Temos ótimos policiais que saem de suas casas todos os dias para proteger uma população que sequer reconhece como é árduo o seu trabalho. Falo por mim e por muitos colegas meus. Sou uma agente de polícia, formada em Direito, com pósgraduação. Já viajei a muitos países, como a França, Espanha, Estados Unidos, Itália (não foi com o dinheiro do meu salário, é claro), e, para dizer a verdade, todos são tão violentos como o nosso. Só que com uma diferença. A população daqueles países defende muito a sua pátria, e nós, brasileiros, temos o péssimo hábito de só dar valor ao que é de fora. Espero que o senhor encontre um tempo e visite novamente nossas delegacias; com certeza não vai encontrar policiais fortemente armados, pois atualmente os policiais mal podem comprar comida, quanto mais armas. Quem anda fortemente armado é bandido, que, por sinal, em todos os lugares do mundo não falta. Atenciosamente, Ana Carla Uma policial que ama o trabalho que faz – Recife – PE Cara Ana: O artigo não generaliza nem compara as polícias. Apenas descreve fatos que se passaram em local e tempo diferentes. Seu objetivo é mais provocar a reflexão do leitor sobre questões referentes aos serviços policiais e conseqüentemente a necessidade de que tenhamos uma polícia melhor equipada, melhor remunerada, mais profissional e cumprindo orgulhosamente seu importante papel social, como você e todos queremos. Leia novamente o texto e procure vê-lo de outros ângulos. Agradeço sua opinião e espero contar com sua leitura e crítica sobre meus futuros escritos. Atenciosamente, Marcos Guedes
Teatro Finalmente uma Continente dedicada ao teatro! Sou apaixonada pelas artes cênicas e já achava que vocês estavam discriminando o palco, quando me deparo com a edição de agosto, que traz uma capa maravilhosa, com Fernanda Montenegro numa cena de Dias Felizes, de Samuel Becket. Grande sacada! Depois, um bom painel de depoimentos, com artistas do Sul-maravilha, mas também com nordestinos como essa brava Geninha da Rosa Borges, completando 60 anos de ribalta. Finalmente, o depoimento do diretor espanhol Moncho Rodríguez e seu trabalho, da maior importância, pela aproximação entre a arte nordestina e a arte ibérica. Agora, só está faltando vocês enfocarem a dança, afinal, em Recife (terra de vocês) acontece um dos mais importantes festivais de dança do país. Continuem assim, e parabéns! Melissa Ramos Leal – Fortaleza – CE Humor e contos Já venho acompanhando a revista há bastante tempo e nunca deixo de me surpreender com o nível de qualidade que os senhores não apenas alcançaram como têm mantido a cada número. Quero registrar, em particular, meu contentamento com a abertura de mais duas seções novas: a de humor e a de contos. São seções que nos permitem uma espécie de “descanso” mental entre tantos artigos e ensaios estimulantes. Quero particularmente parabenizar Gilvan Lemos pelo seu belo conto sobre a solidão infantil (“Tarde de Domingo” – edição de agosto de 2001). Guilherme dos Santos – Salvador – BA Errata Na edição anterior (setembro, 2001) alguns dos pôsteres encartados com o poema Cântico Negro apresentaram um erro no segundo verso, que deveria ser “Estendendo-me os braços, e seguros”, em vez de “Estendo-me os braços, e seguros”. A redação pede desculpas aos leitores e informa que os interessados podem ligar para 3217-2533 e solicitar uma cópia correta do pôster.
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o texto A Muralha e os Livros, Jorge Luis Borges faz lembrar: o homem que ordenou a construção da grande Muralha da China foi o mesmo que obrigou a destruição de todos os livros do seu império. “Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum dos príncipes: a única singularidade em Shih Huang Ti foi a escala em que o fez.” Destruir livros e obras de arte é mais fácil do que erguer muralhas, mas ambos são coisas comuns de mundos em guerra. Numa época tão sedenta de imagens e de acontecimentos espetaculares, milhares de folhas pintadas com tinta jogadas no fogo chamam pouco a atenção. Crianças desoladas e famintas despertam menos interesse do que as grandes cenas. No entanto, é das pequenas tragédias cotidianas que se fazem as enormes catástrofes humanas. A Odisséia e a Ilíada de Homero – os melhores poemas do Ocidente – embora tenham a guerra e o heroísmo como temas centrais, ficaram na memória da humanidade por suas cenas de amizade e lealdade. A violência num e noutro está a serviço de códigos de honra e dos costumes da civilização grega. A Divina Comédia, de Dante, embora tenha o seu maior impacto na primeira parte, o Inferno, é, na verdade, um tributo à redenção. Em nome da fraternidade é que foram criadas todas as grandes religiões, e na afirmação dos mais elevados princípios, forjadas as revoluções políticas. O cotidiano, infelizmente, insiste em desmentir a retórica e mostrar o quanto todo tipo de literatura é inferior à vida, esta, sim, a única verdadeira soberana. Ao tratar-se dos que sofrem por causa de guerras (seja no Afeganistão, Oriente Médio, Nova Iorque ou em qualquer parte da Terra), nunca é demais lembrar do exemplo de Magda Trocmé que, com o seu marido, salvou muitas crianças judias que estavam ameaçadas pelos nazistas. Ao conversar com o filósofo Philip Hallie e ouvir dele a frase “vocês são pessoas muito boas”, irritou-se e retrucou: “sinto muito, mas você não entendeu o que eu falei. Não fizemos isso em nome do bem. Fizemos pelas crianças.” Infelizmente, ao ver-se que a guerra ainda é a deusa deste mundo, deve-se dar razão ao poeta: “para o júbilo o planeta está imaturo”. Continente Multicultural 5
EDITORIAL
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Impérios, guerras e medos
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No centenário de Cecília Meireles, editora recupera obra em prosa da poeta
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ecília Meireles não surgiu do estrondo da Semana de Arte Moderna de 22. Seus passos antecederam ao modernismo, e seu primeiro livro publicado, Espectros, de 1919, revela a fase poética inicial de Cecília, sob a influência dos grandes poetas simbolistas do mundo. Como escreve o crítico Leodegário A. de Azevedo Filho, no artigo A Poesia de Cecília Meireles, os versos eram de uma “poesia aérea e vaga, lânguida e fluida, numa atmosfera intimista de penumbra e de sonho, ao mesmo tempo mística e sensual”. Esses traços estéticos também estão presentes nos poemas (raramente citados) publicados na revista Festa, órgão representativo da corrente espiritualista do modernismo brasileiro no Rio de Janeiro, editada pelo extinto Instituto Nacional do Livro. Única presença feminina de Festa, que representava uma reação crítica frente aos excessos do modernismo, em sua fase caótica e tumultuada, Cecília apareceu no primeiro número da publicação com uma força espiritual e um fluxo transcendente de indagação metafísica que marcaria seu estilo. Um estilo que se desenvolveu no universo poético da modernidade, em essência plural e multifacetada, em uma direção cada vez menos ligada às tradições, principalmente a partir do livro Viagem, de 1939. Professor titular emérito da UERJ e titular da UFRJ, Leodegário é responsável por um empreitada nada modesta: a coordenação de parte da obra em prosa de Cecília, que é pouco difundida em comparação à obra poética. As crônicas de Cecília estão sendo editadas ou reeditadas pela Nova Fronteira desde 1998, divididas em volumes que reúnem crônicas de viagem, crônicas de educação e também muitas de suas conferências (algumas inéditas). Uma obra vastíssima que revela uma Cecília altamente compromissada com os problemas da atualidade da época, com as tarefas educacionais, e encantada por tudo o que via e ouvia em suas andanças
Cláudia Nina 6 Continente Multicultural
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pelo mundo, em países como Holanda, Espanha, Portugal, Índia, México, Estados Unidos, e também pelo Brasil adentro, em Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. O resgate da obra em prosa de Cecília é talvez um dos investimentos mais significativos dentro das comemorações do centenário. Ao fim desta “viagem” – ainda sem um calendário definido para o término, pois ainda há necessidade de patrocínio – serão ao todo 23 volumes de uma obra que, segundo Leodegário, está praticamente esquecida. O professor já organizou os volumes das conferências proferidas pela poeta no Brasil e no exterior, divididas em seis blocos temáticos, entre eles folclore, assuntos orientais, literatura estrangeira e tópicos variados. Várias faces – A primeira imagem que se tem de Cecília Meireles é a de uma pessoa para quem a solidão era condição essencial de criação. Um universo solitário e silencioso, bem ao gosto de quem viu, desde muito cedo, a morte rondar a casa: o pai morreu antes mesmo de seu nascimento; a mãe, quando a poeta tinha três anos. O primeiro marido se enforcou dentro de casa. A intimidade inevitável com a morte talvez explique a forte consciência da fugacidade do tempo e da brevidade da vida muito presente em sua obra, marcada por uma nota indisfarçável de melancolia, desencanto e renúncia. Como escreve o crítico Leodegário Azevedo, na apresentação, ainda inédita, da coleção dos volumes das conferências, a consciência da morte, em Cecília Meireles e em sua poesia, “é a consciência da morte biológica, jamais a do espírito imortal. A vida pode ser encarada como um sonho,
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desde que reinventada, num conflito dualístico entre o finito e o infinito”. Cecília era espiritualista e adorava os mistérios do Oriente. Muitas de suas viagens para lá, como à Índia e ao Japão, estão registradas nos volumes de suas crônicas de viagem.
Retrato a óleo de Cecília Meireles, pela amiga portuguesa Vieira da Silva. Durante o regime salazarista, a pintora veio exilada de Portugal para o Brasil, onde contou com a ajuda de Cecília
Diálogo vivo – Além de serem o ponto mais curioso e apimentado da biografia de um autor, as cartas, os bilhetes e coisas do gênero formam um volume à parte na história de Cecília Meireles. Segundo o neto da poeta, Alexandre Carlos Teixeira, responsável pelos negócios ligados aos direitos autorais da avó, trata-se de uma correspondência vastíssima que fala de um diálogo vivo e muito rico com diversos intelectuais, artistas e escritores da época, como, por exemplo, Gabriela Mistral, grande amiga de Cecília, com quem trocou um sem número de cartas. Mas essas cartas vão permanecer, por um longo tempo, a sete chaves. Isso porque, para publicá-las, Alexandre diz que é necessário fazer antes uma seleção do material mais pessoal – a família teme expor perigosamente a intimidade da poeta – e a organização, digitação, enfim, todo um trabalho de recuperação dos arquivos pessoais que exigiria, além de esforço, dinheiro. “Nós gostaríamos imensamente de ver as cartas publicadas, mas não conseguiremos viabilizar nada sem patrocínio”, diz Alexandre, que confessa haver ainda muita coisa inédita que precisaria ser garimpada para que nenhuma “pérola” fique perdida ou mal aproveitada. Outra luta seria a de transformar em fundação cultural o antigo casarão onde Cecília viveu, na rua Smith Vasconcelos, no Cosme Velho, no Rio de Janeiro, bairro que também foi morada de Machado de Assis e de Portinari. A casa, de dois andares, com muro de pedras, construída em uma subida, está fechada com cadeados há cerca de dez anos e precisaria de uma reforma completa para abrigar uma fundação de pesquisa, misto de museu e biblioteca da autora. “Teríamos de ter um grande patrocínio, talvez vindo da inicitiva privada, porque governos não ajudam, e assim viabilizar a reforma. Mas não apenas isso, pois não adianta erguermos a idéia se não tivermos como mantê-la”, explica Alexandre, que tinha doze anos quando a avó morreu. Na verdade, existe algum material na Casa de Rui Barbosa, mas nada tão significativo quanto o arquivo pessoal que a própria família guarda consigo. Cláudia Nina é jornalista
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d’além-mar Cecília foi uma ponte entre os modernistas brasileiros e portugueses
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em incorrer na discussão sobre a brasilidade ou o lusitanismo da poesia de Cecília Meireles, o certo é que Portugal esteve presente, e muito, na vida da escritora. Basta dizer que Viagem (1939), o livro que ela própria reconheceu como o primeiro de sua maturidade, foi publicado em Lisboa e dedicado “a meus amigos portugueses”. Viagem foi o passaporte de entrada no rol dos “maiores poetas nacionais”, segundo Mário de Andrade, mas também a elevou, ao lado de Manuel Bandeira, à condição de poeta brasileiro mais influente entre os portugueses. No mesmo ano, a revista portuguesa Ocidente publicou, em capítulos, as suas memórias de infância, Olhinhos de Gato, que só sairiam no Brasil depois de sua morte.
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tos a controvérsia que se deu sobre a premiação (ver texto abaixo). Cecília faria mais uma viagem a Portugal, em 1951, desta vez passando pelo arquipélago dos Açores, onde haviam nascido a sua mãe e seus avós maternos. Pela natureza mais pessoal da viagem, era a intenção de Cecília viajar incógnita. Mas a popularidade dela novamente lhe reservou estadias em hotéis oficiais, recepções e entrevistas. Por tudo isso talvez, e por ter-lhe acometido um lumbago que a impediu de ir a homenagens, no final da viagem, Cecília passou a impressão de fria e lacônica nesta segunda visita. O que não abalou a amizade e a admiração dos portugueses, conservadas até a sua morte. (AB) Fonte: Cecília em Portugal, de Leila V. B. Gouvêa, Iluminuras, 123 pp. Fone: (11)3068.9433
Poeta leva acadêmicos às armas
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balada pela morte do marido e tendo que arrumar dinheiro para pagar as contas atrasadas, Cecília Meireles inscreveu Viagem no concurso Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras. Era o início de uma confusão que terminaria em insultos e armas, entre os imortais Cassiano Ricardo e Fernando Magalhães. Como relator do prêmio, Cassiano escreveu que Viagem “deve (...) ser classificada em primeiro e único lugar.” Magalhães não aceitou o parecer, acusando o relator de ter julgado sem ler os outros participantes. Para provar o contrário, Cassiano citou para os colegas trechos das obras concorrentes, criticando-as impiedosamente, e defendendo mais uma vez a eliminação dos candidatos. A celeuma cresceu e foi parar nos jornais. Correram boatos de que Cassiano pretendia um duelo. E, efetivamente, durante a leitura de um discurso de Magalhães – que continha ataques à estrutura moral de Cassiano – este levantou-se armado e prostrou-se ao lado do inimigo, que tratou de saltar os trechos mais violentos do texto. Ao final, o prêmio foi entregue a Cecília, que se divertiu com a história: “O Olegário [Mariano] resolveu aderir (...) ao Fernando Magalhães, o que me dá imenso prazer, pois ter os dois contra mim é uma das melhores recomendações”. Fonte: A Academia do Fardão e da Confusão, de Fernando Jorge, Geração Editorial, 586 pp. Fone: (11)3872.0984
Os acadêmicos Cassiano Ricardo (ao lado) e Fernando Magalhães (abaixo), em caricaturas de Moura e Romano, respectivamente: inimigos armados por causa de Cecília
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O casamento, em 1922, com o pintor português Fernando Correia Dias (que trabalhara com Fernando Pessoa e Almada Negreiros em revistas como A Águia e Rajada) fez de Cecília uma das primeiras pontes entre os modernistas brasileiros e portugueses. No Brasil, foi ela quem primeiro publicou versos de Pessoa – em 1929, na tese O Espírito Vitorioso – e quem primeiro escreveu uma apreciação crítica do poeta – na antologia Novos Poetas de Portugal, de 1944. Em Portugal, divulgou os então pouco conhecidos Oswald e Mário de Andrade, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, entre outros, já na sua primeira visita ao país, quando proferiu a conferência Notícia da Poesia Brasileira. Nessa visita, de 1934, a convite do casal de amigos Antonio Ferro (colaborador de Fernando Pessoa na revista Orpheu e agitador do modernismo brasileiro) e Fernanda de Castro, Cecília impressionou sobretudo pelas conferências que apresentou. Além da já mencionada Notícia da Poesia Brasileira (que foi repetida, a pedido dos estudantes da Universidade de Coimbra), falou sobre Batuque, Samba e Macumba e Brasil e Sua Obra de Educação. Na viagem, fez amigos, muitos, com os quais se correspondeu até o fim da vida. Formou-se “uma família meio dispersa”, que o perigo veio reunir quando do suicídio de Correia Dias, em 1935. Não bastasse a tragédia, pouco tempo depois se deu a devassa, pelo Estado Novo, no Centro de Cultura Infantil do Pavilhão Mourisco, criado por Cecília (ver matéria na pág. 13). Pelas cartas, os amigos tentavam devolver ânimo à poeta, que precisou se reestruturar rapidamente para sustentar sozinha as três filhas. Na correspondência, hoje espalhada em mais de um arquivo pessoal, a solidariedade dos amigos portugueses sempre foi presente. Numa carta do ensaísta José Osório de Oliveira a Cecília, de 27 de outubro de 1935, pode-se ler: “Saiu aí [no Brasil] uma Antologia de Poetas Modernos em que você não figura. Fiquei danado e (...) com uma vontade de me atirar à bestinha [o escritor Dante Milano] que organizou essa antologia”. O escritor Carlos Queiroz, em carta de 31 de maio de 1937, escreveu: “Você estranha que a obra do Fernando Pessoa ainda esteja inédita, mas eu estranho ainda mais que [você] não publique mais freqüentemente os seus poemas. (...) É você que não quer? Queira, Cecília!” E em 1938, quando Cecília inscreveu os poemas de Viagem no concurso ao prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, os amigos portugueses acompanharam aten-
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Bico-de-pena do pintor húngaro Arpad Szenes, que tornou-se marca da obra ceciliana, até hoje utilizado em seus livros
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e vigor
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Luiz Carlos Monteiro
ecília Meireles começou a escrever poesia ainda na adolescência. Com apenas dezoito anos publica Espectros (1919), no Rio de Janeiro. Este livro seria renegado posteriormente, decerto pela configuração parnasiano-simbolista dos sonetos nele constantes. Até 1925 escreverá Nunca Mais... e Poema dos Poemas (publicados conjuntamente), além de Baladas para El-Rei. Em todos eles percebe-se estreita vinculação com a tradição literária imediatamente anterior. Mesmo num livro como Viagem (1939), permeado pela mudança diccional e de conteúdos, a estética da abstração e da religiosidade ainda se manifesta. Com esta quinta obra, ela arremataria o prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras em 1938. Com a publicação de Viagem em Lisboa, ampliou-se o reconhecimento que os portugueses já demonstravam por sua poesia. No Brasil, ela vinha conquistando a unanimidade da inteligência literária da época, seus próprios versos sendo apreciados por nomes insuspeitos como Drummond, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes e até mesmo João Cabral. O poema Improviso, de Manuel Bandeira, vale como retrato pessoal e síntese crítica da poesia ceciliana: “Definição:/ Concha, mas de orelha;/ Água, mas de lágrimas;/ Ar com sentimento./ – Brisa, viração/ Da asa de uma abelha.” Literariamente apaixonada por Mário de Andrade, organizou, a convite da Prefeitura do Rio, uma antologia poética do modernista, que não ficou pronta para a ocasião prevista (aniversário de quinze anos da morte de Mário). Apareceu mais de três décadas depois, em 1996, sob o título Cecília e Mário, enriquecida pela 10 Continente Multicultural
correspondência entre ambos e estudo crítico dela sobre a poesia do autor de Clã do Jabuti. Entre os elementos definidores do texto poético ceciliano encontram-se a extrema musicalidade e o vigor rítmico. Novas e freqüentes inserções temáticas e estilísticas em seus livros não anulam esta conjunção. Tinha ela o dom de transformar assuntos banais, aparentemente simplistas ou espinhosos em poemas de alta resolução imagética e melódica. Os desvios temáticos mais gritantes ensejamse em livros isolados como Romanceiro da Inconfidência (1953) e no póstumo Ou Isto ou Aquilo (1964). O Romanceiro caracteriza-se por uma poesia de feitio épico e forte inclinação social. Destinado ao público infanto-juvenil, Ou Isto ou Aquilo traz uma linguagem leve, afetiva e alegre. E também propõe desafios ao raciocínio em metáforas e antíteses que levam a meninada a pensar. Ainda que sem lances espetaculares, sua vida não se resume a um ramerrão de passividade ou conformismo. A quebra de neutralidade cotidiana é determinada pelas numerosas viagens que empreendeu. Além de Portugal e outros países europeus, ia sempre ao Oriente, com predileção pela Índia, o Egito e o Paquistão. Daí resultaram livros de poesia e de crônicas relatando aspectos insólitos daqueles povos e lugares. Alguns acontecimentos dramáticos rondaram sua vida, como a orfandade total e a perda de três irmãos antes dos três anos. Além da censura do Estado Novo e do suicídio do primeiro marido, Fernando Correia Dias, lutou contra o câncer a partir de 1961. Morreu em 1964, no Rio de Janeiro.
Luiz Carlos Monteiro é crítico literário
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parentemente distantes, Cecília Meireles e Florbela Espanca aproximam-se em vários ângulos, e, mais, na busca da identidade perdida. A escrita é a aventura de questionamento, construção e desconstrução do sujeito na linguagem. Tendo vivido na mesma época, uma não teve contato com a obra da outra. Florbela Espanca nasceu em 1894 em Vila Viçosa, no Alentejo, e Cecília Meireles, em 1901, no Rio de Janeiro. Publicaram no mesmo ano, 1919, o primeiro livro. Cecília, Espectros, e Florbela, Livro de Mágoas. Em 1923, publicaram mais um livro de poemas. O de Cecília, Nunca Mais... e Poema dos Poemas, e o de Florbela, o Livro de Sóror Saudade. Cecília Meireles apresenta uma trajetória de permanente exercício criativo e de participação na vida acadêmica e cultural. Não se limitou apenas à criação do texto artístico, mas, como professora, organizadora de antologia ou conferencista, divulgou a literatura portuguesa. Florbela Espanca, personagem controversa e surpreendente, produziu uma obra de intensa e de-
Zuleide Duarte
sesperada auto-expressão, alheia à efervescência literária que a rodeava. Ao contrário de Cecília Meireles, que muito viajou, Florbela nunca saiu de Portugal, e sua atividade pedagógica limitou-se à função de explicadora na escola de Alberto Moutinho, seu primeiro marido. Não obstante as coincidências, quando Cecília organizou, em 1944, a antologia Poetas Novos de Portugal, nela não incluiu o nome de Florbela Espanca, morta havia catorze anos. Seria Florbela Espanca ignorada de tal forma ou um certo preconceito contra sua poesia falou mais alto? Ou ainda, o preconceito no Portugal católico e conservador contra a forma de sua morte? E se o seu suicídio pesou, por que Sá-Carneiro, também suicida, não sofreu a mesma discriminação? Outro aspecto é a participação de Cecília na revista Festa, e a de Florbela no Suplemento Modas e Bordados do jornal O Século, em Notícias de Évora e na revista Seara Nova. Cecília foi associada ao grupo “Festa”, Florbela permaneceu à margem dos acontecimentos intelectuais que viveu Portugal, nas primeiras décadas do século: Orpheu, Athena, Centauro. Quanto à temática, a idéia da morte apresentase na poesia de ambas. Aquela a quem Florbela Espanca tem “o corpo prometido”, ou aquele ato “tão fácil”, para Cecília Meireles. A fuga pela via do onírico: para Cecília, o passado é irreversível, e o futuro, silêncio. Para ela, que canta “porque o instante existe” e sabe que um dia estará muda, o sonho é a força motriz da vida. Em Florbela, a morte é o retorno à natureza. Na vida, resta-lhe o sonho. Os símbolos que povoam a lírica ceciliana, tais como as mãos, os olhos, o mar, a flor, também transitam pela poesia de Florbela. Em Cecília encontramos Mar Absoluto, (título de livro), Caramujo do Mar, Beira-mar etc. Em Florbela, Tarde no Mar, Vozes do Mar, Eu Queria ser o Mar... Sobre a flor, em Cecília, temos Os Motivos da Rosa, A Flor e o Ar, O Ramo de Flores. Na poesia de Florbela abundam Rosas, Crisântemos, Folhas de Rosa etc; O sensualismo contido e sublimado de Cecília Meireles, em contraponto com a sensualidade assumida e o indisfarçável erotismo de Florbela Espanca, representa, também, um interessante filão.
A poesia no espelho ÃO
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A poetisa portuguesa Florbela Espanca, com quem Cecília apresenta semelhanças e distinções
Zuleide Duarte é doutoura em Literatura Brasileira pela UFPB e professora da Funeso
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ILUSTRAÇÃO: LIN
Versos para brincar
Cecília Meireles foi um dos poucos poetas brasileiros a escrever especificamente para as crianças
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alvez por ser considerada coisa muito séria, é difícil encontrar poesia bem-humorada. Corre o risco de ser considerada superficial. O que é um evidente preconceito, mas, possivelmente por causa disso, poucos bons poetas escreveram para crianças na língua portuguesa. Fernando Pessoa fez alguns poemas que tratam a criança com intimidade carinhosa e até identificação. Manuel Bandeira tem poemas que podem ser considerados “infantis”, embora inseridos em sua obra para adultos. Apenas Vinicius de Moraes e José Paulo Paes produziram “de propósito” poemas para crianças. Eles dois e Cecília Meireles, que escreveu o livro Ou Isto ou Aquilo, publicado em 1964, sob a classificação de Poemas Infantis. A primeira exigência que se pede a tal tipo de texto é o de não subestimar a inteligência infantil. A segunda é reforçar mais o encantamento sonoro do que a percepção de sentido. O que uma criança atenta de imediato na linguagem falada é o som. Daí certos bebês se danarem a “discursar” com desenvoltura e ênfase, numa algaravia que busca imitar os sons – e os tons – da linguagem falada. A terceira exigência de um texto dedicado às crianças é o humor. Porque criança adora brincar, é claro. Cecília Meireles segue os três preceitos. Ela explora ludicamente a sonoridade das palavras, como nas aliterações em “c”, “l” e “r”, do poema Colar de Carolina: “Com seu colar de coral,/ Carolina/ corre entre as colunas/ da colina.// O colar de Carolina/ colore o colo de cal,/ torna corada a menina.// E o sol,/ vendo aquela cor/ do colar de Carolina,/ põe coroas de coral// nas colunas da colina.” 12 Continente Multicultural
Em A Lua é do Raul, Cecília provoca a criança leitora a descobrir certos paralelismos estranhos (ou parentescos esdrúxulos) entre as palavras. Se se prestar bem atenção, vai-se notar que a palavra “luar” é a palavra “raul” escrita de trás pra frente. Dando-se uma pequena pirueta mental, pode-se concluir daí que Raul é o contrário de luar. Ou não? Uma prova de bom-humor está no poema O Mosquito Escreve, no qual Cecília se refere àquele balé meio solene, meio esotérico, que moscas e muriçocas (ou pernilongos) fazem com as patinhas: “O mosquito pernilongo/ trança as pernas, faz um M (...) Esse mosquito/ esquisito/ cruza as patas, faz um T”. E segue até o mosquito “escrever” todas as letras da palavra “mosquito”. No final, o poema conclui: “Oh!/ Já não é analfabeto/ esse inseto,/ pois sabe escrever seu nome.// Mas depois vai procurar/ alguém que possa picar,/ pois escrever cansa,/ não é, criança?// E ele está com muita fome.” Ao mesmo tempo que diverte, a poetisa estimula a criança a estudar. Esse tipo de didatismo é acentuado no livro A Festa das Letras, escrito a quatro mãos com o médico Josué de Castro, e publicado em 1937. Nele, Cecília chama a atenção das crianças para questões de educação, higiene e nutrição, construindo pequenos textos a partir de cada letra do alfabeto: “E – de Educação!/ E – que não Engole à-toa./ E – que Escolhe, E – Exigente –/ para não ficar doente/ com alguma indigestão!” Há os poemas em que – independentemente de estar escrevendo para crianças – Cecília realiza o que faz melhor: poesia. Aliás, uma poesia melódica e balouçante. Como em Pescaria: “As mãos do mar vêm e vão,/ as mãos do mar pela areia/ onde os peixes estão.// As mãos do mar vêm e vão,/ em vão./ Não chegarão/ aos peixes no chão.// Por isso chora, na areia,/ a espuma da maré cheia”. (MP)
O vôo do inseto obscuro
Dona de uma poesia “aérea e fluida”, Cecília Meireles foi, também, uma jornalista polêmica
idéias. “O jornalismo de Cecília Meireles é marcado, a partir de 1931, por polêmicas e artigos bombásticos contra aqueles que difundissem idéias contrárias a seus objetivos de modernização. (...) A tarefa era imposta sobretudo pela vontade e pela crença na possibilidade de mudar a sociedade através da atuação política. Para a jovem normalista e poetisa, a educação era o único campo onde essas transformações eram factíveis: por meio dela novas gerações teriam a liberdade individual necessária para formar uma consciência própria”, revela Valéria. A poeta começou seu trabalho na imprensa no Diário de Notícias, criado no Rio de Janeiro em 1930, dirigindo uma seção diária dedicada à educação e à política: Página de Educação. Até 1933, publicou 960 artigos em que tratava Getúlio Vargas pelo apelido de “Sr. Ditador”, defendendo a Escola Nova criada pelo filósofo norte-americano John Dewey. Pregava a co-educação entre os sexos (até então meninos e meninas estudavam em classes ou colégios separados) e independência das escolas ante a ingerência da Igreja Católica, fortalecida pelo decreto governamental de ensino religioso. Essa postura acarretou perseguição ideológica às atividades da poeta, culminando com o caso do Centro de Cultura Infantil, entidade que Cecília e seu marido, o pintor Correia Dias, inauguraram em 1934, num prédio abandonado do Pavilhão do Mourisco, na praia de Botafogo, no Rio. Primeira biblioteca infantil brasileira, o centro chegou a reunir 1.500 inscrições de leitores. Três anos depois, durante o Estado Novo, o centro é invadido pelo interventor do Distrito Federal. O clássico infantil As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, é apreendido sob a acusação de comunismo. O caso – de tão absurdo – teve repercussão internacional. Mas, logo depois, a prefeitura fechou o Centro de Cultura Infantil e, no lugar, instalou um posto de arrecadação fiscal. (MP) REPRODUÇÃO
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ida por críticos como Mário da Silva Brito como uma “figura solitária”, “aérea e fluida”, com uma poesia que “paira acima do drama contemporâneo e, assim, não se insere no momento histórico”, Cecília Meireles é revelada pela pesquisadora Valéria Lamego como educadora e jornalista atuante e combatente, no livro A Farpa na Lira – Cecília Meireles na Revolução de 30 (Editora Record, 255 páginas). No poema Casulo, indaga Cecília: “Dize-me, inseto obscuro:/ Com que asas voaste/ De dentro de ti mesmo?” Segundo Valéria, este poema pode servir como metáfora da saída da poeta de uma postura interiorizada para o combate jornalístico por suas
Foto de capa do livro A Farpa na Lira
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especial
Afeganistão: a Faz já vinte anos que o Afeganistão vive sob uma repr
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historiador Ata-ol Molk Koveini narra a chegada de Gengis Khan à mesquita de Bukara, um grande centro cultural da época, dotado de uma imensa biblioteca: “Levaram ao pátio da mesquita cofres cheios de livros e de manuscritos sagrados e os jogaram no chão, utilizaram os cofres para pôr a comida dos cavalos, beberam taças de vinho e convidaram os músicos da cidade para divertir-se e dançar na mesquita. Os mongóis cantaram e gritaram para saciar seus apetites, e ordenaram aos imanes, aos sábios, aos doutores da religião, aos chefes dos clãs e aos notáveis que se pusessem a seu serviço e que se ocupassem de cuidar dos seus cavalos. Gengis Khan decidiu, então, partir para seu palácio, seguido por seus homens, que pisotearam as páginas arrancadas do livro sagrado, misturadas no monte de objetos destroçados. Naquele instante, o emir iman Kalaledin Ali ben Hassan Al-Rendi, chefe religioso supremo da Transoxiana, se voltou para o iman Rokneddin Imamzadeh, o eminente sábio, e lhe perguntou: “o que é que acontece conosco, Molana? É um sonho ou realidade?” Molana Imamzadeh respondeu: “Não digas mais nada. É o vento da ira de Deus que nos castiga, e já da destruição das “casas de ciência” pelos mongóis. não nos restam forças para falar.” Havia lido também os relatos do saque da biblioteca No dia 18 de agosto de 1998, o vento da ira ismaelita pelo exército de Hulagu Kan e, recuando divina soprou novamente sobre Pol-i-Komri, uma mais na história, o incêndio de Persépolis por Alexancidade do norte do Afeganistão... dre Magno. Mas desta vez não se tratava do relato Por uma brecha do esconderijo em que me de Radhid-Olddin Fazlollah, ou do de Ata-ol Molk havia refugiado, via os Taliban ocupados em queima Koveini: era um fato que ocorria diante de meus próos livros na praça principal da cidade. Era triste tes- prios olhos e na aurora do Terceiro Milênio. O intetemunha da queima de 55mil livros do centro cul- lectual tem o dever de ser testemunha privilegiado de tural Hakim Nasser Kosrow Balki. Como se, disfar- seu tempo, mas eu preferia não ter presenciado nunçado do mulá Omar (o chefe dos Taliban), Gengis ca o martírio da espiritualidade, da cultura e do livro Khan e seu exército tivessem entrado na cidade para pelos agentes da ignorância e do fanatismo. Com este repetir o acontecimento mais trágico de nossa histó- retorno da tragédia tantas vezes repetida na história ria. Naquele instante, eu também não tide nossa civilização entrou vergonhosanha forças para falar. Conhecia a história Latif Pedram mente o Afeganistão no século 21. 14 Continente Multicultural
biblioteca arde AFP
essão sangrenta, um despotismo absoluto e ilimitado
Sou do Afeganistão, um país que se viu implicado, durante nove anos, numa guerra de resistência contra a União Soviética. Um país que se debate sem esperança em um torvelinho de guerras civis que deixam para trás centenas de milhares de mortos e milhões de feridos físicos e psíquicos. Uma “terra em ruínas”, “uma terra esgotada”, um país devastado que poderia gravar em seus portais as palavras que Dante fez inscrever na entrada do inferno: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. A resistência da linguagem, a luta contra a censura, a vontade de conquistar a liberdade: tais eram os temas que ocupavam o diálogo cotidiano entre escritores e intelectuais deste país; mas eles, em maioria, foram enviados para os pelotões de execu-
ção, exilaram-se ou esperam, ainda hoje, a súbita chegada de sua própria morte neste inferno em que se converteu o Afeganistão. Aquele diálogo cotidiano já não é mais que um amargo cântico de luto: o relato dos Finnegans que conduzem inevitavelmente sua própria “dó”. Faz já vinte anos que o Afeganistão vive sob uma repressão sangrenta, um despotismo absoluto e ilimitado. Faço minhas as palavras de García Lorca para dizer que sobre o território afegão de hoje “não há mais que suspiros que remam”. Nós, os poetas e os escritores afegãos, somos cativos desta encarnação da estupidez que se abateu sobre nós como um manto de chumbo. Nenhuma ordem prevalece neste país e os ditadores, os ebdals, são o centro e a órbita de tudo. Por isso, nós, os escritores afegãos exilados, tratamos de nos fazer ouvir em outros países para dizer o que temos a dizer. No cume da desilusão, esperamos que as verdadeiras necessidades sejam satisfeitas, enfim. Se há um traço comum nas três tiranias que dominaram a sociedade afegã, a dos mongóis, a dos comunistas e a dos Taliban, é, sem dúvida, o ódio ao livro e a sua destruição sistemática. A tomada do poder pelo Partido Comunista marca o começo da liquidação dos inconformistas. Uma montanha de livros da biblioteca da Universidade de Cabul, julgada “burguesa” ou “capitalista” pelo Partido Democrático, foi amontoada e destruída. E na impossibilidade de destruir todos os livros, se tratou de guarda-los a sete chaves e deixar que mofassem nos porões. Durante as sangrentas ditaduras de Taraki e de Amin, numerosos jovens e intelectuais foram encarcerados ou executados pelo simples fato de haver lido ou possuir livros que não coincidiam com “a linha do Partido”. O poder do Partido Democrático (satélite da União Soviética) suscitou certas mudanças e um despertar do pensamento político; ainda que não fosse mais que pelo desvio de uma literatura de prolekult e de “realismo socialista”. Mas, em seguida, o
Mulheres ativistas do principal partido político-religioso do Paquistão, com armas de brinquedo em uma das mãos e o Alcorão na outra, em manifestação anti-americanista
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caiu alternativamente nas mãos dos distintos beligerantes durante a guerra civil, foi destruído e hoje não resta praticamente nada dele. Os Taliban se opõem à pintura, à escultura, à fotografia e à música. Que houve com os cálices de Jam, em Herat, obras-primas da época timuri? Não se sabe nada deles. Durante os anos do governo do Partido Democrata, foram criadas associações oficiais de escritores e artistas. Mas, enquanto obras como A mãe ou O aço foi temperado eram difundidas massivamente, o Comitê Central do Partido dava ordem de retirar de todas as bibliotecas do Afeganistão as obras de Nietzsche, Sartre, Beckett e Popper, entre outros. Foi o começo de uma campanha de “limpeza cultural” das publicações capitalistas e ocidentais. Proibiu-se terminantemente a entrada de livros estrangeiros. O acesso às obras dos demais escritores de língua persa e de publicações iranianas ou do Tajikistião se tornou muito difícil. Foi talvez uma das razões pelas quais a literatura e a cultura persas não tiveram a ressonância que esperávamos em todo o mundo, com o mesmo direito que a literatura árabe ou a sul-americana. Como resistimos a esta forma de stalinismo? E o que houve com a literatura, que caminhos seguiu para livrar-se das garras dos censores? O primeiro obstáculo foi a falta de estabilidade política, que não permitia um trabalho contínuo e profundo. O golpe de Estado comunista de 1978, seguido do golpe de Estado interno de Najib, em 1984, e depois a criação do primeiro governo islâmico, em 1992, com a saída de Cabul das forças de Massud, em novembro de 1994, e a chegada dos Taliban, nos imporiam experiências múltiplas e diferentes. Mas todos estes regimes, cada qual a seu modo, nos privavam da liberdade com a repressão, o cárcere, a delação, o desparecimento, etc. Frente a TARIQ MEHMOOD / AFP
Afegão empurra carro com seus filhos, em direção ao Paquistão
stalinismo mostrou seu autêntico rosto: as reivindicações mais elementares por parte dos intelectuais foram reprimidas. Proibiu-se a formação de partidos políticos, sindicatos e associações de artistas e de escritores à margem do aparato do Estado. Todos os movimentos, incluídos o marxista, o islâmico ou o nacionalista, se viram perseguidos severamente. O começo da luta armada empurrou numerosos adversários do regime, escritores e intelectuais a buscar refúgio nos acampamentos de guerrilheiros e o movimento pela liberdade se iniciou uma vez mais de forma não democrática. Isto se deve talvez ao infortúnio dos intelectuais dos países periféricos. Quem tem por ofício escrever e deveria combater com a pena na mão se encontra em uma situação tão insustentável que acaba por empunhar as armas. Desta forma, atuar democraticamente se torna paradoxal em países como o meu. O compromisso literário é como andar no fio de uma navalha. Eu mesmo me vi obrigado, em razão das pressões políticas do regime pró-soviético, a deixar de escrever provisoriamente e a refugiar-me no quartel general de Ahmad Shah Massud no vale do Pankshir. Ainda conservo na memória o terror daqueles dias em que testemunhei mortes e bombardeios nas zonas rurais e assassinatos de civis nos dois acampamentos. Quando “o vento do paraíso” começou a soprar no Afeganistão, em 1992, os ofícios e as artes que não tratavam do “nobre tema” foram relegados. Desde 1994, o tal vento se transformou em tempestade. Os Taliban tocaram a trombeta da ressurreição. Os arquivos nacionais e o museu de Cabul, que conservavam os manuscritos mais importantes e tesouros culturais milenares como os de Ay Kanum, Mandigak e Talla Tappeh, foram completamente saqueados e espoliados. O bairro em que se achava o museu
uma resistência prolongada e a extensão dos combates desencadeados pelas forças armadas, o regime pró-soviético se viu obrigado a ceder algo de terreno, e forçosamente mudaram também os métodos de repressão. Em lugar de lançar-se a um combate aberto, o regime começou a distribuir jornais ao povo. Um bom número dos que apareceram durante os anos em que Najib deteve o poder eram, na realidade, jornais do governo “maquiados” para dar a impressão de uma abertura. Todos sabíamos bem naquela época que estavam financiados pela temível Khad, o escritório de informação. As Notícias da Semana, que se dizia crítica ao governo, tinha o apoio do serviço de espionagem. O regime queria utilizar aqueles jornais para controlar e corromper a opinião pública. Mas, apesar de um sistema de censura e controle asfixiante, os escritores conseguiam encontrar brechas e explorá-las recorrendo a uma linguagem metafórica e alegórica. As dificuldades não impediram que este período seja o mais rico do Afeganistão contemporâneo pela qualidade e a quantidade das produções literárias. Havia uma literatura barata, chamada literatura popular ou operária, que estava apoiada e financiada pelo governo e cujas importantes tiragens contribuíam para alimentar a maquinaria de propaganda pró-soviética. Enquanto isso, os outros escritores “independentes” prosseguiam suas atividades subterrâneas. As notícias, os poemas ou as obras de teatro proibidas circulavam manuscritas ou multicopiadas. Eram distribuídas durante a noite e, apesar de todos os perigos e pressões, considerávamos importante permanecer no país. Rechaçávamos a idéia de emigrar e abandonar nossa profissão; ver-nos obrigados, para nos alojar e nos alimentar, a nos converter em taxistas ou garçons de bar em algum país estrangeiro. E menos ainda queríamos sofrer as humilhações das longas filas diante dos institutos de assistência social dos países que nos acolheram. Preferíamos, pois, este inferno a ter que mendigar. Com a instauração do governo islâmico e a chegada ao poder dos Taliban, essa mínima atividade cultural foi aniquilada por completo. O Partido Democrata aceitava, pelo menos, a existência da arte e da literatura “socialistas”; os mujahiddin e os Taliban suprimiram tudo. Pois “Deus não aceita os pintores e os desenhistas e previne o profeta contra os poetas e os imaginativos”. E assim foram proscritos todos os centros culturais. Vimo-nos confrontados à negação completa da arte e da literatura, sem brechas que explorar. Tudo nos foi negado. Até ao ponto de nos per-
guntarmos, mas com um sentido muito diferente daqui no Ocidente: para que serve a literatura? Nesta atmosfera tratamos de preparar a liberdade. E por isso optamos pelos aforismos. Antes que nos inspirar na Minima moralia, de Adorno, bebemos da herança dos mestres da literatura e da língua persas. A criatividade literária e o estetismo estavam no mais íntimo dos nossos cuidados, e quando nos aventurávamos a expor o mal e as injustiças, nos esforçávamos em ensinar a nossos interlocutores a não expor verdades definitivas e preconceitos. Éramos muito conscientes dos perigos da escrita e do escrito. Não era nos livros onde havíamos descoberto a natureza de um regime de partido único, ou a de uma literatura marcada pela ideologia, integrista e consumadora da verdade única. Nossa escola era a convivência cotidiana com semelhante literatura e gramática do despotismo. Criamos grupos clandestinos para continuar trabalhando e distribuindo nossas obras. Mais
Nós, os poetas e os escritores afegãos, somos cativos desta encarnação da estupidez que se abateu sobre nós como um manto de chumbo tarde compreendemos que isto não bastava e que nos estávamos distanciando de nosso autêntico objetivo: a criação literária. Decidimos então dissolver nossos círculos para nos consagrar a um trabalho individual e evitar os perigos dos grupos, ainda que os intelectuais de esquerda extremistas e os partidos políticos que tiravam sua inspiração “do lugar silencioso do repouso celeste” e “da estrela de rubis do Kremlin” nos acusassem de abandonar nossas responsabilidades sociais. E nosso grupo que, segundo as palavras de Joachim de Fleuré, vivia na “terceira etapa da história: a etapa do Espírito Santo”, já não cria na definição oficial da responsabilidade social e do compromisso literário. Foi o início da autodestruição; havíamos esvaziado nossas associações de seu sentido funcional para produzir individualmente em um espaço aberto. Isto significava romper com a gramática em uso, com o texto usual e a antiga tradição literária e social. Para que o escrito se libertasse do perigo da Continente Multicultural 17
RAHIMULLAH / AFP
Soldados do Taliban, num suposto acampamento terrorista no Afeganistão, cujas casas foram destruídas por mísseis norte-americanos, em retaliação ao ataque terrorista às embaixadas americanas no Kênia e Tanzânia em agosto passado
“enfermidade associativa” e inerente ao clã, nos fazia falta uma redução fenomenológica. Faz alguns anos que a sombra do proletariado desapareceu do Afeganistão para dar passagem à da umma islâmica com suas hipérboles. Não apóia nem permite nenhuma voz divergente. Hoje estão em guerra a religião e a literatura. Quantas são as obras que encontrarão leitores? Como falar claramente da direção que toma a literatura afegã? No entanto, como dizia Foucault, “cada obra tem um sentido com o mesmo direito que um monumento histórico”. Estamos em guerra civil, desde o fim do governo de Najib, faz já dez anos. Nem a jurisprudência islâmica, nem a religião, nem o profeta, nem o texto sagrado foram capazes de brindar-nos uma solução para pôr fim à guerra. A razão e a sabedoria que devem dirigir o destino deste pobre país estão em suspenso. Como encontrar a via da liberdade? Rara vez a história viu um povo empenhar-se tanto na sua própria morte. A censura, o silêncio absoluto, a aniquilação do passado histórico e cultural não são mais do que manifestações horríveis deste suicídio coletivo. A língua sofreu um envilecimento vergonhoso. Porque não contém nem sentido nem mensagem de esperança para a reconstrução: um torvelinho nos arrasta à degradação total, à espera “do dia do juízo final”. Com a proibição das artes tais como a pintura, a escultura e a dança, este movimento ancorado no passado, que o fenômeno talib amplia suas metas. Sua aversão pelas artes é um reflexo do medo que tem à palavra e à imagem. Segundo a tradição muçulmana, o profeta havia dito que as imagens ressuscitam os ídolos. A imagem, tanto quanto a obra de arte, ou a obra de arte tanto quanto a criação, afirma a existência de um criador. Um criador que poderia rivalizar com 18 Continente Multicultural
Deus. A produção e a criação são próprias exclusivamente de Deus. Por conseguinte, na sociedade islâmica instaurada pelos Taliban, ninguém tem o direito de pintar, de esculpir ou de dançar. Também está proibida a música. Só se permitem os poemas épicos e guerreiros e também o tazieh (espetáculo religioso tradicional), desde que não haja acompanhamento musical. Segundo alguns juristas muçulmanos, qualquer crente tem permissão para quebrar e destruir instrumentos musicais. Longe de ser considerado um delito, o roubo de um instrumento será recompensado quando venha o Juízo Final. Entre todas as manifestações artísticas e culturais, a poesia é a única que goza de certa liberdade de expressão no Afeganistão. Ainda que o Islão não veja com bons olhos os poemas de amor, a poesia oferece grandes possibilidades expressivas: as figuras retóricas, o recurso aos símbolos e às metáforas não facilitam precisamente a tarefa dos agentes da censura. A poesia ocupa um posto singular em nossa cultura. E pelo fato de desafiar o poder da censura político-religiosa, encontra muitos ódios e rancores. As sessões coletivas do Chahnameh, grande tradição cultural do povo do norte do Afeganistão, foram proibidas pelos Taliban. Estas sessões não eram unicamente literárias; não ressuscitavam somente lembranças históricas, mas funcionavam também como reuniões políticas. Depois, só o fato de ter o texto do Chahnameh já era considerado um delito político. Não há dúvida de que a poesia é a arte angustiada do Afeganistão. Latif Pedram, escritor e poeta, nasceu em 1963 no Afeganistão. É jornalista e professor de Literatura. Está atualmente exilado na França. Texto publicado originalmente na revista AutodaFé, do Parlamento Internacional dos Escritores, outono, 2000
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SÉCULO 21
Juventude contra a globalização Uma nova juventude militante tem a obrigação de combater a globalização, pois isso será cobrado pelas gerações futuras
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rotesto social, liberdade política e de costumes, revoltas contra as guerras e contra o sufocante poder dos pais, libertação sexual, drogas e rock and roll formaram parte da vida da vanguarda jovem no século 20. Os símbolos de Elvis e Guevara substituíram os heróis românticos do século anterior, como Shelley e Castro Alves. As guerras, as derrotas da utopia e a contrarevolução deixaram marcas fundas, mas não apagaram o trabalho renovador da cultura e da contracultura dos jovens. O poente do século 20 indicava as cores de uma nova juventude. Os ícones emergentes não são contestadores, mas heróis. O jovem bilionário Bill Gates e desportistas como Ayrton Senna recuperaram a imagem do herói épico solitário capaz de vencer o destino, os adversários, e chegar só a cumes considerados inatingíveis até então. A felicidade passou a ser sinônimo de ganhar. Ganhar sozinho é a felicidade suprema. Mas antes que alguém declarasse o fim da juventude, que afirmasse que seu poder de con-
Marcos Aurélio Guedes de Oliveira
testação está sendo diluído pelo suicídio sem causa e pela vontade de ser milionário antes dos trinta anos, a virada do século revelou uma nova juventude militante. Comandante Marcos e o mártir Chico Mendes são alguns de seus gurus. Os comunistas e trotskistas do século passado estão aposentados ou administrando os bens das classes dominantes. A direita, em decadência e empurrada para o gueto da marginalidade. Agora, o neoliberalismo controla o discurso do que restou da direita e esquerda e já contabiliza suas grandes realizações. Dentre a mais nobre está a criação do desemprego estrutural em todo o planeta. Na segunda metade do século 20 os jovens tinham perspectiva de trabalho em uma economia que levava a sério o bem-estar social, e podiam antes dos trinta anos realizar seu sonho de vida estável. Contudo, o início do século 21 está sendo marcado pelo aumento do número de jovens que têm de se acostumar com a idéia de que nunca poderão achar trabalho fixo. Apenas os mais experientes e mais velhos usufruem do privilégio dos altos salários e da estabilidade. A desregulamentação do trabalho foi feita contra os jovens, a privatização do ensino superior, também. Quando, nas ruas de Seattle, Gênova, Londres, Porto Alegre, os jovens protestam contra a globalização, eles protestam para que exista um futuro para sua geração além da marginalização à qual o discurso da lógica global da acumulação os empurra. O anarquismo presente mistura-se com um pacifismo e com uma miríade de culturas de grupos sociais que procuram se fazer ouvir frente à exclusão que até mesmo os meios de comunicação lhes impõem. Quais são os temas destes jovens? O direito político e social, o perdão da dívida externa, o respeito ao meio ambiente e à natureza, a afirmação do poder local contra o federal e o global; resumindo, a preocupação comum é a questão social e humana. O argumento usado contra eles por alguns governos democráticos possui a mesma lógica daquele usado pela defunta ditadura militar contra seus opositores: ora são inocentes úteis manipulados por grandes interesses internacionais, ora querem a internacionalização da Amazônia e a revolução anticapitalista.
Mas são eles que viverão as conseqüências da globalização. Se gerações futuras sucumbirem porque seus governos não poderão comprar remédios de tecnologia de ponta; se morrerem as baleias, e a água potável do mundo for racionada; se a exclusão fizer da violência um estilo de vida e com que se aceite o trabalho mal remunerado e o trabalho infantil como normal, então os jovens de hoje serão acusados de omissos e irresponsáveis pela geração que se lhes seguirá... A cada nova geração existe o protesto, o embate, a vitória e a derrota. A vitória é a manutenção da chama da luta pelas causas abstratas da humanidade, luta por um futuro onde outros possam continuar. Assim foi para a geração que se levantou contra a escravidão, no século 19, para aquela que ficou contra a política das oligarquias no início do século 20, e todas que lutaram contra as ditaduras por toda a história. Assim é a maneira à qual está lutando a juventude do planeta contra uma globalização sem transformação social. Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com
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CRÍTICA DA CULTURA Cena do filme A Estrada para Gandehar, que integra a seleção 2001 da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Visão interna de um território conturbado Cinema iraniano está carregado de respostas sobre o mundo Islâmico
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Kleber Mendonça Filho
epois dos ataques aos Estados Unidos, em 11 de setembro, a capacidade de projeção do fantástico por parte do cinema americano parece ter sido esmagada por uma realidade ainda maior. O cinema americano, como antena de sua cultura, passou a ser imediatamente questionado pelo espelho violento que sempre foi. Seu fluxo de sangue sintético estancou por causa do sangramento real dos Estados Unidos. Agora, com os olhos do mundo voltados para o Oriente Médio e o Islã, talvez devamos lançar um novo olhar em direção a um outro cinema, realizado em grande parte no Irã. São imagens carregadas de respostas para indagações que o mundo inteiro faz desde o dia 11 de setembro, e que, certamente, não tem encontrado na rede de televisão CNN respostas sinceras, ou mesmo plausíveis, para tudo isso. É também um cinema que os eventos recentes não conseguiram esmagar, em grande parte por ser com-
posto por verdades, e não pela projeção do fantástico. Ocorre, aliás, justamente o contrário, pois o cinema do Irã parece ainda mais fortalecido nesta época em que percebemos a onipresença de uma só imagem, no mundo todo. Ao longo dos últimos 15 anos, o cinema iraniano tem mostrado uma imagem plural em alguns dos mais delicados e completos retratos da vida no Islã, com um alcance notável que extrapola o próprio Irã. Abre janelas sinceras para alguns dos seus vizinhos imediatos, como o Iraque e o Afeganistão, nos mostra a vida e a reflete numa sociedade que o Ocidente nunca realmente procurou entender, até, pelo menos, os trágicos eventos de setembro. É uma filmografia marcada pela delicadeza, mesmo quando essa delicadeza é aplicada ao duro tema da repressão, numa sociedade rígida e complexa. Cineastas audaciosos como Mohsen Makhmalbaf (Salve o Cinema, Gabbeh) e sua filha, Samira Makhmalbaf (A Maçã, Os Quadros Negros), Abbas Kiarostami (Através das Oliveiras, O Vento nos Levará) e Jafar Panahi (O Espelho, O Círculo) estão à frente de um inventário de imagens que se fazem essenciais neste momento de crise no qual o Ocidente põe o Oriente Médio, e toda a sua cultura, em xeque, e sem muito direito a respostas. No último Festival de Cinema de Cannes, em maio, algumas imagens registradas no Oriente Mé-
REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
dio tornaram-se antológicas. Pertencem a Mohsen Makhmalbaf, em seu filme Safar é Gandehar (A Estrada para Gandehar), uma obra política, certamente importante naquele momento do festival, mas, a partir de setembro, obrigatória pelo seu valor factual. O filme virou o assunto do dia. Nas imagens de Makhmalbaf, filmadas em campos de refugiados afegãos, pernas ortopédicas caem do céu em pára-quedas, jogadas de aviões da ONU para inteirar um povo afegão mutilado por duas décadas de uma guerra que terminou por mutilar também a União Soviética. As próteses são disputadas por grupos de homens que correm com o auxílio de muletas como sacis desesperados, disputando os membros artificiais que caem lentamente. A Estrada para Gandehar já era importante em maio por mostrar ao mundo, em primeira mão, o Afeganistão e o seu povo, mutilado física e culturalmente, primeiro pelas minas da guerra, depois pelo regime radical dos Taliban. Atualmente, o filme é obrigatório por nos mostrar uma visão interna de um território conturbado, examinado pelo mundo ocidental com misto de fascínio, repulsa e compaixão, elementos que certamente inspiraram Makhmalbaf a filmar. A Estrada para Gandehar não foi premiado em Cannes, mas certamente ganha toda uma nova perspectiva. O misto de documento forte e ficção francamente precária administrada por Makhmalbaf não agradou a muita gente, embora houvesse o consenso de que nenhum outro filme na competição 2001 trouxesse imagens tão visualmente carregadas de uma tensão assim factual. O efeito do filme, hoje, pode ter sido quadruplicado. No festival, após a exibição à imprensa, Makhmalbaf deixou bem claro que os elementos “repulsa” e “compaixão” certamente o inspiraram em A Estrada para Gandehar. Numa declaração política, ele afirmou que “as imagens de Buda não foram destruídas no Afeganistão. Elas desmoronaram de vergonha”, referindo-se à explosão via dinamite de parte da herança cultural e histórica do país, pelos Taliban. O filme, claramente produto de um olhar enfurecido, testemunha fome, morte e intolerância, no misto de ficção e documento já habitual no cinema iraniano. “As estátuas vieram ao chão por causa da indiferença do mundo para com o Afeganistão. Quebraram-se cientes de que a grandeza delas não tinha função alguma no mundo”, disse Makhmalbaf, em Cannes.
Cena do filme Tempo de Embebedar Cavalos
Curiosamente, a perspectiva política acaba de mudar por completo e o Afeganistão encontra-se no centro das atenções mundiais, inclusive sua tragédia humana e cultural recebe agora o olhar do mundo. O motor de tudo isso não é a compaixão pela dor de um povo, mas o desejo americano de vingança e os vários desdobramentos disso. Durante 80 minutos, acompanhamos Nafas (Niloufar Pazira), uma jovem jornalista afegã que se exilou no Canadá. Ela volta para salvar a vida da irmã, que, destituída de cidadania como mulher pelas regras rígidas dos Taliban, decidiu se matar durante o próximo eclipse. Caberá a Nafas fazer o caminho de volta, percorrendo campos de refugiados. Como repórter clandestina da CNN, ou da BBC, registrando a colossal crise humanitária que aflige o Afeganistão, piorada com os eventos recentes nos EUA, Nafas desaparece dentro de um burka – longo véu que as mulheres adultas são obrigadas a vestir, da cabeça aos pés. É a melhor maneira de ficar invisível no Afeganistão dos Taliban, apresentar-se como uma mulher e vestir um burka. O mapeamento de Makhmalbaf em A Estrada para Gandehar parece dialogar diretamente com Tempo de Embebedar Cavalos (Zamani Barayé Masti Asbha, 1999), de Bahman Ghobadi, um outro relato tenebroso do desespero numa zona de conflito. Trata-se também de uma outra fronteira (Irã/Iraque) repleta de tensões religiosas e culturais, dotada ainda da mais pura brutalidade numa terra naturalmente inóspita. Os dois filmes parecem indicação clara de que o cinema iraniano deixa as vielas de Teerã e parte para investigar com muita verdade as diferentes fronteiras do Islã, algo que o mundo faz atualmente com a rispidez digital da televisão e o ponto de vista cético de um inimigo. Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema
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REPRODUÇÃO
Todos os medos dão em filmes no país que precisa de inimigos para reconhecer a própria face
Texas Rangers, grupo criado em 1835 para patrulhar a fronteira da república norte-americana, depois transformado em símbolo da força do país contra “invasores” de qualquer tipo
“
A SÍNDROME
A
América está sendo atacada.” O aviso pulou da ficção cinematográfica para a realidade em 11.9.2001 – Uma Explosão no Espaço. Parecia um filme, mas era o real em real time – e todos nos encolhemos nas poltronas de um cinema inexistente, a projetar imagens de Gotham City ferida duplamente (na carne e no orgulho) por Coringas pilotando aviões seqüestrados por uma dúzia de Pingüins armados de estiletes e canivetes indignos das aventuras do ausente Batman. Um Robin assustadiço ficou apenas voando, à distância, no jato presidencial – e o resto do mundo, apreensivo, também entrou em transe, num misto de fascínio e horror daquelas cenas tão sinistras quanto espetaculares: naves Fernando
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e torres explodindo nos céus da maior cidade do mundo e sobre o lugar mais guardado do planeta. Primeiro ataque sofrido “em casa”, o impacto do atentado devolvia a América a alguns velhos terrores. Os mais antigos, vindos ainda do Velho Oeste cheio de índios mais adivinhados do que vistos entre montanhas azuladas e esparsos sinais de fumaça. Apaches e comanches, mexicanos do General Sant’Anna... e tropas nazistas, japonesas, coreanas e russas, ETs cinzentos e vietcongues da cor da lama misturada com o sangue. A lista é longa, e os inimigos de agora – os terroristas “sem rosto” – já haviam atacado, aqui e ali, com menos ou mais virulência contra o país que parece precisar da ameaça, de sentir o pavor dentro de si, para chegar às suas melhores e mais catárticas perMonteiro formances.
“Parecia um filme” não só pela aparência de efeitos especiais de trucagem etc., mas porque Hollywood desde sempre se dobrou sobre o epicentro das crises e dos sustos americanos, vinte e quatro quadros por segundo. Logo depois de inventado em Paris e adotado na Califórnia, os produtores do Cinematógrafo já partiam em busca dos pesadelos do Texas profundo que dorme no coração da América (mesmo a mais sofisticada, na aparência) – ali onde se oculta o inferno havaiano de Pearl Harbor na psique americana de velhos “Texas Rangers”. Cinema-catástrofe, pólvora e sangue – verdadeiro sangue humano e não suco de tomate sobre falsos escombros – se instalavam no coração das trevas internas de Rastros de Ódio, e o brutal acontecimento faria reencontrar a ancestral desconfiança na espinha de Tio Sam, arrepio assustador e pela primeira vez sentido naqueles carroções do medo, cercados por ululantes nativos armados de arcos, lanças e um ou outro rifle comprado de “renegados”. Essa primeira relação com as jornadas da morte (título de algum velho western?) teve o raso e remoto “Território Índio” como cenário – e tal travessia foi uma espécie de inaugural rito de passagem (concreta) da América inocente para a América cul-
ladas, ataques predadores etc., mas somente puderam contar uma real vitória imposta às armas e ao orgulho da cavalaria branca: a batalha de Little Big Horn, conduzida por um estrategista brilhante – o chefe Sitting Bull (Touro Sentado) –, o qual conseguiu atrair, cercar e destruir o 7º Regimento de Cavalaria do enlouquecido general Custer, herói da Guerra de Secessão que havia sido transferido para o Oeste, com rebaixamento da patente, por “comportamento extravagante e indisciplinado”. O histórico episódio – único nos anais das “Guerras Índias” – renderia algumas dezenas de filmes mostrando o jovem e “intrépido general” não no pleno exercício da sua megalomania perigosa, mas na desesperada organização das linhas de defesa do regimento caído na armadilha dos ignominiosos “bugres”. Foi a última batalha das grandes planícies, e aquela cujo resultado, mais do que desastroso para o exército, faria autorizar, no Senado, a campanha final de perseguição daquele então inimigo “número 1”: o pele-vermelha faminto nos campos de caça sem búfalo. A América ia se formando como nação – e já contava com lendas fundadoras, sagas de resistências como a dos heróis do Álamo (comandados pelo
DOS RANGERS pada, a incrustar a síndrome da Serpente “Ranger” na alma dos pioneiros texanos alarmados pelo assovio de falsos “pássaros” comanches, na Pahandle. O Enorme Receio – um dos sentimentos mais permanentes e característicos dos ianques – haveria de se transformar em segunda natureza americana, mesmo que os fantasmas vermelhos de antes, os “selvagens” montados nos pôneis, estivessem apenas protegendo os seus imemoriais territórios de caça. Com ou sem razão, o Índio se tornava o “devorador de crianças” preferencial da segunda metade do século 19, e a elaboração desse Grande Medo ajudaria, oportunamente, na formação de uma mística de conquista “punitiva” dos territórios tomados dos primitivos habitantes a fim de se oferecer vastas terras à disposição dos colonos. Contra tais invasores, os guerreiros desesperados promoveram incursões iso-
“ranger” Sam Houston) combatendo o inimigo número 2 dos velhos americanos: o mexicano acordado para morrer na forca, em The Ox-Bow Incident (Consciências Mortas – também intitulado Strange Incident –, dirigido por William Wellman e baseado em romance de Walter van Tilburg Clark – Fox, 1943) e outras obras de acerto psicanalítico com o tema subjacente do Outro (e do medo do Outro). O ajuste de contas com o inimigo – qualquer inimigo – se tornou necessário para os EEUU reconhecer a face própria na face dos oponentes com e sem rosto, bandeira, causa, motivo ou pátria. A América – pátria que Deus “abençoa” no hino e na face da moeda – foi assim perdendo a “inocência” e, até o final da Primeira Grande Guerra, o hóspede supremo da Casa Branca pouco a pouco se veria despido da aura de líder sucessor de Washington e outros signatários de uma Continente Multicultural 25
REPRODUÇÃO
O impacto do ataque sofrido “em casa” devolve à América velhos terrores, sempre explorados pelo cinema, e que vão desde os ataques índios no Velho Oeste até a invasão de alienígenas
Constituição simples e franca no enunciado dos direitos e deveres de todos os iguais perante a lei igual para todos. Woodrow Wilson (um dos mediadores da Conferência de Paz) foi o último presidente americano aguardado, em qualquer parte, como fiel da balança talvez “justo”... mas a sua participação terminaria sendo não só a de um “caipira” entre os luxos de Versailles: Wilson se mostrou interlocutor indiferente aos mais legítimos reclamos nas nações beligerantes e/ou envolvidas – incluindo-se aí a Causa Árabe defendida por T. E. Lawrence, o mentor inglês da Rebelião levada a cabo em nome do Xerife de Meca, cujas posições foram pessoalmente apresentadas, a Wilson, por Lawrence da Arábia, firmemente cobrando o cumprimento das promessas ocidentais de apoio à criação do país árabe. (A coisa vem de longe, portanto.) Passa-se o lapso da falsa-paz-entre-as-guerras, dança-se entre os palácios de inverno e, do caos, logo emergiria o mais novo inimigo americano: a Alemanha nazista e suas truculentas tropas de assalto, horror dos horrores para o Indiana Jones que Steven Spielberg torna quase paralisado só com a visão das fardas SS, no segundo filme da série milionária. Todos os medos dão em filmes, na América... e os alemães se tornariam o inimigo mais “retratado” nas produções de sucesso de Casablanca em diante – seguidos, de perto, por japoneses e coreanos loucos de pedra, vividos pela figuração sem direito a diálogos completos. Entre gritos e ordens incompreensíveis, eles freqüentaram inconscientes estreitos e as largas telas cheias de campos de prisioneiros em selvas inóspitas daquela primeira Ásia pintada na selva dos estúdios. Iwo Jima, marines, a bandeira levantada por sobre chocolate em barra fornecido aos soldados sacrificados no Portal da Glória... os rolos de medo e
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de filmes se misturaram, então, na antecipação do super-inimigo (quando veio, quente, a “Guerra Fria”). Eis que o camarada Stalin faz sua entrada “triunfal” no set fascista recém-aposentado, e chegam, afinal, os ex-aliados russos à verdadeira persona da Besta 666, o número do Apocalipse que, para mães, pais e namoradas americanas, devia ser o número do Kremlin na Praça Vermelha. Todas – e todos – engoliram, então, a necessidade de mandar os “rapazes” para Saigon e outros lugares da Ásia quase tão longínqua quanto a Sierra Madre dos apaches. Pior ainda: os novos “vermelhos”, aliados dos vietcongues, talvez estivessem até mancomunados com alienígenas!... e, assim, os bons americanos passaram a contemplar as nuvens não só nas suas orações a céu aberto, mas também através de binóculos varejadores dos Ovnis capazes de invadir a América resistente, capitalista, brava e branca. Com o espaço afinal entrando em cena, estamos chegando à nossa época, plena do Inimigo oculto que acaba de vir pelo ar (com a brutalidade suicida das hordas de deserdados)... e que pelos ares também irá certamente voar – enquanto as cinzas do World Trade Center ainda nem esfriaram sob a chuva ácida de ódios. Os Rangers, Bush-Robin Júnior, a Cavalaria e os marines de boinas verdes (escrevo em 17 de setembro) partirão, sem a menor dúvida, na busca dos alvos orientais, das cidades e das aldeias perdidas, de montanhas longínquas e desfiladeiros seja de onde for, na caça ao novo apache, na busca incansável do Gerônimo sem piedade, cuja ação temerária fez voltar o Medo –, mas não a consciência de alguma culpa. Não importa onde esteja o verdadeiro foco da questão (as mãos vazias do desespero alongam o braço do terrorista?), nem adianta denunciar a perversa ordem econômica internacionalmente mantida pelo seleto “Clube dos Oito” liderado pelos Estados Unidos. Não importa frisar a diferença de visões de mundo nem a total oposição entre um ponto de vista fanático-religioso e a tabula rasa profana que faz do Consumo a Mãe de todas as razões do “novo” (?) capitalismo... Nada disso consegue ser relevante no alarido dentro do círculo de carroções de mísseis – ou sequer poderia pesar, minimamente, contra a decisão já tomada e assumida por 94% da população americana, mentalmente em marcha para alimentar (e manter vivo) o fantasma, o mito e a síndrome dos Rangers-que-apenas-vingam. Fernando Monteiro é cineasta, poeta e escritor
RELIGIÃO
JAFAR ASHTIEH / AFP
Reflexões sobre a guerra santa na Terra Santa
E
Manifestantes palestinos queimam uma bandeira de Israel e uma maquete de assentamento judeu
is um paradoxo terrível: os ju- supremos da ética judaica, que os rabinos David deus foram um dos povos que Goldberg e John Rayner declararam: “Mas, por mais lutaram pelo estabeleci- mais louvável que possa ser o conceito de sobrevimento dos valores humanistas. vência dos judeus, e por mais que Israel e a Diáspora Em todos os países, os judeus se se reforcem mutuamente, é preciso que se diga que, destacaram e se destacam nas em termos filosóficos e teológicos, se a sobrevivência vanguardas das lutas pelos direi- é considerada o objetivo principal, então ela exclui tos civis, pelos direitos humanos, pelos direitos das qualquer valor moral mais alto. Assim sendo, a lealminorias e dos oprimidos. dade absoluta para com a idéia de Estado não é apeEntretanto, em Israel, o país onde os judeus nas um anacronismo constrangedor do século 21, formaram seu Estado Nacional, os direitos natu- mas, pelos padrões éticos do Judaísmo, uma forma rais, civis e humanos de uma minoria, a palestina, de idolatria.” (Os Judeus e o Judaísmo, p. 221) Este é têm sido desrespeitados e violados sistematicamen- o paradoxo de Israel: Por um lado, para sobreviver, te, chegando ao ponto de a Corte Suprema de Israel tem que pisar nas tábuas sagradas da ética judaica. ter declarado a legalidade da tortura, algo impen- Por outro lado, para revivescer sua elevada ética sável desde a perspectiva dos próprios valores éticos judaica, pode correr o risco de ser aniquilado endo Judaísmo. quanto Estado. Foi pensando neste conflito Esta questão pode parecer deentre o dever de Estado e os valores Caesar Sobreira masiado teórica, mas é crucial para Continente Multicultural 27
MENAHEM KAHANA / AFP
Um grupo de judeus reza no Muro das Lamentações, em Jerusalém
quem vive lá, no meio da guerra, de uma guerra que é considerada santa pelos dois lados combatentes. Os líderes dos dois lados são cautelosos nas negociações para não perderem o apoio dos seus respectivos povos. Além da cautela, sobreleva-se a desconfiança. Ninguém confia em ninguém. E não sem razão. Se, por um lado, os palestinos dividem-se em uma plêiade de organizações político-militares e fundamentalistas paramilitares, por outro lado, entre os judeus não existe concordância, já que duas macrotendências se duelam pelo controle da política israelense: a direita-religiosa e a esquerda-laica, os falcões e as pombas, Ariel Sharon e Shimon Peres, atados um ao outro como dois gatos que se detestam. Ante a inexorabilidade do paradoxo ôntico que contrapõe os irmãos-inimigos, árabes e judeus, devemos refletir sobre a gênese deste paradoxo. Na verdade, o paradoxo é intrínseco ao Judaísmo. Tudo começou com uma promessa que o texto bíblico afirma ter sido formulada por Deus aos descendentes de Abraão, expressa nestas palavras: “Eu sou Iahweh que te fez sair de Ur dos Caldeus, para te dar esta terra como herança” (Gênesis, 15:7). O texto bíblico especifica os limites geográficos da terra dada como herança ao então denominado Abraão: “Naquele dia Iahweh estabeleceu uma aliança com Abraão nestes termos: ‘À tua posteridade darei esta terra, do Rio do Egito ao Grande Rio, o rio Eufrates’ (...)”. Ao se referir à posteridade de Abraão, então sem filhos, o texto bíblico define o direito de herança. Então, baseado no direito mesopotâmico, no qual “uma esposa estéril podia dar a seu marido uma ser28 Continente Multicultural
va como mulher e reconhecer como seus os filhos nascidos dessa união” (Bíblia de Jerusalém, p. 51h), Sara entregou sua serva egípcia de nome Agar para que com ela Abraão tivesse descendência. Após a união entre Abraão e Agar, esta ficou grávida. Foi então que começaram os conflitos que duram até hoje. Expulsa de casa pelos ciúmes de Sara, Agar foi para o deserto onde recebeu a seguinte revelação divina: “Eu [Iahweh] multiplicarei grandemente tua descendência, de tal modo que não se poderá contála. (...) Estás grávida e darás à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Ismael, pois Iahweh ouviu tua aflição. Ele será um potro de homem, sua mão contra todos, a mão de todos contra ele, ele se estabelecerá diante de todos os seus irmãos.” (Gênesis, 16:10-12). E assim ocorreu, nascendo o primogênito de Abraão, que recebeu o nome de Ismael (“Deus ouve”). Na época, Abraão tinha 86 anos. Ora, acontece que tempos depois, quando o já então denominado Abraão tinha cem anos, e Sara, noventa anos, ela deu à luz Isaac. As discussões sobre direito de herança giram em torno de alguns versículos bíblicos. Em Gênesis 17:4-8 Iahweh declarou a Abraão: “Quanto a mim, eis a minha aliança contigo: serás pai de uma multidão de nações. (...) A ti, e à tua raça depois de ti, darei a terra em que habitas, toda a terra de Canaã, em possessão perpétua, e serei o vosso Deus.” Entretanto, pouco depois o texto bíblico afirma a primazia de Isaac nesta afirmação de Iahweh: “... tua mulher Sara te dará um filho: tu o chamarás Isaac; estabelecerei minha aliança com ele, como uma aliança perpétua, para ser seu Deus e o de sua raça depois dele.”
MUSA AL-SHAER / AFP
Manifestantes palestinos gritam slogans anti-Israel na Esplanada do Templo. Ao fundo, o Domo da Cúpula Dourada
A questão hereditária sobre a terra de Canaã tem aqui a sua origem. Desde então, o conflito se desloca para o direito de herança. Se levarmos em conta a interpretação judaica, a questão não pode sequer provocar uma discussão posto que os descendentes de Abraão são, em linha direta, Isaac, Jacó (depois denominado Israel) e os doze filhos deste patriarca, que deram origem às doze tribos de Israel. Ora, tudo seria muito simples e indiscutível se, por um daqueles caprichos divinos, Abraão não tivesse gerado Ismael antes de Isaac. Ismael, por sua vez, também gerou dozes filhos, dos quais descendem os árabes ou ismaelitas de que fala a Bíblia. O problema do direito sucessório é, como tudo o que se refere à Terra Santa, paradoxal. Se, por um lado, Isaac é filho de Sara, a esposa de Abraão, por outro lado, Ismael, embora sendo filho da serva de Abraão, é o primogênito do patriarca. O grande paradoxo, no conflito histórico, perene e insolúvel desde o ponto de vista da geopolítica e da militarização do conflito que abala a Terra Santa, é que os dois lados têm razão. É essa razão não-unívoca que equivoca os analistas da guerra permanente entre árabes e judeus pela posse de Israel-Palestina. Os judeus elaboraram, durante a Diáspora que ainda não está encerrada, uma doutrina política segundo a qual o Lar Nacional judaico deve ser instalado em Canaã. Sobre esta doutrina se ergueu todo o discurso teórico que fundamenta a quebra das tábuas das leis dos Direitos Humanos universalmente consagrados.
Imbuído de uma doutrina ideológica, Israel se tornou um estado nacional que viola os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana. Durante décadas, Israel tem sido alvo de críticas severas e de algumas censuras por parte da ONU. O único aliado convicto e inabalável de Israel foi e é os Estados Unidos, mas a aliança se baseia em dois fatores: primeiro, o interesse militar sobre a área, sempre instável, pois a Terra Santa é o enclave entre Europa, África e Ásia; e, segundo, porque o lobby judaico nos Estados Unidos garante a eleição de muita gente por lá. Com votos, dinheiro e meios de comunicação nas mãos, o lobby judaico se constituiu em um Estado dentro do Estado, chegando a influir de maneira direta e decisiva até mesmo na política externa dos Estados Unidos. Mas esta é apenas uma parte (e não a mais importante) da questão. O outro lado da moeda é a aspiração legítima e justa de os judeus poderem se estabelecer nas terras que foram dos seus antepassados, remontando-se até o patriarca Abraão, na linhagem de Isaac e Jacob. Como os judeus são um dos pilares de muitas das mais elevadas conquistas humanas, no que diz respeito às aspirações democráticas e civilizacionais, hão de concordar com as novas doutrinas relativas ao direito de herança contemporâneas, que não fazem discriminação entre os herdeiros legítimos (frutos da união conjugal) e os até há pouco tempo chamados de “ilegítimos” (oriundos das relações extraconjugais). Se aplicarmos uma visão mais moderna à questão do direito de herança, reivindicado tanto por Continente Multicultural 29
AFP
deus o surgimento daquela “coragem do desespero” de que fala Sun Tzu. O resultado foi o que já sabemos: a vitória do pequeno exército judeu sobre o turbilhão dos exércitos árabes. Israel, entretanto, continua lutando com o mesmo desespero, simplesmente porque não tem outra opção. É lutar ou morrer. Colocado nesta encruzilhada, até mesmo o mais débil dos exércitos fortalecer-se-ia diante desta trágica opção. É isto que provocou o mal de tornar Israel um estado militarizado, uma espécie de Esparta judaica, uma nação de soldados em guerra permanente. Neste particular, Israel não precisa beber na fonte chinesa de Sun Tzu, já que possui também um saber e uma arte da guerra. Assim, existe no Talmud uma regra segundo a qual durante um cerco a uma cidade, não se deve impossibilitar a fuga dos que desejem salvar suas vidas; portanto, deve permanecer sempre aberta uma saída para tal finalidade (Melakhim, VI:7). Mas este sábio conselho Israel não levou em consideração durante o cerco a Beirute, em 1982. Apesar do imenso poderio bélico de Israel, como destruir milhões de pessoas que dividem o mesmo espaço físico? Com armas convencionais, por mais que se tente, não se dá conta de matar tanta gente. Com armas químicas, biológicas ou nucleares, nem pensar, porque o inimigo não está em um território longínquo onde os efeitos deletérios de tais armas não ameacem também quem as use. Ante o impasse das armas, e apesar do delírio belicista-messiânico de Ariel Sharon, a paz terá que ser firmada. Quando? Não importa. O fato é que, mais cedo ou mais tarde, judeus e palestinos terão que inventar um modus vivendi diferente do atual. Enquanto as vozes fundamentalistas e irracionalistas dos que crêem no messianismo militarizado sobrepujarem o sussurro dos mais sábios e ponderados defensores da paz, agora ou ainda que tarde, mais israelenses e palestinos pagarão com o
Palestinos rezam sob os olhos da polícia de fronteira de Israel, perto do assentamento judeu de Kiriyat Arba
judeus quanto por árabes, na questão da posse daquele território, haveremos de concordar que ambos povos (judeus e palestinos) possuem direitos sobre a exígua faixa de terra que compreende o atual Estado de Israel e o futuro Estado da Palestina. Daí que a única solução pacífica para a questão é a divisão do território em dois estados nacionais. Aliás, foi esta a solução apresentada quando da partilha do território, em decisão tomada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947. Naquela época, os judeus aceitaram a partilha (ficando com 16.500 km2) porque acreditavam ter menos poder que os árabes. Agora, que se tornaram a potência militar da região, não acatam a divisão territorial, enquanto que os palestinos a acatam pelas mesmas razões que os judeus há 54 anos acataram. O erro militar mais elementar cometido pelos árabes, durante a guerra de 1948, foi não oferecer possibilidade de fuga aos judeus. Segundo o general Sun Tzu, quando um exército cerca outro, deve deixar uma saída livre: “O objetivo é fazê-lo acreditar que é um caminho para a segurança, evitando que lute com a coragem do desespero. Pois não se deve pressionar demais um inimigo desesperado” (A Arte da Guerra, p. 49). A propaganda desmiolada dos árabes, que falava em jogar os judeus no mar, provocou nos ju-
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PATRICK BAZ / AFP
alto preço do sangue e de vidas inocentes esta barbárie que é a guerra santa na Terra Santa. Para tentar solucionar a insolucionabilidade desta questão, lembro-me que certa vez lendo o Talmud da Babilônia encontrei uma frase que muito me impressionou. Afirmava que só poderia haver negócios entre dois homens santos (kadoshin), porque cada um teria pudor de obter vantagens ilícitas do outro, de forma que o negócio entre eles seria fruto de dois homens justos (tzadkin) e o resultado seria bom e satisfatório para os dois. Ora, é preciso encontrar entre judeus e palestinos homens justos – já nem direi homens santos porque seria demasiada esperança encontrar santos no meio de tantos ódios e rancores – que possam se dedicar, com honestidade e virtude, à confecção de um tratado de paz que seja bom para ambos os povos. Com certeza, não poderão ser os atuais líderes, posto que estão manchados de sangue. Por um lado, Yasser Arafat tem contra si toda sua história de guerrilha e atentados que ceifaram a vida de inúmeros judeus, dentro e fora das fronteiras de Israel. Por outro lado, Ariel Sharon foi responsabilizado, quando da invasão do Líbano, de ter permitido o massacre de Sabra e Chatila, uma nódoa indelével na história da humanidade. Também pode ser creditada a Sharon a responsabilidade pela nova Intifada, deflagrada após sua visita intempestiva e provocadora ao Monte do Templo, local sagrado para os muçulmanos onde, aliás, o trânsito de judeus é proibido pelos próprios rabinos. Ao invadir o Monte do Templo, Ariel Sharon pisou na susceptibilidade dos muçulmanos e ignorou a interdição religiosa de judeus. Entretanto, seus atos e suas bravatas provocaram dois fenômenos políticos: a revolta generalizada dos palestinos, expressa na vigorosa e vingativa Intifada; e, em última análise, a queda do governo trabalhista que, este sim, buscava uma solução pacífica para o conflito do Oriente Médio. A consciência humanística dos judeus e dos não-judeus não pode aceitar a idéia da construção de um muro, tal como foi noticiado pela revista Época (20/08/2001), isolando Gaza e a Cisjordânia do território israelense, posto que seria reconstruir no século 21 os muros dos ghettos da Idade Média, tão execrados por judeus de todos os tempos. Caso venha a ser construído, seria em pouco tempo conhecido como “Muro da Vergonha”, uma verdadeira infâmia inaceitável para um povo contra o qual fo-
ram erguidos tantos muros (objetivos e subjetivos) no decurso da sua história. Antes de finalizar gostaria de propiciar uma reflexão aos dois lados em contenda, especialmente ao lado mais forte, isto é, aos judeus. Neste sentido, é muito simbólico clamar pelo testemunho de alguém acima de qualquer suspeita de simpatias antipatizáveis. Daí porque a escolha recai sobre Ze’ev Falk, professor-titular da Faculdade de Direito da Universidade Hebraica de Jerusalém. Disse o professor Falk, referindo-se aos saduceus, essênios e pietistas à luz do direito talmúdico: “De acordo com outra sistemática, provavelmente também derivada dos círculos pietistas, uma pessoa não devia usufruir de todos os seus direitos, mas levar em consideração as necessidades do seu próximo. Tal consideração é chamada ‘dentro das fronteiras da lei’ (Talmud da Babilônia, Bava Kama 99b; Bava Metsia, 30b), e é contrária à atitude de ‘deixar a fronteira perfurar a montanha’, que é a insistência no direito de cada um, levada ao extremo.” (O Direito Talmúdico, p. 52). Assim, pois, eis que temos um referencial para um plano de paz honrado. Nenhum dos dois lados deve querer levar seu direito ao extremo. O primeiro passo para o armistício será a implantação de relações justas entre árabes e judeus porque, como aprendemos com o profeta Isaías, opus iustitiae pax: a paz é fruto da justiça. Que a paz (shalom, salam) esteja com todos!
Meninos palestinos jogam pedras num jipe israelita durante confrontos nos arredores de Ramallah
Caesa Sobreira é doutor em Filosofia e Ciências da Educação e professor da UFRPE
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ACERVO CENTRO JOSUÉ DE CASTRO
MEMÓRIA
Uma prova da variedade de interesses do autor de Geografia da Fome: sua pouco conhecida incursão no mundo do cinema
Josué de Castro em cena do filme O Drama da Fome, que aborda a pobreza nos mangues do Recife
O cinema de Josué de Castro
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ioneiro na discussão científica sobre a fome, Josué de Castro (1908 –1973) lutou em mais de uma frente contra o que considerava calamidade universal. Médico, geógrafo, sociólogo, político e escritor, experimentou ainda usar o cinema como meio de divulgação de seus pensamentos e estudos. Idealizou e produziu diversos documentários que estão em processo de restauração através do Centro de Estudo e Pesquisa Josué de Castro (CJC) e da Prefeitura do Recife. Três desses filmes já estão salvos – foram telecinados para vídeo (Betacam SP) pelo CJC, na década passada. Produzidos pela FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas) e pela Ascofam (Associação pela Luta Contra a Fome), ambas presididas por Castro, os documentários marcam a época em que o inquieto estudioso recifense percebeu a eficiência do meio audiovisual para a divulgação de informações e ideais. Mesmo com 22 livros publicados em 36 países e 15 línguas, Josué ainda achava que tinha um público insuficiente para concluir seu maior projeto: evocar a consciência humana para o problema da fome e fazer as pessoas percebe- Camilo 32 Continente Multicultural
rem que o fim desta é inerente ao desenvolvimento da humanidade. Os documentários, feitos em 16mm e 35mm, foram rodados entre as décadas de 50 e 60, tempo de instabilidade política em que Castro foi duas vezes deputado federal (na última, em 1958, como o mais votado até então em Pernambuco), nomeado embaixador do Brasil na ONU, acabando cassado e exilado pela ditadura militar de 64. As películas ressurgem como um rico material científico e cinematográfico: “Ele foi o primeiro a mostrar a realidade do Recife e Pernambuco em documentários que retrataram a cultura, as mazelas e as soluções”, destaca o cineasta Nelson Simas, que está orientando o CJC no projeto de restauração. Rodados no Sertão do Nordeste e em diversos pontos do mundo, os filmes possuem uma forte carga de informações factuais e teóricas e uma visível preocupação estética de contrabalançar o peso da temática com o cuidado com as imagens e a narrativa. Há 50 anos, Josué de Castro já falava em globalização, ecologia e sem-terras, além de ser um dos primeiros intelectuais brasileiros a levantar a bandeira da reforma agrária e do desarmamento. Considerava tudo interligado – daí Soares seu vasto campo de interesse que dá
ao seu método o conceito atualíssimo da multidisciplinaridade. “Nem ele mesmo sabia o quanto estava adiantado em seu tempo”, aponta Anna Maria de Castro, filha de Josué. Para garantir a integridade de seus conceitos, articulados pela linguagem cinematográfica, colaborava no roteiro e supervisionava os pontos científicos levantados. Os três filmes recuperados (os demais foram encaminhados para avaliação na Cinemateca Nacional, no Rio) destacam a máxima de Josué: a fome não é um fenômeno natural, mas socioeconômico, fruto da exploração colonial e neocolonial. Este era, na época, um ponto intocado num ambiente dominado por teses que davam à subnutrição o selo de fatalidade ou responsabilizavam o crescimento populacional pela escassez de alimentos. O Drama da Seca (Drama of the Drought) foi dirigido pelo brasileiro Rodolfo Nanni, com música de Villa-Lobos e imagens de Portinari. Retrata a seca e a miséria do Sertão de Pernambuco e suas conseqüências. O Drama da Fome (Il Dramma della Fame), realizado por Pio de Berti Gambini, aborda a pobreza nos mangues do Recife. O terceiro não tem título e, sob a direção de Noel Ballif, critica a mídia, por estar mais interessada em acidentes e fatos diversos do que no problema crônico da fome, e aponta que o problema não é a superpopulação, mas o pouco aproveitamento das terras produtivas no globo. Mesmo abordando problemas brasileiros, os filmes fazem paralelos com outros países, como Índia, Marrocos e até Itália e Espanha, a fim de apresentar a desnutrição como um fenômeno universal criado pelo homem e não como uma disfunção local. No entanto, Josué de Castro deixa evidente sua crença na evolução técnica, principalmente da agricultura. Além da ampla aplicação de novas tecnologias, ele defende a reforma agrária, a distribuição de excedentes de colheita, o apoio ao pescador e ao camponês, a educação e a energia solar. Embora tenha alcançado respaldo internacional, Josué de Castro foi esquecido pelo mercado editorial brasileiro, pela mídia e pelas universidades brasileiras após a sua morte, em 1973. Transformado, nos anos 90, em ícone pop na voz de Chico Science (que se inspirou no paralelo castriano entre homens e caranguejos para criar o Movimento Mangue), seu nome encontra-se em nítida reascensão. Dois de seus livros (Geografia da Fome e Homens e Caranguejos) estão sendo republicados pela editora Civilização Brasileira.
Além das imagens ACERVO CENTRO JOSUÉ DE CASTRO
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Josué, em seu gabinete de trabalho, convencido de que “a fome é a expressão biológica dos males sociológicos”
Encontrar filmes assinados por Josué de Castro é uma surpresa para a maioria das pessoas; no entanto, o médico e geógrafo mostrou cedo o seu interesse pelo cinema. Tinha apenas 21 anos quando participou do Cine Club Charlie Chaplin, no Rio, e chegou a ser crítico de cinema. Era contra o cinema falado – na sua opinião, “uma deplorável reconciliação com o teatro”, quando “o cinema deve ser apenas imagens” (Diário da Tarde, Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1929). Quando teve oportunidade, entretanto, fez produções narradas, aproveitando as vantagens da implementação do áudio junto às imagens. Os documentários, apresentados em diversas durações e versões em várias línguas, tiveram coordenação científica e comentários de Castro, em apresentações e entrevistas. Segundo o poeta e amigo Francisco Bandeira de Mello, Josué visualizava, a priori, escrever Homens e Caranguejos como argumento para um filme de produção francesa, do grupo Rotschild/Ancinex. O roteiro, segundo a sua filha Anna Maria de Castro, ainda existe em arquivos parisienses. Com a perda de interesse dos produtores, Josué o transformou em seu primeiro e único romance. Chegou a se encontrar com Roberto Rossellini (ver matéria seguinte) para discutir detalhes da adaptação de um dos seus livros. Também conversou com Luis Buñuel, mas este queria filmar no México, e Josué não abriu mão de filmar no Recife. Continente Multicultural 33
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Roberto Rossellini e Josué de Castro, em foto de 1958. O cineasta do neo-realismo e o cientista social se uniram num projeto que nunca vingou
ra 22 de janeiro de 1958 e Josué de Castro estava em sua casa, no Rio de Janeiro, em plena campanha que o iria reeleger deputado federal por Pernambuco. Palmas foram ouvidas, e logo veio a empregada com um telegrama em mãos. Embora acostumado a receber cartas de ilustres como Jean-Paul Sartre e John Kennedy, aquela correspondência lhe causou um especial frisson: era um pedido do cineasta Roberto Rossellini (diretor do clássico Roma, Cidade Aberta) para adaptar seu livro Geopolítica da Fome para a grande tela. Amante do cinema e convencido de que o meio era uma boa via de propagação para seus pensamentos, Josué de Castro excitou-se. Mas, já havia prometido a adaptação do livro a outro cineasta italiano, Cesare Zavattini (roteirista de Umberto D e Ladrões de Bicicleta). Comunicou para este o pedido de Rossellini e, com o aval de Zavattini, escreveu a Rossellini, em 29 de janeiro: “Primeiramente, eu estou de acordo com a possibilidade de contar com seu talento de diretor para exprimir através do cinema todo o drama da fome universal que tentei responder no meu livro Geopolítica da Fome.” Contou, então, sobre o projeto pioneiro de Zavattini e que este tinha concordado em ceder a idéia a seu conterrâneo. Escrupuloso, Josué pediu que Rossellini entrasse em contato com o outro e o inserisse como colaborador. Terminou demostrando sua crença nos desdobramentos do projeto: “Com maiores esperanças de nossa possível colaboração na missão de acordar a consciência universal face ao drama da miséria e do desequilíbrio econômico e social do mundo, eu peço ao senhor que aceite meus sentimentos de mais viva consideração e admiração.” De Paris, Rossellini, em 13 de fevereiro de 1958, respondeu: “Agradeço pelas corteses expressões à minha pessoa e lhe certifico que será uma grande honra me dedicar à obra que nos interessa... Como o senhor certamente sabe, eu vivi na Índia durante quase um ano, quando fiz um filme e rodei um certo número de documentários. Eu devo lhe dizer que seu livro é um dos que me permitiu compreender este grande, dramático e doce país.” O diretor também explicou seus planos: “Digo-lhe também que tenho a intenção de rodar um vasto documentário científico, uma reportagem sobre a situação dos seres humanos no mundo de hoje, e ter uma tal obra como ponto de par-
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Rossellini que não a O mestre do neo-realismo italiano assumiu a adaptação de Geopolítica da Fome e terminou nem fazendo o filme
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e o filme aconteceu tida, um livro como o seu, parece uma marca apaixonante. Mas sei também, por experiência, quais são as dificuldades que encontramos em todos os países, mesmo aqueles em que somos animados por intenções amigas, de filmar certos aspectos da vida. Seu livro, que é considerado desde já como um livro definitivo, servirá igualmente, penso, para facilitar o desempenhar desta empreitada...” Despediu-se, enfim: “Eu também me inquieto a fim de que esse projeto se realize e por essa razão que retenho como primordial a colaboração com um homem de grande reno-
me e grande valor tal qual o senhor. Espero ansiosamente sua resposta e todas sugestões que o senhor possa me fazer nesse propósito e lhe peço, caro senhor Castro, que creia na segurança de meus melhores sentimentos.” A resposta de Castro, já no 25 de fevereiro, foi entusiasmada: “Deu-me grande prazer receber sua carta (...) através da qual expõe a fome e a miséria mundial, partindo de meu livro Geopolítica da Fome... Em linhas gerais, estou de acordo com tais idéias de que poderá ser realizada sobre esse tema uma obra de profunda significação social: obra capaz de influir nos rumos da política internacional pelo impacto que poderá criar na consciência de todos os povos”. E seguiu: “Revi aqui no Rio, há poucos dias, seu filme Europa 51, e nele pressenti mais uma vez seu grande desejo de transmitir ao mundo uma grande mensagem de humanismo, para ajudá-lo a se salvar da loucura coletiva que o domina. E por isso fico entusiasmado com a idéia de levarmos à frente esta tarefa, contando com sua experiência viva da realidade social do mundo e com seu talento de criador”. Em seguida, revelou a preocupação formal: “Estou também de acordo que a forma ideal de apresentar esse filme seja a de documentário de expressão universal, apresentando quadros de diferentes áreas demonstrativas nos vários continentes. Mas creio que este documentário deva ser conduzido através de um fio ou motivação central que mantenha o espectador em suspense e em ativa participação com a nossa obra. Foi este plano que visualizei numa proposta que fiz primeiro a Charles Chaplin, mas como estava empenhado no momento noutro projeto, passei a tratar com meu amigo Zavattini.” Castro, assim, propõe Brasil, Marrocos, URSS, China e México como locais de filmagem, de modo que o filme apresentasse “quadros dos dois mundos: Ocidente e Oriente. Concordo que não é fácil se obter autorização dos países para filmar seus aspectos negativos, mas com um trabalho preliminar de esclarecimento de nossos objetivos e utilizando as relações pessoais que mantemos com pessoas chaves nestes vários países, seria possível vencer-se este obstáculo.” Por fim, convidou Rossellini a vir ao Brasil para conhecer possíveis locais de filmagem e acertar os detalhes da produção. No dia 20 de agosto de 1958, o diretor chegou ao Rio de Janeiro, de onde seguiu para o Recife. Visitou e fotografou possíveis locais de filmagem, como Petrolina, e foi a várias solenidades. Deixou o país no dia 7 de setembro. O filme nunca foi realizado. Continente Multicultural 35
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Rossellini, em entrevista a um repórter, no Rio de Janeiro. Havia mais interesse da mídia em sua vida pessoal do que em seu trabalho
“A obra de um charlatão”
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cobertura jornalística da vinda de Roberto Rossellini não poderia ter sido maior. Fora o alarme normal criado pela chegada do cineasta para filmar a obra de Josué de Castro, sua recente e tumultuada separação da atriz Ingrid Bergman foi explorada pela imprensa: ele a teria abandonado em Roma com três filhos e muitas dívidas enquanto ia para os braços de uma amante indiana. “Peço que respeitem um capítulo humano de minha vida”, pediu o diretor, recusando-se a falar do assunto. Sua atitude não agradou à imprensa, que tratou de dar o troco com comentários que menosprezavam a sua fama de conquistador: “No Rio, essa verdade já se confirmou. (...) Um grupo de moças e senhoras esperavam o cineasta em um Insti-
tuto. Depois que ele saiu, uma delas disse a frase que seria de todas: Que decepção!”, descreveu o Jornal do Brasil (20 de agosto). Que ainda completou: “Também pudera: ele parecia um arco-íris, meias de uma cor, sapatos de outra, calças de uma outra, paletó encolhido, gravata desbotada...” Por fim, o projeto de Josué e Rossellini encontrou críticos ferozes em alguns jornais brasileiros. Mozart Monteiro escreveu para O Globo (9 de agosto): “O que vai fazer Rossellini no Brasil? Vai fazer uma obra comunista. Vai mostrar ao mundo que o Brasil a que Zweig chamou o país do futuro é o país do presente, o país da miséria e da fome.” Carlos Lacerda completou: “A burguesia progressista (...) é aquela que concorda em abrir para o comunismo as portas da sociedade. Essa burguesia é a do Sr. Josué de Castro, cujo livro o Sr. Roberto Rossellini, no crepúsculo de sua atividade de diretor cinematográfico, vem filmar no Brasil para exportar ao mundo a obra de um charlatão” (O Globo, 9 de agosto). O Jornal do Brasil também dá sua opinião na sessão Coquetel: “Essa história de Rossellini no Brasil dá nos nervos (...) Veio ao Brasil para colher documentação sobre livro que não teve entre nós a menor repercussão: a Geografia da Fome (sic). Como especialista em cinematografia, poderia ter vindo a fim de inspirar-se em nossos temas nacionais, aproveitar a beleza de nossas paisagens e o que possa haver de pitoresco e diferente em nossa personalidade. Poderia entusiasmarse pelo O Guarani, por exemplo”.
Casa-Grande & Senzala e o “italiano genial”
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oberto Rossellini veio oficialmente ao Brasil a convite de Josué de Castro para o acerto final da adaptação do livro Geopolítica da Fome em cinema. Foi celebrado e celebrou em diversas festas, conheceu bares e restaurantes (até hoje sua foto está na parede do restaurante O Buraco de Otília, no Recife) e, fundamentalmente, caiu na gandaia em portos e meretrícios. Mas e o filme de Josué? Ficava pra depois. Até tirou umas fotos entre as farras. Foi a algumas possíveis locações (onde era sempre esperado
com banquetes e bebedeiras), como Petrolina. Conheceu muitas personalidades ilustres do Brasil. Disse, no Rio, que iria também rodar uma ficção no país. Mas, e o filme, que era bom? Depois resolvia. Foi ao Recife acompanhado por Josué de Castro e Di Cavalcanti, onde se encontrou com Gilberto Freyre e foi logo propondo uma adaptação de Casa-Grande & Senzala. Como sabemos, o clássico que disseca a cultura, a língua e a sexualidade brasileira também nunca foi filmado por Rossellini. Ao chegar em São Paulo, após conhecer o Rio de Ja-
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ACERVO CENTRO JOSUÉ DE CASTRO
Irmãs Passarinho esnobam Rossellini
Rossellini, abraçado à sua esposa, a atriz Ingrid Bergman, considerada na época a mulher mais bonita do mundo
Jorge Martins Jr.
ó agora, passados 43 anos, vim saber o que Roberto Rossellini veio fazer no Recife, precisamente no ano de 1958. Naquela época, no número 415 da rua Amélia, estava estabelecido o “antro” de uma vanguarda intelectual – o Gráfico Amador, o ateliê de Aloísio Magalhães, Reynaldo Fonseca, um escritório de arquitetura e outros de desenho. Por ali passava de tudo: era um referencial da boemia cultural do Recife. De repente, apareceu por lá o famoso cineasta. Como de costume, cumpria-se o ritual do papo descontraído, regado a batida de maracujá ou limão, para, em seguida, proceder-se com o visitante um city-tour boêmio, que incluía as “zonas” do Pina, bairro do Recife e rua do Rangel, sendo que esta última tinha um ambiente mais comportado, um limbo para onde vinham, ainda inexperientes, as ninfetas desprotegidas do nosso interior. Lá trabalhavam as irmãs Passarinho, já adotadas pelo Ateliê 415 como acompanhantes de outros riscados.
Naquela noite, assim eu soube, acompanharam o maduro, calvo e meio cheinho visitante italiano, Aloísio Magalhães e Abel Acioli. A alegria e satisfação das irmãs Passarinho com a presença dos estimados protetores tornara-se incômoda com o assédio ávido e atrevido do cineasta, encantado com aquela singela brejeirice sensual dos trópicos, a ponto de, num determinado momento, suplicarem que as livrassem do “coroa” pouco atrativo. Sem nenhum êxito, e tentando confortá-las com o maior dos argumentos para enaltecer a virilidade e a competência do conquistador, Aloísio e Abel cochicharam para as irmãs Passarinho: “Ele é o marido de Ingrid Bergman, a famosa atriz, a mulher mais bonita do mundo!” Inútil apelo. Esta senhora, objeto de tantos zelos e sonhos, não oferecia nenhum temor às musas da rua do Rangel.
Jorge Martins Jr. é arquiteto e urbanista
O ACERV EOB
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neiro e o Nordeste, o italiano ainda declarou para os jornalistas: “Pode haver muita fome, mas a terra é generosa”. Gilberto Freyre, decepcionado por não ver seu livro nas mágicas telas do cinema, culpou o governo e os industriais brasileiros: “Nenhum poder político ou econômico do nosso país mostrou qualquer entusiasmo pela idéia do genial italiano”, chegou a escrever o antropólogo em um de seus artigos. Josué de Castro, já menos deslumbrado que Freyre, e de saco cheio da falta de profissionalismo do cineasta, não poupou seu comportamento de críticas; afinal, o italiano comeu, bebeu e foi embora sem pagar a conta: nada de filme nenhum. Camilo Soares é jornalista
Rossellini visita Otília em seu restaurante no Recife. O cineasta gostava de beber e comer bem
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Josué de Castro criou conceitos de onde surgiu a expressão “homem-caranguejo”, utilizada por Chico Science na criação do Movimento Mangue
esmo o mais superficial exame da biografia e da produção intelectual do médico pernambucano Josué de Castro revela de imediato uma característica essencial: a sua dimensão internacional. Motivada, inicialmente, por uma investigação enraizada nas condições sociais do Recife da década de 30, do século passado, não apenas ampliou gradativamente seu campo de interesse, mas adquiriu dimensão intelectual e política que ultrapassou as fronteiras do Brasil. Vários fatores explicam isto, tanto os referentes à própria formação de Josué, quanto os que dizem respeito aos diversos momentos de elaboração e difusão de sua obra. Embora a sua biografia intelectual esteja mais associada aos seus estudos médicos, com ênfase na fisiologia da alimentação, e em
O sentimento
do mundo
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seus condicionantes e conseqüências econômicas, sociais, geográficas e culturais, desde cedo ela foi também marcada por ampla e variada gama de interesses, em diversos campos do saber e da cultura. Praticou a multidisciplinaridade, antes que tal postura fosse difundida como um imperativo, sobretudo nas ciências humanas. Quem tiver a oportunidade de consultar seu rico acervo pessoal, hoje sob a guarda do Centro Josué de Castro, no Recife, perceberá o alcance de seus múltiplos interesses, seja nos livros de sua biblioteca, seja nas centenas de recortes de jornais, como na variedade de temas sobre os quais escreveu na mocidade. Lá estão artigos sobre literatura, cinema, teatro, artes plásticas, cultura popular, folclore, ciências sociais, história, economia, geografia – especialmente geografia humana – psicologia e psicanálise, para citar os temas dominantes. Neste último campo, aliás, foi dos primeiros, no Brasil, quando ainda estudante, a escrever sobre as descobertas
Denis Bernardes
ACERVO CENTRO JOSUÉ DE CASTRO
freudianas, em artigo dos anos 20. Há também várias crônicas cinematográficas, arte ainda em seus primórdios, mas que desde cedo atraiu o interesse de intelectuais em todo o mundo. E, grande missivista, sua correspondência, ativa e passiva, cobre um período de mais de meio século, com centenas de correspondentes em todo o mundo e milhares de páginas recebidas ou escritas. Em suas agendas, estão os nomes de praticamente todos os mais importantes intelectuais, romancistas, poetas, cientistas, artistas, políticos, líderes religiosos, do século 20, do Brasil e do mundo. Em 1933, lançou, pela Companhia Editora Nacional, O Problema da Alimentação no Brasil, livro inaugural de uma série de outros estudos no campo da alimentação e cujo coroamento seria a Geografia da Fome, publicada em 1946, que consolidaria seu reconhecimento internacional, iniciado nos anos 30. Premiado no Brasil e no exterior, foi traduzido em mais de duas dezenas de línguas e valeu ao seu autor ser eleito Presidente do Conselho da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), sediado em Roma (1952-1956). Em 1935, publicou o resultado de uma pesquisa pioneira sobre as Condições de Vida das Classes Operárias do Recife e um estudo sobre o salário mínimo, como uma conclusão da necessidade de assegurar aos trabalhadores, e às suas famílias, uma existência digna. Destes trabalhos resultaram, em grande parte, a instituição do salário mínimo (1943) e a criação do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS). Não podemos, nos limites deste artigo, referir os vários aspectos de sua biografia intelectual e de homem de ação, mas não é possível deixar de mencionar seu ingresso na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na mesma, conquistou, por concurso, a cátedra de Geografia Humana, em 1947, com a tese A Cidade do Recife, Ensaio de Geografia Urbana, publicada no ano seguinte, pela Imprensa Nacional, com o título de Fatores de Localização da Cidade do Recife. A imensa fortuna crítica de sua obra e a enorme repercussão entre milhares de leitores em todo o ACERVO CENTRO JOSUÉ DE CASTRO
mundo não podem ser dissociadas dos diversos momentos de sua elaboração e difusão. Ou seja, a conjuntura política internacional do pós-guerra, marcada por aguda sensibilidade internacionalista, estava comprometida com a vitória da democracia contra o nazismo e o fascismo, associando-a por toda parte ao combate à miséria e à exclusão de milhões de pessoas e cuja expressão mais dramática e inaceitável era “o drama universal da fome”. Mesmo apesar da Guerra Fria, duas expressões resumem todo um clima intelectual, político e ideológico vivido em todo o mundo não apenas por gente letrada, mas partilhado por milhares de pessoas: “pacifismo e desenvolvimento econômico”. A última, no Brasil, associada ao neologismo “desenvolvimentismo”, traduziu-se na ação do estado como planejador e indutor do crescimento econômico, cuja meta seria diminuir – e eliminar – o fosso que nos separava das nações do Primeiro Mundo, e, no interior, acabar com as desigualdades regionais. Simbolizadas estas, em especial, no Nordeste, em exemplo de uma herança histórica que urgia eliminar e laboratório de uma experiência política e cultural que atraiu a atenção de intelectuais e políticos em várias partes do mundo. No momento em que o mundo vive uma grande tensão política, entre a mais poderosa nação e povos à margem da globalização, é bom lembrar que Josué de Castro foi o articulador de importante movimento pela paz e pela criação de um governo mundial que, acima dos interesse nacionais, atuasse na resolução de conflitos e na gestão comum dos recursos naturais ameaçados de esgotamento e apropriados pelos países mais ricos. Este pernambucano do Recife morreu em Paris, em 1973, no exílio a que fora condenado pela ditadura militar, que, em 9 de abril de 1964, cassou seus direitos políticos, quando encontrava-se em Genebra, como embaixador do Brasil junto aos organismos internacionais das Nações Unidas. Morreu amargurado por não poder voltar ao seu país e somente o pôde fazê-lo depois de morto. Denis Antônio de Mendonça Bernardes é professor da Universidade Federal de Pernambuco e sócio do Centro Josué de Castro.
Cenas dos filmes de Josué de Castro, em que mostrava não só a miséria como também a cultura popular e as maneiras de solucionar a pobreza
CONTO
A prima
I
ncrível que o desejo se acendesse tanto precisamente naquela noite! A mãe morta, rígida, naquela cama de ferro do quarto, a palidez cadavérica, a sombra dos olhos fundos e oscilantes à chama de uma única vela. Evitava, de passagem, olhar a morta, e, no íntimo, pedia-lhe perdão pelos seus pensamentos todos, grossos de luxúria, donos de maquinações à espera apenas de que o silêncio se fizesse maior na alta noite. Erguia-se, ia à cozinha, chupava mais um cigarro e insistia em frases ditas: – A noite está quente. A prima: – Está. Tudo deveria dar-se naquela noite estranha. Dar-se, não. Pelo menos ser tentado por ele, embora tivesse a suspeita de que a prima cederia. Ora, que coisa absurda: exatamente porque a mãe estava mor40 Continente Multicultural
Moreira Campos ta! Viva, ela fora insone e vigilante no seu sofrimento de paralítica, a cabeça pendente no travesseiro, as coxas cortadas em vinco de ferida pela beira da rede. Às vezes, pedia a ele, à prima ou a qualquer dos outros que a ajeitasse melhor: – Me endireita aqui, Miguel. Os olhos tornavam a perpassar pela palidez hirta, as articulações agora distendidas pela morte. Em vigília eterna teria vivido, desperta a um ruído qualquer, ao menor estalido que fosse, enquanto todos os peitos ressonavam. Por exemplo: o nó dos dedos do marido batia de leve na porta. Chegava de botas, rebenque na mão. Vinha do seu serviço recente de apontador da estrada, o cavalo a resfolegar amarrado à cajazeira em frente da casa. O nó dos dedos: – Toc, toc, toc. A vigília permanente:
– Menino, abre ali. Sabia que era ele. Mas evitava pronunciar-lhe o nome. Queixa profunda, duro silêncio entre os dois. Quando mais próspero, com o armazém na Praça da Estação, ele a levara de médico em médico na capital. Sumidades, dizia-se, para a cura das inchações, que lhe faziam grandes e luzidios os joelhos, entortavam-lhe as articulações, enchiam-na de mil pontadas de agulhas: – Exatamente: agulhas! – o que ela se queixava. De médico a médico, até que o de pincenê e barbicha lhe receitou morfina: alívio, sono profundo pela primeira vez. Desespero, quando a droga faltava. Com o tempo, seis injeções por dia, o hábito se amiudando. Aflição nos dedos tortos, nos olhos pedintes: – Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus... a injeção! Seis ao todo, nas horas do dia e da noite, os dedos dos outros a catarem no corpo encambolado espaço fácil para a agulha. Revezavam-se, o marido, em silêncio, o filho e a sobrinha, ou melhor dito, a prima. Viva pela mão deles. Suplicava-lhes: – Pelo amor de Deus! Essa súplica, esse chamado, ou aborrecimento final poderia vir às duas horas da manhã. E lá então o rosto entremunhado do outro, mal saído do sono, acocorava-se junto do prato, paciente ou revoltado, esperando que o aparelho fervesse sobre o tamborete. Anos. Esse decerto o motivo por que ele, o filho, e todos de casa não lamentariam muito a sua morte. Velório feito de olhos enxutos, como que habituados. Era vencido com mais um auxílio de uma xícara de café, novo cigarro e um bocejo: – Que horas? A prima: – Bem onze. Já o irmão mais novo dormia. Desconhecidos na pequena cidade, chegados de mudança fazia pouco tempo, depois do desastre comercial do pai, o velório era reduzido. Restavam no quarto ele, a prima e a empregada, que se agachava a um canto e não tardaria a recolher-se. Nessa tranqüilidade e quase alívio diante da morta estaria a razão por que poderia aninhar, sem muito escrúpulo, a idéia da tentativa de posse na
noite alta. A morte definitiva de agora tivera uma presença lenta dentro da casa. Não se improvisava para repelir pela emoção soluções acalentadas. Não. Antes as precipitava, trazia uma oportunidade. Também o pai no momento viajava mais uma vez: deixava outro espaço livre, ele, o velho, particularmente. Finara-se assim, o marido longe, o que afinal tanto fazia. Claro que o velho igualmente não teria sobressaltos. Silenciaria. Todos, todos. Em nenhum deles havia surpresas. Ou nada disso valeria para justificar propósitos? O forte, o irresistível estava mesmo no apelo da carne, coisa antiga. Tantas masturbações feitas quando menino na intenção da prima! Então, com o fracasso de um noivado, fora chamada para dentro de casa pela própria tia, que a queria muito: “a filha de sua irmã dileta”. Mas, sim, o que de tentações tivera, menino, rapazote taludo, pelo grosso daquelas pernas cabeludas, lábios cheios, só o vestido da casa sobre o corpo, íntima! Lembrava-se do espadanar de água no banheiro do quintal: cheiro de sabonete, a prima cantando, e ele a pressentir lá dentro a nudez lavada, que as suas mãos de menino gostariam de tocar, se ela deixasse. Não, não deixaria, que já o tentara uma tarde ao atravessar a saleta onde ela tirava a sesta, coxas à mostra no desarranjo do vestido. O silêncio que pesava, e atentou para ruídos. Arfava, quando se ajoelhou ao lado, tocando de leve a curva forte da coxa: um pousar brando de dedos nervosos. Em tudo um pedido, sem palavras: o consentimento apenas. O despertar da prima, que o considerou calada, talvez um enjôo, cobrindo-se com a varanda da rede. E ele próprio emperrado em si mesmo, sem saber como sair da saleta.
O pai, no outro dia, no armazém, como que encontrasse dificuldade em dirigir-se a ele. Escolhia palavras. Rodeios. Evitava os seus olhos. Pigarreou: necessidade de respeito em casa, sobretudo com parentes. Ia e vinha sobre os passos: – Acho que você me entende... Entendia, sim, encabulado do mesmo jeito, a esmagar com o bico da alpercata uma velha ponta de cigarro. – Acho que você me entende... – Sei. Foi quando tomou corpo uma surpresa já íntima. O fato de o velho naqueles últimos tempos ter tirado o bigode, que o acompanhara anos, assumindo por vez um ar de mocidade brejeira. Muita delicadeza de atenção com a prima. Um pequeno pacote que trazia da rua, com laço de fita e embaraço de explicações: – A tolice de um presente... Ora! Pra você. – Lindo! – Que nada. Noutras ocasiões, silencioso e alto, ficava parado à porta da casa, o olhar perdido na distância. Havia os acordes do violão, que a prima tocava, acompanhando-se, com sua voz quente, uma lua calma e limpa a derramar-se sobre a Praça da Matriz. O pai, em suspiros discretos, tinha preferência por uma dessas modinhas. Pedia-lhe, de passagem, como se não tivesse interesse, que ela a cantasse: 42 Continente Multicultural
– Lídia... aquela. Na cadeira – perna cruzada e cabeluda – atendia-o. Datava daí o silêncio da doente na rede, o seu tom maior de dorido dos olhos. Drama apenas vivido pelos dois – marido e mulher – trancados no quarto. Recordava as palavras zelosas do velho, no armazém: – É preciso respeitar os de casa. Entendia-o já então, isto é, suspeitava. Pernas bem-feitas, que o tentavam, também, a ele, filho, e neste instante mais do que nunca. Por tudo, pela oportunidade estranha e... torpe. Por assim dizer, só os dois dentro de casa. Afastava os olhos da morta. A empregada já se recolhera. Olhou mais uma vez a prima, que parecia cochilar, os cabelos negros meio desgrenhados: – Vá se deitar um pouco. Ela se levantou. Pesava o silêncio. Apenas a chama mortiça da vela fazia oscilar as sombras entre os tijolos de ladrilho. Depois, no parado da noite: – Lídia... Lídia... Mãos macias, as dele, ternas, e a voz um sussurro: – Lídia... Era como se ela o esperasse desde muitos anos: devesse atendê-lo, satisfazer um capricho anti-
ÁLBUM DE FAMÍLIA
go de menino. Deu-se-lhe sem surpresas, desembaraçando-se do lençol que lhe envolvia as pernas. Não houve mais palavras, e logo depois ele se recolheu, mesquinho e sórdido, ao fundo de sua própria tipóia: era um verme enrolado. Quando o pai regressou, no outro dia, já se fizera o enterro, com dificuldade de dinheiro e dívidas. Algum mutismo do velho, e a formalidade de uma tarja na lapela do paletó. Apenas isso, salvo seus olhos vigilantes e inquiridores para o filho. Ciúmes? Pupilas que na pequena sala corriam dele, filho, para ela, Lídia, o rapaz a examinar as unhas num canto, com disfarces. Calado o velho. Muito calado. E novamente o chamou em particular. Voltava a tropeçar em obstáculos. Não encontrava bem as palavras. Estalou os dedos: – Tem um emprego pra você na capital. Parou. Acendeu um cigarro: – Arranjei com um amigo. Coisa boa. Você pode se fazer. – Sei. O próprio velho o acompanhou à estação na manhã nublada. Descansava as mãos grandes sobre o guarda-chuva ali na plataforma, junto à janela do carro: – Me escreva. – Sim. Talvez tivessem querido dizer mais alguma coisa um ao outro, mas já o trem iniciava a sua marcha.
José Maria Moreira Campos (1914-1994), cearense de Senador Pompeu, licenciado em Letras Neolatinas, professor de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Ceará, embora tenha publicado poesia, especializou-se na arte do conto. Dono de uma narrativa precisa, onde o leitmotiv é a morte e o sexo (Thanatos e Eros), Moreira Campos traça, em sua obra, um painel social da transição do mundo rural para o urbano, em pinceladas vigorosas, entrecortadas por diálogos ágeis, em que o enredo é menos importante do que o delineamento dos personagens. Mestre na criação de atmosferas e finais mais sugeridos que resolvidos, o grande contista foi incluído, por sua conterrânea Rachel de Queiroz, “na magra família dos Graciliano Ramos, dos Machado de Assis, dos Miguel Torga”. Publicou Vidas Marginais (Edições Clã, Fortaleza, 1949), Portas Fechadas (Editora O Cruzeiro, Rio, 1957), As Vozes do Morto (Francisco Alves, São Paulo, 1963), O Puxador de Terços (José Olympio, Rio, 1969), Contos Escolhidos (1ª edição – Imprensa Universitária do Ceará, Fortaleza, 1974; 3ª edição – Antares/INL, Rio, 1978), Momentos (poesia, Imprensa Universitária do Ceará, Fortaleza, 1976), Contos (Imprensa Universitária do Ceará, Fortaleza, 1978), Os Doze Parafusos (Cultrix, São Paulo, 1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (Nova Fronteira, Rio, 1985), Dizem que os Cães Vêem Coisas (1ª edição – Imprensa Universitária do Ceará, Fortaleza, 1987; 2ª edição – Maltese, São Paulo, 1993) e Obra Completa (2 vols., Maltese, São Paulo, 1996). Com o livro de contos Portas Fechadas, ganhou o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, em 1957. Em 1972, fez conferências sobre Machado de Assis e Guimarães Rosa, na Universidade de Colônia, Alemanha. Continente Multicultural 43
ANTOLOGIA
João Esteves Pinto Um sobreiro na paisagem Um sobreiro na paisagem, Um sobreiro só, Um único No pré-deserto envolvente. Nem alecrim Nem rasmono Nem sequer estevas Essas, que são sempre As últimas a morrer. O sobreiro Perfila-se em silhueta Neste fim de tarde Absoluto. Longas colinas, Diluídas, Esquecem, lá longe, a massa física, Pesada, Da terra, Da substância, Com que se estuda orografia. Revelam apenas a natureza, Vibrátil, Da solidão e do calor E o enigmático olhar Dos répteis Que se mede por anos mil.
O sobreiro Perfila-se em silhueta Perante todos os azimutes da [paisagem – É dele a única sombra na [planície – Levanta os ombros Em seu gesto largo Para anunciar o propósito De partir. Como se isso fosse possível, Como se não fosse ele A essência definitiva E a alma do lugar. Como se ele não estivesse ali Para suscitar conceitos, Interrogações E a divina arte de pensar.
Uma manada de vacas Passou há muito No sentido sábio de partir (É sempre sábio o caminho Que busca a vida, Mesmo que a morte Se revele logo No capítulo primeiro No segundo ou no terceiro Desse transcurso Ou da cursiva forma de o narrar) Foram com elas Os mosquitos As carraças E as moscas sangradeiras Que têm nas vacas O seu mundo físico E se justificam Num metafísico mundo-vaca. As vacas sacudiam As suas caudas rituais Para conterem os excessos Parasitários De seus servos dependentes. Salmodiavam místicas: Ninguém é senhor absoluto, Ninguém sujeita nem repele Para sempre Outra maneira de ser.
João Esteves Pinto nasceu em 12 de julho de 1940, em Sabugal, Beira Alta, Portugal. Licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, exerce, atualmente, a administração da INCM – Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A. Poeta, tem um livro inédito, e ainda sem título, do qual foi selecionado este texto. 44 Continente Multicultural
Um rio de perdido nome, Ali ao lado, Deixou o seu gesto longo No fundo do vale. Profanado agora pelo olhar Mostra as pedras redondas que [ficaram E que vieram desagregadas De pedreiras De derrocadas De convulsões De histórias bravas. Estão ali como ossos A documentar um passado [inconcluso Que parou. Hoje é uma memória de olhar.
O sobreiro Mantém o porte erguido Dos seus ombros Na solenidade assumida De quem ameaça partir também. Só assim pode continuar A dominar a fragilidade da [paisagem. Ele, que é o filho legítimo E último Do lugar, Deixa entender, soberano, Que se converterá em águia, Milhafre, Açor, Capaz de subir aos altos ares Pela bainha mais fina De qualquer insensível brisa.
Por ora, Estão subjugados os montes, As lonjuras, Os ossos de pedra, Os caminhos imprestáveis E também as memórias. Um mundo mineral, Em seu vasto império, Ameaça Cristalizar a história E a rebeldia E as ânsias E os desafios E os sonhos, E sob um sol rutilante Quer deixar apenas Os despojos, até das coisas simples E elementares. O sobreiro sobrevive No orgulho De uma estirpe antiga Que gerou a dureza do lenho E a suficiência defensiva da cortiça; Afinal, a sua natureza: A natureza essencial Dos seres sós.
ILUSTRAÇÃO: LIN
Na efêmera poalha da tarde As vacas partiram.
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SABORES PERNAMBUCANOS
De caju em caju “...do nosso antigo amor, sempre aos domingos, num campo de cajus e de mangabas.” Edmir Domingues (Memória do Amor)
Para Mauro Mota, não há fruto de tanta importância na vida do nordestino, e Vinicius de Moraes já lhe dedicou um soneto
O
s índios contavam anos guardando castanhas. Uma para cada safra. Castanhas de, como pronunciavam, “aka’iu” (noz que produz). O cajueiro (anacardium occidentale) é planta nativa do Nordeste brasileiro. Do Norte também. Pouco exigente quanto ao solo, adaptou-se bem a todas as terras para onde foi levado. Há mesmo notícias de “guerras dos cajus”, entre aldeias, pelo controle de suas matas. Depois, virou produto de exportação, a bordo de naus portuguesas, sendo levado para a África, sobretudo Moçambique, Angola, Quênia, Madagascar. E também para Goa, na Índia – hoje o principal produtor e exportador da castanha e de seu óleo. Enquanto, por aqui, esses cajueiros foram sendo pouco a pouco substituídos em toda parte. No interior, por canade-açúcar e coco. À beira-mar, por concreto.
Era novidade completa para o colonizador português. Assim o descreveu em 1570, com precisão metódica, Pero Magalhães Gândavo (na História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil): “...se cria numas árvores grandes, estas se não plantam, nascem pelo mato muitas; a fruta, depois de madura, é muito amarela: são como pêros repinaldos compridos. Chamam-lhes cajus, têm muito sumo, e cria-se na ponta desta fruta de fora um caroço como castanha, que nasce diante da mesma fruta, o qual tem a casca mais amargosa que fel. Se tocarem com ela nos beiços dura muito aquele amargor e faz empolar toda a boca; pelo contrário, este caroço, assado, é muito gostoso”. Fruto do cajueiro, não custa lembrar, é a castanha – casca dura, com amêndoa protegida por líquido viscoso, cáustico e inflamável. Dessa amêndoa – rica em proteínas, calorias, lipídios, carboidratos, fósforo e ferro – é extraído óleo comestível de propriedades similares ao azeite de oliva; além de resina, matéria-prima de goma e eficiente xarope para tosse braba, popularmente conhecida como tosse-de-cachorro. Com os índios aprendemos a assar essas castanhas, em processo que se usa até hoje. Aos
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 46 Continente Multicultural
poucos, transformadas em especiarias. Utilizadas como tira-gosto, farinha ou doces. Faltando dizer que, do cajueiro, se aproveita até a madeira – donde se extrai óleo, usado na fabricação de tinta. Há também quem a aprecie verde – então chamada maturi. Jorge Amado (em Tieta do Agreste) nos dá, inclusive, receita de uma “frigideira de maturi”: 1 litro de maturi, 1 punhadinho de camarão seco, 1 cebola média, 1 tomate grande, 1 pimentão pequeno, ½ xícara de leite de coco grosso, 1 colher de sobremesa de azeite de oliva, 5 ovos. Corte o maturi bem miudinho, os temperos, também. Coloque tudo em uma panela, com pouca água, e leve ao fogo para ferver até secar; quando seco, coloque em travessa. Bata os ovos, cubra o refogado de maturi e leve ao forno, para dourar. Alimentando a castanha, temos o caju – parte carnosa amarela, vermelha ou mistura variada dessas cores. Com sua polpa se faz suco e sorvete. Doce (doce mexido, compota e passa), um dos primeiros feitos nas casas-grandes, pelos portugueses. E bebidas – licor de caju (suco da fruta mais álcool de 40º, água e açúcar), cajuína (suco filtrado, engarrafado e cozido em banho-maria – inventado, segundo Rachel de Queiroz, pelo farmacêutico cearense Rodolpho Teófilo), jeropiga (cajuína com aguardente) e mocororó (espécie de vinho, mais leve e menos encorpado). Em Cajuína, clássico de nossa música popular, Caetano Veloso narra – segundo se conta – seu encontro com o pai de Torquato Neto, nos duros tempos da repressão. Quando foi a Teresina comunicar à família a morte do seu menino infeliz (Torquato). Morte anunciada na última letra de música que escreveu: “Adeus/ vou para não voltar/ e onde quer
DOCE DE CAJU EM CALDA • 20 cajus (firmes, médios, todos do mesmo tamanho) • 5 xícaras de açúcar • 2 xícaras de água
DOCE DE CAJU MEXIDO • 15 cajus • 3 xícaras de açúcar • 2 xícaras de água • 1 xícara de castanha picada
que eu vá/ sei que vou sozinho”. O velho lhe deu uma rosa e ofereceu cajuína. Não custa lembrar: “Existirmos – a que será que se destina?/ pois quando tu me deste a rosa pequenina/ vi que és um homem lindo e que se acaso a sina/ do menino infeliz não se nos ilumina/ tampouco turva-se a lágrima nordestina/ apenas a matéria vida era tão fina/ e éramos olharmo-nos, intacta retina:/ a cajuína cristalina em Teresina”. Para Mauro Mota, não há fruto de tanta importância na vida social e econômica do nordestino. Presente em literatura, poesia, ditados populares, jogos infantis, crendices, costumes, folclore, medicina – além da culinária, claro. São comuns, entre nós, expressões como “de caju em caju” (de ano em ano), “caju é que nasce de cabeça pra baixo”, “homem é que nem caju: por doce que seja sempre tem ranço”, “cajueiro doce é que leva pedrada”, “quando você vinha com os cajus eu já voltava com as castanhas”. Até versos mereceu de Vinicius de Moraes (Soneto ao Caju): “Amo na vida as coisas que têm sumo.../ Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo./ Por isso amo o caju, em que resumo.../ Esse materialismo elementar/ fruto de cica, fruto de manchar/ Sempre mordaz, constantemente a prumo”. Por fim, só lembrar que meu marido, José Paulo, jura que Deus começou a fazer o mundo pelos sucos de caju, mangaba e cajá. Neles esgotando o dom da perfeição. Depois, cansado, sem inspiração, e consta que já levemente desiludido, ainda teve de fazer o resto do mundo. Assim se explicando, segundo ele, a rude e triste imperfeição de que somos feitos, os homens. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br
Preparo: • Retire as castanhas do caju. As peles, também. Ponha em água com limão (para não escurecer). Depois fure com garfo e esprema um pouco do suco. • Preparar calda, com água e açúcar, em ponto de pasta. • Coloque o caju na calda, e deixe cozinhar em fogo brando. Como leva tempo, às vezes é preciso juntar um pouco mais de água. Estará pronto quando tiver a cor de caramelo avermelhado.
Preparo: • Retire as peles do caju e reserve-as. • Coloque os cajus na calda, feita com água e açúcar, em fogo brando. • Junte as cascas e as castanhas. Mexa bem até que todos os ingredientes se incorporem.
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LITERATURA
Vagabundo Um encontro com o crítico literário João Alexandre Barbosa, em que ele fala da poesia de João Cabral, de seus mais de 40 anos de crítica, universidade, mercado editorial e, é claro, cachimbos. por Marcelino Freire e Nelson de Oliveira
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GABRIEL MALARD
entre livros Cachimbos
A esposa e o scanner
– Se incomodam? – Claro que não. – Fumo cachimbo há 20 anos. Há coisas que não sei fazer sem o cachimbo, conversar relaxado, por exemplo. – Um dos personagens mais marcantes da literatura policial é aficcionado em cachimbos. Cada vez que precisa analisar um enigma, isso se dá ao sabor de uma noite inteira de cachimbadas. – O Sherlock Holmes. É. Eu, particularmente, comecei a fumar cachimbos para fugir do cigarro. Depois o hábito do cachimbo se transformou numa espécie de segunda natureza.
– Esta é minha esposa, Ana Mae. – Prazer. – Ana Mae é professora e educadora. Deu aulas na USP, foi diretora do MAC antes de se aposentar. – João, como eu faço para escanear essa foto? Preciso enviar ainda hoje. – Um instantinho só, senhores.
Fogo inglês – Prefiro os cachimbos onde cabe uma maior quantidade de fumo e só me satisfaço com tabacos Continente Multicultural 49
do mar. Se eu não tivesse sido obrigado a sair das praias do Recife por causa do golpe de 64, talvez ainda estivesse por lá.
Sangue pernambucano – Em 96, sofri uma cirurgia de grande porte e tive uma enorme hemorragia. Tive que tomar vinte litros de sangue. Ainda na UTI, disse a meu filho: “Lá se foi o meu sangue pernambucano”. Ao que ele respondeu: “Em compensação, você agora tem sangue paraibano, cearense, baiano, japonês, italiano…” Achei ótimo.
Os tribunais
O argentino Julio Cortázar (em desenho de Zenival), que conheceu João Alexandre numa das viagens secretas a Buenos Aires
que contenham latakia, uma substância de origem turca que dá muito vigor ao gosto do tabaco. Os melhores tabacos ingleses, sobretudo, são assim. Por isso, são os meus preferidos.
Recife – Deixei o Recife, definitivamente, em 66. Há 35 anos, embora tenha saído pela primeira vez em 65, para ser professor na Universidade de Brasília. Mas quase todo ano volto ao Recife, sobretudo para rever um amigo-irmão, Gadiel Perruci, uma cunhada querida, meus sobrinhos e numerosos sobrinhos-netos. – Tem saudades? – Saudades do Recife dos anos 60, mas principalmente do mar, dos amigos que já morreram e dos que, como eu, emigraram para o Sudeste. Não tenho mais amigos no Recife. Tudo fica meio melancólico à medida que você envelhece. Vai ficando uma coisa meio vazia. – E São Paulo te recebeu bem? – Vim para São Paulo convidado para trabalhar na USP e fui muito bem recebido, tanto por quem me convidou, o Antonio Candido, quanto pelos dois colegas que, na época, trabalhavam com ele: Roberto Schwarz e Walnice Nogueira Galvão. – Preferia morar em outro lugar, que não aqui? – Não. Mas às vezes fico imaginando como seria bom envelhecer à beira-mar… Eu sempre fui 50 Continente Multicultural
– Se eu teria ficado rico como advogado? Não sei. Certamente mais rico do que como professor de universidade. Um tio, irmão de meu pai, me convidou para ser advogado do banco de que era presidente. Não aceitei, declarando que o queria ser mesmo era professor de literatura. – Quando se deu a revelação de que sua vida seria dedicada aos livros e às bibliotecas imaginárias? – Creio que a decisão se deu com a morte de meu pai em 57. Daí por diante a escolha pela profissão de professor passou a guiar o meu interesse pelos livros e pela escrita literária. – E sua família, como encarou essa escolha? – Tios e primos sempre me acharam meio doido, mas nunca me incomodei muito. Acho que ainda acham, mas, como tenho pouco contato com eles, não sei. Quem sabe um filho ou filha de um primo ou prima, lendo esta entrevista – se é que conseguem ler entrevistas literárias – não entre em contato comigo para uma conversa? Daí ele, ou ela, irá perceber que meu nível de doidice certamente não é tão grande.
Os editores do Brasil – Publiquei quinze livros. Não sei qual é o melhor. Isto compete aos leitores. Acho muito simpático um dos últimos: A Biblioteca Imaginária. – Você também foi editor, não? – Fui editor como parte de minhas tarefas na USP. Fui convidado pelo reitor, aceitei e tive, na verdade, de criar a Edusp como editora propriamente dita, porque então ela era apenas uma co-editora.
– Quais são os editores que estão fazendo um trabalho de ponta, hoje? – Acho que se está publicando muito, e muito bem, no Brasil. Tenho enorme simpatia pelas pequenas editoras que se arriscam e são dirigidas por pessoas enlouquecidas pelo livro, como o Plínio, da Ateliê Editorial, o Giordano, da editora que tem o seu nome, o Samuel Leon, da Iluminuras.
Encontros notáveis – O poeta João Cabral, afora um ou outro encontro ocasional, visitei duas vezes em seu apartamento no Flamengo, no Rio. – E o Aldous Huxley? – O Huxley eu conheci pessoalmente quando ele esteve no Recife, em 58. Procurei-o no hotel em que estava hospedado. Encontrei-o no restaurante e fui convidado por ele e pela mulher dele, a violinista Laura Archera, para sentar na mesa com os dois. Ficamos conversando durante um bom tempo, em francês. – E com Gilberto Freyre? – Tive uns quatro encontros com o Gilberto. Dois no Instituto Joaquim Nabuco e dois em sua casa, em Apipucos. Nos encontramos para tratar da organização de um seminário, a pedido do reitor João Alfredo, isso no ano de 63. – Houve também um encontro com Julio Cortázar, não houve? – O Cortázar eu conheci em São Paulo. Foi numa das muitas vezes em que ele, creio que entre os anos 70 e 80, veio à cidade. Ele passava pelo Brasil sobretudo para encontrar secretamente a mãe, que morava em Buenos Aires, onde o grande escritor era persona non grata. – Você também foi muito amigo do Ariano Suassuna, não? – Nós éramos muito íntimos. Morávamos perto um do outro. Ele em Casa Forte, eu no bairro de Parnamirim. Eu sempre achei o Ariano beirando a genialidade. Ele sempre teve um talento enorme para o teatro, para contar histórias. Ariano é um excelente contador de histórias.
João-Ninguém – “A noite inteira o poeta/ em sua mesa, tentando/ salvar da morte os monstros/ germinados
em seu tinteiro.” Bonitos esse versos de João Cabral, não? – Alguns dizem que a poesia morreu junto com ele. Que depois de João Cabral, a poesia é a de João-Ninguém. Você concorda com isso? – Não concordo. Hoje, existem excelentes poetas escrevendo no Brasil: os irmãos Campos, Sebastião Uchoa Leite e mais meia dúzia de jovens que estão em busca de sua linguagem. – Quais são os maiores poetas brasileiros, João Alexandre? – Olha, no século 20, acho que há certa unanimidade, que é também a minha escolha: Manuel Bandeira, Drummond, Murilo Mendes e João Cabral.
João Cabral de Melo Neto (em desenho de Zenival), que teve a sua obra explicada no novo livro de João Alexandre Barbosa
Deus – Não. Não acredito em Deus. Sou ateu mesmo, embora tenha interesse, por assim dizer, cultural pelas religiões.
Os homens – É verdade que o Roberto Freire e o Marco Maciel foram seus alunos e o FHC foi aluno do Antonio Candido? – Verdade. – Há, com isso, uma falta de sintonia política entre vocês dois? – Não vejo por que isto daria uma falta de Continente Multicultural 51
sintonia política entre mim e o grande professor. Compartilho inteiramente das posições políticas dele, embora não seja, creio que por temperamento, tão atuante quanto ele. – Critica-se em Drummond o fato de ele, um grande poeta, ter sido incapaz de pensar a arte e a política com originalidade e intensidade superiores à média. – Bem... – Todo grande escritor tem de ser, também, grande em outras áreas: política, economia, cultura etc.? – Não, não acho. Todo o grande escritor tem que ser isso mesmo: grande escritor. E ponto final.
Riscos e rabiscos – Não, não sei se fui o primeiro crítico a falar dos escritores João Antônio e Rubem Fonseca. E, confesso, não me agrada muito essa história de precedências. O que aconteceu é que escrevi sobre o primeiro livro deles assim que foram publicados: Malagueta, Perus e Bacanaço e Coleira do Cão. – Recentemente, você prefaciou o livro do Marcelino, apostou em um poeta estreante do Rio Grande do Sul, o Eduardo Sterzi, fez orelha para uma antologia dos contistas da Geração 90. É este o melhor papel da crítica: correr risco? – Eu vejo a crítica sempre como uma possibilidade de dar vazão à minha curiosidade literária. Por isso, ao mesmo tempo em que me arrisco dando palpite sobre novos autores, gosto muito de voltar ao passado. Tenho sempre um pé na leitura das novidades e outro na tradição. Por isso mesmo, gosto tanto da história literária.
Chico e Caetano – É pertinente a crítica que os jornalistas culturais fazem da crítica que é produzida dentro das universidades? – Acho que os jornalistas culturais precisam conhecer melhor o que se faz, em termos de literatura, nas universidades. Mesmo porque, hoje em dia, em grande parte, os jornalistas culturais ou são da universidade ou dela saíram. Não concordo quando eles desqualificam os estudos literários universitários, embora compreenda quando eles criticam o hermetismo de certa crítica universitária. 52 Continente Multicultural
Não tenho mais amigos no Recife. Tudo fica meio melancólico à medida que você envelhece Tios e primos sempre me acharam meio doido, mas nunca me incomodei muito Todo grande escritor tem que ser isso mesmo: grande escritor. E ponto final Às vezes, acho que não faço propriamente crítica, e, sim, ensaísmo literário. Gosto mais de vagabundear entre livros
– E a crítica que os puristas fazem quando Caetano Veloso e Chico Buarque entram para o programa de alguma disciplina universitária? – Neste caso, a tolice é bem maior: se os dois compositores são usados como autores de textos líricos, eles podem perfeitamente ser analisados dentro da universidade. O caso muda de aspecto se são usados apenas como expressões dos meios de comunicação.
Crítica do crítico faz?
– Que autocrítica faz você da crítica que você
– Às vezes, acho que não faço propriamente crítica, e, sim, ensaísmo literário. Não sou muito judicativo e gosto mais de vagabundear entre livros. – Que crítica o influenciou no passado? Que crítica o influencia hoje? – Eu sempre fui um leitor de críticos, sobretudo brasileiros. Desde os do século 19: Romero, Veríssimo, Araripe. Também li muito os críticos meus contemporâneos. Acho que fui influenciado por todos eles, de uma ou outra maneira.
Osman e Guimarães
GABRIEL MALARD
– Você é dos que acreditam que a literatura pernambucana parou em Osman Lins? E a brasileira, em Guimarães Rosa? – Não, não acredito. Acho que os dois apenas assentaram um alto patamar literário e funcionam como pontos de aferição para o que veio depois. Não conheço bem a literatura pernambucana de hoje, mas, pelo pouco que tenho lido, ela tem muitos talentos. Assim como a brasileira. Mas Rosa é de uma dimensão dificilmente atingível e é muito bom que
tenha existido. A sua obra será sempre uma referência de qualidade para o que vier depois.
Autoplágio – Meu novo livro não é bem novo, digamos. Trata-se de um projeto encomendado pela Folha de S. Paulo, o Folha Explica João Cabral. Não foi fácil. Tive de enfrentar um grande desafio: fazer uma boa síntese de tudo o que eu já escrevi sobre o João Cabral, mas sem me copiar. A pior coisa é o plágio de si mesmo. O resultado, apesar de tudo, me surpreendeu.
Fim de papo – Seria legal uma foto na sua biblioteca. – Pois não. – Olha aqui a sua coleção de cachimbos. – Era bem maior. Tive que diminuir. – Nossa! Há livros na sala, por toda casa, no quarto da empregada. – A última vez em que estive com o Cabral foi no lançamento desta Obra Completa pela editora Nova Fronteira. – Podemos ler a dedicatória? – Claro. – “Ao João Alexandre Barbosa, que tanto me ensinou sobre mim mesmo. De seu conterrâneo e admirador, João Cabral de Melo Neto.” – Bem, rapazes, espero que tenham gostado da conversa. Marcelino Freire é autor do livro de contos Angu de Sangue, entre outros. Nelson de Oliveira escreveu O Filho do Crucificado e é organizador da antologia Geração 90, Manuscritos de Computador, pela Boitempo Editorial
HISTÓRIA
No século 19 generaliza-se o uso de uma embarcação capaz de subir os rios até os engenhos, diminuindo as despesas com o transporte comercial
A vitória da barcaça
Evaldo Cabral de Mello
REPRODUÇÃO
A
REPRODUÇÃO
o reinado da sumaca, sucedeu o do em todo o litoral da província”. O triunfo da barda barcaça, assim descrita por caça consumara-se rápida e completamente. Contudo, o leitor não a encontrará nas págiPereira da Costa: “Pequeno barco de nave- nas dos viajantes estrangeiros que visitaram naquegação costeira, de transporte de les anos o Nordeste, embora Gardner mencione um gêneros diversos entre os portos “pequeno navio carregado de algodão” em que veledo estado [de Pernambuco] e jara de Maceió ao Recife em quatro dias. A embaroutros dos vizinhos, com um ou dois mastros, fundo cação não era uma canoa do alto, em que já viajara e de parto, armação de cavernas, camarotes internos que descreverá em minúcias, nem uma lancha, que na proa e popa, com escotilhas de descida para aloja- vira singrar na lagoa Maguaba. Caso se tivesse tratamento da tripulação, cobertura e embonos laterais, do de alguma sumaca retardatária, o inglês Gardner de pau de jangada, para manter o seu equilíbrio em a teria reconhecido. O provável, por conseguinte, é marcha. Movida a velas no mar e às varas à entrada que a “pequena embarcação carregada de algodão” e saída dos portos, constitui um gênero de embar- tenha sido uma barcaça. Que ele não conhecesse sua cação só conhecido desde o Ceará até uma certa par- designação é, aliás, significativo da hesitação terminológica que presidiu à aparição deste tipo de barco, te do litoral da Bahia.” As velas eram latinas. O meio da embarcação revelada, aliás, pela própria capitania do porto do Recife ao demorar em enera destinado à carga, ali decampar a denominação pela positada através de uma qual já era conhecida. De ougrande escotilha, a “sepultutra maneira, não se explicaria ra”. Dispondo em média de que somente a partir de 1855 21m de comprimento por tenha sido cadastrada pelas 4m de boca, a barcaça desloautoridades portuárias. Esses cava cerca de 45 toneladas registros, publicados em métricas, dentro de uma faianexo aos relatórios anuais do xa de 25 a 50 toneladas. Aministério da Marinha, só duzia Pereira da Costa que aludem de 1848 a 1853 a lan“a notícia mais remota da chas, canoas e alvarengas; de barcaça entre nós consta do 1854 contém ademais refeataque do forte do Cabedelo, rência a “barcos”. É o de na Paraíba, em 1634, acome1855 que alude pela primeira tido por uma esquadrilha de vez a “barcaça”, juntamente sete navios [holandeses] e com as canoas do alto, omiseis barcaças, expedida do tindo-se a alusão anterior a porto do Recife”. Na realidaDuarte de Os barcos de 1854 de, esses navios não eram a Albuquerque Coelho “barcos”. eram, portanto, as barcaças barcaça descrita pelo historegistrou barcazas já do ano seguinte. riador pernambucano, que no século 17, Para afirmar a existênsó surgiu ou, ao menos, só se cia da barcaça nordestina nos generalizou no decorrer dos mas referia-se aos começos do século 17, Pereianos quarenta do século 19. iates holandeses ra da Costa fiou-se num esEm 1849, o engenheiro Milet, ao apresentar projeto de criação de companhia de pecialista da história da construção naval no Brasil, vapores, assinalava que o transporte de gêneros para o almirante Alves Câmara, quem, por sua vez, bae do Recife “efetua-se, parte às costas de cavalos, seara-se nas Memórias Históricas da Província de Perparte por meio de barcaça, que os vão procurar nos nambuco, de Fernandes Gama. Este repetira a narpequenos portos do litoral”. Ao dar parecer contrário rativa da perda do Cabedelo (1634), feita por fonte à proposta, o engenheiro Mamede Ferreira referia, coeva, as Memorias de la Guerra del Brasil, de Duarcomo a acontecimento recente, “o estabelecimento te de Albuquerque Coelho (1654). Aí se acham didas conduções por barcaças hoje geralmente adota- versas menções a “barcazas”. Delas, depreende-se
Capa de Memorias Diarias de la Guerra del Brasil, de Buarque de Albuquerque Coelho
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Serinhaim, gravura de Frans Post, do livro de Barlaeus, 1647
que via-de-regra eram utilizadas no transporte de tropas holandesas, constituindo uma embarcação auxiliar da guerra naval, o que não se coaduna nem com a função nem com a arquitetura da barcaça nordestina. O cotejo das versões que desses episódios proporcionam as Memorias Diárias e a principal fonte holandesa de época, o Laerlyck Verhael, de Laet, leva à conclusão de que o barco que Duarte de Albuquerque Coelho chamava “barcaza” era o que os neerlandeses designavam por “jacht”. O iate, vocábulo de origem holandesa, originara-se ao menos no século 16 e, como a sumaca, passara da Holanda à Inglaterra. “Por volta de 1600 [escreve Alan McGowan], era usado para uma variedade de propósitos, envolvendo o Estado, o governo, o comércio ou ócio, mas sempre tendo em vista o desejo de velocidade”. A “barcaza” de Duarte de Albuquerque era, portanto, o “jacht” holandês, não a nossa barcaça oitocentista. Confrontado por um tipo de embarcação desconhecida na Península Ibérica e ainda sem designação em castelhano ou português, o cronista recorrera ao termo que na Espanha como em Portugal era indiferentemente utilizado seja com o significado lato de barco grande, seja na acepção estrita de embarcação apropriada ao serviço portuário. Deste modo, a repetição acrítica de um texto do século 17 resultou num anacronismo que fez
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recuar de mais de duzentos anos o aparecimento da barcaça nordestina. Não ocorrera a Alves Câmara ou Pereira da Costa que o mesmo vocábulo pudesse designar tipos diferentes separados no tempo. Com efeito, nem as demais fontes lusobrasileiras do período holandês nem as de história do Nordeste referir-se-ão a barcaças nos dois séculos seguintes. Terão as barcaças existido sob outra designação? Os “barcos” referidos na matrícula do Porto do Recife (1749) constituíam, como já se assinalou, quase todos, sumacas. Não é crível que o documento tivesse omitido uma embarcação de pequena cabotagem, caso desempenhasse papel relevante. Cumpre ainda examinar a hipótese de que, por contaminação semântica, a palavra “alvarenga” tenha designado também a barcaça, como atesta para os anos vinte do século 20 o belo poema de Joaquim Cardozo. O fenômeno, contudo, parece ter sido recente. Em fins de oitocentos, Alves Câmara e Pereira da Costa ainda definiam a alvarenga como uma embarcação exclusivamente portuária, destinada à carga e descarga dos navios, movida a remo e só excepcionalmente à vela. O registro do porto do Recife (1855) distingue claramente barcaças e alvarengas. Só excepcionalmente, como em 1821, quando da insurreição de Goiana, foram utilizadas alvarengas em percursos marítimos. Outro exemplo: em 1875, o engenheiro Victor Fournié mencionava a existência, no ancoradouro do Recife, do “porto interior ou porto das alvarengas”. Tratar-se-ia, nestes casos, de barcaças? À primeira vista, considerando o vocábulo no sentido estrito de embarcação portuária, como justificar que as alvarengas dessem nome ao ancoradouro interno, fronteiro aos armazéns de açúcar onde as barcaças descarregavam o produto chegado dos engenhos? Esses problemas de origem dão lugar com freqüência a questões insolúveis. É mais importante compreender as razões da rápida vitória das barcaças. Segundo Mamede Ferreira, elas possuíam “a grande vantagem de subirem pelos rios acima e receberem os gêneros nos próprios lugares da sua produção, ou ao
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menos muito próximo, facilitando e diminuindo as Recife, principal ancoradouro da capitania. Mas, a despesas de transporte”. Isto se devia a “poderem despeito da capacidade do seu fundeadouro, já havia navegar em pequena profundidade d’água e mesmo queixas acerca das dificuldades de acesso, devido à aproveitarem as enchentes das marés para subirem estreiteza das barretas e à existência de secos e coroas. mais pelo interior do rio, por isso que, pela sua forma Nos anos postbellum, abandonado pelas embarcações de construção, nada sofrem ficando em seco, embo- oceânicas que haviam regressado ao Recife, Suape ra carregadas”. As barcaças tiravam assim todo o transformou-se em porto de sumacas, como era ainpartido possível das oportunidades de uma rede da ao tempo do roteiro de Paganino. Mas quando hidrográfica limitada. Por fim, exigiam “um pequeno Tollenare visitou a região (1817), só veria “jangadas miseráveis sobre as pessoal e quase nenhuma quais os açúcares ficam despesa de custeio, donO diário de um senhor de expostos a mil acidende resulta oferecerem os transportes por preços engenho de Sirinhaém revela tes”. Era crença arraimuito baixos”. Graças ao que a barcaça servia também gada que o ancoradouro tornara-se impratiquê a barcaça sobreviao deslocamento cável por haverem os verá à concorrência dos vapores da Companhia de sua família e para dar fuga holandeses afundado aos escravos três navios na barreta. Pernambucana de NaveUm oficial português gação. Estes, como outrora as sumacas, estavam restritos aos portos de mar, informara-lhe, contudo, que isso não passava de lenalém de implicarem investimento mais alto e maiores da: a barreta estaria desimpedida e o porto ainda dadespesas de manutenção. Mercê do seu fundo chato ria acesso às embarcações de 150 toneladas. Pouco ou “de prato”, assimilado da própria sumaca e das depois, o governador Luís do Rego Barreto, em exembarcações portuárias como a lancha, a barcaça cursão pelo Sul da capitania, assegurava achar-se a pôde integrar os percursos marítimos e fluviais, até barreta efetivamente impraticável, o que atribuía não então separados, num único trajeto, abolindo o trans- ao afundamento de navios, mas à elevação do arrebordo e reduzindo as despesas do transporte de açú- cife. Graças à barcaça, Suape pôde ser reutilizada, car e de outros gêneros, que não constituíam uma ru- embora, mesmo para ela, a navegação fosse difícil. brica inconseqüente dos custos de produção. O cor- Como indica Vital de Oliveira, é certo que a entradão de arrecifes que borda nosso litoral tornava a na- da exigia apenas a preamar e o vento feito, mas a vegação dependente das barretas, isto é, de interrup- saída era complicada pela força das correntes no ções da linha de pedras, ou esteiros alagados, muitos fundeadouro, que só permitia largar com bons dos quais só transponíveis por barcaças. Daí que Vital ventos ou com terral constante, que habilitavam a de Oliveira siga a praxe de referir, ao lado da barra de barcaça a vencer o vagalhão da barra e impedir que rio, a barreta acessível apenas às pequenas embar- fosse atirada contra as pedras do Cabo de Santo cações, a alternativa preferida dos barcaceiros ou à Agostinho ou sobre o “sombreiro” ou “tartaruga”, os esteiros alagados das proximidades do forte de que recorriam segundo a estação do ano. Veja-se o caso da barra de Suape, com seus Nazaré. Quanto aos rios que desaguavam em Suarios que drenavam uma das importantes áreas açu- pe, somente o Ipojuca era regularmente utilizado careiras de Pernambuco. Antes da ocupação batava, por barcaças, os engenhos da área contando com as os caravelões penetravam no surgidouro, subindo à opções do transporte terrestre para o Recife próxifoz do Ipojuca. Durante a guerra holandesa, Suape mo e do embarque do açúcar pelo Jaboatão ou o constituiu a alternativa luso-brasileira à pedra do Pirapama.
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Como vê-se ainda do roteiro de Vital de Oliveira, ao longo de todo o litoral, barras e barretas davam acesso aos ancoradouros, aptas umas para navios, outras boas somente para barcaças e canoas, como na foz do Sirinhaém. A norte da barra de Tamandaré, a barreta do Bobó, uma anchura de 900 metros no arrecife, era utilizada em tempo de ventos bonançosos. No rio Formoso, durante o inverno, as barcaças preferiam a barreta do Tijucoçu. No Recife mesmo, além da barra grande e da barra pequena, havia, ao sul, a “barreta das jangadas”, fechada em meados do século 19 e já representada na cartografia holandesa sob a designação de “barreta do francês”. Em muitos casos, transpor essas barretas só era factível nas preamares. Os ancoradouros reproduziam freqüentemente a mesma especialização espacial, as barcaças singrando comodamente por canais inacessíveis a embarcações maiores. Os fundeadouros só utilizáveis pelas barcaças tinham a vantagem de serem os mais próximos à praia e os melhores abrigados da força dos ventos e das marés. Mediante o uso da vara, a barcaça pôde ocupar percursos fluviais estorvados pela estreiteza do leito ou pelos meandros do curso, como no rio Goiana. Da foz à cidade, o rio dava sete léguas de voltas, o que quase duplicava a distância direta entre os dois pontos. A mais penosa dessas curvas, conhecida como “volta mofina”, era, ainda segundo Vital de Oliveira, “um curto espaço que as embarcações de pequena cabotagem custam a vencer, porquanto a viração é sempre pela proa e com a correnteza do rio é difícil bordejar”. Neste trecho, não se podia sequer recorrer ao varejão, pois o fundo de lama mole não oferecia resistência. A montante, à altura da desembocadura do Tracunhaém, a profundidade impedia a utilização de varas. Dificuldades dessa natureza repetiam-se nos rios Igaraçu e Mamanguape. Neste, as barcaças subiam até Jaraguá, a quatro léguas e meia da foz, mas só com dificuldade atingiam a cidade. Outra vantagem da barcaça era a de penetrar meros riachos, gamboas e braços de rio: o Garaú na Paraíba; e também os afluentes do Paraíba, como o Gurgaú e o Guia. O mesmo acontecia no delta do Capibaribe-Beberibe. Riachos, muitos deles, que só podiam ser navegados no inverno, como o Camacari, na Paraíba, e o Mambucadas e o das Ilhetas, que desaguavam em Tamandaré. No Recife, as barcaças subiam até os armazéns de açúcar do cais do Apolo, dispensando a intermediação de embarcações portuárias, ou descarregavam diretamente nos 58 Continente Multicultural
navios que transportariam o produto aos mercados consumidores. Na Mata Sul, a concorrência do transporte terrestre foi tardia. Basta dizer que, em 1857, a construção da chamada “estrada do sul” ainda não ultrapassara a comarca do Cabo. Mesmo a estradade-ferro Recife-Palmares não competiu com a barcaça, pois seu traçado, planejado no rumo do médio São Francisco, adentrava-se em sentido sudoeste. Aos engenhos do “velho sul”, concentrados na faixa litorânea ou nas suas proximidades, a barcaça continuou a oferecer a melhor alternativa, malgrado a necessidade de efetuar em animais a parte do trajeto entre o centro de produção e o porto do rio ou de mar mais próximo. Em 1865, o engenheiro Barros Barreto observava que a ferrovia não transportava “a centésima parte dos gêneros trazidos ao mercado [do Recife] de diferentes pontos do interior desta província e das províncias limítrofes, cujos produtos são quase todos transportados por mar”. Veja-se o caso do Sirinhaém, que drenava um dos importantes distritos açucareiros. Sua barra permitia apenas a navegação por barcaças e canoas. Mesmo no verão, que era a época de moagem, elas podiam descer desde o porto da vila, três léguas acima da foz, com carregamento de quinze caixas de açúcar, de 40 a 60 arrobas cada uma. Com dez caixas a bordo, podiam singrar desde o porto de Pedras, quatro léguas mais acima. Da foz até o engenho do Anjo,
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extensão de légua e meia, navegavaUm viajante se independentedescreveu as mente das marés; barcaças como daí para cima, só “barquinhos sem na preamar. “Este rio, na sua extensão acomodações, um cofétidos, imundos [informava rógrafo local], tem (...) as refeições diversos portos ou enseadas, onde resão feitas a pé cebem as barcaças (...) nossos os gêneros que marujos não transportam para ostentam esta capital [i.e., o Recife], emprelimpeza” gando-se nesse tráfico mui acrescido número delas”. Não só os engenhos ribeirinhos, mas também os vizinhos, os vizinhos de seus vizinhos e outros mais afastados valiam-se destas facilidades, ou alternativamente expediam seus açúcares por terra à povoação existente na barra do Sirinhaém, de onde “muitas barcaças viajam para o Recife (...), pelo que é mui freqüente a comunicação com esta cidade”. Na barra, existia “estaleiro de fazer barcaças, sob a direção de um carpinteiro hábil”. Entre os afluentes do Sirinhaém, o riacho do Trapiche, designação reveladora, era muito procurado, comunicando-se também com o Siri-
nhaém através de camboa, da preferência dos barcaceiros. O diário de um senhor de engenho da ribeira do Sirinhaém deixa entrever o papel da barcaça na vida quotidiana da propriedade. O engenho Goicana, escusado assinalar, dispunha de porto próprio, de modo que, iniciada a moagem, reparava-se a estrada que ia da casa de purgar ao rio. Mas a barcaça, meio de transporte de carga, servia também ao deslocamento do proprietário e família. Com ventos favoráveis, a viagem ao Recife era feita em doze horas. Quando, no fim da Cida, o senhor de engenho resolveu residir na capital, no bairro da Torre, ribeirinho do Capibaribe, a mobília seguiu por mar em duas barcaças, acumulando-se grandes estoques de açúcar nos engenhos e povoados litorâneos. Após três semanas de ventania, o autor do diário mandou fretar em Tamandaré uma barcaça, que carregou inteiramente com 400 caixas de açúcar, carga inédita na experiência do engenho. Em janeiro, a situação melhora, mas a navegação continuava “morosa e quase impossível”. Seu irmão, senhor de engenho vizinho, possuía a barcaça própria, chamada “Libertadora”, numa alusão às tendências abolicionistas do proprietário. Nela, despachava seu açúcar, recebia os suprimentos do Recife ou viajava à capital, mas também dava fuga a escravos, à maneira das celébres congêneres que, sob o patrocínio de José Mariano e de dona Olegarinha, desciam na mesma época o Capibaribe com pretos destinados ao Ceará. Um viajante que se deslocou do Recife ao Aracati em barcaça, certo R. da Cunha, publicou no Jornal do Recife, de 25 de junho e 9 de julho de 1859, o relato da experiência: “Nossa marinha de cabotagem, como todas de tal espécie, é composta de pequenos barquinhos, sem acomodações, fétidos e imundos, tendo o convés empachado por milhares de fardos, que tomando todo o espaço de bordo a bordo e quase que proa a popa, torna difícil a manobra, correndo-se o risco de sossobrar, por pouco que o mar seja cavado e sopre vento rijo (...) As refeições são feitas a pé, comendo alguns à árabe, a mesa posta aux étoiles e sofrendo-se alguns tombos quando as guinadas são mais fortes. Nesses barcos infelizmente as regras higiênicas não são as mais observadas e nossos marujos não ostentam essa limpeza que se nota em outras marinhas e muito menos o pitoresco do traje (...) Nossos equipamentos primam pela subordinação e quase inteira sobriedade (...) Os pequenos barcos Continente Multicultural 59
de garantir a regularidade prometida, como indicam as reclamações contra a impontualidade dos vapores da Companhia Pernambucana. Precisando urgentemente seguir para Recife, o senhor do Goicana deslocou-se a Tamandaré, onde faziam escala. Pena perdida; o navio não veio e ele afinal embarcou na barcaça do irmão. Um forte vento norte obrigandoa a aportar a Serrambi, ele avistou finalmente o vapor que chegava atrasado a Tamandaré, para onde se dirigiu. Novo contratempo, pois o vapor fez-se ao largo sem cumprir a obrigação de escala de 24 horas. Final da estória: o viajante decidiu-se a tomar o “vapor de terra” em Gameleira. De outra feita, ele foi tomar à tarde o “vapor do mar”, que se atrasou mais de 24 horas. A viagem ao Recife fez-se em cinco, mas o navio teve de esperar a noite inteira no lagamar, pois só podia tomar porto durante o dia. Os vapores eram lentos e faltos de conforto e asseio. Nestas condições, era mais prático tomar a barcaça que o levava do porto do engenho ao porto do sítio do Recife. Continua na próxima edição Evaldo Cabral de Mello é historiador
REPRODUÇÃO
Paisagem com Plantação (O Engenho), de Frans Post, 1668
que se ocupam no comércio de cabotagem navegam sempre mais ou menos à vista da costa (...) Os passageiros, quase sempre negociantes ou criadores, conversam sobre os objetos de sua profissão.” O engenheiro Milet queixava-se também dos percalços da navegação à vela, mas é necessário dar às suas alegações o desconto de que se tratava de um advogado da navegação a vapor. Segundo escrevia, “estes transportes por barcaças, cuja saída é demorada às vezes por espaço de 8 dias em conseqüência dos ventos, cujas viagens não são regulares e onde os gêneros correm risco de avaria, são mui imperfeitos para os objetos materiais e tornam-se intoleráveis no que diz respeito aos passageiros, a tal ponto que quase todos preferem andar por terra apesar das despesas e incômodos que ocasiona qualquer viagem a cavalo por estradas péssimas, tornadas intransitáveis no inverno pelas cheias dos rios e semeadas de extensos lodaçais onde os cavalos atufam-se até os peitos. E por isso é somente em caso de absoluta necessidade que os negociantes e outras pessoas que precisam visitar os diversos portos do litoral se resolvem a tentar a viagem.” Mas ao contrário do que prometia o engenheiro francês, a navegação a vapor não será capaz
AnĂşncio
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MIL PALAVRAS
Festa de Nossa Senhora Fotos de Edmond Dansot
Os Xucurus festejam a santa, a quem chamam de Mãe Tamaí ou Mãe Tamainha, tocando o toré e andando de pés nus sobre brasas 62 Continente Multicultural
das Montanhas
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odos os anos, na Vila de Cimbres, distrito de Pesqueira, Agreste pernambucano, é comemorada a Festa de Nossa Senhora das Montanhas, padroeira do lugar. Os festejos começam no dia 23 de junho, véspera de São João, com a Buscada da Lenha. Os indígenas, cristianizados pelos jesuítas, vão ao mato colher os restos de um angico derrubado de véspera, e voltam em procissão, a fim de acender em frente à igreja uma fogueira em homenagem àquela a quem chamam Mãe Tamaí ou Mãe Tamainha, Rainha dos Xucurus. Logo após tem início a Novena, que se estenderá até o dia 1º de julho, quando é feita a festa
oficial da santa. Mas, ao final do primeiro dia, já acontece uma outra celebração, em que os índios tocam o toré na Pedra Sagrada, e caminham de pés nus sobre as brasas da fogueira. São convocados os antepassados da tribo, a fim de que comemorem juntos com os vivos. E para que os mortos convidados não se percam de seus familiares na multidão, cada família traz na cabeça flores de cores diversas, que os identificam. O fotógrafo francês Edmond Dansot, radicado no Brasil desde 1937, registrou uma dessas cerimônias de sincretismo religioso, em que duas culturas diferentes sobrevivem lado a lado, numa entrelaçada harmonia.
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Para guiar entre a multidão os mortos convidados para a festa, cada família usa na cabeça chapéus com flores de cores diferentes
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MARCO ZERO
Jatinhos do MinC no país dos eventos A utilização da Lei de Incentivo para financiar a cultura de massa é trair “o espírito da lei”
E
stávamos em 1994 e alguém disse ao intelectual petista, Marco Aurélio Garcia, que o recém-eleito presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, indicara o seu amigo pessoal Francisco Weffort para o Ministério da Cultura. Marco não titubeou: “Será uma catástrofe”. E foi. Ele só não apanhou da mídia pela sua insignificância e invisibilidade, como acontece a todas nulidades executivas oficiais na área cultural. Há sete anos, o Brasil é o país dos eventos. Tornou-se o mais extenso palco do mundo, mas palco onde a mediocridade se reveza em grande pompa. Onde os órgãos estatais disputam com a iniciativa privada quem vai financiar mais generosamente o mais medíocre show business. Enquanto isso, estiolam à míngua de verbas as bibliotecas públicas, os museus, as sinfônicas, as escolas de arte, as editoras
universitárias, ou seja, todos aqueles espaços que reproduzem novas obras e novos produtores culturais. Promover esses espaços deve ser o papel do MinC e das leis de incentivo à cultura. Mas essa eventologia do Ministério da Cultura, que contaminou todos os Estados da Federação, é responsável por tantas viagens de jatinho do titular Weffort e sua equipe. Recortei uma notícia de 1998, de Elio Gaspari, informando que a trupe ministerial gastou R$ 2,64 milhões, de janeiro a maio de 1998, o que representou um aumento de 126% em “relação a igual período no ano passado”. Existem os malotes dos Correios, a Internet está aí, mas certamente não são confiáveis para o pessoal do MinC, que precisa cortar o Brasil de um lado a outro, para espalhar seus eventos aos quatro ventos. Recentemente, O Globo publicou reportagem de Mauro Ventura, intitulada Os Donos da Grana, revelando a política de patrocínio cultural de cinco
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grandes empresas: Petrobrás, BR-Distribuidora, Banco do Brasil S/A, Brasil Telecom e Embratel. Juntas, elas estão aplicando, este ano, R$ 138 milhões, através da Lei Rouanet, de Incentivo à Cultura. Esse número absoluto, rateado pelo que cada uma delas vai aplicar em projetos artísticos, pouco me diz. A Petrobrás, por exemplo, está fazendo o maior investimento (R$ 52 milhões). Pouco me diz esse número porque estou num país que, em quatro anos (1992-1996), enviou ilegalmente para o exterior R$ 124 bilhões, segundo a Divisão de Repressão ao Crime Organizado da Polícia Federal. Pouco me diz porque estou acostumado a ler, nos jornais, de vez em quando, que este ou aquele milionário norte-americano doou US$ 1 bilhão a determinado museu, a determinada fundação cultural dos Estados Unidos. Como os financiamentos daquelas cinco empresas não significam doações, pois os valores aplicados são descontados do Imposto de Renda devido, através da Lei Rouanet, e, no fundo, eles representam imposto da população não recolhido, os gerentes de patrocínio daquelas cinco empresas fazem questão de dizer que seu trabalho não é de mecenato, mas de marketing cultural, para dar a seus produtos “mais visibilidade”, mais “retorno de mídia”. A reportagem é pobre em informações sobre os 95% dos projetos que são recusados pelas empresas, mas, pelos raros nomes privilegiados com financiamento, pescados pelo repórter, pode-se ter uma idéia de como tais empresas estão pouco interessadas na renovação: Balé Kirov, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Miguel Falabella e o grupo Corpo, isto é, espetáculos que todo empresário independente, de porte, poderia bancar individualmente, sem
que os impostos entrassem na história, mas, apenas, a bilheteria dos espetáculos. Tirando o Falabella, são nomes de qualidade indiscutível e muito distanciados da absoluta indigência estética das duplas sertanejas, dos grupos de pagode, de axé ou de funk. O que eu gostaria de saber é se estes últimos também estão sendo financiados pelas “cinco grandes”, ou se fazem parte dos 95% que voltam de pires na mão. A utilização da Lei de Incentivo para financiar a indústria cultural e seu produto, a cultura de massa, representa uma distorção “do espírito da lei”, como diria o velho Montesquieu. No entanto, é o que mais se vê em nossos dias, principalmente nos eventos promovidos pelos governos estaduais e municipais. Desde que os produtos da indústria cultural sejam financiados pela iniciativa privada, nada tenho contra eles. De certa maneira, essa produção teratológica do kitsch tem a sua utilidade num país de desempregados, como o nosso, apesar de fazer mal ao nosso espírito, ao espírito nacional. Pesquisa denominada “Diagnóstico dos Investimentos na Cultura no Brasil”, encomendada pelo próprio MinC, e realizada pela Fundação João Pinheiro, mostra que, em dez anos, de 1985 a 1995, para cada R$ 1 milhão gasto na área cultural “geraram-se 160 postos de trabalho”. A parafernália eletrônica que acompanha o mais baixo nível da música popular brasileira nos últimos anos, por exemplo, exige também cada vez mais pessoal qualificado em som, iluminação e mão-de-obra para logística e segurança. “Nossa música é péssima”, diria no Sudeste uma sincera dupla sertaneja. “Mas dá emprego e vende cerveja, uai!” Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
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MÚSICA
Amor
em canto e verso
À
margem da eterna discussão letra havia sido aprovado, há dois anos, pela Lei de InContinente centivo à Cultura da Prefeitura do Recife, mas apede música X poesia (C Multicultural nº 7), o poeta Jaci nas foi lançado no final do ano passado, quando reBezerra e o músico Zoca Madurei- cebeu apoio de uma empresa privada. “Somente ra conceberam a quatro mãos o In- com esses recursos pudemos fazer um trabalho bem ventário do Amor, projeto que levou apurado tecnicamente. Por isso o projeto demorou 10 anos para realizar uma perfeita tanto para sair do papel”, conta Zoca. simbiose entre música e poesia. São 12 poemas soA idéia do CD partiu de Zoca, que tinha debre o amor, concebidos especialmente para serem senvolvido vários trabalhos com seu Quarteto Romusicados e gravados num CD, com interpretações mançal, unindo aparato erudito e raízes populares. da soprano Kelly Benevides e do tenor Karlson O intuito inicial era dar uma visão do amor, a partir Correia, com participação de Fernando Farias dos dez mandamentos do Cristianismo. Mas, de(flauta), Yerko Tabilo (violino), Arimatéia Ayres pois, o trabalho se ampliou e passou a abordar temas (acordeom), Antônio Madureira (violão) e Fernan- gerais sobre manifestações amorosas. O resultado é do Rangel (contrabaixo), com arranjos e regência que, no Inventário, podem ser encontradas as mais do próprio Madureira. O resultado é definido por diversas formas de amor: do passional ao materno, Sebastião Vila Nova como “uma arte que fica” (ver do místico ao transcendental, do encontro e da perda crítica a seguir). amorosa. Temas que foram discutidos e escolhidos Produzido pela Ancestral Produconjuntamente. Entre as referências esções Artísticas, de Madureira, o projeto Joana Aquino tão um sermão do padre Antônio Vieira 70 Continente Multicultural
ALEXANDRE BELÉM / TITULAR
Compositor e poeta produzem, em conjunto, Inventário do Amor, com 12 poemas musicados sobre o amor da Virgem Maria por Jesus Cristo e o último trecho de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. O processo de feitura do trabalho é explicado por Jaci: “Eu já tinha tentado colocar letra em uma música, mas achei o processo complicado e desisti. Para fazer poesia que sabia que seria musicada, resolvi seguir meu processo de criação normal. Depois, Zoca fez algumas alterações, que acabaram me agradando muito”, afirmou o poeta. Madureira, que já musicou poemas de Carlos Pena Filho e fez operetas para cinco discos infantis, diz que não cria tanto a melodia quanto a descobre contida nas palavras. “Se você conhece de métrica e fonética”, explica, “vai perceber que o próprio poema já vai indicando como deve ser musicado”. Para ele, mil exercícios de criação podem ser feitos em cima de um texto, mas apenas um representa a própria música do poema. Afirma, ainda, que a tarefa de colocar um texto numa pauta musical não é tão simples. “Para ser musicado, primeiro o poema tem que ter um encadeamento fonético muito bem feito”, diz Zoca. Além disso, ressalta a importância do
uso de palavras de vocabulário mais simples e de entendimento imediato. “Poemas rebuscados muitas vezes não apresentam um sentido musical.” Já na visão de Jaci, o desafio de musicar poemas pode ser enfrentado tendo como base qualquer que sejam os versos. “Eu acredito que todo texto poético tem a possibilidade de ser musicado, dependendo da intenção do artista. O poema por si só já tem uma sonoridade que permite isto”, opina o poeta. E completa: “Claro que alguns autores têm esta musicalidade melhor definida, como Cecília Meireles ou a poesia chilena, colombiana e do García Lorca ou do Mário Quintana”. Ambos estão felizes com o resultado final, apesar de o disco não haver tido um evento de lançamento e uma boa estrutura de divulgação. E admitem a possibilidade de repetir a experiência, numa segunda parte do Inventário. SERVIÇO Para Adquirir o CD Inventário do Amor ligar: 0xx81-32688994 Joana Aquino, da equipe de Continente, é estudante de Jornalismo
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Uma arte que fica
Sebastião Vila Nova
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A palavra “canção” é uma caixa na qual cabe muita coisa. Cabem, na ordem cronológica, as canções anônimas do povo, as canções folclóricas, como as canções de trabalho, as canções de pesar, a exemplo do blues, as cantigas de roda, as canções de ninar, os aboios. Mas cabem, igualmente, as canções populares de autor conhecido, com raízes na cultura do povo, os sambas de um Noel Rosa, por exemplo, as marchas e valsas de uma Chiquinha Gonzaga, os maxixes de um Sinhô. Na mesma caixa cabem as canções populares mais elaboradas, com influência na música erudita, como, notadamente, nas canções de um Antônio Carlos Jobim, no Brasil, ou de um George Gershwin, nos Estados Unidos. Cabe, ainda, o chamado lied, a canção erudita, no mais das vezes resultante da musicalização de poemas, invenção do romantismo que teve, porventura, em Schubert, o seu representante máximo. Como acreditava Thomas Mann, que tanto se interessou, como um alemão típico, pela música, muita gente acha que a melhor letra é a mais simples, a menos rebuscada. Isto é verdade para todos os tipos
de canção, sem dúvida. Por esta razão, compor lied é trabalho dificílimo. O trabalho de Zoca Madureira, um dos mais completos músicos brasileiros da atualidade, pondo música nos belíssimos poemas de Jaci Bezerra, situa-se na tradição dos lieder. No caso específico dessa experiência, Zoca teve a vantagem de trabalhar com poemas de grande musicalidade, pois uma das características mais notórias da poesia de Jaci é a requintada elaboração da melopéia. Isto, porém, não diminui a dimensão do desafio que, seguramente, representou para Zoca musicar os poemas de Jaci. Em nenhum momento, Zoca resvala para o lugar-comum, embora, ao mesmo tempo, jamais se afaste das fontes populares da música brasileira, tanto na rítmica, quanto na melodia e na instrumentação. E aí reside o maior mérito desse trabalho de Zoca: a capacidade de conciliar inovação com tradição. O trabalho de Zoca com Jaci Bezerra constitui a verdadeira expressão de vanguarda na música brasileira atual. Em algumas das canções, é inequívoca a presença da tradição da nossa modinha, em outras, a marca da música popular do Nordeste. Não hesito em dizer que o CD Inventário do Amor representa o que há de mais refinado na música brasileira contemporânea. Mas, parafraseando Jorge de Lima, infelizmente, do trabalho de Zoca e Jaci Bezerra “muito pouco se tem ocupado a imprensa”, pois, afinal, ele destoa daquilo que buscam os donos da indústria cultural. Mas, a despeito de todos os obstáculos, Inventário do Amor é arte que fica. Kelly Benevides, soprano, e Karlson Correia, tenor, ressalte-se, assim como os músicos que os acompanham, estão todos à altura das canções que interpretam Sebastião Vila Nova é sociólogo, músico e escritor
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA
A verdadeira historia da renuncia de Janio Quadros Joel Silveira
1.
Janio
Sempre que eu indagava ao finado Jânio Quadros, numa entrevista encomendada ou num bate-papo informal (e isso aconteceu uma dezena de vezes), sobre os verdadeiros motivos de sua renúncia, ele bebia mais um gole do uísque, guardava teatralmente um ou dois minutos de silêncio e depois respondia, grave e fúnebre: – A você, Joel, eu conto. E lá vinha com uma história sempre diferente das anteriores.
2.
Inaceitavel
Jamais aceitarei o fato, uma das mais clamorosas injustiças da natureza, de certas pessoas (entre as quais me incluo) viverem tão tanto e as borboletas, tão pouco.
3. 4.
Espolio
Já não me sinto pessoa física, me sinto espólio.
Improvavel
No mais, é como dizia Aldous Huxley, conversando com Gilberto Freyre lá em Apipucos: – O Brasil é um dos países mais improváveis que tenho conhecido...
5.
Ridiculo
É no mínimo ridículo uma pessoa terminar de escrever suas memórias e continuar vivendo.
6.
Conclusao
Tenho medo de que no último balanço, que se aproxima, eu chegue a esta arrasadora conclusão: não teria sido tudo um grande, patético equívoco?
74 Continente Multicultural
7.
Vicio
Meu amigo me comunica, jurando por Deus e por todos os santos, neles já incluindo Frei Damião e Madre Teresa, que deixou de fumar e de beber. – Definitivamente. E já tem mais de quatro anos. Acrescenta: – Meu vício agora é outro. – Qual? Crack? Maconha? Cocaína? – Nada disso. Infarto. Nos últimos dois anos, já tive três.
8.
Bossa nova
Mais chato que a tal da Bossa nova, com seus cicios e corrimentos, só deve ser o Purgatório, que também não ata nem desata. Só enche.
9.
10.
Besta quadrada
O confrade explica-se: – Burro não sou. Uma besta quadrada, talvez. E remata: – Um dia você irá saber a profunda diferença que existe entre uma coisa e outra.
Decisao
Para nunca mais estar no lugar errado na hora errada, tomei uma decisão, que espero definitiva: não vou mais a lugar algum.
11.
Os dias
Para encerrar o assunto, é como dizia Rubem Braga: – Ultimamente, têm passado muitos dias...
Joel Silveira, ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.
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LIÇÃO DE ARTE
Pintor, ceramista e escultor, Miguel dos Santos já foi chamado pelos críticos de apaixonado pelo enigma e de sacralizador da arte. Ele não o nega. “O enigma é o próprio universo”
Paixão pelo enigma
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N
Chico, 1984. Cerâmica, 61 x 44 x 31cm
o princípio, Miguel dos Santos seguiram liberar o seu saber. Vejo a arte como um enfiou os dedos no barro, para instrumento de Deus. É uma maneira de encurtar extrair o material da sua arte. E as distâncias via intuição”. Miguel dos Santos era uma Miguel dos Santos é um herdeiro da traárvore, e seus dedos eram as dição da cerâmica popular, com uma obra multifaraízes que se nutriam da terra, cetada, mas entroncada na cultura africana. Rico e de todo o sangue derramado em fantasia, seu trabalho, onde habitam seres másobre ela, em guerras e sacrifícios, e de todo o sêmen gicos, tem uma forte carga de ancestralidade, lemderramado sobre o solo, desde Adão e Eva. brando muitas vezes máscaras ritualísticas. AtualVida e morte, os extremos de um mesmo mis- mente, explora um claro-escuro na pintura que retério, essa é a matéria de que se nutre a arte de Mi- mete à escola holandesa, com muitos dourados. “É guel dos Santos. Não é difícil falar, ou escrever, sobre bom acentuar que este dourado não é uma referênele, porque tudo nele é excesso. Exagero de formas, cia à riqueza material”, alerta. “É a entidade lumide tramas, de cores. E exagero aqui não como sinô- nosa, o ouro do espírito.” E conta uma curiosidanimo de descontrole, mas, sim, de abundância. Mi- de: “Em São Paulo me perguntaram se era influguel dos Santos é um artista fértil. Basta ir à sua casa ência holandesa. Por que não? Eles pintaram aqui, para ver seu imenso ateliê repleto de obras, seu quin- no quintal de casa”, completa, referindo-se a Frans tal repleto de totens, numa variedade atordoante. Post e Albert Eckhout. Segundo Francisco BrenPintor, ceramista e escultor, Miguel dos nand, a explicação é outra. Para o pintor e ceramisSantos já foi chamado pelos críticos de apaixonado ta da Várzea, o dourado sempre habitou a cerâmica pelo enigma e o maravilhoso, e de sacralizador da de Miguel e finalmente passou para sua pintura. arte. Ele não o nega. “O enigma é o próprio uniRadicado em João Pessoa, Paraíba, onde verso”, diz. “O homem é seu insignificante tradu- despontou para a notoriedade, Miguel dos Santos tor. O homem é cheio de perguntas às quais apa- nasceu em Caruaru, em 1944. “Comecei riscando rentemente Deus não responde, mas ele já foi pri- o chão. Pegava pedaços de compensado e riscava”, mitivo, não tinha sequer uma faca. Ao longo do seu conta. Seu primeiro contato com a cerâmica foi tempo as respostas vão sendo dadas.” Para ele, “o com os bonecos de Vitalino. “Um dos meus privihomem tem uma alma que já viu a face de Deus, légios de menino pobre era brincar com originais habitando um corpo que não sabe nada. Através do de Vitalino”, relata. Miguel passou a freqüentar o merecimento do ser, esse conhecimento se revela. ateliê do ceramista. “Ele gostava mesmo era de toPor exemplo? Em homens como Michelangelo, car pífano. A cerâmica era seu ganha-pão. No enBeethoven, o Aleijadinho. O divino estanto, é o maior escultor popular do tá do outro lado e estes homens con- Marco Polo mundo”, diz. Continente Multicultural 77
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O Visionário, 2000. Óleo sobre tela, 60 x 50cm
Tinha também um vizinho cujo corpo era todo torto. Às vezes, ele o via no quintal, com seus irmãos atando correias e coletes para endireitar o seu tronco. “Era como ver um corpo humano sendo modelado”, lembra Miguel. Ainda garoto, Miguel foi morar em Palmares, onde ainda havia descendentes dos habitantes do Quilombo, e onde ele teve seu primeiro contato com a cultura negra. “Uma vez, numa estrada perto de um canavial, fiz um desenho no chão. Um carreiro (camponês que corta a cana e a transporta em carros de boi) viu aquilo e me chamou de menino ruim. Depois me perseguiu, com o facão na mão, para me surrar com ele. Só vinte anos depois consegui decifrar o que tinha acontecido. Ele interpretou o desenho como um ponto (sinal) de macumba, que eu estaria fazendo para prejudicá-lo. Foi meu 78 Continente Multicultural
primeiro crítico. Por sinal, muito severo”, comenta Miguel, rindo. Lá em Palmares, ele se encontrou, também, com um doido chamado Muvamba-Saco-de-Gatos. Ele andava com um saco nas costas, cheio de folhas, flores, cacos de tijolo e telhas. Fixava um pano no chão, como um tapete, e o pintava com as folhas e flores esmigalhadas e os cacos. Eram cenas do Recife Antigo e de Olinda. “Fiquei uns três anos auxiliando ele”, conta Miguel. “Ele falava sozinho e nunca se dirigiu a mim. Mas com ele aprendi que quando a imaginação funciona você encontra material em qualquer lugar. Não tem desculpa para não produzir.” Depois, Miguel estudou desenho industrial, no Senai. Foi quando sua irmã casou-se e mudou-se para João Pessoa. O artista a acompanhou e lá teve
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mais um aprendizado. Seu cunhado trabalhava para um fotógrafo chamado José Lira, “um retratista espetacular”, que ele passou a freqüentar também. A partir daí já estava definido como pintor e começou a expor. Logo, voltava à cerâmica, criando seus famosos totens. Fez sua primeira exposição no Rio, primeiro na loja Celina Decorações, dirigida pelo crítico de arte Walmir Ayala, depois na prestigiosa Galeria Bonino. O reconhecimento veio logo e com ele o convite para expor no Masp (Museu de Arte de São Paulo). “Quando cheguei lá e vi aquele prédio sustentado por quatro palitos fiquei com medo de entrar. Isso aí vai cair, eu dizia. Finalmente me convenceram. Lá, conheci Pietro Maria Bardi, que me disse: Você é um artista. Agora você tem uma grande responsabilidade.” De um tempo para cá, a criatividade do artista exigiu a utilização de novos materiais, e ele passou a esculpir também em madeira, pedrasabão e mármore de Carrara. “Cada material tem seus deuses e seus comandos. Cada um dá uma medida de compromisso. Toda vez que você usa um novo material você está com uma chave e abre uma nova porta”, ensina Miguel. Sobre sua obra, muito já foi dito: “Surpreende pela frenética inventiva que nasce da consideração íntima do sentimento, dos casos, da vivência poética do povo. Intérprete sutil, apaixonado pelos misteriosos enigmas, pelo mágico, pela religiosidade de sua gente”, Pietro Maria Bardi. “A pintura de Miguel dos Santos é algo que me entusiasma, povoando seus quadros a óleo, ou cerâmicas, de bichos estranhos: dragões, metamorfoses, cachorros endemoninhados, santos, mitos e demônios”, Ariano Suas-
Pietá, 1999. Mármore de Carrara, 107 x 28 x 29cm
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Dama de Holanda, 2000. Óleo sobre tela, 40 x 40cm
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ÃO UÇ PR OD
suna. “Todas as imagens que concebe e faz são tiradas do fundo da alma coletiva, que por ele passa e prossegue. (...) É um intérprete do comportamento arcaico brasileiro, resultante do sincretismo católico-africano”, Clarival do Prado Valladares. “Confesso minha enorme surpresa diante dos três magníficos mármores de Carrara. A escultura Pietá é genial na concepção e na matéria deslumbrante”, Francisco Brennand. “A obra de Miguel dos Santos é fantasiosa, fabulosa, faz o relato de uma tribo que só ele conhece e que nós, observadores, sentimos como uma poética memorialística”, Jacob Klintowitz. Cercado de seu universo de seres híbridos, totens e máscaras, Miguel, entretanto, mantém uma reverente atitude perante a arte. “Não sei se sou ceramista, pintor ou escultor”, confessa. “Sou um aprendiz.”
A partir de um desenho refinado, o artista elabora pinturas tecnicamente bem apuradas, abandonando o imaginário surrealista que dominava seu trabalho, para mergulhar no passado e homenagear a família
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Abaixo, Raoni, 1986. Cerâmica, 212 x 41 x 41cm
Crônica de
O paraibano Flávio Tavares vem evoluindo desde uma pintura primitiva, passando pelo surrealismo, até a fase atual, em que retrata o mundo doméstico dos anos 50
J
“
á fui chamado de primitivo, figurativista que segue a tradição dos anatomistas pré ou pós-renascentistas, e surrealista. Admito que tenho muito disso tudo, e dos impressionistas também, mas prefiro achar que busco e executo os meus próprios ideais estéticos.” A frase é do artista plástico Flávio Tavares, nascido em João Pessoa, Paraíba, em 1950, e que equilibra, em sua obra, imaginação e observação. Flávio vem percorrendo um logo caminho nas artes visuais, desde um início singelo em que se aproximava da pintura ingênua, até um mais recente realismo mágico exuberante. Mas, em sua última fase, da qual fazem parte os quadros da série Canteiros da Memória, Flávio deixa um pouco de lado sua elaboração de um imaginário surrealista, para retratar – e esta palavra é importante nesta nova postura do artista – a cena real. Ele conta que, com a morte de seus pais, resolveu fazer uma homenagem à família. À sua, em particular, e ao núcleo familiar em seu sentido universal. É, assim, uma temática retroativa (tendo em vista, também, a pulverização que a instituição vem sofrendo nos tempos atuais), recriando um ambiente perdido, típico dos anos 50. Para tanto, ele agrupa homens, mulheres, crianças e bichos em “poses para retrato”, estando aí uma referência a seu avô, que era fotógrafo. (Não é gratuita uma certa tonalidade sépia predominan-
Em seus desenhos, Flávio Tavares tanto harmoniza texturas quanto trabalha unicamente com a linha preta sobre o espaço branco, obtendo, com meios econômicos, forte expressividade
uma viagem no tempo Continente Multicultural 81
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A mulher é o elemento central da maioria dos quadros do artista. O biótipo nordestino e a vegetação tropical são duas outras características da sua fase atual
Tudo parece girar em torno dela. Mesmo num quadro em que um homem está sentado a uma mesa, em primeiro plano, tendo aos pés um cão, emoldurada pela porta, atrás e meio na sombra, há a presença forte de uma mulher de grandes seios e tiara dourada na cabeça, como que dizendo: “Você está na luz, você aparece mais, porém quem controla tudo sou eu”. Esse erotismo sutil e permeado de certa perversidade já aparece em outra fase anterior de Flávio, como a série Cama e Mesa, exposta na Alemanha. Nela, “cavaleiros e burgueses faziam festas orgíacas, emolduradas por animais e por personagens de fábulas”, como aponta ainda Maria do Carmo Vogt. De fato, o artista povoa seu período mais evidentemente surrealista de seres fantásticos e às vezes assustadores, em meio a cenas de guerra, intriga, embriaguez e sexo velado, transpondo para o Sertão seres medievais. Detecta-se aí o dado narrativo das pinturas de Flávio Tavares, que faz de suas figuras verdadeiras personagens, interpretáveis em sua psicologia e comportamento pela expressão e atitude. E até mesmo pelo que procuram disfarçar. É dentro deste enquadramento que também se pode resREPRODUÇÃO
As figuras em atitude de pose refletem a tentativa de capturar o clima da época, bem como a tonalidade sépia, os penteados e os vestidos
do nos trabalhos.) Há uma reafirmação do passado tanto nestas posturas, quanto nos penteados e roupas das mulheres, nos bigodinhos e chapéus dos homens, e, principalmente, no resgate de um clima, digamos, “debretiano”. Clima este que se acentua num certo tipo de luz, numa coloração ao mesmo tempo quente e sóbria, e na presença constante da folhagem tropical emoldurando as figuras. Flávio Tavares aproveita seu conhecimento de cenógrafo de teatro para compor cenas em que personagens e cenário se complementam e se explicam. Nesta crônica de uma viagem no tempo, a figura da mulher ocupa um lugar central. Não é para menos que a presidente da Associação Cultural Teuto-Brasileira, de Berlim, Maria do Carmo Vogt, diz que uma das coisas que mais a impressionou, quando visitou o ateliê do artista pela primeira vez, foi a presença de “mulheres belas, dominadoras de homens e animais, num mundo tropical”. Ela está se referindo a uma fase anterior de Flávio, mas a dominadora presença feminina permanece neste Canteiros da Memória. Está lá a fêmea de personalidade imperativa, seja a estudante, a mãe, a esposa ou a amante.
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Neste quadro da série Canteiros da Memória o dado surrealista retorna ao trabalho do artista, realçando o erotismo velado quase sempre presente
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saltar na produção recente do solene, que intimida. Opinião Na maioria dos artista o lado documental. compartilhada com a do cequadros do artista há a ramista e pintor pernambucaFlávio se diz um pintor na linha dos figurativistas latinopresença de mulheres no Francisco Brennand (em americanos, predominanteentrevista à Continente Mulbelas, dominadoras de ticultural, edição de junho mente os mexicanos e os pernambucanos. Daí em seus homens e animais, num passado). Aliás, a respeito do quadros as pessoas terem um temor do artista perante a tela, mundo tropical biótipo nitidamente nordestiFlávio tem uma comparação no, em meio a ambientes de antigos casarões, centra- curiosa: “Ele corre o mesmo risco do matuto que dos em cenários de um antigo meio urbano, cheio de quer se engalanar todo e termina ridículo”. árvores, quintais e até paisagens campestres. Brennand é uma das referências de Flávio A esse aspecto predominantemente realista da Tavares, ao lado de Di Cavalcanti, Vicente do Rego exposição Canteiros da Memória, entrelaça-se o já cita- Monteiro e Cícero Dias. “Nós não temos uma pindo viés narrativo, que quebra a realidade aparente, tura solta, virtuosística, como os franceses. Aqui, só inoculando no espectador a sensação de que nem um grande artista como José Cláudio explora esta tudo está ali, explícito. Há, por trás das cenas posa- linha. Tal como os mexicanos, e os latino-ameridas, estáticas, toda uma dinâmica de paixões silen- canos em geral, exercemos uma postura e uma pinciadas, mas a ponto de explodir a qualquer momento. tura mais contidas”, diz ele. (MP) O que torna a pintura de Flávio Tavares sempre uma experiência de vida e pulsação de mistérios. Um outro ponto que de imediato chama a atenção na pintura de Flávio Tavares é o apuro formal. Seus personagens e os lugares onde se movem são pintados com esmero realista. Virá tal virtuosismo, talvez, do fato de ser Flávio um excelente desenhista. De fato, seus desenhos, quer explorem a linha fina sobre grandes superfícies brancas, quer se ordenem em composições que jogam com o preto, o cinza e o claro – incluindo aí as texturas e espaços chapados – revelam domínio completo da técnica. O artista se confessa um fascinado pelo desenho. “O desenho está mais adiante do que a pintura. A pintura tenta seguir o despojamento do desenho”, diz ele, para quem a tela tem algo de
Na série Cama e Mesa, exibida na Alemanha, Flávio envolve personagens estranhos e medievais com seres fantásticos
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ENTREMEZ
Eu não sou
Paulo Coelho Esquecemos que o sadismo é semelhante ao capitalismo perverso, que só atribui qualidade ao que tem valor de mercado
N
inguém gostou do meu artigo sobre o Grande Sertão: Veredas. Ouvi várias queixas, até a de que eu tinha profanado a memória de Guimarães Rosa. Eu não profanei nada. Expus a minha opinião sobre o romance e o meu desagrado com o final. É difícil o lugar de crítico num país onde só se pratica a bajulação. Guimarães não precisa dos meus elogios, mas de leitores. Constatei que poucas pessoas leram o Grande Sertão. Algumas tinham vagas lembranças do seriado da TV Globo. Só. Os poucos que atravessaram as veredas do livro não estavam nem aí para os meus questionamentos sobre a representação do feminino em Diadorim. Um leitor até escreveu-me, pedindo que explicasse os termos gregos arete, erastés e erômenes, citados no texto. Eu prefiro desistir da idéia de ser um colunista pretensamente culto. As pessoas me sugerem assuntos polêmicos, que possam interessar a um público mais diversificado e jovem. Talvez eu escreva sobre Paulo Coelho ou Harry Potter. É um desafio criar matérias interessantes para leitores acostumados a notícias de última hora. Os colunistas se equilibram com um pé no transitório e outro no permanente. Temos de falar sobre assuntos que estejam na pauta do dia com um caráter de eternidade. Agora que Paulo Coelho desistiu de ser mago e afirma ser um ótimo escritor de vanguarda, e eu renunciei à minha falsa cultura,
Ronaldo Correia de Brito 86 Continente Multicultural
escreverei sobre discos voadores, telepatia e autoajuda. Tomara que dê certo. Ou pelo menos aumente o meu caixa. A única medida de valor do nosso tempo é a numérica. Quando se fala de alguém, seguem entre parênteses a sua idade, os discos vendidos, a tiragem dos seus livros, a fortuna em dólares, as propriedades, e assim por diante. Nietzsche, que só teve oitenta exemplares na primeira edição de Assim Falava Zaratustra, não vale nada, comparado a Paulo Coelho, que já vendeu trinta e dois milhões de livros no mundo. Essa quantificação é um produto do sadismo, assimilado pela modernidade. As conquistas eróticas do Marquês de Sade não eram avaliadas por critérios amorosos, mas em números. “Tive tantas relações com a condessa M., tantas com a baronesa S.”, numa sucessão de mulheres sem rosto, meros objetos com etiqueta. Habituados a interpretar o sadismo como gozo pelo sofrimento alheio, esquecemo-nos dessa face, semelhante à do capitalismo perverso, que só atribui qualidade ao que tem valor de mercado. João Cabral, numa de suas últimas entrevistas, justificava porque a sua poesia, mesmo vendendo tão pouco, era uma arte renovadora. Paulo Coelho afirma a sua qualidade exibindo a cifra dos seus leitores. Mas ainda pretendo falar sobre Guimarães Rosa. Um jornalista de São Paulo leu o artigo sobre o Grande Sertão e escreveu-me uma carta dizendo que a minha análise do amor entre Riobaldo e Diadorim não o convencia. Colocou no envelope uma entrevista de João Silvério Trevisan, concedida à Caros Amigos, em outubro de 2000, insinuando que as minhas idéias não eram originais. Vade retro! Não li o livro de Trevisan, Devassos no Paraíso, onde ele afirma que Diadorim é um dos “referenciais da literatura de temática homoerótica” e cita Dominique Fernandes, um autor francês que considera Grande Sertão: Veredas “um dos monumentos da literatura homossexual de todo o mundo”. Passo longe dessas idéias. Trevisan, a julgar pela entrevista, centra os seus argumentos na “ambigüidade do Grande Sertão... uma ambigüidade de gênero nos personagens...” e numa suposta ambigüidade do seu autor. Afirmei o meu desinteresse pela biografia de Guimarães Rosa, preferindo comparar o romance
com outros épicos. Insisto que o amor entre dois homens é um tema antigo, que já aparece na Epopéia de Guilgamesh, primeiro registro escrito da humanidade. Continuo achando que Guimarães Rosa dá uma solução cristã ao Grande Sertão, quando não é capaz de sustentar a atração entre os dois amigos, preferindo transformar Diadorim numa donzela, depois de sua morte. Ele deixa de resolver um dos seus dilaceramentos, a contraposição entre Deus e o Diabo, quando poderia ter incorporado o Tinhoso, representação do Eros, à Santíssima Trindade. Percebo na entrevista de Trevisan que os seus argumentos tendem mais para o apologismo gay que para a análise literária. Há um indisfarçável proselitismo na sua fala. Na Ilíada, o amor entre dois homens está narrado sem justificativas. Ganha uma dimensão mitológica que serve de modelo para os mortais comuns. Mas isso era na Grécia. O mundo andou para trás, desde então. O Eros decaiu com os romanos e tornou-se clandestino na Idade Média. No Cristianismo, abdica-se dos desejos em nome de uma pureza, cujo modelo é uma Virgem dessexualizada. Diadorim se transforma em Diadorina. Culposo e triste final. Mas a conversa está ficando culta demais. E eu não sou Paulo Coelho. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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CONVERSA FRANCA
O historiador inglês Paul Johnson denuncia três pragas: o relativismo moral, a arte moderna e gente politicamente correta
Picasso era imoral, per 88 Continente Multicultural
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efensores da mentalidade poli- de Paulo Francis às margens do Tâmisa. Horroticamente correta, tremei. Paul rizado com o que chamava de “sociedade filistina”, Johnson vem aí. Os fãs da fera Paulo Francis disse uma vez que se sentia “tecnicao consideram um dos mais bri- mente morto” em meio à vulgaridade generalizada. lhantes historiadores britâni- O incômodo que Francis sentia deve ser igual ao sencos. Os detratores ficam horro- timento de inadaptação que abastece a ira de Johnson rizados quando lêem os fre- contra a mediocridade, as nulidades e a empulhação. As universidades, tidas por tantos como temqüentes petardos que ele dispara contra, por exemplo, a arte moderna. Colunista da revista Spectator, plos intocáveis do saber, se transformaram em cencolaborador do Daily Telegraph, Paul Johnson pode tros de intolerância, irracionalidade, extremismo e ser acusado de tudo, menos de ser um historiador preconceito. São fábricas de ignorantes, uma empupouco ambicioso: depois de escrever A História dos lhação custosa, na avaliação devastadora de Johnson. Judeus, mergulhou a fundo na tarefa de produzir A Orgulha-se de jamais ter-se dado ao trabalho de ver um show de música pop ou um jogo de futebol. História do Cristianismo, recém-lançado no Brasil. Paul Johnson é um caso clássico de intelectual Opiniões assim renderam a ele uma farta coleção de que nunca teve medo de nadar contra a corrente. críticos e detratores. Mas ele não parece disposto a Minorias que se julgam perseguidas devem ou não dar trégua. Paul Johnson vem se ocupando da morte de ser criticadas? Devem, sim, responde a Fera do Tâmisa. Picasso é um grande artista? Não é, não – bra- Deus, o grande fato que não aconteceu no século 20. da Johnson, autor de um livro de ensaios chamado Grandes tragédias do século 20, como o extermínio To Hell With Picasso (algo como Que Picasso vá para de seres humanos em escala industrial nos campos o Inferno). Picasso – garante ele – não passa de um de concentração, poderiam ter contribuído para abastalinista que apoiou um regime totalitário. A flexibi- lar a fé dos homens em Deus. Mas Paul Johnson diz lidade de conceitos morais é uma conquista do pen- que a ocorrência de tragédias terminou, paradoxalsamento do século 20? Não é, nunca foi, nem pode- mente, reforçando a fé. Os descrentes procuraram ria ter sido – rebate o impaciente Johnson. O relati- proteção e consolo na idéia de Deus, porque o culvismo moral – diz ele – é uma praga que faz os in- pado de tudo é, como sempre, o homem. gênuos acreditarem que não existe nada que seja ab“Ao contrário do que se esperava,” festeja solutamente condenável. Johnson, “este não foi o primeiro século do ateísmo”. Quando o século 19 acabou, todo mundo esAos 73 anos de idade, conservador assumido, crítico feroz da arte moderna, pintor nas horas vagas, perava que a ciência iria tomar, de uma vez por todas, religioso praticante e alpinista amador, Johnson é um o lugar da fé. O avanço do conhecimento científico polemista profissional. Faz parte de uma tribo mi- destruiria a idéia de que um Deus, seja qual for, exisnoritária: a dos intelectuais que não temem dar opi- te. Um século depois, essa previsão falhou. niões aparentemente fora de moda, fora de lugar e foNesta entrevista, feita em Londres, a Fera do ra dos manuais de “bom comportamento” ideológi- Tâmisa ruge contra a mentalidade politicamente co. Já foi chamado de reacionário, direitista, manipu- correta, a arte moderna e o relativismo moral. lador, antiquado, intransigente, preconceituoso: é uma espécie Geneton Moraes Neto
verso e péssimo artista Continente Multicultural 89
Qual foi o pecado capital do século 20? É o que chamo de relativismo moral: a negação de que haja valores absolutos. Acontece que há coisas que são absolutamente certas e outras que são absolutamente erradas, sim! O relativismo moral afirma – pelo contrário – que todo bem ou todo mal é relativo. Todos os valores seriam relativos, portanto. Vejo o relativismo moral sob toda maldade totalitária e todo tipo de pecado do século 20. Precisamos voltar – acho que já estamos voltando – a cultivar valores absolutos.
O movimento feminista e a obra de Picasso: alvos de críticas devastadoras de Paul Johnson
O senhor diz que já não há uma idéia absoluta sobre o que é errado e o que é certo. Pode dar um exemplo do que é certo e do que é errado, no mundo de hoje? O exemplo mais comum é o da sexualidade humana. A maioria das pessoas da minha geração – que viveu a década de trinta – foi educada para acreditar que havia certos e errados absolutos na sexualidade humana. É um fato que o relativismo moral esconde e ofusca. Crianças de hoje não aprendem que há certos e errados! Aprendem que devem fazer o que os outros fazem. Isso é relativismo moral! É um grande mal. Devemos lutar contra ele.
Por que o senhor diz que a mentalidade politicamente correta é uma nova forma de totalitarismo? 90 Continente Multicultural
Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Pablo Picasso REPRODUÇÃO
O senhor se declara um combatente na guerra das idéias. Qual foi a pior e a melhor idéia política do século 20? A pior idéia – que começou antes da Primeira Guerra, ainda por volta de 1910 – é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos. Mas há poucas coisas em que o Estado é melhor que o indivíduo. A verdade é que a idéia de que o Estado age bem é a pior de todas. Aprendemos agora esta lição. A melhor idéia é a seguinte: sempre que possível, os indivíduos devem ser deixados sós para fazerem o que puderem com os próprios recursos. Quanto maior a liberdade, maior a justiça, maior a eficiência e maior a felicidade humana. O Brasil é um desses países que têm um futuro incrível. Chegará a esse futuro, dourado e glorioso, se acreditar mais em liberdade individual e menos no Estado.
REPRODUÇÃO
Não gosto que venham me dizer como pensar, que palavras e expressões devo ou não usar. Para mim, esta é a origem do totalitarismo. Hoje, o totalitarismo vem começando de novo, nos campi das universidades, nos Estados Unidos, sob o disfarce politicamente correto. Temos de lutar – muito! – contra este fenômeno, antes que o totalitarismo disfarçado de posições politicamente corretas se estabeleça de verdade. Quanto o senhor pagaria por um quadro de Picasso? Por que o senhor é tão rigoroso na hora de julgar mestres da arte moderna, como Picasso e Cézanne? A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral. Não vejo, em nenhuma de suas obras, um esforço para mostrar a arte com um propósito moral. Tal esforço é a essência do grande artista. Então, desconsidero Picasso completamente. A obra mais famosa de Picasso, Guernica, é uma denúncia contra a violência do totalitarismo. Por que é, então, que o senhor diz que não havia nenhum sentido moral na obra de Picasso? Porque Picasso não lutava contra o totalitarismo! Picasso não era comunista: era stalinista! Ficou do lado da União Soviética totalitária, durante quase toda a vida. É um escândalo! Não acreditava na liberdade, exceto para si próprio.
AFP
Atriz e ativista norte-americana Jane Fonda
O senhor diz que a religião aprendeu a absorver todos os impactos da ciência. Agora que até seres humanos podem ser criados em laboratório, o senhor acredita que a fé religiosa vai sobreviver? A rapidez no avanço da ciência, especialmente nas ciências da vida – aquelas que afetam os seres humanos – vem tornando a religião mais importante do que nunca. Porque, em cada estágio do avanço da ciência, devemos trazer Deus à discussão. Devemos dizer: “Isso é moral? É justo? É algo que se encaixa no plano divino para a humanidade? Ou é algo que vai contra ele?” O fator “Deus” na ciência é, hoje, mais importante do que nunca. Um astronauta, que é um homem da ciência, diz que procurou sinais de Deus numa viagem pelo Continente Multicultural 91
disponível para elas no Japão – que era uma sociedade muito machista. Sou muito a favor das mulheres. Quanto à esquerda, não gosto de dividir pessoas em setores rígidos – esquerda e direita. Posso até dizer que sou radical – especialmente nas questões femininas, por exemplo. O meu ponto de vista é o de que todos os assuntos devem estar abertos à discussão. Não estou do lado da esquerda ou da direita: estou do lado da razão e da justiça.
A ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher (em desenho de Zenival)
espaço, mas não encontrou nada. Que argumento o senhor usaria para convencer esse astronauta de que, por trás do vazio do espaço, existiria um Deus? Quando nos deparamos com um evento científico supremo, o modo de reagir a ele é uma questão de imaginação. Quando Robert Oppenheimer viu a primeira Bomba H explodir, em Alamos, ele citou o Bhagavad Gita: “Eu sou a vinda da morte, o destruidor de mundos”. Um homem pode ver algo miraculoso ou científico, sem que tenha reação alguma. Se ele for um homem de grande imaginação, pode ter uma enorme reação. Quando, a bordo de um avião, a cerca de doze mil metros de altura, vejo o amanhecer, esta cena, para mim, é uma revelação da existência de Deus. De qualquer maneira, não preciso estar no espaço para fazer esta constatação. A maioria das pessoas, igualmente, não precisa: basta que tenham imaginação para que Deus venha à tona. O senhor consegue irritar as feministas e os esquerdistas com suas opiniões. Os dois são seus inimigos prediletos? Não sou, certamente, um inimigo das feministas. Sou pró-mulher: acredito que o século 21 será o século das mulheres. Dei palestras em Londres para milhares de senhoras japonesas: disse que elas têm o dever de tomar o poder que hoje parece
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Por que o senhor diz que a esquerda tenta deixar os outros deprimidos? O senhor tem tomado Prozac? Não estou de forma alguma deprimido! O século 20 foi, como um todo, um fracasso horrível. Mas aprendemos muitas lições. Aguardei ansioso pelo século 21. Não estou nem um pouco deprimido: penso que este vai ser um grande século. Tenho uma imensa confiança: previa-se que Deus desapareceria da vida das pessoas. Mas Deus estará forte e vivendo nos corações de bilhões de homens, mulheres e crianças. É uma
Reflexões radi “De todas as calamidades que se abateram sobre o século 20, além das duas guerras mundiais, a expansão da educação universitária nos anos cinqüenta e sessenta é a mais duradoura. É um mito a crença de que as universidades são o berço da razão. São o abrigo de todo tipo de extremismo, irracionalidade, intolerância e preconceito; um lugar onde o esnobismo intelectual e social é propositadamente instilado e onde professores passam para os estudantes os seus próprios pecados de orgulho.” “A nova forma de totalitarismo – a Mentalidade Politicamente Correta – é, inteiramente, uma invenção universitária.” “O que me provoca reflexões sombrias é a lembrança de todo o desperdício produzido pelo modernismo. Perdemos duas gerações – meio-século – na busca pela feiúra. Talentos da pintura, desenho e escultura se perderam.” “Nunca fui a um concerto de música pop ou a um jogo de futebol, nunca acompanhei novela de TV, nunca vi ou ...E o Vento Levou, nunca concluí a leitura de Em
constatação que me torna o contrário de um deprimido: eu estou otimista. Se é verdade que a idéia de Deus sobreviveu, quais são os três argumentos que o senhor usaria para convencer um ateu a acreditar em Deus? A primeira razão é a verdade. Deus existe – e a verdade é mais importante do que tudo. A segunda é a felicidade: com Deus, estamos mais felizes, mais satisfeitos, mais seguros do que sem Deus. A terceira razão: sob o ponto de vista puramente social, um mundo em que Deus fosse amplamente acreditado e respeitado seria um mundo muito mais seguro e melhor. O senhor diz que o ex-pprimeiro ministro britânico John Major é um político de segunda categoria. O senhor compraria um carro usado de John Major? Quando estou viajando no exterior, sempre me pergunto: “Tenho ou não orgulho de ser inglês?” Quando Margaret Thatcher era nossa primeira-
O senhor – que é um conservador – hoje apóia o Partido Trabalhista, na figura de Tony Blair. Por que essa mudança? Não acredito muito em partidos políticos. Não sou um homem que tenha fé em partidos. Não estou, portanto, preocupado com o Partido Trabalhista ou com o Partido Conservador. Acredito em líderes. Se o político é um bom líder, com fortes convicções morais, força de vontade e senso de justiça,
e sombrias
Busca do Tempo Perdido, nunca li a revista The Economist ou Time Out, nunca tive um carro, nunca passei do limite da conta bancária, nunca compareci a tribunal. Ninguém nunca me ofereceu drogas, convidou-me para uma orgia ou me vendeu um contraceptivo. Jamais tive a menor vontade de possuir um quadro de Picasso, ter uma Ferrari, vestir um Armani ou morar em Aspen.” “Jamais matei um peixe, cacei uma raposa ou esmaguei uma aranha – se bem que, uma vez, tentei esmagar uma tarântula no Recife.”
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“Já fiz Charles de Gaulle se benzer, Churchill chorar e o Papa sorrir.” LU I
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ministra, eu achava que tinha orgulho de ser inglês. Andava de cabeça erguida em qualquer país. Quando John Major estava no governo, eu andava encolhido. Não tinha orgulho de ser inglês. O que espero é que, com Tony Blair, eu possa andar de cabeça erguida como fazia com Margaret Thatcher. É um homem de personalidade, dono de convicções fortes. Crê que há coisas que são certas e há coisas que são erradas sob o ponto de vista moral. É um homem religioso: acredita que crenças religiosas podem ser transformadas em ações políticas. É jovem, idealista, vigoroso.
“Considero-me um típico inglês do meu tempo, classe e idade, cujos pontos de vista, simpatias e antipatias são compartilhados com multidões. Posso estar errado a esse respeito. Quando perguntada o que pensa sobre mim, minha mulher, Marigold, respondeu: ‘Difícil’.” (Trechos de To Hell With Picasso; Weidenfeld & Nicolson, Londres) Continente Multicultural 93
apenas as mulheres ricas, mas também as mulheres comuns, usam o que esses estilistas produzem. As mulheres é que escolhem. Ninguém faz uma mulher vestir roupas idiotas se ela não quiser.
O senhor diz que a moda é uma conspiração de costureiros para ver até onde eles podem forçar as mulheres a fazer macaquices. A moda é um sintoma da decadência? Não há nada de novo nesse fenômeno. A “alta moda de Paris” existe desde 1850: é um século e meio de vida. Os estilistas – principalmente porque, na maioria, são homossexuais – sempre transformam as mulheres em macacas. Acham que as mulheres aceitarão o que eles fazem. As mulheres – não apenas as ricas – compram as roupas oferecidas pelos estilistas. Há coisas idiotas. Como essas roupas são fabricadas em massa – e levadas às lojas – não
Quero levar ao Parlamento uma lei de privacidade que impeça a mídia de invadir a privacidade alheia. Ingleses e americanos não têm essa lei. Quero que a Inglaterra tenha.
son?
Quem será a próxima vítima de Paul John-
É possível resumir o século em uma só palavra? Não em uma palavra, mas em uma frase: “O século 20 foi um desastre total, suavizado pela capacidade humana de aprender lições da História”. Geneton Moraes Neto é jornalista
AFP
Desfile de moda: para Paul Johnson, “os estilistas sempre transformam mulheres em macacas”
para mim não faz diferença se ele ou ela é trabalhista ou conservador. Thatcher – líder do Partido Conservador – tinha esses atributos. Por essa razão, eu a apoiava. Por ter também esses atributos, o trabalhista Tony Blair merece o meu apoio. O que eu busco é uma liderança.
HUMOR
Samuca
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ÚLTIMAS PALAVRAS
Catando inspiração
E
stava em alumbramento adolescente das férias sertanejas no meu adotivo Salgueiro pernambucano, quando fui surpreendido à porta da minha casa hospedeira, num sábado de feira, pela presença de um senhor de estatura baixa e vestido com uma camisa frouxa e comprida, cheia de bolsos, cabeça sufocada por um chapéu de palha com abas largas, mexicanizado, trazendo uma máquina fotográfica pendurada no pescoço tal um turista de safári africano. “Por favor, poderia o jovem me mostrar onde fica o hotel?” – Será que o senhor é Jorge Amado? – Desde que nasci. Minha tia, que mexia nos cacos de plantas do jardim, adiantou-se: “Oxente, homem, como foi que tu achaste Gabriela?” – Do mesmo jeito que procuro Tieta... Talvez catando pelo meio da feira, quem sabe, eu a encontre – e sorriu. Percebendo aquela caçada de inspiração, de pronto ofereci-me para acompanhar o romancista ao seu destino, percurso este interrompido para que o mesmo batesse uma foto: “Que linda paisagem!... Como se chama aquela serra?” – Serra da Onça, senhor. – Por que esse nome? – curioso, já de papel e caneta na mão. – Sua silhueta lembra uma onça deitada – respondi-lhe, esbanjando, orgulhoso, o papel de cicerone à tamanha personalidade das letras. Seguimos conversando e confessei-lhe o meu gosto pela leitura e por escrever crônicas românticas e salpicadas de saudade. Deixei-o no hotel e corri para a feira à procura de alguém com quem pudesse dividir o meu contentamento pelo rápido episódio vivido. No meio do caminho, parei na Coletoria para me certificar da informação que havia dado. Errei. Chamava-se Serra do Cruzeiro. A da Onça ficava a
léguas adiante. Na mesma pisada, ainda esbaforido, retornei em desabalada carreira a fim de consertar o lapso. Em lá chegando, encontrei Amado sentado num banquinho à frente do hotel, conversando e anotando uma prosa com um velhinho acocorado junto a um saco de farinha ancorado no canto da parede. Surpreendido com o meu retorno inesperado, perguntou-me se estava tudo bem. Esclareci a informação errada sobre o nome da serra, achando que sempre havia me condicionado àquela fantasiosa idéia. Ele, por sua vez, elogiou a minha preocupação para com a verdade histórica e instou-me a escrever sobre uma onça que virou uma grande serra, acrescentando: “Que bom seria eu achasse uma matutinha bonita e bem queimada pelo sol, deitada mansamente como essa onça do seu imaginário!...” Anos depois, o leitor brasileiro tomou conhecimento da Tieta do Agreste, que bem poderia ter sido do Sertão. Que pena, o hoje saudoso Jorge Amado, de todos os santos, não ter achado naquele rincão do Salgueiro tal inspiração. Talvez, um dia, venha a seguir o conselho do velho mestre da ficção e conte a história de uma bela onça adormecida, quem sabe, pelo cansaço da cavalgada apocalíptica do “rapaz do cavalo branco”, do nosso Ariano, d’A Pedra do Reino. Destarte pretensão tão audaciosa, seguramente, o homem de Taperoá não se magoaria ao apagar o mito do fogo pentecostal queimando o Sertão, e sempre afetivo, criaria uma outra estrutura narrativa. Anos mais tarde, quando publiquei o meu livro Como Era Lindo o Meu Salgueiro e enviei-lhe um exemplar, recebi carinhosa cartinha que fechava assim: “... Agora, que aquela Serra do Cruzeiro parece mesmo com uma onça deitada, lá isso parece...” Já troquei o nome delas – em sua homenagem.
Rivaldo Paiva - escritor 96 Continente Multicultural